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A LEI 11.645/08 E O ENSINO DE LITERATURA AFRO-BRASILEIRA EM PERSPECTIVA: CUTI E SUA POÉTICA DO CONFRONTO Rosangela Sarteschi Universidade de São Paulo [email protected] O que os livros escondem As palavras ditas libertam Conceição Evaristo A promulgação da Lei 11.645/08 – alterando texto anterior, Lei 10.639/03 – foi, com todas as eventuais limitações que possamos apontar, um importante passo para garantir igual direito de acesso às histórias e culturas que compõem a sociedade brasileira e às diferentes fontes da cultura nacional ao determinar a obrigatoriedade do ensino de história e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas nos estabelecimentos oficiais e particulares de ensino, efetivando demandas históricas dos movimentos negros organizados. O parágrafo 1º do Artigo 26 A afirma que o conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. Todos esses e outros dispositivos legais aliados às propostas da sociedade civil têm por objetivo estabelecer diretrizes que orientem não apenas a formulação de projetos empenhados na valorização dessas contribuições, mas também no redimensionamento das relações étnico-raciais que tais conteúdos devem suscitar. Para Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, relatora do parecer CNE 004/2003 elaborado no processo de discussão e implementação da Lei 10.639/03, é preciso ter clareza que as mudanças devem provocar bem mais do que a mera inclusão de novos conteúdos; elas evidenciam que as relações sociais e pedagógicas bem como os procedimentos de ensino, as condições oferecidas para aprendizagem e o delineamento dos objetivos da educação sejam profundamente repensados. Assim sendo, prossegue a relatora, todo o conjunto de novos procedimentos é que possibilitam um projeto de escola e de educação que forme

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Literatura AfroBrasileiraLei 11645

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  • A LEI 11.645/08 E O ENSINO DE LITERATURA AFRO-BRASILEIRA EM PERSPECTIVA: CUTI E SUA POTICA DO CONFRONTO

    Rosangela Sarteschi Universidade de So Paulo

    [email protected]

    O que os livros escondem

    As palavras ditas libertam

    Conceio Evaristo

    A promulgao da Lei 11.645/08 alterando texto anterior, Lei

    10.639/03 foi, com todas as eventuais limitaes que possamos apontar, um

    importante passo para garantir igual direito de acesso s histrias e culturas que

    compem a sociedade brasileira e s diferentes fontes da cultura nacional ao determinar

    a obrigatoriedade do ensino de histria e culturas africanas, afro-brasileiras e indgenas

    nos estabelecimentos oficiais e particulares de ensino, efetivando demandas histricas

    dos movimentos negros organizados.

    O pargrafo 1 do Artigo 26 A afirma que o

    contedo programtico a que se refere este artigo incluir diversos aspectos da histria e da cultura que caracterizam a formao da populao brasileira, a partir desses dois grupos tnicos, tais como o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indgenas no Brasil, a cultura negra e indgena brasileira e o negro e o ndio na formao da sociedade nacional, resgatando as suas contribuies nas reas social, econmica e poltica, pertinentes histria do Brasil.

    Todos esses e outros dispositivos legais aliados s propostas da

    sociedade civil tm por objetivo estabelecer diretrizes que orientem no apenas a

    formulao de projetos empenhados na valorizao dessas contribuies, mas tambm

    no redimensionamento das relaes tnico-raciais que tais contedos devem suscitar.

    Para Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, relatora do parecer CNE

    004/2003 elaborado no processo de discusso e implementao da Lei 10.639/03,

    preciso ter clareza que as mudanas devem provocar bem mais do que a mera incluso

    de novos contedos; elas evidenciam que as relaes sociais e pedaggicas bem como

    os procedimentos de ensino, as condies oferecidas para aprendizagem e o

    delineamento dos objetivos da educao sejam profundamente repensados.

    Assim sendo, prossegue a relatora, todo o conjunto de novos

    procedimentos que possibilitam um projeto de escola e de educao que forme

  • cidados atuantes no seio de uma sociedade de indiscutvel carter multitnico e

    pluricultural como a brasileira.

    Nessa perspectiva que a incluso da literatura negra brasileira nos

    estudos literrios do ensino bsico leva obrigatoriamente a um descentramento do

    enfoque do sistema literrio nacional, incluindo-se novas escrituras e novas vozes com

    todas as implicaes que envolvem essa mudana, desde a necessidade de conceituar o

    termo literatura negra.

