A Linguagem de Deus - Francis S

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A Linguagem de Deus - Francis S

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  • FrancisS.Collins

    ALINGUAGEMDEDEUSUmcientistaapresentaevidnciasdequeEleexiste

    Traduo:

    GiorgioCappeli

    Digitalizao:

    Argo(apelidode"Deus")

  • meuspais,quemeensinaramaadoraroaprendizado.

  • SUMRIO

    Introduo

    PRIMEIRAPARTEOcismaentreacinciaeaf

    CAPTULOI:Doatesmocrena

    CAPTULO2:Aguerradasvisesdemundo

    SEGUNDAPARTEAsgrandesquestesdaexistnciahumana

    CAPTULO3:Asorigensdouniverso

    CAPTULO4:AvidanaTerra:sobremicrbioseohomem

    CAPITULO5:DecifrandoomanualdeinstruesdeDeus:asliesdogenomahumano

    TERCEIRAPARTEFnacincia,femDeus

    CAPTULO6:Gnesis,GalileueDarwin

    CAPTULO7:AlternativaI:Atesmoeagnosticismo

    CAPTULO8:Alternativa2:Criacionismo

    CAPTULO9:Alternativa3:Designinteligente

    CAPTULO10:Alternativa4:Bilogos

    CAPTULO11:Osquebuscamaverdade

    Apndice

    Aprticamoraldacinciaedamedicina:Biotica

    Agradecimentos

  • INTRODUO

    NUM DIA QUENTE DE VERO do primeiro semestre do novo milnio, a humanidadeatravessouumaponte rumoaumanova erade tremenda importncia.Aomundo inteiro foitransmitido um pronunciamento, com destaque em praticamente todos os jornais maisimportantes, apregoando que o primeiro rascunho do genoma humano, nosso manual deinstrues,haviasidoconcludo.

    O genoma humano formado por todo o DNA de nossa espcie; o cdigo dehereditariedadedavida.Otexto recm-reveladoapresentava3bilhesde letras,escritonumcdigo estranho e enigmtico composto de quatro letras. A complexidade das informaescontidasemcadacluladocorpohumano tamanhae toimpressionantequelerumaletrapor segundodesse cdigo levaria 31 anos, dia e noite, ininterruptamente. Se imprimssemosessas letras num tamanho de fonte regular, em etiquetas normais, e as unssemos, teramoscomoresultadoumatorredotamanhoaproximadodeumprdiode53andares.Pelaprimeiraveznaquelamanhde vero, aquele enredo fabuloso, quecontinha todas as instruesparaconstruirumserhumano,encontrava-sedisponvelparaomundo.

    ComolderdoProjetoGenomaHumanointernacional,noqualmeempenheipormaisdeumadcadaafimderevelarasequnciadoDNA,fiqueiaoladodopresidenteBillClinton,noSaloLestedaCasaBranca,juntamentecomCraigVenter,olderdeumaempresaconcorrentedosetorprivado.Oprimeiro-ministroTonyBlairestavaconectadoaoeventoviasatlite,eascomemoraesaconteciamemvriaspartesdomundo.

    Clinton iniciouodiscurso comparandoomapada sequnciadogenomahumanoaoqueMeriwetherLewisdesdobroudiantedopresidenteThomas Jefferson,naquelemesmo recinto,quaseduzentosanosantes.

    Sem dvida afirmou Clinton , trata-se do mapa mais importante e maisextraordinriojproduzidopelahumanidade.

    No entanto, a parte de seu discurso que mais chamou a ateno do pblico saltou daperspectivacientficaparaaespiritual.

    Hojedisseele,estamosaprendendoa linguagemcomaqualDeuscriouavida.Ficamos ainda mais admirados pela complexidade, pela beleza e pela maravilha da ddivamaisdivinaemaissagradadeDeus.

    Serqueeu,umcientistarigorosamentetreinado,fiqueidesconcertadocomumarefernciareligiosa to espalhafatosa, feita pelo presidente dos Estados Unidos num momento comoaquele?Fiqueitentadoamostrar-meirritadoouaolharenvergonhadoparaocho?No,nemumpouco.Naverdade,eu trabalharacomo redatordodiscursodopresidentenaquelesdiasdefrenesiqueprecederamoevento,e fuienfticoemmeuapoioinclusodessepargrafo.Quandochegouomomentoemquepreciseiacrescentaralgumaspalavrasdeminhaautoria,fizcorocomessesentimento:

  • umdia felizparaomundo.Paramimnohpretensonenhuma,echegomesmoaficar pasmo ao perceber que apanhamos o primeiro traado de nossomanual de instrues,anteriormenteconhecidoapenasporDeus.

    Oquesepassaval?Porqueumpresidenteeumcientista,nocomandodoannciodeummarcodaBiologiaedaMedicina,sesentiramimpelidosaevocarumaconexocomDeus?

    No existe um antagonismo entre as vises demundo cientfica e espiritual? Ambas nodeveriam,aomenos,evitaraparecerladoaladonoSaloLeste?QuaisosmotivosparaevocarDeus nesses dois discursos? Poesia? Hipocrisia? Uma tentativa cnica de bajular as pessoasreligiosasoudedesarmarasquetalvezcriticassemoestudodogenomahumanocomoseestereduzisse a humanidade a ummaquinrio?No.No paramim.Muito pelo contrrio. Paramim,aexperinciademapearasequnciadogenomahumanoedescobriromaisnotveldetodosos textos foi,aomesmo tempo,uma realizaocientficaexcepcionalmentebelaeummomentodevenerao.

    Muitosficarointrigadoscomessessentimentos,presumindoqueumcientistaquetrabalhacom rigor no possa tambm acreditar seriamente em umDeus. Este livro tem por objetivodisseminar esse conceito, argumentando que a crena em Deus 11 pode ser uma opocompletamente racional e que os princpios da f so, na verdade, complementares aos dacincia.

    Essasntesepotencialdasvisesdemundocientficaeespiritual,nostemposmodernos,tidapormuitoscomoimpossvel,quasecomoatentativadeobrigarosdoispolosdeummapermanecer juntos num mesmo ponto. Apesar dessa impresso, vrias pessoas nos EstadosUnidos parecem interessadas emassimilar a validade de ambas as vises demundo em seucotidiano. Pesquisas recentes confirmam que 93% dos norte-americanos so adeptos dealguma forma de crena emDeus; entretanto, amaioria deles tambm dirige carros, utilizaeletricidade e presta ateno na previso do tempo, aparentemente reconhecendo que acinciaquedrespaldoataisfenmenos,emgeral,dignadecrdito.

    Eoquedizerdacrenaespiritualentrecientistas?Naverdade,elamaiscomumdoquemuitas pessoas imaginam. Em 1916, pesquisadores perguntaram a bilogos, fsicos ematemticos seacreditavamemumDeusquesecomunicaativamentecomahumanidadeeao qual possvel fazer uma orao, na esperana de receber uma resposta. Cerca de 40%deles responderam que sim. Em 1997, o mesmo estudo foi repetido literalmente e, parasurpresadospesquisadores,aporcentagempermaneciamuitoprximadaanterior.

    Quer dizer, ento, que a "batalha" entre a cincia e a religio talvez no esteja toclaramenteseparadaquantoparece?Infelizmente,aprovadeumaharmoniapotencial,comfrequncia, ofuscada pelos pronunciamentos vociferados daqueles que ocupam os polos dodebate. No h como negar: bombas so jogadas de ambos os lados. Por exemplo, paradesacreditar, em sua essncia, as convices religiosas de 40% de seus colegas, taxando-ascomobobagenssentimentais,oevolucionistaRichardDawkinssurgiucomodestacadoporta-vozdoseguinte12pontodevista:precisoserateuparaacreditarnaevoluo.

    Eisumade suasdiversas afirmaesestarrecedoras: "A f a grandeenrolao, a grandedesculpapara fugirdanecessidadedepensareavaliarasevidncias.A facreditar,apesarde,oumesmoemvirtudede,umafaltadeevidncia.[...]Af,porserumacrenaquenose

  • baseia em evidncias, o principal vcio de qualquer religio."1Do outro lado do debate,determinados fundamentalistas religiosos atacam a cincia, condenando-a de perigosa e noconfivel,eapontamumainterpretaoaopdaletrados textossagradoscomonicaformacrvel para discernir a verdade cientfica. Entre os participantes dessa comunidade est ofinadolderdomovimentocriacionista,HenryMorris,cujoscomentriossobressaem:

    Essa mentira chamada evoluo permeia e domina o pensamento moderno em todos oscampos.Sendoassim,portanto,inevitvelqueopensamentoevolucionistaseja,basicamente,o responsvel pelos desenvolvimentos polticos mortalmente sinistros e pelo esfacelamentocatico,morale social que vem sendo catalisado em todos os lugares. [...] Se a cincia e aBbliaentramemdesacordo,bvioqueacinciainterpretaosdadosdeformaerrnea.2

    A crescente cacofonia de vozes antagnicas faz comque vrios observadores sinceros sesintamconfusosedesanimados.

    1DAWKINS,R.ISScienceaReligion?TheHumanist,v.57,1997,p.26-29.

    2MORRIS,H.R.TheLongWarAgainstGod.NewYork:MasterBooks,2000.

    Pessoasdebomsensoconcluemteraobrigaodeescolherentredoisextremosinsossos,enenhum deles oferece muito consolo. Decepcionadas pela estridncia de ambas asperspectivas,muitasoptamporrejeitartantoaconfiabilidadedasconclusescientficascomoo valor da religio organizada, preferindo se lanar as diversas formas de pensamentoanticientficoouaalgumaformavaziadeespiritualidade,ouseentregaraumasimplesapatia.Outras decidem aceitar ao mesmo tempo os valores da cincia e os do esprito, isolando,porm, essas pores de sua existncia espiritual ematerial, a fimde evitar umdesconfortocausado por conflitos aparentes. Com base nessas premissas, o bilogo Stephen Jay Gouldacreditavaquecinciae fdeveriamocupar"ofciosseparados,enosobrepostos".Contudo,essetipodeposiotambmsemostrainsatisfatrio,levandoaconflitosinternosedestituindoas pessoas da oportunidade de adotar a cincia ou o esprito de ummodo que as satisfaatotalmente.

    Eis aqui a pergunta central deste livro: nesta era moderna de cosmologia, evoluo egenomahumano, serqueaindaexisteapossibilidadedeumaharmonia satisfatriaentreasvisesdemundocientficaeespiritual?Eurespondocomumsonorosim!Emminhaopinio,no h conflitos entre ser um cientista que age com severidade e uma pessoa que cr numDeusqueteminteressepessoalemcadaumdens.Odomniodacinciaestemexploraranatureza.OdomniodeDeusencontra-senomundoespiritual,umcampoquenopossvelesquadrinhar com os instrumentos e a linguagem da cincia; deve ser examinado com ocorao,comamenteecomaalmaeamentedeveencontrarumaformadeabarcarambososcampos.

    Meuargumentoquetaisperspectivaspodemcoexistiremqualquerindivduo,edemodoque enriquea e ilumine a experincia humana. A cincia a nica forma confivel paraentender o mundo da natureza, e as ferramentas cientficas, quando utilizadas de maneiraadequada,podemgerarprofundosdiscernimentosnaexistnciamaterial.Acincia,entretanto, incapaz de responder a questes como: "Por que o universo existe?"; "Qual o sentido da

  • existnciahumana?"; "Oqueacontece aps amorte?".Umadasnecessidadesmais fortesdahumanidadeencontrarrespostasparaasquestesmaisprofundas,etemosdeapanhartodoopoder de ambas as perspectivas, a cientfica e a religiosa, para buscar a compreenso tantodaquiloquevemoscomodoquenovemos. Estaobra temporobjetivo exploraruma trilharumoaumaintegraosbriaeintelectualmentehonestadosdoispontosdevista.

    Considerar a gravidade de tais matrias pode ser perturbador. Todos ns j chegamos auma determinada viso demundo, possamos ou no cham-la assim. Ela nos auxilia a darsentido ao mundo nossa volta, fornece-nos uma estrutura tica e conduz nossas decisessobre o futuro. Quem quer que se ponha a mexer nessa viso de mundo no deve faz-losuperficialmente. Um livro que se prope desafiar algo to fundamental pode trazer maisdesconforto do que alvio.No entanto, ns, seres humanos, aparentamos possuir um desejoarraigado por descobrir a verdade, mesmo que tal vontade seja facilmente abafada pelosdetalhesda vidadiria. Tais distraes combinam-se aumdesejode evitar que levemosemcontanossamortalidade;assim,osdias,assemanas,osmesesouatmesmoosanospassam,eno se dnenhumaconsiderao sria s eternas dvidas sobre a existncia humana. Estelivro apenas um pequeno antdoto para tal desconforto, mas talvez fornea umaoportunidadeparaaautorreflexoeparaumdesejodeolharcommaisprofundidade.

    Antes de mais nada, preciso explicar como um cientista gentico tornou-se algum queacreditaemumDeusilimitadopelotempoepeloespao,queteminteressepessoalnossereshumanos.Algunsirosuporqueissoocorreuemvirtudede15umaeducaoreligiosargida,profundamente injetadapela famliaepelacultura,algoquese tornou inevitvelmais tarde,navida.Isso,contudo,nocondizcomminhaverdadeirahistria.

