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ANDERSON JACOB ROCHA A LÍNGUA, A HISTÓRIA E AS PRÁTICAS CARTORIAL E RELIGIOSA EM TESTAMENTOS PRODUZIDOS EM PASSOS NO SÉCULO XIX MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2005

A LÍNGUA, A HISTÓRIA E AS PRÁTICAS CARTORIAL E ......documentos produzidos na segunda metade do século XIX, em Passos, MG. Essa relação entre língua e história permite que

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ANDERSON JACOB ROCHA

A LÍNGUA, A HISTÓRIA E AS PRÁTICAS CARTORIAL E RELIGIOSA EM TESTAMENTOS PRODUZIDOS EM PASSOS NO

SÉCULO XIX

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2005

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ANDERSON JACOB ROCHA

A LÍNGUA, A HISTÓRIA E AS PRÁTICAS CARTORIAL E RELIGIOSA EM TESTAMENTOS PRODUZIDOS EM PASSOS NO

SÉCULO XIX

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de

MESTRE em Língua Portuguesa, sob a

orientação do Professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO - 2005

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

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DDDEEEDDDIIICCCAAATTTÓÓÓRRRIIIAAA

À Andréa Simão Rocha, minha esposa, dedico este trabalho.

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AGRADECIMENTOS

À Fundação de Ensino Superior de Passos - FESP, pela ajuda de custo.

Ao professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento, meu orientador e amigo,

pela disponibilidade e atenção.

Aos professores Doutores da Banca do Exame de Qualificação, João Hilton

Sayeg de Siqueira e José Everaldo Nogueira Júnior, pelas expressivas

sugestões dadas a nossa pesquisa.

Ao professor Doutor Luiz Fernando Fonseca Silveira, por me incentivar a

ingressar na pesquisa acadêmica.

Ao professor Mestre Antônio Theodoro Grilo, responsável pelo acervo do

Centro de Memória Estação Cultura de Passos, MG, pela amizade e pelo apoio

que possibilitou o acesso às fontes sobre a história de Passos.

Aos meus pais, irmão, sogros, cunhados, sobrinhos e afilhados, pelo apoio

constante.

À minha avó, Altina, e aos meus tios e primos, José Assis, Nilda Jacob,

Mônica, Marcelo, Itamar, Felipe e Lucas, pelo carinho e apoio em minhas idas

a São Paulo.

Aos professores Jorge Luís Costa, Nilton Conde, Mara Corrêa Senna e

Rosângela Aparecida Ribeiro Carreira, pela amizade e apoio.

À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES,

pelo apoio financeiro.

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RESUMO

A dissertação tem como tema um estudo da língua, da história e das

práticas cartorial e religiosa em testamentos produzidos na cidade de Passos,

Minas Gerais, no século XIX. Nossa pesquisa apóia-se na Historiografia

Lingüística, que se constitui em um arcabouço teórico-metodológico de

pesquisa, na medida em que se propõe explicar e descrever características da

língua e da história de uma comunidade, impressas em documentos escritos.

Propomos como objetivo geral examinar em testamentos produzidos em

Passos, em 1864, a língua, a história e as instâncias cartorial e religiosa pelas

quais se constituem alguns traços de memória social presentes naqueles

documentos. E como objetivos específicos, pretendemos identificar

características do português em uso àquela época e verificar o estatuto

jurídico-religioso dos testamentos selecionados.

A relação entre língua e história permite que o homem hodierno

reconheça a importância do saber contextual, já que a análise lingüístico-

histórica do documento se abre à reconstrução do passado do homem e da

língua, no mesmo instante em que nos oportuniza a compreendê-la à luz de

teorias atuais.

Os testamentos, utilizados como amostra, cujos testadores são João

Pimenta de Abreu e Maria Joaquina do Espírito Santo, estão arquivados no

acervo do Centro de Memória Estação Cultura em Passos, MG, e foram

analisados na perspectiva histórico-lingüística, conforme perpspectivas

apontadas por Konrad Koerner (1995, 1996), entre outros autores, revelando

marcas da língua portuguesa em uso àquela época, bem como indícios das

práticas cartorial e religiosa naquela sociedade. Nessa visão interdisciplinar,

característica essencial da HL, nossa pesquisa confirmou que a língua não

pode ser vista apenas sob o olhar de sua dimensão interna, mas faz-se

necessário olhá-la no contexto do clima de opinião da época em que o

testamento foi elaborado.

Pudemos perceber, também, que a prática testamentária era corriqueira

e que a cultura católica apostólica romana tinha presença marcante no

cotidiano da sociedade passense daquele contexto, haja vista a declaração

oficial dos testadores, ao declararem sua fé.

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ABSTRACT

This dissertation has as a theme a study of the language, the history,

and the archival and religious practices in produced wills in the city of Passos,

Minas Gerais, in the nineteenth century. Our research is based on the Linguistic

Historiography, which consists of a theoretical-methodological framework of

research, as it proposes to explain and describe characteristics of the language

and history of a community, printed in written documents.

We propose, as a general objective, to examine in wills produced in

Passos, in 1864, the language, the history, and the archival and religious

instances in which some traces of the social memory presented in those

documents are constituted. And as specific objectives, we intend to identify

characteristics of the Portuguese language in use at that time and verify the

juridical-religious statute of the selected wills.

The relationship between language and history permits the modern man

to recognize the importance of the contextual knowledge, since the historical-

linguistic analysis of the document opens the reconstruction of the past of the

man and his language, whereas it gives us the opportunity to understand it due

to recent theories.

The wills used as a sample, whose testators are João Pimenta de Abreu e

Maria Joaquina do Espírito Santo, filed in the patrimony in the Memory Center

“Estação Cultura” in Passos, MG, were analyzed on historical-linguistic

approach, according to perspectives pointed by Konrad Koerner (1995,1996),

among other writers and revealed marks of the Portuguese language in use at

that time as well traces of archival and religious practices in that society. Under

this interdisciplinary vision, essential feature of Linguistic Historiography, our

research confirmed that the language can not be seen just under the look of its

internal dimension, but it is necessary to look at it in the context of the

atmosphere of opinion at the time that the will was elaborated.

We could also realize that the will practice was common and that the

Roman Catholic culture had a strong presence in the everyday life of the society

in Passos in that context, considering the testators’ official declaration, when

they declared their faith.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I ....................................................................................................... 6

A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA: CONCEPÇÃO E PRINCÍPIOS................ 6

1.1 PARADIGMA NA CIÊNCIA ................................................................................ 6

1.2 LINGÜÍSTICA COMO CIÊNCIA .......................................................................... 9

1.3 A HISTÓRIA COMO CIÊNCIA.......................................................................... 12

1.4 O SURGIMENTO DA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA NO INTERIOR DAS CIÊNCIAS DA

LINGUAGEM, SEU CONCEITO E PRINCÍPIOS .......................................................... 16

1.4.1 A metalinguagem em Historiografia Lingüística ................................ 19

CAPÍTULO II .................................................................................................... 22

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E INTELECTUAL................................... 22

2.1 O BRASIL NA 2ª METADE DO SÉCULO XIX ..................................................... 22

2.1.1 Processos econômicos, escravistas e de imigração ......................... 22

2.1.2 O pensamento católico na sociedade brasileira na 2ª metade do

século XIX .................................................................................................. 27

2.2 PASSOS NO SÉCULO XIX ............................................................................ 29

2.2.1 Primeiros passos............................................................................... 29

2.2.2 De vila a cidade................................................................................. 32

2.3 CONCEPÇÕES LINGÜÍSTICAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX ............................... 38

2.4 A LÍNGUA PORTUGUESA NA 2ª METADE DO SÉCULO XIX................................ 40

CAPÍTULO III ................................................................................................... 51

O TESTAMENTO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO-LINGÜÍSTICO............ 51

3.1 ASPECTOS JUDAICO-GRECO-ROMANOS DOS TESTAMENTOS ........................... 51

3.1.2 A influência da religião católica, a concepção de morte e a concepção

religiosa presentes nos testamentos do século XIX. .................................. 52

3.2 O ESTATUTO JURÍDICO NOS TESTAMENTOS DO SÉCULO XIX........................... 56

3.3 O TESTAMENTO COMO DOCUMENTO JURÍDICO NO SÉCULO XXI....................... 59

3.4 O DOCUMENTO EM HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA......................................... 62

3.4.1 O documento como fonte na investigação científica ......................... 62

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3.4.2 Fonte primária, fonte secundária, documento oficial e documento

marginal...................................................................................................... 63

3.5 IDENTIFICAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CORPUS........................................ 65

3.5.1 João Pimenta de Abreu .................................................................... 65

3.5.1.1 O testamento de João Pimenta de Abreu.................................... 66

3.5.2 Maria Joaquina do Espirito Santo...................................................... 70

3.5.2.1 O testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo .................... 71

3.6 O TESTAMENTO E A AXIOLOGIA DE SUA FORMA TEXTUAL ................................ 73

3.6.1 A organização do testamento passense oitocentista......................... 73

3.6.2 A tematização do testamento ............................................................ 86

3.6.3 O campo lexical dos testamentos...................................................... 91

3.6.3.1 Relações de oposições ............................................................... 91

3.6.3.1.1 Pares antonímicos................................................................. 91

3.6.3.1.2 Associação semântica em torno da mesma palavra ............. 93

3.6.3.2 Relações de associações............................................................ 95

3.6.3.3 Relações de identidade ............................................................... 98

3.7 MARCAS ORTOGRÁFICAS DOS TESTAMENTOS ............................................. 100

3.8 OS TEMPOS E OS MODOS VERBAIS DOS TESTAMENTOS ................................ 108

3.9 CARACTERÍSTICAS PROSÓDICAS DOS TESTAMENTOS................................... 112

3.10 OUTRAS QUESTÕES LINGÜÍSTICAS ........................................................... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 120

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 123

ANEXOS ........................................................................................................ 128

ANEXO A..................................................................................................... 129

1. Testamento de João Pimenta de Abreu. .............................................. 129

2. Transcrição do testamento de João Pimenta de Abreu........................ 129

ANEXO B..................................................................................................... 140

1. Testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo. ............................... 140

2. Transcrição do testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo. ....... 140

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como tema um estudo da língua, da história e das

práticas cartorial e religiosa em testamentos produzidos na cidade de Passos,

Minas Gerais, no século XIX. Nossa pesquisa apóia-se na Historiografia

Lingüística (doravante HL) que se constitui como um arcabouço teórico-

metodológico de pesquisa e propõe-se a explicar e descrever características da

língua e da história de uma comunidade, impressas em documentos escritos.

Por meio de princípios norteadores da HL, objetivamos examinar em

testamentos a língua, a história e as instâncias cartorial e religiosa pelas quais

se constituem alguns traços de memória social presentes naqueles

documentos produzidos na segunda metade do século XIX, em Passos, MG.

Essa relação entre língua e história permite que o homem hodierno reconheça

a importância do saber contextual, já que lhe são propostas análises

lingüístico-históricas reconstrutoras do passado, possibilitando a oportunidade

de compreendê-las à luz de teorias atuais.