    Como sabemos, o conceito literatura negra ainda bastante

    polmico, pois o fato de justapor um adjetivo palavra literatura ser sempre

    problemtico, na medida em que um qualificativo acaba, sem dvida, por circunscrever

    a amplitude do termo.

    nesse sentido que, para alguns estudiosos, o uso de expresses como

    literatura negra, literatura afro-brasileira, ou ainda, literatura afro-descendente

    brasileira revela posturas particularizadoras, que aprisionam e rotulam toda uma

    produo literria. Domcio Proena Filho, reconhecido pesquisador, professor e poeta,

    autor de Dionsio Esfacelado, um clssico da poesia negra, entende que o termo

    literatura negra acaba por manter a discriminao em lugar de combat-la, lembrando

    que, apesar de estar vinculado a movimentos reivindicatrios de afirmao do negro,

    fator decisivo na luta pelo fim das prticas histricas do preconceito racial, essa

    designao corre o risco de reproduzir esteretipos, fazendo o jogo do preconceito

    velado.

    Por outro lado, h pesquisadores que entendem que essas expresses

    permitem, no entanto, ressaltar posicionamentos ideolgicos escamoteados pela

    generalizao do termo literatura, principalmente quando se referem a uma faixa social

    que, historicamente, combate a excluso imposta pelas elites brasileiras.

    Nessa linha de entendimento, Zil Bernd considera a existncia de

    uma literatura negra, que se diferencia daquela literatura que apenas tematiza o negro,

    pelo surgimento de um "eu enunciador" que se quer negro, assumindo posicionamentos

    polticos e ideolgicos.

    Neste sentido, continua a ensasta, o nico critrio possvel para

    conceituar uma escritura negra seria o critrio discursivo: a emergncia do eu

    enunciador que se quer negro o elemento-chave que singulariza essas obras. O

  • surgimento de um emissor que assume sua condio de negro constituir-se- no marco

    divisrio entre um discurso sobre o negro, de alguma maneira presente na literatura

    brasileira, e um discurso do negro, que traria em sua gnese a marca de reinveno da

    representao convencional construda ao longo do tempo.

    Eduardo de Assis Duarte amplia essa noo ao afirmar que a

    especificidade da literatura negra em contraposio ao conjunto da literatura brasileira

    funda-se sobre quatro aspectos, a saber: i) a temtica, que compreenderia a incorporao

    da experincia do negro ao texto literrio, ii) autoria, o negro surge como sujeito de sua

    enunciao, colocando sua maneira de ver, sentir e entender o mundo, iii) ponto de vista

    em que se percebe a adeso histria e tradio negras e, finalmente, iv) linguagem que

    estaria baseada numa discursividade especifica, atravessada por marcas que remetem a

    heranas lingstico-culturais africanas.

    Outro aspecto instigante nesse debate levantado por Luiz Silva

    (Cuti), em seu livro Literatura Negro-Brasileira, e ainda que extrapole os limites desta

    comunicao, merece o registro: o poeta e ensasta paulista defende sua opo, que

    esttica, poltica e ideolgica, pelo termo literatura negra em contrapartida

    denominao afro-brasileira ou afro-descendente, por entender que esses termos

    acabam por escamotear a questo negra, que ficaria, assim, diluda na diversidade

    subjacente ao prefixo afro.

    Otavio Ianni (1999, p. 91), analisando o conceito no mbito do

    sistema literrio brasileiro, afirma que:

    A literatura negra um imaginrio que se forma, articula e transforma no curso do tempo. No surge de um momento para outro, nem autnoma desde o primeiro instante. Sua histria est assinalada por autores, obras, temas, invenes literrias. um imaginrio que se articula aqui e ali, conforme o dilogo de autores, obras, temas, invenes literrias. um movimento, um devir, no sentido de que se forma e transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da literatura brasileira, surge a literatura negra, como um todo com perfil prprio, um sistema significativo.

    Nessa linha de entendimento, pensamos ser oportuno e proveitoso

    salientar que a literatura negra brasileira no pode ser compreendida como um projeto

    que se constitua fora do contexto da literatura cannica nacional, que, por sua vez,

    requer, evidentemente, oura forma de problematizao, devendo ser enfocada como um

  • sistema plural e heterogneo engendrado dialeticamente a partir de fragmentos que o

    compem em movimentos de afirmaes, rupturas e ressignificaes.