  • PRIMEIRAPARTE

    Ocismaentreacinciaeaf

  • ALinguagemdeDeus

    CAPTULO1

    DoatesmocrenaOSPRIMEIROSANOSDEMINHAvidano foramconvencionaisemvriosaspectos.No

    entanto, como filho de pessoas com opinies prprias, tive uma criao moderna bastanteconvencionalemtermosdefnoeraalgotoimportante.

    CrescinumafazendapoeirentanovaledorioShenandoah,naVirgnia.Lnohaviaguacorrentenemoutrascomodidadesfsicas.Todavia,tudoissofoimaisdoquecompensadoporumamistura estimulante de experincias e oportunidades, emuma cultura extraordinria deideiascriadapelosmeuspais.

    Os dois se conheceram no curso de doutoramento em Yale, em 1931, e levaram suasaptides para organizar grupos e seu amor pela msica comunidade experimental deArthurdale,emWestVirgnia.L,trabalharamcomEleanorRooseveltnatentativaderevigorarumacomunidadedemineirosoprimidosnasprofundezasdaGrandeDepresso.

    Entretanto,outrosconselheirosdaadministraoRoosevelttinhamideiasdiferentes,elogoafundaoacabou.ArunadacomunidadeArthurdale,baseadanapolticadedifamaesdeWashington,fezmeuspaispassaremorestodavidasobasuspeitadogoverno.Voltaramparaa vida acadmica na Faculdade Elon, emBurlington, naCarolina doNorte. L, presenteadocom a bela e selvagem cultura popular rural do sul, meu pai tornou-se colecionador demsicas folclricas,viajandopelascolinasevaleseconvencendoosdesconfiadoshabitanteslocaisacantarparaumgravador.AsgravaesformaramumafatiaconsidervelnacoleodaBibliotecadoCongressodecanesfolclricasdosEstadosUnidos.

    Com a chegada da Segunda GuerraMundial, esses empreendimentos musicais passaramparaumplanosecundrio,emvirtudedeassuntosmaisurgentesarespeitodadefesanacional.Meupai,ento,foitrabalharajudandoaconstruirbombardeirosparaoesforodeguerra.Porfim,tornou-sesupervisoremumafbricadeaeronavesemLongIsland.

    Ao terminar a guerra,meus pais concluramque a vida estressante dos negcios no eraparaeles.Estavamfrentedeseutempoefizeram,jnosanos1940,"coisastpicasdosanos1960":mudaram-separaovaledo rioShenandoah,naVirgnia, compraramuma fazendade95acres[384,451m2]etentaram20criarumestilodevidasimplessemousodemquinasagrcolas.

    Ao descobrir, poucos meses mais tarde, que aquilo no iria alimentar seus dois filhosadolescentes (e logo outro irmo e eu chegaramos), meu pai arrumou um emprego deprofessor de teatro em um colgio local feminino. Convocou atores da cidade e, com as

  • estudantes do colgio e comerciantes da regio, descobriu que a produo de peas erabastantedivertida.Atendendoareclamaesporcausadoperodoextensoecansativoemquenohaviaapresentaesduranteovero,meupaieminhamefundaramumteatrodeveroemumpequenobosquedecarvalhosacimadanossacasadefazenda.Maisdecinquentaanosdepois, o Oak Grove Theater [Teatro do Bosque de Carvalhos] mantm-se ininterrupta edeliciosamentenaativa.

    Nessamisturadebelezacampestre, trabalhorduode fazenda, teatrodeveroemsica,eunasci e amadureci.Caula de quatro irmos, no experimentei tantas dificuldades que jno fossem conhecidas de meus pais. Cresci com um sentimento de que precisava terresponsabilidade pormeu comportamento eminhas escolhas, porque ningum iria aparecerparacuidardissopormim.

    Minhamefoiminhaprofessora.Minhaedemeusirmosmaisvelhos.Aquelesprimeirosanosderam-meumpresenteinestimvel:oprazerdoaprendizado.Apesardeminhamenoterumaagendaorganizadadeaulasnemplanejarliesdecasa,tinhaumapercepoincrvelpara identificar tpicos que deixavam uma mente jovem intrigada, persistindo neles comgrandeintensidadeatumpontonaturaldeinterrupoe,emseguida,mudavaparaalgonovoeigualmenteempolgante.Aprendernuncaeraalgoquevocfaziaporobrigao,esimporqueadorava.A fnoeraparte importantedeminha infncia.Eu tinhaumavagaconscinciadoconceito de Deus, mas minhas interaes com Ele limitavam-se a momentos infantis eocasionais de troca, com relaoa algumacoisaque euqueriaque Ele fizesse21pormim.Lembro-me,por exemplo,de ter feitoumcontratocomDeus (aos9anosde idade,maisoumenos):seEleevitasseachuvaduranteumaapresentaodeteatroqueenvolviatambmumafesta com msica em um sbado noite, coisa que me deixava bastante entusiasmado,prometeriajamaisfumarumcigarro.Lgicoqueachuvanocaiueeununcaadquiriohbito.Anos antes, quando tinha 5 anos, meus pais decidiram que eu e meu terceiro irmodeveramosparticipardocoraldemeninosdaigrejaepiscopallocal.Fizeramquestodefrisarqueseriaumamaneiragenialdeaprendermsica,masqueaTeologianodeveriaserlevadatoasrio.Seguiessasinstrues,aprendendoagrandebelezadaharmoniaedocontrapontomusical, deixando, porm, que os conceitos teolgicos pregados no plpito passassem pormimsemdeixarnenhumresduoidentificvel.

    Quandoeutinha10anos,nsnosmudamosparaacidadea fimdeficarcomminhaavdoente, e passei a frequentar a escola pblica. Aos 14, tive meus olhos abertos para osmtodosmaravilhosamenteestimulantesepoderososdacincia.InspiradoporumprofessordeQumica carismtico, que podia escrever informaes na lousa com as duas mossimultaneamente,descobri a satisfao intensadocarterorganizadodouniverso.O fatodetodaamatriaserconstitudadetomosemolculasqueobedeciamaprincpiosmatemticosmostrou-se uma revelao inesperada, e a capacidade de utilizar os instrumentos da cinciaparafazernovasdescobertassobreanaturezaarrebatou-medeumasvez,comoalgodoqualeuqueriafazerparte.

    Comoentusiasmodeumrecm-convertido,decidiqueminhametanavidaseriatornar-meum qumico. No importava que eu soubesse relativamente pouco sobre as outras cincias,pareciaqueesseprimeironamoricodeinfnciaiamudarminhavida.

    Meus contatos com a Biologia, porm, me deixavam totalmente insensvel. Para minha

  • mente adolescente, pelo menos, 22 as bases da Biologia pareciam ter mais a ver com umaprendizado automtico de fatos sem propsito do que com a elucidao de princpios.Naverdade,noestavanemumpoucointeressadoemdecoraraspartesdeumlagostimnememtentar descobrir a diferena entre um filo, uma classe e uma ordem. A complexidadeavassaladora da vida levou-me a concluir que a Biologia era quase igual filosofiaexistencialista: no tinha omenor sentido. Paraminhamente, que se desenvolvia de formareducionista,nohaviauma lgicaprximaobastanteparachamarminhaateno.Quandomeformei,aos16anos, ingresseinaUniversidadedaVirgnia,decididoaestudarQumicaeseguir uma carreira cientfica. Como a maioria dos calouros, achei esse novo ambienteestimulante, cheio de ideias que ricocheteavam nas paredes das salas de aula e dosdormitrios, tarde da noite. Algumas dessas ideias se voltavam, invariavelmente, para aexistncia de Deus. No incio da minha adolescncia, tinha tido momentos casuais deexperincia,ansiandoporalgoforademim,emgeralassociadobelezadanaturezaouaumaexperincia musical particularmente profunda. Entretanto, meu senso de espiritualidadeencontrava-se muito pouco desenvolvido e era facilmente desafiado por um ou dois ateusagressivos que sempre encontramos em quase todos os alojamentos de faculdade. Durantealgunsmesesemminhacarreirauniversitria,acabeipormeconvencerdeque,emboramuitasfsreligiosastivesseminspiradotradiesinteressantesdearteecultura,nosustentavamumaverdadecomfundamentos.

    Embora eu desconhecesse a palavra na poca, tornei-me um agnstico, termo concebidoporT.H.Huxley,umcientistadosculoXIX,paraindicaralgumquesimplesmentenosabeseDeusexisteouno.Hagnsticosdetodosostipos;algunschegaramaessaposioapsuma anlise excessiva das evidncias. Muitos, porm, acham simplesmente que esto emposio cmoda, a qual lhes permite evitar pensar em argumentos consideradosdesconfortveisparaambosos lados.Naverdade,minhadeclarao"nosei"podiasermaisbemtraduzidacomo"noquerosaber".Naposiodeumjovemquecresciaemummundorepleto de tentaes, era conveniente ignorar a necessidade de prestar contas a qualquerautoridadeespiritual.Euexerciaumtipodepensamentoecomportamentodenominado,pelofamosoacadmicoeescritorC.S.Lewis,"cegueiravoluntria".

    Depois de formado, ingressei em um programa de doutorado em Fsico-qumica daUniversidadedeYale,buscandoaelegnciadaMatemticaque,aprincpio,haviamelevadoaesseramodacincia.Minhavidaintelectualencontrava-seimersaemmecnicaqunticaeequaes diferenciais de segundo grau, e meus heris eram os gigantes da Fsica AlbertEinstein,NielsBohr,WernerHeisenbergePaulDirac.AospoucosmeconvenciadequetudonouniversopodiaserexplicadocombaseemequaeseprincpiosdaFsica.LiabiografiadeAlbert Einstein e descobri que, apesar de sua slida posio sionista aps a SegundaGuerraMundial, ele no acreditava em lave, o Deus dos judeus. Isso apenas reforou minhaconcluso de que nenhum cientista pensante poderia cogitar seriamente a possibilidade deDeussemcometerumtipodesuicdiointelectual.

    E assim, aos poucos, passei de agnstico para ateu. Sentia-me bastante vontadedesafiandoas crenas espirituaisdequalquerumqueasmencionasseemminhapresena, edefiniaessespontosdevistacomosentimentalismosesuperstiesforademoda.

    Dois anos nesse programa de doutorado, emeu plano de vida estruturado de forma to

  • estreitacomeouasedespedaar.Apesardosprazeresdiriosdepersistiremminhatesesobreamecnicada teoriaquntica, comecei a ter dvidas sobre24 se conseguiria ganhar a vidaseguindo aquele caminho. Aparentemente, a maioria dos avanos significativos da teoriaqunticahaviaacontecidocinquentaanosantes,eamaiorpartedaminhacarreiratalvezfossepassar na aplicao de simplificaes e aproximaes sucessivas descrevendo determinadasequaes elegantes, porm insolveis, s um tantinho mais fceis de trabalhar. Falando deumamaneiramaisprtica,eutinhaaimpressodequeseguiriaumcaminhoinevitvel:avidade um professor universitrio, apresentando interminveis sries de palestras sobretermodinmica emecnica da estatstica para classes emais classes de alunos que ficariamentediadosouaterrorizadoscomtaismatrias.

    Quaseaomesmotempo,emumesforoparaampliarmeushorizontes,inscrevi-meemumcurso de Bioqumica, por fim investigando as cincias da vida que havia evitado com tantocuidado em pocas passadas. O curso era fabuloso. Os princpios do DNA, do RNA e daprotena,quenuncatinhamsemostradoevidentesparamim,foram-meapresentadosemtodaa sua glria digital de satisfao. A capacidade de colocar em prtica rigorosos princpiosintelectuais para compreender a Biologia, algo que eu imaginava impossvel, estava vindo apblicocomestardalhaomediantearevelaodocdigogentico.

    Com o advento de novosmtodos de emendar fragmentos diferentes deDNA vontade(DNA recombinante), a possibilidade de aplicar todo esse conhecimento em benefcio dahumanidadepareciabastantereal.Euestavaestarrecido.ABiologia,afinaldecontas,temumaelegnciamatemtica.Avidafazsentido.

    Nessa poca, com apenas 22 anos, mas j casado e com uma filha brilhante e curiosa,estavametornandoumapessoamaissocivel.Quandomaisjovem,preferia,comfrequncia,ficarsozinho.Agora,ainteraohumanaeodesejodecontribuircomalgoparaahumanidadepareciam mais importantes. Impulsionado por essas sbitas revelaes, questionei minhasescolhas anteriores, at mesmo minha capacidade para a carreira de cincias ou para oempreendimentodepesquisas independentes.Euestavaquaseconcluindomeudoutorado,e,ainda indeciso, fiz uma solicitao para ser admitido na faculdade de Medicina. Com umdiscursoensaiadocuidadosamente, tenteiconvencerosmembrosdocomitdeadmissesdequeaquelareviravoltaconsistianaverdadeemumcaminhonaturalparaotreinamentodeumdosfuturosmdicosdanao.Pordentro,eunotinhaessacertezatoda.Afinaldecontas,noera eu o sujeito que odiava Biologia porque exigia memorizao? Existia algum campo deestudoqueprecisavademaismemorizaesdoqueaMedicina?Havia,porm,algodiferentenaquele momento: estvamos falando a respeito de seres humanos, no do lagostim; haviaprincpiosfundamentaissobosdetalhes;issopoderia,emltimaanlise,fazeradiferenanavidadepessoasreais.

