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alice-machado
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8/18/2019 A Linha Tenue
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A linha Tênue... um clown... o teatro e a psicopedagogia.
O ser humano e o teatro vivem uma relação antropofágica... O homem necessita
comunicar, sua voz e o seu corpo expressam auilo ue acontece no seu interior, dessa
necessidade nasce o teatro, uma forma de aproveitar essa expressividade para melhor comunicar atrav!s da segurança do distanciamento proporcionado por suas t!cnicas,
personagens e hist"rias fict#cias.
$or!m, a arte teatral, e tudo o ue a comp%e, não se restringe ao ato de comunicar,
ela envolve a vivência de in&meras experiências e muito autoconhecimento, pois
tra'alha com o humano, sua alegria, sua tristeza, suas vit"rias e derrotas, estas são vivas
e em constante mudança e são a maior manifestação dessa humanidade em construção.
Os animais, e nesse grupo pode(se incluir o homem, durante o seu
desenvolvimento vão aprendendo instintivamente as principais atividades ue garantem
a manutenção da sua so'revivência atrav!s de 'rincadeiras e )ogos espont*neos, ou se)a,
ue não necessitam de est#mulos para acontecer. +os humanos, ainda ue de forma
diferenciada, essas aprendizagens tam'!m são, em um primeiro momento, aduiridas
atrav!s de )ogos espont*neos. +os 'e'ês humanos, o 'rincar começa )á na primeira
mamada, onde ele enuanto ingere o alimento explora o ue, em um primeiro momento,entende como uma prolongação do seu eu O corpo da sua mãe.
-innicott estudando os processos de reconhecimento do / e do +0O(/,
declara ue essa relação mãe1'e'ê s" ! poss#vel atrav!s do ue ele nomeou como o
stado de 2evoção $rimária, o ual seria a preparação da mulher durante a gestação
para se predispor a exercer o papel de mãe, ou se)a, desempenhar os processos de
3olding, handling e apresentação do o')eto.
3olding, ou sustentação ! a função ue atende a necessidade de continuidade do
ser, faz o 'e'ê se sentir ainda parte da mãe e faz a manutenção da ilusão de onipotência
ue protege sua frágil psiue enuanto prepara para a introdução ao mundo externo.
$ro'lemas nessa função podem acarretar uma incapacidade de confiar na realidade.
4á o handling 5mane)o6, prepara o 'e'ê, auxilia a )unção da psiue com o corpo
unindo os processos intelectuais com os psicossomáticos desenvolvendo o potencial
criativo do 'e'ê.
²Grifo do autor
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A função de apresentação do o')eto inicia as relaç%es interpessoais, a mãe vai
passando de uma parte do corpo do 'e'ê para um o')eto da realidade compartilhada, ela
vai se tornando um ser destacado do / do 'e'ê, passando a ser um caminho de
transição para a construção do self verdadeiro.
7egundo -innicott 5apud parente 89:96 o homem em processo de
desenvolvimento necessita do ue o autor nomeou como o')eto de transição, ou se)a,
algo ue auxilie o 'e'ê no processo de perda do sentimento de onipotência inicial,
segundo ele, se essas funç%es não forem suficientemente 'em desenvolvidas, podem
acarretar na formação de um falso self, ou uma imagem alterada do /.
7eria então, papel da mãe suficientemente 'oa promover o processo de desilusão
em peuenas doses, para ue o frágil aparelho ps#uico do 'e'ê possa se adaptar sem
criar distorç%es do seu self. O 'rincar, nesse contexto, ! o meio mais seguro e natural
para processar a informação do +;O(/ e a desilusão na tomada de consciência de ser
incompleto, um ser ue precisa aprender.
Os atos de )ogar e 'rincar são formas ue encontramos para atrav!s do outro, nos
comunicar e expressar na 'usca da humanização e da construção do self. O ato de )ogar
pode ser definido como, segundo ,p.?@6 ...essencialmente um meio de investigação e experimentação das leis da natureza e dos
relacionamentos humanos...B.