    Desta forma, entendemos que o discurso da literatura negra o

    discurso da identidade, o discurso que almeja precipuamente a desconstruo e

    reconstruo identitrias dentro desse sistema de significaes, colocando como ponto

    fulcral o equacionamento da noo de identidade nacional homognea e uniforme. Cabe

    ainda salientar que a importncia da emergncia do eu enunciador que se quer negro,

    como destaca Zil Bernd, no est apenas no fato de assinalar uma ruptura com o

    discurso social que negava os negros, mas tambm por marcar, de maneira categrica, a

    tentativa de compreender o que significa ser negro no Brasil pelo resgate de uma

    histria e tradio h muito ocultadas.

    Nesse processo, devemos destacar o papel capital assumido pela

    chamada imprensa negra brasileira no incio do sculo XX: surgem jornais e

    associaes em que negros e descendentes organizam-se para produzir material com o

    propsito no apenas de combater o preconceito racial, mas, sobretudo, de promover a

    afirmao social e cultural do negro brasileiro, que encontra finalmente um instrumento

    eficiente de veiculao de seus interesses e inquietaes. Entre outros, merecem

    destaque O Menelick, que circulou entre 1915 e 1916, O Clarim da Alvorada, de 1924 a

    1932 e A Voz da Raa, entre 1933 e 1937.

    No mbito acadmico, a primeira grande contribuio vem de Roger

    Bastide, com a obra Estudos Afro-Brasileiros, que rene artigos escritos ao longo dos

    anos de 1940 e 50. Trabalhos de outros pesquisadores estrangeiros conhecidos por seus

    estudos brasilianistas, como Raymond Sayers (O Negro na Literatura Brasileira, 1958)

    e Gregory Rabassa (O Negro na Fico Brasileira, 1965) trazem para o centro do

    debate a questo racial na produo literria brasileira cannica.

    A esses nomes seguiram-se, entre outros, os brasileiros Clovis Moura,

    e Oswaldo de Camargo com estudos que focalizam a histria da textualidade no Brasil,

    procurando identificar na produo literria de autores negros brasileiros marcas da

    herana sociocultural africana.

    Nas dcadas de 1950 e 60, com a gerao dos poetas Solano Trindade,

    Oswaldo de Camargo e Eduardo de Oliveira, temos o incio de uma fase em que os

    prprios autores reivindicam a denominao literatura negra para sua produo. So

  • autores fortemente marcados pelas proposies de movimentos como o Renascimento

    Negro, que se desenvolveu nos Estados Unidos entre as dcadas de 1920 e 40, e o

    Negrismo cubano. Outra referncia significativa o movimento da Negritude, surgido

    em Paris na dcada de 1930, como resultado do encontro de estudantes negros das

    Antilhas e da frica entre eles Nicols Guilln, Aim Csaire e Lopold Senghor

    muitos dos quais acabariam produzindo grandes obras da literatura negra de lngua

    francesa, marcadas pela busca de uma identidade negra africana e pelo protesto contra a

    ordem colonial.

    Esses movimentos encontram eco na j referida imprensa negra

    brasileira: o jornal Quilombo (10 nmeros entre 1948-1950), dirigido por Abdias do

    Nascimento, publica textos de intelectuais atuantes das mais diversas procedncias,

    mantendo vivo dilogo com os negros do Caribe, dos Estados Unidos, da Frana e da

    frica.

    A partir dos anos 1980, com a problematizao do sistema cannico

    vigente, os estudos literrios passam a operar conceitos de identidade, dos binarismos

    centro e periferia, discursos coloniais e ps-coloniais, dominao e marginalidade,

    poder e subalternidade. Nesse contexto, a discusso acerca da literatura negra ganha

    novo impulso no Brasil com o aparecimento de diversos estudos em que essas

    expresses passam a circular com maior intensidade como prtica de um recentramento

    esttico e cultural do negro brasileiro, indicando que cnone e dominao so conceitos

    indissociveis.

