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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
Programa de Pós-graduação em Filosofia
A justiça e a sabedoria prática em Paul Ricoeur
São Paulo, 2011
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
Programa de Pós-graduação em Filosofia
A justiça e a sabedoria prática em Paul Ricoeur
Dissertação apresentada como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre por Felicidade Aparecida Gouvea Muñoz Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
São Paulo, 2011
Agradecimentos
E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... De O cancioneiro de Rebanhos – Alberto Caieiro.
Gostaria imensamente de agradecer a todos que contribuíram para instigar em
mim uma atitude filosófica. A reflexão filosófica transformou a minha percepção do
mundo, de modo que já não me sinto mais a mesma, como diz o trecho da poesia
acima. Sinto-me nascida a cada momento. Talvez porque a minha experiência no
campo da filosofia tenha sido tão intensa que redirecionou os meus movimentos,
mudando e ampliando o meu olhar. Nesse sentido, posso dizer que despertei como
uma criança que olha à sua volta e vê o mundo com curiosidade. Contudo, a minha
curiosidade, contrariamente à da infância, já não é ingênua, ela se dá de modo
reflexivo e muito mais criterioso. Essa atitude filosófica que dirige o meu modo de
pensar é também uma atitude que considero amorosa, já que me possibilita ver o
mundo como uma “eterna novidade”. É preciso dizer que, provavelmente, não teria
conseguido transformar o meu olhar se não existissem pessoas capazes de me auxiliar
nessa jornada. Desse modo, quero deixar por escrito o meu sentimento de gratidão.
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................p.7 Capítulo 1: O senso de justiça, a violência e a vingança. 1.1. A prática e os princípios de justiça a) O plano da prática............................................................................................... p.15 b) O plano dos princípios........................................................................................ p.26 1.2. A lei e a moral............................................................................................. p.32 1.3. Infração e punição....................................................................................... p.43 1.4. A violência e a vingança a) Violência e Coerção do Estado.......................................................................... p.46 b) A Vingança......................................................................................................... p.54 1.5. Retribuição e Reconhecimento mútuo............................................................ p.56 Capítulo 2: Sabedoria Prática: a justiça em ação 2.1. Antígona de Sófocles: “o trágico da ação”..................................................... p.62 2.2. A responsabilidade e a culpa a) A responsabilidade............................................................................................. p.82 b) A culpa............................................................................................................... p.88 Capítulo 3: O justo e o injusto no plano das mentalidades 3.1. Ética e Moral: a intenção de vida boa e a obediência às normas.................. p.93 3.2. “Visar à vida boa”: cuidado de si................................................................... p.94 3.3. Viver bem com e para o outro: a solicitude................................................... p.98 3.4. Desejo por instituições justas......................................................................... p.99 3.5. A sabedoria prática: a justiça em ação a) O conflito e a sabedoria prática..................................................................... p.101 Conclusão...............................................................................................................p.105 Bibliografia............................................................................................................p.114
Resumo
Essa reflexão é sobre a justiça e a sabedoria prática nas relações cotidianas sob a perspectiva da fenomenologia hermenêutica da Paul Ricoeur. A sabedoria prática, na instância da prática de justiça, atua segundo Ricoeur como uma mediação entre a norma moral e a intenção ética. Ela opera na medida em que se deve incluir no julgamento uma dimensão ética, para que se possa estabelecer as trocas regradas de uma razão ponderada, para que os argumentos sejam plausíveis diante do tribunal. O caráter ético é, nessa concepção, a sugestão de um télos de “vida boa” que tenta estabelecer a mediania na argumentação, como uma atitude mais justa na aplicação das regras em relação aos conflitos que nascem a partir de convicções mais acirradas ocorridas na dinâmica social. A violência e a vingança constituem-se na contraparte a ser contida pela estrutura do aparelho judiciário do Estado. Sabemos, porém, que uma atitude justa é difícil, principalmente quando há uma situação de conflito grave entre duas pessoas, em que cada qual acredita obstinadamente que somente a sua convicção é justa. Examinamos a Antígona de Sófocles, uma imagem clássica desse conflito entre duas convicções. Antígona apega-se ao direito familiar de poder enterrar o irmão e Creonte aferra-se em cumprir uma lei para castigar o morto. Nesse embate entre os dois é possível ver que a falta de uma sabedoria prática no modo como cada antagonista se posiciona em sua própria convicção pode piorar a situação do conflito e dificultar, assim, um possível consenso sobre o que poderia ser mais justo para a ocasião. A justiça, no caso, não agiu de maneira justa, ela trouxe sofrimento para ambos, pois nenhum dos dois conseguiu entrar em um acordo sobre o que no julgamento moral em situação poderia ser mais justo. Ambos posicionaram-se em uma dimensão do direito, reservando para si o que era o correto, mas o justo pela lei sem uma intenção ética visando o bom, sem exercitar a sabedoria prática, pode acabar levando então às conhecidas consequências trágicas. Depois de acompanhar a discussão desse caso exemplar, examinamos as soluções conceituais de Ricoeur em torno da noção de sabedoria prática, dando destaque à perspectiva ética de uma vida boa, que inclui o cuidado de si e do outro, na resolução dos conflitos de justiça. Nosso trabalho mostra, assim, que a reflexão de Ricoeur articula os princípios teóricos e a prática, tanto a judiciária quanto a cotidiana, de um modo consistente. Palavras chaves: Ricoeur, justiça, sabedoria prática.
Abstract
This reflection is about the justice and the practical knowledge in everyday relationship under perspective of Paul Ricoeur’s hermeneutic phenomenology. The practical knowledge, in the instance of justice, practice acts by Ricoeur like a mediation between the moral norm and the ethical intent. It operates as it should include in the judgment an ethical dimension, so that we can establish the orderly exchange of a weighted reason, so that the arguments are plausible before the court. The ethical character is, in this conception, the suggestion of a “good life” télos which tries to establish a moderated argumentation, like a fairer attitude in the application of the rules related to the conflict that born since intransigent convictions occurred in the social dynamic. Violence and revenge are the contravention which has to be carried by the structure of the State judiciary. Although we know that a fair attitude is hard, mainly when there is a serious conflict between two people, when each one believes obstinately that only his conviction is fair. We examinated Sophocles’ Antigone, which is a classical image of the conflict between two convictions. Antigone clings to family law to bury her brother and Creon grasp top comply with the law and punish the dead. In this clash, it’s possible to see that lack of practical knowledge in the way each antagonist place itself in his own conviction, can worse the conflict and complicate a possible consensus about what could be fairer for the occasion. Justice, in this case, didn’t act in a fair way; it brought suffering for both, because no one could enter into an agreement about what could be fairer in a moral judgment. Both of them positionated themselves in a law dimension, reserving for them what was correct, but the just by the law, without an ethical intention which aims the good, without the use of practical knowledge, can lead to the well-known tragic consequences. After analyze this case, we examinated Ricoeur’s conceptual solutions around the practical knowledge notion, emphasizing the good life ethical perspective which includes take care of yourself and take care of other, in the solution of justice conflicts. In this way, our work shows that Ricoeur’s reflection links theoretical principles and practical, even the judiciary and the everyday one, in a consistent way. Keywords: Ricoeur, justice, practical knowledge.
5
INTRODUÇÃO
“‘A justiça concentra em si toda a excelência’. É, assim, de modo
supremo a mais completa das excelências. É, na verdade, o uso da
excelência completa. Completa, porque quem a possuir tem o poder de
usá-la não somente para si, mas também com outrem. [...] a justiça é a
única excelência que parece ser um bem que pertence a outrem, porque
efetivamente envolve uma relação com outrem; isto é, produz pela ação o
que é de interesse para outrem [...]”.
(Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1130 a1, livro V, São Paulo, Editora Atlas, 2009).1
“A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância
com o outro, tão originária quanto à relação de proximidade com outrem
ofertado em seu rosto e em sua voz. Essa relação com o outro é, ouso
dizer, imediatamente mediada pela instituição. O outro, segundo a
amizade, é o tu; o outro segundo a justiça, é o cada um o que é seu.”
(Ricoeur, Paul. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2008).2
Na questão da justiça, às vezes somos confrontados por questões filosóficas tão
abrangentes que se torna uma tarefa difícil estabelecer um limite para aquilo que se quer
de fato compreender ao estuda-la. Tendo em vista essa dificuldade, procuramos
restringir nossa abordagem em um ponto específico da questão da justiça, pois
entendemos que seria uma discrepância de nossa parte desviar a nossa atenção querendo
abraçar todos os discursos teóricos e filosóficos a respeito desse tópico. Pois bem,
ocupar-nos-emos de modo mais preciso do tema: “a justiça e a sabedoria prática em
Ricoeur”. Entretanto, o nosso foco principal se deterá no viés das relações interpessoais;
espaço, segundo o filósofo, em que o senso de justiça sendo guiado por uma sabedoria
prática tem na figura do outro a face do justo disposto no predicado bom, além do
sentido legal.
Antes, contudo, de dispensarmos um tempo a essa questão, pareceu-nos
relevante dizer por que escolhemos Ricoeur para guiar a nossa reflexão sobre a justiça.
Primeiramente, porque consideramos, conforme o autor, que o pensar filosófico não é
apenas uma atividade, mas uma tarefa pessoal, concreta e temporal lançada sobre uma
questão vinculada ao mundo exterior, todavia mediante nossos próprios interesses e
1 Aristóteles, Ética a Nicômaco, Tradução do Grego de António de Castro Caeiro, São Paulo, editora Atlas S.A., 2009, livro V, p. 105. 2 RICOEUR, Paul. O Justo 1 Título original em francês: Le Juste 1, Editions Esprit, Pari, 1995. Trad. Ivone C. Benedetti, SP. Ed. Martins Fontes, 2008, Prefácio, IV, p.9.
6
sentimentos. Essa tarefa é uma experiência filosófica compreendida, de modo peculiar,
por um pensamento cuja base é a fenomenologia e a hermenêutica. Estes dois
pensamentos encontram-se visando, para Ricoeur, a compreensão de si mesmo e de
explicar as coisas mediante a decifração dos sentidos ocultados no significado aparente
dos símbolos. O filósofo analisa, refletindo sobre as questões filosóficas introduzindo as
sequências simbólicas por meio da linguagem; tarefa árdua que implica em três níveis
de profundidade: no plano da vida cotidiana, da vida científica e no nível da própria
reflexão.
Ricoeur é um filósofo que no campo ontológico procura reagrupar o modo de
existir, de viver, do sentido em que o homem tenta compreender a si mesmo e as
questões que o envolve, levando em conta a presença do homem no mundo, suas
perspectivas, seus contrapontos e contrastes. Nesse sentido, a reflexão filosófica de
Ricoeur está sempre tentando transpor os seus próprios limites; na tentativa de acessar
novas fronteiras que elucidem por noções a existência e a vida. Essa tarefa nos instiga a
buscar novos sentidos, a perceber pontos de vista oriundos de outras perspectivas
profundamente distintas. Nesse contexto, é possível ingressarmos no plano
hermenêutico, buscando interpretar e compreender para poder reinterpretar a realidade.3
Entendemos que as reflexões filosóficas de Ricoeur são postas sob um ponto de
vista cujas motivações se aludem ao anseio de conservar a surpresa do questionamento.
Nesse sentido, ele herda de sua cultura a função da interrogação a partir de um “recurso
vivo”, isto é, de um expediente colocado a serviço de um horizonte de sentido em que o
verdadeiro, o justo, o belo trocam entre si as suas significações. Para ele, a filosofia tem
um elo especial com a sua própria história; as questões filosóficas originam-se a partir
de outras não respondidas ou que foram contestadas. Nesse cenário filosófico, para ele,
questionar é: estabelecer relações, criticar, reinterpretar, mas, sobretudo é manter-se
aberto e curioso em relação a todos os recursos vivos que não são familiares a
conversação do cotidiano.
Paul Ricoeur considera que no nível da reflexão “a filosofia é convidada a
negociar entre as próprias categorias e as que as ciências propõem”. 4 Para ele, a
atividade filosófica pode contribuir em favor do diálogo na dinâmica partilhada pelo
3 RICOEUR, Hermenêutica e Ideologias, Organização e Tradução: Hilton Japiassu, Editora Vozes, Petrópolis, RJ. 2008. Apresentação – Paul Ricoeur: Filósofo do sentido, p.7 4 HAHN, Lewis Edwin. (coordenador) A filosofia de Paul Ricoeur, Título original: The Philosophy of Paul Ricoeur. The library of Living Philosopher, 1995. Trad. António Moreira Teixeira, Instituo Piaget, Lisboa, Portugal, 1999, p. 9.
7
conjunto da comunidade científica enquadrado no campo das práticas humanas. O autor
considera que a filosofia pode assegurar o seu próprio futuro, ajudando simultaneamente
os cientistas a refletir sobre o duplo estatuto de espisteme e de tekhne da sua própria
ciência. Ele compreende que a atividade filosófica desempenha um modesto papel,
porém eficaz, no nível das disciplinas de intervenção na vida social, política e civil. Seja
qual for o contexto em que o filósofo é chamado a expor o seu ponto de vista, dever-se-
ia considerar não somente a preocupação de clarificação conceitual e o rigor
argumentativo, mas respeitar, principalmente a ética da discussão. Segundo Ricoeur, em
todos os lugares em que o filósofo se fizer ouvido à argumentação e a interpretação
estará misturada ao juízo; encarregado de conduzir do provável na ordem da deliberação
para a decisão numa situação singular. 5
O movimento filosófico do autor não se reduz ao modo de um pensamento
reflexivo, ele sai de sua posição filosófica e esforça-se por dirigir sua experiência em
direção ao diálogo com diferentes campos de atuação, visando sempre uma “vida boa”.
Este ato filosófico veio de encontro a nossa aspiração de uma vida boa e nos motivou a
também oferecer nossa pequena contribuição para um bem viver em sociedade.
Acreditamos que, eticamente, é possível para cada um fazer algo de concreto em favor
de um mundo melhor. Ricoeur considera que “a ética é um movimento entre a crença
nua e a crença cega num “eu posso” primitivo, e a história real onde certifico este ‘eu
posso’.”6 Este discurso comporta uma hermenêutica em que dizer “eu posso”, significa
que há alguém se situando e expressando a própria potência. Nesse aspecto, existe uma
pessoa que pode ser o outro, o qual é possível chamar de tu; podendo dizer “eu posso”.
Nessa hipótese linguística do “eu posso” estendida no “tu podes” há um pressuposto
ético que para Ricoeur tem critérios que se sustentam tanto no sentido de bom da justiça
como na questão da sabedoria prática.
No decorrer do estudo, as ideias serão expostas procurando mostrar:
primeiramente que por detrás dos conteúdos, princípios e sentidos se encontra no
sentido de justiça um significado de bom cujo elemento da sabedoria prática se sustenta
na ideia ética de “vida boa”. Esta ideia ética, idealizada por Aristóteles, para o filósofo
francês, pressupõe um ideal alargado para além de nós mesmos; em que reconhecemos
no outro um ser também capaz de aspirar: uma “vida boa realizada com e para o outro
5 Idem, p.321 6 Idem, 206.
8
em instituições justas”.7 Essa condição ideológica, segundo Ricoeur, pode servir de
inspiração para um trabalho concreto em favor de uma justiça social mais justa.
Retomaremos também, a tragédia de Sófocles com o intento de refletir e analisar, no
nível das relações interpessoais, a questão do justo e do bom em instituições que nos
parecem injustas.
Para dar conta desses pontos em questão usaremos três estudos de Ricoeur. A
saber: teremos por base no primeiro capítulo o texto “O justo entre o legal e o bom”
(1991) do livro Leituras 1; no segundo capítulo teremos por alicerce o estudo
denominado “O trágico da Ação”, Interlúdio na obra O si mesmo como um outro,
(edição original francesa de 1990 e a tradução brasileira de 1991) e no terceiro capítulo
embasaremos no texto “Ética e Moral” (1990). Este estudo faz parte também dos
estudos organizados na obra cujo título original francês: Lectures 1: autor du politique.
Éditions du Seuil, 1991. A tradução brasileira editada pelas Edições Loyola em São
Paulo denomina-se Leituras 1 – Em Torno ao Político, 1995.
Em relação ao sentido de justiça, no horizonte do texto “O justo entre o legal e o
bom”, foi considerada, por Ricoeur, numa sequência que inclui três planos diferentes. A
saber: o plano dos princípios, o das instituições e o das mentalidades (este último tomar-
se-á também por relações interpessoais). Nessa reflexão, o filósofo entrecruza diferentes
questões envolvendo os princípios teóricos da justiça, o plano institucional e o plano
das mentalidades em um viés que se movimenta pela questão da linguagem e da ação do
sujeito.
Este artigo filosófico é uma reflexão filosófica em que a ideia de justiça tem
como plano de discussão a filosofia moral e a política. Pelo tópico intitulado: “Política,
Linguagem e Teoria da justiça” é possível perceber que a ideia de justiça tem por objeto
de estudo não só a política e a moral, mas a linguagem também. Nesse contexto, o
sentido de justiça alarga-se não se restringindo a um único campo de pensamento. No
entanto, a ideia de justiça compreendida socialmente como prática instituída, apresenta-
se na figura do aparelho judiciário, seguindo-se de um conjunto de leis escritas,
tribunais etc.
Além desse contexto institucional, a ideia justiça aparece também de modo
teórico como uma ideia de direito conduzindo as condições da justiça social. No
domínio da ideia de justiça existem, ainda, os princípios que norteiam ou fundamentam
7 RICOEUR, Paul. Leituras 1- Em torno ao político, Título original: Lectures 1: autor du politique, Éditions du Seuil, 1991.Trad. Marcelo Perine, São Paulo, Edições Loyola,1995 p.89.
9
a noção de justiça. Além do mais, há na dimensão da justiça, a instância do político em
que se tem uma ação dirigida ao viver em comum e à dominação política. Em suas
múltiplas significações, a justiça pode aparecer pelo emprego da força pública; para
Ricoeur é uma necessidade política e por vezes jurídica para estabelecer a ordem e a fim
de dar cumprimento às sentenças que foram decididas diante do tribunal. Em relação às
circunstâncias de justiça, há ainda, de acordo com o autor, a atividade comunicativa que
emprega a força do argumento e o emprego dialógico da linguagem.
A parte comunicativa está vinculada a questão da linguagem, por exemplo, no
modo de confronto argumentativo no tribunal, isso implica em uma sequência: primeiro
as circunstâncias de reivindicações tornando-se ocasiões de justiça que requerem os
canais judiciários, por sua vez, estes oferecem um sentido de justiça argumentado em
princípios da justiça que tiveram os conteúdos e sentidos, então, formulados e
discutidos no âmbito da filosofia moral e política.
Os princípios e a prática de justiça no plano das instituições serão mais
detalhados no decorrer do primeiro capítulo. Lembramos que nosso percurso será feito
seguindo a perspectiva da fenomenologia hermenêutica. De modo sucinto, a questão da
fenomenologia está vincula ao campo das experiências mundanas do sujeito que é capaz
de pensar, de falar, de agir e sofrer as consequências das próprias ações. Ricoeur desvia
momentaneamente de seu movimento reflexivo fenomenológico para recorrer à
hermenêutica dos signos e das obras definidas pelas estruturas semânticas. Na
interpretação os signos ampliam-se além de sua especificidade dos sistemas simbólicos
acabando, assim, por resultar em uma hermenêutica que possibilita por em suspeita as
noções do texto. Esse desvio conserva a preocupação de reconhecer que há um campo
de validade de toda análise estrutural sendo preciso respeitar essa instância para no final
poder formular outra ressignificação após a interpretação.
Além da herança cultural filosófica, Ricoeur também herdou outros legados. Ele
não se esqueceu de que recebeu grande influência de Gabriel Marcel, autor de
pensamentos filosóficos, que segundo nosso filósofo8 aborda os problemas filosóficos
utilizando os exemplos vivos encontrados nas peças teatrais. Ricoeur compreende que
esses exemplos vivos são importantes na reflexão sobre a questão da prática da justiça
que precisa, por exemplo, estabelecer uma ligação entre todo o aparato processual legal
com os valores morais a fim de um julgamento mais justo em situações concretas.
8 Entrevista, encontrada no site http://www.fondsricoeur.fr/photo/confrontaion%20des%20heritages-pr.pdf ,sobre os filósofos que influenciaram o pensamento do Ricoeur.
10
Ricoeur diz que deve a Gabriel Marcel “a problemática do sujeito ao mesmo tempo
encarnado e capaz de distanciar de desejos e poderes”.9 A partir da reflexão do filósofo
citado acima Ricoeur agregará à sua análise reflexiva a questão do trágico em conjunto
com o sofrimento; que não é apenas um padecimento, ele também é um modo de ser do
humano que é inseparável das ações. O nosso autor considera que viver é agir e sofrer.
A fim de esclarecer o sentido do sofrimento nas ações dos sujeitos, Ricoeur direcionará
sua reflexão pelo problema da intersubjetividade, do sujeito que sofre as ações de
outros. A intersubjetividade que designa as relações entre os vários sujeitos consiste em
uma experiência na existência do sujeito. As pessoas são os sujeitos de suas ações. O
agir humano nem sempre é um ato reflexivo, muitas vezes as mentes agem motivadas
por contradições entre o pensar e agir. As pessoas vivem em circunstâncias de
acontecimentos diversos e mutáveis, de ideias incertas que impregna uma moral
comum. O sujeito é uma singularidade, porém vive em um contexto complexo e plural
de modo que suas ações influenciam e sofre a influência pela vivência do outro.
Em relação à intersubjetividade convém dizer que ela é um legado de Karl
Jasper, que trabalhou esta questão pensando o problema da violência em situações-
limites sob dois aspectos: de um lado considerou as situações inaceitáveis, mas que
fazem parte das experiências do ser humano, por exemplo, o sofrimento, a solicitude, o
fracasso, a falta e a morte. De outro, considerou que a noção de existência inclui três
elementos: a liberdade, a situação e a alteridade. Esses elementos de reflexão puderam
auxiliar Ricoeur, como veremos, a pensar a questão da justiça por uma abordagem que
permite confrontar o sentido de bem e de legal em situações que a condição humana é
submetida a limites; em que se desdobra entre um dever moral e uma vontade de uma
“vida boa”. Esta é uma aspiração cuja tentativa de realizar não é fácil, já que há
constantes sobreposições de vontades e o que é bom para um pode não ser para o outro.
Embora a convivência se dê em contextos confusos em que se misturam os mais
diferentes interesses, por exemplo, os econômicos, os políticos, os religiosos e os
individuais; é possível à justiça incluir ao legal do justo, o bom.
Tendo já falado de forma ampla sobre o autor e nossa intenção sobre o estudo
em relação à justiça resta-nos descrever o movimento dos capítulos. No primeiro, será
uma tarefa de distinguir os planos mencionados acima, tentando mostrar as relações
entre eles. Apresentaremos no plano da prática da justiça; os conceitos e as noções de
9 RICOEUR, P. Da Metafísica à Moral, Ed. Inst. Piaget, p. 63. 9 Cabe dizer que Marcel fornece à reflexão de Ricoeur a possibilidade de pensar a questão do trágico considerando a figura do sofrimento.
11
justiça em conjunto com os princípios reconhecidos como “princípios de justiça”. A
ênfase será dada a dois aspectos diferentes da justiça: o sentido institucional da lei que
pune as infrações e o sentido moral que engloba a ideia de retribuição e reconhecimento
mútuo.
De modo mais específico, a ideia justiça será tratada, primeiramente, do ponto
de vista da sistemática da lei e na problemática do juízo moral. Depois, pela forma de
coação e punição em que a violência é justificada sob o ponto de vista da coerção do
estado e a noção de violência injustificável da justiça apresentada como vingança.
O segundo capítulo é composto pela leitura da clássica tragédia de Sófocles,
Antígona. A abordagem desta tem como ordem de prioridade a problemática do justo e
do injusto em relação à existência de conflitos e de uma convicção tão obstinada e
exaltada que impede qualquer tipo de “sabedoria prática” para poder saber ponderar a
situação em julgamento moral. Enfocaremos a questão do conflito que Ricoeur analisa
vinculando-o a perspectiva de Hegel e de outros pensadores que também o abordaram
em Antígona. Além do conflito, daremos destaque à questão da convicção, pensada em
conjunto com a questão da responsabilidade e da culpa. Procuramos realçar na questão
do conflito e da convicção o sentido de “sabedoria prática”. Segundo Ricoeur, ela é um
elemento ético essencial e necessário para o estabelecimento de uma ação prática da
justiça. Para Ricoeur, a sabedoria prática acrescenta à perspectiva ética de “vida boa”
uma efetuação concreta da ação ponderada. Lembrando que a apresentação de Antígona
serve como análise de caso em que o nosso interesse consiste em tentar compreender,
segundo Ricoeur, “a passagem das máximas gerais da ação ao julgamento moral em
situação”.10
10 RICOEUR, Paul. O Si Mesmo como um outro, Título original em francês: Soi-Même comme un autre, Editions du Seuil, 1990. Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas, SP. Ed. Papirus, 1991, p.282.
12
Deixamos para o terceiro capítulo a questão da intenção ética à moral, tendo na
sabedoria prática um modelo de consenso para os conflitos. Também, deixamos a
questão da regra que para ser interpretada inclui o diálogo, tanto na prática institucional
da justiça como na convivência interpessoal. Além disso, acrescentamos a análise, de
Ricoeur, de como se dá a realização de uma “vida boa” nas relações interpessoais. O
filósofo parte do pressuposto de que a ideia ética de “vida boa” não é uma tarefa muito
fácil de pôr-se em prática, pois na vida cotidiana há os diversos conflitos que agastam a
convivência exigindo de cada pessoa certo tipo de tolerância para identificar o que de
fato é justo e o que não é. O realce será dado a uma perspectiva ética da “vida boa”. Se
no primeiro capítulo o destaque do sentido de “vida boa” foi para o plano das
instituições, nesse capítulo, a reflexão sobre essa aspiração se deterá no significado da
ação em relação ao sentido de: cuidado, estima e respeito devido a “cada um”. Nessa
perspectiva, retomaremos a reflexão de Ricoeur que se movimenta em torno do
“cuidado de si” e da “solicitude”.
Nossa conclusão retoma a ideia de Ricoeur que tenta conciliar a ideia de
autonomia/escolha com a receptividade solidária em relação ao outro. Como diz
Ricoeur – “uma autonomia solidária da regra de justiça e da regra de reciprocidade”.
Conciliar essa ideia em meio às relações interpessoais no cotidiano exige um esforço de
cada um para tentar refrear e moderar as próprias paixões, as convicções imponderadas
e as certezas pautadas no senso comum; a fim de que se abra uma possibilidade para que
possamos tentar viver bem com e para o outro em instituições justas. Sabemos que não
é papel da filosofia estabelecer o que deve ser para as pessoas ou para as instituições;
porém, é possível a ela chamar a atenção para mostrar que há condições de aplicação
para uma perspectiva ética cuja intenção seja um desejo da “vida boa”.
13
Capítulo 1
O senso de justiça, a violência e a vingança.
1.1. A prática e os princípios de justiça.
a) O plano da prática
Parece-nos que se usa frequentemente a palavra justiça para designar o que é
justo. No sentido moral, tem-se a impressão de que a palavra justiça assume uma
consistência jurídica e política para nos mostrar por meio da lei o que é lícito e bom a
todos e aquilo que não é. Ademais, nessa estrutura da justiça, as ações de cada um
geralmente são consideradas justas ou injustas dentro de um contexto de prejuízo tidos
como crime ou falta diante de uma instância que os define, os julga e sanciona. Somos,
assim, levados a imaginar que o sentido da palavra, além da acepção instituída na
prática jurídica, carrega uma força capaz de atingir a vida dos indivíduos em seu “bem
estar”, em sua liberdade etc. Em “O justo entre o legal e o bom”, artigo de Ricoeur de
1991,11 a ideia de justiça é analisada a partir de um sentido enquanto acontecimento
concreto em relação à prática da justiça. Nesse sentido, o conceito de “justiça” constitui-
se de uma ideia reguladora presidindo uma prática social complexa pondo em jogo
conflitos típicos, procedimentos codificados e um confronto regrado por argumentos,
bem como a proclamação de uma sentença.
No plano da prática, segundo Ricoeur, a justiça é institucionalizada12. E é
requisitada todas as vezes que há ocasiões e implicam em reivindicações oponentes.
Essas circunstâncias requerem um recurso das vias ou dos canais de justiça, isto é, o
aparelho judiciário situado no plano institucional13.
Segundo Ricoeur, para que a reflexão sobre a justiça seja efetuada há duas vias a
ser exploradas, não esgotando nelas, porém, a ideia de justiça. Para ele, a prática social
da justiça requer uma análise, primeiramente, pela via que passa pelo plano das
instituições e de modo mais profundo, por outra que se movimenta pelo viés das
relações humanas.
Antes de seguirmos o percurso pela via do plano institucional, é importante
deixar claro que, para o autor, a ideia de justiça é uma conquista da razão; contudo, ela é
11Op. Cit. Leituras 1- Em torno ao Político, 1991. 12 Op. Cit. O si mesmo como um outro, Nessa obra Ricoeur assevera: “somente num meio institucional específico é que as capacidades e disposições que distinguem o agir humano podem expandir-se.”, p. 298. 13 Idem, p. 147 “Tarefas do Educador Político”– Segundo Paul Ricoeur, as comunidades históricas somente se apropriam de suas experiências técnica e econômica por meio das instituições; grosso modo, esse fenômeno são formas de existência social propiciando às relações humanas uma forma regrada e normativa ligadas a estruturas determinadas de manter sob um poder público a possibilidade de uma dinâmica mais organizada às relações sociais.
14
exercida no cotidiano tendo um histórico que emergiu lentamente de uma origem mítica
e sagrada. Nesse aspecto, ele considera que nesta ideia comporta também as questões
simbólicas. Para ele é possível perceber, por exemplo, um fundo mítico na ideia de
justiça tanto nas reflexões dos pré-socráticos gregos como nas tragédias de Ésquilo e
Sófocles. Paul Ricoeur considera que estes pensadores tentaram engendrar um sentido
racional à ideia de justiça, todavia, não deixaram o sentido imemorial de justiça
desaparecer. Para o filósofo, embora haja uma concepção mais racional e processual
desta ideia, as conotações do sagrado e do mito ainda têm uma potência, perpetuando-se
socialmente até os dias atuais.
De acordo com Ricoeur, um sentido imemorável de justiça que não desapareceu
apresenta-se, pelo sentido contrário da justiça, no modo de queixa. Para o autor, esse
modo negativo abre a possibilidade de penetrarmos no campo do injusto e do justo. A
queixa faz parte do comportamento humano e na maioria das vezes aparece quando a
pessoa se sente insatisfeita ou indignada. Diante da justiça, segundo o autor, a queixa é
uma ação mais “aguda e perspicaz” para reivindicar o que é justo no significado de
justiça. Esse modo de agir, para o filósofo, evidencia algo que falta às relações
humanas. Sem deter-nos na questão da falta, dir-se-á que para o filósofo, a injustiça tem
um sentido mais contundente, movimentando o pensamento antes de se tentar pensar o
significado de justiça. Têm-se, então, nessa ideia de justiça um sentido duplamente
reflexivo: por um lado, encontra-se a ideia no sentido positivo de justiça em que a lei
está relacionada à prática social; por outro, a ideia no sentido negativo da falta de
justiça; o espaço da queixa é um comportamento que está pautado a uma origem quase
imemorial, inscrita na simbologia mítica e sagrada da prática cotidiana.
O autor tem em vista de que a via de orientação da prática social de justiça está
pautada nas tradições do cotidiano. Porém, sabe que a justiça com base na tradição
cultural e a prática de justiça mantêm-se em vieses diferentes, conduzindo-nos a duas
concepções distintas e concorrentes da ideia de justiça. Para Ricoeur, essa oposição não
é uma invenção filosófica, mas uma característica da própria ideia de justiça. Essa
particularidade, no entanto, pode desenrolar-se em dois sentidos para o justo da justiça:
de um lado, o significado de justo recebe uma conotação ética tendendo ao predicado de
“bom” e de outro permanece estruturado nas capacidades jurídicas do “legal”. Todavia,
esses dois sentidos, aparentemente em oposição, podem ser considerados simplesmente
como uma fraqueza do conceito ou como uma constituição dialética que deve ser
respeitada.
15
A respeito do justo da justiça, a tese de Ricoeur diz: “a dialética do bom e do
legal seria inerente ao papel de ideia reguladora, podendo ser atribuído à ideia de justiça
com relação à prática social que nela se reflete”. 14
Tendo em vista os pressupostos acima, tomaremos a ideia de justiça
primeiramente como prática de justiça socialmente instituída, depois, como uma
aquisição marcada pelo sentimento, pelas configurações simbólicas presentes no
universo dos signos e nas expectativas em relação a outrem etc.
Na questão da prática da justiça, convém relembrar que ela é uma atividade
social estabelecida em um sistema de distribuição instituído. De acordo com Ricoeur,
este sistema, nominado de sociedade, é constituído por indivíduos históricos e culturais;
ao se agruparem de modo cultural e historicamente organizados como sistema de
repartição, introduzem um sentido de bem a tudo aquilo que consideram ser bom para a
vida em comunidade. Grosso modo, uma sociedade constrói seu sistema jurídico como
ideia reguladora para presidir as relações pessoais beneficiadas pelo concurso da
partilha em que cada pessoa é portadora de diferente papel, cabendo a cada uma a
participação social. Porém, para manter de forma regrada as relações interpessoais de
maneira que todos possam tomar parte nesse processo de distribuição, a sociedade
politicamente institui regras de aplicação da igualdade para operar na distribuição das
partes. Nesse contexto prático social, cada parte da distribuição é considerada um bem a
ser partilhado. Diante da lei a partilha transforma-se em direitos adquiridos. No campo
da aplicação há circunstâncias em que ocorrem reivindicações levantadas por interesses
ou direitos opostos; exigindo, assim, a presença de uma “instância superior” para
decidir entre essas reivindicações.