    Fui aceito na Universidade da Carolina do Norte. Em poucas semanas, j sabia que afaculdadedeMedicinaeraolugarcertoparamim.Adoravaoestmulointelectual,osdesafiosticos,oelementohumanoeaincrvelcomplexidadedeseuorganismo.

    Em dezembro daquele primeiro ano descobri como combinar meu novo amor pelaMedicinacommeuantigoamorpelaMatemtica.Umpediatraseveroeumtantoinacessvel,quedavaumtotaldeseishorasdepalestrassobregenticamdicaparaosalunosdeprimeiroanodeMedicina,mostrou-memeu futuro.Levavasaulaspacientescomanemia falciforme,

  • galactosemia (uma intolerncia,geralmente fatal,aderivadosdo leite)e sndromedeDown,todasdoenascausadasporpequenas falhasnogenoma,algumas tosutisquantoumanicaletraerrada.

    Fiquei fascinado com a elegncia do cdigo doDNA humano e as vrias consequnciasdaqueles rarosmomentosdedescuidode seumecanismodecpia. Emboraopotencialpara26 fazer algo que realmente ajudasse muitos dos afetados por aquelas doenas genticasparecesse bem distante, imediatamente me senti atrado por aquela disciplina. Apesar denaquele instante no haver nem sequer uma sombra de possibilidade de algo to grandiosoquantooProjetoGenomaHumanoserconcebido,atrilhaqueinicieiem1973apresentou,aoacaso,orumodiretoparaminhaparticipaoemumdosmaioresempreendimentoshistricosdahumanidade.

    Essatrilhatambmmelevou,noterceiroanodafaculdadedeMedicina,aterexperinciasintensasnoatendimentoapacientes.Naqualidadedemdicosemtreinamento,osestudantesdeMedicinasoarremessadosparaumdostiposderelacionamentomaisntimosquesepodeimaginar,comindivduosquelhessoestranhoscompletosatomomentoemqueadoecem.Tabusculturais,quenormalmenteimpedemointercmbiodeinformaesmuitoparticulares,desmoronam de sbito, juntamente com o contato fsico sensvel entre um mdico e seuspacientes.Tudo isso fazpartedeumcontrato respeitadoeduradouroentreodoenteequemministrar sua cura. Achei os relacionamentos que desenvolvi com pacientes enfermos emoribundos algo arrebatadores, e lutei paramanter a distncia profissional e a ausncia deenvolvimentosemocionaisquemuitosdemeusprofessoresdefendiam.

    O que deixou marcas profundas em mim, aps minhas conversas ao p da cama comaquelaspessoasdeboandoledaCarolinadoNorte,foioaspectoespiritualdelas.Presencieivrioscasosde indivduoscuja f lhessupriacomumareafirmaodacrenaslida,depazdefinitiva,fossenestemundoounooutro,apesardosofrimentoterrvelquelheserainfligido,oqual,namaioriadasocasies,nohaviam feitonadaparacausar. Sea feraumamuletapsicolgica, conclu, devia serbastantepoderosa. Senopassavadovernizdeuma tradiocultural, por que motivo aquelas pessoas no sacudiam seus punhos fechados para Deus,exigindo que seus amigos e parentes parassem com toda aquela conversa sobre um podersobrenaturaldeamorebenevolncia?

    Meumomentomaisembaraososurgiuquandoumasenhoraidosa,sofrendotodososdiaspor causa de uma angina grave e incurvel, perguntou-me em que eu acreditava. Umapergunta justa; havamosdiscutidomuitos outros assuntos importantes sobre vida emorte, eela partilhara comigo suas crenas crists, prprias e slidas. Senti que fiquei ruborizado aogaguejar as palavras: "No sei bem ao certo". Sua bvia surpresa apresentou-se como umntido alvio ao constrangimento do qual eu vinha fugindo durante quase todos osmeus 26anosdevida:jamaisconsidereiseriamenteumaevidnciacontraeafavordeumacrena.

    Aquele instante me assombrou durante vrios dias. Ento eu no me considerava umcientista?Umcientistatirasuasconclusessemlevaremcontaosdados?Emtodaaexistnciahumana, no podia haver uma pergunta mais importante do que "Existe algum Deus?". E,apesar disso, l estava eu, munido de uma combinao de cegueira voluntria e algo quetalvez s pudesse ser descrito adequadamente como arrogncia: a fuga de qualquer reflexosriasobreDeusserumapossibilidadereal.Derepente,todososmeusargumentospareciam

  • fracosdemais,eeutinhaasensaodequeochosobmeuspsestavaseabrindo.

    Talpercepofoiumaexperinciacompletamenteassustadora.Afinaldecontas,seeunoconseguia mais confiar na solidez de minha posio atesta, como poderia assumir aresponsabilidade pelas aes que preferia deixar sem um exameminucioso?Deveria prestarcontasaoutroquenoeuprprio?

    Aperguntaagorasetornavaopressivademaisparaevitar.

    A princpio, acreditava que uma investigao completa de uma base racional para a fnegariaosmritosdacrenaere28afirmariaminhaposiodeateu.Noentanto,determineiqueexaminariaosfatos,noimportassemosresultados.Assimteveincioumestudorpidoeconfuso sobre as principais religies do mundo. Muito do que encontrei em ediessimplificadas de religies diferentes (achei a leitura dos verdadeiros textos sacros difcildemais)deixou-metotalmenteatnito,evipoucosmotivosparamelanaraumaououtradasdiversaspossibilidades.Noacreditavaquehouvessebaseracionalparaumacrenaespiritualsubjacenteaqualquerumadaquelasreligies.Isso,contudo,logomudou.Fuivisitarumpastormetodistaquemoravanamesmaruaqueeu,afimdeperguntar-lheseaftinhaalgumsentidolgico. Ele escutou com pacincia minhas divagaes confusas (e talvez blasfemas); emseguida,apanhouumlivrinhoemsuaprateleira,sugerindoqueeuolesse.

    OlivroeraCristianismoPuroeSimples (publicadonoBrasilpelaMartinsFontes),deC.S.Lewis. Nos poucos dias que se seguiram, conforme eu folheava as pginas, lutando paraabsorveraamplitudeeaprofundidadedosargumentosintelectuaisapresentadospelolendrioacadmicodeOxford,percebique todososmeusargumentoscontraaaceitaoda feramdignos de um garoto em idade escolar. Obviamente eu tinha de comear do zero paraconsiderar aquela que a mais importante de todas as questes humanas. Lewis pareciaconhecertodasasminhasobjees,algumasantesmesmodeeuformul-las.Falousobreelasemumaou duas pginas.Quando,mais tarde, descobri que o prprio Lewis havia sido umateu que se propusera reprovar a f com base em argumentaes lgicas, percebi como elepdeconhecertobemminhatrilha.Eletambmatinhapercorrido.

    Oargumentoquemaischamouminhaatenoequemaisacalentouminhasideiassobreacincia e o esprito at seus alicerces estava logo ali, no ttulo do Livro Um: "O certo e oerradocomopistaparaosentidodouniverso".Embora,emmuitos29aspectos,a"LeiMoral"queLewisdescreveufosseumacaractersticauniversaldaexistnciahumana,tiveaimpressodequeaexaminavapelaprimeiravez.

    ParacompreenderaLeiMoral,valeconsiderar,conformeLewiso fez,queelaevocadadecentenasdemaneiras,todososdias,semqueaquelequeaevocasedetenhaparamostraras bases de seu argumento. As divergncias fazem parte da vida cotidiana. Algumas sorelativas aomundomaterial, como a esposa que critica omarido por no ter sido gentil aoconversarcomumaamigaouumacrianaquedeclaraque "no justo"distribuirdiferentesquantidades de sorvete numa festa de aniversrio.Outras argumentaes so encaradas comumaimportnciamaior.Emassuntosinternacionais,porexemplo,algunsargumentamqueosEstados Unidos tm a obrigao moral de disseminar a democracia pelo mundo, mesmo custadopoderiomilitar,enquantooutrosdeclaramqueousoagressivoeunilateraldeforasmilitareseeconmicastoruimquantoafaltadedemocraciaemumpas.

  • Atualmente, na Medicina, debates furiosos permeiam a questo de aceitar ou no oempreendimento da pesquisa com clulas-tronco embrionrias. Alguns afirmam que essapesquisa viola a santidade da vida humana; outros supem que o potencial para aliviar osofrimento humano constitui uma procurao tica para prosseguir com tal trabalho (esse evriosoutrosdilemasdaBioticasolevadosemcontanoApndicedestelivro).

    Repare que, nesses exemplos, cada parte tenta recorrer a um padro superior no-declarado. Esse padro a Lei Moral, que pode tambm ser chamada de "a lei docomportamento correto", e sua existncia em cada uma dessas situaes pareceinquestionvel. O que se est debatendo se uma ao ou outra consiste em umaaproximaosexignciasdetallei.Osacusadosdeterfalhado,comoomaridoquepoucoamistosocomaamigadaesposa,emgeralrespondemcomdesculpasvariadassobreporquedeveriamserauxiliadosasairdeumadificuldade.

    Praticamentenuncaretrucamcomalgocomo:"Vparaoinfernovoceesseseuconceitodecomportamentocorreto".

    Oquetemosaquibastantepeculiar:oconceitodecertoeerradoaparentaseruniversalentre todos os membros da espcie humana (apesar de sua prtica poder resultar emconsequnciasbrutalmentediferentes).Assim,issoparecemaisaabordagemdeumfenmenodoquedeumalei,comoaleidagravidadeouadarelatividadeespecial.Contudo,trata-sedeumaleique,sejamossinceros,infringidacomumafrequnciaimpressionante.

    Atondepossodizerdamelhormaneira,essaleipareceaplicar-seespecialmenteaossereshumanos.Emboraoutrosanimaispossam,svezes,aparentardemonstraesdevislumbredeum sentido de moral, sem dvida estas no so amplamente difundidas e, em muitosexemplos, o comportamento de outras espcies parece contrastar dramaticamente comqualquersensodejustiauniversal.AotentarenumerarasqualidadesespeciaisdoHomo

    sapiens, os cientistas geralmente se referem conscincia de certo e errado, juntamentecom o desenvolvimento da linguagem, a conscincia do "eu" e a capacidade de imaginar ofuturo.

    Noentanto,seressanoodecertoeerradoumaqualidadeessencialdoserhumanoouapenas uma consequncia de tradies culturais? Alguns alegamque as culturas apresentamnormasdecomportamentocomtantasdiferenasquequalquerconclusosobreumaLeiMoralcompartilhadano tem fundamento. Lewis, estudiosode vrias culturas, chama issodeumamentira,umamentiraboae retumbante.Seumhomemforaumabibliotecaepassaralgunsdias com a Encydopedia of Religion and Ethics [Enciclopdia de religio e tica], logoperceber a imensa unanimidade do fundamento prtico no ser humano. Desde os HinosBabilnicosaPitgorasdeSamos,desdeasleisdeManu,oLivrodosMortos,osAnalectosdeConfcio, os Estoicos, os Platonistas, desde os aborgines australianos e peles-vermelhas dosEstados Unidos, esse homem na biblioteca far um apanhado das mesmas dennciastriunfantementemontonasdeopresso,assassinato,traioefalsidade;asmesmasobrigaesdegentilezaaosidosos,aosjovenseaosfracos,sobreadoaodeesmolaseaimparcialidadeeahonestidade.1Emcertasculturasincomuns,aleiassumeadornossurpreendentesvejam-seasbruxasqueeramqueimadasnosEstadosUnidos,no sculoXVII.Contudo,numexamemais apurado, percebe-se que essas aberraes aparentes surgem de concluses sustentadas

  • commuita nfase, mas mal orientadas, sobre quem ou o que o bem ou o mal. Se voctivesseconvicodequeumabruxafosseaencarnaodomalsobreaterra,umapstolododemnio,nolhepareceriajustificvelessetipodeaodrstica?

    Permita-me interrompero raciocniopara salientarqueaconcluso sobreaexistnciadaLeiMoralencontra-seemumconflitosriocomaFilosofiaps-modema.Estaargumentanohaverumcertoeumerradoabsolutos,equetodasasdecisesticassorelativas.Essaviso,quepareceamplamentedivulgadaentreosfilsofosmodernos,masqueemprestaumamsticamaioriadeseusmembrosjuntoaopblicoemgeral,encontraumasriedesituaeslgicasnoestilo"secorrerobichopega,seficarobichocome".Senohverdadeabsoluta,serqueo prprio ps-modernismo real? De fato, se no existe nem certo nem errado, no hmotivosparadiscutiradisciplinadatica.

    1 LEWIS, C. S. The poison of subjetivism. In: Hooper,Walter (Ed.). C S. Lewis,Christian Reflections. GrandRapids:Eerdmans,1967.p.77.