    Estudos de Homi Bhabha e Edward Said, entre outros, buscam trazer

    ao centro das discusses as vozes das culturas e dos segmentos sociais perifricos,

    incluindo-se a todas as minorias raciais, as mulheres e os homossexuais. Essa busca de

    descentramento tem por objetivo colocar questes to complexas e variadas como

    representao, sentido, valor, cnone, universalidade, diferena, hibridismo, etnicidade,

    identidade, dispora, nacionalismo, zona de contato, educao, feminismo, histria,

    homossexualismo, constituindo-se em uma potica da cultura, expresso de Ana

    Mafalda Leite, pesquisadora moambicana.

    Ao constatarmos que a historiografia literria brasileira silencia vozes

    e escrituras de sujeitos quase sempre pertencentes s margens da sociedade, percebemos

    como o cnone brasileiro institudo como um instrumento de represso e

  • discriminao que serve a interesses de uma elite dominante, cuja ideologia caracteriza-

    se por fortes contornos etnocntricos baseados no patriarcado e no racismo. A literatura

    negra aparece assim como uma forma de questionamento das operaes cannicas,

    reivindicando a reviso e abertura do cnone a textos representativos de experincias e

    saberes tradicionalmente excludos, apontando, assim, para a reorganizao de

    construes simblicas no mbito da cultura e do sistema literrio brasileiros.

    Nessa perspectiva, questionar um sistema de valores institudo por

    grupos detentores de um poder cultural legitimadores de um repertrio, que visa a

    excluir uma produo cultural oriunda de grupos minoritrios (quando se pensa nos

    centros hegemnicos) ou de cultura oriunda de pases que passaram pelo processo de

    colonizao , portanto, discutir o cnone.

    Dessa maneira, cabe-nos, ento, referir aos estudos de pesquisadores

    brasileiros, como Zil Bernd, professora do Instituto de Letras da Universidade Federal

    do Rio Grande do Sul, Maria Nazareth Soares Fonseca, professora da Pontifcia

    Universidade Catlica de Minas Gerais e Eduardo de Assis Duarte, da Universidade

    Federal de Minas Gerais, que vm trabalhando incansavelmente no mbito da academia

    para a constituio de um corpo terico sobre a produo literria produzida pelo negro,

    dando-lhe relevo e visibilidade.

    No tocante problematizao e circulao dessa produo, destacam-

    se, tambm, os Cadernos Negros, coletnea publicada pelo Movimento Quilombhoje,

    de So Paulo, a partir de 1978, com o objetivo de apresentar o escritor negro consciente

    de seu papel transformador junto sociedade brasileira, procurando trabalhar a relao

    entre literatura, ideologia e poltica.

    A publicao tem o objetivo de desconstruir a tradio literria

    brasileira que exclui a produo da populao negra: os autores que aderiram ao projeto

    demonstram tambm interesse em refletir sobre o lugar ocupado pela literatura

    produzida por eles no cenrio da literatura nacional.

    Nesse sentido, ficcionistas e poetas como Joel Rufino dos Santos,

    Osvaldo de Camargo, Luiz Silva (Cuti), Conceio Evaristo, Mriam Alves, Edmilson

    Pereira, entre outros, tambm produzem textos tericos em que apresentam reflexes

    acerca do papel da literatura negra brasileira no resgate da histria e da cultura do negro

    e de aspectos da tradio histrico-cultural de origem africana no Brasil.

  • Nos Cadernos Negros 7, Cuti afirma que a literatura negra no s

    uma questo de pele, uma questo de mergulhar em determinados sentimentos de

    nacionalidade, enraizados na prpria histria do africano no Brasil e sua descendncia,

    trazendo um lado do Brasil que camuflado.

    Para Mrcio Barbosa, a especificidade da literatura negra brasileira

    recai sobre o fato de ser elaborada a partir da perspectiva do dominado e do oprimido.

    O mesmo Mrcio Barbosa juntamente com Esmeralda Ribeiro, na

    apresentao dos Cadernos Negros 25, destacam que a diferena dos poemas afro-

    brasileiros a sua capacidade de dar visibilidade s marcas culturais e existenciais que

    identificam os descendentes de africanos no Brasil.

    Como podemos ver, ao longo da existncia dos Cadernos Negros,

    surgiram diferenciadas concepes de escritores pertencentes ao movimento acerca de

    expresses como literatura negra ou literatura afro-brasileira, retomando questes

    abordadas pelo movimento da Negritude. Importam-se tambm com outros temas, tais

    como a produo, circulao e recepo de seus textos e a respectiva marginalidade

    dessa produo.