Os testamentos, que utilizaremos como amostra, estão arquivados no

acervo do Centro de memória Estação Cultura em Passos, MG, e serão

analisados na perspectiva histórico-lingüística, podendo revelar, dessa

maneira, marcas do português em uso àquela época, bem como indícios das

práticas cartorial e religiosa naquela sociedade. Nessa visão interdisciplinar,

característica essencial da HL, o trabalho historiográfico sobre a língua delineia

a associação de várias áreas do conhecimento, tendo em vista que assumimos

a língua como fato social. Assim, há a possibilidade, no âmbito histórico, de

olhar o clima de opinião da época estudada, rechaçando, por conseguinte, a

idéia de que o estudo da língua se baseia apenas na verificação de dados

gramaticais, internos ao documento. Nesse sentido, percebemos que algumas características lingüísticas,

cartoriais e religiosas da segunda metade do século XIX poderão ser

identificadas por meio da relação língua e história, uma vez que o testamento

produzido naquele momento apresenta aspectos de organização jurídica e

religiosa que o constitui.

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Os testamentos a serem analisados, cujos testadores são João Pimenta

de Abreu e Maria Joaquina do Espirito (sic) Santo, foram elaborados em 1864.

Nessa época, o conceito que o Brasil tinha de testamento estava determinado

no Código Civil português. Assim, será possível identificar a organização desse

documento que se constitui pelo despojamento de bens materiais a

destinatários juridicamente constituídos, mesmo que os bens do testador

fossem parcos. A garantia de uma morte feliz dependia do arrependimento que

o testador revelava naquele ato oficial. Nesse processo, a religião se configura

numa ação social que expressa, de modo particular, o modus vivendi do povo

sul-mineiro. Ademais, a conduta eclesial sul-mineira era influenciada, de forma

bastante explícita, pelo bispado de São Paulo, tendo em vista a implantação de

várias freguesias (paróquias) e, como conseqüência, vários padres naquela

região. O intuito de desvelar dados de usos lingüísticos do Brasil, da memória

social e das características cartorial e religiosa da região, possibilita-nos

depreender dados que lhe são peculiares.

A HL, por meio de princípios metodológicos propostos por Konrad

Koerner (1995), além dos direcionamentos apresentados por Júlio Ribeiro

(1885), Régine Robin (1977), Ciro Flamarion Cardoso & Ronaldo Vainfas

(1997) e Mário Eduardo Viaro (2004) toma o documento como objeto de

análise. Apreendem-se, nessa perspectiva, os testamentos, como uma das

possibilidades de recuperação de aspectos da sociedade passense da

segunda metade do século XIX, abertos à interpretação. Vale ressaltar que um

estudo como esse possibilita-nos, à luz da orientação teórico-metodológica da

HL, conhecer aspectos daquela sociedade que se configura histórica e

culturalmente naqueles documentos.

O caráter científico da HL tem como fonte a organização dos fatos

históricos e lingüísticos, a fim de que se crie uma relação estreita entre eles.

Cabe ao historiógrafo da língua essa função, pois, sabedor dos conhecimentos

lingüísticos e históricos, deve propor a aproximação dessa relação com

pesquisas pertencentes às ciências sociais, na medida em que essas

contribuirão para o reconhecimento de valores sociais e lingüísticos que se

cristalizaram na sociedade, bem como possibilitarão novas descobertas que

serão legitimadas pelas mesmas, pois são ciências constituídas.

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As considerações feitas acima confirmam que os testamentos escritos

naquela época, de modo especial, os que selecionamos, podem revelar, por

meio da análise lingüística e histórica, aspectos da língua portuguesa usada

naquela comunidade e resgatar práticas culturais do homem passense,

naquele contexto, propiciando novas visões e proposições à comunidade

contemporânea. A possibilidade dessa proposta se justifica dada a relevância

da HL na análise documental. K. Koerner (op. cit.: 35) afirma:

Os historiógrafos da língua devido à natureza particular do objeto de investigação da Historiografia Lingüística (HL), as teorias da linguagem (e também as teorias da Lingüística) e sua transformação no tempo, devem encontrar sua própria metodologia e epistemologia de pesquisa, e não podem esperar que seja possível aplicar métodos e intuições de outros campos diretamente em seus temas de investigação.

Na relação da língua e história, percebe-se que o conhecimento dessas

duas realidades resulta na possibilidade de entendimento do homem e da

língua, que se manifesta dinâmica em sua trajetória de transformações e

permanências. Desse modo, é necessário verificar, no caso dos testamentos

da época delimitada, o material lingüístico neles impresso, a fim de que

possamos desvelar aspectos da organização sócio-econômico-cultural

constituídos no período escolhido. A par disso, sabemos que o historiógrafo da

língua deve estar atento às teorias lingüísticas e suas fontes de transmissão,

haja vista a mudança constante que ocorre por meio do tempo.

Dessa maneira, será necessário utilizar o princípio da contextualização,

para que o processo de análise e interpretação do documento possa alcançar,

pelos estudos do clima de opinião de um recorte temporal do século XIX,

resultados que apontarão marcas lingüísticas portadoras de ações da língua

que se manifesta, também, como promotora da interação entre o indivíduo e a

sociedade. Por ele, encontraremos as evidências que possibilitam a

compreensão de alguns traços sociais daquele contexto, já que, segundo K.

Koerner, toda e qualquer idéia lingüística desenvolve-se a partir de outras

correntes intelectuais, principalmente, as de seu tempo.

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É preciso salientar que, pela interpretação dos testamentos,

pretendemos reconstruir aspectos histórico-sociais presentes nos documentos

testamentais passenses. Para isso, é preciso dar ênfase ao conhecimento

lingüístico materializado neles, adotando uma visão crítica em relação às

continuidades/descontinuidades, à questão da metalinguagem como recurso e

outros problemas particulares, pois segundo K. Koerner, os historiógrafos da

língua têm muito trabalho para fazer antes que a HL se torne uma Historiografia

das Ciências da Linguagem.

K. Koerner (1995) diz que o quadro geral da teoria sob investigação,

assim como a terminologia usada no texto, deve ser definida internamente, e

não em referência à doutrina lingüística moderna. Essa consideração pode ser

chamada de princípio da imanência que propiciará a compreensão dos usos

lingüísticos empregados nos testamentos da segunda metade do século XIX.

A partir desses princípios surgirá a necessidade de esclarecer as

transformações lingüísticas, para que a sociedade moderna possa obter a

compreensão plena do estudo feito. Segundo K. Koerner esta ação é chamada

de princípio de adequação, isto é, faremos a aproximação entre o vocabulário

técnico dos referidos documentos e a terminologia atual. Para delinear, de forma clara, os nossos objetivos, essa dissertação será

organizada em três capítulos:

No capítulo I, apresentaremos o processo epistemológico da H L, cujos

princípios nortearão as análises que serão empreendidas nos documentos

selecionados.

No capítulo II, explicitaremos o contexto histórico-social-político-religioso

do Brasil, do sul de minas e de Passos. Na apresentação do clima intelectual

da segunda metade do século XIX, nossa preocupação será com as

concepções lingüísticas vigentes no Brasil, bem como com o uso da Língua

Portuguesa.

No capítulo III, apresentaremos a concepção de testamento com seus

estatutos jurídico-religiosos. Para isso, por meio da análise de sua organização

e seus temas, verificaremos a constituição jurídica e religiosa do testamento. A

partir disso, serão empreendidas análises que tratam de suas relações de

oposições, da associação semântica, de relações de associações, relações de

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identidade, marcas ortográficas, prosódicas, verbais, semânticas e

etimológicas.

Por fim, seguirão as considerações finais, a bibliografia e os anexos.

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CAPÍTULO I

A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA: CONCEPÇÃO E PRINCÍPIOS

A atividade historiográfica que ambiciona compreender os movimentos em história da ciência, presume, inevitavelmente, uma atividade de seleção, ordenação, reconstrução e interpretação dos fatos relevantes (história rerum gestarum) para o quadro de reflexão que constrói o historiógrafo. Não se trata, pois, de incluir quaisquer fatos passados, só por serem passados.

(Cristina Altman)

1.1 Paradigma na ciência

Preocupado com as tendências paradoxais da ciência, Boaventura de

Sousa Santos (2003), a quinze anos do final do século XX, refletiu sobre a

importância do ser humano fazer indagações de cunho pueril. Para ele, as

coisas simples são de fácil compreensão, mas são profundas e, por isso,

conseguem iluminar os caminhos indecisos do homem. O autor refere-se,

ainda, sobre as questões simples, mas intensas, formuladas por Jean-Jacques

Rousseau que, entre outras, fez a seguinte pergunta: o progresso das ciências

e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?,

B. de S. Santos (op.cit.:16).

B. de S. Santos afirma que o paradigma dominante entrou em crise

porque seu objetivo é tratar de um fenômeno mecânico isolado, em que toda

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forma de conhecimento pretende ser utilitária e funcional em detrimento daquilo

que nos torna capazes de compreender e dominá-la e, desse modo,

transformá-la. Para superar essa crise é preciso que o novo paradigma seja

social, além de científico. Para isso, é necessário deixar de lado as posições

positivistas que, ainda, teimam ser absolutas desde sua ascensão no século

XIX.

Thomas Samuel Kuhn (1992) propôs um novo olhar no progresso da

ciência que, num processo contraditório, consegue revolucionar o pensamento

científico e convencer a comunidade ligada a uma determinada área a romper

com posições tradicionais passíveis de reformulação. Nessa perspectiva, este

cientista idealizou o conceito de paradigma pelo qual a comunidade científica

segue realizações do ato pesquisador, que são universalmente conhecidas e

fornecem problemas e soluções modelares. Para ele, o paradigma só é

substituído pelos profissionais de determinada área de conhecimento, quando

não consegue resolver problemas pesquisados. Assim, um novo paradigma

surge a partir de crises provocadas pelo paradigma anterior. T. S. Kuhn (op.

cit.: 116) salienta que:

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações. Durante o período de transição haverá uma grande coincidência (embora nunca completa) entre os problemas que podem ser resolvidos pelo antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo. Haverá igualmente uma diferença decisiva no tocante aos modos de solucionar os problemas. Completada a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção da área de estudos, de seus métodos e de seus objetivos.

Como toda e qualquer ciência, a Lingüística, por meio de seu

cientificismo, pretende produzir conhecimento em sua investigação. Para isso,

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ela busca relações associativas que determinem uma visão dialética na

investigação da língua e que provoquem o aparecimento de novos paradigmas.