Cabe dizer que na prática social de justiça a instância superior é representada
pelo Estado governamental de uma nação, país etc. Esta instância é considera, dentro de
um sistema de governo, como uma instituição política que tem o controle das instâncias
legislativas empíricas e historicamente constituídas. Esse campo institucional
responsável pela esfera de justiça tem uma concepção processual delimitada em um
espaço público. Segundo Ricoeur, essa via legislativa tem por prioridade instaurar
regras para um sistema de repartição que visa à partilha de todos os bens sociais. No
campo institucional, a ideia de justiça, em circunstância de reivindicações, se transforma
14 Ibid, p.91
16
em um fenômeno ou acontecimento sendo representado pelos canais ou vias que é a
forma institucional judiciária. 15
De acordo com Ricoeur, as “ocasiões” ou “circunstâncias” de reivindicações de
direito normalmente são provocadas por “conflitos de interesses” entre as pessoas de
uma sociedade civil. As situações conflitantes demandam uma esfera superior quando
deixa de existir a possibilidade de um acerto em comum. Entretanto, a gravidade do
conflito pode ser posta em jogo caso essa instância jurídica, por princípio, não seja
reconhecida em seus os canais de justiça. A instância jurídica somente pode funcionar
como aparelho judiciário se os seguintes elementos forem reconhecidos pelos membros
da comunidade, a qual essa esfera superior se dirigirá para orientar. Os canais ou
aparelho de justiça são compostos: de um corpo de leis escritas; dos tribunais ou cortes
de justiça cuja função é pronunciar o direito e dos indivíduos encarregados de julgar e
pronunciar a sentença; por exemplo, os juízes, promotores, advogados, etc.16.
O filósofo francês acrescenta que existem, ainda, na instância de justiça
institucional dois aspectos: o primeiro consiste no monopólio da coerção que tem o
poder de impor as decisões da justiça empregando o recurso da força pública; o segundo
aspecto refere-se aos argumentos da justiça, parte da atividade comunicativa, podendo
aparecer, por exemplo, nos confrontos de argumentos diante de um tribunal. Esta
instância de ação da justiça é, assim, o lugar em que ocorrem os processos de
reivindicações e as sentenças, cabendo a ela o ato de julgar.
No ensaio “O ato de julgar”, parte da coletânea do livro O Justo 1, Ricoeur
afirma que somente no fim da deliberação efetua-se o ato de julgar. Esta atividade de
julgamento, em sua forma institucional judiciária, se expressa primeiramente no pólo da
lei e do direito jurídico, constituindo-se pelo processo e efetuando-se no ato de julgar.
O filósofo assevera que no sentido mais usual do termo a palavra julgar significa
opinar e avaliar. Já na acepção jurídica o ato de julgar significa estatuir na qualidade de
juiz17.
O sentido usual de o termo julgar é mais abrangente e, nesse aspecto, Paul
Ricoeur propõe uma classificação por “ordem de densidade crescente”.18 Em primeiro
lugar, o filósofo analisa o senso de julgar considerando o sentido da palavra que
argumentativamente é mais fraco; nesse aspecto, julgar tem o significado de emitir uma
15 Op. Cit. Leituras 1, p. 94 16 Idem 89. 17 Op. cit. O Justo 1, p. 171. 18 Idem p.175
17
opinião a respeito de qualquer coisa. Para o autor, o sentido de julgar torna-se um pouco
mais forte quando a palavra recebe um significado de avaliar; desse modo, introduz-se
um elemento hierárquico expressando preferência ou aprovação; a avaliação
exprimindo-se em um grau um pouco mais forte recebe a significação de se preferir isso
àquilo, aqui há a apreciação de algo ou a aprovação de julgar. 19 Outro grau maior de
força para a palavra julgar, segundo o filósofo, encontra-se entre a face do sentido
subjetivo e a do objetivo do julgamento; do lado objetivo: “alguém considera uma
proposição verdadeira, boa, justa, legal”; e do subjetivo: “adere a ela”. Para finalizar a
classificação do termo, o autor leva em consideração um nível mais profundo em que
julgar procede da conjunção entre entendimento e vontade: o entendimento
considerando o verdadeiro e o falso e a vontade decidindo entre os dois. Todavia, é no
âmbito do processo que o ato de julgar atinge um sentido mais forte recapitulando todos
os significados usuais da palavra; não somente com o sentido de opinar, avaliar ou de
considerar verdadeiro, mas em última instância, julgar tem o sentido de: tomar posição. 20
A tomada de posição em um julgamento faz parte da prática de justiça no âmbito
institucional21. E o sistema judiciário envolvendo a questão do julgamento é um
acontecimento social. Entretanto, esse acontecimento social envolvendo todos os canais
ou vias da justiça, não é em última instância uma simples tomada de posição; ao
contrário é uma prática complexa pondo em jogo conflitos típicos, procedimentos
codificados e os confrontos de argumentos regrados. Para que essa instância se
mantenha independente e seja qualificada com competência e autoridade para poder
tomar posição no ato de julgar tem-se de haver as condições necessárias. Caso contrário,
a justiça institucional não conseguira exercer eficientemente as suas funções.
Ricoeur enumera quatro condições necessárias para uma prática de justiça
eficaz: primeiramente a existência de leis escritas; em segundo lugar a presença de um
plano institucional constituído por tribunais ou cortes de justiças etc.; em terceiro lugar
pela atuação das pessoas encarregadas de julgar, para esse intento elas precisam ser
qualificadas, competentes e independentes; e em quarto lugar, a ação judicial
19 Ibid. p. 171 e 199. 20 Idem, 176. 21 Op. cit. Leituras 1 – Em Torno ao Político. O aparelho judiciário é definido por uma sequência: leis-tribunais-juízes-sentença, entre uma instância superior e uma base de sustentação. p. 104
18
desenvolvida inicialmente pelo curso do processo e finalizada pelo pronunciamento de
uma sentença.22
O autor assevera que no processo jurídico, além de um pronunciamento da
sentença há também, em todo julgamento, a possibilidade de deliberar. A acepção de
liberação alcança um aspecto reflexivo para o sentido do ato de julgar mantendo uma
relação dupla com a lei: por um lado existindo a força do direito representando a
“determinante” deste; por outro, o ato de julgar traduzindo-se por uma interpretação
“reflexiva” da lei que requer uma sabedoria no ato de julgar para deliberar. Nesse
sentido, o ato de julgar tem uma força determinante e reflexiva que, de acordo com
Ricoeur, pode ser ampliada a partir do ato reflexivo do sentido de deliberar. Se
considerarmos esse ato a partir desse sentido reflexivo, então poderemos alcançar uma
reflexão filosófica fora desse limite do judiciário.
Segundo o autor, o ato de julgar pode, além disso, expressar-se pelo sentido de
“de-limitar” cujo significado é por limites a pretensão de um sobre o direito de outro e
assim corrigir as distribuições injustas. Trata-se aqui de uma deliberação em que se
estabelece a parte de um e a parte de outro, atribuindo a “cada um” o que é seu. O
filósofo compreende que, nas circunstâncias últimas, o sentido do ato de julgar ao ser
recolocado no processo, sob a forma de incerteza, se posiciona de maneira ampliada. É
preciso ter em mente sempre, no entanto, que por trás dos procedimentos específicos do
processo judiciário há uma prática social composta por uma sociedade civil que é o
campo de incertezas. O campo social é o espaço das discussões e que em última
instância as partes reivindicantes recorrem à prática social da justiça para manter seus
direitos, sem, contudo, ter a certeza de que serão atendidos igualmente em suas
reivindicações. 23
O filósofo referindo-se as reivindicações assevera que o processo jurídico é
fenomenologicamente a forma codificada do conflito; para ele, atrás do processo há o
conflito, a pendência, a demanda etc.; isto é, por trás do conflito há a violência. Desse
modo, segundo o autor, cumpre recolocar o processo, com seus procedimentos
institucionais estrategicamente decodificados e interpretados para formar uma rede de
significados que atenda na prática da justiça as necessidades do conflito oriundo do
campo civil. Este último sendo o território público das discussões, fenômeno social
intrínseco ao funcionamento das relações interpessoais, dá margens às ocorrências de
22 IBID, 176. 23 Idem pp.178, 179
19
diversos conflitos. As incertezas, as pendências, a demanda de justiça e o litígio podem
gerar conflito e a partir deste pode chegar-se a violência. Assim, o lugar da justiça, de
ordinário, está tomado por um sentido negativo, como se estivesse fazendo parte do
conjunto de alternativas que uma sociedade opõe à violência. 24
Antes de nos determos na questão da violência, é preciso não perder de vista a
questão da prática de justiça como ideia que nos remete a problemática dos conceitos.
Como já dissemos, na reflexão “O justo entre o legal e o bom”, Ricoeur considera que o
conceito de justiça constitui-se uma ideia reguladora para reger a prática social que não
é meramente uma conquista racional, mas também um modo de experiência humana.
No sentido das experiências humanas, o autor levará em conta além das singularidades
dos conceitos elaborados pelas mentes, as situações e os significados de justiça
relacionada ao “viver em comum” de uma comunidade histórica. É nesse aspecto que a
ideia de justiça concerne às relações interpessoais, isto é, as experiências humanas. Por
experiência humana, dever-se-á entender as práticas intelectuais, morais e espirituais
acumuladas sob a forma de obras, monumentos visíveis, de livros e de bibliotecas, ou
seja, tudo aquilo que de algum modo deixa rastro se constituindo de um recurso vivo
como aquisição da humanidade25. Dessa forma, para Ricoeur, a ideia de justiça
vinculada ao modo de experiência humana engloba na prática cotidiana um sentido que
oferece também o emprego do diálogo e do discurso entrelaçando os signos, os
símbolos, os textos que são modos de expressão comunicativa.
Mongin assevera que, para Ricoeur, os signos e os símbolos são elementos
facilitadores para a comunicação.26 Nesse sentido, nosso autor está de acordo, ele
complementa que o campo da linguagem “tem um caráter que significa a nossa pertença
a uma tradição ou a tradições cujos valores passam pela interpretação dos signos, das
obras, dos textos, nos quais as heranças culturais se inscrevem e oferecem à nossa
descodificação”27. Desse modo, a experiência humana também se constitui de elementos
de linguagem um facilitador englobante de toda herança cultural e histórica.
O elemento da linguagem conglomerando os significados históricos tem uma
especificidade, em especial a narrativa, que simultaneamente nos dá um sentido de
pertença e de distanciação. O autor compreende que a narrativa exerce uma função de
24 Op. cit., O JUSTO 1 p.178. 25 Op. cit., L1, pp. 146 e 147. 26 MONGIN, Olivier, Paul Ricoeur as Fronteiras da Filosofia, Trad. Armando Pereira da Silva, Ed. Instituto Piaget, Lisboa, Portugal, 1997. 27 RICOEUR, Paul. Do texto à acção – Ensaios de Hermenêutica II, A tarefa da hermenêutica, (TA), trad. Alcino Cartaxo, Ed. RÉS Ltda., Portugal, p.106, 107.
20
mediadora da história entre o horizonte de duas consciências: a do passado e a do
presente. Sua função de mediação possibilita que haja um diálogo, através do texto,
entre dois interlocutores. O diálogo intertextual permite, por exemplo, que exista uma
fusão da historicidade entre as diferentes experiências humanas. Esse acontecimento
que se realiza como comunicação discursiva ocorre em um tempo e espaço específico.28
O discurso é um acontecimento cujo caráter é exprimir a fala de alguém.
Nesse sentido, o discurso é sempre sobre alguma coisa que aconteceu no mundo.
A língua é a condição prévia de comunicação, pois ela fornece os seus códigos, mas é
no discurso que se estabelece o diálogo. O discurso poderá ser estendido ou
interrompido conforme a tensão entre o significado e a significação do que é dito.
Ricoeur considera que o discurso é efetuado como acontecimento e compreendido como
significação. Ele afirma: “a significação tem uma acepção lata que abrange os aspectos
e todos os níveis da exteriorização intencional que torna possível, por sua vez a
exteriorização do discurso na obra e na escrita29”. O filósofo analisa que o
acontecimento pelo aspecto do discurso tem uma significação de algo que se realiza
temporalmente, no presente. Contudo, enquanto sistema da língua, o acontecimento é
virtual e atemporal.30 A condição de distanciação operada pela escrita nos abre a
possibilidade de uma apropriação objetiva. Nesse sentido, por intermédio de um texto é
possível sabermos de questões, como, por exemplo, “do amor e do ódio, dos
sentimentos éticos e, em geral, de tudo aquilo a que nós chamamos de si, se isso não
tivesse sido trazido e articulado pela linguagem”.31
Cabe dizer que esse desvio que estamos fazendo pela linguagem é necessário,
pois segundo Ricoeur, possibilitará a inserção de uma intenção ética. Esta ética tem por
princípio a ideia de bem que reflexivamente vincula-se ao sentido de bom; em conjunto
com o sentido de legal compõe o justo da ideia de justiça. Desviaremos, então, um
pouco da ideia de justiça e retomaremos o percurso da linguagem pelo plano narrativo,
em particular, pelo mundo do texto. Lembramos, entretanto, que é apenas um desvio,
logo mais voltaremos à questão da justiça.
Para Ricoeur, diante do texto abrimos o campo da possibilidade de poder nos
compreender. Por analogia ao texto, a pessoa é capaz de poder dizer, fazer, narrar a
história de sua vida, assim como a dos outros. Ao nos expormos à linguagem, em
28 Idem, pp. 110, 111. 29 Ibid, p.114. 30 Ibid, p.111. 31 Ibid, p.123.
21
particular, ao plano narrativo de um texto, diante deste, nós recebemos a oportunidade
de poder compreender. De modo que em face ao texto a pessoa percebe-se capaz de
uma potência que está em si mesma; contudo ao exteriorizar essa potência, dizendo,
fazendo ou narrando a sua própria história, vê-se na situação de responder por seus atos.
Essa responsabilidade pela própria ação possui um sentido de identidade mesma, uma
identidade narrativa. O texto é o outro de si mesmo capaz de ampliar o sentido de
pessoa capaz.
O filósofo consegue dar um sentido de si como menção a própria pessoa que se
analisa reflexivamente a partir do texto. Essa dimensão mais ampla seria uma proposta
ricoeuriana de existência no mundo. Ricoeur aproxima por referência a noção de mundo
que se aplica a realidade existencial do sentido do mundo do texto. Desse modo, o
mundo do texto que é imanente ao discurso, por referência amplia a possibilidade de se
ter uma compreensão de si diante do texto. Nesse aspecto, é possível uma compreensão
de si ao se reconhecer, por exemplo, como autor do próprio dizer, ou porque é capaz de
poder responder pelos próprios atos. É por aproximação ao texto que a pessoa pode se
identificar dentro de uma capacidade de pessoa capaz, podendo narrar e até
compreender uma narrativa. Assim, ao ampliar essa questão da narrativa, o autor agrega
o sentido de pessoa capaz dando a esse conceito um sentido que faz menção ao pronome
si; à medida que a própria pessoa vai se analisando reflexivamente se descobre como
um ser capaz; em uma dimensão mais ampla ela se percebe existindo no mundo e sendo
capaz de estabelecer um vínculo entre o mundo real e as suas experiências particulares.
O que acabamos de descrever é uma experiência hermenêutica do texto que ao
ser apreendida e reinterpretada amplia o nosso sentido da realidade. O filósofo
compreende que, nessa dimensão da linguagem, a ficção, por exemplo, é capaz de
manter certa distanciação do real consigo mesma. De modo que nesse distanciamento
ela introduz uma possibilidade de metamorfosear a realidade cotidiana com a
modalidade do “poder ser”. Ricoeur diz:
“a ficção é o caminho privilegiado da redescrição da realidade e que a linguagem poética é aquela que, por excelência, opera aquilo a que Aristóteles, ao refletir sobre a tragédia, chamava a mimèsis da realidade; a tragédia, na verdade, apenas imita a realidade porque a recria por meio de um muthos, de uma fábula, que atinge a sua essência mais profunda”. (RICOEUR, Do texto à ação, p.122)32
Em suma, Ricoeur considera que o discurso é um acontecimento que é
ultrapassado pela significação. O discurso faz referência a alguma coisa no mundo ou a
32 Op. cit. Do texto à ação, 122
22
um mundo. Para ele, o mundo é o conjunto das referências abertas pelo texto. O filósofo
fala do mundo grego, designando-o não por referência situacional para aqueles que lá
viviam, mas designando-o por referências que ostensivamente nos abre um mundo, de
agora em diante, se oferecendo como modos possíveis em dimensões simbólicas do
nosso ser-no-mundo.33 Essa explicação, parece-nos que tende a ampliar nossas
referências libertando-nos de nossa própria estreiteza diante das situações e, de certo
modo essas referências parecem orientar a nossa conduta de maneira sensata. Nossas
condutas são ações que podem se expressar de modo sensato na tomada de decisão em
situações de julgamento moral no âmbito da justiça.
Nesse aspecto, para o autor, a linguagem é uma faculdade humana de
comunicação cujos signos, símbolos e significados possibilitam estabelecer uma
locução para se designar à outra pessoa. A interlocução é uma ampliação da linguagem
que possibilita a pessoa interagir com outros. A linguagem, nesse aspecto, afigura-se
como um acontecimento institucional, cultural e social. Ela é um fenômeno que se
mantém estruturalmente, embora esteja sujeita a constantes renovações a fim de
alcançar uma intenção significante para os acontecimentos que são articulados no
discurso. Ela enquanto palavra, no nível da efetuação, inclui em sua estrutura um sujeito
falante e uma referência. Para o filósofo ao dizer se diz algo sobre alguma coisa a
alguém. Nesse nível de efetuação uma pessoa no ato de dizer qualquer coisa expõe o
seu pensamento estruturando-o, em palavras, que ao serem pronunciadas se modificam
ao se transformar em um acontecimento. 34 Cabe dizer que no ato de falar, a pessoa pode
deixar transparecer, até mesmo, o que está inscrito na imaginação, por exemplo, o seu
desejo.
O desejo é uma aspiração exprimindo-se em nosso querer, pela linguagem, em
especial pelo ato de narrar podemos transformar esse desejo em um discurso possível de
se aplicar à realidade. Deste modo, podemos pelo discurso transformar a nossa
imaginação em algo que se possa expressar; revestindo a nossa intenção de uma
categoria ética de “vida boa” com referência temporal marcada simultaneamente por
uma significação simbólica e histórica.35
33 Op. cit., p.190. 34 RICOEUR, P. EL Conflicto de las Interpretaciones, Ensayos de hermenêutica, Trad. Alejandrina Falcon, Fondo de Cultura Econômica, Argentina, 2008. Hermenéutica y Estructuralismo, La estructura, la palabra, El acontecimiento, p.79 a 84. 35 Op.cit., Do texto à acção, p.264.
23
Na temática da prática da justiça há um eixo reflexivo, no plano do discurso, que
evoca um significado em referência ao desejo. No contexto ético da justiça, o desejo é
um télos em que a pessoa aspira alcançar uma vida boa. Para situar a palavra desejo na
ordem da moral Ricoeur recorre à linguagem cujo significado reflexivo refere-se ao
objeto que se apresenta à mente. No plano da linguagem a simbólica do desejo pode ser
apresentada fenomenologicamente na forma de uma meta; uma projeção que se dá no
campo das possibilidades futuras e no modo do esforço impulsionando a vontade ativa a
orientar as ações presentes. No significado ético aristotélico de justiça o desejo tem o
papel de impulsionar o sujeito a buscar para si o télos da “vida boa”. Essa maneira
intencional de evocar “o desejo de uma vida boa” para a realidade é um acontecimento
que exige um contexto político e moral.
O sentido político refere-se ao campo da política; coincidindo com “a ação
humana na história, ou ação razoável.”36 A moral, nesse contexto, significa “o modo
reflexivo que julga as intenções, condena as paixões, põe limites a violência, mas não dá
a razão da ação no mundo; interdita, mas não legitima a ação37.” Assim, no campo
político e moral a ideia de justiça tem um espaço em que a linguagem procura através da
palavra se centrar na reflexão para se prevalecer sobre o sentido de violência.
É necessário lembrar que as atividades argumentativas tentam prevalecer diante
do monopólio da coerção ou do emprego da força. Para Ricoeur, é no contexto prático
que se realiza o emprego dialógico da linguagem dando significações reflexivas à
formalização da ideia de justiça. Mongin considera que esse espaço reflexivo da prática
de justiça é para Ricoeur um campo em que não se consegue isentar a idéia do bom para
o legal do justo. Se pensarmos a idéia de justiça por meio da prática do justo, será
possível ver que ela não pode ser apreendida somente pelo ponto de vista formal; a
justiça precisa de valores para instaurar um julgamento que tenha pretensão moral de
verdade. 38
Nesse sentido, para Ricoeur, a verdade assim como a justiça, é no pólo da lei
uma ideia reguladora do mais alto nível; sendo a sua função a de manter um acordo
comum que politicamente iguala todos os homens como seres humanos de ações
suscetíveis de avaliações e que podem ser orientadas por uma moral estabelecida pela
idéia de bem. No espaço moral, a justiça tem o papel de avaliar e qualificar se as ações
36 Op. cit., L1, A filosofia política de Éric Weil(1957), p.39. 37 Idem p.41. 38 MONGIN, Olivier, Paul Ricoeur as Fronteiras da Filosofia, Trad. Armando Pereira da Silva, Ed. Instituto Piaget, Lisboa, Portugal, 1997, p.90.
24
são boas ou não, de modo que valorar de certo modo julgar e o ato de julgar evoca o
sentido de bom a fim de se manter um nível de moral mais equilibrado. 39
Grosso modo, portanto, o plano institucional é o espaço das reivindicações em
situação de conflito. Nesse horizonte da prática judiciária ocorrem às condições para o
julgamento nas práticas de convivências sociais. No contexto social, o indivíduo não é
autônomo o suficiente para fazer o que quer em relação às questões de direito legal.
Segundo Ricoeur, a autonomia do sujeito político é uma condição de possibilidade que
a prática judiciária transforma em tarefa. Desse modo, na esfera social e política o
indivíduo possui uma autonomia passiva, já que suas escolhas se encontram sob a tutela
do estado de direito. Por ocasião dos conflitos em que há fatores circunstanciais de
violência e de reivindicações recorre-se a estrutura do direito; evocando a justiça dos
tribunais para tentar conseguir uma paridade de justa medida à sua sentença. O juiz, na
prática da justiça, é o elemento neutro na situação de conflito. Ele tem a função de
distanciar-se do problema para promover um julgamento justo. Esse terceiro elemento,
neutro, tem a função de julgar as ações pelas suas consequências, fazendo dela a
medida para estabelecer o critério do justo e do bom.40 Essas instituições de direito que
inclui à prática de justiça, os tribunais, a lei, as normas e a ordem, bem como as pessoas
e todas as atividades funcionais tem a tarefa de estabelecer as teorias e os conceitos
formais de direito para organizar a prática social. Essa instância jurídica tem
implicações políticas e morais. Por fim, a prática da justiça institucional se assenta não
só em uma formalidade hierarquia jurídica; mas também na idéia de justiça que surgiu
do pensamento reflexivo ou consciente caracterizado por um espírito de época. Esse
pensamento reflexivo de época exprime uma postura crítica da razão a respeito das
atitudes, comportamentos e conhecimentos cujos conteúdos forneçam os componentes
morais e políticos para uma sociedade.41
1.2. O plano dos princípios
Como já foi dito, a ideia de justiça rege uma prática social sob o signo dos
princípios e da lei. Dos princípios da justiça, há um que se destaca: o sentido de
igualdade pronunciado como equidade. Ricoeur considera que desde Aristóteles a
justiça se manifesta pelo sentido de equidade42. No prefácio de O justo 1 há uma citação
39 Op. cit., O justo 2, p.63. 40 Idem, pp.97, 98,99 41 Op. cit., O justo 1, p.153 a 159. 42 Idem p.197.
25
destacando o sentido de equidade aristotélico que está vinculado diretamente ao
significado de justo; porém, não um justo conforme a lei, mas de acordo com o
corretivo da lei. Supostamente a equidade teria por definição um sentido de correção
incluindo as regras de partilhas desiguais. Segundo o filósofo, o princípio de
igualdade/equidade, considerado pelo sentido de justo, tem-se perpetuado como uma
ideia de justiça no contexto prático social; aflorando-se nos conceitos formais do
conceito distributivo dos sistemas jurídicos, em uma tentativa política e moral, para
estabelecer um senso correlativo de direito.43 No nível dos princípios, então, se seguem
os conceitos formais e as teorias sobre a justiça como o discurso argumentativo da
justiça.
Na instância do discurso é importante respeitar a forma que o jurídico adquire,
pois ele não se caracteriza somente como um instrumento legal para impor e manter a
lei; mas em um sentido mais profundo, o jurídico tem um aspecto orientado pelas
discussões coerentes para solidificar os processos judiciais. Parece-nos que para Ricoeur
não é possível classificar um discurso como coerente e constituído de sentido sem que
se mencione a linguística. 44 Já foi dito que no contexto da justiça institucional, o campo
da linguística tem o seu papel. É por meio desse espaço que se opera os símbolos e os
signos assim como os significados dos conceitos e dos princípios que fazem parte dos
textos escritos. Notamos que, segundo Ricoeur, a linguagem abre a perspectiva de o
homem poder desenvolver comunicativamente as suas capacidades no presente, de
poder desenvolver valores utilizando as próprias experiências anteriores. Ela abre ainda
a possibilidade para que na questão da justiça haja um modo reflexivo para e sobre o
agir humano. Nesse sentido, ela possibilita exteriorizar os sentimentos de indignidade
oriundos de ações que envolvem conflitos de convicção no nível da moral. 45
É sabido que a ideia de justiça não é contemporânea; como dissemos, para
Ricoeur, o significado desta é quase imemorável. Na ordem das relações humanas o
sentido de justiça foi emerso aos poucos, tendo agregado os aspectos míticos e sagrados
em seu significado. O filósofo entende que na prática cotidiana o sentido de justiça se
distingue por um fundo mítico intercalando-se com o racional. Tendo o significado de
justiça passado por muitas transformações para chegar a uma perspectiva em que se
pudesse considerá-la como um sistema racional de direito. 46 Para ele, essa ideia através
43 Ibid, p. 1 44 Ibid, pp. 59 a 68. 45 Ibid, pp. 150, 151, 152. 46 Op. cit. Leituras 1 – Em torno ao Político, O justo entre o Legal e o bom (1991) p. 89
26
do tempo recebeu um pensamento mais crítico. Contudo, esse pensamento crítico já
ocorrera desde a época dos gregos, por exemplo, a ideia de justiça dos pré-socráticos e
dos escritores das tragédias. Embora, para o filósofo, o significado de justiça tenha se
transformado em uma atitude mais crítica, nesse período, o sentido mítico e sagrado
continuaram fazendo parte do sentido de justiça. Ricoeur cita como exemplo a ideia de
justiça em Aristóteles; para este pensador antigo, a ideia de justiça considerada uma
ética racional tem implicações com o sentido mítico e sagrado; sentidos que se
perpetuaram até os dias atuais. Dessa maneira, segundo Ricoeur, precisamos considerar
que essas implicações simbólicas tem relação com a prática da justiça nas atividades do
cotidiano.47
Como já foi dito, a ideia de justiça recebeu uma conotação mais racional em
Aristóteles ao dar à ética uma prévia do formalismo da virtude. No entanto, o sentido de
justiça e de equidade aristotélico, por carregar as alusões ao simbólico, tem por caráter
aproximativo um valor de virtude abrangendo a bondade do bem, embora a justiça e a
bondade “não se afigurarem absolutamente idênticas nem genericamente diferentes”.48
No primeiro parágrafo do livro V da Ética a Nicômaco Aristóteles assevera que
a justiça e a injustiça são concernentes as ações humanas em que os atos dos indivíduos
podem afigurar-se justos e injustos. Aqui as ações justas e injustas recebem uma
conotação moral e são consideras por meio dos atos morais do homem em relação à
cidade.49 Nesse sentido, a ideia de justiça aristotélica apresenta-se pelo fator moralizante
e regulador das ações. Para Aristóteles, quem transgride a lei e quem toma mais do que
lhe é devido, são indivíduos não equitativos. O sentido de “quem” toma uma
importância na medida em que há implicitamente na ideia de justiça um agente capaz de
agir equitativamente e cujos atos podem ser justos ou não. O filósofo grego assevera
que as ações de obediência à lei e ao princípio de igualdade conferem ao homem que
tenha praticado esses atos um sentido de justo. Ser justo, por conseguinte, significa ter
uma conduta deliberadamente legal e equitativa; e de modo contrário, ser injusto seria
escolher as coisas que não são boas, por exemplo, transgredir a lei ou agir de modo não
equitativo.
As coisas lícitas são pronunciadas e decididas pela legislação e são denominadas
regras de justiça. Para Aristóteles a justiça é pronunciada pela lei e colima para um
47 Idem, p. 90. 48 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, trad. Edson Bini, São Paulo, Editora Edipro, 1a. Edição 2002. 159 49 Idem, p.135
27
interesse comum de todos. A lei é a regra legal que prescreve a conduta correta, de
modo a não se contrapor ao sentido moral.50 Nos termos aristotélicos a lei ao ser
aplicada na prática tende a preservar a felicidade da comunidade política51. Para
Aristóteles a justiça equitativa pode existir num grau mais completo, na vida doméstica,
entre marido e mulher, mas não entre pais e filhos ou entre senhor e escravo. Nos dois
últimos há uma hierarquia e a justiça não consegue aparecer na possibilidade de
igualdade e de liberdade.
Cabe lembrar que a justiça, para Aristóteles, de certo modo é sempre de domínio
da política. A justiça política é considerada natural quando ela apresenta-se com a
idêntica validade para todos e em qualquer lugar. Ela é considerada convencional
quando as regras são estabelecidas como medidas padrões aplicáveis em atendimento
circunstanciais e de modo conveniente. O conceito de política aristotélico determina um
sentido de política que seja uma doutrina do direito e da moral aplicada às
circunstâncias do contexto prático. A justiça política é, assim, tanto uma prática natural
como uma prática baseada em convenções. Lembrar-se-á de que na Ética a Nicômaco
o homem é um ser social, um ser da pólis que existe convivendo com o outro na cidade.
Nesse aspecto viver bem consiste em conduzir a própria vida moralmente, em relação a
si mesmo, ao outro e à instituição sob a ação do predicado bom.
De modo geral a ideia de justiça, em Aristóteles, mantém o princípio de
equidade tanto no nível da lei como no campo da moralidade. Nesse sentido, a vida
humana, ordinariamente, ao estabelecer laços de relação entre si, precisa estabelecer
regras e leis que organizem esses vínculos, mas acabam também valorando as ações
pelo signo do bem, no sentido daquilo que são estimáveis boas. Para Ricoeur, esse
sentido de bem da Ética a Nicômaco estende-se em direção à justiça como um modo
distributivo de partilha parcial; a distribuição em relação à justiça acontece entre
relações de igualdade; as divisões vinculam-se a uma situação específica e são
estruturadas socialmente de forma proporcional.
Devemos considerar que se na prática o sentido de justiça mostra-se complexo,
na teoria essa ideia também não é algo simples. Já foi dito que a ideia de justiça é um
pensamento racional, mas de cuja estrutura tem sido construída tendo em vista a
complexidade do mundo em que se vive. Nesse aspecto, é importante dizer que, para
Ricoeur, a justiça não é simplesmente uma ideia procedimental cuja função seja garantir
50 Ibid, p. 159 51 Ibid, pp.58 a 160.
28
a coexistência. Nessa questão da justiça, é preciso considerar a existência das teorias,
da lei, da moral e dos princípios cujos sentidos orientam as ações do sujeito. Além
disso, o significado de justiça implica na ideia de pessoa em conjunto com as próprias
ações, basicamente a justiça se dirige as atitudes e ações de alguém ativo e capaz de
escolher. Nesse sentido, quando a ideia de justiça vincula-se ao princípio de igualdade,
torna-se uma ideia mais complexa ainda; envolvendo as questões das partilhas e, por
conseguinte as distribuições.52
Ricoeur assevera que na ideia de justiça, as distribuições formam um princípio,
outrora ressaltado por Aristóteles e, posteriormente, aproveitado pelos medievais como
uma ideia de justiça distributiva. Segundo o filósofo francês, apesar desse princípio de
distribuição parecer uma ideia simples e evidente até para uma criança, como prega a
concepção do direito natural, é importante ter-se em mente de que este princípio tem um
significado não foi esgotado nessa concepção dos medievais. Para o autor, nesse sistema
jurídico, há outra ideia designando a justiça por virtude suprema. Nesta ideia, a justiça
configura-se sem distinção entre a moral e o direito. De modo mais específico, a justiça
considerada um poder reto tem por função a faculdade de conduzir as ações por
caminhos de retidão. Ricoeur considera que a palavra retidão tem um significado de
socialmente correto e está relacionada com o sentido de verdade; estabelecida de acordo
com aquilo que é considerado justo e bom a fim de se manter as relações interpessoais.
No ensaio, Justiça e verdade, Ricoeur propõe à ideia de justiça e para a de
verdade que as duas sejam consideras como “ideias reguladoras de mais alto nível”.
Para o autor, embora as duas ideias possam igualmente ser formuladas de modo
independente uma da outra, há um sentido de igualdade apresentando-se quando
verdade e justiça entrecruzam-se de maneira rigorosa e recíproca.53 O sentido de
verdade geralmente entrecruza-se com a ideia de justiça igualmente; possibilitando,
assim, promover um juízo justo em todas as circunstâncias em que há um julgamento
moral de situação. Igualmente, a ideia de verdade e de justiça vincula-se também a ideia
de bom, constituindo-se um nível ético sob o signo da justiça. 54
A ideia de justiça e de verdade, segundo o filósofo, corresponde a três níveis de
imputabilidade: a lógica do provável que diz respeito à estrutura da argumentação; a
verdade que deve ser formulada por espécie de evidência “hic er nunc daquilo que
52 Op. cit. 89 53 Op. cit., O justo 2, p.63 54 Idem, pp.64, 67
29
convém fazer” e “a lógica do provável em que a verdade consiste em uma adequação do
juízo à situação”. Esse nível de verdade não é sustentado por um sentido de
universalização, ele está num grau de exigência ética e “consiste na adequação do juízo
a situação”55. Nessa relação de igualdade entre justiça e verdade, a ética tem a bondade
instituída como meta de vida boa.