    Se os escritores ligados aos Cadernos Negros tm um inquestionvel

    compromisso ideolgico, em que o centro de interesse o homem negro e suas relaes

    com e na sociedade, como sujeito da histria e do devir, no desprezam, por outro lado,

    o trabalho de interveno criativa do cdigo lingstico, como afirma Florentina

    Souza (2006, 114). Ao demonstrar preocupao esttica com o fazer literrio, rompem

    com antigas e consagradas estruturas e, sobretudo, rompem com as ideologias

    conservadoras vigentes, criando, assim, condies para o surgimento de uma arte

    complexa em sua forma (em que a desestruturao textual apenas um exemplo) e

    contedo (problematizao dialtica da realidade).

    Nesse sentido, a leitura e o estudo de textos que compem a literatura

    negra brasileira assumem uma funo poltico-ideolgica, que tm por objetivo

    legitimar a pluralidade cultural de nosso pas. Como sugere Paulo Freire (1990, 146), a

    competncia leitora implica um saber-poder como resistncia, estratgia, confronto,

    produo de verdade que, no caso da relao professor/aluno, no pode ser reduzida ao

    treinamento puramente mecnico das habilidades ler/escrever nem se esbarram nas

    lies gramaticais, mas se alonga na leitura at a discursividade. Um projeto de leitura

  • desse porte implica assumir-se como cidado, exige um poder-saber poltico gestado na

    prtica de por ela lutar a que se junta a prtica de sobre ela refletir.

    Ao aluno deve ser dada a oportunidade de conhecer textos que

    problematizam significados historicamente colocados. Esse descentramento garante,

    desta forma, a pluralidade e diversidade na elaborao simblica do mundo, refletindo

    postura ideolgica, pois como nos lembra Enio Orlandi (1998, p. 13):

    no existe discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. da remisso do discurso formao discursiva e da delimitao desta pela sua relao com a formao ideolgica que qualquer prtica de linguagem adquire sentido. Os sentidos e o sujeito se constituem ao mesmo tempo no interior de uma formao discursiva no confronto entre as diferentes formaes. Esta relao constitui a historicidade do sujeito e dos sentidos.

    Como vemos, o sentido nunca est sozinho, no se produz de uma vez,

    em um s lugar e no linear: o sentido se faz sentido nas relaes que estabelece.

    Nesse aspecto, ler interpretar, produzir sentidos relacionados com outros sentidos e

    na materialidade da lngua que se engendra esse processo de contnua significao.

    O ato de ler pode ser compreendido, ento, como uma prtica social,

    algo que se inscreve na dimenso simblica das atividades humanas. Ao produzir

    leitura, o sujeito se engaja automaticamente na dinmica do processo histrico-social de

    produo de sentidos.

    Desta forma, a obra de Luiz Silva (Cuti), poeta, contista e tambm

    ensasta, concilia trabalho tico e esttico de desconstruo e reconstruo de sentidos,

    propondo ruptura radical com os valores preconizados por uma sociedade da qual o

    negro sistematicamente apartado. De sua escrita, pulsa a postura militante que no faz

    concesses; a viso poltico-ideolgica que dali emana coaduna-se perfeitamente com

    uma escrita dilacerada em que a qualidade artstica evidencia-se.

    O poema Ela, que aparece em seu segundo livro Batuque de

    Tocaia, de 1982 (edio do autor), exemplo paradigmtico e, segundo entendemos,

    um texto que permite levantar essas e outras questes imprescindveis para a formao

    literria de nossos jovens estudantes:

    ELA

    A minha poesia Sou eu que me desnudo

    me descubro

  • sou eu que me acho e me cato nos cantos escondidos do sorriso agachado a minha poesia sou eu rio que desguo nos teus olhos parados sou eu vento no moinho do meu grito entalado a minha poesia sou eu-fome-de-muitos, punhos punhais sombras fatais e a esperana do mundo no sangue vivo das palavras a minha poesia sou eu-p sendo pulverizado sou eu-s desatando o n que nos prende no descuido e nos vitima no racismo astuto a minha poesia um susto que pula no pescoo e procura agarra esse medo esse medo que nos espreita na lapela do riso a minha poesia soul tem dio e amor e vem dizer revendo que o ressentimento sinal de cura contra todo o tempo de cara falsa da raa pura a minha poesia som s