Segundo Enrique Alcaraz Varó (1990), uma investigação científica, no

nosso caso, uma pesquisa sobre o objeto língua, deve ficar atenta à

metodologia do paradigma em que se apóia tal tarefa; no que vai ser

investigado; no fim que se pretende alcançar e no propósito de se fazer uma

pesquisa lingüística. A língua é objeto de estudo da Lingüística que, por sua

vez, quer dar conta de descrever os fenômenos e os termos lingüísticos, tal

como são diante do pesquisador. Dessa forma, podemos considerar que é por

meio da uniformidade de idéias e crenças que a comunidade científica entende

um paradigma em seu sentido lato. Mas, em todo paradigma há variantes

particulares que são conhecidas como escolas. Cabe à Lingüística, do ponto de

vista descritivo, a refutação ou ratificação de conceitos e modelos que

fundamentam determinada análise das línguas. Assim, E.A. Varo (1990) aponta

que, após a confirmação desses conceitos e modelos lingüísticos, realizada

pelos estudos da Lingüística descritiva, temos, então, um paradigma

consolidado que se instaura como referência e que se caracteriza a partir de

um pensamento teórico básico, a fim de proporcionar à comunidade científica

critérios para: marcar novas metas que estimulem a formulação de teorias

enriquecedoras; selecionar fatos relevantes que se convertam em problemas

de investigação; e propor soluções aos problemas anteriores dentro do

paradigma.

Desse modo, todo paradigma proposto num determinado momento pode

desencadear uma reação contrária a um outro paradigma ou sofrer alguma

modificação formulada por um outro teórico. Por exemplo, a gramática gerativo-

transformacional de Noam Chomsky surgiu como forte crítica ao estruturalismo

bloomfieldiano e, o estudo lingüístico concebido apenas por meio da frase é

substituído por uma lingüística textual, tendo em vista o novo entendimento dos

teóricos em relação ao texto, que foi considerado uma unidade superior à frase.

Assim, aconteceu uma ruptura que possibilitou o começo de uma perspectiva

teórica mais funcional. Percebeu-se, então, que a Lingüística Textual tinha em

seu escopo a noção de que a gramática da frase não consegue estabelecer e

direcionar tudo aquilo que se encontra no texto.

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No estudo da Lingüística, como em qualquer outra ciência, não

podemos conceber a idéia de que o processo investigativo se esgota nos

paradigmas da lingüística estruturalista, gerativista e pragmaticista. A

investigação histórica também se torna importante, porque se abre ao diálogo

com várias outras áreas, entre elas: a sociolingüística, a psicolingüística, a

filosofia da linguagem, a neurolingüística, a historiografia lingüística etc. As

transformações que um paradigma lingüístico sofre ao longo da história são

benéficas, pois estimulam a análise de um mesmo fenômeno de diferentes

ângulos.

Partimos, então, do pressuposto de que numa investigação científica, a

relação entre ciências distintas é indispensável, pois não podemos considerar

que as teorias sejam intocáveis e absolutas. Karl Popper (apud E.A. Varo

(1990: 16) confirma esta afirmação quando diz: aunque la Idea de verdad sea

absolutista, no podemos pretender alcanzar uma certeza absoluta: somos

buscadores de la verdad pero no sus poseedores.

Assim, o investigador deve buscar respostas para aquilo que ainda é

parcialmente conhecido. Para isso, faz-se necessária a relação interdisciplinar

(pluridisciplinar) que estabelece relações entre dois ou mais ramos de

conhecimento, para que eles possam apontar a formulação de um novo

paradigma. As ciências, elencadas para tal investigação científica, devem estar

fortalecidas em seu aparato metodológico e ter como propósito um objeto

definido. Para que haja a construção de um novo conhecimento, frente a um

novo paradigma e naquilo que propomos neste trabalho, focalizaremos duas

ciências nesta configuração teórica, que, com certeza, são os vieses dessa

investigação científica: a Lingüística e a História. Essas ciências darão

condições para o surgimento da H L.

1.2 Lingüística como ciência

A epistemologia da ciência sustenta um processo axiológico, quando

adentra nos estudos humanísticos. Todavia, faz-se necessária a ação de dar

cabo àquela postura dicotômica entre sujeito e objeto, e sem essa ação, a

compreensão do mundo fica mais difícil. Essa nova ação diante do

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conhecimento resultará naquilo que T.S. Kuhn intitula de revoluções científicas,

que não podem ser cumulativas, já que o paradigma velho é total ou

parcialmente substituído por um novo. Quando o homem colhe dados, teorias e

utiliza métodos constitui uma área de conhecimento em ciência. Em

decorrência, ela pode estabelecer, então, um caráter combinatório ou isolado a

fim de firmar-se em seu aparato científico-metodológico.

Por causa disso, Cristina Altman (1998: 27) indica quais foram as

contribuições que o trabalho de T. S. Kuhn propiciou à Lingüística:

Na visão kuhniana de progresso científico, cada nova etapa de evolução implica em ruptura – de teorias, métodos, seleção de problemas e critérios de solução de problemas – como o conhecimento anterior. Ao invés de somente continuidade e acumulação, haveria, de tempos em tempos, períodos de descontinuidade e ruptura responsáveis pela formação de um novo paradigma, incomparável e incomensurável em relação ao que o precedeu. Assim, na conhecida – e controvertida – distinção kuhniana entre períodos de ‘ciência normal’ e períodos de ‘ciência extraordinária’ (Kuhn 1987, Toulmin 1979, Watkins 1979), a Lingüística contemporânea se encontraria, na melhor das hipóteses, em pleno estado de crise, à procura de um novo paradigma.

Nessa ótica, o aspecto historiográfico da Lingüística se entrou em crise

quando observou que o seu modelo de ação – registro de fatos passados –

encontrava-se obsoleto. Por isso, desbravou um caminho de concepção

diferente por meio da HL, que abarcou princípios metodológicos que ajudaram

a ampliar o campo da Lingüística como ciência.

Em nossos dias, não há mais dúvidas quanto ao caráter científico da

Lingüística. Émile Benveniste (1989:30) diz que a Lingüística recomeçou e se

reengendrou a si mesma várias vezes e, por isso, ela engloba as ciências da

linguagem como a gramática, a filologia, a fonética etc. Parafraseando Mortéza

Mahmoudian (1982), podemos dizer que a Lingüística é a ciência da

linguagem, porém não consideraremos um lingüista aquele que domina vários

idiomas e os usa apenas para a prática social. Nem podemos considerar a

Lingüística como ciência, quando atribuímos a ela o caráter de normatização. É

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por meio do rigor científico que o pesquisador procura compreender o objeto

língua.

Esse processo demorou a ser constituído porque foi preciso obter o

reconhecimento da Lingüística como área científica. Isso não implica que os

debates sobre o objeto e método dessa ciência estejam fechados. Na medida

em que os lingüistas procuram mirar no objeto e na metodologia da Lingüística,

há o surgimento de novas experiências e conhecimentos. Para confirmar essa

tendência, faz-se necessária uma reflexão sobre a visão da língua como

sistema, fato que levou Ferdinand de Saussure a empreender um estudo

descritivo da língua. Apesar de ser reconhecido somente em 1916, por meio da

publicação póstuma do Curso de Linguística Geral, F.de Saussure já revelava,

quarenta anos antes, portanto, ainda no século XIX, o caráter estruturalista do

seu objeto de estudo, ou seja, a langue em oposição a parole e forma em

oposição à substância. A comprovação da cientificidade da Lingüística se dá

quando August Schleicher (1869: 5-7) diz que, em geral, as afirmações que

Charles Darwin fez sobre a criação animal podem ser atribuídas aos

organismos da linguagem e pede aos naturalistas a merecida atenção a esse

campo de pesquisa, pois não haviam feito isso até aquele momento. A.

Scheicher preocupa-se com linguagem, quando postula o seguinte:

Não me refiro aqui exclusivamente à investigação fisiológica dos vários sons da língua, um estudo que fez progresso considerável nos últimos tempos, mas também à observação e aplicação das variedades lingüísticas no seu significado para a história natural do homem. E se essas variedades lingüísticas formassem a base para um sistema em relação ao genus homo singular? Não é a história da formação e progresso da linguagem o aspecto principal do desenvolvimento da humanidade? Tanto assim que um conhecimento da relação lingüística é absolutamente requisito para qualquer pessoa que queira obter noção sobre sua natureza e existência do homem... ...As línguas são organismos da natureza; nunca foram dirigidas pela vontade do homem; elas surgiram e se desenvolveram de acordo com leis explícitas; envelheceram e morreram.

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Nessa perspectiva, A. Schleicher não vê nenhuma diferença entre a

ciência da linguagem e outras ciências da natureza, porque aquela está sujeita

a fenômenos que encerramos sob o nome de “vida” e o seu método é o mesmo

de qualquer ciência natural.

Ao caracterizarmos a HL como uma ciência pluridisciplinar, na medida

em que engloba outras áreas de conhecimento, o lingüista, isto é, o

historiógrafo da língua deve comprovar um conhecimento “quase”

enciclopédico, pois, ao mesmo tempo em que ele precisa ser dotado de um

arcabouço teórico-lingüístico, necessita ter uma visão geral dos fatos históricos,

para que a pesquisa delineada possa abarcar o clima de opinião cristalizado no

documento escolhido.

O objetivo da Lingüística Geral é linguagem humana e sua perspectiva é

unidisciplinar. Quando a Lingüística se associa à História e a outras ciências,

torna-se pluridisciplinar e, dessa parceria se constitui a HL que, por sua vez, se

apropria dos recursos metodológicos dessas diferentes áreas de

conhecimentos, para consolidar seu referencial.

A HL confirma-se como ciência, porque tem a língua como prática social

e, ainda, pode ser uma teoria utilizada por meio de várias perspectivas de

abordagem, tendo em vista que pode ser tomada como um reflexo do

comportamento do homem no contexto sociocultural. A língua muda porque

está a serviço do homem e configura-se como fato social. Se não mudasse, ela

morreria. É por isso que a HL assume a língua, no dizer de Edward Sapir

(1969) como um valioso instrumento de uma dada cultura.

1.3 A História como ciência

Apesar de haver um processo de atenuação entre ciências da natureza

e ciências humanas e sociais, Frédéric Mauro (apud José M. Amado Mendes:

1993) considera que, ainda, há diferença entre elas, pois, para ele, o

determinismo social, a liberdade humana, a dificuldade de repetir as

experiências, entre outras coisas, possibilitam a separação dessas ciências. A diferença marcante, no caso das ciências da natureza, se dá no

método. Seus objetos são analisados pelo método experimental, ao passo que,

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as ciências sociais precisam utilizar métodos diversificados pela característica

de sua própria natureza. No entanto, não se pode considerar que determinado

conhecimento científico persevere isoladamente, pois todos os tipos de

conhecimento têm o objetivo de focalizar o homem e o mundo. Esse foco exige

uma relação entre os vários ramos do conhecimento científico para sua melhor

compreensão. B. S. Santos (op. cit.: 38) corrobora esta afirmação, dizendo que:

A ciência social será sempre uma ciência subjectiva e não objectiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas acções, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos das correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjectivo, descritivo e compreensivo , em vez de um conhecimento objectivo, explicativo e nomotético.

A História se constitui uma ciência autônoma no momento em que define

um aparato epistemológico que, por sua vez, se realiza quando há a eleição do

objeto de estudo e seus procedimentos. Nessa perspectiva, a História revela-se

uma ciência, já que seu objeto de estudo é o homem em sociedade. Edward H.