Esse nível de verdade adequado ao juízo moral no âmbito dos conflitos
cotidianos inclui, segundo Ricoeur, um ponto de vista impessoal cuja capacidade de
negociar varia entre uma perspectiva pessoal e uma impessoal. A capacidade de
estabelecer um ponto de vista que não seja pessoal abre espaço para um horizonte moral
em que o outro se torna tão importante quanto nós mesmos. Para Ricoeur, o significado
ético que estabelece um ponto de vista impessoal para a própria vida contribui para que
a própria vida seja examinada sob o ponto de vista tanto do bom quanto do legal como
partes iguais do justo. Por esse viés a justiça é retomada tanto pelo significado ético do
bem da bondade quanto pelo do legal.56 A ideia de justiça aparece, então, orientada por
um sentido ético da ideia de bem podendo se mostrar, especialmente quando há uma
situação de conflito.
As situações em conflitos requerendo juízos morais se deslocam para o âmbito
da justiça que é marcada pelos costumes ou por uma tradição histórica de certa
comunidade; além disso, ela é assinalada também por uma ideia mítica ou sagrada em
conjunto com a lei normativa do Estado de direito.
Em resumo, segundo Ricoeur, a ideia de justiça, em relação aos seus princípios é
formada não somente como uma conquista da razão, mas com todos os significados
históricos e sociais das experiências humanas. Os princípios de justiça marcam-na
servindo de fundamentos ou de ponto de partida, mas são os significados, por exemplo,
de igualdade, de equidade, de liberdade, que estabelecem os sentidos para os princípios
sustentando, assim a ideia de justiça. Além dos significados que envolvem aqueles
princípios, há o caráter de justo implicando em um sentido ético de bom, além dos
aspectos de legal das normas. Todos esses elementos são fundamentais para constituir e
sustentar a ideia de justiça.
55 Op. cit., O justo 1, p.76. 56 Idem p.75 a 77.
30
1.2. A lei e a moral
Com já visto, a prática da justiça e seus princípios não são objetos novos à
filosofia. Também já é sabido que, para Ricoeur, a tradição histórica tem mostrado que
a ideia de justiça já esteve presente na antiguidade, como, por exemplo, em Aristóteles,
nas tragicidades dos poetas gregos e nos diálogos da República em Platão. Entretanto,
para nosso filósofo, é em Aristóteles que podemos ver a questão da igualdade se
expressando moralmente pela justiça. Na ideia de justiça aristotélica, a condição
humana tende ao justo e seu compromisso ético é saber incluir-se como igual na vida
política da polis. Nesse aspecto, o indivíduo em sua condição política tem de empenhar-
se para ser virtuoso, em particular, sendo capaz de manter uma justiça que seja
reparadora e corretiva (diothôsis). No que concerne a essa ideia de justiça, Ricoeur
ressalta que em Kant essa questão foi também abordada e está vinculada ao direito. Em
Kant, a justiça tem no princípio de igualdade um vinculo com o conceito de liberdade
que, por sua vez, está atrelado aos conceitos de dever ou de obrigação moral. 57
Ricoeur considera que essa ideia de justiça mantida em sua forma processual
abstrata é supostamente legítima e sem grandes problemas; no entanto, quando se tentou
aplicar este princípio de igualdade, na prática da justiça, a fim de estabelecer-se uma lei
que pudesse reger as distribuições às liberdades pessoais e as partilhas de bens,
apareceram os obstáculos. Os problemas apresentaram-se, mais especificamente, na
dimensão das relações interpessoais e sociais. Para o autor, neste âmbito das relações se
misturam dois planos diferentes dando ao princípio de igualdade uma conotação
confusa. As duas dimensões que se confundem são: a do político e a da economia.
Convém relembrar, todavia, que o campo das relações interpessoais constitui-se
parte do espaço público social. Este existe como sistema de distribuição o qual é uma
instituição de repartição estreitamente ligada aos dois níveis citados acima. Da
passagem da ideia de justiça como princípio de igualdade para o entendimento no plano
das relações interpessoais misturam-se o político e a economia; e assim, em relação à
justiça de distribuição, em primeiro lugar, o que passa a ser reconhecido é o sentido de
injusto, depois o sentido de desigualdade. Nesse ponto, a justiça é chamada a decidir
quando o indivíduo considera que na questão da distribuição, a sua parte na partilha foi
injusta, pois foi desigual. A justiça, para o reivindicante, tem o papel de atribuir a cada
um a sua justa parte. Contudo, para que a justiça institucional possa exercer o seu papel
57 Op.Cit. Leituras 1- Em Torno ao Político, pp. 90,91.
31
de mediadora, terá que ter em mãos, não só a formalidade da lei, mas as condições para
estabelecer valores morais. É nesse sentido que para Ricoeur uma teoria puramente
processual da justiça dificultaria as decisões de mediação em julgamento de situações
conflituais de interesses ou de direito.
No plano da prática de justiça as reivindicações existentes por algum tipo de
interesse em conflito, somente serão satisfeitas se estiverem justificadas pela estrutura
da lei.58 Ricoeur considera que a lei seria a restauradora do direito dando respaldo às
vítimas. O respaldo acontece mediante a estrutura do processo, na instância judicial, as
questões de justiça se desenrolam, na instância política do Estado de direito, num jogo
em que aplica os recursos da lei para julgar e estabelecer a pena a quem deve por
direito59.
Na esfera do agir humano, essa formalidade ultrapassa o limite da dimensão da
lei e tornam-se uma questão moral. Nesse sentido, as regras da justiça seja ela
considerada natural ou convencional são igualmente variáveis de modo que não são
absolutas; essas variáveis das regras da justiça que são ordenadas pelo homem são
conduzidas não somente tendo um ponto de vista deontológico, mas também uma
concepção teleológica. Cabe-nos considerar que para Aristóteles “a justiça política era
exercida sempre entre pessoas livres e iguais, cuja vivência em comum tinha como
finalidade de poder satisfazer suas necessidades. Essa espécie de justiça restringia-se
“entre as pessoas cujas relações mútuas são reguladas pela lei e esta existe no seio
daqueles entre os quais há uma possibilidade de injustiça.”60 Entre os quais há
possibilidade de poder escolher agir voluntariamente de modo justo ou injusto.
Na concepção aristotélica “a justiça é um bem do outro”; contudo, parece-nos
que a justiça necessita de um sentido moral em que haja um reconhecimento mútuo e
proporcional da igualdade de um e do outro. Ricoeur salienta que nessa regra de
distribuição há uma repartição feita no face a face, sem exigir a mediação de um terceiro
elemento. Ela aparece na relação da amizade, já que esta última tem um sentido que
iguala os indivíduos. Na relação de amizade, as regras de distribuição deixam de ser um
dever e passam a se constituir um tratado de virtudes cuja finalidade seria manter uma
vida boa entre os amigos. Um primeiro problema para uma ideia de justiça vinculada ao
sentido da amizade é que moralmente ela tem um traço limitado, em virtude dela se
58 ROSS, ALF. Direito e Justiça, trad. Edson Bini, 2a. Edição Edipro – São Paulo, p.325. 59 Op. cit., O justo 2, p. 184. 60 Ibid, p. 151
32
consolidar apenas entre pares que se definem iguais diante dos valores morais. Outro
obstáculo situa-se na complexidade da instituição social, esse sistema não tem a
preocupação de manter a amizade entre indivíduos. A instituição dispõe da lei e de
diferentes normas a fim de prescrever aos indivíduos os deveres e direitos que possam
mantê-los dentro de uma conduta que inclua os valores sociais. Assim, nos momentos
normativos da lei a tarefa jurídica é tomar uma decisão imparcial a fim de tentar
encontrar uma solução correta para os conflitos de interesses. 61
Anteriormente comentamos que a justiça aristotélica situa-se sob o signo da lei e
da moral do bem. Essa ideia foi elaborada por Aristóteles tendo em vista que a justiça é
um dos bens humanos mais excelentes. Para distinguir os bens partilháveis daqueles que
não são possíveis de partilhar como se fossem objetos exteriores, Ricoeur formula uma
questão. Ele quer saber se sendo justiça um bem humano, então qual seria esse tipo de
bem humano que se constitui a justiça. Para responder a questão, ele, elenca os bens que
são considerados motivos de felicidade e prazer para se viver uma vida boa e justa em
sociedade. Já é sabido que o princípio de igualdade é um bem na concepção de justiça.
Para Aristóteles toda sociedade instituída requer um sentido de justiça equitativa a fim
de repartir, partilhar ou distribuir. O modo que essa distribuição é feita sem que haja
injustiça se define pelo frágil equilíbrio que estabelece a mediania entre o excesso e a
falta. A instituição exerce o papel de termo médio entre os dois extremos em razão de
portar em si um traço que corresponde ao ponto de vista da lei, além da moral62.
De acordo com Nussbaum, na tradição aristotélica o ser humano é um ser
político e a pólis é um elemento indispensável à vida. Os interesses políticos são
considerados partes do que se é enquanto ser humano. Nesse aspecto, a vida humana
não é compreendida quando a pessoa vive uma vida solitária, já que a solidão carece de
um bem ético que consiste na eudaimonia. Essa virtude é um bem humano que seria
incompleto se fizesse uma oposição à vida política63. O homem é um ser de natureza
política de modo que a sua vida pretendida boa seria frustrada se não fosse
compartilhada com os outros. A vida humana é examinada, por Aristóteles, tendo por
consideração a participação da pólis nas escolhas de cada um. Nussbaum lembra-nos
que a pólis grega organizava-se sob um regime democrático que excluía os estrangeiros,
as mulheres e os escravos. Aristóteles é um estrangeiro, em Atenas, e apesar de sê-lo,
61 Op. cit. Leituras 1- Em torno ao Político, p.92. 62 Op. cit., L1, p 92. 63 NUSSBAUM. Martha C., A fragilidade da bondade, trad. Ana Aguiar Cotrim, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2009, 1ª. Edição, 305.
33
segundo a autora, é capaz de poder viver uma vida humana plena e boa, para o filósofo
antigo, não é necessário para se viver bem que se tenha, por exemplo, um posto político;
é possível viver bem politicamente agindo de modo justo e bom.64
Nessa tradição em que a vida se constitui de interesses sociais e políticos. O agir
humano consiste em agir politicamente. Porém, esse agir é por excelência um modo do
ser humano se relacionar com o outro. A filósofa assevera que na visão aristotélica a
vida não seria conveniente para nós; e seríamos seres frustrados e apartados de uma
parte do que somos se não tivéssemos o agir político como um fim em si mesmo e como
um componente da eudaimonia humana.65
Por eudaimonia, Aristóteles entende que é um estado de satisfação que se
apresenta por certa atividade da alma, realizada em conformidade com a virtude. 66
Essa atividade, segundo Nussbaum, é constituída, em Aristóteles, por um sentido
de ações justas e boas. As ações, da pessoa, encontram-se justas mesmo em situações de
risco, em que as circunstâncias são vulneráveis a privação e desgraças. A noção de justo
requer um sentido de bom cuja postura pessoal consiste em ser flexível diante dos
reveses circunstanciais. Essa flexibilidade é uma atitude equilibrada que possibilita à
pessoa uma reflexão ética para poder fazer as próprias escolhas a fim de que sejam
feitas com base em uma sabedoria prática que mostrará um modo de bem agir. Essa
postura ética é maleável e aberta com relação ao mundo. Nesse aspecto, ela confere, de
acordo com a filósofa, um sentido de fragilidade. Essa concepção ética de bem viver é
frágil porque as contingências relativas ao mundo são vulneráveis ao risco de não se
obter para si a boa vida.67
A natureza da eudaimonia e da bondade, para Aristóteles é constituída também
pela fragilidade da vida, na qual se inclui a falta, o risco, a necessidade e a limitação.
Essas fragilidades não diminuem a eudaimonia; elas realçam a estrutura dessa virtude
cuja busca para si é a vida boa que nada mais é do que a busca por uma vida humana
sob o pólo dos valores morais. Essas coisas boas se sintetizam nas experiências do
“viver junto” sob a égide da vida ética e política. Nussbaum acrescenta que para
Aristóteles o viver junto provém de um projeto ético em que se compartilham as
atividades tornando-as mais agradáveis. Essa ideia infere nesse contexto ético um
64 Idem, p. 304. 65 Ibid, p. 306. 66 Op. cit., Ética a Nicômaco - a eudaimonia é um bem supremo que é estabelecido como conduta de vida que necessariamente é uma vida em sociedade na Pólis. 67 Op. cit., A fragilidade da bondade, p. 296.
34
sentido de philia cujo sentido tem um valor instrumental que pode contribuir para
qualquer coisa que se deseja fazer em conjunto. A ideia ética, de Aristóteles, para viver
junto um bem viver está sustentada no caráter da philia, já que ela colabora para que o
trabalho em conjunto com os outros possa se tornar mais agradável. A autora assevera
que na quando Aristóteles recorre ao sentido de prazer para valorizar o trabalho em
conjunto “com outros”, isto é, lado a lado; o filósofo está, para a autora, “pensando
também na maneira como um tipo de conversação, um compartilhar das partes do
trabalho, faz dele um trabalho “para outros”, em que a mutualidade e o prazer da relação
pessoal que se inserem profundamente no trabalho.68”
Paul Ricoeur considera que na ética nicomaquéia a justiça é definida pelo “frágil
equilíbrio” da ideia de equidade que estabelece um sentido de reparação ao
desequilíbrio que existe entre a falta e o excesso. O filósofo francês entende que a
justiça aristotélica no sentido de igualdade rege a distribuição de todos os bens. A
questão para Ricoeur é que se o sentido de distribuição se refere ao sentido de partilha
de repartição e se pode repartir qualquer bem; então é válido distribuírem-se
igualmente, na sociedade, as tarefas, as vantagens, as desvantagens, as honras e
encargos? Ele compreende que, nesse sentido, “a idéia de justiça exigiria que se partisse
da imagem de uma sociedade caracterizada não só por um querer “viver junto”, um voto
de cooperação, mas por regras de repartição”.69
O autor destaca duas consequências na idéia de sociedade situada pelo sistema
de distribuição. A primeira consequência dessa ideia consiste em instituir-se uma justiça
institucional que se possam distribuir os papeis sociais, nesse aspecto, o sentido de
philia aristotélico não se encaixa, já que a amizade se dá no face a face, ela é pessoal e
não necessita da mediação das instituições. Ricoeur considera que a amizade acontece
entre duas pessoas próximas entre si, já a justiça é uma distribuição para cada pessoa,
essa partilha para ser justa precisa de ser mediada por um terceiro elemento. O segundo
resultado desse tipo de sociedade consiste em um conceito de distribuição estreitamente
vinculado a idéia de justiça institucional enquanto regulação de distribuição
proporcional para manter a relação social. Essa regra de distribuição institucional
somente permanece enquanto houver uma participação social por parte dos indivíduos.
O sentido de justiça como distribuição aparece sob duas concepções a
deontológica e a teleológica. A primeira opera essa idéia de justiça pelo viés do legal, a
68 Op. cit., A fragilidade da bondade, p 317 69 Op. cit., L1, pp. 92, 93.
35
outra concebe o sentido de justiça pela idéia da bondade. Ricoeur chama-nos a atenção
para o sentido de proporcionalidade, já que repartir por proporção exige uma idéia de
“partilha aritmética”. Nosso filósofo compreende que Aristóteles já havia notado que a
idéia de partilhas desiguais são obstáculos para a aplicação prática eficaz de uma idéia
de justiça. Para Paul Ricoeur somente é viável uma idéia de partilha igualitária
aritmética aquilo que os medievais consideraram por igualdade proporcional. Nesse
sentido, eles salvam uma idéia de isotés, de cujas relações apresentam-se duas pessoas e
duas partes, para um sentido de justiça distributiva. Para os medievais a justiça é
proporcional quando na teoria das proporções matemáticas, a igualdade se dá entre
relações de indivíduos, por exemplo, a relação entre a contribuição de tal indivíduo e tal
parte, e a relação entre contribuição de outro indivíduo e outra parte.
Em relação ao pólo da lei, a mais elementar, segundo Ricoeur, consiste em uma
obediência ao dever. Nesse aspecto, o dever é uma obrigação moral que cumpre o que
se é prescrito pela razão para definir o que é um bem ou um mal. Esse nível da lei
realiza-se pela reflexão moral. A análise da lei é estabelecida, no espaço moral, tendo
como correspondência o desejo de uma intenção ética que estabelece para si um sentido
de vida boa com e para os outros em instituições justas. A intenção de vida boa tem um
elo comum com a norma jurídica cuja função estruturadora é caracterizada no legal. O
ordinário da lei consiste basicamente em proibir as ações consideradas em desacordo
com o sentido legal da lei. Para impor-se a lei é preciso que haja uma pretensão de
universalidade para a norma.
Ricoeur no ensaio “A filosofia Política de Éric Weil” (1957) assevera que a
moral é o ponto de partida da filosofia política.70 O filósofo entende que na questão da
filosofia política, a moral tem sido motivo de muitas querelas entre os pensadores.
Contudo, para ele, a moral tem sido encarada apenas sob a perspectiva da formalidade e
uma moral formal e abstrata pode tornar-se negativa por falta de conteúdo. Ricoeur
assevera que as regras do direito exigem que o direito seja positivo a fim de poder reger
as regras das relações práticas. A crítica em relação à moral formal é que ela não é
conveniente para a lei se apoiar, já que se trata de algo abstrato e negativo. Do ponto de
vista da filosofia política, a moral é insuficiente para preencher as próprias exigências
que estabelecem a prática de convivência de uma comunidade histórica, já que segundo
Ricoeur “ela aponta o fim sem indicar o caminho”71.
70 Idem, p.40. 71 Ibid, pp. 40 e 41.
36
A moral, no contexto político, é o espaço em que aparecem os aspectos da
norma e respectivamente o da lei. As leis regentes de um Estado de direito das cidades,
dos países ou das nações, são concebidas levando em consideração os princípios de
justiça e os conceitos, por exemplo, o sentido de igualdade e da liberdade. Para Ricoeur,
esses conceitos não são concretos e somente podem ser atestados por meio da
consciência e não por um contrato. Os contratos que especificam a questão da igualdade
ou de liberdade são apenas ficção; segundo o filósofo, essa questão iguala-se a uma
concepção de dever ou obrigação de justiça em relação ao princípio moral da autonomia
que nada mais é do que a liberdade de pensar kantiana.
Em relação à moral, segundo Kant a liberdade de falar ou de escrever pode ser
tirada por uma coação civil, contudo a liberdade de pensar não pode ser tirada por um
poder exterior, nesse sentido a pessoa é livre e deve moralmente ser considerada como
fim em si mesmo. Já que ela não precisa se submeter a qualquer lei senão a que dá si
própria.72
Ricoeur assevera que as leis aplicadas ao senso de justiça somente se firmaram
no território institucional como um dever porque houve uma união com a tradição
contratualista. No entanto, num primeiro momento, as leis são assentadas em um
sentido de bom e de legal, depois se mostram diametralmente opostas. Em linguagem
culta, o “bom” procede da concepção teleológica, situando-se em um ponto de vista de
finalidade e o “legal de um sentido deontológico da vida moral e política considerada
em geral”.73
A justiça situada sob o signo do “bem” se expressa como uma das virtudes
gregas sob o signo da palavra areté.74 A justiça pelo sentido de virtude pode ser
considerada, por exemplo, por prudência, pela temperança ou pelo sentido de coragem.
Qualquer uma dessas seria evocar as mesmas virtudes cardeais que foram consideradas
pelos filósofos do período medieval. Nesse aspecto, a ideia de justiça como virtude,
moralmente, colabora para orientar nossas ações no sentido de cumpri-las sob um tipo
de perfeição; simbolizando mais ou menos a acepção popular de felicidade. Para
Ricoeur, o caráter teleológico vincula-se a intenção de uma “vida boa”, conferindo uma
virtude particular à justiça.
72 KANT, Immanuel, 2005, ed. Vozes, Textos Seletos - O que significa orientar-se pelo pensamento? P.59. 73 Op. Cit. L1, 161. 74 Idem. p. 91 – a palavra areté pode, segundo Ricoeur, ser traduzida por excelência termo que Cícero, Sêneca e marco Aurélio traduziram por “virtus”
37
O filósofo considera que “viver bem” é o télos dessa intenção ética, contudo
nessa concepção há simultaneamente dois caracteres contrastantes: por um lado, a ação
da pessoa conferindo um significado e uma direção dessa intenção que é dado a
entender pela palavra “sentido”; por outro lado, o sentido de “bom” e de “bem” sendo
atingidos por uma incerteza perturbadora, já que não há nenhum consenso universal e
unívoco fazendo que o sentido de “bem” tenha uma significação vinculada ao predicado
“bom”. Sem um consenso para estes dois sentidos, procurou-se tê-los unicamente por
referência ao bem humano. No entanto, o autor se questiona sobre qual bem humano.
Para ele, sempre existiram debates concernente a essa questão estendendo-a à relação
entre prazer e felicidade e entre a vida ativa e a meditativa.
Entretanto, autor assevera que a concepção teleológica da justiça se constitui um
tópico a parte nos tratados de virtudes, não se restringindo, assim, a essa conjetura
trivial. Ricoeur considera que a justiça tem um traço particular que conduz uma
perspectiva teleológica a uma deontológica. Nesse caso, o traço referido é um
“formalismo imperfeito” que é diferente de um “formalismo realizado encontrado nas
concepções modernas puramente processuais”. Para Ricoeur, esse formalismo
imperfeito foi conduzido a uma linha de pensamentos cujas teorias requisitavam um
sentido de justiça que designasse um formalismo perfeito; isto é, por um formalismo
puramente processual da justiça. 75
Para o filósofo essa passagem rompe o vínculo da ideia da justiça com a ideia
de bem, em particular com a ideia de vida boa. Ele compreende que foi sob o impulso
da filosofia de Kant que a teoria da justiça recebeu uma concepção moral deontológica.
Esta concepção resume todas as relações morais, jurídicas e políticas a uma ideia de
legalidade, de conformidade com a lei. O problema, segundo o autor, é que nessa visão
ortodoxa somente merece o nome de “leis” os arranjos jurídicos derivados de um
imperativo soberano inteiramente constituído a priori. De acordo com Ricoeur, a
fórmula kantiana que diz: “Age de tal modo que trates a humanidade na tua pessoa ou
na de outro não apenas como meio, mas sempre também como um fim” cujo sentido
procede de um conhecimento puramente formal e racional; independente da experiência
passa a ser concebido por como um positivismo jurídico controlado pelas instâncias
legislativas empíricas historicamente constituídas.76
75 Op. Cit.; L1, p.95 76 Idem, p. 96
38
O formalismo, considerado completo, não abre nenhum espaço para um ponto de
vista teleológico, nem para a ideia de bem. Todavia, a ideia de justiça pela perspectiva
deontológica, para o filósofo, requisita, no campo institucional, que se aplique a ideia de
justiça tendo por perspectiva um sentido contratual baseado na ficção. Ricoeur assevera
que a tradição contratualista utilizou-se dos pressupostos fictícios para constituir os
contratos sociais que estabelecem, por deliberação, um Estado de direito. Para o autor,
essa concepção contratual tem por objetivo e função separar o justo do bom,
modificando o processo de uma decisão fantasiosa a todo compromisso precedente
relativamente a um hipotético bem comum. De acordo com essa conjectura, é o
procedimento contratual que por suposição concebe o princípio ou princípios de justiça.
Para o filósofo é possível dizer que o contrato apodera-se no plano das instituições o
lugar que a autonomia exerce no plano fundamental da moralidade. No entanto, em
contraste com a autonomia do indivíduo, liberdade que se pode chamar de “fato de
razão” e podendo ser atestada pela consciência individual, a autonomia do contrato se
dá por liberdade atestada ficticiamente. De acordo com o autor, a ficção que fundamenta
o contrato precisa ser refundada constantemente, permanecendo assim, “para igualar
uma concepção deontológica de justiça ao princípio moral da autonomia e da pessoa
como um fim”.77
Uma ideia de justiça contemporânea cujos princípios fundamentam-se em uma
questão ficcional é a Teoria da Justiça de Rawls. Essa ideia de justiça pressupõe que
cada membro social abandone a sua liberdade primitiva em favor de uma forma de
liberdade civil que o coloque como membro de uma república. Para Ricoeur, essas
formas contratuais já foram formuladas tanto em Rousseau com em Kant, tornou-se um
problema não resolvido. Rawls tenta solucionar essa questão com a sua teoria da
Justiça, porém, seu projeto acaba do mesmo modo que as dos outro, isto é, embasando-
se em uma ideia contratual fictícia.78
Ricoeur considera que embora a concepção de liberdade de Rawls tenha uma
visão puramente processual da justiça, não considerando os pressupostos da moral e
isentando-se de qualquer ideia de bem; ela é melhor do que a teoria de Kant; pois não
permite que de um princípio tão abstrato quanto o respeito da pessoa humana se possa
derivar de um conjunto pronunciado de leis.
77 Ibid, p. 97 78 Op. Cit. L 1, p.101, 102
39
O filósofo francês assevera que reteve da teoria de Rawls uma contribuição que
possibilitará solucionar o problema citado. Grosso modo, para ele, se os princípios de
justiça puderem ser considerados também por uma perspectiva que possa ser
desdobrada como recurso pelo campo do irreal assim como é feita no campo do real
seria possível, então, retomar a ideia de bem a destinando a essa concepção de justiça.
Ricoeur destaca três pontos fortes do argumento de Rawls: primeiramente o princípio de
distribuição, a justiça enquanto distributiva estende-se a toda espécie de vantagens
suscetíveis a serem partilhadas. O filósofo considera que Rawls não põe acento nas
próprias coisas a serem partilhadas, já que isso seria semelhante a reintroduzir a questão
teleológica do “bem”. No entanto, na medida em que a sociedade se deixa apreender
como sistema de distribuição, a partilha que num contexto social complexo se mostra
desigual acaba por requerer um consenso que permita arbitrar entre reivindicações
antagonistas. Esse consenso, portanto, relativo aos processos de reivindicações é um
fenômeno consensual-conflitivo consagrado à ideia da justiça distributiva.79
O segundo ponto que o filósofo considerado forte na teoria de Rawls trata-se do
primeiro princípio igualitário assegura a igualdade de todos os cidadãos diante da lei.
De acordo com o autor, esse princípio que formaliza as conquistas de liberdade é de
modo mais amplo a vitória moderna da isotés de Sólon. Para Ricoeur, ter-se-ia de
prestar atenção ao desdobramento evocado pelos sentidos de inclusão e exclusão que
são partes extensivas ao plano da igualdade de cidadania. Segundo o filósofo o
primeiro princípio de igualdade precisa prioritariamente ser satisfeito, sem que a regra
de partilhas desiguais possa infringir a igualdade perante a lei.
Dos dois princípios de justiça de Rawls, esse segundo e último é o responsável
pela solução do problema das partilhas desiguais. Esse princípio, segundo Ricoeur, é o
terceiro ponto mais capital e contestável dessa teoria da justiça. Este princípio de justiça
afirma que entre todas as partilhas desiguais, existe uma que é mais justa do que todas
as outras. Essa regra de partilha assevera que todo aumento de vantagem para os mais
favorecidos diminui a desvantagem dos menos favorecidos. Essa fórmula de Rawls, de
acordo com o nosso autor, pretende maximizar a parte mínima. Para ele, o fundamental
79 Idem pp. 101, 102. Em relação ao princípio de distribuição há a expressão “equilíbrio refletido” e “convicções bem ponderadas”. Ricoeur assevera que não compreendeu de que forma a fórmula de Rawls “maxmin” contribui para um equilíbrio refletido, além disso, parece haver uma circularidade no argumento quando esse autor diz que o equilíbrio refletido é alcançado com as convicções bem ponderadas. Em relação a essa última expressão, ele diz que “é o epíteto bem ponderas é que deve ser sublinhada. [...] “que quer dizer “bem ponderadas” senão “submetida a critica do outro? [...] Isso significa confiar na racionalidade do outro, pondo-se no lugar do outro. Para Ricoeur sem a confiança não haveria apoio para a fábula contratual. p.140, 141.
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dessa ideia é que ela estabelece um ponto de equilíbrio e vantagem maior em relação às
desigualdades mais ostensivas. Essa teoria da justiça procedimental de Rawls com base
em um princípio de igualdade ambíguo dá acesso para que se articulem e organize
econômica e socialmente os dois princípios, dos quais um é igualitário e o outro não.
Ricoeur levanta uma questão; para ele é preciso saber até que ponto esses dois
princípios de justiça, principalmente esse último, podem exercer o papel de ideia diretriz
em relação à prática social de justiça.
Para o filósofo, portanto, é graças a uma “ficção de um contrato social” que
superamos uma natureza supostamente primitiva para ter acesso a um modo de viver em
cidades. Nelas aparece o Estado de direito que se dá mediante as leis que regem a
liberdade e a igualdade de cada cidadão. A forma de liberdade e igualdade perante a lei
é imposta como direito civil que diz respeito a cada membro de uma república. Infringir
os direitos do outro, ferindo a lei de liberdade ou de igualdade pode dar origem a um
processo judiciário cuja pena ou punição dever ser estabelecida pelos canais de justiça
institucionais.
Em síntese podemos dizer que a justiça institucional teve que se despir de seu
caráter divino para revestir-se de um valor positivo. Politicamente é o Estado que
estabelece as leis em benefício das em relações sociais. De acordo com Ricoeur, esse
movimento da justiça de romper com o sentido sagrado da lei mantendo a lei apenas sob
o teor institucional do governo determinou-se o caráter social da obrigação moral. Essas
mudanças da lei transformaram as atitudes das pessoas, de maneira radical. As normas
morais deixam de ser respeitadas pela imposição da igreja. Elas acendem a um status
em que são cumpridas e respeitas de acordo com a própria convicção e a
obrigatoriedade da lei, agora, imposta como ajuste político e social80.
Paul Ricoeur considera que no contexto da prática da justiça, a lei e a moral
aparecem como exigências de uma dinâmica social. A justiça processual permite que se
arbitrem quando há reivindicações concorrentes. Os problemas marcados pelas
oposições de idéias em conflitos requerem uma contribuição forte do direito positivo,
em seu papel primeiro, de sancionar e punir que se desenvolveu o plano institucional.
As instituições são desenvolvidas para que as suas estruturas permitam que a justiça
possa realizar-se por meio da aplicação das leis. Assim, cabe a instituição jurídica
estabelecer as leis e as normas a fim de possibilitar as relações humanas em sociedade
80 Op. cit., L1, p. 90
41
segundo três características do legal: primeiro pela função estruturadora implicando nos
imperativos negativos de proibição, por exemplo; não matar, não roubar etc.; em
segundo lugar elaborar a lei tendo por pretensão a universalidade, isto é, uma exigência
de legitimidade e validade para a regra básica. Em terceiro lugar, a lei tem que ser
composta respeitando o elo entre a norma e a pluralidade humana. Enfim, da legalidade
à lei existem as esferas cujos papeis estruturam, dão validades universais e organizam a
questão da pluralidade humana.
1.3. Infração e punição
Precisamos lembrar que, para o autor, o espaço político é o lugar em que ocorre
a prática da justiça. Nesse sentido, o político é a dimensão em que se constituem as
experiências humanas em sociedade e é nesse espaço público que os conflitos se
apresentam. Os motivos que dão origem as divergências são os mais diversos, por
exemplo, as oposições de ideias, de convicções ou opiniões contrárias, ainda que
pertençam ao espaço da política, os conflitos são partes das experiências humanas.
Nesse espaço político, se trava a luta pelo exercício do poder, pela posse de bens etc.;
porém, é no campo das experiências que se é marcado pelas sanções ou punições das
infrações cometidas. Desse modo, as ações se definem no plano das experiências,
contudo, as conseqüências são avaliadas como um ato de infração e sentenciado em uma
punição pelo plano institucional de uma comunidade histórica.
Em relação às infrações, Ricoeur considera que, às vezes, a pessoa age sem ter a
compreensão de que a ação de sua autoria produz mudança. O indivíduo desconhece,
muitas vezes, que ao criar relatos para a sociedade em que se vive ele está indiretamente
produzindo valores e crenças. Além disso, pode ocorrer que mesmo sendo capaz de
interpretar e construir os fatos passados, não consegue dar conta de que está construindo
a sua própria história e o faz a partir de suas reflexões, ainda que feitas por
transposições anacrônicas dos conceitos de outras épocas. O ser humano quando relata
os acontecimentos; articula suas idéias, mesmo que essa articulação seja desconexa e
fragmentária, ainda assim, ele retira suas ponderações de um fato histórico. É desse
modo, por exemplo, que reconstruímos no cotidiano a ideia de justiça. Possivelmente
desse deslocamento da ação para a palavra concebemos uma ideia de justiça, talvez se
tenha caracterizado primeiramente pelo aspecto narrativo da queixa. O modo da queixa
é na visão de Ricoeur duplamente reflexivo. De um lado, é a maneira mais perspicaz de
penetrarmos o sentido da justiça pelo injusto. Nas relações humanas, o modo da queixa
42
é a externalização dos nossos sentimentos; verbalizamos quando sofremos uma
injustiça, nesse aspecto, a queixa é uma maneira de dizer ao outro que houve um ato
injusto causando sofrimento.81
No espaço público a justiça é concebida enquanto princípios do direito positivo;
é pensada a partir da necessidade das questões legais e não do sentido de “bom”.