  • -sou soul

    sam ba

    tendo no couro branco do papel

    Comentrio:

    Poema elaborado em versos livres, seguindo a tradio moderna de

    dessonorizao, em que se constata uma diminuio radical dos efeitos sonoros

    regulares, ostensivos e evidentes (Candido, 2006, p. 66), caracterizando-se pela busca

    de uma sonoridade peculiar, de carter prosaico em que a regularidade rtmica

    delineada majoritariamente por vis diverso das homofonias finais da rima clssica.

    O ritmo ser, assim, marcado por: 1. Anforas:

    a) a minha poesia inicia as estrofes 1, 3, 5, 6, 7, 8 e 9, sendo que o

    verso inicial a minha poesia liga-se ao sintagma sou eu nas estrofes 1, 2, 3, 4, 5 e

    6.

    b) na estrofe final:

    a minha poesia som s -sou soul

    sam ba

    tendo no couro branco do papel

    Note-se, ainda, nessa estrofe, que os versos som / s / -sou /

    soul so construdos fincados na tonicidade dos monosslabos; a aliterao e

    assonncia dos sons fricativos sibilantes e nasais surgem em oposio aos sons incisivos

    das oclusivas /k/ /t/ /b/ /p/ que fecham o poema.

    2. ausncia de pontuao (exceto o ponto final) e maisculas.

    3. paralelismo nas estruturas me desnudo/me descubro (versos 2 e

    3), contribuindo para a simetria e regularidade harmnica.

  • 4. assonncias e nasalizaes que permeiam todo o poema

    contrapondo-se s aliteraes, especialmente das oclusivas e fricativas:

    acho, cato, agachado (tnicas) 2 estrofe eu / teu e desguo e parados (tnicas) 3 estrofe (...) a minha poesia sou eu-fome-de-muitos, punhos punhais sombras fatais e a esperana do mundo no sangue vivo (...) a minha poesia um susto que pula no pescoo e procura agarra esse medo esse medo que nos espreita na lapela do riso (...)

    sam ba

    tendo no couro branco do papel

    5. rimas:

    punhos punhais sombras fatais

    Interpretao

    O poema organiza-se em primeira pessoa e, expressamente, engendra

    uma busca: o desejo por uma definio de poesia. No a busca por um conceito in

    abstracto, mas sua forma concreta e tangvel: a poesia do eu lrico que se anuncia j no

    primeiro verso: a minha poesia / sou eu

    Podemos dizer, ento, que essa busca de significao e sentido parte

    de um movimento progressivo e pendular que se estabelece a partir do aparente

    afastamento entre o eu lrico (eu) e a poesia (ela), aproxima-se a minha poesia sou

    eu para novamente se afastar a minha poesia / um susto que pula no pescoo e,

    finalmente, para transfigurar-se em um s corpo, que se constri no e a partir do espao

    branco em sua dimenso literal e metafrica.

  • Poesia e poeta projetam-se especularmente, compartilhando

    articulaes em que as experincias vivenciadas pelo indivduo so dialeticamente

    refratadas no corpo da escrita. O verbo ser ali utilizado parece fazer lembrar-nos que a

    essencialidade do literrio constri-se na sua relao com o ente que o engendra.

    Importante tambm mencionar, por outro lado, que o poema

    construdo em torno de antteses organizadas simetricamente em permanente tenso

    dialtica: desnudo / descubro / acho / cato em oposio a cantos escondidos /

    agachado, desguo contrapondo-se a parados, esperana a sangue, dio a

    amor, procura a agarra e, finalmente, negro a branco.

    Como podemos notar, as escolhas lexicais traduzem essa atmosfera de

    confronto, revelando, ainda, um certo estado de urgncia e desassossego:

    A minha poesia / sou eu-fome-de-muitos

    (...)