Carr (1961) alerta sobre a importância de considerarmos a História como

ciência, pois ela estuda aquilo que é geral dentro do singular. Com isso,

podemos partir do procedimento de estudo da micro-história e elencar um

actante de determinado contexto e relacioná-lo a fatos que ocorreram no

período pesquisado. O estudioso lembra, ainda, que o estudo da História

permite compreender melhor o presente, haja vista a possibilidade de observar

o enfoque do historiador, que nos fornece condições para analisar um fato

histórico e tê-lo como guia para ações futuras. Contudo, dentro do pensamento

idealista de Benedeto Croce (apud Daniel Sousa, 1982), não existe história

quando há apenas uma descrição do passado. Quando isso acontece, trata-se

de crônica, significando, simplesmente, um relato de acontecimentos, que são

registrados por ordem cronológica, sem apresentar, todavia, nenhuma relação

de conexão. Podemos, então, considerar a legitimidade da ciência História,

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quando os fatos são tratados de forma teórica e passíveis de comprovação. D.

Sousa (op. cit.: 50) diz que:

Na verdade, falar da história como ciência é supô-la fundamentalmente um sistema de elementos inter-relacionados e interdependentes, sobretudo no que respeita à definição precisa de uma teoria geral de orientação, de um objecto próprio e de uma metodologia específica, nos termos em que nos parece que já desenvolvemos. A teoria geral que a história deve apresentar, como qualquer ciência, deve não só consistir na fonte própria dos princípios que orientam a sua investigação e dos que constituem a sua metodologia específica. Claro que a determinação da especificidade do próprio objecto da história se identifica com a sua teoria geral de orientação.

Assim, como já dissemos anteriormente, temos a interdisciplinaridade.

Por ela, a relação entre as áreas do conhecimento acontece num grau mais

elevado que, por meio de um conjunto de processos científico-metodológicos,

possibilita a resolução de problemas existentes no mundo.

J. M. A. Mendes destaca alguns pontos das conceituações sobre

História apontadas por Marc Bloch e Georges Lefebvre, respectivamente.

Aquele autor nos admoesta ao relatar que M. Bloch dá preferência ao coletivo,

ou seja, aquilo que é individual não pode ajudar na conceituação sobre

História, pois o seu objeto é o homem em sociedade. Refere-se, ainda, o

estudioso a outro aspecto de M.Bloch que é a dimensão temporal da História.

Na investigação histórica, as categorias de tempo e espaço tornam-se

imprescindíveis, já que estão presentes explicitamente ou implicitamente no

estudo de qualquer tema.

G. Lefebvre (apud J. M. A.Mendes: 1993) identifica a História com a

memória do gênero humano, também chamada a memória coletiva. Isto

significa que, para fortalecer a identidade de uma sociedade, é preciso atribuir

importância à história dela. Para ele, em história se processa uma filtragem dos

eventos com base na sua significância, mas J. M. A. Mendes chama a atenção

sobre o fato de que pode haver uma reinterpretação ou descoberta de novas

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fontes, dotadas de uma nova metodologia, que podem mudar o olhar do

historiador sobre a significância dos acontecimentos. Quando a história é vista sob uma perspectiva científica, ou seja, se

partimos da ratificação de que história é uma ciência, afirmam os historiadores

que ela somente se constituirá como tal, observando o seu objeto de pesquisa:

o fato histórico. Segundo Jean Glénisson (1983), o fato histórico é o registro de

um acontecimento que se apóia numa autenticidade indiscutível, porque se

revela importante instrumento para os estudos historiográficos. O

acontecimento se diferencia do fato histórico, pois esse pode repetir-se.

Os acontecimentos tornam-se fatos históricos porque todos são

elementos da realidade. No instante em que o historiador mostra interesse

científico por determinado acontecimento e o descreve, essa ação o torna um

fato, pois é interpretado à luz de correntes ideológico-metodológicas do

pesquisador. Desse modo, a história aponta os acontecimentos, que são

irrepetíveis, e o historiador, por sua vez, escolhe um indivíduo de um

determinado contexto e o interpreta. Esta escolha não acontece por acaso, pois

todo grupo social expõe sua identidade num documento qualquer e quem o

representa é alguém que exerceu alguma liderança na comunidade. J.

Glénisson (op.cit.:127 ), esclarece isso, quando afirma que o fato histórico é um

fato social e sobre a importância do fato, diz o seguinte:

...um fato pode ser considerado como de importância histórica quando produziu conseqüências.Esclarecemos imediatamente, por preocupação, que todos os fatos têm as suas, mas que estas são mais ou menos consideráveis numa escala humana, submetida, de resto, a uma constante revisão... Não basta que um fato tenha verdadeiramente existido numa época anterior para que sua existência seja histórica. É preciso, ainda, que tal existência se tenha manifestado. A importância, frente à história, de um texto inédito durante muito tempo é nula, até o dia de sua publicação.

Está claro para nós que a mera existência do documento, por si só, não

traduz a importância do fato histórico. É o historiador quem deve dizer se tal

fato existe ou não no objeto material da pesquisa, ou seja, no documento. Se o

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ato histórico-investigador conseguir eleger, como objeto de estudo, o homem

em sociedade, teremos, assim, constatado a autonomia da história como

ciência, pois o homem se revela, quando diz ou escreve algo.

Conforme Jacques Le Goff (apud E.H. Carr, 1961), as técnicas, os

métodos e a necessidade de se estudar História são comprovações de que ela

é e deve ser uma ciência. Dessa maneira, a História apresenta-se de modo

diferente das ciências exatas; nela há uma complexidade mediante a sua

incidência sobre o passado. Isso acontece porque a experimentação e o

registro direto são impossíveis. Para se obter um conhecimento histórico são

necessários outros fatores que intermedeiem todas as conseqüências inerentes

a tal fato. J. Glénisson (1993) conceitua a História, afirmando que seu objeto é

a ação do homem do passado, e que é verificada por meio de metodologia

analítica e interpretativa dos documentos ou indícios intelectuais perpetuados.

É por meio da intersubjetividade que a ciência histórica adquire um

caráter de objetividade, tendo em vista que a interpretação do historiador deve

desprezar os aspectos pessoais para que o trabalho científico seja válido e

sancionado. Nesta perspectiva, John Dewey (apud J. M. A. Mendes, 1993:17)

ratifica esta afirmação da seguinte forma: ser intelectualmente objetivo é

descontar e eliminar os fatores meramente pessoais nas operações pelas quais

se chega a uma conclusão.

Há, ainda, a necessidade de reconhecer a singularidade do

acontecimento histórico. Esse reconhecimento não impede a ocorrência de

acontecimentos com caráter de regularidade e semelhança. Com isso, mesmo

com o complexo processo paradoxal em que o homem se encontra no mundo,

seja individualmente ou em grupo, não se pode negar tendências e

comportamentos relativamente constantes.

1.4 O surgimento da Historiografia Lingüística no interior das ciências da linguagem, seu conceito e princípios Segundo Ricardo Cavaliere (2000) a perspectiva histórica em que se

desenvolveram os estudos da linguagem humana no século XIX foi a maior

inovação que o plano lingüístico poderia receber. Até aquele momento, os fatos

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passados eram mencionados apenas numa visão de características superficiais

e, portanto, apenas narradoras e estáticas. A partir disso, as línguas

começaram a ser estudadas desde suas origens e avançando na direção de

sua continuidade inerente. No entanto, esse processo animador e crescente

em torno das mudanças da língua foi aos poucos se deteriorando por conta das

progressões da tecnologia no limite do século XIX e no limiar do século XX.

Segundo M. E. Viaro (op. cit.: 12), na Lingüística, os estruturalistas já não se

preocupam com a história, como faziam Benveniste, Jakobson ou mesmo

Saussure. Assim, em meados do século XX, surge a teoria gerativista, de

Chomsky, cuja abordagem não privilegia os estudos históricos da língua,

preocupando-se tão somente com a formação de sentenças lingüísticas que o

indivíduo realiza apoiado em outras sentenças. Não estamos desprezando,

porém, a importante contribuição que essa e outras correntes, o estruturalismo,

o pragmaticismo, por exemplo, deram para a Lingüística, mas não podemos

enfatizar apenas os fenômenos das línguas ao redor de si mesmas em

detrimento de seus estudos históricos. Nessa perspectiva, a HL com o seu

caráter pluridisciplinar, apresenta, no âmbito de sua cientificidade, o elo que

podemos fazer frente aos estudos histórico-contextuais e, principalmente, dos

estudos lingüísticos.

A partir de perspectivas indicadas por Konrad Koerner (1995) sobre o

arcabouço teórico-metodológico da HL, várias pesquisas já se consolidaram,

reconstruindo fatos da história da língua e de características sociais de uma

comunidade, por meio de princípios. A HL se desenvolveu com a progressão

da Lingüística Histórica e apesar de haver objetivos que privilegiam a língua, a

história e outros fatores sociais, ela é uma ciência que se encontra em

ascensão e se distingue da História da Lingüística, da História das Idéias

Lingüísticas e a Historiografia da Lingüística. Embora a HL esteja relacionada

com a atividade de registrar a história, ela propõe condições para que o

pesquisador compreenda o homem por meio da análise lingüística de

documentos.

Com os avanços dos estudos historiográficos e não havendo uma única

perspectiva de abordagem da língua numa dimensão histórica, o pesquisador

desta área pode dar tratamento metodológico que achar pertinente ao seu

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trabalho. Para orientar a pesquisa historiográfica, K. Koerner propõe três

princípios básicos, com o intuito de solucionar questões que interferem no

processo de interpretação do documento. Atentando-se para o primeiro desses princípios, K. Koerner (op. cit.:42)

diz que as concepções lingüísticas nunca se desenvolveram

independentemente de outras correntes intelectuais de seu tempo. Por isso,

quando fazemos o levantamento do clima de opinião da época em que se

encontra o documento escolhido, para que possa ser analisado e interpretado,

chamamos este processo, segundo este autor, de princípio de

contextualização. Pela operacionalização desse princípio, podemos encontrar

evidências que possibilitam a compreensão do homem que vive num

determinado contexto histórico-social.

É preciso salientar que pela interpretação contextual que faremos a

partir dos testamentos, pretendemos reconstruir alguns aspectos da história do

homem da sociedade passense do século XIX. Nessa perspectiva, nosso

trabalho se torna interdisciplinar pela possibilidade que temos de aliar a

Lingüística com a História para desvendar os aspectos lingüísticos

materializados nos documentos, e também, o caráter histórico-social, visto que

estamos considerando o século XIX como um todo. Entretanto, o recorte maior

será dado ao período em que os testamentos selecionados foram produzidos,

ou seja, à segunda metade daquele século. Portanto, o texto dos documentos a

serem analisados é o material principal para o estudo. Assim, ao

considerarmos sua materialidade lingüística, adotamos uma visão crítica para

que os documentos se revelem por meio de sua organização interna.

Para confirmar essa orientação, K. Koerner (op. cit.::12) diz que o

quadro geral da teoria sob investigação, assim como a terminologia usada no

texto, devem ser definidos internamente, e não em referência à doutrina

lingüística moderna. Essa posição metodológica pode ser caracterizada como

princípio da imanência. O historiógrafo da língua, diante deste princípio, não

deve analisar o documento com o olhar das teorias atuais, pois o princípio da

imanência permite uma busca de elementos restauradores do passado. Assim,

ao levantar informações e estabelecer um entendimento em relação às teorias

lingüísticas e aspectos históricos no documento, o historiógrafo da língua

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investiga e possibilita a compreensão do documento, por meio de concepções

existentes na época em que ele foi produzido.