    Alguns irocontestar,dizendoqueaLeiMoralumasimplesconsequnciadaspressesevolucionrias. Essa objeo surge de um novo campo da Sociobiologia e tenta fornecerexplicaesparaocomportamentoaltrustacombasenovalorpositivodaseleonaturaldeDarwin. Se pudssemos apresentar tal argumento como sustentao para a interpretao dediversas exigncias da Lei Moral como uma indicao para Deus, teramos um problemapotencialporisso,valeapenaexaminaressepontodevistadeformamaisdetalhada.

    Leveemcontaumexemplo importanteda foraquesentimos,oriundadaLeiMoraloimpulsoaltrusta,avozdaconscincianoschamandoaajudarosoutros,mesmosemrecebernadaemtroca.NemtodasasexignciasdaLeiMoral se resumemaoaltrusmo,claro;porexemplo,osbitopesonaconscinciaquealgumsenteapsumamnimadistorodosfatosnadeclaraodeimpostoderendanopodeseratribudosensaodeterprejudicadooutroserhumanoidentificvel.

    Primeiramente,vamosdeixarclarosobreoqueestamosfalando.Noentendooaltrusmocomo um comportamento do tipo "uma mo lava a outra", ou seja, praticar a bondadeesperandoalgumbenefcioemtroca.Oaltrusmomaisinteressante:dar-sesemegosmoaosoutros, com sinceridade, semnenhuma inteno secundria.Quandovemosademonstraodesse tipo de amor e generosidade, ficamos dominados por surpresa e respeito profundo.Oskar Schindler colocou sua vida em grande risco para proteger mais de mil judeus doextermnionazistaduranteaSegundaGuerraMundiale,porfim,morreupobreetodosnssentimosumagrandeadmiraoporseusatos.MadreTeresatida,demodocoerente,comouma das pessoas mais admiradas da poca atual, embora sua pobreza autoimposta e suadedicaoextremaaosenfermosemoribundosemCalcutsejamumdrsticocontrapontoaoestilodevidamaterialistaquedominanossacultura.

    Algumas vezes, o altrusmo pode ampliar-se at para circunstncias em que a pessoabeneficiada pareceria um inimigo visceral. A freira beneditina irm Joan Chittister narra aseguintehistriasufi:EraumavezumaidosaquecostumavameditarsmargensdoGanges.Certamanh,aoencerrarsuameditao,elaavistouumescorpioflutuandoindefesonafortecorrenteza. A medida que era arrastado para mais perto, prendeu-se nas razes que seramificavamparadentrodorio.Oescorpiolutavafreneticamenteparaselibertar,mascada

  • vez ficava mais emaranhado. Imediatamente a senhora aproximou-se do escorpio que seafogava e este, assimque ela o tocou, cravou-lhe seu ferro.Amulher afastou amo,mas,aps ter recobrado o equilbrio, tentou de novo salvar a criatura. Todas as vezes que elatentava,porm,oferronacaudadoanimalaatingiacomtamanhagravidadequesuasmossangravam e seu rosto distorcia-se de dor. Um transeunte que via a idosa lutando com oescorpiogritouparaela:

    Qualoseuproblema,suatola?Quersematartentandosalvaressacoisafeia?

    Olhandonosolhosdoestranho,elaretrucou:

    Sporquedanaturezadoescorpio ferroar,porqueeudeverianegarminhaprprianaturezadesalv-lo?2

    *Suficomoconhecidooadeptodosufismo, formadeascetismoemisticismoislmico, influenciadapelohindusmo,pelobudismoepelocristianismo.(N.T.)

    2 In: FRANCK, R, ROZE, CONNOLLY, R. (Orgs.).What Does It Mean To Be Human? Reverence for life

    ReaffirmedbyResponsesfromAroundtheWorld.NewYork:St.Martin'sGriffin,2000.p.151.

    Talvez esse parea um exemplo drstico no hmuitos dentre ns que arriscariam avida para salvar um escorpio. No entanto, a maioria das pessoas, sem dvida, jexperimentou um chamado interno para ajudar um estranho em necessidade, mesmo semnenhuma possvel vantagem pessoal. E, se de fato agiu guiada por esse impulso, teve comoconsequnciaumasensaoconfortvelde"terfeitoacoisacerta".

    C.S.Lewis,emseudestacadolivroOsQuatroAmores(MartinsFontes),exploraaindamaisanaturezadesseamorgeneroso,queelechamade"gape",palavraderivadadogrego.Oautorsalienta que essa forma de amor se distingue das outras trs (afeto, amizade e amorromntico),podendo sermaisbemcompreendidacomovantagem recproca,equepodemosv-ladestacadaemoutrosanimaisalmdens.

    O gape, ou o altrusmo, apresenta-se como um importante desafio aos evolucionistas.Trata-se, sinceramente, de um escndalo para o raciocnio reducionista. No pode serresponsabilizado pelo impulso de se perpetuar dos genes egostas do indivduo.Muito pelocontrrio: pode levar os seres humanos a realizar sacrifcios que traro sofrimento pessoal,ferimentooumorte,semprovaalgumadebenefcio.E,contudo,seexaminarmoscomcuidadoaquela voz interior que s vezes chamamos de conscincia, perceberemos que amotivaopara a prtica desse tipo de amor existe dentro de todos ns, apesar de nossos esforosfrequentesparaignor-la.

    Sociobilogos como E. O. Wilson tentaram explicar esse comportamento com base emalgum benefcio reprodutivo indireto para o praticante da ao altrusta. Os argumentos,contudo, rapidamente se tornam um problema. Uma suposio de que os repetidoscomportamentos altrustas de um indivduo so reconhecidos como atributo positivo naseleo do companheiro. Tal hiptese, entretanto, entra em conflito direto comobservaesfeitasemprimatasno-humanosque,emgeral,mostramoopostoporexemplo,aprticadoinfanticdioporummacacorecmdominanteparalimparocaminhoasuafuturaninhada.Um outro argumento o de que benefcios recprocos indiretos, oriundos do altrusmo,

  • proporcionaram vantagens ao praticante durante o perodo da evoluo; no entanto, essaexplicao no leva em conta a motivao do ser humano para praticar pequenos atos deconscincia a respeito dos quais ningummais sabe. Um terceiro argumento o de que ocomportamentoaltrustaentremembrosdeumgrupobeneficiaogrupotodo.Comoexemplostemosos formigueiros, nosquais operrias estreis trabalhamdemaneira rdua e incessanteparacriarumambienteondesuasmespossamgerarmais filhos.Esse tipodealtrusmodasformigas, contudo, prontamente explicadoem termos evolucionriospelo fatodeos genesque incentivam as formigas operrias estreis serem exatamente os mesmos que serotransmitidos pela me aos irmos e irms que aquelas esto ajudando a criar. Osevolucionistasagoraconcordam,quaseunnimes,queessasconexesdeDNAincomunsnoseaplicamapopulaesmais complexas,nasquais a seleo trabalhano indivduo,nonapopulao.Ocomportamentolimitadodaformigaoperria,portanto,apresentaumadiferenaessencial com relaovoz interiorque fazcomqueeume sintacompelidoa saltarno rioparatentarsalvarumestranhoqueestseafogando,mesmoqueeunosejaumbomnadadore possa morrer na tentativa. Alm disso, para que o argumento evolucionrio referente abenefcios grupais de altrusmo se mantivesse, seria necessria, aparentemente, uma reaooposta,ouseja,ahostilidadeaindivduosquenofizessempartedogrupo.OgapedeOskarSchindler eMadre Teresa distorce esse tipo de raciocnio. Choca saber que a LeiMoralmepedequesalvealgumqueestseafogando,mesmoquesejauminimigo.

    SeaLeidaNaturezaHumananopodeserexplicadasemhesitaocomoumaferramentaculturalouumprodutoindiretodaevoluo,como,ento,podemosjustificarsuapresena?

    CitandoLewis:

    Sehouveumpodercontroladorforadouniverso,estenopoderiaapresentar-seanscomoumdos fatosque fazempartedouniversoassimcomooarquitetodeumacasano ,defato, uma das paredes, ou a escada, ou a lareira dessa casa. A nica maneira pela qualpodemos esperar que ele semostre dentro de ns, como uma influncia ou um comandotentando fazer com que nos comportemos de determinadomodo. E isso que encontramosdentrodens.Semdvida,issonodeverialevantarsuspeitas?3

    Aodepararcomesseargumentoaos26anos,fiqueiaturdidocomsualgica.Aqui,ocultaemmeucorao, to familiarquantoqualquer coisanaexperinciadodia adia,masagorasurgindonaformadeumprincpioesclarecedor,essaLeiMoralbrilhavacomsualuzbrancaeforte nos recnditos de meu atesmo infantil, e exigia uma sria considerao sobre suaorigem.EstariaDeusolhandodenovoparamim?

    E,sefosseassim,quetipodeDeusseria?SeriaumDeuspelavisodesta.queinventouaFsicaeaMatemtica,comeououniversoemmovimentohcercade14bilhesdeanose,emseguida,perambulouparalonge,afimdelidarcomoutrosassuntosdemaiorimportncia,comoEinsteinpensava?

    No,esseDeus,seeupudesseperceb-loemsuatotalidade,deveriaserumDeusdopontodevistadostestas,umDeusquedesejassealgumtipoderelacionamentocomessascriaturasespeciaisdenominadassereshumanose,portanto,tivesseincutidoesseseuvislumbreespecialem cada um de ns. Poderia ser o Deus de Abrao, mas sem dvida no seria o Deus deEinstein.

  • 3LEWIS,C.S.MereChristianity.Westwood:BarbourandCompany,1952.p.21.

    *OdestaconsideraarazocomonicaviaparagarantiraexistnciadeDeus.(N.T)

    *OtestaaquelequeacreditanaexistnciadeumnicoDeus.(N.T.)

    HaviaoutraconsequnciadessecrescentesentimentosobreanaturezadeDeusseeste,naverdade,erareal.AjulgarpelosaltssimospadresdaLeiMoral,queeutinhadereconhecerqueinfringiaregularmente,esseeraumDeussagradoejusto.

    Ele tinha de ser a personificao da bondade. Tinha de odiar omal. E no haviamotivopara suspeitar que esseDeus fosse benevolente oumisericordioso.O surgimento gradual deminhapercepodaexistnciaaceitveldeDeustrouxesentimentosconflitantes:alviodiantedaamplitudeedaprofundidadedaexistnciadetamanhamenteeumdesnimoprofundoaoperceberminhasimperfeiesaoexamin-lasluzdivina.

    Havia comeado essa jornada de explorao intelectual porque queria confirmar minhaposiocomoateu.IssoseconverteuemrunasmedidaqueaargumentaodaLeiMoral(emuitos outros assuntos) obrigou-me a admitir a aceitao da hiptese de Deus. Oagnosticismo,quepareciaumseguroparasodesegunda,agorameameaavacomoagrandedesculpaqueemgeral.AfemDeuspareciamaisracionaldoqueumadvida.

    Tambmficaraclaroparamimqueacincia,apesardeseuspoderesinquestionveisparadesvendar os mistrios do mundo natural, no iria me levar mais adiante na resoluo daquesto de Deus. Se Deus existe, deve se encontrar fora do mundo natural e, portanto, osinstrumentoscientficosnosoas ferramentascertasparaaprender sobreEle.Emvezdisso,comoeuestavacomeandoaentenderporolhardentrodemeucorao,aprovadaexistnciadeDeusteriadevirdeoutrasdirees,eadecisodefinitivadeveriasebasearnaf,noemprovas. Ainda perseguido por perturbar as incertezas do caminho que eu havia tomado, euprecisava admitir que comeara a aceitar apossibilidadedeumavisodemundoespiritual,incluindoaexistnciadeDeus.

    Parecia impossvel tanto avanar quanto recuar. Anos depois, encontrei um soneto deSheldonVanaukenquedescreviacomprecisoomeudilema.Suaslinhasfinaisdiziam:Entreo provvel e o provado existem hiatos Uma fenda. Com medo de saltar, permanecemosridculos.

    Ento vemos atrs de ns o cho afundar e, pior, Nosso ponto de vista esfacelar-se. OdesesperodespontaNossanicaesperana:saltarparaoVerboQueabreouniversofechado.

    Durante muito tempo fiquei parado, tremendo, beira desse hiato. Por fim, no vendoescapatria,saltei.

    Comopossvelqueumcientistatenhataisconvices?

    No seriam as vrias alegaes da religio incompatveis com a atitude de um cientista,sempre querendo ver os dados, devoto do estudo da Qumica, da Fsica, da Biologia e daMedicina?

    Aoabriraportademinhamenteaessaspossibilidadesespirituais,teriaeucomeadouma

  • guerradevisesdemundoquemedestruiriae,porfim,enfrentariaumavitriacombaixasemambososlados?

    4VANAUKEN,S.ASevereMercy.NewYork:Harper-Collins,1980.p.100.

    *Betweentheprobableandprovedthereyawns/Agap.Afraidtojump,westandab-surd,/Thenseebehindussinkthegroundand,worse,/Ourverystandpointcrumbling.Desperatedawns/Ouronlyhope:toleapintotheWord/Thatopensuptheshuttereduniverse.