    A minha poesia / um susto que pula no pescoo e procura / agarra esse medo

    / esse medo que nos espreita na lapela do riso

    O argumento potico construdo, dessa maneira, em um crescendo

    cujo clmax s ocorrer com a contundncia de seu desfecho. Esse movimento

    ascendente vai sendo engendrado por uma estrutura potica que expressa uma dinmica

    incessante marcada pela ausncia de pontuao. Observamos, ainda, que o poeta

    dispensa rimas em suas formas mais tradicionais, optando por uma sonoridade

    construda pela marcao rtmica de alternncia simtrica de slabas tnicas e tonas de

    modo a estabelecer uma regularidade na cadncia, como se percebe nos versos 1 a 24 e

    31 a 41. As rupturas sero desenhadas ora pelo alongamento (versos 25 a 30) ora pelo

    abreviamento mtrico (nos versos finais, 42 a 49), quando, ento, constata-se uma

    ruptura rtmica radical, constituindo-se em elemento-chave na construo do

    significado. nesse sentido que a heterogeneidade mtrica marcar, paradoxalmente, a

    harmonia, feita de simetrias e assimetrias, de prosa e poesia.

    Feitas essas consideraes de carter formal, entendemos que as

    escolhas apontam de maneira inequvoca para a contundncia dos sentidos urdidos.

    Nesse sentido, deparamo-nos com um eu lrico que assume o papel de sujeito de sua

    histria sem hesitaes. No pede licena, no abaixa a cabea; ao contrrio, reivindica

    seu espao: a minha poesia sou eu que me desnudo / me descubro, trazendo luz o

  • que estava forosamente ocultado. Assim, a luta cotidiana e concreta do negro na

    sociedade brasileira confunde-se com a reivindicao no mbito do fazer literrio: o eu

    lrico surge como protagonista de sua escritura, que ser impregnada por suas prprias

    experincias.

    Como mencionado, Ela parte de um eu lrico que busca a si mesmo

    buscando seu poema e, nessa trajetria, vai construindo-o at desaguar em um coletivo

    do qual o indivduo no se aparta e por ele introjetado: esse eu-ns que resulta da

    histria vivenciada que se insurgir contra o outro que o oprime.

    Os aspectos formais, como assonncias, rimas, aliteraes, escolhas

    lexicais sublinham de forma expressiva o embate do homem negro frente ao mundo

    branco, o confronto entre o que est significado e o que quer significar e construir. A

    escrita surge, assim, como o espao da resistncia: uma alternativa ao modo de construir

    o mundo e de signific-lo.

    O eu lrico, por outro lado, abandona a viso vitimizada do negro e sua

    histria, sem, no entanto, escamote-la. Usa essa experincia como instrumento de luta

    e de resgate de sua fora e de seu potencial. A vida perpassa o plano da escrita,

    constitudo como espao da redeno. Ante a violncia do cotidiano (fome, punhais,

    sangue, sombras), surge a esperana que o verbo e a voz trazem consigo (sangue vivo /

    das palavras). O sangue deixa de ser derramado para ser metaforicamente

    compreendido como vida que pulsa: so os impulsos de Eros, de conceituao

    psicanaltica, projetando a vida e sua energia.

    A pulso vital de preservao ultrapassa os limites permitidos ao

    negro, que se nega, nessa medida, a assumir seu papel subalternizado, apropriando-se da

    poesia e apoderando-se da palavra para dela fazer uso prprio e ser voz de seu destino.

    Nesse enfrentamento evidenciado pela anttese movimento/imobilidade, os impulsos de

    Eros contrapem-se aos impulsos de Tnatos sou eu rio que desguo / nos teus olhos

    parados , indicando que o n que se prende ao racismo s ser desatado a partir desse

    confronto: aes convulsas e insubmissas, traduzindo desejos vorazes na ambivalncia

    de a minha poesia / sou eu-fome-de-muitos em que o eu lrico pode tanto ser a sntese

    de um coletivo como a fora que se alimenta de uma tradio de sofrimento para

    transform-la na seiva que lhe d vida.

  • Vale ainda mencionar, nessa instncia, que a busca empreendida pelo

    eu lrico articulada na clave positiva da certeza de seu lugar e papel na sociedade em

    oposio s ausncias, carncias, proibies e impedimentos impostos ao negro. Se no

    incio do poema, h uma certa individualizao, na trajetria que se desenha, o coletivo

    vai se impondo, fome de muitos, fazendo com que o indivduo pulverize-se e, nessa

    disperso, desate ns que se transmudam na voz coletiva de todos os negros.

    nesse momento (7 estrofe), que o "eu" e "ns" fundem-se tambm

    prpria poesia, que se define, categoricamente, como espao da resistncia: a poesia

    pula, procura, agarra o medo e a opresso em jogo antittico: poesia feita de

    contrrios amor e dio, falsa e pura, concreto da violncia e o abstrato da alma (soul).