Cabendo as leis organizarem-se tendo em vista a justificativa para o direito de punição
por infração. Nesse sentido, a lei, apesar de formal, aparece como um princípio prático
para atender as normas relevantes às ordens jurídicas. Ela está fechada no direito
positivo baseando-se apenas na experiência das coexistências de liberdades. A justiça
enquanto prática social é pensa e organiza as normas e regras para coibir e estabelecer
as punições às infrações em caso de uma transgressão da lei. Nesse aspecto a lei é um
instrumento político e não moral, tendo por função punir quem infringiu as normas
estabelecidas, a pena será imposta na sentença final do processo. As infrações podem
ser motivadas pelo não cumprimento da lei, ou porque uma ação tenha causado prejuízo
a alguém, a sociedade ou a cidade.
Ricoeur considera que a lei é puramente procedimental, não havendo escolha de
fato, existindo somente a obrigação. O indivíduo, enquanto cidadão é obrigado a
cumprir a lei a qual está submetido, caso a desrespeite será punido; nesse sentido,
adotam-se as formas de restrições a fim de incluir e manter os direitos de cada um.
Consequentemente cumpre-se à lei a fim de evitar a punição. A questão do justo insere-
se nessa ideia apenas pelo sentido moral de legal, no sentido de regulador da justiça82.
Para o filósofo é possível agregar a essa ideia reguladora em conformidade com a lei,
outra ideia que possa se mostrar como significado de bom a uma distribuição de
sentença que possa ser justa, assim como a reparação.
Em relação às normas morais há duas circunstâncias que precisam ser pensadas:
a primeira trata-se da possibilidade do sentido de justiça ser concebido sem a conotação
de moralidade. Nesse sentido, é possível desvincular o valor moral de culpa do sentido
de responsabilidade no plano da jurisprudência. A segunda circunstância é a
possibilidade de se pensar o sentido de justiça sem traduzi-lo simplesmente pela
manutenção das normas e das relações humanas. Para se pensar o conceito de justiça,
por esse viés, introduzem-se as questões simbólicas da linguagem. Segundo o filósofo,
81 Idem p. 90. 82 RICOEUR, P. Le juste, la justice et son échec, France. Ed.L’Herne, 2005 , p.15
43
até o momento isso não foi feito. Caso pudesse ser feito, então seria possível perceber
que a abrangência do sentido de culpa e da responsabilidade no plano da justiça tem um
contexto maior do que o da ordem e da lei.
Recordamos que as questões de justiça também abrangem as significações
simbólicas da linguagem, por exemplo, na forma dos processos, dos argumentos e das
atividades sentenciais. Estas atividades comunicativas da justiça permitem submeter à
dinâmica processual as sentenças devidas para as punições das infrações. Nesses
processos, as ações de infrações sofrem avaliações que conferem significações
“plausíveis e dignas de ser consideradas”. O julgamento desses tipos de ações tende a
considerá-las conforme o prejuízo ou sofrimento causado. Nesse sentido, o tribunal em
seu exercício de julgar delibera sobre a ação, tentado um acordo de reparação ou de
indenização aos efeitos nocivos das ações. Em casos graves que não tenha um modo de
amenizar os prejuízos, estabelecendo-se as penas ou punições.
Em suma, perante a lei as infrações são punidas, pela aplicação de uma pena;
cabendo ao responsável da ação cometida à obrigação de submeter-se à pena, ainda que
por coação. A instância jurídica é o elemento singular, em que se pressupõe uma
neutralidade para julgar e adequar os processos jurídicos às sentenças. Nesse âmbito o
juiz é a figura que se destaca. Segundo Ricoeur, ele será o terceiro elemento entre dois
reivindicantes de direitos iguais. O magistrado representa o elemento neutro capaz dar
o distanciamento justo do caso para emitir uma sentença. Para o nosso autor, não basta,
porém, o juiz dar o veredito à sentença segundo a lei, cada caso exige dele uma
sabedoria moral adquirida na prática de suas experiências. Além disso, esse mediador,
na prática da justiça, terá ao seu alcance um aparato processual que inclui os advogados,
promotores e júris. Além do mais, dependendo da circunstância judicial haverá a força
policial para impor a ordem e fazer cumprir o acordo entre as duas partes reivindicantes;
cabe ainda a essa força policial impor o cumprimento das sentenças e das punições do
responsável pela infração.
Por contraste, as relações cotidianas não podem impor sanções legais; no
máximo podem-se impor sanções morais uns aos outros. Ricoeur assevera que em
relação às sanções pessoais temos as seguintes tendências: primeiro de advertir o
oponente; em caso de não entendimento, a outra tendência é afastar a pessoa do nosso
convívio pessoal. Quando as experiências de justiça saem dos limites do cotidiano em
caso de infração grave, as punições deixam as fronteiras pessoais e estende-se para o
44
âmbito da justiça institucional. O plano superior da justiça é o espaço que tem a
capacidade técnica para resolver os pedidos de socorro daquele que reclama por justiça.
Nesse espaço público tenta-se diminuir a gravidade do conflito provocado por
desacordos nas situações cotidianas. Para Ricoeur os desacordos podem aparecer de
diversos modos, por exemplo, quando há divisões desiguais ou retribuições
desproporcionais, outra forma de conflito aparece quando existem elogios imerecidos,
promessas traídas, os supostos furtos ou quando se tem as convicções desrespeitadas.
Estas situações na vida cotidiana mostram-se, por vezes, contingencialmente, no
entanto, são esses aspectos contingenciais que, geralmente, dão margens aos mais
diversos conflitos. Alguns são solucionados sem o auxílio do canal de justiça outros,
entretanto, recorrem-se às instituições judiciárias, com base na confiança, para resolver
os impasses.
1.4. A violência e a vingança
a) Violência e Coerção do Estado
Segundo Ricoeur, tanto às relações interpessoais quanto à prática jurídica a
questão da confiança é muito importante. Há implicitamente uma promessa do Estado
de direito governamental de que a instituição jurídica exercerá um poder para promover
a justiça com equidade para todos os cidadãos. Quando ela é rompida a confiança nas
relações sociais ou jurídicas torna-se vulneráveis a todo tipo de violência. Na prática
jurídica essa confiança pode ruir se o argumento da justiça tornar-se frágil ao ponto de
deixar que a injustiça transpareça. A falta de confiança na justiça pode ser motivada por
um sentimento de lamento daquele que se vê injustiçado. Nesse aspecto a lamentação
aparece primeiramente “no grito” – que injustiça! Essa exclamação, segundo Ricoeur,
é um clamor que se exprime na falta do sentido de justiça. Esse grito é considerado
autentico quando as motivações por reivindicações de direito for um sentimento
autêntico de injustiça. Essa reivindicação pode não ser autêntica se a pessoa
reivindicante se mantiver irredutível às próprias convicções. Para Ricoeur se “o grito”
for autentico; então, merece o nosso respeito e deve ser ouvido, a fim de se tentar
encontrar uma solução justa para aquele que se vê injustiçado.
As relações interpessoais, no espaço institucional, ficam algumas vezes
fragilizadas, principalmente quando as pessoas se sentem desrespeitadas em seus
direitos. Algumas vezes elas tentam resolver o conflito existente sem o auxílio dos
45
canais de justiça, em muitos casos sem nenhuma reflexão ou ponderação ocorre tal grau
de violência que acaba em uma situação trágica. Essas soluções não ponderadas e
irrefletidas, na maioria das vezes, agravam os problemas ao invés de resolvê-lo. Ricoeur
considera que quando estamos imbuídos do sentimento de injustiça, tornamo-nos menos
prudentes para solucionar os conflitos existentes. Nesse caso, não conseguimos resolver
o conflito porque não sabemos nos distanciar do problema para tentar encontrar uma
solução que seja justa para ambas as partes. Em caso de conflito entre pessoas em que
não há a distancia da justa medida para se estabelecer um consenso, então se necessitará
das vias da justiça; pois, sem que haja um terceiro elemento para intermediar ou
apaziguar as duas partes em conflitos, provavelmente uma das partes poderá infringir as
normas de conduta social valendo-se da violência para tentar solucionar a questão em
conflito. Para Ricoeur o Estado de direito tem um papel central na vida das
comunidades históricas de coibir e punir as violências bem como de fixar as condições
reais de punições, além de dar as garantias da igualdade necessárias para todos perante a
lei.
Em caso de violência, cabe ao Estado de direito o papel de ocupar-se das
conciliações ou das reparações. Além do caráter reparador, o Estado exerce o papel
moralizador, isto é, ele tem uma função educadora e reguladora. Segundo Ricoeur,
enquanto educador o Estado tem o dever de ensinar à comunidade os critérios racionais
e da prudência para questionar a respeito das condições das ações, se, por exemplo, são
sensatas ou não. Neste contexto, parece-nos que a ação política requer um sentido moral
reflexivo para que as decisões efetivamente possam ser justas. A política fica
desacreditada quando falta confiança na ação política.
Parece-nos que o interesse do Estado de direito político deveria coincidir com os
interesses dos cidadãos. Acreditamos que cada cidadão acrescenta um sentimento de
confiança nas promessas políticas, caso elas não sejam cumpridas, a quebra desta
provoca um sentimento de indignação que pode gerar atos de violência recíproca.
Nesse caso, às vezes os sentimentos de injustiça dos cidadãos reivindicantes podem
chegar ao ponto de destituir o poder governamental. A justiça aparece sob o manto da
violência; nesse aspecto, ela não se identifica com os representantes legais. Nessa
situação, parece-nos que sobrevive a lei, mas não aqueles que a representam. A história
mostra que diante de tais conflitos as comunidades históricas entram em luta a fim de
restabelecer um sentido justo que implique não somente a lei, mas também o bom. Ao
46
cessar a violência é instaurada a confiança e os novos governantes podem instituir o
processo legal que estabelece um fim às situações limites de conflitos.83
No cotidiano quando os conflitos entre oponentes ultrapassam os limites do
tolerável tornando-se violento, é necessário acionar todo o aparato da lei com seu
aparelho judiciário. Contudo, há ocasiões em que os conflitos podem ser resolvidos
pelas próprias pessoas. Nesses casos, ter-se-ia de tentar encontrar um meio termo para
resolver as desavenças. Talvez seja possível chegar-se a algum tipo de consenso se não
houver uma radicalização nos pontos de vistas das convicções. A ponderação ou
prudência é um elemento essencial para que se mantenha a reflexão em relação à
situação de conflito. É preciso considerar que o uso da violência reduz a razão e não se
alcança um entendimento sensato quando a razão fica nublada pelo sentimento de raiva,
revanche ou de excesso de indignação. No cotidiano é possível recorrer ao bom recurso
da linguagem discursiva para exprimir a própria posição, sem chegar às agressões
verbais ou físicas. O recurso da linguagem é, segundo Ricoeur, bom e razoável quando
contribui para prática do diálogo, na dimensão da não violência. Cabe rememorar que o
diálogo não são dois monólogos entre “surdos”, isto é, uma conversa em que as duas
pessoas falam, mas ninguém escuta que esta se diz. O diálogo, para Ricoeur, constitui-
se em duas falas discursivas que se tem como horizonte manter-se eticamente na ordem
da razão, do respeito e da ponderação.
Nesse sentido, consideramos que somente conseguimos estabelecer o diálogo
porque há duas vontades que intencionam deliberadamente um bem viver; elas expõem
as suas ideias com a finalidade de tentar chegar a algum consenso que amenize o
conflito existente. Somos, assim, conduzidos pelo discurso da linguagem ao espaço
moral e da ética para que não tenhamos que recorrer à lei toda vez que nos expusermos
aos conflitos.
Não devemos desconsiderar o sentido moral de agir e sofrer. As ações são o
modo ativo de ser do humano. Entretanto, essas atividades possuem um caráter passivo
que se apresentam quando sofremos a ação do outro. Quando essas ações estão em
desequilíbrio podem causar prejuízo ou sofrimento a alguém; porém, quando elas estão
em equilíbrio com certa disposição ética de manter-se um bem viver, então as ações
podem ser motivo de prazer e contentamento. Na obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco,
83 Op. cit. Leituras 1 – “Tarefas de um Educador”, p. 145.
47
livro II, as ações realizadas são consideradas moderadas quando reguladas pelo justo da
justiça. A moderação consiste em um comedimento em relação às próprias ações. A
pessoa moderada é ética e pensa para agir, de maneira que ela pondera as suas próprias
decisões. Além disso, ela é capaz de refrear intencionalmente as suas convicções e
vontade de se impor as outras ações; nesse sentido, suas ações passam pelo crivo de
uma analise e reflexão antes de acarretar algum tipo de prejuízos a outrem. 84
Retornando a questão das ações passivas, em efeito, é o modo como sofremos
as outras ações no mundo, isto é, elas são o modo como recebemos as outras expressões
e experiências. Sofrer uma ação é ter que suportá-la, ou ter que admiti-la como uma
ação diferente da nossa. Nesse aspecto, sofrer é também consentir que haja outro além
de nós capaz de agir. Essa palavra admite o sentido de sofrimento em relação à dor
física ou moral, por exemplo, sentimos dor, porque alguém nos bateu, e sentimos dor
por causa de uma ofensa recebida. Esses sofrimentos podem causar-nos um desconforto,
angústia, aflição, raiva, etc.. Esses sentimentos podem ser suscetíveis de revides e
provocar um conflito que pode em seus limites chegar às ações de violência.
No espaço das relações interpessoais esses dois movimentos – agir e sofrer –
estão entrelaçados entre si e constituem, segundo Ricoeur, as ações humanas. Em nossas
interações no cotidiano agimos e sofremos as ações uns dos outros. Nesse contexto as
liberdades se sobrepõem umas as outras, nem sempre, porém, de forma tranquila, já que
estamos sempre tentando valer nossos direitos e convicções. Muitas vezes,
ultrapassamos os limites do tolerável e o que consideramos nosso direito, às vezes,
ultraja as convicções do outro, essas ações podem gerar conflitos e acabar em violência
quando elas forem consideradas injustas. As ocasiões em que recorremos ao espaço
jurídico para fazer valer nosso direito; nesse caso, cabe a ele o papel de mediador entre
os conflitantes e será ele quem imputará a responsabilidade da ação àquele que infringiu
as regras de convivência, sancionando-o e obrigando o autor da ação a cumprir uma
pena.
Ricoeur assevera que o sentido de justiça tem um traço comum a diferentes
dimensões. Essas dimensões ligadas à ideia de justiça percorrem o âmbito da lei, da
moral e do político. No plano do político, a justiça caracteriza-se por ter o “monopólio
da coerção”; nessa instância a lei pode ser publicamente imposta sob o estigma da
violência. Ricoeur assevera que nenhum tipo de violência pode ser justificado, contudo,
84 Op. cit., Ética a Nicômaco, p. 70
48
é preciso reconhecer que cabe ao estado de direito o exercício legítimo do poder e da
força; dois elementos que servem para comandar e se fazer obedecer. Presume-se que
em uma república ou sociedade democrática essa legitimidade somente é dada,
simbolicamente e temporariamente, ao Estado de Direito de certo Governo por sufrágio.
Compreendemos que não é possível uma legitimidade em decorrência de abusos de
poder em casos de Governos que se impõe como Estado de Direito absoluto, pois isso
seriam o domínio do autoritarismo, da tirania ou da dominação e exploração dos
participantes da sociedade85.
Porém, há um tipo de violência no nível das ações interpessoais que aparece em
certo sentido, quando se extrapola os limites que circundam o espaço de liberdade que
cabe a cada pessoa. A estrutura básica da sociedade pode, por vezes, estar fragilizada e
com dificuldades para estabelecer um sentido de distribuição que favoreça os mais
desvalidos; as pessoas sentindo-se desprotegidas e em desigualdade gritante, podem
rebelar-se recorrendo à violência. Pode-se dizer que a ruptura com o diálogo é o risco
que se corre em relação à justiça. Se há uma recusa em relação ao diálogo, os excessos
de violência podem fazer-se presentes e dar origem aos sentimentos de indignação e
protestos. Ricoeur diz que a frase “isso é intolerável” surge como um grito de basta à
violência. Parece-nos que ao dizer-se “basta”, há nessa fala dois movimentos, um que se
dirige à violência para mostrar-lhe que se está disposta a viver de modo mais pacífico; o
outro movimento é o retorno do sentimento de generosidade que temos conosco ao
mostrar-se disposto a dizer o que se sente. A generosidade é um bem que aparece
quando se tem a coragem de expor-se – ao dizer o que sente ao outro – abre-se um
espaço para o diálogo. Nesse sentido, a generosidade, parece-nos que é o ato de suportar
a própria dor a fim de incluir o outro na relação. 86
É preciso dizer, contudo, que em nossas relações sociais nem sempre estamos
dispostos a agir de modo generoso. Além disso, o estado de paz não depende apenas das
ações individuais. Existem institucionalmente as leis e as normas que regem as nações,
comunidades, países e etc. A fim de tornar possível o cumprimento das leis e colocar
ordem para manter a coesão de uma sociedade o Estado de Direito concilia a ação
política de bem estar com formas de violência e coerção. Parece-nos paradoxal que o
Estado de direito de um país tenha que fazer uso da coerção, isto é, da violência ou da
85 Idem, p. 59. 86 Op. cit. L 1 – “Tolerância, Intolerância, Intolerável” p. 174
49
força física para impor a não violência e a ordem. Temos, porém, que considerar que o
Estado de direito, tem como ideal a não violência.
Ricoeur diz que se tem que considerar que a forma política do Estado de direito
emergiu dos contextos históricos de violência. Nesse aspecto, traz o “estigma” da
violência na estrutura governamental, de modo que a coerção mantida pelo estado de
direito dos países ou nações é muitas vezes justificada moralmente perante a lei sem ter
o sentido de violência. Ricoeur assevera que seria ingenuidade de nossa parte imaginar
que poderiam existir ações não violentas para coibir outras que infringem a lei. Para o
filósofo é preciso considerar que ao coibir os que desrespeitam os direitos humanos, ou
ao impedir a desordem social, haverá sempre algum tipo de violência coercitiva por
parte do estado de direito.
Embora esse tipo de violência exista, o autor considera que a coerção deixa de
ser justificada quando ela afirma uma tirania governamental ou que se torne uma forma
violenta de subjugar os sujeitos em seus direitos humanos. A questão da violência
precede a da não violência; de acordo com Ricoeur, a primeira, às vezes perde-se no
inexplicável da condição humana, a segunda é, no sistema político, mais uma verdade
formal que serve como ponto de partida, para os governos elaborarem suas leis. Para o
filósofo quando os governos mantêm os discursos da não violência como um recurso
para manter diálogo com outros governos, eles estão se dispondo também a “respeitar a
multiplicidade, a diversidade, a hierarquia das linguagens” que para nós é o único modo
de trabalhar o sentido razoável da prática da não violência87.
Em relação à violência política, Paul Ricoeur assevera que Hannah Arendt
conseguiu fazer uma distinção cuidadosa entre o conceito de força e o de violência. Para
a filósofa a violência no plano da instituição política não é abuso de poder e o poder por
sua vez não é o uso legítimo da violência. Ricoeur busca no conceito de poder que
procede dos romanos o sentido de energia ativa e a efetuada; a saber, o poder é a
capacidade de agir em comum.
Para Ricoeur o sentido energia designa-se pontualmente por residir nos
indivíduos, isto é, algo que está reservado no interior do indivíduo e ainda não foi
realizado. A força é a energia que foi dependida ou efetuada. De modo que no campo
político da ação a força é a efetuação da energia que foi marcada pelo agir em comum.
Ricoeur considera que se o poder somente existe enquanto os homens se predispuserem
87 Repetimos diversas vezes a palavra não violência de modo proposital, porque ela tem um sentido não cabível ao uso de um sinônimo.
50
a agir em conjunto, então ele desaparece quando os homens se dispersam. Nesse
sentido, o poder é frágil porque ele dura enquanto houver um consenso entre as
individualidades para manter o agir em comum. A violência é a exploração dessa
fragilidade e a força é a relação do poder com a cidade no campo da ação. Segundo
Ricoeur no campo das relações pessoais a violência não pode ser negada como condição
do próprio indivíduo; no entanto, além da violência existe a possibilidade de uma ação
razoável que pode ser empreendida pelo desejo de justificação que é a fonte de uma
liberdade que considera as ações do ponto de vista da reflexão. 88
A análise semântica dos conceitos, segundo Ricoeur, permite que se faça uma
reflexão mais profunda sobre termos complexos e polissêmicos. Nesse sentido, o que se
deseja é mostrar que se tem de levar em conta que as palavras expressam mais de um
sentido. Além disso, estas escondem aspectos que podem ser revelados por meio dos
significados, signos e até pelos sentimentos que elas provocam no ser humano. O termo,
“poder”, por exemplo, tem mais de um sentido; tem uma conotação de potência, mas
também é possível compreendê-la como capacidade de qualquer coisa. Além disso, o
termo pode evocar um sentimento de soberania, de violência ou até de liberdade. No
entanto, essa palavra pode ser considerada apenas como um predicado pertencente ao
sujeito. Ricoeur exemplifica com a frase, “eu posso”. Para o autor, há na frase um
sentido de poder cuja explicitação está na capacidade voluntária de fazer algo. A
questão demandada é: como essa noção pode ser acrescentada ao sentido de justiça?
Ricoeur compreende que as palavras precisam ser analisadas respeitando suas
preocupações ontológicas e epistemológicas. Além do mais, ele considera que é preciso
respeitar o contexto em que elas se apresentam. Assim, por exemplo, a palavra poder,
como já foi dito, tem um sentido polissêmico que se for retirado de seu léxico comum e
for inserido em um contexto político, o termo receberá um sentido unívoco e nesse caso
vincular-se-á a uma situação específica.89
Ricoeur recorre à teoria de Hannah Arendt para mostrar outro aspecto da palavra
poder; agora vinculada ao contexto da instituição política. Segundo o filósofo francês,
nesse contexto político a palavra ganha um significado que se contrasta entre o
duradouro e o frágil. Ele comenta que esses opostos constituídos pela durabilidade e
pela fragilidade do poder aparecem em conjunção com as ações do Governo. Essa
conjunção se faz presente no exercício do poder governamental em relação ao povo. Por
88 Op. cit., L1, p. 18. 89 Idem, p.18
51
esse viés, o poder também está vinculado à instituição política e por meio desta é capaz
de formular uma teoria de como as instituições políticas são formadas. Esse significado
de poder que se apresenta simultaneamente duradouro e frágil é também à nossa própria
condição humana. Essa condição que Ricoeur inclui em si, o agir e o sofrer das ações.
Portanto, a condição humana é a capacidade de poder agir e sofrer as ações. 90
Como já foi dito, nossas experiências institucionais vividas sob o signo da
condição humana mostra-se nas exigências em que ser no mundo requer de cada pessoa
certa dose de tolerância e respeito a fim de poder conviver de forma justa. Nesse
contexto, a tolerância é algo mais do que se ter condescendência, pois ela nos remete
em principio ao respeito, seja às próprias idéias ou ações ou as alheias. O respeito, de
acordo com Ricoeur, pode ser entendido como estima, ela encontra-se na capacidade de
ser o agente de sua própria ação. Ricoeur afirma que o respeito e a estima que temos por
nós mesmos advêm da compreensão de sermos capazes de narrar e ao mesmo tempo ser
o sujeito principal da nossa própria história, num interligamento entre as outras
histórias. Essa capacidade nos torna sujeitos capazes também de julgar e avaliar as
nossas ações e a dos outros.
As ações de violência no campo dos relacionamentos interpessoais requerem um
possível reconhecimento em relação à autoria da ação. O reconhecimento situa a ação e
o autor, diferenciando uma história pessoal de outra. Mas para que haja um
reconhecimento, parece-nos que é preciso da confiança na sinceridade do discurso
alheio. É a confiança que torna a relação mais compreensiva e possibilita haver uma
interação. Entretanto, poder-se-ia dizer que confiar no discurso alheio é um ato de
generosidade.
Ricoeur menciona que em nossos relacionamentos com o outro, as relações de
desconfiança podem tornar as interações mais conflituosas. Parece-nos que as relações
de desconfianças são permeadas por interações de intolerância. Torna-se muito difícil
estabelecer qualquer tipo de reconhecimento que seja mútuo em relações desse tipo,
pois haverá sempre o risco de não existir de alguma parte a retribuição. No caso do
reconhecimento mútuo, parece-nos que a primeira vista só é possível estabelecer um
respeito entre iguais, isto é entre amigos. Mas, o reconhecimento é mencionado aqui
como um tipo de igualdade que consiste em se reconhecer que as duas pessoas, “eu e o
90 Ibid, p. 16
52
outro”, isto é, nós somos igualmente sujeitos capazes de agir e sofrer as ações um do
outro.
Em casos limites as ações que não são reconhecidas podem gerar conflitos pelo
não reconhecimento dos direitos do outro. Se estendermos esse não reconhecimento
para o âmbito político, a ação pode provocar uma falta de expectativa em relação à
justiça. A falta de reconhecimento das ações jurídicas e do poder político podem
também gerar por parte da sociedade um desrespeito às exigências do governo de
direito para um acordo justo. A desconfiança pode criar uma expectativa de não
reconhecimento que se expressa na violência. Podemos abordar essa questão da falta de
reconhecimento e desconfiança pelo viés da questão da ambiguidade do intolerável.
Ricoeur considera que nem tudo pode ser tolerável, por exemplo, a violência é
intolerável, ela seria o limite para o basta.91
Mas sabemos que esse limite gera uma confusão, pois um simples ato pode ser
considerado uma violência, nesse sentido, como impedir a violência de agir, sem que se
haja com violência. A resposta de Ricoeur será o uso do reconhecimento mútuo nas
lutas para os estados de paz. Como fica, então, a questão do reconhecimento se o Estado
não reconhecer o individuo como sujeito capaz e, se o mesmo se ocorrer com o
individuo em relação ao Estado de direito. No iluminismo essa questão era confusa, não
havia uma clareza nos papéis de cada um. Conseqüentemente, não estava, ainda, claro
para as mentalidades que não era cabível ao Estado prescrever artigos de fé, ou mesmo
agir de maneira coercitiva a fim de persuadir o indivíduo a pertencer a esta ou aquela
religião. Não se entendia que a questão da fé era papel das instituições religiosas, que
deveriam permanecer circunscritas a s suas próprias instituições, sem extrapolar limites
referentes às funções do mundo civil.
b) A Vingança
Segundo Paul Ricoeur a vingança é uma forma injustificável de justiça por isso
ela é intolerável. Ela é uma forma injustificável, porque, segundo o filósofo, não há
valores morais ou éticos capazes de sustenta-la como forma de justiça. O problema
desta é que ela tomada por um sentido de justiça singular em que a pessoa quer reparar a
injustiça sofrida com as próprias mãos, fazendo da sua ação uma revanche. Nesse
91 Op. cit. L1- « Tolerância, Intolerância, Intolerável, p.174.
53
sentido, segundo o filósofo falta à vingança o atributo da confiança e do reconhecimento
no poder institucional de fazer justiça.
Compete expor que, para o filósofo, embora a vida humana comporte em si
mesma o trágico e suas significações contraditórias; ela tem pouco espaço para a
vingança. Este tipo de revide, em que se responde à violência com a violência, soma-se
dois tipos de violências, adquirindo um aspecto de problemática que aparecem nas
ações humanas relacionadas ao contexto político. Uma ação de vingança nos leva a crer
que a confiança no poder público rompeu-se. Nesse aspecto, instala-se um descrédito de
que a instituição judiciária não é capaz de poder conduzir a idéia de justo, por meio da
aplicação das normas, até a fase final do processo.
Parece-nos que a vingança contradiz o poder da instituição de justiça, nesse
sentido, ela representa a falência do discurso argumentativo propagada pelo direito
institucional, nela não há a predominância da lógica ou da prudência, mas apenas o
sentimento de raiva, ódio e de revide. Entendemos que para Ricoeur a vingança é uma
revanche na qual predomina a violência marcada geralmente, pela falta de mediação do
poder público entre o povo e a autoridade92. Nessa concepção política, o poder não é
compreendido no sentido de uma ação em comum e somente permanece enquanto
houver ações conjuntas. Destacamos a palavra poder porque já foi visto que ela tem um
sentido e um significado próprio. Ricoeur diz que para Hannah Arendt poder e violência
são considerados sob a égide da “fragilidade de uma prática visando o duradouro”93.
Essa noção de fragilidade é para Hanna Arendt a condição do poder político. O frágil
apresenta-se como uma fraqueza do Estado político de direito que se deixa corromper
pelo próprio poder que exerce. Em relação ao duradouro pode-se dizer que ele um
projeto político de longo prazo; em que o Estado político tem por preocupação a
elaboração das leis. Estas se aceitas devem implicar em um sentido de justiça que na
prática possa dar conta de evitar as contradições que estruturam as redes de
significações da vida humana.
Uma das condições para a vida humana, segundo Ricoeur94, é a sua constituição
de experiências que implicam no pertencimento de uma tradição inscrita e oferecida
para interpretação e decifração. Por tradição deve-se entender por herança cultural e
histórica inscritas nos textos, nas obras e nas interpretações dos signos e significados em
92 Op. cit. L1, p.16 93 Idem, p.17 94 RICOEUR, P. Hermenêutica e Ideologias, trad. Hilton Japiassu, 2008, Petrópolis, ed. Vozes, p 41
54
geral. Para o filósofo, esse é um pressuposto que deve acompanhar àquele que deseja
pensar as questões em torno ao político. Além disso, é importante pensar essas questões
a partir dos limites das experiências cabíveis à condição humana. Em seus limites são as
experiências humanas que tornam possíveis aos filósofos elaborar um modelo de
justiça. As teorias que são desenvolvidas têm princípios que servem de parâmetro tanto
para as instituições como para as ações comuns nas relações dos sujeitos. Cabe lembrar,
assim, que as instituições políticas não são meras abstrações, elas são constituídas pelas
ações conjuntas dos homens. De maneira que é necessário que haja um espaço chamado
social e institucional jurídico para que as ações conjuntas possam ser efetivas.
Parece-nos que a vingança é uma forma ilusória e egocêntrica de por fim a um
conflito. Matar por matar é um ato insensato, mas matar porque alguém foi morto, não
torna a ação mais sensata, nem razoável, para Ricoeur por mais forte que sejam os
motivos, eles não justificam qualquer tipo de vingança. Nesse sentido, o filósofo
considera que é importante tentar abster-se de tentar fazer a justiça individualmente,
ainda que a probabilidade de sucesso em um julgamento seja nula. Se quisermos que o
senso de justiça se mantenha e se enraíze no “querer a vida boa” é preciso de um
esforço para que as questões de revides sejam direcionadas as estruturas jurídicas.
Nelas as reivindicações podem ir a julgamento e a vítima receber as reparações com a
condenação do réu. A pena será ao mesmo tempo a punição e a possibilidade de
reabilitação para o condenado. As interdições e as reparações conferem um estatuto de
julgamento que é tarefa do poder político e não dos indivíduos em particular.
1.5. Retribuição e Reconhecimento mútuo
Ricoeur demarca o sentido de reconhecimento a partir de três aspectos: primeiro
aparece como conhecer novamente, isto é, apreender pela mente a ideia de alguém ou
alguma coisa já conhecida. Essa apreensão é possível ao ligar entre si imagens,
percepções que se refere ao objeto apreendido pela mente, por exemplo, “distinguir,
identificar, conhecer por meio da memória, pelo julgamento ou pela ação” O segundo
aspecto, tem a acepção de admissão ou considerar verdadeiro. O terceiro sentido de
reconhecimento é assinalado por um sentido de qualidade reconhecimento-gratidão,
“recompensado é aquele que recebe sinais de gratidão”. 95
A polissemia do termo reconhecimento pode segundo Ricoeur possibilitar uma
alusão ao sentido jurídico em que ela é utilizada como idéia de justificação para a luta
95 RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento, ed. Loyola, 2006, pp.18,19.
55
do reconhecimento. Nesse sentido a palavra liga-se a idéia de reconhecimento de um
direito, isto é, reconhecer é considerar verdadeiro o direito do outro. Segundo Ricoeur a
idéia de reconhecimento-admissão se refere, nesse caso, a admissão pública da
existência de um órgão jurídico. O sentido da palavra desloca-se conforme a
problemática em que ela está inserida.
De acordo com o filósofo o sentido de reconhecimento deu-se historicamente em
meio as mentalidades intelectuais que tinham um pensamento com maior consciência
crítica. Após, já em um segundo momento as justificações de reconhecimento se
fizeram nas lutas corporais, como nas revoluções ou lutas armadas. Nesse caso, as lutas
foram um modo de justificação para o reconhecimento que ultrapassou o plano das
idéias para outro momento, representado pela questão do excesso de violência que é
intolerável. O sentido de intolerável na história das mentalidades representa o
questionamento filosófico da problemática do injusto. Já as revoluções aparecem em
uma circunstância em que o sentido de intolerável já tenha sido levado ao extremo. Para
Ricoeur possivelmente o excesso de violência fez com que as pessoas se rebelassem e
dessem desesperadamente os seus gritos de basta, “isso é injusto”. Nesse caso, o grito é
representado simbolicamente pela luta armada, assim a revolução foi uma tentativa para
dar um basta à injustiça. Podemos supor que a justificação do intolerável nesse período
tenha iniciado a partir de um sentimento de insatisfação de poucos; posteriormente, o
sentimento de indignação em relação ao intolerável tenha alcançado uma dimensão tão
insuportável que findou tragicamente com os excessos na revolução. Com os
sofrimentos provocados pelos acontecimentos trágicos, a idéia de intolerável torna-se
mais alargada e contribui para que as pessoas possam redefinir seus valores e crenças.
Foi, portanto, a partir da consciência critica em relação às injustiças e ao intolerável que
se deu vazão a um sentimento de insatisfação cuja ampliação saiu do âmbito restrito de
algumas mentalidades e passou a fazer parte da cultura popular. Do alargamento desse
sentimento de insatisfação generalizado na França uma revolução. Posteriormente com
esses acontecimentos houve um aprendizado que promoveu a transformação nas mentes
em relação ao reconhecimento.