3uizinga em seu 3OCO D/2+7 traz o seguinte so're o ato de )ogar
=hegamos, assim, E primeira das caracter#sticas fundamentais do )ogo o fato de
ser livre, de ser ele pr"prio li'erdade. /ma segunda caracter#stica, intimamente ligada E
primeira, ! ue o )ogo não ! vida real. $elo contrário, trata(se de uma evasão da vida
real para uma esfera temporária de atividade com orientação pr"pria. 589:8. p.::6
=ourte> traz ue ssencialmente, todas as formas de )ogos são tentativas do
organismo humano de assimilar experiências.B 5:FGH.p.8G:6. $or!m, em termos cênicos,
o conceito de )ogo ! ampliado, ganhando uma nova dimensão, ele passa a incorporar a
cumplicidade do olhar do outro, e a escuta tanto do ue ele ver'aliza, uanto de seu
silêncio.
O ato de improvisar em con)unto com colegas de cena ou o terapeuta 5por ue
nãoI6, transporta o paciente, agora )ogador1ator, para um terreno seguro, onde não existe
²Grifo do autor
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a co'rança do acerto a'soluto, e o distanciamento da sua real situação ! criado. le
entra no mundo ficcional e pode se permitir a expor suas angustias, encara(las e resolver
pro'lemas e uest%es ue, talvez, não poderia na sua vida cotidiana.
7egundo Coreno 5apud =ourtne>6
O aluno Jencena’ 1 auela situação, dramatiza a circunst*ncia
improvisadamente. le ! orientado em muitas situaç%es variando em conte&do, mas
concentradas na auisição da condição necessária. Assim constr"i a partir de dentro,
atrav!s do processo de imaginação, ou impulso criativo, exatamente a condição ue
falta a sua personalidade.B
$arente 5 89:9, p.8F6 traz ue $ara compreender o ue podia ser desvelado por
meio do sintoma, era preciso compreender a comunicação² nele encerrada.B Assimsendo, o 'rincar poderia mostrar a existência de uma autoria e apropriação do
conhecimento nos indiv#duos, ou no caso inverso, uma simples imitação de forma
reativa, superficial e adaptativa.
2entro das modalidades lingu#sticas das artes cênicas, existem duas ue
dialogam particularmente 'em com ciências como a psicologia e a psicopedagogia, são
elas o psicodrama e o sociodrama, am'as com caracter#sticas transformadoras.
$ara Coreno o psicodrama e o sociodrama vão al!m do )ogo espont*neo, pois a
primeira, usando as t!cnicas da improvisação teatral, tra'alha situaç%es e emoç%es em
conflito auxiliando na compreensão das ansiedades do foro #ntimo, enuanto o
sociodrama utiliza essas mesmas t!cnicas para tra'alhar as uest%es dos grupos sociais e
as suas relaç%es interpessoais, onde as angustias de um representante de algum grupo
espec#fico 5mulheres, homens, 'rancos, negros, )udeus, cristãos...6 são o foco e não
necessariamente as pessoais 3á conflitos intelectuais nos uais um indiv#duo !
perseguido, não por ele mesmo, mas pelo grupo ao ual pertence.B 5Coreno apud
=ourtne>, p.:9K6.
+o
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discutidas, mas, ue, atrav!s do distanciamento cr#tico proporcionado pela cena, eram
fervorosamente discutidos e em alguns casos, resolvidos.
7o're a função de aç%es sociais como o teatro f"rum 7uzana 7chimidt Migan"
aponta ue
A criação de espaços sociais de lutas e participação na esfera de
intoler*ncia, mediando(se e confrontando(se o poder hegemNnico para ue se garanta
cada vez mais a realização das li'erdades civis, da igualdade social e do respeito ao
cidadão. ste, por sua vez, mediante a ação pol#tica age em favor de uma cidadania
ativa, tornando(se consciente dos seus direitos e da possi'ilidade de ampliá(los e at!
mesmo modifica(los. 5899 p.8?6
=ontudo esse tipo de intervenção exige de seus participantes um grau deautoconhecimento relativamente alto, pois mexe com situaç%es, temas, e, muitas vezes,
com conceitos enraizados desde a primeira inf*ncia.
$ara ilustrar o conceito acima citado, utilizo uma situação de sala de aula de um
pro)eto social localizada num 'airro de 'aix#ssima renda da cidade de $orto Alegre. /m
grupo de adolescentes, entre as idades de :8 e :G anos foi convidado a compor um texto
teatral em con)unto.