Uma outra orientação para o estudo em HL é aquela que visa a

reatualizar as informações presentes no documento para que a sociedade

moderna tenha a oportunidade de entendê-las. Dessa maneira, após a

aplicação dos dois princípios mencionados anteriormente, surgirá a

necessidade de esclarecer as mudanças e regularidades lingüísticas, pois no

dizer de Serafim da Silva Neto (1986:18):

A língua é um produto social, é uma atividade do espírito humano. Não é, assim, independente da vontade do homem, porque o homem não é uma folha seca ao sabor dos ventos veementes de uma fatalidade desconhecida e cega. Não está obrigado a prosseguir na sua trajetória, de acordo com leis determinadas, porque as línguas seguem o destino dos que a falam, são o que delas fazem as sociedades que as empregam.

A ação metodológica que dará a oportunidade de o homem hodierno

compreender o documento estudado é conhecida como princípio de adequação

teórica, isto é, cabe ao historiógrafo da língua fazer a aproximação entre as

marcas lingüísticas e os dados contextuais do referido documento e a

terminologia e os contextos atuais. Esse princípio requer que o pesquisador,

primeiramente, compreenda o passado que está materializado no documento

e, em seguida, pelo processo de interpretação, à luz das teorias modernas,

compreenda os fatos registrados no documento. Por esse princípio se dá uma

atividade interpretativa, cujo objetivo é fazer com que os fatos do passado

sejam vistos pelos olhares do presente.

1.4.1 A metalinguagem em Historiografia Lingüística

Ao abordar teorias do passado, o historiógrafo da língua deve ficar

atento às condições em que o documento foi escrito e, concomitantemente, ter

cuidado ao tornar acessíveis as informações, contidas nele, ao homem do

presente. Para que a pesquisa em HL se torne interessante no cotidiano do

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lingüista, faz-se necessário que a intenção e o significado originais expressos

nos documentos sejam preservados. Para isso, os três princípios norteadores,

apontados por K. Koerner, devem ser precedidos pela operacionalização do

recurso da metalinguagem para que a investigação em HL decorra sem falhas.

Por isso, abordaremos, neste momento, os desdobramentos da metalinguagem

por se tratar de um instrumento indispensável na abordagem da HL.

Marly de Souza Almeida (2003) nomeou e sistematizou vários

aspectos teóricos sobre a questão da metalinguagem. Com isso, tem-se um

recurso de análise em HL que torna a leitura do documento do passado

inteligível, tendo-se em vista a pesquisa das implicações contextuais da época

estudada.

A metalinguagem científica se caracteriza pelo estudo lingüístico do

passado com uma abordagem lingüística do tempo presente. Desse modo, a

metalinguagem torna-se um recurso científico de análise, porque permite que o

historiógrafo da língua não cometa equívocos em sua análise. M. de S. Almeida

(op. cit.: 91) confirma isso desta maneira:

... o tempo que separa o historiador do documento que examina precisa ser percebido e principalmente explicado, quando do estudo do texto em questão, e isso deve ser feito graças aos recursos da metalinguagem. Esses recursos tornam evidentes para leitores do momento atual as implicações contextuais do documento analisado. Isto significa que não é possível voltar-se para o passado da língua e interpretá-lo à luz das teorias atuais, sem qualquer cautela ou diferenciação entre o estudo historiográfico moderno que se faz do documento e o recurso metalingüístico de certa forma modernizante, mas cautelosamente empregado e analisado para que não haja equívocos entre as linguagens do passado, do presente e a técnica de análise.

A metalinguagem científica é empregada para o estudo da linguagem

que é considerado longínquo ou diferente dos usos atuais.

As caracterizações da metalinguagem permitem que o historiógrafo da

língua examine o material de análise de acordo com sua necessidade

metodológica. Nessa perspectiva, temos um meio de organizar esse novo

domínio do conhecimento lingüístico, possibilitando ao historiógrafo da língua,

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no interior do documento, conhecer o passado, isto é, compreender o passado

que se reflete no presente que, por sua vez, é conhecido pelo estudo do

passado.

Refere-se, ainda, a autora sobre a metalinguagem de usos, à

metalinguagem da apropriação, à metalinguagem literária e à metalinguagem

crítica ou de formas. Contudo, aplicaremos apenas a metalinguagem científica

como recurso facilitador da nossa pesquisa.

Ao expor conceitos teóricos em torno da HL, pretendemos garantir aquilo

que K. Koerner (1995) aponta como escopo dessa ciência: a HL deve estar

voltada para a teoria e não para os dados. Isso não significa que queremos

absolutizar a teoria, mas os dados serão entendidos a partir do

estabelecimento das bases da HL que se apóia num conhecimento quase

enciclopédico do pesquisador. A partir disso, queremos levantar o clima de

opinião da época em que os testamentos foram constituídos. Para isso, há

necessidade de utilizarmos o princípio da contextualização como via de

composição para o capítulo seguinte.

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CAPÍTULO II

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E INTELECTUAL

A língua, como todos os produtos da cultura humana,

é um objeto da contemplação histórica. (Herman Paul)

2.1 O Brasil na 2ª metade do século XIX

2.1.1 Processos econômicos, escravistas e de imigração

Antônio Houaiss (2001:817) entende que contextualização é o conjunto

de condições de uso da língua, que envolve, simultaneamente, o

comportamento lingüístico e o social, e é constituído de dados comuns ao

emissor e ao receptor. Assim, tendo em vista que os testamentos que

selecionamos para análise foram escritos na região de Passos, propomos,

nesse capítulo, operacionalizar o princípio da contextualização histórica e

intelectual por meio do estudo de alguns aspectos econômicos, religiosos,

políticos e culturais do Brasil, daquela cidade, que se localiza no sul de Minas.

No século XIX, mais precisamente a partir de 1850, incrementam-se no

Brasil mudanças profundas de ordem econômica e política. Os políticos

conservadores, chamados saquaremas 1, promulgaram logo após a lei que

1 Os políticos conservadores eram denominados por saquaremas, porque seus líderes, Viscondes de Uruguai e de Itaboraí, eram proprietários de terras e tinham grande força política na região de Saquarema, província do Rio de Janeiro.

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proibia o tráfico de escravos, a lei de Terras. Por essa lei, almejavam cessar as

lutas por terra, já que eram interessados em manter uma estrutura social que

os beneficiasse. A intenção era a de transformar a terra em propriedade

passível de ser comprada ou vendida. Assim, uma pessoa só se tornaria

proprietária de terras quando as comprasse. Com isso, os imigrantes que

chegavam ao Brasil viam-se forçados a vender aquilo que lhes sobrara: a mão-

de-obra. Essa era uma visão de quem já percebia a aproximação do fim da

escravidão e se tornou uma boa opção àqueles que pretendiam investir na

modernização do Brasil e expandir sua produção cafeeira.

Segundo Boris Fausto (2002), foi nesse período que houve, também, a

valorização da Guarda Nacional e a aprovação do primeiro Código Comercial

que, entre outras coisas, possibilitou a delimitação dos tipos de companhia que

pudessem ser organizadas no Brasil, bem como suas operações. Conforme B.

Fausto (op. cit: 108):

A liberação de capitais resultante do fim da importação de escravos deu origem a uma intensa atividade de negócios e de especulação para as condições da época. Surgiram bancos, indústrias, empresas de navegação a vapor etc. Graças a um aumento nas tarifas dos produtos importados, decretado em meados da década anterior (1844), as rendas governamentais cresceram. Em 1851-1853, elas representavam o dobro do que tinham sido em 1842-1843. No plano político, liberais e conservadores chegaram provisoriamente a um acordo nacional, expresso no Ministério de Conciliação (1853-1856), presidido pelo marquês de Paraná. De algum modo, o acordo perdurou nos ministérios seguintes até 1861.

Percebe-se, nesse mister, a implantação da modernização no país a

partir de princípios capitalistas que, naquele caso, abriam condições para o

mercado de terra, de trabalho e todas as suas relações. Assim, além de outras

necessidades, com o alto crescimento da economia cafeeira, houve a

preocupação em alavancar o precário sistema de transporte com a construção

de ferrovias, rodovias e o investimento na navegação a vapor.

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Em relação ao trabalho escravo, é ilusório pensarmos que os

fazendeiros de café, principalmente os da promissora região do oeste paulista,

quisessem utilizar o trabalho livre por achar que, dessa maneira, haveria uma

produção maior. Essa era, apenas, uma alternativa em vista do

desaparecimento da mão-de-obra cativa. Contudo, mesmo com a proibição do

tráfico negreiro, em 1850, pela promulgação da lei Eusébio de Queirós, surgiu

um novo modo de se conseguir esse tipo de trabalho. Trata-se do tráfico

interprovincial que transferia, de forma forçada, escravos de uma região para a

outra e, em muitos casos, por via terrestre para fugir dos impostos cobrados

nos portos. Viajantes compradores de escravos percorriam as províncias a fim

de comprar mão-de-obra escrava de pequenos fazendeiros e de pessoas que

moravam na zona urbana.

Por conseguinte, os escravocratas passaram a depender da chegada de

escravos de outros estados. Isso influenciou a vida política do país, acelerando

o processo de abolição da escravatura, pois aconteceram experiências mal

sucedidas em que os fazendeiros propunham aos imigrantes alemães e suíços,

vindos com a ajuda de recursos do governo imperial, trabalho em regime de

parceria. Entretanto, com as péssimas condições de sobrevivência, inclusive

censura de correspondência e cerceamento do ir e vir nas fazendas,

explodiram revoltas que deixaram esse tipo de experiência sem fôlego para

continuar.

Com a promulgação da lei do Ventre Livre2 em 1871 que, segundo Hugo

Fragoso (in História da Igreja no Brasil, 1985:152), representou a declaração de

brasilidade dos negros e a necessidade de dar continuidade ao crescimento da

economia, o governo provincial de São Paulo, por meio legal, propiciou aos

fazendeiros, recursos que permitiam oferecer aos imigrantes ajuda de custo

para a viagem, hospedagem gratuita na capital até oito dias e transporte para

as fazendas. Mas, mesmo com essas manobras para convencer tais imigrantes

a virem para o Brasil, o número de adeptos a essas propostas estava muito

2 Segundo Caio Prado Júnior (1998: 178), o Imperador, sem modificar fundamentalmente a situação no poder, mas remodelando-a com a inclusão no governo de uma fração mais tolerante dos conservadores, revive os antigos projetos discutidos no Conselho de Estado seis anos antes, e amenizando-os muito, faz votar nas Câmaras a chamada lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), em que se declaram livres os filhos de escravos nascidos daquela data em diante, e se dão algumas providências para estimular a alforria dos escravos existentes.