A história marca o período do “iluminismo” como um momento em que as
mentalidades intelectuais procuravam analisar reflexivamente às situações de conflitos
para argumentar filosoficamente a fim de estabelecer um sentido de igualdade e
liberdade por meio do reconhecimento mútuo; a burguesia e a população angustiada
pela falta de liberdade e desigualdades sociais encontram nas lutas armadas uma
56
maneira de atingir os seus propósitos. Nesse sentido, a história narra que a revolução
possibilitou uma redefinição profunda do funcionamento do sistema político e
econômico nas instituições. Pode-se dizer que foi a partir desse período trágico que se
redefiniu as atitudes e valores nas maiorias das mentalidades. Os motivos, para essa
redefinição foram às próprias experiências vividas nesse contexto de conflitos e
insatisfações. Essa reestruturação no modo de pensar e agir se deu bem mais
profundamente nas mentalidades e permitiu que os indivíduos pudessem supor que em
suas vivências sociais o Estado poderia assumir a tarefa de assegurar as posses justas
das coisas. Nesse período, cada um passou a ter uma expectativa de que o Estado seria
capaz de preservar os bens e as vidas das pessoas. Assim, estabeleceu-se legalmente no
campo político leis para reprimir os indivíduos que violassem e espoliassem os bens, a
liberdade e a vida humana. 96
Essa transformação possibilitou uma mudança cultural em relação à liberdade;
no sentido de entender que cada pessoa poderia ser capaz de escolher não somente a
própria religião, mas a própria maneira de viver. Ricoeur designa essa transformação de
mutação cultural. A partir dessa mutação as pessoas passaram a ter um nível de
compreensão da justiça diferente daquela que tinham antes. Na França, por exemplo,
depois da revolução as pessoas aprenderam a compreenderam que tanto a liberdade e
como a igualdade deveria ser um estado de direito para todos. Mas, para que cada um
pudesse de fato sentir-se livre e em estado de igualdade perante o outro, era necessário
reconhecer ou admitir a legitimitidade do Estado civil de direito. Assim, além do
reconhecimento do Estado, houve também o reconhecimento das leis vigentes, e dos
direitos cabíveis a cada um. 97
Após as mudanças imposta pela revolução a mentalidade popular ainda não
havia apreendido as novas regras civis e a questão da lei tornou-se polêmica. Nesse
imbróglio entre a lei civil e a divina, as convicções que incluíam as crenças religiosas
confundiram-se com as questões de segurança do Estado e com os costumes culturais e
hábitos de cada um. A ideia de justiça que surge, portanto, exige um sentido de
tolerância que respeite as expressões de todos esses sentimentos e convicções.
A ideia de justiça na prática cotidiana das instituições ainda emerge de forma
bem lenta. Nessa dinâmica, ainda que lenta, parece-nos que há espaço para podermos
projetar para o futuro uma ideia de justiça em que caiba a ideia ética de bem na
96 Op. cit. L 1- “Tolerância, Intolerância, Intolerável”, p. 176. 97 Op. cit., L1, pp.174 a 190
57
construção de nossas relações interpessoais. Neste caso, as instituições quando justas
promovem uma educação, aos diferentes indivíduos que intencionam uma perspectiva
de vida boa, à medida que se reconhece e respeita o direito dos indivíduos, além de
delinear as regras de reconhecimento para manter os limites de cada um.
Para Ricoeur não há convivência se não houver a apreensão do outro. Ele
considera que viver é de certo modo viver com o outro; essa convivência é uma ação
social institucionalizada e orientada para que as relações entre sujeitos mantenham-se
em um nível de respeito e tolerância. Nessa ideia de convivência está implícita também
a noção de uma sociabilidade de ação e cooperação entre os indivíduos, feita em virtude
dos motivos que as próprias pessoas possam compreender. Isso significa que na prática
cotidiana os indivíduos agem coordenando suas funções sociais, ou suas rotinas,
costumes e hábitos de modo a encontrar o reconhecimento do outro para o seu próprio
agir. O vínculo de mutualidade, nessas relações sistemáticas de reciprocidade, tem um
sentido coletivo e plural. Quando incluímo-nos nessa coletividade passamos a
denominarmo-nos pelo pronome pessoal “nós”.98 Assim, somos nós os elementos
fundamentais que contribuem para o sentido de reconhecimento mútuo. Para Ricoeur a
mutualidade está contida na própria reciprocidade.
Nesse movimento de reciprocidade, a retribuição é o que mantém o sentido de
mutualidade. Para Ricoeur, há dois tipos de reciprocidades mútuas que merecem ser
destacadas: A mercantil, regida por contratos e o reconhecimento mobilizado por um
sentido fora do contrato. Essa reciprocidade contratual pode dar-se por precaução para
impedir abusos, ou por benefícios de transferências, ou abandono de um direito. Seja
qual for o motivo, o contrato será feito de forma voluntária e soberana99. Para ele, as
relações mercantis são acontecimentos contingenciais; porém, podem ser marcadas por
contratos ou por simples troca de mercadoria. No contrato existem clausulas que
precisam ser reconhecidas pelos contratantes para que haja o cumprimento das regras
contratuais; além disso, eles precisam reconhecer-se mutuamente como pessoas capazes
de manter um contrato.
Para Ricoeur nas trocas mercantis simples há um tipo de reciprocidade que se
assemelha a uma ação generosa. A ação generosa consiste em dar sem querer que o
outro reconheça a ação feita, é abandonar o próprio direito em favor do outro. Na troca
98 Op. cit. O percurso do Reconhecimento, pp. 167 a 246 99 Idem p. 182
58
simples cada um entrega um objeto sem exigir o reconhecimento da ação. Ricoeur
compreende que são duas ações opostas, no entanto, se aproximam pela falta de
obrigação ou necessidade de retribuição do que se recebeu. Ele denomina esse tipo de
retribuição como um presente. Todavia, no gesto do presente há um movimento que não
exige a necessidade de retribuição. Apesar disso, ele compreende que se no ato de dar
não há a necessidade da troca, há, porém, um reconhecimento que acontece de modo
oculto. O que está oculto, no entanto, se revela no agradecimento daquele que recebeu o
presente. Ao agradecer, seja com uma palavra, com um gesto, ou um sorriso, de certo
modo há uma retribuição do presente.100
Nesse aspecto, a retribuição se faz percebida pelo autor da ação generosa por
meio do reconhecimento do outro da sua própria generosidade. Para Ricoeur, por
contraste à reciprocidade mercantil, a generosidade tem um aspecto cuja força simbólica
obriga quem recebeu um presente a retribuir. Essa força consiste na dignidade moral do
sujeito, isto é, quem recebe um ato generoso retribui moralmente com a gratidão ou a
estima. Em contrapartida, esse tipo de ação, segundo Ricoeur, pode gerar uma situação
paradoxal em que a gratidão se transforme numa ação de opressão e exigências de
vantagens. Ricoeur considera esse paradoxo do presente um nó duplo que precisa do
evitamento das controvérsias. Novamente, diríamos que para Ricoeur a prudência é o
elemento de sabedoria que abre a possibilidade de cada um por em prática o sentido de
justiça. A justiça é posta em prática no sentido de uma ética de bem viver que sugere a
cada pessoa que seja mais generoso com e para o outro sem querer fazer exigências
descabidas ou oprimir o mais desvalido a fim de obter vantagens.
Em relação a essa questão da justiça, é importante dizer que não se trata aqui de
tentar simplificá-la ou constituí-la de um nível de utopia inatingível. Paul Ricoeur sabe
que essa questão é muito complexa e exige muitos elementos para poder pensá-la
reflexivamente. Um deles é a questão da tolerância. O filósofo entende que embora ela
seja um termo que tem sido constantemente banalizado; se o significado de tolerância
puder ser mais bem compreendido101 poderá tonar-se um passo para um modelo de
consenso que possa servir para amenizar os excessos de violência entre conflitos
constantes. Porém, aqui a tolerância será tomada a partir do significado de
100 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva, trad. Antônio Filipe Marques, Edições 70 Ltda., Lisboa, Portugal, 2001, p.79 – Cap.II – I Regras da Generosidade. Segundo Mauss, as trocas podem ser feitas de modo voluntário, tornam-se presentes e tem antes de tudo um objetivo moral, o objeto visa produzir um sentimento amigável entre duas pessoas. “ Ninguém tem a liberdade de recusar um presente oferecido.” Todavia, as pessoas tentam superar umas as outras em generosidade. Nesse sentido, as trocas acontecem misturando os sentimentos e as pessoas. 101 Op. cit., L1, p. 174.
59
generosidade, isto é, do dar-se como um dever a si mesmo; nesse aspecto, a tolerância
apresenta-se como ato de generosidade e será uma forma de compromisso de si para
consigo mesmo. Nesse caso não haverá a expectativa da gratidão do outro, porque a
ação generosa é um presente dado de si para si. O presente é dado quando reconhecemo-
nos autor da própria ação.
Nesse sentido, quando nos reconhecemos como autores de uma ação que foi boa
para outro, temos um sentimento de satisfação e isso aumenta a nossa estima. Assim,
não é o agradecimento ou gratidão do outro que movimenta um sentimento de satisfação
pelo nosso agir em favor do outro é o reconhecer-se na própria autoria de uma ação
benéfica em favor do outro. Para Paul Ricoeur, o reconhecimento é evocado primeiro na
condição da generosidade de dar sem esperar receber algo em troca e segundo consiste
nas relações efetivas dos próprios sujeitos agentes, nessa operação de dar, receber e
identificar as relações ocorridas. É nessa luta pelo reconhecimento que Ricoeur quer que
se entenda a tolerância em todos os seus limites. Nesse sentido reconhecer seus próprios
erros e assumir o compromisso de retificá-los é em certo sentido um ato de
generosidade para consigo mesmo. De certo modo torna-se uma contribuição para o
estado de paz entre os indivíduos, diminuindo a violência gerada pelo apetite de poder.
60
Capítulo 2
Sabedoria Prática: A justiça em ação
2.1. Antígona de Sófocles
a) O trágico da Ação
“O trágico da ação” é uma reflexão de Ricoeur intercalada na composição da
obra Soi-même comme um autre (1990).102 Esta reflexão, segundo o autor, abre o nono
estudo trazendo uma voz não filosófica a fim de restituir ao conflito o lugar que ele não
teve nas análises filosóficas. O filósofo escolhe a clássica tragédia, Antígona, de
Sófocles, em especial, porque há algo nela que invade o campo da filosofia ao dizer a
respeito do caráter inelutável dos conflitos na vida moral.
O autor francês retoma essa obra ficcional porque embora seja um elemento
diferente da filosofia abre espaço para guiá-lo em sua análise reflexiva em torno da ação
ética. Ele assevera que existe nessa tragédia uma “instrução insólita da ética pelo
trágico”. Segundo o autor, “a irrupção do trágico” na reflexão produz um ensinamento
na dimensão da filosofia moral feita de modo indireto e não unívoco. De acordo com
Ricoeur, “a tragédia é comparável às experiências-limites, geradoras de aporias”. Para o
filósofo, a tragédia ensina-nos algo a respeito do caráter inelutável do conflito na vida
moral e delineia uma sabedoria trágica capaz de orientar uma sabedoria prática. 103
Antígona realça as ações intempestivas originadas por situações de conflitos que
persistem tornando-se intratáveis e inegociáveis. Além disso, a ação de cada
protagonista é motivada por uma convicção que permanece obscurecida e fechada em
defesa do próprio arbítrio em relação ao justo. Para Ricoeur “são os próprios conflitos
que suscitados pelo rigor do formalismo que confere ao julgamento moral em situação
sua verdadeira gravidade”. Cabe dizer que, segundo o autor, não seria a situação de
conflito que constituiria o trágico da ação, pois sem a travessia pelos caminhos dos
conflitos agitando uma prática norteada pelos princípios de moralidade, cederíamos às
atrações de um situacionismo moral entregando-nos sem defesa ao arbitrário.
A ação que se encerra no trágico é motivada por uma convicção inseparável de
uma perspectiva estreita, parcial e unilateral impossibilitando, assim, que haja qualquer
solução ou acordo a fim de por fim aos conflitos. De acordo com Ricoeur, cada
protagonista estabelece para si um limite manifesto na própria ação, suas escolhas e
102 RICOEUR, P. Si mesmo como um outro, trad. Lucy Moreira Cesar, Campinas, SP.Editora Papirus 1991, obra original: Soi-même comme un autre, France, Éditions du Seuil, 1990. Pp. 283 103 Idem, pp. 282,283,284
61
deliberações ficam restritas à fronteira da própria convicção do que cada um considera
ser justo. Quanto à solução para essa situação envolvendo tanto a convicção acirrada
como um conflito moral persistente, para Ricoeur, é por ser subtraída da saída, por
exemplo, de um consenso que a tragédia acaba por desorientar o nosso olhar;
condenando-nos, assim, a reorientar nossas ações por nossa conta incluindo os riscos e
os custos.104
Nesse sentido, para o filósofo, há na sabedoria trágica alguma coisa que pode
nos orientar nos conflitos na vida moral restituindo à sabedoria prática um lugar na
experiência única do julgamento moral em situação.105 Segundo o autor, “dessa irrupção
intempestiva, esperamos o choque suscetível que desperta nossa desconfiança contra
não somente as ilusões do coração, mas também as ilusões nascidas da hybris da própria
razão prática.”106
Lembramos que para o filósofo, da irrupção do trágico, isto é, dessa invasão
repentina e violenta dos elementos hostis manifestados na tragédia deveu-se o caráter
intempestivo para a dimensão não-filosófica. Esse caráter que não pode ser ocultado
produz um ensinamento moral, ainda que seja indireto e de modo plurívoco, “a
sabedoria trágica restitui a sabedoria prática à prova do único julgamento moral em
situação”.107
Desse modo, Ricoeur escolhe também essa tragédia108, assim como Hegel e outros
autores que já a analisaram. Ela, segundo nosso autor, tem um sentido didático que
reconduz o formalismo moral a uma maior vivacidade da ética. Nesse sentido, o autor
retoma Antígona, primeiramente pela instância do endurecimento dos conflitos (Le fer
du conflit) e após pelo viés da instituição.
Em relação ao conflito, o filósofo considera que este ultrapassa a problemática do
político, já que a tragédia explora as energias espirituais oriundas dos mitos e da
tradição familiar. Antígona explora a ideia de justiça não somente pelo sentido da lei,
mas por uma moral ética do sentido de bom. Essa tragédia não se esgota nesses dois
sentidos, ela mostra a questão das tradições regendo um sentido de justo, dos
significados diferentes para cada agente e em relação a suas ações. Além disso, aborda a
104 Ibid, p. 286. 105 RICOEUR, P. Soi-même comme un autre, « Le Soi et la Sagesse Pratique », Éditions du Seuil, France, 1990. p.282 – « Bien au contraire, faute de produire un enseignement direct et univoque, la sagesse tragique renvoie la sagesse pratique à l’épreuve du seul jugement moral en situation. » p. 281. 106 Idem, 283 (Ed. traduzida) e p. 281 (edição original) 107 Ibid. 108 SOFOCLES, A trilogia Tebana, trad. do grego por Mário Gama Cury, editora Zahar, RJ 2009 – Antígone trad. Trajano Vieira, editora Perspectiva, São Paulo, 2008.
62
problemática do conflito moral centrado na noção de dever ou obrigação mantida por
uma convicção simplificada e contida em um ponto limite das experiências humanas de
cada protagonista.
Antígona é uma obra que de acordo com Ricoeur reporta ao trágico da ação e por
consequência ao sofrimento. Essa duas dimensões, a do trágico e a do sofrimento, para
o autor, são concernentes ao conflito suscitado por um rigor excessivo de princípios e de
uma moral situacional de obrigação. A gravidade e a singularidade da situação bem
como a forte convicção incitam um julgamento moral sem sabedoria prática109.
Consideramos que, para Ricoeur, uma moral da obrigação gera situações conflituais e
Antígona, embora seja uma ficção é nesse sentido um exemplo visível trazendo
consequências na efetuação real do sentido de justiça em que a falta de uma sabedoria
prática dificulta a sensatez para poder deliberar bem em um julgamento moral em
situação. Ricoeur considera que nesse tipo de situação é preciso levar em conta que na
lei existe uma máxima geral vinculando-a como obrigação para todos; porém, na prática
a fim de aplicação da lei, existem procedimentos em que as máximas sofrem
interpretações para se adequarem as ocasiões ou circunstâncias de aplicação em
determinada situação de julgamento.
Parece-nos que, segundo Ricoeur, em relação ao julgamento moral em situação há
uma máxima geral da ação que precisa ser efetuada como singularidade. Nesse aspecto,
há algo nela que se apóia em princípios de justiça tidos como universais e considerados
um dever ou uma obrigação para todos. Entretanto, para fins de aplicação a máxima
teria que se deixar singularizar a fim de ser adaptada conforme a particularidade do
conflito em situação de julgamento. Nesse nível, há uma passagem em que a
formalização do sentido de justiça enquanto máxima geral precisaria de um agente que
pudesse interpretá-la adequando-a a singularidade da situação de julgamento. Nessa
passagem do geral para o particular em que seria necessária à interpretação, a sabedoria
prática serviria de sugestão ou alternativa para que se pudesse ter uma compreensão
reflexiva e mais equilibrada ou ponderada em virtude da ocasião da justiça. Ricoeur
denomina essa sabedoria de um saber prático consagrado à dimensão ética.
Retomaremos mais adiante a questão da sabedoria prática, no momento retomaremos a
questão do trágico em ação.
109 RICOEUR, P. Soi-même comme um autre,(SA),Éditions du Seuil, 1990, Neuvième Étude, Le soi et la sagesse pratique : la conviction, p, 279,280.
63
Ricoeur levanta a seguinte questão: em relação à Antígona, por que temos
preferência pela protagonista? Ele assevera: “seria a sua vulnerabilidade que nos
sensibiliza, seria porque a sua figura representa a não violência em seu extremo, ou
porque ela revela um sentido de philia que não altera o Eros?” Uma resposta possível
encontra-se na palavra do próprio autor citando o coro em Antígona. Ricoeur diz: “a
última palavra do coro é de uma cruciante modéstia: ‘a sabedoria [to phronein] é, de
longe a primeira fonte de felicidade: não é necessário ser ímpio para os deuses. As
palavras altaneiras, pela grande importância que lhes dispensam as pessoas orgulhosas,
ensinam-lhes [édidaxan], mas somente quando são velhos, a ser sábios [to phronein]’
(vv. 1347-1353).”110 Talvez tenhamos preferência por Antígona porque ela é jovem e
seu olhar ainda está voltado as experiências familiares, ao contrário de Creonte que
carrega consigo a experiência de um velho que deveria já ter aprendido a ser sábio.
Antígona, de acordo com o filósofo, é constrangida pela obrigação de garantir ao
seu irmão um funeral conforme as exigências da tradição de ritual aos mortos, embora
este tenha se tornado um inimigo da cidade. Ela está convencida de que pode expressar
os seus direitos familiares diante da cidade. Ricoeur considera que o vínculo que une a
irmã ao irmão desconhece a distinção política entre amigo e inimigo. Esse vínculo tem
uma força procedente da tradição mítica e sagrada, se transformando em um pacto de
morte. Creonte também é constrangido pela obrigação, contudo, subordina seus laços
familiares à cidade e em defesa desta priva de sepultura aquele que se tonou um
inimigo. Ricoeur assevera que “a cidade recebe de sua fundação e de sua estrutura
religiosa uma significação que ultrapassa a política.”111
O autor assevera que um dos pontos do trágico, não tão evidente no texto, é a
questão da amizade. O modo como cada protagonista delineia a fronteira entre amigo e
não-amigo (entre philos e ekhthros) acirra mais a discórdia entre eles. Conforme o
filósofo, amizade e inimizade são tão carregadas de significação que é a paixão que os
motiva a agir. Cada protagonista se vê envolvido por uma energia mítica e sagrado
reduzindo o próprio sentimento em mesclas não examináveis de coações do destino e
das opções pautadas pela própria decisão.
O filósofo reitera que a tragédia delineia uma sabedoria capaz de nos guiar nos
conflitos de uma maneira totalmente distinta. A tragédia ensinar sob dois aspectos:
primeiro pelo próprio conteúdo do conflito que conservou um caráter mítico de
110 Op. Cit. O si mesmo como um outro, 289. 111 Idem, 284 e 282
64
resistência à repetição total de qualquer discurso moral ou ético; segundo porque há
nessa questão do conflito, a questão da convicção.
Antígona, segundo Ricoeur, tem um fundo agonístico em que se contrastam os
opostos, por exemplo: “o homem e a mulher, o velho e a jovem, a sociedade e o
indivíduo, os vivos e os mortos, o homem e o divino”. O autor considera que o
reconhecimento de si somente acontece à duras penas.112 Mas, além disso, a duas
convicções em contraste: uma a favor da tradição familiar, outra favorecendo as leis que
regem a cidade.
De modo sucinto, ver-se-á que a tragédia de Sófocles, Antígona, é composta
basicamente por dois protagonistas. A história narra uma situação em que duas
convicções acirradas, cada qual em uma única concepção de justiça, estão em conflito
moral. Consideramos que a questão que se apresenta, no sentido ético da justiça é: se
um julgamento moral em situação requer da sabedoria prática o recurso de uma
“perspectiva ética” que possa talvez estabelecer: “um sentido de vida boa com e para os
outros em instituições justas”; será que seria possível estabelecer um sentido de justiça
moldado pela sabedoria prática que requer a perspectiva ética, ainda que a instituição
seja injusta?
A fim de compreender melhor essa questão retomaremos Antígona.
Posteriormente a morte de Édipo, Antígona e Ismene voltam a Tebas constatando que a
imprecação de seu pai em relação aos irmãos tornou-se profética cumprindo-se o que
Édipo havia dito que a disputa entre os dois irmãos pelo reino de Tebas seria em vão,
pois os dois morreriam um pela mão do outro. Com a morte dos dois herdeiros, Creonte
irmão de Jocasta, torna-se o sucessor ocupando o trono. Na posição de rei, delibera em
favor de Etéocles, seu aliado, para o rei, somente este sobrinho seria digno de obter um
sepultamento digno. O governante pediu que dessem a Etéocles um enterro condigno à
condição de um amigo da cidade. Em contraste, para Polínices, o rei impôs um castigo
severo, como infame inimigo de Tebas. Com base na distinção de amigo/inimigo,
Creonte ordenou a proibição de qualquer tipo de ritual funerário a Polínices que pela
tradição deveria permitir os rituais sagrados. Além disso, impôs a quem desrespeitasse
essa ordem uma punição.
Creonte apiedado de Etéocles, já que este tinha morrido, reiterou a sua amizade
e a piedade dos deuses. O governante elevou-o à condição de herói da cidade e, como
112 Ibid, p. 286 e ( Ed. Original, p.283)
65
tal, considerou-o merecedor de toda honra e respeito dos cidadãos de Tebas. O
sepultamento deste sobrinho seria conduzido com todas as dignidades. Ao contrário das
honras instituídas a Etéocles, o irmão morto, em combate contra Tebas, teria por
punição a vergonha de ser impedido de receber os rituais funerários condizentes a
qualquer morto. Creonte determinou, em edito, um ato de proibição estendido a
qualquer pessoa que supostamente pretendesse dar algum tipo de ritual ao morto. O
pronunciamento da sentença imputava ao morto o ato indigno e desonroso de ficar com
o corpo exposto, após a morte, para ser comido pelas aves de rapina.
Essa lei que fora publicada pela cidade inteira na forma de um decreto novo,
confrontou-se com os princípios morais de justiça de Antígona. Embora soubesse que
diante da lei ela estaria cometendo um delito, recusou as imposições proibindo o enterro
de seu irmão, decidindo por conta e risco a enterrá-lo. Ao ser descoberta em delito,
enfrenta o rei, iniciando-se um conflito irreconciliável entre duas convicções bem
diferentes a respeito do dever que é justo à justiça.
Antígona diz a Ismene que, para ela, seria belo poder morrer cumprindo seu
dever de enterrar o irmão.113 Para a protagonista é um direito sagrado e justo poder
manter as leis que tem a sua força na tradição ancestral familiar. Para a jovem essa lei
deveria prevalecer acima das leis escritas, ainda que ao custo da própria vida. Para ela,
a intransigência da lei recentemente promulgada é descabida, pois não há sentido uma
lei proferida em relação aos mortos, Antígona considera que a lei deve orientar a ação
dos vivos e não daqueles que não pertencem mais a este mundo. Para a irmã, Polínices
já tinha sido punido com a morte, ele teria de carregar para o túmulo a desonra do ato
cometido contra a cidade, mesmo que não tivesse tido o desprezo de ter o corpo
sujeitado às aves carniceiras.
Para Creonte a lei deveria primar por manter intacta a honra da pátria e quem se
antepusesse a ela renegaria a própria pátria. Para este governante havia apenas dois tipos
de pessoas, os amigos e os inimigos da cidade, estes últimos não merecem a sua
amizade e para eles a lei deve torna-se implacável.114 Creonte diz:
Se alguém, sendo o supremo guia do Estado, não se inclina pelas decisões melhores e, ao contrário não se inclina pelas decisões melhores e, ao contrário, por algum receio mantêm cerrados os seus lábios, considero o mais ignóbil das criaturas. [...] A salvação de Tebas é também a nossa, em minha opinião; se navegarmos bem, com a nau a prumo, não nos faltarão amigos. Com semelhantes normas manterei a glória da cidade, e pauta-se por elas o edito que mandei comunicar ao povo há pouco, relativamente aos filhos de Édipo. [...] Só
113 Idem, p. 204 114 Op. cit. O justo 1 p. 208.
66
quem quiser o bem de Tebas há de ter a minha estima em vida e mesmo após a morte115. (Creonte, par, 204, 220, 240.) Antígona serve-se da lei divina, essa lei precede o corpo de leis da cidade-
estado. Para ela a ideia de lei desaparece diante das tradições que obriga os familiares a
cumprirem com o dever moral de enterrar dignamente os seus mortos. Ela mantém a
convicção firme de que descumprir as regras humanas em favor da mais cara aos deuses
é um “delito santo”.116 Antígona agiu contrariando a lei, mas após esse delito, teve a
dignidade de assumir publicamente a autoria de seus atos, tomando para si a
responsabilidade de sua ação.
Diante dessa afronta o governante admite publicamente que nenhuma mulher o
governará enquanto ele estiver vivo117 decidindo puní-la rigorosamente. Antígona
recebe seu castigo, sem contestá-lo, a morte para ela é apenas a concretização de parte
de seu destino, lamentou-se, apenas, por não ter ninguém que pudesse lamentar por sua
morte.
A concepção de Creonte dos seus deveres e suas tarefas em relação à cidade
encerra-se em um ponto de vista simplificado, muito restrito, e inflexível. Essa
limitação de perspectiva repercute em seu julgamento de todas as virtudes. Nesse
sentido, conforme Ricoeur, para o protagonista somente é bem o que serve a cidade; de
modo semelhante, só é justo o bom cidadão e a justiça é a arte de governar e ser
governado. A piedade, para Creonte, é segundo Ricoeur, rebaixada a vínculo cívico, e as
divindades, intimadas dignificar os mortos que serviram aos interesses da pátria.
Tardiamente, Creonte aprende com seus erros tornando-se herói. 118
Ricoeur concorda com Hegel sobre o ponto de vista de que Antígona tem uma
perspectiva tão limitada e inflexível quanto à de Creonte. Ele entende que embora a
maneira da heroína deliberar entre amigo e inimigo seja menos intransigente do que o
modo deliberativo de Creonte, quando se trata dos laços familiares, para ela, não há
negociação em relação ao que é justo. O filósofo pondera que esses laços estão fechados
às obrigações familiares; nesse aspecto, o “vinculo” de Antígona com o irmão morto
desconsidera o significado do “Eros” resguardado em Hêmon e celebrado pelo coro.
Segundo o autor os pontos de vista estão isolados, cada qual em um polo. Em um
extremo encontra-se Antígona convicta que somente o parente morto é amigo (philos).
115 Op. cit., A trilogia Tebana, pp. 208, 209. 116 Idem, p. 204. 117 Ibid, p.223. 118 Op. cit. Si-mesmo como um outro, p.286
67
Ela mantem-se circunscrita nesse ponto-limite desligando-se das leis da cidade em favor
das sagradas. No outro extremo, Creonte obstina-se à lei, conservando a convicção de
que somente os amigos da cidade merecem os louvores da justiça.
Segundo o filósofo, tanto Antígona como Creonte mantêm duas visões parciais e
unívocas da justiça. Estas perspectivas simplificadas e antagônicas fazem parte das
convicções e revela o agir e sofrer humano de um e de outro. Nosso autor procura saber
o porquê de nossa preferência por Antígona. Ele conjectura que talvez seja em
decorrência a vulnerabilidade da mulher. Ou quiçá porque ela represente a figura
extrema da não violência em face do poder. Quem sabe ainda pela sonoridade que a
philia provoca não se alterando diante do Eros. Outra hipótese seria em relação ao ritual
de funeral havendo, nesse sentido, a necessidade do ritual para se nutrir o laço entre os
vivos e os mortos. Este último aspecto, para o autor, manifesta a fronteira entre a
convicção pessoal e o político; essa relação, então, não se exaure no político tendo-se
outras exigências que podem estar fundamentadas na íntima convicção.119
Ricoeur faz uma observação dizendo que a instrução ética pelo trágico deriva do
reconhecimento daquela fronteira contornando a limitação humana e o espaço da
instituição. Nessa tragédia, a ética esboça-se na poesia resultando em uma instrução,
sobretudo, do decurso do lirimos do coro de Hêmon e Tirésias.120 A instrução é
retomada, pelo autor, no sentido de to phronein que recorre à noção de “deliberar bem”.
Esse conceito é tido como se “pensar bem” fosse uma contestação esquadrinhada para
sofrer o terrível (eubolia) (v.96). O filósofo quer saber de que maneira a filosofia moral
responderá ao apelo da to phronein em que se requer um sentido de “pensar justo” com
o significado “deliberar bem”. Para ele, a ficção tramada, por Sófocles, é a de conflitos
sem a possibilidade de negociação.121
Ricoeur assevera que nenhum dos dois consegue deliberar bem, pois as
consciências dos protagonistas, em Antígona, estão reduzidas, na efetuação concreta do
sentido de justiça, a um único e severo ponto de vista ilusório. Para ele, as personagens
se mantém nesse ponto limite, desconsiderando que vivemos num inter-esse122 marcado
por uma convivência que requer o reconhecimento da presença do outro. Na tríade ética
119 Idem, 288, (Ed. Original, p.285), Ricoeur assevera que essas proposições encontram apoio nos versos vv. 452-455 de Antígona que têm marcado a tradição filosófica e que Hegel cita por duas vezes. 120 Ibid, p. 288 – Ricoeur cita uma sucessão versos que expressam um ensino didático: vv.332-333; vv. 584-585; vv 612-613; vv. E24-726; vv.835; vv.944-987; v. 1029; v. 1098; v.1270; vv. 1347-1353. 121 Idem, p. 290 – O filósofo cita a contribuição de Steiner em relação à situação do conflito como intratável e não negociável. 122 Op. cit. O justo 1 – “Prefácio” p.11(segundo o autor, em latim inter-sum, inter-es, inter-esse significa estar entre)
68
do cuidado, sob o recurso ético do predicado bom revestido da perspectiva ética da vida
boa com e para os outros nas instituições justas, Antígona cuida apenas do outro
reconhecido, no “tu” da figura do irmão morto; mas desconsidera o cuidado devido a
Creonte, representante da figura do outro, que ganha valor na noção de instituição. Em
contrapartida, Creonte organizou-se em torno das regras envolvendo somente a vida
política; desconsiderando assim do cuidado necessário de um estadista com e para os
outros na instituição. O governante esqueceu-se de requerer para si um aprendizado
prático cuja sabedoria pudesse considerar que além das leis e das normas há um aspecto
moral solicitando a primazia da ética teleológica de intenção da “vida boa”; nela o
cuidado detém-se na solicitude voltada ao respeito pelos sofrimentos das pessoas.
Sem esses cuidados, para o filósofo francês, a relação afigura-se em afrontas e
em ações audaciosas, envoltas em movimentos de desrespeitos e violências mútuas.
Ricoeur considera a situação de conflito como algo inevitável as experiências humanas
e, renunciá-los condenar-nos-ia a deixar de apreender uma instrução da ética123. Nesse
aspecto, Ricoeur compreende que mesmo “o reconhecimento de si” somente é obtido ao
custo de muitos conflitos e por extensão os sofrimentos. Na tragédia, por exemplo, o
reconhecimento de si é adquirido por acréscimo depois que os conflitos persistentes
resultassem em sofrimento para os envolvidos que se recusaram a ceder em suas
convicções.
De acordo com o filósofo, a tragédia, tomada desse ponto de vista, gera um
aspecto aporético “ético-prática que se acrescenta a todas as aporias que foram
acumuladas pela identidade narrativa. Nessa perspectiva, um dos papéis da tragédia em
relação à ética é estipular um distanciamento entre sabedoria trágica e sabedoria prática.
Essa distância é alcançada quando a tragédia se recusa a conduzir seu enredo para uma
solução dos conflitos. Ao nos desorientar com a falta de solução, a tragédia impõe ao
homem a pena de orientar a sua própria ação por conta e risco dela mesma; porém, para
o autor, há uma sabedoria prática que poderá ser posta em ação no momento em que
uma situação exige que se responda melhor à sabedoria prática. Diz Ricoeur: “Essa
resposta diferenciada pela contemplação festiva do espetáculo, faz da convicção o além
da catarse.124
123 Op. cit., SA, 1991, p.286. 124 Ibid, p.290.
69
Em relação a esse caráter purgativo, ou catártico, Barbara Freitag125 assevera que
ele tem pelo menos três funções nessa tragédia grega. “A expressão artística, a educação
do público e a função de purificar”. Esta última, segundo a autora, é ocupada quando a
peça encenada abre ao público uma possibilidade de reduzir aquela tensão pulsional que
foi produzida pelos conflitos existentes na trama encenada. A autora escreve que uma
catarse ocorre quando o público se identifica com algum dos personagens, por exemplo,
quando nos identifiquemos mais com Antígona do que com Creonte sentimos a sua
nobreza, a sua força e coragem para enfrentar a lei e a tirania do poder, porém, com a
morte da heroína sentimos diluir em nós a força e a nobreza. No final da encenação ou
leitura, temos a possibilidade de resgatar a força e a nobreza através da dor e da
sabedoria que Creonte apreendeu após os acontecimentos trágicos.