  • ALinguagemdeDeus

    CAPTULO2

    AguerradasvisesdemundoSE VOC COMEOU A LER ESTE livro como ctico e percorreu esta jornada at aqui

    comigo, semdvida,comeouase formaruma torrentedesuasobjees.claroque tiveaminha: ser que Deus no s um caso de pensamento ansioso? No foram cometidosinmerosmalesemnomedareligio?ComopoderiaumDeusamorosopermitirosofrimento?

    Comoumcientistasriopodeaceitarapossibilidadedemilagres?

    Sevoc temumacrena, talvezasexposiesdoprimeirocaptulo lhe tenham fornecidoalgumaconfirmao,masquasecertoquehocasiesemquesuafentraemconflitocomoutrosdesafios,vindosdevocoudaquelessuavolta.

    Advidaparteinevitveldacrena.NaspalavrasdePaulTillich:"Advidanoseopef;umelementodaf1".SeocasoafavordacrenaemDeusfossetotalmentehermtico,o mundo estaria cheio de praticantes de uma nica f. Imagine, porm, este mundo se aoportunidadedeescolherlivrementeumacrenativessesidoremovidaemvirtudedacertezadasevidncias.Quedesinteressanteseria,no?

    Tanto para o ctico quanto para quem tem uma crena, as dvidas surgem de diversasfontes.Umadelas envolve conflitos descobertos combasenas alegaes da crena religiosacomobservaescientficas.Essasconsideraes,particularmentedestacadasagoranocampodaBiologiaedaGentica,seroretomadasnosprximoscaptulos.Outrasconsideraessoinerentesaosdomniosfilosficosdaexperinciahumana,eestessooassuntodestecaptulo.Se voc no temnenhumproblema relacionado a isso, sinta-se vontade para pular para ocaptulo3.

    Ao tratar de tais assuntos filosficos, falo principalmente como leigo. No entanto, soualgumquejpartilhoudessasbatalhas.

    Especialmente no primeiro ano aps ter aceitado a existncia de um Deus que sepreocupavacomoshumanos,via-meacossadoporperguntasquevinhamdemuitasdirees.Embora essas questes parecessemmuito novas e irrespondveis quando surgiram, sentia-mealiviadoemsaberquenoexistiamobjeesemminhalistaquenotivessemsidolevantadasearticuladas,commaioreficciaainda,poroutros,atravsdossculos.Eradegrandeconfortoparamim existirem tantas fontesmaravilhosas, queme forneciam respostas para sobrepujaressesdilemas.Nestecaptuloapresentareialgumasdessas fontes,eacrescentareiaelasmeuspensamentos e experincias.Muitas das anlisesmais acessveis vieram de escritos domeuagoraconhecidomentordeOxford,C.S.Lewis.

  • 1TILLICH,RTheDynamicsofFaith.NewYork:Harper&Row,1957.p.20.

    Apesar de podermos levar em conta vrias anlises, descobri quatro que eramespecialmente irritantes naqueles dias de f recm-nascida. Creio que elas estejam entre asmaisimportantesparaalgumqueestejaconsiderandoadecisodeacreditaremDeus.

    AideiadeDeusnoapenasasatisfaodeumdesejo?

    Ser que Deus est mesmo por a? Ou a busca pela existncia de uma entidadesobrenatural,todifundidaemtodasasculturasjestudadas,representaumanseiouniversal,emborainfundado,dahumanidadeporalgoforadelaquedsentidoaumavidasemsentidoealibertedoferrodamorte?

    Emboraabuscapelodivinotenha,dealgummodo,sidopostadeladoforanostemposmodernos, por nossa vida atribulada e comexcessode estmulo, aindaumdos confrontoshumanosmaisuniversais.C.S.Lewisdescrevetalfenmenoemsuavida,nomaravilhosolivroSurpreendidopelaAlegria,eessasensaodeanseiointenso,despertadaporalgotosimplescomoalgumas linhasdeumpoema,queele identificacomo"alegria".Oautordescreveessaexperincia como "um desejo no satisfeito que mais desejvel do que qualquer outrasatisfao".2Consigo me lembrar nitidamente de alguns momentos em minha vida nos quaisessesensocomoventededesejo,situadoemalgumlugarentreoprazereodesgosto,apanhou-medesurpresaemefezficarnadvidasobreaorigemdessaemootointensa,ecomoeupoderiaretomaressaexperincia.

    2LEWIS,C.S.SurprisedbyJoy.NewYork:HarcourtBrace,1955.p.17.

    Recordo-medetersidotransportado,aos10anos,pelaexperinciadeolharatravsdeumtelescpioqueumastrnomoamadorcolocaranapartemaiselevadadenossafazenda;sentiavastidodouniverso,viascraterasdaLuaeamagiadelicadadaluzdasPliades.Lembro-medeumavsperadeNatal,quandoeutinha15anos,emqueamelodiadeumacanonatalinaespecialmentebelaelevando-sesuaveeverdadeiraacimadotommaisconhecidotrouxe-measensao inesperadadeadmirao, somadaaumanseioporalgoquenoconseguiadefinir.Muito depois, ento um estudante graduado e ateu, surpreendi-me experimentando essamesmasensaodeadmiraoedesejo,dessavez somadaaumsentimentomuitoprofundode pesar, durante a execuo do segundomovimento da Terceira Sinfonia de Beethoven (aEroica).QuandoomundolamentouamortedeatletasisraelensesassassinadosporterroristasnasOlimpadas de 1972, a Filarmnica de Berlim executou os tons impressionantes de umlamentoemDMenornoEstdioOlmpico,misturandodignidadee tragdia, vidaemorte.Por alguns instantes fui removido da minha viso materialista de mundo e levado a umaindescritveldimensoespiritual,umaexperinciaqueconsidereibastanteassombrosa.

    Mais recentemente, para um cientista ao qual s vezes dado o privilgio de descobriralgo, existe um tipo especial de alegria associado a esses lampejos de intuio. Tendopercebidoumvislumbredeverdadecientfica,experimentei,deumasvez,umasensaodesatisfaoedesejodecompreenderumaverdadeaindamaior.Nummomentoassim,acincia

  • setornamaisdoqueumprocessodedescoberta:elatransportaocientistaaumaexperinciaquedesafiaumaexplicaototalmentenaturalista.

    * As Pliades so um "grupo de sete estrelas visveis a olho desarmado, que fazem parte do aglomeradogalctico aberto situado na constelao do Touro" (cf. Aurlio Buarque de Holanda Ferreira,Novo DicionrioAurliodaLnguaPortuguesa,2.ed.rev.eaum.,RiodeJaneiro:NovaFronteira,1986).(N.T.)

    Ento,oquefazemoscomessasexperincias?Eoqueessasensaodedesejoporalgomaior do que ns? apenas isso e nada mais, alguma combinao de neurotransmissorespousandoexatamentenosreceptorescorretos,acionandoumadescargaeltricaemumapartemais profunda do crebro?Ou isso, como a LeiMoral descrita no captulo anterior, umainsinuaodoqueestalm,umaindicao,colocadabemnofundodoespritohumano,dealgomuitosuperiorans?

    De acordo com a viso atesta, no podemos dar crdito a esse tipo de desejo como sefosseindicaodosobrenatural,enossainterpretaodetaissensaesdeadmiraoemumacrena emDeus representa nadamais que um pensamentomgico, forjando uma resposta,poisqueremosqueaquilosejaaverdade.Essepontodevistaparticularalcanouseupblicomais amplo nos escritos de Sigmund Freud; ele argumentou que tais desejos por Deusoriginaram-sedeexperinciaslongnquasdainfncia.NotextoTotemeTabu,Freudafirmou:Apsicanliseindividualdesereshumanosnosensina,comumainsistnciabastanteespecial,queoDeusdecadaumdeles formadonasemelhanade seupai,queseu relacionamentopessoalcomDeusdependedesuarelaocomseupaiemcarneeosso,eoscilaesemodificacomopassardotempocomessarelao,eque,nofundo,Deusnosenoumpaielevado3.

    O problema desse argumento de realizao de desejos que ele no concorda com ocarterdeDeusnamaioriadas religiesdoplaneta.Emseunovo livro,alismuitodistinto,Deus em Questo (Ultimato), Armand Nicholi, professor de Harvard com formao emPsicanlise, compara o ponto de vista de Freud ao de C. S. Lewis.4Este alegou que essarealizao de desejos provavelmente daria origem a umDeus diferente daquele descrito naBblia. Se procuramos afagos generosos e misericrdia, no encontramos nada disso nasEscrituras. Em vez disso, conforme comeamos a nos prender existncia da Lei Moral, enossaincapacidadebviadeviversegundoela,descobrimosquetemossriosproblemasequenosachamospotencialeeternamentedistantesdoautordessaLei.Almdisso,medidaqueuma criana cresce, no experimenta sentimentos contraditrios com relao a seus pais,inclusiveodesejode libertar-se? Entoporquea realizaodedesejos conduzaumdesejoporDeus,emoposioaodesejodequenoexistaDeusnenhum?

    3FREUD,S.TotemandTaboo.NewYork:W.W.Norton,1962.

    Por fim, em termos lgicos e simples, o fato de algum permitir a possibilidade de queDeus seja algo que os humanos desejem elimina a possibilidade de Ele ser real? De formaalguma.O fato de eu ter desejadouma esposa adorvel no a torna umente imaginrio.Ofato de o fazendeiro ansiar pela chuva no o faz questionar-se sobre a realidade de umposteriortemporal.

    Naverdade,podemossuprirnossamentecomessaargumentaoderealizaodedesejos.

  • Por que haveria uma nsia humana, universal e exclusiva, se esta no se achasse ligada aalgumaoportunidadederealizao?Maisumavez,Lewisdeclaracomrazo:

    Ascriaturasnonascemcomdesejos,amenosqueasatisfaodetaisdesejosexista.Umbeb sente fome: bem, existe aquilo que chamamos de alimento. Um patinho quer nadar:bem,existeaquiloquechamamosdegua.Homenssentemdesejosexual:bem,existeaquiloque chamamos de sexo. Se eu descubro em mim um desejo que nenhuma experincia nomundopode satisfazer, a explicaomaisprovvel que fui criadoparaoutromundo.5Se oanseio pelo sagrado um aspecto universal e enigmtico da experincia humana, seria arealizao de desejos apenas uma seta na direo de algo alm de ns? Por que temos um"vcuo em forma de Deus" em nosso corao e em nossa mente se no servir para serpreenchido?

    4NICHOLI,A.TheQuestionofGod.NewYork:TheFreePress,2002

    Emnossomundomodernoematerialista,fcilperderdevistaasensaodeanseio.Emsuamagnfica reunio de ensaios, Teaching a Stone to Talk [Ensinando uma pedra a falar],AnnieDillarddiscorresobreessevaziocrescente:

    Agoranosomosmaisprimitivos.Agoraomundointeironoparecesanto.[...]Ns,comopessoas, trocamosopantesmopelopan-atesmo. [...]difcildesfazernossodanoe recordarparanossapresenaoquepedimosparaabandonar.difcildanificarumbosqueemudardeideia. Lanamos um arbusto s chamas e no podemos queim-lo de novo. Somos fsforosqueimandoemvodebaixodecadarvoreverde.Costumavamosventoschorareascolinassairgritandoemagradecimento?Agoraodiscursopereceuentreascoisasmortasdaterra,eascoisasvivasdizemmuitopoucoamuitopoucos. [...]Eaindapodeserqueemqualquer lugaremquehajamovimentohajaumsom,comoquandoumabaleiaemergeedumbeijoestaladonasguas,esemprequehsilncioexisteaquelavozpequeninaesuavedeDeus,falandopormeiodoturbilho,avelhacanoeavelhadanadanatureza,oespetculoquetrazemosdacidade.[...]

    5Lewis,C.S.MereChristianity.Westwood:BarbourandCompany,1952.p.115.

    Oqueestivemos fazendoem todosesses sculos seno tentandochamarDeusdevoltamontanha, ou, semconseguir, erguendouma voz fracadequalquer coisa queno venhadens?QualadiferenaentreumacatedraleumlaboratriodeFsica?Ambosnoestodizendo"ol"?6Equantoatodoomalperpetradoemnomedareligio?

    Umobstculo importanteparamuitos indivduosdeterminados a evidnciaobrigatria,ao longo da histria, dos terrveis atos realizados em nome da religio. Isso se aplica apraticamente todasas fsemalgumponto,atasqueargumentamteracompaixoeano-violncia entre seus princpios centrais. Diante de exemplos rudes de abuso de poder,violncia e hipocrisia, como algum pode unir-se aos princpios de uma f promovida portamanhosdisseminadoresdomal?

    Para esse dilema existem duas respostas. Em primeiro lugar, saiba que muitas coisasmaravilhosas tambm foram realizadas em nome da religio. A Igreja (e aqui eu utilizo o

  • termodeformagenrica,paramereferirsinstituiesorganizadasquepromovemumafemparticular,semconsiderarafqueestoudescrevendo)muitasvezesdesempenhouumafunocrucialnoapoiojustiaebenevolncia.Leveemconta,porexemplo,oslderesreligiososqueseempenharamparalivraraspessoasdaopresso,comoMoiss,queliderouosisraelitas,ouas forasdavitriadefinitivadeWilliamWilber,queconvenceuoParlamentoinglsaseoporprticaescravagista,ouoreverendoMartinLutherKing,queliderouomovimentopelosdireitoscivisnosEstadosUnidos,peloqualdeusuavida.