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aquém daquilo de que a produção cafeeira necessitava. Em 1885, o governo

italiano divulgou uma nota desaconselhando seus compatriotas a emigrarem

para o Brasil por conta das condições adversas encontradas por muitos deles

aqui. B. Fausto (op. cit.: 114) mostra como foi o contra-ataque da burguesia

brasileira desse modo:

As figuras mais proeminentes da elite paulista reagiram a esse estado de coisas, em um momento sensível, quando a desorganização do sistema escravista se tornava evidente. A sociedade Promotora da Imigração, fundada em 1886 por iniciativa, entre outros, dos irmãos Martinho Prado Jr. e Antônio da Silva Prado, tomou uma série de providências a fim de atrair imigrantes para as fazendas de café. A entidade publicou folhetos em português, alemão e italiano, salientando as vantagens da imigração para São Paulo. Fazia comparações favoráveis relativamente a outros países receptores de imigrantes, como os Estados Unidos e a Argentina, cuja atração era maior. Não mencionava, entre outros males, a existência da escravidão. Martinho Prado Jr. realizou uma viagem ao norte da Itália para estudar formas de aliciar imigrantes, e um escritório da Sociedade Promotora foi aberto em Gênova.

A partir dessas vantagens oferecidas pelos burgueses do Brasil, houve

um aumento considerável na imigração para o país, principalmente de italianos.

Segundo B. Fausto, em 1885, 6500 pessoas vieram para esse território. Em

1888, esse número saltou para quase 92 mil, em função disso, no ano da

abolição da escravatura, a mão-de-obra para a colheita do café foi suficiente.

Entretanto, após esse cenário instaurado com a liberdade dos nascituros

negros, temos a impressão de que a abolição da escravatura veio

naturalmente. A lei do Ventre Livre arrefeceu o movimento antiescravista no

Brasil porque não foi entendida como uma simples etapa de um processo

complexo que precisaria de reformas com estruturas eficazes e completas.

Segundo C. Prado Júnior (1998: 179):

A lei de 28 de setembro nada produzirá de concreto, e servirá apenas para atenuar a intensidade da pressão

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emancipacionista. Ela estabelecera para os filhos de escravos, até a sua maioridade, um regime de tutela exercida pelo proprietário dos pais. Ele teria obrigação de sustentá-los, mas podia utilizar-se de seus serviços. De modo que continuaram escravos de fato, o mesmo que os pais.

As campanhas abolicionistas ganharam força com o surgimento de

associações, jornais e propagandas, a partir de 1880, e tiveram personagens

importantes de origem negra, entre eles: José do Patrocínio, André Rebouças e

Luís Gama3. Em 1885, surgiu a lei do Sexagenário4 que tinha como objetivo

frear as ações abolicionistas mais radicais. Contudo, somente os fazendeiros

dos cafezais do Vale do Paraíba, oeste de São Paulo, permaneciam com o

sistema escravocrata em razão da grande concentração de investimentos

empregados nos escravos. Houve, ainda, algumas tentativas de prorrogação

da lei que libertasse totalmente os escravos. O senador conservador Antônio

Prado, de São Paulo, propôs que os cativos indenizassem e prestassem

serviços por três meses, antes que fossem libertados. Essa medida visava a

assegurar a próxima colheita do café, mas não obteve êxito.

A abolição foi sancionada, após a aprovação de grande parte do

parlamento e sem restrições, em 13 de maio de 1888 pela princesa Isabel,

regente do Brasil.

3 Boris Fausto em seu livro História Concisa do Brasil, (p.122), diz o seguinte: Patrocínio era filho de um padre e fazendeiro, dono de escravos, e de uma negra vendedora de frutas. Foi proprietário da Gazeta da Tarde, jornal abolicionista do Rio de Janeiro, ficando famoso por seus discursos emocionados.

O engenheiro Rebouças representava o tipo oposto, uma figura retraída, professor de botânica, cálculo e geometria da Escola Politécnica da Corte. Ele ligava o fim da escravidão ao estabelecimento de uma democracia rural, defendendo a distribuição das terras para os escravos libertados e a criação de um imposto territorial que forçasse a venda e a subdivisão dos latifúndios.

Luís Gama tem uma biografia de novela. Seu pai pertencia a uma rica família portuguesa da Bahia e sua mãe, Luísa Mahin, na afirmação orgulhosa do filho, “era uma negra africana livre que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Gama foi vendido ilegalmente como escravo pelo pai empobrecido, sendo enviado para o Rio e depois para Santos. Junto com outros cem escravos, descalço e faminto, subiu a serra do mar. Fugiu da casa de seu senhor, tornou-se soldado e, mais tarde, poeta, advogado e jornalista em São Paulo. 4 Esta lei concedia liberdade aos escravos com mais de sessenta anos e regulamentava a libertação gradual de todos os cativos mediante indenização.

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2.1.2 O pensamento católico na sociedade brasileira na 2ª metade do século XIX

Entre em 1840 e 1875, a Igreja católica no Brasil voltou-se apenas para

os comandos vindos de Roma. O episcopado brasileiro defendia, com ardor,

que a Igreja de Roma era o ponto mais alto da verdade, ou seja, a verdade

católica era absoluta e os movimentos liberais e protestantes faziam parte de

ações ilusórias e passageiras que formavam uma organizada conspiração

contra os interesses apostólicos romanos. Percebemos, então, uma postura

altamente conservadora e preparada para enfrentar as instigações do inferno.

H. Fragoso (op. cit.: 143) diz que o movimento de independência da

Igreja em face do Estado visava afirmar que éramos católicos romanos e não

católicos do Conselho de Estado. Esta forte tendência é percebida quando

examinamos os testamentos oitocentistas produzidos em Passos, MG, pois há

sempre no início desses documentos, a afirmação de que o testador pertence à

Igreja católica apostólica romana como podemos perceber em nossas

amostras.

Para constituir os procedimentos de análise, colocaremos, a partir daqui,

fragmentos dos documentos que são o alvo de nossa pesquisa. Salientamos

que para seguir critérios de base científico-metodológica, aqueles estarão

dispostos com o mesmo número de linhas dos documentos oficiais,

reproduzindo de forma fac-similar, a macro e a microestrutura textual.

Entretanto, no início de cada linha, haverá um número para que possamos nos

orientar melhor, bem como o testamento de João Pimenta de Abreu será

chamado de Documento 1 e o de Maria Joaquina do Espirito Santo,

Documento 2.

Documento 1:

5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de

6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.

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Documento 2:

1. como Christão Catholica e Aposto-

2. lica Romana que sou, em qual

3. Religião nasci e fui criada, e

4. educada e em que tenho

conservado, e espero morrer,...

A Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil continuava a ser a Igreja

dos brancos e aproximou-se, de forma mais acentuada, de sua sede em Roma.

Por isso, surgiu um aspecto de europeização da instituição eclesiástica que,

em conseqüência disso, rejeitava os valores culturais dos negros e dos

indígenas. Apesar da condição de brasilidade adquirida a partir da proibição do

tráfico negreiro, os escravos eram considerados seres impuros diante dos

preceitos católicos. Segundo H. Fragoso (op. cit.: 146), os brancos pregavam

que a escravidão dos negros era uma condição de maldição que se fazia

necessária. Os próprios negros livres não se sentiam no âmbito da Igreja como

em sua própria casa, pois ficavam sempre marcados com o ferrete de

descendentes de um povo infiel. Com isso, tornavam-se cristãos de segunda

classe e acreditavam que a participação nas variadas irmandades existentes

trazia-lhes a possibilidade de ascensão religiosa e social.

O padre era considerado, pelas pessoas mais simples, o homem da lei,

e a Igreja era vista como uma organização jurídica por causa de sua ação de

punições e ameaças feitas aos pecadores. Desse modo, na visão popular e do

estado, a Igreja era a expressão da lei e cabia a ela salvar as almas ou mandá-

las para o inferno ou, ainda, conduzi-las ao purgatório.

Aquela obediência sistemática que a Igreja do Brasil tinha em relação a

sua sede romana foi combatida pelos intelectuais liberais. Para eles, Igreja e

Estado deveriam ser separados, pois a lei civil não poderia sucumbir-se às

influências de bispos, com o apoio dos ultramontanos do país, que seguiam

fielmente as orientações do magistério da Igreja.

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2.2 Passos no século XIX

2.2.1 Primeiros passos

A região onde é situado o município de Passos pertencia, oficialmente,

em 1814, ao termo da Vila de São Carlos do Jacuhy, onde se encontra o

município de Jacuí, MG, atualmente. O pequeno arraial, em que já se

localizavam brancos pobres, que construíram taperas e ranchos muito simples,

formando uma povoação que procurava vestígios do ouro (faisqueiras) no

sertão, começou a ficar movimentado a partir de 1820. Isso aconteceu porque

fazendeiros, motivados pela ação do Governo do Rei D. João VI no Brasil,

começaram a colonizar os sertões, aproveitando as facilitações de negócios de

compra e venda de áreas ocupadas.

Assim, o latifundiário Domingos Teixeira de Carvalho, que comprou uma

grande parte das terras de Dona Faustina das Neves, foi um dos fazendeiros

que estabeleceu uma nova ordem neste arraial. Aliás, para o mostrar o poderio

deste fazendeiro, Antonio Theodoro Grilo (2002: 21) diz o seguinte:

A fazenda Bonsucesso unida a outras de Domingos Teixeira, compreendia um despotismo de terra que ia, da “serrinha”, (Fazenda das Posses), passando pela Prata (Pratápolis), beirando o São João e o Santana, abaixo, estendendo seus domínios até o Aterrado (Ibiraci). Ele possuía sozinho mais de 96 escravos, numa época em que o preço de um cativo beirava o preço de uma fazenda.

Para confirmar a tendência de migração, vindos do arraial de Nossa

Senhora das Candeias (Candeias, MG), Manoel José Lemos e seu cunhado

João Pimenta de Abreu compraram terras nas proximidades do Rio Grande.

Assim, o primeiro se instalou na Fazenda Soledade e o segundo, na Fazenda

Cachoeira. Cabe lembrar que até aquele momento não havia escravos naquele

local, pois eles começaram a surgir, quando as pessoas de posses chegavam.

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Desse modo, os novos moradores do arraial importavam-se mais com suas

fazendas e negócios do que pela busca do ouro.

Ressaltamos, neste momento que, por uma interpretação ambígua da

demarcação, feita pelo Papa Bento XIV em 1745, e a conseqüente criação das

dioceses de São Paulo e Mariana, houve um conflito de interesses entre os

representantes dessas dioceses. Demoradas discussões eclesiásticas

sucederam-se até que, em 1759, o bispo de Mariana deixou clara, numa carta,

a intenção de colocar a decisão nas mãos do colega de São Paulo, que, por

sua vez, recuperou as paróquias que haviam sido tomadas pelo bispado de

Mariana e seguiu à frente do devocionário sul-mineiro.

Seguindo o desenvolvimento do século XIX, a partir de 1825, houve um

movimento no arraial passense, para que o Bispado de São Paulo autorizasse

a construção da nova capela, já que a capela de Santo Antônio era muito

pequena para ter um padre a sua disposição. A construção do novo templo

Senhor dos Passos ficou a cargo de seu idealizador, Domingos Barbosa

Passos, daí o nome da capela. Assim, os interesses da Igreja e dos

fazendeiros tornaram-se as primazias do local.