    Vemos que a poesia no apazigua sentimentos; antes, faz com que

    aflorem: pode ser o caminho da cura e da redeno de um passado de dor e humilhao

    medida que for alimentada pelo ressentimento entendido como fora motriz da

    existncia. a memria que mobiliza e resgata a vida, reelaborando-a.

    A busca, ento, atinge seu pice na ltima estrofe, em que a tica

    pretendida traduz-se perfeitamente esttica engendrada. anfora final (a minha

    poesia), segue-se outra construo anafrica ( som / s / -sou / soul) que

    enfatiza o seu lugar definitivo num jogo de entrelaamentos semnticos refratados na

    sonoridade urdida e pontuados pela fora dos monosslabos tnicos, desaguando na

    juno da complementaridade das ideias expressas pelo substantivo samba e pelo

    verbo bater referncias ao universo negro: o eu lrico coloca-se como sujeito no

    espao social e literrio privilegiado pelo branco. Nesse encontro inverte-se a equao

    histrica: o peso da chibata recai agora sobre o couro branco. A violncia do desfecho

    ainda sublinhada no plano das sonoridades pelo uso das oclusivas e fricativas,

    reforando a ideia de que no h mediao possvel. O espao da literatura como

    mencionado, espao privilegiado do universo branco ser espelho do espao social:

    conquistado apenas com a violncia que subjaz ao.

    Como pretendamos demonstrar, acreditamos que com a introduo de

    obras e autores negros brasileiros, e Cuti um caso exemplar, reformular-se- a

    univocidade presente no ensino da literatura vigente. Abre-se o ensino a uma

    plurivocidade discursiva com relatos que buscam dilogo com outros relatos,

  • constituindo um espao de debate, de confronto, alm de quebrar a hegemonia dos

    cdigos dominantes do cnone estabelecido.

    Como afirma Benjamin Abdala Jr. (2003, p. 37),

    nas configuraes histricas, entre a reduo dominante e seu plo diferente, de abertura ao diverso, forma-se um horizonte macrocontextual. L esto os sistemas de expectativas dos autores e dos leitores e a matria discursiva dos mltiplos campos smicos do trabalho humano. Entre um plo e outro h uma matria viva de que a historia da literatura precisa dar conta, a partir do estudo dos prprios textos, verificando a historicidade de suas formas, ou, como mostram os procedimentos crticos de Antonio Candido, verificando como os fatores externos interiorizam-se no texto literrio.

    O estudante poder, desta forma, interpretar o presente, evocando o

    passado. Atravs da comparao, efetivada pela leitura de universos mltiplos e plurais,

    esto dadas as condies para que se estabelea, assim, um dilogo entre a memria e o

    tempo presente, possibilitando a construo da cidadania almejada

    nessa medida que o ensino dessas literaturas explicita um

    compromisso tico que busca contribuir para a produo de novas subjetividades e

    identidades e de suas imagens: o leitor destinatrio de toda criao literria tambm

    introjetado pela obra que a ele se dirige, convertendo-se em texto e tomando a feio de

    um sujeito com o qual se estabelece um dilogo latente mas necessrio. Ou seja,

    produo e recepo de texto so operaes das quais a ideologia no se ausenta.

    BIBLIOGRAFIA

    ABDALA JR, B. De vos e ilhas literatura e comunitarismos. So Paulo: Ateli Editorial, 2003. BERND, Z. Poesia Negra Brasileira Antologia. Porto Alegre: AGE/IEL/IGEL, 1992 BERND, Z. Introduo literatura Negra. So Paulo: Ed. Brasiliense. 1988. CUTI (Luiz Silva). Literatura Negro-Brasileira. So Paulo: Selo Negro, 2010. CUTI (Luiz Silva). Negroesia (antologia potica). Belo Horizonte: Mazza edies, 2007. DUARTE, E. A. Literatura afro-brasileira um conceito em construo. (texto consultado no site http://www.letras.ufmg.br/literafro/afrodescendenciaseduardo.pdf em 24 de abril de 2011)

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