A autora considera que nos restará, após a morte de Antígona, somente a
fraqueza e a dor daqueles personagens sobreviventes. A catarse termina para o
espectador ou para leitor com a transformação de Creonte e Ismene. Os dois, como já
dissemos, transformam-se moralmente depois do sofrimento. Freitag considera que a
transformação exigiu de cada um a tomada de consciência dos próprios erros.
Reeducados pela situação trágica tornam-se pessoas mais sábias. Creonte torna-se uma
pessoa capaz de considerar não só os seus interesses, mas também os interesses dos
outros. Ismene torna-se uma mulher capaz de exercer a sua força para enfrentar com
coragem a tirania daquele que abusa de seu poder. A autora diz que nós somos
reeducados pela peça quando aprendemos ser mais simpáticos com as personagens
menos nobres e mais fracos. A filósofa considera que essa fraqueza e falta de nobreza
fazem deles pessoa mais humanas e abertas à experiência da vida126.
Freitag compreende que a tragédia traz em si “belos exemplos” de situações
conflitantes inseridos em situações que impelem a ações morais que são essenciais para
a vida. A autora entende que ao subir no palco, “os atores assumem formas quase
caricaturais que expressam no plano dramático os conflitos das ações humanas
projetadas em personagens mitológicos”. Para a filósofa as experiências humanas
encontram no trágico alguns pontos extremos dos dilemas e contradições das ações
morais. Freitag assevera que em Antígona o dilema pode ser observado no desfecho
trágico em que cada personagem expõe seu ponto de vista tentando justificar a sua
escolha, cada qual reivindica seus direitos baseando-se na lei. Para a autora, tanto
125 FREITAG, B. Itinerários de Antígona, A questão da Moralidade, Ed. Papirus, 2002, p.21. 126 Idem, p.25.
70
Antígona como Creonte se vêem diante de uma situação embaraçosa com duas saídas
penosas e difíceis. Cada qual estava decidido a agir em favor de uma única lei
acreditando que a sua escolha era a mais justa e verdadeira. As duas leis eram
estruturadas e organizadas para regulamentarem os valores da cidade e da tradição
familiar. Duas leis diferentes, mas complementares, uma servia os interesses da pólis, a
outra servia para fortalecer as tradições do oikos127.
A catarse trágica abre espaço no momento da convicção para que se medite
sobre o lugar inevitável do conflito na vida moral. Na representação do trágico é
inevitável, segundo Ricoeur, que os traços típico-ideais dos personagens apareçam
inseridos em situações morais de extremo conflito para quem precisa agir. Parece-nos
que o trágico ficcional em relação aos aspectos éticos tem a função de simultaneamente
criar um distanciamento e uma aproximação entre o que Ricoeur nomeia de “sabedoria
trágica e sabedoria prática”. 128 Nesse sentido, compreendemos que a tragédia ao ser
encenada se distancia à medida que se trata de uma encenação pública de um mito cujo
discurso se acentua no dramático e fora do cotidiano.
Nesse sentido, entendemos que o público acompanha simultaneamente os
movimentos da encenação. As pessoas que assistem percebem as métricas e os diálogos
de modo que elas acompanham os aspectos da cenografia, do palco, dos atores, direção
etc. enquanto tentam discernir o que peça tem a ensinar. O espectador reconhece que
está diante de um espetáculo cujos personagens encenam uma situação de conflitos
demasiadamente insolúveis. Quem assiste ao espetáculo ou lê a peça tem a impressão de
que as figuras são conduzidas de forma caricatural ao desespero e que as interpretações
têm uma dinâmica que coincidem quase de forma invariável com a morte. Embora o
leitor ou o público esteja distante do ato da cena, a encenação tem algo que o aproxima
na proporção que ele esquece que se trata de uma encenação se deixa conduzir pela
densidade dos conflitos emocionais pela ambigüidade dos sentimentos contidos nas
identificações personagem e pessoas/público.
Retomando as funções da peça, Freitag assevera que na função da educação ao
público a encenação fornece ao público a possibilidade de ver os vários pontos de vista
de um único problema ou conflito de modo que se pode aprender a formar o próprio
juízo depois de ouvir diferentes argumentos. Por exemplo, é possível ver, após a trágica
127 Ibid, p.23, 24. 128 Op. cit., S.A, 1991, pp.283, 284.
71
morte de Antígona, de Hêmon e Eurídice, Creonte reavaliando as suas ações, pelos
riscos que submeteu a cidade e sua família. Para a autora, no final da encenação torna-se
possível apiedar-se de Creonte, pois podemos percebê-lo de um modo humanamente
frágil. Nesse sentido, temos a possibilidade de compadecermo-nos do sofrimento do
protagonista, agora, tomado pela dor e percebendo o alto custo de sua ação obstinada.
Para Freitag, aos poucos, somos conduzidos a diminuir a nossa preferência por
Antígona, na medida em que percebemos que não há um único percurso para se buscar a
justiça. Na questão da moralidade somos conduzidos, no final da peça, a refletir
eticamente a respeito de nossas experiências condicionadas à vida, isto é, de nós
mesmos e do teor de nossas ações em relação aos outro.
Ricoeur lembra-nos que a sua reflexão cruza com a de Hegel pelo horizonte dos
conflitos na vida moral. Para ele, se fosse preciso renunciar os pressupostos de Hegel, a
parte renunciada não seria o seu tratamento dado à tragédia, nem a reconciliação,
solução, deste filósofo, para o conflito. O argumento da reconciliação em Hegel,
segundo Ricoeur, que ocupa todo o “capítulo 6” de a Fenomenologia do espírito é
frágil; pois ele tenta solucionar o conflito evocando uma reconciliação verdadeira entre
a consciência julgadora e o homem que age. Para Ricoeur, essa reconciliação com base
na renuncia e no perdão advém de um verdadeiro reconhecimento mútuo. E tal coisa
não acontece em Antígona.
O filósofo francês considera que não existe em Antígona qualquer tipo de
possibilidade para uma reconciliação que repouse em um reconhecimento mútuo ou na
renúncia de cada um dos protagonistas recebendo um valor de perdão. Esses poderes
éticos são inexistentes na tragédia. Embora Ricoeur tome um caminho diverso de Hegel
a respeito dessa teoria ética preferindo tomar os rumos éticos de Aristóteles em conjunto
com os rigores morais de Kant, ele deixa claro que o ponto de separação não se encontra
nessa solução para os conflitos. Os caminhos se separam porque a investigação de
Ricoeur não se limita a encontrar a aurora de uma vida ética; mas em se buscar no
campo moral dos conflitos uma dialética entre a ética e a moral, recurso que assume o
caráter orientador de uma sabedoria do julgamento em situação. Diz Ricoeur: “do
phronein trágico à phronésis prática: tal seria a máxima suscetível de subtrair a
convicção moral à alternativa destruidora ou do arbitrário”129.
129 Op. cit. O si mesmo como um outro, p. 293 (Ed. Original p. 290)
72
Essa reflexão detém-nos no exame da própria vida, de maneira a pensar num
modo possível de transformar as nossas emoções, mantendo-as em equilíbrio com o
sentido ético de “vida boa”.
Em Antígona há a questão do mito e do sagrado compondo em conjunto com a
razão a ideia de justiça. Para o filósofo esses elementos compõem o agir e o sofrer do
ser humano. Os conflitos, na obra, por terem um caráter inegociável, são tratados na
tragédia como algo insolúvel. Paradoxalmente, essa situação de conflito insolúvel em
que as ações terminam em sofrimento terrível acumula em si uma sabedoria à tragédia
capaz de ensinar-nos a agir futuramente de um modo mais ponderado.
Em relação aos pressupostos de Hegel, a respeito de Antígona, Ricoeur diz que a
solução ética daquele, para a tragédia, assinalada na reconciliação do indivíduo com a
sua própria ação é um valor que serve apenas a uma situação particular entre a
consciência julgadora e o homem que age. Para ele, na solução hegeliana falta, aos
protagonistas, um sentido ético que os beneficiassem, no sentido de poder fazer algo
para que conseguissem subsistir em conjunto. De acordo com Ricoeur para que eles
pudessem sobreviver seria necessário de que as existências particulares renunciassem o
direito a própria existência e assim desaparecer em benefício das regras universais
mantidas por um Estado de direito que tivesse uma “consciência de si universal”. O que
absolutamente não aconteceu na tragédia.
Ricoeur cita Steiner dizendo que ele tem razão ao considerar os conflitos em
Antígona como algo intratável ou inegociável.130Por isso o trouxemos como uma voz
capaz de iluminar-nos em nossa compreensão da Antígona hegeliana.
Steiner na questão do trágico da ação, em Hegel, pelo exemplo de Antígona, diz
que o pathos131 do trágico não é o conflito entre dois deveres ou entre o dever e a
paixão. Para ele em Hegel o pathos está no conflito que se desenvolve entre dois planos
da existência humana. O plano do político e o plano das relações individuais, no caso, a
tradição familiar. Cada plano é defendido por um dos protagonistas e negado e
desvalorizada pelo outro. O conflito, segundo Steiner, ocorre em uma dinâmica
contextual de opostos e contradições. Para esse autor os conflitos dão-se no interior da
polis, nesse contexto, eles emergem e chegam ao extremo no momento em que há a
negação das prerrogativas dos mortos e dos vivos. O autor assevera que esses conflitos
130 Op. cit. O si mesmo como um outro, “O trágico da Ação” p.290. 131 Op.cit., Curso de Estética, v1, p.238. – Hegel assevera que o pathos segundo o significado grego é uma potência em si mesma legítima do ânimo, um conteúdo essencial da racionalidade e da vontade livre. O pathos grego é o que impulsiona para a ação de modo bem calculado e ponderado. P. 238
73
políticos são articulados no âmbito da moral e a qualidade do trágico, num sentido
construtivo está na existência da derrota do confronto ético.
Além disso, Steiner assevera que para Hegel a peça Antígona de Sófocles é uma
obra de arte em cujo contexto representa um equilíbrio de absoluta proporção entre a
tensão e o desastre. De acordo com esse autor há, para Hegel, um equilíbrio rigoroso
entre motivação e destino e a prova condizente com esse postulado de Hegel é a
natureza agonística da consciência humana nessa obra de Sófocles. 132 George Steiner
menciona que, para Hegel, Antígona tem o mérito de tornar ‘efetiva e verdadeira’ a
simetria entre duas mortes dotadas de sentido.
Chama-nos a atenção quando Steiner diz: “depois das mortes de Antígona e de
Creonte, novos conflitos vão emergir da divisão, no interior da polis, da substância
ética133”. Se retornarmos ao final do universo de Antígona será possível ver que Creonte
não morre, embora tenha rogado à moira que dê a ele a morte merecida, sua existência
não finda e terá que aprender a viver com o mal impingido aos outros. Diante das
desgraças que abateu a vida de Creonte, ele diz: “Ai! Se me ilumine a moira derradeira,
a mais bela, a jornada terminal! Vem que eu rejeito mirar a luz do dia! A resposta do
coro a essa súplica é: “Mais tarde! Preme o que aí jaz! Incumba quem deve incumbir do
que vier!”134
Segundo Steiner, a personagem Antígona de Hegel é um indivíduo que sabe
enfrentar o seu destino, ela não foge aos imperativos da lei, ao contrário responsabiliza-
se por sua ação e diante do julgamento aceita a sua sentença. Nesse sentido, Antígona
acredita que agiu retamente em favor do irmão, ela não teme a morte, para ela, a morte é
seu destino e não tem o sentido de uma punição. Ao contrário a morte é aguardada e
celebrada, ela considera que a morte representa o alívio para o seu sofrimento. Porém o
que agoniza Antígona é como ela se encaminhará para a morte. Ela terá que suportar a
própria vida enclausurada em um túmulo de pedra, já que ela foi condenada a ficar
confinada em um cárcere de pedra. Essa adversidade, para ela, é pior do que morrer.
Antígona lamenta momentaneamente essa desventura.135 Esse lamento em relação ao
destino que não se cumpriu na íntegra, conduz Antígona ao suicídio.
Parece-nos que para o Hegel da Fenomenologia seria possível dizer que a
consciência simples e cindida de Antígona se desvaneceu na própria morte. Nesse
132 Op. cit., Antígonas, p.53. 133 Idem. 134 Op. cit., Antígone, pp. 97 e 98. 135 Op. cit., A trilogia Tebana, p. 238 vv.945.
74
movimento em direção à morte, a heroína deixa de existir ou de estar-aí, cessa as suas
ações, para retomar a posição de alguém que passou para outra posição de si, nesse
sentido ela é em si uma pessoa morta. Antígona ao morrer deixa de desfrutar de seu
próprio agir, já não pode mais ocupar ou atarefar-se. Após a morte, ela ocupa o lugar de
tarefa para o outro. Ela é a coisa dos outros, nesse sentido ela é para Hegel um elemento
universal que retém para si o que ele denomina de simples Si. Antígona deixa de ser
uma consciência de si singular, ela, para Hegel, não é mais ilusão, ou alienação, no
momento da morte seu ser deixou de agir e, carente de pensamento se dissolve como
individualidade e seu agir passa imediatamente para a responsabilidade de outro.
Parece-nos em relação à instrução ética, que a morte do outro requer um
momento de cuidado ou de solicitude para o inexistente, ao sobrevivente cabe o
aprendizado de aprender a cuidar. Nesse sentido, Creonte e Ismene puderam aprender
com a tragédia, que na questão do querer viver em comum a pessoa tem que valer-se da
boa vontade a fim de tornar-se mais solícito com e para o outro.
Nussbaum é outra autora, citada por Ricoeur, que analisa Antígona sob a
perspectiva hegeliana. Fomos buscá-la para tentar entender a questão da convicção.
Essa autora assevera que tanto Creonte como Antígona tem um ponto de vista unilateral
e estreito em relação a sua descrição do que tem importância à vida. A filósofa
considera que cada um dos protagonistas ao se restringir a uma convicção inflexível nos
evidencia valores importantes que o outro recusou a levar em conta. Ela diz que Hegel
fez uma leitura correta de Antígona, mas cometeu um deslize ao não acentuar o fato de
que a escolha de Antígona é superior a de Creonte. A filósofa menciona que para Hegel
situa os dois protagonistas agiram igualmente com imperfeição em relação à estreiteza
do ponto de vista de cada um. Além disso, para Martha Nussbaum, Hegel tentou
eliminar da tragédia o sentido do conflito, um objeto que para ele era inaceitável para
uma concepção ética, mas, segundo a filósofa, a eliminação do conflito retira da
tragédia o aprendizado que se efetua. Diz Nussbaum que pelo percurso do conflito se
aprende por implicação a evitá-lo136.
A filósofa considera que em relação ao conflito moral central na peça somos
conduzidos a solucioná-los e Hegel tentou solucioná-lo por meio de uma concepção do
estado como ente harmonizador. Porém, para ela, mesmo que houvesse um governante
mais hegeliano do que Creonte, ainda assim haveria um profundo conflito. A autora diz:
136 Op. cit., A fragilidade da Bondade, p.58.
75
“a declaração dos triunfos humanos pela razão acaba por mostrar-se também um
documento condensado das limitações, transgressões e conflitos da razão.”137 Para ela
quanto menor for a nossa resistência em abrir-nos à presença do valor, da divindade, no
mundo, tanto mais certamente o conflito nos cercará. A autora considera que Hegel foi
um otimista ao tentar eliminar da tragédia a possibilidade do conflito em benefício de
uma síntese harmoniosa para o mundo. A filósofa assevera que uma vida livre de
conflitos seria carente de valor e beleza. Além disso, ela considera que jamais
poderíamos ser sensíveis ao mundo se não pudéssemos nos beneficiar das tensões ou
conflitos.
A família, segundo a perspectiva hegeliana, determina como imediato o
comportamento ou ainda a forma de agir de seus membros. Nesse aspecto, a ética
estende-se de forma natural e imediata apenas ao relacionamento circunscrito desses
membros com relação a toda família. Entendemos que para Hegel a família é carente de
consciência política, isto é, enquanto familiar o elemento individual não se atenta de que
em sua efetividade é parte de um povo. Nesse sentido, a família é também como um si
efetivo singular que se contrapõe a substância ética efetiva e universal. Partindo dessa
perspectiva, Antígona, a protagonista de Sófocles, seria uma consciência-para-si
singular de maneira que o seu agir e efetividade só teria a família por fim e conteúdo.
Nesse aspecto, a heroína não teria conseguido abrir seu ponto de vista para além de seus
horizontes familiares, porque sua visão era vinculada restritamente ao bem familiar.
Paul Ricoeur está de acordo com Steiner quando este assevera que nos limites do
cedível há valores que são intratáveis ou inegociáveis. Todavia, assevera que é preciso
concordar com Hegel de que a visão de Antígona é tão estreita quanto à de Creonte.
Para Ricoeur ambos têm como ponto de sua experiência-limite uma simplificação da
amizade. Nesse aspecto, nosso autor considera que o sentido de philos tanto para
Creonte como para Antígona é bem estreito. Para o primeiro a amizade se limita a ser
amigo do cidadão e para a segunda a amizade tem um vínculo estreito com o irmão
morto. Consequentemente a amizade é atribuída em desigualdade, já que
arbitrariamente ela é atribuída apenas parcialmente.
Em Aristóteles a amizade nem sempre é regulada pela igualdade. Quando ocorre
uma disparidade os amigos não permanecem mais amigos. O filósofo considera que a
maior parte das pessoas espera alguma coisa de seus amigos138. Nesse aspecto, por
137 Idem, p.65. 138 Op. cit., Ética a Nicômaco, trad. Edson Bini, Ed. Edipro, livro VIII – parágrafo 5 a 9 p.222 a 228.
76
exemplo, “um homem poderoso pode aguardar de seus amigos a honra e a bajulação
como objeto de afeto”. Assim, ao recebê-las retribui com benefícios vindouros. Os
escritos aristotélicos, em relação à amizade entre irmãos, diz: “irmãos tem tudo em
comum139”. Parece-nos que o filósofo grego compreende que é mais deplorável recusar
auxílio a um irmão do que a um estranho. Talvez, por analogia, possamos dizer que
seria apropriado às reivindicações de justiça ser atendidas de modo mais justo quanto
maior for o grau da amizade.140 Na tragédia Antígona, por exemplo, Creonte, que está
no exercício do poder, escolhe governar bem e fazer justiça, apenas, para aqueles que
são considerados amigos.
Nesse sentido, ter-se-ia a impressão de que é injusto um governo justo basear as
suas ações, mantendo o exercício do poder em função de proporcionar benefícios
somente aos amigos. Uma ação desse tipo poderia provocar um grito de basta e acabar
de modo trágico. Nesse aspecto, a prática da justiça dar-se-ia por meio de uma
perspectiva parcial e inteiramente estreita em relação às reivindicações de justiça, o que
poderia dar origem a desobediência, como, por exemplo, um desacato à lei. Parece-nos
que a ideia de justiça condiz com um sentimento de amizade, em relação ao exercício do
poder, que se estende a todos. O respeito de um governante devido ao povo governado
deveria ocorrer em uma hierarquia inversa, isto é, de cima para baixo e por
reconhecimento mútuo de baixo para cima. Por um lado, a pessoa governante, mantém
para si a responsabilidade de respeitar o sofrimento de seu povo, buscando em suas
ações uma alternativa para amenizar esse sofrimento. Por outro, ao respeitar, torna-se
moralmente, por reconhecimento, um indivíduo respeitado ou estimado.
Há dois pontos nos escritos de Ricoeur que consideramos essenciais nas ações
humanas. A autonomia e o conflito, a primeira pela liberdade e responsabilidade que
envolve as escolhas, o segundo porque tem relação às convicções e se bem ponderadas
podem dar origem a uma sabedoria prática. Em Antígona os dois protagonistas agiram
movidos por uma lei estabelecida pela própria convicção. A autonomia de poder
escolher vinculou as ações às paixões de cada personagem. O resultado das escolhas foi
o desrespeito reciproco. Parece-nos que Creonte ao desconsiderar os sentimentos e
sofrimentos de Antígona em relação às tradições familiares, as quais ela tanto desejava
preservar, provocou um sentimento de indignação em Antígona. Após a decisão do
governante a jovem acirrou-se nas próprias convicções do justo. O problema é que os
139 Idem, p.229. 140 Ibid. p. 183, 156.
77
dois pretendendo ter a posse da razão e da verdade como uma afirmação incontestável e
universal, desconsideraram que essas convicções poderiam não passar de simples
opinião. Temos a impressão de que se um deles tivesse feito um esforço para diminuir a
própria indignação recorrendo a algum tipo de mediação ética possivelmente pudesse
dar à efetuação das regras um sentido de ponderação. Nesse caso, talvez tivessem mais
prudência no momento de reclamar os próprios direitos.
Em relação à Antígona, Ricoeur considera que afluem duas questões na moral da
justiça: primeiro “a pretensão universalista ligada às regras”; depois, “o apoio dos
valores éticos nos contextos históricos e comunitários para a efetuação das regras”. Para
ele, essa pretensão de universalidade vinculada às regras tem, em Kant, um sentido que
encontra proximidade com o termo autonomia. Todavia, diz que o critério universalista
utilizado por Kant para estabelecer o princípio moral no princípio político tem um uso
restrito. Para o autor, a autonomia é um termo que Kant pluralizou e moralizou
tornando-se um princípio político.
A autonomia, segundo Ricoeur, é vista, por Kant, como uma saída do homem de
sua menoridade, abrindo a possibilidade de se fazer uso do próprio entendimento. Pôr-
se em posição de menoridade, sem servir-se da própria razão e sujeitando-se a
orientação de outro é culpa do próprio homem. Já que não há nenhum Estado de direito
com o poder de impedir o homem de fazer uso livre da própria razão.141 Nos termos
kantiano, “pensar por si mesmo” tem o significado de procurar em si mesmo a soberana
pedra de toque da verdade (isto é, a sua própria razão). Sendo que a máxima que manda
pensar sempre por si mesmo é o esclarecimento [Aufklärung] que é a sabedoria da
razão142. Para o filósofo francês a autonomia kantiana é um procedimento formal da
razão que consiste em se ter a liberdade de pensar. Essa liberdade embora se mantenha
incólume à coação de outras consciências morais e não precise submeter-se à lei fora de
si mesma, seu modo de agir estará atrelado aos regimes de liberdades estabelecidos pelo
Estado de direito de um governo143. Nesse sentido, para Ricoeur o sentido de autonomia
kantiano que medeie à prática de justiça se restringe a um formalismo universal da
justiça. Embora seja possível pressupor-se que haja um critério de autolegislação de
cuja aproximação atravessa a regra da justiça no plano das instituições, por
reciprocidade ela também está presente no plano das relações interpessoais144. Kant
140. Op. cit. O si mesmo como um outro, p. 183, 322. 142 Idem, p. 61 há uma nota de rodapé do texto 3 significando orientar-se no pensamento. 143 Ibid,70. 144 Op. cit., SA, 1991, pp. 320, 321.
78
considera que a autonomia da razão possibilita ao homem fazer uso seguro e bom de seu
próprio entendimento. De posse dessa autonomia em relação ao pensamento ele se torna
sábio e capaz de criticar a maneira como o Governo conduz a política, porém mantém-
se passivo e obediente quando está em exercício de um cargo ou função a ele confiada.
O filósofo francês assenta o princípio da autonomia no plano das relações
interpessoais, por ser mais frutífero; esse plano suscita-nos em relação à autonomia
kantiana uma reflexão moral partindo de uma idéia de justiça que estabelece por
princípio a idéia de respeito devido às pessoas. Ricoeur lembra-nos de que o princípio
de autonomia preconizada por Kant no início dos Fundamentos da Metafísica somente é
posta no fim do percurso da reflexão moral kantiana. A idéia de autonomia encontra-se
desenhada no reconhecimento da regra de justiça e da regra de reciprocidade. Nestas, a
liberdade é afetada pela própria lei que, segundo Ricoeur, se dá como se a própria
posição de autonomia não pudesse ser pensada sem a “auto-afecção”, isto é, sem a
própria manifestação imediata. Essa afecção, para Ricoeur, vincula-se ao respeito.
Quando este se movimenta e torna-se exaltado, ele afeta a nossa sensibilidade de modo
radical, de modo que essa radicalidade destrói a nossa disposição para o bem e afeta a
nossa capacidade de agir por dever.
Além disso, ele se detém nessa questão moral e política da autonomia
vinculando-a ao plano das relações pessoais a fim de tentar mantê-la conciliada com o
termo receptividade. Nesse aspecto, Ricoeur reinterpreta o sentido da autonomia
considerando-a a partir do seu sentido de responsabilidade. Ricoeur põe destaque na
nessa vinculação, porque, para ele, Kant deixou de considerar a responsabilidade pelo
liame da regra de solidariedade na “reciprocidade da justiça”145. Nesse sentido, a
autonomia torna-se solidária, ao encontrar-se atrelada à regra de justiça e à regra de
reciprocidade. Nosso filósofo considera que a efetuação da autonomia pela necessidade
de uma vinculação exterior com as regras, não pode ser uma autonomia
“autossuficiente”. Nesse aspecto, a autonomia será marcada por uma gerência do
sistema moral e jurídico. Ela, então, será requerida pela instituição e recolocada sob a
forma de um sistema formal jurídico, como conceito jurídico, estabelecido como uma
máxima universal que interpretada se adéqua para cada situação singular.
O princípio de autonomia é solicitado pelo sistema jurídico quando há conflitos
moral em nome da responsabilidade. A autonomia, nesse plano é formulada como um
145 Idem, p.322.
79
princípio universal ligado ao respeito devido às pessoas como seres racionais e
históricos.
Pelo respeito à historicidade de cada um o princípio de autonomia, segundo
Ricoeur, se aproxima por reflexão ao sentido de contextualismo. Nesse aspecto, a
autonomia contextualiza-se quando se manifesta como respeito no plano das relações
pessoais. Entretanto, quando há uma ruptura entre o respeito da lei e o respeito às
pessoas, os conflitos parecem fluir com mais intensidade. O conflito pode dar origem a
graves tensões chegando às vias de confrontações físicas se não tiver um elemento de
sabedoria prática. Este recurso ético dá-se de modo contextual histórico e serve para
refletir sobre a origem dos conflitos, no momento em que há uma confrontação e é
preciso saber deliberar moralmente em favor do que é justo.146
Segundo, Ricoeur, a regra do respeito consiste em aprender a ceder ao impulso
de impor a própria convicção ao outro, como se a nossa convicção fosse uma verdade
absoluta. Ele diz que é dificultosa a tarefa de corrigir os impulsos de impor as próprias
convicções. Não é fácil porque ponderar exige reflexão; o sacrifício de se conter em
favor do respeito ao outro é um intento que poucos estão dispostos. Para o autor, a regra
de respeito exprime uma convicção ponderada. Mas, será que é possível de se manter
uma regra justa de reciprocidade; sem o desrespeito a convicção íntima de cada um e, de
modo que no consenso haja um valor estimado bom para ambos? No caso de Antígona
a voz do coro e a do conselho poderia ser ouvida, se tivesse sido ouvida, as ações teriam
tido uma opção para saber valorar o estimado bom, todavia, ninguém soube ouvir e cada
um, dos protagonistas, acabou do lado trágico da ação tendo por consequência o
sofrimento.147
A discussão de Ricoeur, nessa instância do respeito, alarga-se também pela
possibilidade de se pensar o sentido de justiça desvinculando-o o sentido de
responsabilidade no plano da jurisprudência do valor moral de culpa. Ricoeur entende
que para se pensar o conceito de justiça pelo viés da responsabilidade é preciso
introduzir as questões simbólicas da linguagem, coisa que até o momento não foi feito.
Para o filósofo francês a abrangência do sentido de culpa e responsabilidade no plano da
justiça tem um contexto maior do que o da ordem e da lei.
146 Ibid, pp.332, 333 147 Op. cit., SA, 1990, p.284.
80
2.2 A responsabilidade e a Culpa
a) a responsabilidade
Paul Ricoeur busca compreender a noção de responsabilidade a partir da
definição mais comum que lhe é dada no campo jurídico, em termos de duas
obrigações: a obrigação que alguém tem de reparar o dano que causou por sua falta
(culpa/erro) e/ou a obrigação de suportar o castigo, sofrer a pena. Aquele que é
submetido a essas obrigações se torna responsável.148 Ele assevera, todavia, que a noção
contemporânea de responsabilidade não se limita a essas noções, ela é um conceito que
se encontra fragmentado e, por isso, merece um exame mais detalhado fora dos limites
da ideia de responsabilidade deixada por Kant.
O exame desse conceito será feito pelo autor a partir de duas das perguntas
consideradas importante: na primeira ele se indaga sobre “o que” nos torna responsável
pelas próprias ações e suas consequências? E na segunda, ele quer compreender se a
responsabilidade tem um vínculo inseparável à ação ou se ela é somente uma imputação
feita ao agente.
Segundo o filósofo, no adjetivo responsável incluem-se diversos complementos,
podendo aparecer imputações que em última instância pode, por exemplo, se
caracterizar alguém sendo responsável por seus atos, mas também se tornando
responsável pelos outros na medida em que estes são postos sob os seus cuidados.
Ricoeur alerta que, sob esse aspecto, corre-se o risco de podermos ser considerados
responsáveis por tudo e por todos. Sua dúvida é dirigida ao aspecto da possibilidade de
uma responsabilidade total em relação aos outros, para o autor, uma responsabilidade
deste tipo ganharia uma conotação de obrigação, encargos e compromissos. E o
problema é que ao transformar o sentido de responsabilidade em obrigação de fazer
algo, esse significado extrapolaria o âmbito jurídico cuja imputação requer a reparação e
a punição.149
Segundo o autor, a responsabilidade pensada no âmbito das mentalidades
possibilita que haja uma reflexão de um modo muito mais profundo do que pensá-la
pelo aspecto formal do conceito. Como já dissemos o plano das mentalidades possibilita
às ideias um confrontamento em diferentes ângulos argumentativos, inclusive pela
perspectiva da fenomenologia hermenêutica de Ricoeur. Sendo assim, tomará o termo,
considerando-o primeiro sob o ponto em que ela se apresenta em uma circunstância
148 Idem, p. 43. 149 Ibid, p. 34
81
autodesignativa capaz de imputar-se a autoria das próprias ações; nesse aspecto, o
sentido de responsabilidade recebe um significado de ser capaz de responsabilizar-se
autor de uma ação. O termo responsabilidade vincula-se ao ato de imputar
deliberadamente uma ação de modo que seja possível torna-se eticamente um indivíduo
responsável.
Esse modo deliberado de responsabilidade tem correspondência com um sentido
em que ser responsável seria o mesmo que ser ético, de maneira que ao designar-se
como autor ou agente da ação também se designa como aquele capaz de responder pelas
ações.
Para Ricoeur quem se designa responsável falando age. Assim, ao se pronunciar,
por exemplo, “eu fiz” há dois acontecimentos: primeiro, no plano da ação, há nesse
pronunciamento um ato de responsabilidade imputada pelo autor; segundo, no plano
linguístico, existe um pronome singular de primeira pessoa acompanhado de um verbo,
em que o indivíduo falante se designa autor capaz de ser responsável, por exemplo, por
sua fala, por seu fazer, etc.; nesse aspecto, ao dizer eu “fiz” aparece implícito no dizer
um comprometimento, não somente no dizer da linguagem, mas eticamente como autor
da ação.
Para o filósofo a pessoa que fala: “eu fiz”, está de um lado, atestando de algum
modo a alguém que é capaz de estabelecer por meio da própria fala uma ligação de
confiança com aquele que o ouve. De outro lado, ao fazer o pronunciamento considera
que quem se propôs a ouvi-lo tenha feito dando seu voto de confiança. Assim, quem
fala de certo modo pronuncia as frases como se estivesse atestando que se
responsabiliza por aquilo que foi dito. Ricoeur analisando o sentido de responsabilidade
pondera que em uma simples frase dita a alguém, há um grau de comprometimento de
quem fala tornar-se responsável, aos ouvidos do outro, por aquilo que diz. Portanto, ao
se dizer “eu” será preciso levar-se em conta que esse falante está se designando autor da
ação na fala. Nesse sentido, o falante se coloca na esfera da autoria da ação.150
Para Ricoeur, o que torna alguém responsável para o outro é a confiança na
atestação. Segundo o filósofo, a confiança tem um significado que se intercala no laço
social instituído por contratos, bem como pelos pactos de todos os tipos e pelas regras
de reconhecimento que ultrapassam o face a face da promessa de pessoa a pessoa. Isso
significa, segundo o filósofo, a possibilidade de pensar a responsabilidade no plano das
150 Ibid, p.46,47.
82
relações humanas, contexto em que cada ação se revela, ao mesmo tempo, como uma
iniciativa, como intervenção no mundo assim como um gerenciamento de si mesmo.
Tornar-se responsável pela própria ação é, nesse sentido, para o autor, um modo
de dizer “eu posso”. Essa potência que nos torna capazes de agir, pode ser ampliada
linguisticamente, de maneira que essa frase se conjuga também no sentido de “tu podes”
e “ele pode”. Esse alargamento em direção a outrem pode significar uma inclusão por
referência. Ricoeur compreende que nesse movimento de posicionamento do outro
como ser capaz é possível perceber que se podemos conjugar o verbo na primeira
pessoa, por exemplo, eu posso, também é possível conjugá-lo em segunda ou terceira
pessoa. Assim, podemos dizer, por exemplo, tu podes, ele pode. Por consequência,
teremos que admitir, fenomenologicamente, que por referência todos são capazes de
poder agir. Nesse aspecto, em que a ação ganha relevância, haverá um momento,
segundo Ricoeur, em que a ação de um confrontará a ação de outro; havendo, portanto,
para todas as pessoas que se relacionam um tempo de agir e outro de sofrer a ação.