Ademais, Manoel José Lemos engendrou o movimento para a criação do

Juizado de Paz tendo em vista a resolução de problemas de demarcação de

divisas porque algumas áreas pretendidas já eram ocupadas pela população

pobre. Por isso, houve conflitos e até violência. A criação daquele Juizado seria

um meio legítimo de reorganizar o povoado. Desse modo, o líder desse

movimento foi o primeiro Juiz de Paz do povoado em 1831. Nessa data, foi

feito o primeiro recenseamento. Em 1838, outro censo apontou o crescimento

da população e do arraial. Criou-se, então, a freguesia (paróquia) do Senhor

Bom Jesus dos Passos.

A partir disso, as terras férteis do Rio Grande e a promissora atividade

econômica local chamaram a atenção de várias famílias de outros cantos de

Minas Gerais, como: Lavras do Funil, Campanha, São João Del Rei, Aiuruoca,

entre outras. Segundo Antonio Theodoro Grilo (1990: 82):

Havia três motivos que atraíram esses novos grupos: a) alguns já tinham familiares residindo aqui; b) o Arraial crescera e ficava numa região que todo mundo achava

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boa e bonita; c) as pastagens formadas em nossa região eram excelentes e favoreciam o desenvolvimento de engorda de gado de forma muito lucrativa. Neste último caso poderíamos acrescentar também que a fertilidade do solo vinha possibilitando colheitas muito boas e especialmente o cultivo da cana de açúcar, pois alguns engenhos já instalados aqui ofereciam lucros compensadores.

Além disso, a riqueza gerada foi maior quando esses fazendeiros

adotaram uma prática chamada invernada. Essa atividade consistia em fechar

uma pastagem formada com capim colonhão ou capim gordura, e a mão-de-

obra tornara-se uma facilidade, pois esse tipo de serviço não requeria muito

esforço. Dessa forma, o movimento invernista reorganizou a vida social do

arraial passense, porque trouxe excelentes resultados econômicos aos

fazendeiros. Para termos uma idéia, os açougueiros da capital do Brasil, Rio de

Janeiro, comercializavam a carne do gado das invernadas do Senhor dos

Passos. Nesta perspectiva, o comércio cresceu em vista da necessidade de

diversificação dos produtos que eram primordiais para a vida no campo.

Multiplicaram-se os estabelecimentos e os produtos, em ritmo acelerado para

atender às novas características da demanda, conforme afirma A. T. Grilo (op.

cit.: 44).

José Caetano Machado, um dos testamenteiros e genro de João

Pimenta de Abreu, foi um dos que chegaram a esta região. Oriundo de Lavras,

foi pioneiro da nova organização municipal e trabalhou muito para que o arraial

fosse decretado como vila. Com isso, a Câmara da vila de Jacuí deu um

parecer favorável para a criação da vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos

Passos. Conforme A.T.Grilo (1998: 18), o Dr. Bernardino José de Queiroz

sancionou a Lei Provincial, nº 386, desse modo:

A Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais decreta: Art. 1º - Ficam elevadas à categoria de Vilas as seguintes Freguesias: § 1º - A do São Bom Jesus dos Passos do Município do Jacuhy, com a denominação de Vila Formosa do São Bom Jesus dos Passos, compreendendo em seu

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Município a Freguesia do mesmo nome e as da Ventania e Carmo. § 2º - A do Patafúfio do Termo de Pitangui com a denominação de Vila do Patafúfio, compreendendo em seu Município a Freguesia do mesmo nome e as de Santa Anna de S. João Acima e do Morro de Mateus Leme desmembradas aquela do Município de Bonfim e esta do de Sabará e assim mais os Distritos de São Gonçalo e Santo Antonio de S. João Acima, desmembrados do Termo de Pitangui. Art. 2º - Os habitantes destes novos municípios ficam obrigados a construir à sua custa (...há uma frase riscada) os edifícios necessários para as sessões da Câmara e do Conselho de Jurados e a Cadeia com suficiente segurança para a prisão dos réus. Art. 3º - Não obstante a disposição do artigo antecedente serão instaladas as Vilas logo que os habitantes prontifiquem quaisquer outros edifícios para servirem interinamente; devendo contudo ser suprimidas as Vilas, se no prazo de dois anos não se mostrar satisfeito o ônus do artigo 2º. Art. 4º - Ficam revogadas as disposições em contrário. Sala da Comissão, 6 de outubro de 1848. Horta e Araújo Oliveira.

2.2.2 De vila a cidade

Na observância dos Artigos 2º e 3º do texto final da Lei, os líderes da

recém vila agiram com rapidez para cumprirem as prescrições ali impostas. Por

conseguinte, os pedidos formais de adequação à nova condição foram

enviados pela Câmara Municipal da vila de São Carlos do Jacuhy. Em virtude

disso, em 4 de agosto de 1850, houve a primeira eleição municipal com a

seguinte lista de vereadores: José Caetano Machado que foi o vereador mais

votado e, portanto, deu posse aos demais vereadores por determinação da

Câmara de Jacuhy; Jerônimo Pereira de Mello e Souza que foi o secretário das

primeiras sessões e viria a ser o futuro Barão de Passos; o Sargento-mor

Manuel Cardoso Osório, o Capitão Manoel José Lemos, aquele que saiu de

Candeias, MG; Camilo Antonio Pereira de Carvalho que pertencia ao arraial de

Santa Rita do Rio Claro, Nova Rezende, nos dias atuais; o Padre Fortunato

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José da Costa do arraial de Nossa Senhora das Dores do Aterrado: Ibiraci;

Fidelis Rodrigues de Faria do arraial de Carmo do Rio Claro.

José Caetano Machado, presidente da Câmara Municipal, deu posse

aos vereadores da vila em 7 de setembro de 1850. Foi um grande

acontecimento da região em decorrência dos novos distritos que passaram a

pertencer ao Termo da vila do Senhor dos Passos. São eles: arraiais de Nossa

Senhora do Monte do Carmo do Rio Claro (Carmo do Rio Claro), São

Sebastião da Ventania (Alpinópolis), Santa Rita do Rio Claro (Nova Rezende),

Nossa Senhora das Dores do Aterrado (Ibiraci) e Santa Rita de Cássia

(Cássia). Antonio Candido (in: Antonio Theodoro Grilo, 2003:9) para confirmar

a disposição do termo acima, diz o seguinte:

Cássia é filha de Passos, irmã da Ventania, do Aterrado, da Forquilha, - todos dispostos no vale desse Rio Grande que me causava um terror inexprimível quando, menino, em noite tempestuosa, eu via meu pai sair de maleta na mão para atravessá-lo, a fim de acudir algum doente do outro lado. O irmão vento e a irmã chuva pareciam então formar com a caudal que eu nunca tinha visto uma conjura temerosas que poderia me roubar o pai.

Desse modo, A.T.Grilo (op. cit.:32) destaca o texto do ato de instalação

e posse da Câmara da Vila:

Ato da instalação e posse da Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos: Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo - de mil oitocentos e cinqüenta, vigésimo ano da Independência do Brasil, aos sete dias do mês de Setembro do dito ano, nesta Povoação do Senhor Bom Jesus dos Passos, desmembrada do Município de Jacuí e ora elevada à Vila, e pertencente à Comarca de Três Pontas, Província de Minas Gerais, aonde reside o Cidadão Brasileiro Tenente Coronel José Caetano Machado - vereador mais votado da Câmara Municipal do novo Município, estando de posse do dito emprego, segundo consta do edital da Câmara Municipal da Vila de São Carlos de Jacuí, datado de 18 de agosto do corrente ano, sendo aí, em casa que serve interinamente para as sessões da Câmara Municipal desta Vila, em conformidade da lei provincial

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número trezentos e oitenta e sete e Portarias do Exmo. Sr. Presidente da Província de vinte e sete e vinte e nove de maio do corrente ano, elevando esta Povoação à categoria de Vila, manda seja instalada e dada posse no dia de hoje, sete de setembro, com a denominação de Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos, em conformidade com a dita lei e portaria, houve o mesmo cidadão por instalada e de posse a mencionada Vila; e estando presentes os vereadores eleitos para a Câmara Municipal, a saber: o Sargento-mor Manoel Cardoso Osório, o Capitão Manoel, José Lemos, o Reverendo Padre Fortunato José da Costa, o cidadão Camilo Antonio Pereira de Lelis (de Carvalho) e Fidelis Rodrigues de Faria, o mesmo cidadão José Caetano Machado, como vereador mais votado na referida Câmara lhes deferiu o juramento aos Santos Evangelhos, na forma da Lei em presença de grande concurso de cidadãos do novo Município, que em sinal de demonstração do seu regozijo, repetiram freqüentemente os Vivas Nacionais, à Nossa Santa Religião Católica Apostólica Romana; Constituição do Império, e a S.M. Imperial, o Sr. D. Pedro II e, para constar, o dito Presidente mandou lavrar este ato em que se assina com a Câmara e mais cidadãos presentes, depois de lhes ser lido por mim Jerônimo Pereira de MeIo e Souza, secretário interino, por ainda não haver, que o escrevo e assino. (Seguem-se as assinaturas): José Caetano Machado, Presidente; Vereador Manoel José Lemos, Vereador Manoel Cardoso Osório, Vereador Camilo Pereira; Vereador Padre Fortunato José da Costa; secretário Jerônimo Pereira de MeIo e Souza, vereador Fidelis Rodrigues de Faria. Pessoas presentes: José Fernandes de Paula, Raimundo Nato Brasileiro, José Ferreira Corrêa, João Cândido de MeIo e Souza, José Pimenta de Abreu, Manuel Joaquim Bernardes, Antonio Ferreira de Carvalho, Heitor Fernandes da Silveira, Pedro José de Alcântara Pádua, Urias Antonio da Silveira, Vigário Francisco de Assis Pinheiro Ulhoa Cintra, Francisco Ferreira Bernardes, Ludovico Lirimo de Anchieta, Irmão Justiniano Anjos Vieira, José Vieira da Natividade, João Ferreira da Silva, Leonel Gonçalves Gomide, João Pena de Miranda, Joaquim Rodrigues Chagas, Nicolau Tolentino de Brito, Antonio Joaquim da Silva, Fortunato Ribeiro de Andrade, Antonio Barbosa da Silva, José Francisco Bueno, Manuel Lemos Júnior, João Caetano Machado, José Carlos Lima, Bernardo Alves Pereira, Manuel Mendes da Luz, Antonio Caetano de Faria Loulou.

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Os vereadores daquela época tinham que contribuir financeiramente

com a Câmara porque essa não tinha recursos ainda. A filantropia era uma

característica da época. Entretanto, o município foi crescendo diante da ação

invernista por todos os cantos, ficando relegada a segundo plano, a produção

de alimentos. Talvez, seja por isso que há um registro, em 1853, de uma crise

aguda de altos preços dos alimentos. Os menos favorecidos, obviamente,

foram os mais prejudicados. Muitas famílias sobreviveram às custas das

benesses dos fazendeiros, mas, apesar dessa preocupação que foi

compartilhada com os governantes locais, aconteceram várias mortes em

conseqüência da fome.