    Asegundaresposta,porm,nos trazdevoltaLeiMoral,ao fatodeque todosns,sereshumanos, fracassamos alguma vez. A Igreja se faz com pessoas arruinadas. A gua pura elmpida da verdade espiritual colocada em recipientes enferrujados, e os posterioresfracassosdaIgrejaaolongodossculosnodevemserprojetadossobreaf,comoseaguafosse o problema. No de estranhar que aqueles que acessam a verdade e o apelo da fespiritual geralmente acham impossvel imaginar-se aceitando uma religio por causa docomportamentodedeterminadaigreja.AoexpressarhostilidadeIgrejaCatlicafrancesa,noalvorecerdaRevoluoFrancesa,Voltaireescreveu:"Algumsesurpreendedequehajaateusno mundo, quando a Igreja se porta de modo to abominvel?".7No difcil identificarexemplosemqueaIgrejaexecutouaesopostasaosprincpiospelosquaissuafdeveriaterdadorespaldo.

    6DILLARD,A.TeachingaStonetoTalk.NewYork:Harper-Perennial,.1992.p.87-9.

    AsBem-aventuranasditasporCristonoSermodaMontanhaforamignoradaspelaIgrejacrist, que realizou violentas Cruzadas na Idade Mdia e persistiu com uma srie deinquisiesemseguida.

    O profetaMaom nunca usou a violncia para responder a seus perseguidores, ao passoqueas jihads islmicas, desde seus primeiros seguidores e incluindo os ataques violentos dehoje emdia, comoode 11de setembrode 2001, criaramuma impresso falsa de que a fislmicaviolentaemsuaessncia.Mesmoosseguidoresdefssupostamenteno-violentas,comoohindusmoeobudismo,svezesseempenhamemconfrontosviolentos,comoosqueatualmenteocorrememSriLanka.

    Enoapenasaviolnciaquemanchaaverdadedafreligiosa.Exemplos frequentesdehipocrisiacrassaentrelderesreligiosos,tornadasaindamaisvisveispelopoderdosmeiosdecomunicao, fazemmuitos cticos concluremque no h verdade ou bondade objetivas aencontrarnareligio.

    Talvezaindamaistraioeiroedisseminadosejaosurgimento,emvriasigrejas,deumafsecular espiritualmente morta, que salta dos aspectos sacros da crena tradicional,apresentandoumaversodavidaespiritualrelacionadaaeventose/outradiessociais,enocomabuscaporDeus.

    7In:MCGRATH,Alister.TheTwilightofAtheism.NewYork:Doubleday,2004.p.26.

    Causa,ento,estranhezaquealgunscrticosapontema religiocomouma foranegativana sociedade ou, nas palavras de KarlMarx, "o pio dasmassas"?Mas sejamos cuidadosos

  • nesse ponto. As grandes experinciasmarxistas naUnio Sovitica e naChina deMao, quevisavamestabelecersociedadesexplicitamentebaseadasnoatesmo,comprovaram-secapazesdecometerpelomenosamesmaquantidadede,ouatmais,massacresdepessoas e abusoexplcitodepoderquecometeuopiordosregimesdepocasrecentes.Naverdade,aonegaraexistncia de qualquer autoridade superior, o atesmo tem o potencial recm-descoberto delibertartotalmenteoshumanosdequalquerresponsabilidadedenooprimirunsaosoutros.

    Assim,emboraalongahistriadaopressoedahipocrisiareligiosassejamuitssimograve,opesquisadormais sincerodeveenxergaralmdocomportamentodehumanos falhos,a fimdeencontraraverdade.Voccondenariaumcarvalhosesuamadeirativessesidousadaparafazer aretes? Culparia o ar por permitir a transmisso.de mentiras atravs dele? Julgaria AFlautaMgicadeMozartcombaseemumaexecuomalensaiadaporalunosdaquintasrie?Se voc junca viu um pr-do-sol verdadeiro no Pacfico, permitiria que um prospecto deturismofosseusadocomosubstituto?Vocavaliariaopoderdeumamorromnticocombaseemumcasamentodevizinhosquetrocaminsultos?

    No. Uma avaliao completa da verdade da f depende de um exame na gua pura ecristalina,nonosrecipientesenferrujados.

    PorqueumDeusdeamorpermiteosofrimentonomundo?

    Talvezhajanomundoquemnunca tenhapassadopor algumaexperinciadolorosa.Noconheo ningum assim, e creio que nenhum leitor deste livro alegaria pertencer a talcategoria. Essa experincia humana universal tem feito que muitas pessoas questionem aexistncia de um Deus de amor. Nas palavras de C. S. Lewis, em Problema do Sofrimento(Editora Vida), a alegao apresenta-se assim: "Se Deus fosse bom, desejaria fazer suascriaturasperfeitamentefelizes,eseelefosseonipotente,seriacapazdefazeroquedesejasse.No entanto, as criaturas no so felizes. Portanto, Deus no tem nem bondade nempoder".8Existemvrias respostasparaessedilema.Algumassomais fceisdeaceitardoqueoutras. Primeiramente, reconheamos que uma grande parcela de nosso sofrimento e do denossossemelhantesorigina-sedoquefazemosunsaosoutros.

    Foi a humanidade, e no Deus, que inventou as facas, os arcos e flechas, as armas, asbombas e todas as formas de instrumentos para tortura utilizados ao longodas eras.No sepodeculparDeuspela tragdiade ter filhos jovensmortosporummotoristaembriagado,deumhomeminocenteperecernocampodebatalhaoudeumamoaseratingidaporumabalaperdidanumareadeumacidademodernadominadapelocrime.Afinaldecontas,dealgummodorecebemosolivre-arbtrio,acapacidadedefazeroquetemosvontade.Comfrequnciausamos essa capacidade para desobedecer Lei Moral. E, ao agirmos assim, no podemosjogaremDeusaculpapelasconsequncias.

    Deveria Deus, ento, restringir nosso livre-arbtrio a fim de evitar esse tipo decomportamento ruim? Essa linha de pensamento encontra depressa um dilema do qual noexisteumafugaracional.Maisumavez,Lewisafirmacomclareza:

    Sevocoptapordizer"Deuspodedarolivre-arbtrioaumacriaturae,aomesmotempo,retira dela esse livre-arbtrio", no conseguedizer nada a respeitodeDeus: combinaesde

  • palavras sem sentidonoadquirem sentidodeumahoraparaoutraporquecolocamos antesdelas duas outras palavras, "Deus pode". A bobagem permanece uma bobagem, mesmoquando falamos sobreDeus.9 Ainda podemos encontrar dificuldade para aceitar argumentosracionais quando uma experincia de terrvel sofrimento recai sobre uma pessoa inocente.Conheci uma estudante universitria que estavamorando sozinha durante as frias de veroenquanto fazia uma pesquisa mdica para se preparar para sua carreira na Medicina.Despertada na escurido da noite, descobriu que um estranho invadira seu apartamento.Pressionando uma faca contra a garganta dela, ele ignorou-lhe as splicas, colocou-lhe umavendanosolhoseapossuiu fora.Essehomemadeixouarrasada, revivendoaexperinciainmerasvezesduranteanos.Jamaisfoiapanhado.

    8C.S.TheproblemofPain.NewYork:MacMillan,1962.p.23.

    Essa jovem era minha filha. Nunca o mal me apareceu em sua forma to crua do quenaquelanoite,eeununcadesejei tantoa intervenodivinadealgummodo,a fimdedeteressecrimehediondo.Porqueelenoatingiuocriminosocomumrelmpagoou,pelomenos,comum sentimento sbitodedorna conscincia?PorqueDeusnocolocouumcampodeforaaoredordeminhafilhaparaproteg-la?

    Talvez em raras ocasies Deus opere milagres. No entanto, na maioria das vezes, aexistncia do livre-arbtrio e da ordem no universo fsico um fato do qual no se podeescapar. Embora possamos desejar que graasmilagrosas aconteammais frequentemente, aconsequnciadainterrupodessesdoisconjuntosdeforasseriaocaostotal.

    9Ibid.,p.25.

    O que dizer sobre a ocorrncia de desastres naturais: terremotos, tsunamis, vulces,enchentes e fome? Emmenor escala,masnomenos comovente, que explicaodar para aocorrnciadeenfermidadesemvtimasinocentes,comoocncerinfantil?JohnPolkinghorne,pastoranglicanoedestacadomdico,refere-seaessacategoriadeeventoscomo"malfsico",emcontraposioao"malmoral"cometidopelahumanidade.

    Comoissosejustifica?

    Acinciarevelaqueouniverso,nossoplanetaemesmoavidaestocomprometidoscomumprocessoevolucionrio.Entreos resultadosdisso,podemos incluira imprevisibilidadedoclima,odeslocamentodasplacastectnicasouagrafiaincorretadeumgenecancergenonoprocessonormaldedivisocelular.Se,noinciodostempos,Deusoptouporusartaisforasparacriarossereshumanos,a inevitabilidadedessasoutrasconsequnciasdolorosas tambmestavagarantida.Frequentesintervenesmilagrosasseriam,nomnimo,tocaticasnoplanofsicoquantoseinterferissemnosatoshumanosdelivre-arbtrio.

    Para vriospesquisadores atentos, essas explicaes racionais fracassamporno forneceruma justificativa para a dor da existncia humana. Por que nossa vida mais um vale delgrimasqueumjardimdasdelcias?Muitose temescritosobreesseaparenteparadoxo,eaconclusonofcil:seDeusamorosoedesejaomelhorparans,talvezoplanoDelenoseja o mesmo que o nosso. Trata-se de um conceito difcil, em especial se formos

  • regularmentealimentados,emdoseshomeopticas,comumaversodabenevolnciadeDeusque signifique, da parteDele, nadamais do que um desejo de sermos felizes para sempre.Maisumavez,deacordocomLewis:"Naverdade,queremosmaisumavdoqueumpainoCuumabenevolnciasenil,que,comodizem,'gostadevergentejovemsedivertindo',ecujo plano para o universo seja simplesmente que algum possa dizer, com sinceridade, aofinal de cada dia, que 'todos passaram por bons momentos'".10A julgar pela experinciahumana,sedevemosaceitarabondadeamorosadeDeus,Ele,aparentemente,desejamaisdensdoqueisso.Noessa,naverdade,nossaexperincia?Quandovocaprendeumaissobresi mesmo? Quando tudo corria bem, ou quando precisou enfrentar desafios, frustraes esofrimento? "Deusnos sussurraemnossosprazeres, falaemnossaconscincia,masgritaemnosso sofrimento."11Damesma forma que gostaramos de evitar tais experincias, ser que,semelas,noseramoscriaturassuperficiais,autocentradase,aofinal,noperderamostodoosensodenobrezaouoempenhoparaaprimorarosoutros?

    Leveemcontao seguinte: seadecisomais importanteque faremosnestavida for sobreumacrena,eseorelacionamentomaisimportantequedesenvolveremosaquiforcomDeus,e se nossa existncia como criaturas espirituais no se limitar ao que poderemos fazer eobservar durante nossa vida na terra, os sofrimentos humanos ganharo um contextocompletamentenovo.

    Talveznuncacheguemosaentendercompletamenteosmotivosdasexperinciasdolorosas,maspodemoscomearaaceitaraideiadequetaismotivosexistam.Nomeucaso,possover,emborademodoobscuro,queoestuprodeminha filha foiumdesafioparaqueeu tentasseaprender o real sentido do perdo em uma circunstncia terrivelmente violenta. Sendo bemhonesto,aindaestoutrabalhandonisso.Talvezessatenhasidotambmumaoportunidadeparaque eu reconhecesse que no posso, na verdade, protegerminhas filhas de toda dor e todosofrimento;

    tenhodeaprenderaconfi-lasaoscuidadosdeumDeusamoroso,sabendoqueissonoasimunizacontraomal,massetratadeumareafirmaodequeseussofrimentosnoforamemvo.Na verdade,minha filha diria que tal experincia proporcionou-lhe a oportunidade e amotivaoparaaconselharedarconfortoaoutrasquepassarampelomesmotipodeviolao.

    10Ibid.,p.35.

    11Ibid.,p.83.

    AnoodequeDeuspodeatuaremmeioadversidadenofcil,epodeencontrarumaancoragemfirmesomenteemumavisodemundoqueabarqueumaperspectivaespiritual.Oprincpiodocrescimentopormeiodo sofrimento,naverdade,quaseuniversalnasgrandescrenasmundiais.AsQuatroNobresVerdadesdeBudanosermodoDeerPark,porexemplo,comeamcom'Avidasofrimento".Paraoseguidor,essapercepopode,paradoxalmente,serumafontedegrandeconforto.