Nessa concepção do homem que age e sofre ações, está implicada uma dimensão
ética e ontológica, pois quem age sob uma ética ou não é o ser humano que é presente
no tempo e espaço. A responsabilidade torna-se, nesse sentido e nesse plano, um
compromisso ético para o sujeito da ação. Põe-se destaque aqui ao deslocamento que
Ricoeur faz para o objeto da responsabilidade. A responsabilidade deixa de ter o seu
peso colocado apenas no plano institucional jurídico e dessa forma deixa de ser uma
responsabilidade universal passa reflexivamente também para o plano das convivências
diárias. Nesse nível, a responsabilidade se efetiva, conforme o autor, como significado
de “cuidado” para si com e para o outro. Cabe ressaltar que, para Ricoeur, “o cuidado”
exprime uma maneira de ser no mundo mais leve do que um sentido de
responsabilidade total por tudo e por todos. No cuidado não cabe o peso do dever, mas
sim de uma solicitude que na intenção ética opta pela vontade de uma vida boa para si e
com os outros151.
Pode-se dizer que a responsabilidade, nesse aspecto, deixa de ter um caráter
universal fixado ao uso jurídico clássico. O termo definido a propósito de um direito
civil é regido por um sentido de obrigação de reparar danos infringidos ao outro. Em
alguns casos a responsabilidade tem um sentido de culpa imputada como sentença
determinada pela lei; nesse sentido, tem-se a obrigação de suportar o castigo imputado,
151 Op. cit., O Justo 1, pp. 46 a 49.
83
é responsável, portanto, todo aquele que está submetido à obrigação de reparar e sofrer
pena. Em contraste, o cuidado é um modo ético singular do ser humano ser-no-mundo
em relação a si-mesmo e ao outro.
Ricoeur menciona que a palavra responsabilidade no sentido de imputar tem um
sentido latino significando “por na conta de” ou “creditar algo”. A palavra imputação
pode ser vista pelo viés em que o termo pode ter um sentido tanto positivo como
negativo. Desse modo, é possível creditar méritos ao termo imputar e não somente as
infrações.152
O filósofo considera que no termo imputar existe um movimento oscilando entre
retribuição e atribuição, por exemplo, quando uma ação é lançada ou atribuída a conta
de alguém, esse ato de atribuição imputa ao sujeito da ação a responsabilidade de
responder por todas as consequências provocadas pelo agir. Dessa maneira, o sujeito
terá como obrigação retribuir a ação reparando-a. O filósofo considera que é preciso
considerar a metáfora da “conta” – “lançar [a ação]” por assim dizer à conta de alguém.
Ele enfatiza que “a metáfora da conta é uma possibilidade de fixar o conceito
imputação153”.
O autor assevera que o sentido de imputação teve uma contribuição da teologia.
Nesse sentido, o conceito não era compreendido como falta, mas como méritos
adquiridos154. O filósofo faz alusão ao conceito de imputação vindo do contexto
teológico; com Pufendorf o sentido da palavra imputação ganha um significado
principal que recaí na palavra “capacidade” do agente. Diz Ricoeur:
“Essa noção de imputabilidade – no sentido de capacidade para imputação” (moral e jurídica) – constitui uma chave indispensável para compreender a preocupação de Kant em preservar as articulações cosmológicas e éticas155 [...] do termo imputação, na qualidade de juízo de atribuição de uma ação censurável a alguém, como seu autor verdadeiro. (RICOEUR, 2008, O justo 1, p.39) 156”
Ricoeur menciona que o conceito de imputabilidade já era conhecido antes do
termo responsabilidade ter o seu emprego conhecido fora do contexto da teoria política.
Porém, atualmente é o sentido de responsabilidade que se tornou mais conhecido e
costuma ser empregado no sentido de imputação. Como já foi dito, a idéia de
responsabilidade fragmentou-se e requer uma reestruturação. Já se sabe que um dos
motivos da fragmentação do conceito deve-se, segundo o filósofo, a maneira
152 Ibid, pp.33 a 61. 153 Ibid, p.33 a 61. 154 Ibid, p.38 155 Grifos do autor. 156 Idem p.39
84
diversificada como a palavra foi interpretada. Porém, para Ricoeur, é a idéia de
espontaneidade livre, deixado por Kant, que está implicada no conceito de imputação
que mais contribuiu para a fragmentação da palavra. Ricoeur compreende que é
possível convergir o sentido de responsabilidade/imputação para uma teoria que atribui
o sentido de responsável ao homem que atua e sofre a ação. Para o filósofo a teoria é
uma contribuição da filosofia analítica, da fenomenologia e da hermenêutica. À
primeira Ricoeur atribui à teoria de Strawson, denominada ascription, que significa
atribuir um predicado designado pela ação a alguém. Para Ricoeur essa questão tem
relação com a questão entre sujeito e predicados dos particulares de base. Segundo
Ricoeur, essa teoria tem um sentido de imputação significando atribuição, nesse
aspecto, a teoria não considera o imperativo de obrigação moral.157
A palavra responsabilidade recebe de Ricoeur um sentido de imputação,
contudo, ela é vai além da operação predicativa que consiste semanticamente em
atribuir um predicado ao sujeito. Para Ricoeur, o sentido de ascription de Strawson não
se preocupa em perguntar pelo sujeito da ação e, perguntar por “quem” difere da idéia
de perguntar “que”. O filósofo francês considera que saber a identidade de quem é o
autor implica em poder predicar ao autor a obrigação de reparar e ou sofrer a pena. O
significado de responsabilidade é pensado por Ricoeur em termos linguísticos, pelo viés
predicativo, porém, é analisado, sobretudo, pelo viés da ética que está implícita na
atribuição predicativa.
Destaca-se num breve discurso, em que a pessoa se designa como autor, dois
pontos no agir: primeiro, uma ação não se coloca sozinha ela exige um sujeito ativo
para assumir a capacidade de executá-la. Desvelada a figura do sujeito da ação, torna-se
necessário perguntar com que intenção a ação foi executada e por quê. Para Ricoeur o
motivo ou o que causou a ação é mediado por uma força que impulsiona o desejo de
agir. Para o autor desejar-agir tem uma intencionalidade que somente pode ser atribuída
ao sujeito que age e não a ação propriamente dita. Com a inserção de uma
intencionalidade a ação deixa de ser um simples acontecimento descritivo para receber
um “status” de acontecimento vinculado ao raciocínio.
157 Ibid, p.56.
85
No plano da fenomenologia hermenêutica, a ação pede que se perguntem quem
assume a responsabilidade pela ação que se passa no mundo; nesse sentido, a ação
desdobra-se do vínculo analítico de o que e por que da ação para que se procure saber a
quem deve ser atribuída à ação. Segundo Ricoeur, ao fazer referência à ação tendo-a
como um acontecimento no mundo que se passa motivado pela vontade/querer do
sujeito, a questão da ação deixa de ser um acontecimento apenas conceitual para tornar-
se um fenômeno que se revela no plano ontológico. Nesse plano, as ações tornam-se de
certo modo correlativas ao plano do fazer e ser capaz ou poder fazer tem relação com a
noção de pessoa, já que é ela a responsável por mostrar a sua própria identidade na
autoria da ação158. Se esse sentido for estendido ao outro pelo reconhecimento de que
o outro também é capaz de assumir para si a responsabilidade das ações cometidas
respondendo por elas. A responsabilidade torna-se, nesse nível, diferente de culpa,
podendo ser responsável por uma ação sem que seja culpada por ela.
Para Ricoeur a responsabilidade civil precisa ser reformulada como conceito
jurídico, já que a idéia de culpa é inapropriada juridicamente porque ela é um
sentimento que diz respeito à condição moral do sujeito159.
Em relação à questão de sermos responsáveis por mais alguém além de nossas
ações? Ricoeur assevera que somos responsáveis pelo frágil. – Aqui a responsabilidade
entra no plano moral – a responsabilidade aproxima-se da idéia de solidariedade – O
que não quer dizer que se é responsável por tudo e por todos incondicionalmente. O
filósofo considera que seria uma dificuldade para o sentido de responsabilidade se não
se sopesasse um tempo de duração para a idéia de solidariedade. Nesse sentido, uma
responsabilidade solidária ilimitada, em que se torna responsável por tudo e por todos,
deve ser rejeitada, simplesmente por que não é possível imputar a reparação estendendo
ao infinito. Para Ricoeur, é preciso lembrar um preceito grego que diz: “nada em
demasia”160.
Por fim, consoante Ricoeur um conceito de responsabilidade como imputação
implica na idéia de risco; o que torna o sentido de responsabilidade frágil à medida que
não há garantias de que o risco e a imputação possam sobrepor-se e se reforçarem
mutuamente. Para amenizar os efeitos colaterais do risco, Ricoeur considera que talvez
158 Op. cit., SA,1991, p. 73 a 107 159 Idem, p. 73 a 107 160 Op. cit., O justo1, p. 60.
86
a solução seja compartilhar a idéia de responsabilidade com o sentido de phronésis ou
sabedoria prática que permite desenvolver um sentido de prudência.161
Compreendemos que se essa sugestão for aceita como válida; então os teóricos
da responsabilidade cujas idéias envolvem o sentido de imputabilidade, de
solidariedade e de risco partilhado poderão encontrar um apoio e incentivo para fazer
do conceito de responsabilidade algo além da idéia que consiste em obrigação de
reparar ou de sofrer a pena162.
b) a culpa
O sentido de culpa é analisado por Ricoeur a partir do termo culpabilidade.
Nesse aspecto, ela é compreendida como um sentimento que aparece a partir de uma
tomada de consciência. De acordo com Ricoeur, o sentido de “consciência é não
somente consciência da percepção e da atividade, mas consciência de vida. 163” Em
relação à culpabilidade, o autor considera que existe apenas um tipo: a moral. O
filósofo compreende que ao julgar e sancionar uma culpa por um dado crime; o que a
justiça de fato faz é deliberar a responsabilidade do ato e impor uma sanção se o ato não
estiver condizente com a lei. Ao julgar a qualidade do ato como culpado ou inocente, a
justiça tenta impor os valores morais vigentes da época, impondo valores considerados
bons ou maus de acordo com o contexto político do julgamento.
A justiça no ato de julgar tem por definição alguns valores morais considerados,
por ela, universais, todavia, para Ricoeur, é preciso ressaltar que eles foram escolhidos e
sancionados conforme os costumes e organização social de uma época. Já foi dito que a
teoria da justiça serve-se dos aspectos morais para fundamentar a lei e dar a ela um
caráter moral imutável e universal. A prática de justiça é um elemento facilitador, de
caráter objetivo e coercitivo, que faculta o julgamento para impor sanções à falta de um
valor moral e não à culpa.
A culpa, para Ricoeur é um sentimento individual que é mantido pela
consciência; que pode ser “considerada variável, circunstancial, espontânea e
eminentemente subjetiva”164. Assim, a responsabilidade de um crime, por exemplo,
pode ser imputada, mas em relação à culpa, cada qual precisa sozinho ter par si a
tomada de consciência. O filósofo compreende que “a vida humana não é moralmente
161 Idem, p. 61 162 Ibid, p. 61 163 Op. cit., SA,1991, p.218 164 Op. cit., O justo 1, p. 200.
87
neutra”165, nesse aspecto, todos nós estamos, de certo modo, vulneráveis às experiências
morais que exprimem, por exemplo, a honra e a vergonha, a dignidade e a indignidade,
o sublime e o infame etc. Ricoeur considera que estes pares opostos são partes das
expressões da consciência comum dos indivíduos; contudo, a partir desses binários é
que a pessoa aprende a formar avaliações que implicam em julgamento moral.
Nesse espaço moral da consciência, é possível uma independência da obrigação
da lei. Para aquele que deseja “uma vida boa” acoplada à idéia de bem, é possível
exercer sobre si mesmo uma autonomia acoplada a uma sabedoria prática para orientá-
lo no percurso de um bem viver.
Páll Skúlason assevera que, para Ricoeur, a culpabilidade designa uma tomada
de consciência em que há o reconhecimento do mal cuja implicação aparece na
alienação da liberdade. A liberdade aparece, nesse caso, diretamente vinculada à
experiência do sujeito na questão da culpabilidade. O autor diz que, para Ricoeur, a
liberdade é paradoxal; o paradoxo da liberdade consiste em ser simultaneamente
consentimento e recusa. Nesse sentido, Skúlason assevera que a liberdade na questão
da culpabilidade é concebida, por Ricoeur, como uma experiência que, às vezes, se
apresenta como alienação efetiva da própria liberdade e, outras vezes, pelo esforço de
liberação da própria liberdade. Parece-nos que o sujeito experimenta a sensação de
liberdade de dois modos; primeiro sem se dar conta da própria liberdade e num segundo
momento, experimenta-a pelo dilema da negação da liberdade ou esforçando-se para
tentar agir com autonomia. Fizemos uso da palavra autonomia em lugar da palavra
liberdade, porque ela nos pareceu mais apropriada. 166
Em Ricoeur, a liberdade enquanto experiência do sujeito aliena-se ou desfaz-se
diante de si mesma; nesse aspecto, o sujeito é afetado pela liberdade quando ela
apresenta-se como recusa dela própria. É importante lembrar que para Ricoeur as
experiências fazem parte da vida humana, de tal forma, que a liberdade é negada ou
afirmada pelo sujeito. Assim, é a pessoa que em sua posição paradoxal diante da
liberdade, afirma a sua liberdade no próprio ato de negá-la.
Em relação à culpabilidade, consideramos que para Ricoeur, a liberdade está
alienada da sua própria condição de liberdade, de maneira que a culpa apresenta-se
como um sentimento que se expressa em forma de cativeiro. A pessoa, para ele, age
165 Idem. 166 SKÚLASON, P. Le Cercle du sujet dans la philosophie de Paul Ricoeur, 5. Le conflit et l’instance ontologique – Finitude, culpabilité et absolu – p.316.
88
alienada da culpa, mas quando toma consciência desse sentimento, o indivíduo culpado
sente-se prisioneiro do próprio sentimento de culpa. Além disso, o autor considera que a
pessoa cativa do sentimento de culpa somente é libertada desse sentimento pela
confissão da culpa. Ao narrar o estado de culpabilidade, simbolicamente a pessoa sente-
se purificada. 167
O filósofo assevera que a narrativa é a forma confessional da culpa. Para
Ricoeur, a culpabilidade tem um caráter que se expressa pelo viés do sagrado, dos
símbolos e dos mitos. Nesse aspecto, a mitologia e o sagrado são formas de linguagem
simbólicas que abrem a possibilidade para a consciência expressar uma experiência
interior e singular, inacessível à linguagem comum, em uma expressão simbólica de
exterioridade.
A culpabilidade, para Ricoeur, assim como a idéia de justiça, tem a sua origem
no mito. Porém, no mito da falta e do pecado. A culpa, simbolicamente, traz em si um
sentido de sujo ou impuro. O filósofo considera que o homem culpado tem a sensação
de estar sujo por ter cometido uma falta moral; ela representa de certo modo, um pecado
com o sagrado. A pessoa, portanto, que se sente culpada, também se sente impura e suja
ou em pecado; a fim de redimir-se, o homem confessa-se seu ato. Ao confessar sente-se
redimido ou purificado diante do Puro bem. A culpa, segundo Ricoeur, tem a
necessidade de purificar-se novamente, o sujeito culpado deseja confessar a sua culpa
para obter o perdão do mal cometido. Ricoeur diz que a culpa é uma experiência
humana que se revela pela confissão. Gostaríamos, de manter ao lado da palavra
confissão o termo atestação; pois, essa palavra tem uma dimensão, que de acordo com
Ricoeur, guarda o sentido de confiança. Atestar é dar o testemunho ou testificar com
veemência algo que considera verdadeiro. Parece-nos que a atestação tem um
significado que está mais próximo do sentido de responsabilidade e o significado de
confissão mais aproximado ao sentido de culpa.
Em relação ao ato confessional é notável dizer que ele traz um sentido equívoco
e ambíguo, dessa maneira não expressa todas as experiências da culpa. Além disso, o
ato confessional tem que ser uma ação livre, isto é, a confissão não pode ser uma ação
obrigada. Ao contrário, ela precisa ser um ato voluntário cuja iniciativa parte do próprio
sujeito que se sente culpado e não suportando a aflição de viver com o próprio
sentimento de culpa, escolhe alguém para poder confessar ou narrar as suas experiências
167 Op. cit., L1, A culpabilidade Alemã p, 71 – Violência e linguagem, 59 - Ética e moral, 145. – O justo 1, Consciência e a lei. P.200.
89
de culpabilidade. Quando a pessoa decide-se por expor aquilo que está causando-lhe
aflição e angústia ela ao fazê-lo está explicitamente diante de sua confissão que é uma
atestação de sua responsabilidade. Ricoeur assevera que para esse intento ocorrer é
necessário estabelecer entre os parceiros da relação interpessoal um vínculo de
confiança recíproca. A confiança será o elo entre os dois interlocutores que iniciarão um
diálogo.
Cabe ressaltar que a confissão é propriamente para o culpado um alivio. Porém,
a exposição do sentimento de culpa não implica em um pedido de perdão. Nem
tampouco, para Ricoeur, o perdão estabelece para o culpado o esquecimento da ofensa e
da ação. O filósofo lembra-nos que nessa questão do perdão se houver o esquecimento
da ação, então é possível que outra ação parecida volte a acontecer trazendo danos a
outrem. Em relação à culpa somente o próprio culpado é quem tem o poder de aliviar-
se. Ele pode exprimir a sua culpa ao dizer, por exemplo, “sou culpado”. Nesse momento
do dizer, torna-se responsável, já que, nessa atestação pelo dizer, está imputando
publicamente a si mesmo um sentimento de culpa. Esta aparece à consciência como
uma ação que para si é moralmente repreensível. Admitindo-a publicamente, o culpado
mostra ao outro que tem por desejo responder moralmente por suas ações168.
Lembramos que, para Ricoeur, o homem torna-se culpado na medida em que
toma consciência moral de sua culpa. Sob essa perspectiva, Ricoeur considera que a
culpabilidade tem um caráter moral e individual. Alguém não pode imputar a culpa ao
outro; pois, ela implica na tomada de consciência e isso acontece de maneira singular e
interior. A culpa é, portanto, um sentimento que somente afeta a pessoa quando a
experiência de vida já ganhou um significado moral, ela se revela, ainda, nas
experiências de alienação, por exemplo, as experiências das ações humanas
consideradas absurdas, nos sofrimentos, nas angústias.
O sujeito que age e sofre pelo caráter da culpa, apenas consegue expressar a sua
culpabilidade pela mediação específica dos mitos e dos símbolos. Portanto, a
culpabilidade tem um caráter específico que somente torna-se expressável pelos
símbolos e os mitos que permitem interpretar o mal na história.
O problema é que o sujeito não consegue confessar a sua falta por meio da
linguagem lógica, já que ela não consegue dar conta das contradições e das revoluções
íntimas da experiência da culpa. Parece-nos segundo Ricoeur que a culpabilidade tem
168 Idem, p. 200
90
uma dimensão ética e antropológica; e nesse sentido, não podemos esquecer que, para o
filósofo, é o homem o ser que procura se conhecer tentando compreender as suas
experiências eticamente e por analogia a dos outros. Assim, a culpa implica em atos e
em um agente capaz, tanto de referir a si mesmo dentro de um valor de bom ou de mau,
como de julgar moralmente as suas próprias ações, tendo por referência as experiências
boas ou más. 169
Assim, é possível dizer que a tomada de consciência é a unidade mais profunda
da culpabilidade, sem ela não há possibilidade de arrependimento, nem de uma
transformação ética mais profunda nas atitudes em relação ao outro. Convém esclarecer
que, segundo Ricoeur, a culpa é sempre do âmbito da moral. Nesse sentido, a lei pode
somente sancionar e julgar o crime, mas não tem controle sobre a consciência moral.
Desse modo, apesar dos canais de justiça ter o poder de deliberar sobre a questão da
responsabilidade, por exemplo, de um crime; o espaço judiciário é limitado, não
cabendo a ele decidir sobre a culpa; o crime somente é culpável enquanto falta moral.
Ele é um sentimento e, como tal não pertence ao espaço público, mas ao espaço moral
dos indivíduos.
A responsabilidade permanece como capacidade de suportar uma sanção, porém
a sanção de reparação tem uma significação moral e, a justiça fica limitada em estender
a sua jurisprudência aos sentimentos privados à própria pessoa. Não é possível para a
justiça deliberar, por exemplo, sobre a raiva, o medo ou a cólera. Estes sentimentos são
do mesmo modo que a culpa, segundo Ricoeur, restritos ao âmbito da moral. O motivo
dessa limitação consiste em serem os sentimentos um modo subjetivo e inapreensível do
humano e eles não são apreensíveis pela jurisprudência. Grosso modo, portanto, o
aparelho judiciário pode julgar o que se considera moralmente justo, ele pode até dizer
se alguém é moralmente culpável diante dos outros e responsabilizá-lo por sua ação; no
entanto, não será possível ao judiciário obrigar esse indivíduo a se sentir culpável diante
da própria ação criminosa. Consoante Ricoeur, para que a pessoa se sinta culpável é
necessário que ela mesma tome consciência e tomar consciência é algo pessoal e
depende do sentido moral. 170
169 Ibid, p.200 170 Tomamos a liberdade de retirar o sentido de tomada de consciência da apresentação da Fenomenologia do Espírito de Hegel feita por Henrique Cláudio de Lima Vaz em que para Hegel as figuras da consciência se desenham no horizonte de seu afrontamento com o mundo objetivo, isto é, em face da história e da dialética que se apresentam pelas oposições sucessões de figuras das experiências da consciência.
91
Capítulo 3 – O justo e o injusto no plano das mentalidades
3.1 Ética e Moral: a intenção de vida boa e a obediência às normas
O sentido de estimado bom e o conceito que se impõe como obrigatório será
abordado reflexivamente tendo como texto de base “Ética e Moral” (1990), ensaio de
Ricoeur. Como já foi dito, anteriormente, este estudo compõe a terceira das reflexões
reunidas em Leituras 1 – Em torno ao Político. Esse texto aplica-se em ultrapassar o
sentido opositivo entre uma ética de finalidade e uma moral do dever para poder
delinear uma perspectiva de uma “sabedoria prática”.171
O primeiro parágrafo, do ensaio citado, é reservado para explicar as diferenças
entre ética e moral e o porquê da distinção entre as duas. Grosso modo, o autor diz que
não há nada na etimologia das palavras e na história que exija algum tipo de distinção.
Para ele, os dois termos remetem à ideia de costume, ethos que vem do grego e mores
procedente do latim. Todavia, para ele, há uma graduação sutil que conduz o sentido de
ética para o que é “estimado bom” e o de moral para o que se “impõe” como
“obrigatório na lei”. Nesse aspecto, por convenção do filósofo, o termo da ética será
abrigado no significado de “uma intenção de uma vida realizada sob o signo das ações
estimadas boa”; o sentido de moral estará ao lado do que é assinalado pela obrigação,
isto é, penderá para a obrigatoriedade das normas e das interdições que põe acento às
exigências de universalidade e por efeito de coação. Portanto, a ética será reconhecida,
por Ricoeur, por um sentido de “vida boa” e a moral por um senso de obediência a
obrigação das normas; a primeira é uma herança aristotélica e a segunda um legado de
Kant.
Ricoeur diz que sem ter uma preocupação ortodoxa para significar os conceitos,
assumirá a perspectiva ética de Aristóteles, entendendo-a por um aspecto teleológico,
(télos, significando fim); e a ideia kantiana de moral, considerando-a pelo caráter de
obrigação da norma, tendo, assim, um ponto de vista deontológico, (deon com
significado de dever). Ricoeur preserva em sua teoria três momentos: o primeiro
consiste em se ter para a ética a prioridade sobre a moral; o segundo requer que se passe
imprescindivelmente à intenção ética pela triagem da norma; o terceiro define-se pela
171 RICOEUR, P. Leituras 1 – Em Torno ao Político, “Ética e Moral”, trad. Marcelo Perine, Ed. Loyola, São Paulo, 1995 p. 161.
92
legitimidade de um recurso da norma para a ética, em questão, quando a regra acarretar
em conflitos em que a única alternativa será uma sabedoria prática remetendo à
singularidade da situação. Nas próprias palavras do autor, portanto, seria:
1) a primazia da ética sobre a moral; 2) a necessidade para a intenção ética de passar
pelo crivo da norma; 3) a legitimidade de um recurso da norma à intenção ética, quando
a norma conduzir a conflitos para os quais não há outra saída senão uma sabedoria
prática que remete ao que, na intenção ética, é mais atento à singularidade das
situações. (RICOUER, Ética e Moral, pp. 161, 162.)172
3.2. “Visar à vida boa”: cuidado de si. Dos três momentos fortes da definição de “perspectiva ética”; a intenção ética é
a primeira e trata-se da questão de visar à “vida boa”. 173
A respeito da expressão aristotélica “intenção da vida boa”, o autor, enfatiza-a,
no modo gramatical do optativo e não imperativo, dando-lhe um sentido de aspiração:
“possa eu, possas tu, possamos nós viver bem!” O filósofo considera que se a palavra
“aspiração” for uma sugestão excessivamente fraca, então, poder-se-á utilizar a
expressão de “cuidado”, como: “cuidado de si, cuidado do outro, cuidado da
instituição.”174
Ricoeur põe em questão se não seria melhor começar a sua reflexão pelo sentido
de “cuidado do outro” em vez de “cuidado de si”. O autor insiste nesse ponto porque na
primeira expressão o termo si é, por ele, associado ao sentido de estima, no plano da
ética, e de respeito, na dimensão da moral. Também, porque em relação ao sentido de si,
ressaltado no texto, o filósofo assevera que não se deveria confundi-lo com termo
pronominal “eu”.
De acordo com o pensador existem duas coisas essencialmente estimáveis em
si mesmas: primeiramente a capacidade de agir intencionalmente; em segundo lugar,
pela capacidade de poder agir por iniciativa, introduzindo mudanças. Nesse aspecto, a
estima de si é o momento reflexivo da práxis. Para o autor, é “apreciando nossas ações
que apreciamos a nós mesmos como sendo autores delas” Ele considera que seria
172 Idem pp. 161, 162. Segundo Ricoeur o conteúdo referencial de vida boa é: “para cada um, a nebulosa de ideais e de sonhos de cumprimento com respeito à qual uma vida é considerada mais ou menos realizada ou irrealizada. É o plano de tempo perdido e do tempo reencontrado. Nesse sentido, é ‘em vista de que’ tendem as ações que tinham o seu fim em si mesmas [...]”. p. 210. “No plano ético é a adequação entre nossos ideais de vida e nossas decisões, elas próprias vitais [...]” p. 211. 173 Idem p. 162. 174 Ibid, p. 162. Obs.: O termo “cuidado” é de Heidegger, e será usado por Ricoeur, sem ortodoxia.
93
imprescindível produzir toda uma teoria da ação a fim de mostrar como a estima de si
acompanha a ordem e as subordinações das ações.
Embora, a questão do si possa remeter a um sentido de outro, segundo Ricoeur,
nesse estudo a preocupação é de estabelecer o primado da ética sobre a moral, isto é, da
perspectiva sobre a norma. Nesse sentido, ele iniciará a sua reflexão esclarecendo
primeiramente o sentido de a intenção ética ter a primazia sobre a norma moral. Para o
filósofo é preciso dar a esta última um lugar justo, sem que, no entanto, ela tenha a
posse da última palavra.175
Iniciaremos pela definição da “perspectiva ética” que é denominada, por
Ricoeur, de a perspectiva da “vida boa” com e para os outros nas instituições justa.
Como dissemos, essa expressão é dividida em três momentos. O filósofo considera que
a vantagem, para ele, de iniciar na problemática ética pela noção de “vida boa” é que
não precisará fazer referência direta à questão da ipseidade sob a aparência da estima de
si. Para o autor, a estima de si em sua primeira significação, na qual a avaliação de
certas ações estimadas como boas reportam-se ao autor dessas, sem a estrutura dialógica
que introduz as referências em relação ao outro, permanece em uma significação
abstrata. Do mesmo modo, a estrutura dialógica sem a referência as instituições justas,
fica também incompleta. A esse respeito, a estima de si somente tem uma significação
completa quando está delimitada pelos três aspectos.
O primeiro elemento da perspectiva ética é, para Ricoeur, o que Aristóteles
denominou de “viver bem”, isto é, a “vida boa” ou a vida verdadeira. Para ele a “vida
boa” é o que deve ser nomeado primeiramente por ser o próprio objeto da perspectiva
ética. O filósofo assevera que qualquer que seja a imagem que cada pessoa tenha feito
para si mesmo de uma vida realizada, esse será o télos, isto é, a finalidade última de sua
ação. O autor nos lembra de que na ética Aristotélica, o bem somente pode ser tratado
como algo particular da práxis, nesse aspecto, o bem é tratado com uma intenção que
serve para o agente de estabelecer uma boa prática para a sua ação; lembrando que uma
boa prática é sempre justa e equitativa. Assim, toda ética aristotélica supõe o uso bem
como fim último de sua ação, sendo que esse uso do predicado bom não é algo que se
satura.
Paul Ricoeur considera que guardaremos dessa herança aristotélica, duas
grandes lições: primeiramente tem-se um aprendizado com a ancoragem na práxis da
175 Op. cit. O si mesmo como um outro, p.202.
94
ética da perspectiva da “vida boa”. A segunda lição decorre da tentativa de Aristóteles
em constituir a teleologia interna para a práxis; princípio estruturante da perspectiva da
“vida boa”. Nessa reflexão aristotélica há um paradoxo segundo o qual a praxis, isto é, a
boa praxis seria para si mesma seu próprio fim, ao visar um fim ulterior. O problema
não resolvido por Aristóteles repousa na questão da escolha e da deliberação, esse
filósofo examina essa questão restringindo o alcance da deliberação. Ricoeur considera
que o paradoxo teria sido solucionado se tivesse sido encontrado “um princípio de
hierarquia, tal que as finalidades fossem de algum modo incluídas umas as outras, o
superior como o excesso do inferior”. De acordo com Ricoeur, uma solução oferecida,
por Aristóteles, quase que na forma de um esboço, refere-se a um modelo de sabedoria
prática, que os filósofos latinos traduziram por prudência, regulando e dirigindo o
caminho da vida do homem da phronésis e do phronimos176.
Para Ricoeur, essa praxis deve ser lembrada pela sua dimensão significativa
trazida por uma noção de regra constitutiva abrindo um espaço em que é possível
desenvolver apreciações de aspecto avaliativo vinculado aos preceitos do bem fazer.
Essas apreciações de qualificação propriamente ética são asseguradas por um recurso
que é o padrão de excelência da prática que estabelecem atividades coletivas de caráter
cooperativo. Nesse espaço de cooperativa partilhamos padrões de excelência que se
referem à perspectiva ética do bem viver. Nessa prática, os padrões de excelência
permitem, de um lado, que partilhemos a ideia de bens imanentes para pratica. Estes
constituem a teleologia interna à ação, no plano fenomenológico, isso corresponde a s
noções de interesses e de satisfação que fornecem o primeiro ponto de apoio ao
momento reflexivo de estima de si. Nesse sentido, para o filósofo, é no momento em
que apreciamos nossas ações que nos apreciamos nós mesmos como autores delas.
A vida boa tem as suas ações em um plano de vida que procedem de um
movimento de vaivém entre as ideias distantes e os domínios da prática. Cabe dizer que
para o filósofo “o sentido de vida recebe uma dimensão apreciativa e avaliativa do
ergon que qualifica o homem como tal. Este ergon está na vida, tomada em seu
conjunto, o que é o padrão de excelência de uma prática particular.”177
176 Op. cit. O si mesmo como um outro, p. 206 - obs. Os termos phronesis e phronimos de Aristóteles tem o sentido de boa deliberação, saber deliberar bem. Num sentido mais moderno, segundo Ricoeur: “diríamos é um trabalho incessante de interpretação da ação e de si mesmo que prossegue a pesquisa de adequação entre o que nos parece o melhor para o conjunto de nossa vida e as escolhas preferenciais que governam nossas práticas”; p. 211. 177 Idem, p. 209
95
Ricoeur chama de plano de vida a ligação entre o ergon do homem que é a
adequação para a execução da escolha da prática e os padrões de excelência escolhidos
como ideal de vida. O termo vida que aparece repetidamente nas expressões: “plano de
vida”, “unidade narrativa de uma vida” e “vida boa”, designam simultaneamente o
enraizamento biológico da vida e a unidade do homem completo, enquanto se aprecia
reflexivamente. Essa perspectiva, de acordo com o autor, segue os pressupostos de
Sócrates em que uma vida sem exame é indigna desse nome. Nesse “plano de vida” tem
um sentido voluntário, esse plano é para o homem um projeto existencial, cuja noção de
unidade narrativa insiste pela composição entre intenções, causas e acasos. O homem
em seu projeto de vida é um ser ativo e ao mesmo tempo passivo em relação aos
sofrimentos e as eventualidades da vida.
A vida boa é para cada pessoa um projeto quase indistinto de ideais e de sonhos;
em que há uma vida realizada e irrealizada, um plano perdido e outro reencontrado; é
enfim um espaço de possibilidades e de limitações, em uma constante tensão entre o
fechado da finalidade e o aberto da estrutura global da praxis. Para Ricoeur “o que se
pensa aqui é a ideia de uma finalidade superior que não deixaria de ser interior ao agir
humano”.178
Esse projeto de vida é, para o filósofo, um trabalho incessante de interpretação
da ação e de si mesmo. Para ele há muitas maneiras de inserir uma perspectiva
hermenêutica: primeiramente entre a perspectiva ética e nossas escolhas singulares
desenha-se um círculo hermenêutico em virtude do ir e vir entre a ideia de vida boa e as
decisões que assinalam a nossa existência. Nesse aspecto, é “como um texto no qual o
todo e a parte compreendem-se um ao outro”. Para Ricoeur, após a ideia de
interpretação é acresce a ideia de significação e de significação para alguém. Desse
modo, interpretar o texto da ação é para a pessoa interpretar-se a si próprio. No plano
ético a interpretação de si torna-se estima de si.