A turma era heterogênea em faixa etária e preparação escolar, muitos com muitos
pro'lemas de aprendizagem, principalmente na parte de leitura e escrita, mas um caso
se destacava dos demais, um adolescente de :@ anos, ue era discriminado e tachado
como auele ue nunca iria conseguir acompanhar os demais, os pr"prios colegas o
tratavam como o estranhoB, não o deixavam se manifestar uase nunca, e, nas suas )á
raras cola'oraç%es, ele era ridicularizado, não importando a relev*ncia de suas
colocaç%es.
O aluno, ue irei identificar como P, era no grupo o ue
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mesas nos colegas, pois assim era ouvido e temido, conseguindo galgar um novo posto
no grupo, mesmo ue por alguns instantes.
Qnvestigado, com a)uda da assistente social do pro)eto, o contexto social e familiar
de P. descu'ro ue o mesmo possui um diagn"stico de dislexia e uma situação 'emcomplicada em casa. Lilho de pais separados, morando numa casa com p!ssimas
condiç%es de higiene e segurança, o adolescente ainda convivia com a mãe usuária de
drogas e álcool e a irmã menor ue aca'ava dependendo do irmão. P fazia papel de pai,
mãe e irmão, al!m de se preocupar com as tarefas da casa.
=om esse contexto ue o familiar, a situação escolar do adolescente não poderia
ser diferente, com tantas preocupaç%es em casa, ele aca'ava deixando em segundo
plano o ue era de foro #ntimo, como a sua educação, seus dese)os e sonhos. m seu par
educativo, instrumento ue mostra a relação do paciente com a aprendizagem, mostrou
duas pessoas numa 'i'lioteca, e antes ue d!ssemos continuidade ao instrumento, o
)ovem comentou +ossa, deve ser 'om poder estudar numa 'i'lioteca, com tantos
livros...eu gosto de ler...ueria poder ler.B sse comentário simples e espont*neo
determinou então a linha de tra'alho ue iriamos adotar, livros, temas e coisas ue o
fizessem experiênciar momentos dedicados apenas aos seus interesses. $recisava
construir com ele a noção de pertencimento e merecimento, precisávamos )unto
conuistar o verdadeiro respeito da turma.
=omeçamos então com os passos 'ásicos para ualuer tra'alho com
adolescentes, a conuista do respeito, e a aprendizagem de um conceito ue chamo
mão duplaB. O respeito deve usar uma rua de mão dupla, ou se)a, devo respeitar para
conuistar o respeito. isso não ! fácil para um adolescente. +essa 'atalhaB, os )ogos
de
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Algo diferente começou a acontecer, P começou a se destacar, mas a turma ainda
resistia em aceitar esse novo papel do colega, e P voltava a regredir. ra hora de
introduzir algo perigoso, mas ue se o'tivesse sucesso faria uma revolução no modo de
relacionar(se da turma. ra hora de trazer o clown.
O =lown ! um tipo de palhaço europeu, ! a expressão da pureza humana, ou
se)a, o palhaço ! a mais pura e verdadeira parte do ser humano. le ri de si mesmo e faz
rir aos outros ao expor o seu estado dilatado de pureza e rid#culo. O palhaço espelha a
fragilidade e a imperfeição humana. R um estado, ou se)a, ! a pr"pria pessoa em estado
de 'rincadeira, ele ! a pureza da criança, o pat!tico, e tudo auilo ue escondemos na
vida cotidiana, ele ! o nosso lado
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instalando na turma uma atmosfera de aceitação de si e do outro. Loi um movimento
arriscado, mas ue aca'ou sendo indispensável para o processo.
Cuitas diferenças foram aparecendo e desaparecendo em cena, algumas inclusive
virando tema do roteiro ue estávamos criando, e P voltou a se destacar em um novo papel, ele começou a escrever cenas para os colegas e criou um personagem, ue mais
tarde foi escolhido, por unanimidade, como o melhor personagem do roteiro.