    AmulhercomquemmepreocupeiquandoeraestudantedeMedicina,porexemplo,quedesafioumeuatesmocomumaaceitaogentildesuadoenaterminal,viu,nocaptulofinaldesuavida,umaexperinciaqueaaproximoudeDeus,emvezdeafast-lamaisainda.Em

  • um perodo histrico mais amplo, Dietrich Bonhoeffer (telogo alemo que retornou dosEstadosUnidosAlemanhaduranteaSegundaGuerraMundialafimdefazeropossvelparamantervivaaverdadeiraIgreja,poisaIgrejacristorganizadanaAlemanhahaviaoptadopordarapoioaosnazistas) foipresograasasuaatuaoemumesquemaparaassassinarHitler.Durante seus dois anos na priso, sofrendomuitas humilhaes e a perda de sua liberdade,BonhoeffernuncahesitouemsuafouemseulouvoraDeus.Poucoantesdeserenforcado,somentetrssemanasantesdalibertaodaAlemanha,escreveuoseguinte:"Tempoperdidoaquele em que no temos uma vida humana por completo, tempo enriquecido pelaexperincia,pelosesforoscriativos,peloprazerepelosofrimento"12.

    12BONHOEFFER,D.LettersandPopersfromPrison.NewYork:Touchstone,1997.p.47

    Comopodeumapessoaracionalacreditaremmilagres?

    Por fim, leve em conta uma objeo crena que tenha uma influncia profunda, emespecial,paraumcientista.Comoosmilagrespodemseharmonizarcomumavisodemundocientfica?

    Na linguagem moderna, depreciamos o significado da palavra "milagre". Falamos de"drogasmilagrosas","dietamilagrosa"oumesmo"chmilagroso".Isso,porm,noosentidooriginalmenteintencionaldapalavra.Maisprecisamente,ummilagreumeventoquepareceinexplicvelpelasleisdanaturezae,assim,suaorigemconsideradasobrenatural.

    Todasasreligiesincluemumacrenaemdeterminadosmilagres.AtravessiadoshebreuspelomarVermelho,guiadosporMoiss,seguidadoafogamentodossoldadosdofaraumahistria de destaque, contada no livro do xodo, sobre a providncia tomadaporDeus paraevitar a iminente destruio de seu povo. Damesma forma, quando Josu pediu que Deusprolongassealuzdodiaparaterxitoemumabatalha,conta-sequeoSolficouparadodetalmaneiraquespoderiaserdescritacomomilagrosa.

    ParaoIsl,asescriturasdoCoroforaminiciadasemumacavernaprximadeMeca,comas instrues a Maom fornecidas de modo sobrenatural pelo anjo Jibril. A ascenso deMaomclaramenteumeventomilagroso,namedidaemque lhedadaaoportunidadedevertodasascaractersticasdocuedoinferno.

    Osmilagresdesempenhamumpapelimpressionantenacristandadeemespecialomaisdestacadodosmilagres,odeCristolevantando-sedosmortos.

    Como podemos aceitar tais alegaes enquanto afirmamos ser humanos modernos eracionais?Bom,claroque,sealgumpartedopressupostodequeeventossobrenaturaissoimpossveis,noacreditaemmilagres.Maisumavez,podemosnosvoltaraC.S.Lewisparaquenosesclareaumpensamentoparticularsobreessetpico.EmseulivroMilagres (editoraVida),elediz:

    Qualquer evento que possamos afirmar como milagre , como ltimo recurso, algoapresentado a nossos sentidos, algo visto, ouvido, tocado, cheirado ou saboreado. E nossossentidosnosoinfalveis.Separeceterocorridoalgoextraordinrio,semprepoderemosdizerquecamosvtimasdeumailuso.Semantivermosumafilosofiaqueexcluiosobrenatural,oque semprediremos.Oque aprendemos coma experinciadependedo tipode filosofiaque

  • trazemosparaaexperincia.

    Portanto, intil apelar para a experincia antes de determinar, da melhor forma quepudermos, a questo filosfica.13Correndo o risco de assustar aqueles que no se sentem vontadecomabordagensmatemticasdeproblemasfilosficos,considereaseguinteanlise:oreverendo Thomas Bayes foi um telogo escocs pouco lembrado por suas consideraesteolgicas,pormbastanterespeitadoporapresentarumteoremaparticulardeprobabilidades.Seu teorema forneceuma frmula,pelaqual sepodecalcularaprobabilidadedaobservaode um evento em especial, dadas algumas informaes iniciais ("antecedentes") e algumasinformaes adicionais (a "condicional"). O teorema de Bayes especialmente til quandoconfrontaduasoumaisexplicaespossveisparaaocorrnciadeumevento.

    Leve em conta o exemplo a seguir: voc foi aprisionado por um louco. Ele lhe d umaoportunidadedeselibertarpermitindoqueescolhaumacartadeumbaralho,recoloque-a,embaralhe e escolha novamente. Caso apanhe o s de espadas em ambas as vezes, serlibertado.

    13LEWIS,C.S.Mirades:APreliminaryStudy.NewYork:MacMillan,1960.p.3.

    Cticosobresevaleapenaatentativa,vocprosseguee,parasuaestupefao,pegaosdeespadasdobaralhoduasvezes.Suascorrentessosoltasevocretornaaolar.

    Comsuastendnciasmatemticas,voccalculaachancedeessaboasorteserepetir:1/52X1/52=1/2074.Umevento improvvel,masaconteceu.Poucas semanasdepois, contudo,voc descobre que um funcionrio bondoso da empresa fabricante de cartas de baralho,sabendodaapostado louco,deuum jeitodequeumemcadacembaralhosdecartas fossecompostode52asesdeespadas.

    Talvezentonosetratasseapenasdeumamudananasorte.Quemsabeumserhumanointeligente e simptico (o funcionrio), que voc no conhecia at o dia de sua captura,interveiopara aprimorar as chancesde sua libertao?Aprobabilidadedequeobaralhodoqual voc apanhou as cartas viesse de um exemplar normal com 52 cartas diferentes era99/100;aprobabilidadede serumbaralhoespecial contendoapenasasesdeespadaserade1/100.Paraessesdoispossveispontosiniciais,asprobabilidades"condicionais"desacardoisases de espadas de uma seleo seriam 1/2 704 e 1, respectivamente. De acordo com oteorema de Bayes, agora possvel calcular as probabilidades "posteriores" e concluir quehaveria 96% de chance de o baralho de cartas do qual voc sacou as cartas ser um dos"milagrosos".

    A mesma anlise pode ser aplicada a eventos aparentemente milagrosos da experinciacotidiana.Imaginequevocpresenciouumacuraespontneadecnceremestgioavanado,que,comosesabe,fatalemquasetodososcasos.Seriaummilagre?Paraanalisaraquestodopontodevistabayesiano,primeiramente temosde suporqueo "antecedente"odeumacuramilagrosadecncer.umaemmil?Umaemummilho?Ouzero?

    Aqui,semdvida,ondeaspessoassensatasvodiscordar,algumascombarulho.Paraocomprometido com o materialismo no se permite a possibilidade de milagres (seu"antecedente"serzero)e,portanto,mesmoumacuradecncerextremamenteincomumser

  • descartadacomoevidnciadomilagre.Emvezdisso,serdadocrditoaofatodequeeventosrarosacontecemnomundonaturalvezporoutra.AquelequeacreditanaexistnciadeDeus,entretanto, pode, aps examinar as evidncias, concluir que esse tipo de cura no deve terocorrido por qualquer tipo de processo natural; e, tendo admitido que a probabilidadeantecedente de ummilagre, apesar demuito pequena, no nula, ir executar seu prprioclculo bayesiano (muito informal) para concluir que h mais probabilidade de ocorrer ummilagredoquedenoocorrer.

    Tudoissoapenasparadizerqueumadiscussosobrecuramilagrosadegenerarapidamenteparaumaargumentaosobresealgumquerounolevaremcontaquaisquerpossibilidadesde sobrenatural. Acredito que exista essa possibilidade; contudo, o "antecedente" deve, emgeral,sermuitopequeno.

    Ouseja,opressupostoemqualquercasodeveserafavordeumaexplicaonatural.Paraodesta, queenxergaDeus comoocriadordouniversoque foi perambular emalgumoutrolugar para desempenhar outras atividades, no h mais motivos para considerar eventosnaturaiscomomilagresdoqueparaomaterialistaconvicto.Paraotesta,queacreditaemumDeus atencioso com a vida dos humanos, existe uma probabilidade de colocar em prticavrios nveis de suposio de milagres, dependendo da percepo do indivduo acerca dapossibilidadedequeDeusintervenhanascircunstnciasdodiaadia.

    Qualquerquesejaavisopessoal,fundamentalqueumceticismosaudvelsejaaplicadona interpretao de eventos potencialmente milagrosos, a fim de que a integridade e aracionalidadedaperspectivareligiosasejamtrazidasquesto.

    A nica coisa que mataria com mais rapidez a possibilidade de milagres do que ummaterialismo comprometido seria a alegao de uma condio de milagre para os eventosdiriosparaosquaisjexistemexplicaesnaturaisaoalcance.Qualquerumqueafirmequeodesabrochardeumaflorummilagreestseaproveitandodeumacompreensocrescenteda biologia das plantas, que se encontra bemno caminho da elucidao de todas as etapasentre a germinao das sementes e o desabrochar de uma rosa linda e perfumada, tudodirigidopelomanualdeinstruesdoDNAdessaplanta.

    Demodosemelhante,umapessoaqueganhanaloteria,eanunciatratar-sedeummilagreporquerezouparaobteresseresultado,foraoslimitesdenossacredulidade.Afinaldecontas,tendo em vista a ampla distribuio de, no mnimo, alguns vestgios de f na sociedademoderna, provvelqueumaparcela significativade indivduosquecompraramumbilhetede loteria naquela semana tambm rezou de maneira efmera para que pudesse ganhar oprmio.Nessecaso,aalegaodeintervenomilagrosadoverdadeiroganhadorsoavazia.

    Mais difceis de avaliar so as afirmaes de quem obteve a cura milagrosa de algumproblema de sade. Como mdico, j presenciei circunstncias em que pessoas serecuperaram de enfermidades que pareciam irreversveis. Contudo, reluto em atribuir taiseventos interveno milagrosa, tendo em vista nossos conhecimentos incompletos sobredoenasecomoestasafetamocorpohumano.Commuita frequncia,quandoalegamosquecuras milagrosas foram examinadas com todo o cuidado por observadores imparciais, taisalegaes fracassam.Apesar dessas dvidas e de uma insistncia emque tais alegaes tmrespaldo de amplas evidncias, no me surpreenderia ouvir que curas milagrosas genunas

  • aconteceram em ocasies extremamente raras.Meu "antecedente" baixo, mas no igual azero.

    Portanto,osmilagresno seafirmamcomoumconflito inconcilivelparaquemacreditana cincia como uma forma de investigar o mundo natural e para quem enxerga que essemundoregidoporleis.Se,assimcomoeu,vocadmitequepossaexistiralgooualgumforadanatureza,noacreditaquehajamotivolgicoparaessaforanopoder,emrarasocasies,representar uma invaso. Entretanto, para que o mundo evite cair gradualmente no caos,milagresprecisamserbastante incomuns.ComoLewisescreveu,Deusnoagitamilagresnanaturezadeformaaleatria,comoseosjogassecomumsaleiro.Milagressurgememocasiesespeciais: so encontrados nos grandes tumores da histria no na histria poltica ousocial,esimnaquelahistriaespiritualquenopodesertotalmenteconhecidapeloshomens.Se sua vidano se assemelhaa esses grandes tumores, comovocesperapresenciar algum?Vemos aqui no somente um argumento sobre a raridade dos milagres, mas tambm umargumento de que estes devem ter alguma finalidade em vez de representar os atossobrenaturais de um mgico extravagante, simplesmente elaborados para impressionar. SeDeus a personificao definitiva da onipotncia e da bondade, sua funo no a detrapacear.JohnPolkinghornedefendeessepontodemaneiraconvincente:

    Milagres no devem ser interpretados como atos divinos contra as leis da natureza (poisessas leis so, em si mesmas, expresses da vontade divina), e sim como revelaes maisprofundasdocarterdorelacionamentodivinoparaacriao.

    Para seremcrveis, osmilagresdevem transmitir umacompreensomaisprofundadoquepoderiatersidoobtidosemeles.15

    14Ibid.,p.167.

    Apesarde taisargumentos,oscticosmaterialistas,quenodesejamdar fundamentosaoconceitodesobrenaturalenegamaevidnciadaLeiMoraledosentimentouniversaldeansiarpor um Deus, iro, sem dvida, argumentar que no h a menor necessidade de levar emconta os milagres. Pelo ponto de vista deles, as leis da natureza podem explicar tudo, atmesmooextremamenteimprovvel.

    Pode,porm,essepontodevistasertotalmenteconfirmado?Existepelomenosumeventoextremamenteimprovvel,semigualeprofundonahistriaqueoscientistasdequasetodasasdisciplinas concordam,nocompreendidoe jamais ser, eparaoqual as leisdanaturezafracassamcompletamenteaotentarfornecerumaexplicao.Seriaummilagre?

    15POLKINGHORNE,J.ScienceandTheologyAnIntrodution.Minneapolis:FortressPress,1998.p.93.