3.2. Viver bem com e para o outro: a solicitude
Ao passar para o segundo termo, nomeado por: “viver bem com e para os
outros”, o filósofo recorre ao termo solicitude. Segundo Ricoeur, a estima de si tem um
caráter reflexivo que implica em um desdobramento, no horizonte da “vida boa”, em
direção à solicitude. A questão é como esse componente da perspectiva ética se
178 Op. cit. O si mesmo como um outro, p.210.
96
desdobra na estima de si? No aspecto reflexivo sobre o horizonte da “vida boa” a
solicitude não pode ser pensada sem a estima de si, o desdobramento de uma para a
outra acontece na dimensão dialógica. Desse modo, a solicitude acrescenta à estima de
si as condições dialógicas subentendidas no próprio significado de solicitude em que
dizer si não é o mesmo que dizer “eu”, ao contrário, “o si implica em uma abertura em
direção ao outro de si a fim de que se possa dizer de alguém que ele se estima a si
mesmo como outro”. Para Ricoeur, somente por abstração é que se pode dizer da estima
de si sem tê-la posta em dupla com a questão da reciprocidade; do contrário haverá uma
exigência de um esquema cruzado requerendo a pronuncia de “tu também”. Esta pode
ser entendida, como, por exemplo, “tu também és um ser de iniciativa e de escolha,
capaz de agir segundo razões, [...] és capaz de estimar a ti mesmo. O outro, nesse
aspecto, é aquele que pode dizer eu como eu e, como eu, ser considerado um agente,
autor e responsável pelos seus atos. Do contrário, nenhuma regra de reciprocidade seria
possível.” 179
A reciprocidade tem um caráter singular transformando as pessoas, por meio do
reconhecimento, em seres insubstituíveis. Esse tipo de reciprocidade é a chave da
solicitude. Segundo Ricoeur, a reciprocidade em que um estima o outro tanto quanto a
si, aparentemente, se completa pela amizade; contudo, o filósofo nos alerta que é
somente por aparência, já que a reciprocidade não elimina certa dessemelhança.
Entretanto, a desigualdade é corrigida por um reconhecimento que restabelece a
reciprocidade, por exemplo, uma desigualdade que provenha da fraqueza ou do
sofrimento do outro, pode ser restabelecida por um sentimento de compaixão. A
compaixão, para ele, restitui à reciprocidade na medida em que, aquele que visivelmente
é o único a dar recebe mais do que dá por via da gratidão e do reconhecimento. A
solicitude restaura a igualdade no lugar em que ela não é oferecida, como na amizade
entre semelhantes.
3.3. Desejo por instituições justas
O terceiro termo implica, segundo Ricoeur, em “viver bem, com e para o outro,
em instituições justas”. Nesse sentido, a intenção que requer em se ter a vontade do
viver-bem abrange também o sentido de justiça. Este último é exigido pela noção de
outro que também tem o sentido de “tu”. A justiça por relação mútua estende-se para
179 Op. cit. Leituras 1, p.163.
97
além da fronteira interpessoal. Viver bem, para o filósofo, não se limita as relações de
mutualidades pessoais, esse viver estende-se à vida nas instituições. O autor considera
que a justiça exibe delineamentos éticos que não estão inclusos na noção de solicitude,
por exemplo, a exigência de igualdade diferindo da equidade por amizade.180
A respeito do sentido de instituição, o filósofo assevera que é preciso entender
por esse termo, num primeiro momento da investigação o seguinte: “todas as estruturas
do viver-em-comum de uma comunidade histórica, irredutíveis às relações interpessoais
e, contudo ligadas a elas num sentido específico, que a noção de distribuição –
encontrada na expressão ‘justiça distributiva’ – permite esclarecer.”181
O autor entende que se poderá compreender o sentido de instituição como um
sistema de partilha em que se repartem tudo o que se faz menção às vantagens e
encargos de direito. Esse caráter distributivo da instituição incita um problema que, em
um sentido mais específico, diz respeito às partilhas vinculadas ao sistema de
distribuição. Para o filósofo, tem-se de considerar que no plano da instituição os
horizontes são mais vastos e ampliados do que os das relações interpessoais de amizade
e de amor. Nesse sentido, a justiça institucional cujas partilhas são feitas por meio de
um processo de distribuição pode ter na intenção ética uma extensão ampliando o seu
campo de atuação; assim, a justiça ao estender-se eticamente para além de um face-a-
face tem na especificidade do “cada um” aquele a quem se destina ou reserva o que cabe
numa partilha justa, isto é equitativa.
Ricoeur considera que possivelmente as pessoas se assombrem com o fato de
não se falar de justiça exclusivamente no campo moral, incluindo para esse tema o nível
ético. Ele mantém-se abordando a justiça no plano ético em razão da própria inscrição
dela no sentido do justo na intenção da vida boa e com respeito à amizade pelo outro. A
primeira razão que legitima essa inserção é: “a origem quase imemorial da ideia de
justiça, sua saída do molde mítico na tragédia grega, a perpetuação das suas conotações
religiosas até mesmo nas sociedades secularizadas atestam que o sentido da justiça não
se esgota na construção dos sistemas jurídicos que ele suscita.” A segunda razão
consiste em um sentido de justiça que tem um laço recíproco com o de injustiça. Para o
pensador é pelo modo de reivindicação que se entra em contato com a dimensão do
injusto e o justo da justiça. 182
180 Idem, 164 181 Ibid, 164 182 Op. cit. Leituras 1, p. 165.
98
A primeira reclamação que se faz diante da justiça é a exclamação: “isso é
injusto!”. De acordo com o filósofo, o tratado da justiça nas Éticas de Aristóteles segue,
nesse ponto, o percurso de Platão. O problema consistirá em desenvolver um senso de
igualdade proporcional mantendo as inevitáveis desigualdades da sociedade no campo
da ética. A justiça distributiva enquanto equidade proporcional considera que cada um
receberá na medida da sua contribuição e de seu mérito. Nesse aspecto, para Ricoeur, é
inevitável que a ideia de justiça implique também em um sentido formal, pelo qual se
assinalará a seguir a moral. No momento, convém-lhe marcar que, para ele: “a justiça é
ainda uma virtude na via da vida boa, e no qual o sentido do injusto precede por sua
lucidez os argumentos dos juristas e dos políticos”.
3.3 A sabedoria prática: a justiça em ação
a) O conflito e a sabedoria prática
Começamos nossa pesquisa descrevendo a prática da justiça em relação às
ocasiões ou circunstância de conflito. Nesse sentido, mostramos, segundo Ricoeur, as
aplicações da ideia de justiça, em geral, nos canais e vias jurídicas em que a ideia surge
em situação de desacordo, divergências; mais amiúde surgem como contradições,
oposições ou luta de princípios, ou de proposta e atitudes, sejam quais forem os motivos
do conflito é o direito quem dá a forma do processo. Nas reflexões de 1990 “O trágico
da Ação” em Soi-même comme um autre e de 1991 em “O justo entre o legal e o bom”
em Leituras 1 em Torno ao Político, a noção de conflito é explorada, por Ricoeur,
tendo o aspecto do “conflito” como problemática do justo da justiça. Nesse aspecto, ele
apresenta-se na esfera da justiça em decorrência de situações singulares, por exemplo,
quando há um confronto entre convicções antagônicas. Ricoeur vincula esse confronto
aos aspectos de certa situação de julgamento moral, pois é ela que suscita uma reflexão
dentro do âmbito da prática política da justiça institucional.
Em relação ao conflito temos, segundo Ricoeur, no plano interpessoal, um
contexto prático cujas ações quando tem o caráter moral, geralmente, são fontes de
conflitos. Para o filósofo, é um obstáculo para a justiça quando os conflitos tornam-se
rígidos e inflexíveis a outros pontos de vista que sirvam de recurso para que a
moralidade possa tentar encontrar uma alternativa para conduzir as regras a um
99
julgamento moral em situação. 183 A respeito do conflito e da sabedoria prática Ricoeur
diz:
Sem a travessia dos conflitos que agitam uma prática guiada pelos princípios da moralidade, sucumbiríamos às seduções de um situacionismo moral que nos entregaria sem defesa ao arbitrário. Não há caminho mais curto que aquele, para alcançar esse tato graças ao qual o julgamento moral em situação e a convicção que são dignos do título de sabedoria prática. (RICOEUR, p.282)184
Uma alternativa à justiça institucional em casos de conflitos seria operar
apelando para o recurso de uma ética teleológica que possa se expressar por meio de
um tipo de “sabedoria prática” a qual é instruída pelo próprio conflito. Lembramos que
no conflito de convicção há um fundo moral de cujos princípios podem apresentar um
traço inflexível. Nesta circunstância, ele pode acirrar-se dando origem a reivindicações
que se impõe uma decisão sobre o que é justo. Nesse aspecto, os conflitos apesar da
mediação dos canais de justiça com seus procedimentos codificados e os confrontos de
argumentos regrados por uma norma, assim como a proclamação da sentença; se não
tiver o recurso da “sabedoria prática” contribuindo para orientar as ações humanas sob
o signo do bem, a justiça poderá fracassar na luta por um consenso. A sabedoria prática
é um recurso vinculado às convicções bem ponderadas. Para Ricoeur, as convicções
merecem cuidados e apresentam sinais de perigos quando são afetadas por preconceitos
e por intolerância aos outros pontos de vistas. A convicção para ser segura quando ela
reivindica para si um equilíbrio refletido entre os próprios interesses e os dos outros. A
convicção é ponderada quando rompe com as próprias amarras e consegue ver os outros
pontos de vistas.
A sabedoria prática é um aprendizado adquirido das lembranças históricas e
culturalmente em virtude do trágico e do sofrimento vivido e provocado. A sabedoria
aparece quando já estamos cansados ou esgotados de tanto sofrer ou de fazer o outro
sofrer; quando tomamos consciência de nossas ações injustas; então só nos resta
procurarmos transcender essa fase optando de boa vontade por uma vida melhor. Nesse
aspecto, em virtude de se querer viver bem e por ter a intenção de agregar ao justo um
sentido de bom damos, então, um novo sentido a justiça desatando-a de uma rigidez
própria do plano formal; acrescentado, assim, novos traços as ações nas relações
interpessoais.185
183 Op.cit., SA,1991, O trágico da ação, p 283 à 344 . 184 Op. cit., SA. (1991), p.282 - (o plano da sabedoria prática é o plano da phrónesis, da prudência como arte de decisão equitativa em situações de incerteza e conflito, portanto no âmbito do trágico da ação). 185 Op. cit., SA, 1991, Instituição e conflito, p 293.
100
Já comentamos anteriormente sobre a justiça e a injustiça, no entanto, cabe
retomá-la com referência para valorar as ações tidas de um lado como boas ou justas, e
de outro, como más ou injustas. A justiça que se apresenta como mediania, foi primeira
vez analisada em Aristóteles. Nele a justiça é chamada a decidir entre dois extremos, no
qual o ato justo é mediano.186 Esses extremos encontram-se moralmente entre os
excessos e a escassez. Para o filósofo antigo, o termo justiça, em contraste com a
injustiça, significa: “uma disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos
justos e que os faz agir justamente bem como a desejar o que é justo”. 187
As ações injustas, em particular, são atribuídas ao desregramento e aos vícios e
abrange, por conseguinte, o nível das relações interpessoais. Neste âmbito, a justiça e a
injustiça significam a prática da virtude ou do vício, em geral, em relação a alguém.188
Nesse contexto, um homem injusto é iníquo e, dessa forma não é equitativo. O justo, ao
contrário, sustenta uma posição que recomenda para si mesmo a mediania da igualdade;
entretanto, ele o faz, sem que essa recomendação implique em uma determinação e sem
a necessidade de se evidenciar aos indivíduos para os quais é justo. A justiça é uma
espécie de proporção cuja medida é o sentido de uma igualdade distributiva. Ela surge
como elemento que proporciona aos indivíduos uma mediania entre dois extremos: “o
demasiado muito e o demasiado pouco”. Nessa conjunção singular, o justo é a
combinação que dá aos conflitos e às queixas um sentido do que é mais desejável e esse
mais desejável é efetivamente bom entre os dois extremos.
A “sabedoria prática”, portanto, é o recurso ético que permite à instituição
conduzir as próprias ações de modo mais justo para tentar amenizar os conflitos
interpessoais. As ações da justiça que são atravessadas por esse recurso ético, merecem,
para Ricoeur, o título de equidade. Este elemento ético possibilita, por exemplo, na
ocasião do conflito se tentar elaborar algum tipo de diálogo que sirva para se construir
um caminho para um consenso-conflitual.189 A sabedoria prática é um aprendizado que
estabelece uma perspectiva ética para o sujeito da ação. Essa perspectiva consiste em
uma aspiração ou desejo de querer para si, uma vida boa com e para os outros em
instituições justas. Essa teoria ética não implica em um dever obrigando a pessoa a agir
bem e somente é válido, para Ricoeur, se puder servir-se da phronesis como orientação
para o bem viver. Esta visão teleológica que tem a sabedoria prática por elemento
186 Op.cit., Ética a Nicômaco, pp. 135, 143 187 Idem, 139 188 Idem, p. 139. 189 Op. cit., O justo 1, p.65.
101
orientador das ações; tem em sua finalidade um propósito calcado no esforço para se
tentar alcançar esse tipo ideal de vida ética.
102
Conclusão
Nossa intenção aqui é resgatar as ideias principais de cada capítulo para
estabelecer nossas considerações finais. Todavia, tomamos a liberdade de não seguir
rigidamente os capítulos. Começaremos retomando a ideia de que para Ricoeur é o ser
humano que se exprime no mundo, é ele quem vive os conflitos que projeta e inscreve
sua dor e a sua ação no mundo. Nesse aspecto é a pessoa o ser capaz de instituir
linguagem a fim de exteriorizar a sua subjetividade, imaginação, assim como os seus
sentimentos e interesses mediante sequências simbólicas. O ser humano nominado, por
Ricoeur, de homem capaz é quem reflete a partir de ideias; é quem idealiza, se ilude,
sofre, age e extrai sentido de sua própria existência e após extrair sentidos tenta
interpretá-los resignificando-os ao dar novos sentidos a estes. O homem para Ricoeur é
um ser hermenêutico que no esforço de se compreender vai interpretando, explicando as
suas experiências pelos experimentos das coisas e dos acontecimentos. Nesse aspecto, é
a pessoa quem cria novos sentidos e nesse movimento hermenêutico segue
reestruturando a sua própria existência.
Nesse sentido, compreendemos que a ideia de justiça, de bondade, de legalidade,
igualdade/equidade não podem em nosso entender ser meramente conceitos. Todas
essas palavras são carregadas de sentidos, isto é, de significações. Contudo, parece-nos
que, no nível da vida cotidiana, os princípios de justiça, como, por exemplo, a liberdade
e a igualdade são reduzidas, muitas vezes, aos modos procedimentais da instituição
política e governamental. Parece-nos, de acordo com Ricoeur, que a hermenêutica é a
via em que esses termos ganham uma profundidade reflexiva, pois ela nos desafia a sair
de nossa ilusão de uma consciência imediata que busca os significados em sua forma
mais aparente. O método hermenêutico auxilia-nos a uma tomada de posição mais
consciente mediante a decodificação dos significados não aparentes dos termos. Os
conceitos, configurados em signos e significados, ultrapassam essas configurações para
simbolizar sentimentos, avaliação, vontades e outras aquisições no nível de uma
episteme. Palavras como, por exemplo, liberdade e igualdade comportam inúmeros
significados e se renovam de acordo a interpretação que confere uma expressão. Seja
qual for o sentido conferido à palavra ou ao termo não devemos perder de vista que elas
se contextualizam a partir de uma situação, da compreensão e da interpretação de um
texto. Para Ricoeur compreender não se dirige a apreensão de um fato, mas a nossa
103
possibilidade de ser. Esse poder ser confere um sentido ontológico cuja função é manter
uma relação com a palavra estendendo-a ao mundo e ao outro. Neste sentido, as
palavras podem ser faladas e ouvidas, escritas ou lidas de qualquer modo elas têm a
função de remeter-nos ao que é dito. Os termos podem tornar-se ideias, princípios e
valores morais que reflexivamente abrem possibilidade de orientar-nos no julgamento
para uma investigação de nós mesmos e de nosso mundo em relação à ética, a política
etc.190
Procuramos nessa investigação um sentido que não estivesse somente voltado a
si mesmo enquanto conceito, mas que tivesse um significado que se estendesse para o
mundo. Parafraseando Ricoeur, no começo, este mundo seria estranho a nós, contudo
ele se tornaria compreensível à medida que o apreendêssemos ao narrar as nossas
histórias tentando teorizar as nossas próprias experiências. Parece-nos que na questão da
justiça primeiro, voltamos o nosso olhar ao sentido da palavra, depois de modo curioso,
pelo assombramento que tivemos diante dos diferentes sentidos do termo, fomos à
busca de novas explicações, por fim tentamos encontrar uma explicação que pudesse
dar conta não só do estranhamento, mas do significado da justiça em nossas relações
pessoais no cotidiano.
Entretanto, o mais curioso é que no cotidiano, nem sempre damos conta desse
assombramento. Talvez, porque na maioria das vezes agimos por impulso, alienados das
crenças que servem de base para os aspectos mais comuns de nossas experiências. Ou
talvez, porque vivemos nossas experiências no cotidiano de modo apressado, sem
prestar atenção que a nossa vida está imbricada às outras vidas. Convivemos
geralmente em busca de benefícios, mas quando nossa procura encontra-se com o senso
de justiça, muitas vezes estamos destituídos do aspecto reflexivo. A falta de um
horizonte reflexivo abre a possibilidade para um agir sem prudência. A sabedoria
prática situada no plano da phrónesis se traduz por prudência que é a arte da decisão
equitativa em situações de incerteza e conflito. Esse recurso à disposição da ética do
viver-bem é o final do percurso para sentenciar em situações desconcertantes.
Saber julgar sabiamente é diferente do simples ato de julgar. Para Ricoeur, a
primeira requer uma disposição para partir de uma ideia teleológica guiada pela tríade:
estima de si, solicitude e cuidado com a instituição; as três são formadas pelo querer.
Este se mostra primeiro no desejo ou perspectiva da vida boa, em seguida nosso desejo
190 Ricoeur, Paul, Hermenêutica e Ideologia, Tradução Hilton Japiassu, Ed. Vozes Ltda. Petrópolis, RJ, 2008 p. 36,37 e Op. Cit. O justo, p.226, 227, 228, IV.
104
se expande para fora de nós e assim, que seja uma “vida boa” com e para os outros, e
por último que a vida seja vivida em instituições justas. Essa intenção atravessa a
abordagem deontológica que é determinada pela noção de norma, obrigação, proibição,
formalismo e termina sua trajetória no plano da sabedoria prática. O querer viver bem
para Ricoeur é um ato reflexivo exigindo da pessoa um esforço para poder por o seu
projeto de vida em ação. O caminho da efetivação do querer viver bem está, segundo o
autor, enraizado em um projeto moral em nossa existência que inclua o ético marcado
pelo desejo, pela carência e pelo frágil de um sentido de bom para mediar o legal para
o justo. A bondade se caracterizará como meta do desejo e sob o signo da justiça o bom
se torna um bem encontrado na figura do bem-comum.
A ideia de justiça, em consonância com Ricoeur, não é apenas aquela
reconhecida como prática de justiça imbricada à esfera da jurisprudência e da instituição
social e governamental. Essa ideia entrecruza diferentes eixos: na ordem prática, há a
hierarquia de princípios que compõem as teorias e conceitos para formar uma ideia
formal e processual de justiça; já no plano da moral, a ideia de justiça é abordada ao
lado da ideia de verdade, e para garantir esse estatuto à justiça, moralmente se a situa no
espaço da norma, da proibição, do dever, do formalismo e do procedimento. Vimos que
para o nosso autor, essa ideia não se resume somente em situá-la nessas interseções,
pois a noção seria incompleta se não pudesse se desdobrar em diferentes sentidos e
significações incluindo a dimensão do simbólico, do mito e do sagrado. Na ideia de
justiça, de acordo com o filósofo, cabe não só o tratamento procedimental e todas as
formalizações racionais dos princípios para mantê-la como virtude das instituições
sociais. Mas, também os sonhos caracterizando-se pelo desejo da vida boa, as emoções
que não tolerando mais a injustiça, por exemplo, a arrogância, o desprezo, o ódio ao
estranho e emite um grito autêntico de indignação. Este grito, simbolicamente pode ser
um alerta, um pedido de socorro ou um modo de chamar a nossa atenção para as
injustiças que ocorrem no mundo. A injustiça clama por um sentido de bondade
caracterizado pelos sentimentos de respeito, estima e solicitude. Essa tríade, segundo o
autor, desenvolve-se no plano ético da perspectiva da vida boa em conjunto com o
sentido deontológico que coincide com o conceito de obrigação moral kantiano. Quando
articuladas nesse contexto, a estima que é formada por um sentido de autonomia de si,
mostrando-se na capacidade própria de agir, falar, refletir e responder por seus atos; e o
respeito à humanidade iniciando-se pela pessoa representada por si mesmo e
105
estendendo-se à pessoa do outro e de outrem ganham uma projeção de solicitude que se
alarga em direção à cidade e dos fins a que cada um está submetido.
Consideramos que a estima de si, o respeito e a solicitude desdobrados na ética
da “vida boa” permitem, em ocasiões ou em circunstâncias de conflitos, nas quais a
justiça é chamada a decidir a fim de atribuir a cada um a sua justa parte, a mediação da
sabedoria prática; podendo ser o elemento que torna possível ao ato de julgar as
“convicções bem ponderadas”. Segundo Ricoeur: “a sabedoria em julgamento consiste
em elaborar composições frágeis sempre que é preciso decidir não tanto entre o bem e o
mal, e o branco e o preto, porém mais entre o cinzento e o cinzento, ou – caso
eminentemente trágico – entre o mal e o pior”191.
A prática de justiça concerne em saber efetuar concretamente uma ação
ponderada. Nesse sentido, em primeiro lugar trata-se de saber analisar as passagens das
máximas gerais da ação ao julgamento moral em situação, tendo em vista que para cada
situação é preciso um senso de renovação dos recursos das singularidades inerentes à
perspectiva da “vida boa”. Cabe lembrar que para Ricoeur o julgamento moral
desenvolve a dialética entre a perspectiva ética e a norma moral.192
Na convivência diária, o senso de justiça revela-se no sentido ético do respeito
como a regra básica de bem viver. Compreende-se que o respeito é um valor que
possibilita conciliar uma perspectiva ética de vida boa que possa transitar entre o bom e
o legal do justo. Em outros termos, poder-se-ia dizer que se há o respeito entre os
indivíduos, então existe uma abertura para um bem viver a vida boa. Nesse sentido, o
diálogo será o modo que o respeito se concretizará a fim de que haja entendimento entre
dois sujeitos que querem entrar em consenso. Todavia, é importante lembrar que nessa
questão do respeito é ética é primaz.
Nesse sentido, a ética apresenta-se na autonomia do indivíduo não somente para
legitimar a moral para que as normas sejam cumpridas, mas para abrir uma
possibilidade de bem viver. A fim de manter-se um sentido de bom e justo para o
respeito ao outro, Ricoeur assevera que cada um deve fazer um exame minucioso do
sentido essencial da vida humana. Nesse sentido, o exame consiste em uma reflexão que
se faz a partir dos símbolos que possibilitam fazer uma crítica das próprias ilusões. A
reflexão permite uma apropriação da compreensão de si mesmo e por analogia, a do
outro. A compreensão do outro somente é possível por meio de uma simbologia
191 Op. cit., O justo 1, 2008, p. 208, 209. 192 Op. Cit. O si mesmo como um outro, p. 282
106
possibilitada pela linguagem. A reflexão, segundo o filósofo precisa ser feita de maneira
cuidadosa e crítica para que se tenha a compreensão dos mitos que envolvem nossas
experiências. É importante lembrar que os mitos e a linguagem de forma geral bem
como a simbologia da linguagem nos acompanham de forma repetitiva desde a infância.
Esses instrumentos se forem usados de maneira crítica e reflexiva permitirão à
consciência aprender a compreender o sentido do destino humano.
Para Ricoeur a linguagem é um instrumento que permite uma reflexão sobre o
respeito devido a si mesmo. Respeitar-se tem um sentido ético que possibilita um
sentido de dignidade que visa um sentido de uma vida boa para si, com e para o outro
em instituições justas.193 Dito de outro modo, uma vida boa significa ser capaz de
querer examinar a própria vida de modo constante e isso se constitui um laço entre a
vida, desejo, privação e realização. Consequentemente, a vida será questionada e,
compreendida na medida em que esse agir seja, na prática, uma maneira de conduzir a
própria vida de forma que entre o bom e o legal, esteja o justo.
Consideramos que ao tomarmos, como sugere Ricoeur, o sentido aristotélico da
ética da vida boa, poder-se-á manter uma ideia de justiça no nível das relações
interpessoais em que os conflitos reais, por mais complexos que sejam, possam ser
conduzidos por uma sabedoria prática. No campo institucional, também, a ideia de
justiça consegue fazer fronteira entre a ética da vida boa e a moral do dever legal.
Compartilhamos da ideia de Ricoeur de que a ética da “vida boa” é uma ideia
orientadora para as ações da pessoa. Recordamos, contudo que segundo Aristóteles, essa
ética é uma ciência política que estuda o nobre e o justo e sua finalidade é a ação e não o
conhecimento. Aristóteles assevera: – para aqueles que guiam seus desejos e ações
através do princípio racional, o conhecimento dessas matérias poderá ser sumamente
valioso194.
Vimos que para Ricoeur essa herança aristotélica ética contribui para assegurar às
atividades humanas uma espécie de valor mais elevado, cabendo a cada pessoa a estima de si e o
respeito ao outro195. Entendemos que a justiça tem um significado que vai além das fronteiras da
prática jurídica e dos princípios teóricos. Ricoeur assevera que também o plano das
mentalidades, em que a justiça atinge um nível mais profundo de reflexão a cerca da concepção
do bem; delineado na ética da “vida boa”. O plano das mentalidades situado em um território
propenso a constantes discussões, embora não dê nenhuma garantia de que o télos da “vida boa”
193 Op. cit., SA, 1991, p.202. 194 Op. cit., Ética a Nicômaco, livro 1 parágrafos 2 e 3. 195 Op. cit., L1, 1995, pp. 93, 94 e 161/2/3/4.
107
de fato possa ser realizado, essa instância civil não tendo um único senso de justiça, teorias ou
princípios, pode ser confrontada com diferentes argumentos das consciências ou espírito
reflexivo de época. Nesse sentido, é possível, portanto, explorar os princípios da ideia de justiça
considerando-os como um modo de experiência humana.
Paul Ricoeur, ao considerar o legal e o bom para o justo da justiça, levou em
conta as singularidades das situações de justiça e relacionou-as ao “viver em comum”
de uma comunidade histórica concernentes às relações interpessoais; isto é, considerou
todas as experiências humanas. Além disso, ao agregar o sentido de bom em conjunto
com o legal ao justo pôde inserir um elemento ético à justiça. A sabedoria prática é um
recurso que confere a prática jurídica os benefícios da “justa medida” a fim de julgar as
situações de conflitos e tentar atribuir à responsabilidade de cada pessoa. Nas relações
interpessoais ela é um elemento essencial para articular um sentido de justiça que inclua
além da estima de si, o respeito e a solicitude em relação ao outro. Nesse aspecto,
consideramos, com Ricoeur, que graças ao elemento da sabedoria prática se pode abrir
espaço para um tratamento de respeito mútuo.
A vida boa não é dever, ela é um télos opcional que possibilita imaginar um bem
viver com e para o outro em instituições justas. O respeito parece-nos que deve ser uma
prioridade a ser mantida entre os parceiros, pois simbolicamente se torna uma aliança
que garante um nível razoável de confiança na promessa de responsabilidade de cada
pessoa. Paul Ricoeur disse que a promessa é inscrita na memória. A partir dessa
premissa, gostaríamos de complementar e dizer que ela é inscrita e ficará gravada na
memória na forma de uma tradição. A promessa de responsabilidade será evocada da
memória toda vez que diante do outro nos pôr em diálogo. A lembrança da atestação196
é importante para que a promessa seja reconhecida e cumprida. Se for esquecida ou caso
haja uma recusa por parte daquele que se comprometeu, a promessa corre o risco de ser
traída. Nesses impasses, portanto, surgem os conflitos, de modo que, se não houver
algum tipo de sabedoria prática para tentar encontrar um consenso, a solicitude pode
ficar ameaçada.
Antígona tem o mérito de ter sido solícita à súplica de seu irmão. Conquanto
que não tenha feito por ela mesma nenhuma promessa, se sentiu comprometida com o
pedido do irmão. Procurou ser solícita para não traí-lo. Mas, essa solicitude da heroína é
mantida como uma obrigação, fechado em um único caráter do justo na tradição em
196 Op. cit., O Percurso do Reconhecimento, 2006 p. 123, – sobre a atestação Ricoeur diz que em O si mesmo como um outro ele adotou o vocábulo para caracterizar o modo epistêmico das asserções vinculadas ao registro das capacidades. P.107
108
contrário à lei. Antígona foi corajosa ao mostrar-se capaz de exercer certa autonomia
em relação à lei existente, mas sua escolha custou-lhe a vida e apesar de ter tido as
vozes do conselho, como um elemento capaz de guia-la em seu julgamento moral ela
não conseguiu ouvir essa sabedoria prática. Sua morte foi um sacrifício, talvez
desnecessário se tivesse escolhido outro modo de questionar a sentença dada ao irmão.
Ricoeur assevera que a palavra sacrifício comporta em si a simbólica da dádiva
que consiste no dar, receber e retribuir. O sacrifício de Antígona torna-se uma dádiva,
para nós que estamos lendo ou assistindo a peça, porque temos a possibilidade de
aprender com o trágico. Aristóteles assevera que para ser “um bom juiz para julgar um
assunto em particular é preciso que o indivíduo tenha recebido uma educação completa,
não somente para o estudo da política, mas de experiência de vida e de conduta”. Os
jovens, para ele, não estão aptos para o estudo da política porque carecem de
experiência de vida e de conduta. O problema do jovem, segundo Aristóteles, é que ele
conduz a sua vida e a sua meta orientadas pelo passional. Antígona é jovem e deixou-se
ser conduzida por uma ideia passional de justiça. Para a heroína os vínculos orgânicos
familiar eram os mais importantes, por um ente familiar não importa em se sacrificar.
Este sacrifício nos comove, porém nos ensina que na questão da convivência seja
política, social ou interpessoal é melhor que se mantenha uma atitude de ponderação em
lugar da paixão. O espaço da “convivialidade” requer, muitas vezes, renuncias e
abstenção, não sacrifícios, mas trocas recíprocas197.
É possível ser justo em sociedades injustas? Acreditamos que Antígona, sendo
jovem e sem saber fazer uso de algum tipo de sabedoria prática, mostrou-nos que é
possível elegermos uma causa justa em uma sociedade injusta. Contudo, mostrou-nos
também que a maneira de agir para atingir o objetivo pode ser diferente. Parece-nos que
a heroína deixou-se sucumbir diante do sofrimento, recusando-se a dialogar com a irmã
ou buscando o auxílio do conselho. Sua autonomia extrapolou os limites da razão,
Antígona agiu somente pelo sentimento que gritava: “isso é injusto”. É importante
destacar que a cidade de Tebas ao ser representado por Creonte, institucionalmente não
agiu de modo justo, já que impôs uma regra, tendo por conduta a ira pela ocasião do
acontecido. Ao impor uma regra sem considerar o sentimento de dor ou o sofrimento
que a regra imposta provocará, o governante deixou de considerar que uma sociedade
justa tem em vista uma perspectiva de bem estar que inclui uma intenção de vida boa
197 Op. cit., SA, 1990, p.107
109
aos cidadãos. Ao desconsiderar a tradição familiar e ao romper o vínculo com o
conselho de anciãos solicitando-lhe a ponderação, Creonte mostrou-se injusto e
imponderado. Parece-nos que faltou a ele um sentimento de respeito à dor do outro.
Tem-se a impressão de que o governante não percebeu que suas ações podiam provocar
grande sofrimento nas pessoas que governava. Ao agir em nome de Tebas e da
sociedade, por consequência, a cidade e a sociedade tornam-se injustas. E a injustiça
pode acender a chama da intolerância, motivando ações de revide.
As ações imponderadas de um governante não parecem exibir uma sabedoria
política, nem uma sabedoria prática apreendida com as suas experiências de vida ou por
meio das histórias de guerra e intolerâncias. Uma conduta imponderada não delineia
uma intenção política de preservar o bem para os indivíduos, mas sim a de manter o
rigor de um poder pessoal. Tomando o Creonte como exemplo de governante, talvez
pudéssemos dizer que se ele tivesse agido de modo mais equitativo ou se agisse
sabiamente valendo-se na prática do sentido de bom para corrigir o seu orgulho não
agrediria o outro em sua fraqueza. Consideramos que um governante não age sozinho;
diante de uma regra injusta os indivíduos de uma sociedade podem reivindicar uma
postura mais justa. Nesse sentido, talvez se ele tivesse sido pressionado por seus
concidadãos sua ação não ficaria a mercê de uma atitude irredutível e talvez tivesse uma
postura mais justa diante daquela situação em julgamento.
Bem! Talvez tudo isso não passe de conjecturas, mas no campo das
possibilidades a ideia de justiça pode ter um significado ético de bom. Se a intenção de
vida boa na esfera da justiça puder associar-se ao sentido moral em que a atitude
fundamental diante do outro for constituído pelo o modo de respeito. Entretanto, este se
apresenta no modo da solicitude que não é uma forma impositiva de regra, nem um
dever. O respeito representado pela figura da solicitude não pode ser qualificado como
uma necessidade arbitrária para a esfera da política. Ele torna-se um modo da ética e
somente pode ser tomado como uma meta de vida boa cujo recurso principal é a
sabedoria prática. Essa forma ética equivale a uma escolha pessoal devidamente
avaliada para orientar a ideia de justiça às condutas do agir humano na trajetória da vida
boa com e para o outro em instituições justas.
110
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