=om o passar dos meses a peça foi criando forma, sempre sendo criada nos
moldes do teatro f"rum, onde a cena era exposta aos colegas e esses, caso discordassem
de algo, iam entrando na mesma para fazer as correç%es e expondo novamente ao grupo,
se fosse aceita a modificação entrava no roteiro, caso fosse re)eitada, uma nova ideia era
proposta para o lugar. sse c#rculo de ideias foi unindo a turma, e dando a P um novo
papel, ele era agora roteirista e diretor, al!m de fazer o seu papel.
=om essa mudança de papel de P, outros aspectos tam'!m começaram a mudar,
novamente com a a)uda da assistente social, marcamos uma nova consulta para P, para
rever o diagn"stico so're dislexia, pois atrav!s do clown e do teatro, ele lia e decorava
textos, explicava para os colegas as motivaç%es dos personagens e as melhores maneiras
de dizer os seus textos, ou se)a, demonstrava um "timo entendimento dauilo ue liaalgo incompat#vel com o diagn"stico de dislexia. =om a derru'ada desse r"tulo, ele
pr"prio conseguiu confiar mais nas suas ha'ilidades, inclusive ingressando no final do
ano num pro)eto de )ovem aprendiz.
A turma nunca chegou a apresentar esse roteiro, pois em um pro)eto social os
adolescentes muitas vezes não continuam o ano todo, muitos saem ou para pro)etos de
geração de renda ou desistem e a'andonam, mas apresentamos muito nosso tra'alho de
clown, e isso por si s", mesmo sem ser uma apresentação oficial, cumpriu o seu papelTransformou um amontoado de adolescentes em um grupo unido e mais feliz,
consciente de seu lugar e da necessidade de respeitar para ser respeitado, e P
conuistou, não pela força ou pela violência, mas por suas ideias e aç%es uma nova
posição, uma posição ue foi conseguida atrav!s de uma eleição.
=ontudo, a força da arte teatral não se encerra no tra'alho em grupo. m uma
sessão psicopedag"gica, o psicodrama pode revelar situaç%es de ang&stia escondidas
ue travam o processo de auisição do conhecimento, auxiliando no diagnostico e na
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intervenção do terapeuta, enuanto o sociodrama pode auxiliar indiv#duos a desco'rir os
seus pap!is nos diversos grupos os uais pertencem, e, atrav!s disso, muda(los ou
aperfeiçoá(los, e nesse processo, o riso ! uma ferramenta ue diminui o sofrimento do
processo e proporciona um caminho de autoconhecimento &nico.
As desco'ertas so're si, so're o papel ue desempenha e so're o ue atrapalha na
auisição do seu conhecimento são fatores de alta relev*ncia para o desenvolvimento
glo'al do ser humano. P passou do papel de 'ode expiat"rio a l#der atrav!s da força de
sua inteligência, ue estava aprisionada em um contexto familiar complicado e um
diagn"stico ue o rotulava. O olhar psicopedag"gico, o espaço de escuta, o riso e a
alegria do clown, o poder terapêutico dos )ogos e o alto grau de resiliência do
adolescente com'inados proporcionaram uma melhora na vida de P.
As t!cnicas e experiências ue cola'oram nesse encontro podem ser a'sorvidas da
arte ue se alimenta do ser humano o teatro. le se alimenta desse material humano,
pois foi uma criação sua, e possui uma relação sim'i"tica com o seu criador, pois ao
mesmo tempo em ue se alimenta dele para existir, proporciona ao mesmo a
possi'ilidade de se redesco'rir e conseuentemente melhor existir.
Peferencias
BERTHOLD, Cargo. 3Q7TPQA C/+2QAD 2O TATPO. 7$. d. $erspectiva.
899H.
BOAL, Augusto. 4OUO7 $APA ATOP7 +0O ATOP7. 7$. d. $erspectiva.
899:.
BORNHEIM, Uerd. O 7+TQ2O A CV7=APA. 7$, ed. $erspectiva
CAMARGO. Caria Aparecida. O TATPO +A 7=ODA A linguagem da
inclusão. P7 ed. /$L. 899K.
COURTNEY, Pichard. 4OUO, TATPO $+7AC+TO. 7$, ed. $erspectiva.
899K.
²Grifo do autor
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HUIZINGA. 4ohan. 3OCO D/2+7. 7$, ed. $erspectiva. 89:8.
PARENTE, 7Nnia Caria