  • SEGUNDAPARTE

    Asgrandesquestesdaexistnciahumana

  • ALinguagemdeDeus

    CAPTULO3

    AsorigensdouniversoMAIS DE DUZENTOS ANOS ATRAS, um dos filsofos de maior influncia de todos os

    tempos,ImmanuelKant,escreveu:

    "Duas coisasme enchem de admirao e estarrecimento crescentes e constantes, quantomaistempoemaissinceramenteficorefletindoacercadelas:oscusestreladoslforaeaLeiMoralaquidentro".

    Os esforos para compreender as origens e os trabalhos do cosmo caracterizaram quasetodas as religies ao longo da histria, seja na adorao aberta de um deus-sol, seja naatribuio de significado espiritual at a fenmenos como eclipses, seja a uma simplessensaodepasmodiantedasmaravilhasdocu.

    Seria o comentrio de Kant mera contemplao sentimental de um filsofo que nodispunhadosbenefciosdacinciamoderna,ouexisteumaharmoniaacessvelentreacinciaeaf,naquestomuitoimportantesobreasorigensdouniverso?

    Umdosdesafios para atingir essaharmonia o fatodeque a cinciano esttica.Oscientistasacham-senumapesquisaconstanteemnovossetores,investigandoomundonaturalsobnovasformas,escavandocommaisprofundidadeumterritrioemqueacompreensosefazincompleta.Aoconfrontarumconjuntodedadosqueincluemumfenmenoenigmticoeinexplicvel, os cientistas criam hipteses do mecanismo que pode estar envolvido e, emseguida, realizam experimentos para testar tais hipteses. Muitas experincias nos maioresavanosdacinciafracassam,eamaiorpartedashiptesesserevelaerrada.Acinciaevolui,e se corrige: nenhuma concluso significativamente errnea nem falsas hipteses podem terrespaldodurantemuito tempo,pois as observaes atualizadasderrubaro, emdefinitivo, asinterpretaes erradas. Entretanto, ao longo de um extenso perodo, surge s vezes umconjuntoconsistentedeobservaesqueconduzaumanovaestruturadecompreenso.Essaestrutura,ento,ganhaumadescriomaisespecficaepassaachamar-se"teoria"ateoriadagravidade,ateoriadarelatividadeouateoriadosgermes,porexemplo.

    Uma das esperanasmais nutridas por um cientista fazer uma observao que sacudadeterminadocampodepesquisa.

    Os cientistas tm um trao de anarquismo enrustido, esperando um dia aparecer comalgum fato inesperado que forar umaquebra da estrutura. para isso que se do PrmiosNobel. Nesse aspecto, qualquer suposio de que possa existir uma conspirao entrecientistasafimdemantervivaumateoriabastanteatualvigentequecontenhafalhassrias

  • totalmentedesprovidadeticaparaessesprofissionaisdeterminadoseincansveis.

    O estudo da astrofsica exemplificamuito bem tais princpios, profundas transformaessociaisaconteceramnosltimosquinhentosanos,duranteosquaisacompreensodanaturezadamatriaedaestruturadouniversopassouporimportantesrevises.Nohdvidadequemaisrevisesestoporvir.

    Tais rupturas podem ser penosas quando se tenta atingir uma sntese confortvel entre acinciaeaf,principalmenteseaIgrejaseligaraumavisoanteriordascoisaseincorporarisso em seu sistema de crenas fundamentais. A harmonia de hoje pode ser a discrdia deamanh.NossculosXVIeXVII,Coprnico,KeplereGalileu(queacreditavamemDeuscommuita convico) desenvolveram uma ideia que os foi atraindo aos poucos: a de que omovimento dos planetas s poderia ser compreendido de forma adequada se a Terra semovesseemtornodoSol,emvezdeocontrrio.

    Ospormenoresdesuasconclusesnoestavamde todoacertados (Galileucometeuumagafe famosa em sua explicao sobre as mars), e, em princpio, muitos da comunidadecientfica no ficaram convencidos. Entretanto, ao final, os dados e a consistncia dasprevisesdateoriaforamaceitosatpelomaiscticodoscientistas.

    AIgrejaCatlica,contudo,sustentousuaoposiocomfirmeza,alegandoquetalpontodevistaeraincompatvelcomasSagradasEscrituras.Olhandoemretrospectiva,ficaclaroquesebasear na Bblia para fazer tais alegaes uma atitude bastante limitada; contudo, esseconfrontoalastrou-sedurantedcadasecausou,nofimdascontas,danosconsiderveistantocinciaquantoIgreja.

    O sculo XX assistiu a um nmero indito de revises no ponto de vista a respeito douniverso. Amatria e a energia, antes tidas como entidades completamente diversas, foramapresentadasporEinsteincomointercambiveis,pelafamosaequaoE=mc2(Eenergia,mamassaec,avelocidadedaluz).Adualidadedaondaedapartculaouseja,ofatodeque a matria apresenta caractersticas simultneas tanto de ondas como de partculas ,fenmeno demonstrado experimentalmente para a luz e para partculas pequenas como oseltrons, mostrou-se um fato inesperado e estarrecedor a muitos cientistas com formaoclssica.Oprincpioda incertezadeHeisenbergsobreamecnicadoquantum, apercepode que possvel medir a posio ou omomentum de uma partcula, mas no ambos aomesmo tempo, criaram consequncias particularmente destruidoras tanto para a cinciaquantopara a Teologia. Talvez, numgraumais profundo, nosso conceito sobre a origemdouniversopassouporumamodificao fundamentalao longodos75anosmais recentes,combasetantoemteoriascomoemexperimentos.

    A maioria das grandes revises de nossa compreenso do universo material surgiu emcrculosrelativamenterestritosdeinvestigaoacadmica,tendopermanecidomuitodistantesdopblicoemgeral.svezes,esforosnobres,comoodeStephenHawkingeseuUmaBreveHistriadoTempo:doBig

    BangaosBuracosNegros (Ediouro), foramfeitospara tentarexplicarascomplexidadesdaFsica e da Cosmologia modernas a um pblico mais geral, mas mais provvel que os 5milhesdecpias impressasdolivrodeHawkingpermaneaminditosparaumpblicoqueachouosconceitosemsuaspginasbizarrosdemaisparaserentendidos.

  • De fato, as descobertas sobre a Fsica nas poucas dcadas recentes levaram adiscernimentos sobre a natureza da matria bastante isolados de qualquer raciocnio ouanlise.OfsicoErnestRutherfordcomentou,cemanosatrs,que"umateoriaquenosepodeexplicaraumbalconistadebarprovavelmentenonadaboa".Poressepadro,muitasdasatuaisteoriassobreaspartculasfundamentaisqueconstituemamatriasesustentamdeformaumtantofraca.

    Entre os vrios conceitos estranhos, agora bem registrados experimentalmente, existemalgunscomoo fatodequeosnutronseosprtons (osquaiscostumvamosacharqueeramaspartculasfundamentaisnoncleodotomo)so,naverdade,constitudosporseistiposdequarks (denominados"up", "down", "estranho", "charme", "bottom"e "top").Os seis tiposparecemaindamaisestranhosquandosedeclaraquecadaumapresentatrscores(vermelha,verdeeazul).Essesnomesbizarrosdadosspartculasprovamaomenosqueoscientistastmsenso de humor. Um arranjo estonteante de outras partculas, dos ftons aos grvitons, aosglonseaosmons,criaummundo toestranhoexperinciacotidianahumanaquemuitosno-cientistasacabambalanandoacabea,malconseguindoacreditar.Entretanto,todasessaspartculaspossibilitamnossaexistncia.Paraquemdefendeaideiadequeomaterialismodeveprevalecer sobre o tesmo, porque mais simples e mais intuitivo, esses novos conceitosapresentam-secomoumdesafio importante.UmavariaodamximadeErnestRutherfordconhecida como a Navalha de Occam, em homenagem ao especialista em Lgica e mongeinglsdosculoXIVWilliamofOckham.Esseprincpiosugerequeamaissimplesexplicaoaqualquerproblemaapresentado,emgeral,amelhor.

    Hoje,aNavalhadeOccamparecetersidojogadanolixopelosbizarrosmodelosdaFsicaQuntica.

    Noentanto,deacordocomumsensobastanteimportante,RutherfordeOccamaindasoreverenciados:pormaisqueasdescriesverbaisdessesfenmenosrecm-descobertossejamenigmticas,suasrepresentaesmatemticasrevelam-seinvariavelmenteelegantes,comumasimplicidade inesperada e atmesmo bela. Quando eu era estudante de Fsico-qumica emYale, tive a experincia extraordinria de participar de um curso de mecnica qunticarelativsticaministrado pelo ganhador doNobelWillis Lamb. Em suas aulas, trabalhava pormeiodateoriadarelatividadeedamecnicaqunticacombaseemseusprimeirosprincpios.Tudoissoeletiravadamemria,mas,svezes,pulavaetapase,diantedosolharesarregaladosdeestudantesqueoadmiravam,encarregava-nosdepreencheraslacunasantesdepassarparaaprximaaula.

    Apesar de eu, no fimdas contas, passar da cincia fsica Biologia, essa experincia deoriginarequaesuniversaistosimplesebelas,quedescrevemarealidadedomundonatural,deixouemmimumaimpressoprofunda,emespecialporqueoresultadodefinitivotinhaumgrande apelo esttico. Isso levantou a primeira de vrias perguntas filosficas acerca danaturezadouniverso fsico.Porqueamatriasecomportariadessamaneira?Citandoa frasede EugeneWigner, qual seria a explicao para a "inexplicvel eficincia damatemtica"?1Noserianadaalmdeumfelizacidenteourefletiriaalgumaintuioprofundananaturezadarealidade?Paraquemdesejaaceitarapossibilidadedosobrenatural,seriaissotambmumaintuionamentedeDeus?TeriamEinstein,Heisenbergeoutrosencontradoodivino?

    Nasfrases finaisdeUmaBreveHistriadoTempo,aose referiraumtempoansiado,em

  • queumateoriaeloquenteeunificadasobretudofordesenvolvida,StephenHawking(emgeralno dado a contemplaes metafsicas) afirma: "Ento, poderamos todos ns, filsofos,cientistasepessoascomuns,participardadiscusso sobreaquestodeoporqudenseouniverso existirmos. Se encontrarmos uma resposta a isso, ser o triunfo definitivo na razohumanapois,ento,conheceremosamentedeDeus".2Seriamessasdescriesmatemticasdarealidadeindicaesdealgumaintelignciamaior?SeriaaMatemtica,juntamentecomoDNA,umaoutralinguagemdeDeus?

    1WIGNER,E.TheUnreasonableEffectivenessofMathematicsintheNaturalSciences.CommunicationsonPureandAppliedMathematics,v.13,n.1,Feb.1960.

    DecertoaMatemticatemconduzidooscientistasnorumocertodealgumasdasquestesmaisprofundas.Aprimeira:comotudoissocomeou?

    OBigBang

    No incio do sculo XX, amaioria dos cientistas admitia um universo sem comeo nemfim. Isso criava alguns paradoxos fsicos, como a forma pela qual o universo permaneceriaestvel sem entrar em colapso por causa da fora gravitacional, mas outras hipteses nopareciam muito atraentes. Quando Einstein desenvolveu a teoria da relatividade geral, em1916,introduziuumatalde"constantecosmolgica"parabloquearaimplosogravitacionalemanter a ideia de um universo em estado constante. Mais tarde ele se retratou, chamandoaquilode"omaiorerrodaminhavida".

    Outras formulaes tericas propunham a alternativa de um universo que se iniciara emummomentoparticulare,emseguida,expandira-seatseuestadoatual;noentanto,restavammensuraes experimentais para confirmar essa teoria antes que a maioria dos fsicoscomeasse a levar em conta essa hiptese com seriedade. Tais dados foram, em princpio,fornecidosporEdwinHubble,em1929,emum famosoconjuntodeexperimentosnoqualocientistaobservavaaproporonaqualasgalxiasvizinhasseafastavamdanossa.

    Usando o efeito Doppler omesmo princpio que permite a um policial determinar avelocidadedeseucarroquandovocapanhadopeloradar,ouque fazcomqueoapitodeumaambulnciatenhaumdiapasomaisaltoantesdoquedepoisdeterpassadoporvoc,Hubbledescobriuque,emtudooqueobservou,aluzdasgalxiassugeriaqueestasestavamseafastandodens.Quantomaisdistantesseachavam,maisrpidorecuavam.

    2HAWKING,S.ABriefHistoryofTime.NewYork:BantamPress,1998.p.210.

    Setudonouniversoestseespalhando,aoretrocederasetadotempopodemospreverque,em algum instante, todas essas galxias se encontravam juntas, formando uma entidadeincrivelmente macia. As observaes de Hubble iniciaram um dilvio de mediesexperimentais que, durante os setenta anos mais recentes, levaram a maioria dos fsicos ecosmlogosconclusodequeouniversoteveincioemumnicomomento,hojechamadocomumentedeBigBang[agrandeexploso].Osclculossugeremqueissoaconteceucercade14bilhesdeanosatrs.

  • Umacomprovaoespecialmente importantedaprecisodessa teoria foi fornecidaquaseaoacasoporArnoPenz