A vila crescia cada vez mais e, por isso, começou a faltar água na

medida em que as casas e ruas surgiram, impedindo, assim, o acesso às

fontes. A violência, também, começara a se instalar. Contudo, a Câmara

sempre conseguia apresentar propostas para a solução dos problemas. O

fiscal contratado fazia uma espécie de relatório que chamava a atenção de

todos.

Em 19 de junho de 1852, um ofício do Presidente da Província

comunicava que, por uma decisão Imperial, os Termos de Passos e de Jacuí

haviam sido reunidos, quer dizer, naquele momento, Jacuí passava a pertencer

ao Termo Passense. Depois disso, ao final do mesmo ano, a vila do Senhor

dos Passos tornava-se sede da Vara Eclesiástica. Organizadas pelo bispado,

essas varas tinham a função de decidir questões do direito canônico de menor

complexidade e, ao mesmo tempo, solucionar conflitos interparoquiais. As

paróquias que pertenciam à Vara Eclesiástica passense eram as do Carmo do

Rio Claro, Ventania e Bom Jesus dos Passos, todas elas do bispado de São

Paulo.

Em 1854, a vila de Campanha iniciava mais uma vez, um movimento

separatista. Sua proposta era a de criar uma Província no sul de Minas, já que

a Província de Minas Gerais era de grande extensão. A Câmara da vila

passense em reunião extraordinária, respondeu prontamente à circular enviada

pela vila de Campanha, dizendo que apoiaria aquela proposição, para que os

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arraiais e vilas daquela região pudessem ser mais bem contemplados por um

governo local.

Com obtenção de uma crescente economia por meio da pecuária e das

ações políticas junto ao governo da Província e ao próprio Imperador, fez-se

necessário o decreto que transformaria a vila em cidade. A.T.Grilo (op. cit.: 60)

diz o seguinte sobre essa transformação:

Penso não haver dúvida de que a transformação da Vila Formosa em Cidade de Passos foi resultado da ação política das mesmas lideranças que há mais de dez anos tinham conseguido a criação da Vila. Entre estas, certamente o nome do Comendador José Caetano Machado, que era Cavaleiro da Ordem de Cristo desde 1849, deve ser lembrado como a mais importante por ter exercido todo o empenho político junto à Assembléia Provincial e por ter feito acompanhar o processo de todo o seu prestígio junto ao Imperador.

Desse modo, a Lei nº 854 de 14 de maio de 1858 diz em seu artigo

único: A Vila de Passos, da Comarca de Sapucaí, fica elevada à categoria de

Cidade, com a mesma denominação, revogadas as disposições em contrário,

A.T.Grilo (op. cit.: 61). A denominação oficial da vila era Formosa do Senhor

Bom Jesus dos Passos, mas com a popularização do nome, a vila tornou-se

cidade de Passos. O nome religioso continua sendo usado nos dias atuais,

assim: Paróquia Senhor Bom Jesus dos Passos.

A partir do ato oficial que a decretou como cidade, Passos foi marcada

com a preocupação de mudanças em sua arquitetura. As casas da cidade

começaram a ser construídas como se fossem um retrato das sedes das

fazendas. Segundo A.T.Grilo (op. cit.:65), essas casas eram grandes mas

simples, com muitas janelas – sinal de “grandeza” do proprietário – porque

indicavam muitos cômodos, significando grande parentela, domínio de muita

gente, inclusive de escravos.... No entanto, as Igrejas construídas, entre outras

edificações urbanas, mostraram a preocupação com a aparência da cidade.

Assim, fica caracterizado que a prática religiosa se constituiu como uma forte

tendência característica na comunidade passense da segunda metade do

século XIX.

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Havia no município um grande número de escravos. Conforme

Washington Noronha (1969), Passos chegou a ter 5.623 escravos e, segundo o

mesmo autor, a Câmara informou que o valor deles era de 1.297:750$000 (um

mil duzentos e noventa e sete contos, setecentos e cinqüenta mil réis). Embora

tivesse um sistema escravocrata, no município passense havia alguns ideais

abolicionistas, cujos festejos foram mais explícitos com a chegada da notícia

sobre a Lei Áurea. Anteriormente a esse fato, há registros oficiais nos quais a

Câmara municipal se preocupava em alertar a população sobre os maus tratos

dados aos escravos. Se o município se pautava por valores religiosos e, por

isso, aderia a uma cultura filantrópica, não é difícil inferir que as tendências

abolicionistas, também, tinham interesses comerciais. Para ratificar esta

posição A. T. Grilo (op. cit.: 65) explica que:

Há um posicionamento nítido contra a escravidão em várias sessões da Câmara, especialmente por parte daqueles que já se configuram entre os vereadores, como “de oposição”. E talvez a oposição seja justamente esta: de comerciantes para quem o trabalho cativo não era essencial e os produtores rurais que nele se apoiavam.

De qualquer forma, há um registro da Câmara municipal passense, com

data de 25 de outubro de 1888, no qual se encontram os agradecimentos a

Sua Alteza Imperial pela Lei Áurea.

Cabe salientar que a crise do Império trouxe à cidade posições

ideológicas a favor da instalação da república. Entretanto, havia uma espécie

de contradição, porque surgiram manifestações de elogio ao Imperador.

Foi nossa intenção reunir aqui, aspectos históricos, sociais, econômicos,

políticos e religiosos de Passos no século XIX, tendo em vista o objetivo de

reconstruir o passado lingüístico-histórico daquela localidade, por meio de

documentos testamentários.

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2.3 Concepções lingüísticas no Brasil do século XIX

Segundo Margarida Petter (in: José Luiz Fiorin, 2003:12), o pensamento

lingüístico contemporâneo, mesmo sustentado por um novo alicerce, se

constituiu por meio da metodologia empregada nos estudos filológicos e

gramaticais do século XIX. Em decorrência do interesse do homem em

desvendar a linguagem, surgiu a idéia de se estudar as línguas vivas. Assim,

com um estudo comparativo dos falares, fazia-se uma pesquisa pautada em

questões da materialidade lingüística que, a partir do desenvolvimento desse

método histórico, surgiram gramáticas comparadas e os estudos da Lingüística

Histórica. Em conseqüência disso, a análise dos fatos observados na língua

permitiu a visualização de que as línguas se transformam com o tempo,

independentemente da vontade dos homens, seguindo uma necessidade

própria da língua e manifestando-se de forma regular. Nesta perspectiva, a

obra de Franz Bopp sobre o sânscrito, que foi comparado ao grego, ao latim,

ao persa e ao germânico, tornou-se a precursora dos estudos histórico-

comparativos, ou seja, da Lingüística Histórica do século XIX. Com isso, Bopp

é considerado um dos precursores dos estudos lingüísticos do indo-europeu.

Conforme Gilberto Scarton (2005), o conjunto de características

psíquicas individuais e coletivas é o ponto de apoio das concepções de

linguagem. Desse modo, os lingüistas, na atualidade, conseguiram

compreender melhor que a língua deve ser considerada tanto em sua

modalidade escrita como na falada. Em função disso, no dizer de Joaquim

Mattoso Câmara Jr. (2000), a técnica de confrontação entre as línguas de

origem comum que poderiam ter seus sistemas fonéticos, estrutura gramatical

e vocabulário num sistema de comparação, transformou a Lingüística em uma

ciência autônoma.

Para Ricardo Cavaliere (2000) a Lingüística do século XIX teve esse

perfil científico graças a um rigor metodológico e, por isso, conseguiu compor

um espaço seguro e específico para os estudos sobre a linguagem. Sobre a

origem desse novo método do século XIX, esse autor diz que, o estudioso

Joseph Justus Scaliger, ainda que de forma assistemática, na passagem do

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século XVI para o XVII, estabeleceu a proposição pioneira de classificação das

línguas em famílias. Para isso, foi preciso traçar um mesmo rumo entre o latim

e o grego. Esse foi o primeiro passo do método comparativo. Além disso,

segundo R. H. Robins (apud R. Cavaliere, 2000), Leibniz, no final do século

XVII, propôs à comunidade científica um estudo mais atento no âmbito da

etimologia na perspectiva metodológica da Lingüística Histórica.

A partir do que afirmamos acima, seria preciso dar ênfase ao estudo dos

topônimos, a fim de que esse pudesse seguir as marcas dos movimentos

sociais que levavam as línguas de um lugar para o outro, aceitando suas

tranformações. Ademais, Leibniz preparou, de forma pioneira, gramáticas e

dicionários das línguas existentes no mundo, bem como organizou e concebeu

um alfabeto universal, tendo como base o sistema gráfico latino. No bojo desse

processo, conforme R. Cavaliere, Sir Willian Jones, em 1786, apresentou um

trabalho sobre os vínculos lingüísticos do sânscrito com o latim e do grego com

as línguas germânicas. Viu-se, dessa maneira, a consolidação da hipótese de

que todos os idiomas conhecidos teriam em comum uma protolíngua. Na

mesma data, o lingüista alemão Peter Simon Pallas, com o aval da rainha

russa Catarina II, organizou um vocabulário comparativo com palavras de 200

línguas.

Além desses preconizadores, há estudos feitos, em 1808, por Friedrich

Schelegel e publicados na obra Über die Sprache um Weisheit der Inder -

Sobre a Língua e a Sabedoria dos Hindus. Essa obra apresenta, de forma

inédita, a teoria da classificação morfológica das línguas e a aproximação das

línguas clássicas, germânicas e persas com a língua indiana da antiguidade.

Após a explanação acima, queremos enfatizar que esse contexto

histórico-lingüístico do século XIX, isto é, a afirmação factual do método

comparativo, inspirou o modelo lingüístico-científico brasileiro. Com essa nova

proposta, alguns filólogos do Brasil acataram o paradigma do comparativismo,

especificando em seus textos as referências bibliográficas européias. Segundo

R. Cavaliere (2000:78):

Sabemos que não eram muitos os filólogos brasileiros que liam textos em alemão, língua em que escreviam quase todos os fundadores de paradigma do século XIX.

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Tal fato poderia constituir sério empecilho não fossem, já à época, ordinárias as traduções dos autores germânicos em francês ou inglês. Evidentemente, alguns filólogos, como Said Ali e João Ribeiro, que liam textos em alemão – a par de José Oiticica, a julgar por suas citações – podiam saber da teoria nas palavras próprias do autor, assim evitando as traiçoeiras armadilhas das traduções.

Outros filólogos brasileiros, por sua vez, embora tivessem tido contato

com essas fontes estrangeiras, abdicaram-se de citar qualquer referência

bibliográfica.

R. Cavaliere propôs fazer, ainda, um levantamento dos principais

teóricos do comparativismo do século XIX, por meio dos compêndios

brasileiros, são eles: Franz Bopp, Jacob Grimn, Max Müller, William Dwight

Whitney, Karl Brugmann, Wilhelm Von Humboldt, Michel Bréal, Franz Miklosich,

Friedrich Diez, Anton Marty, Domenico Pezzi, Mathias Duval, Joseph-Ernest

Renan etc.

Ao levantar as concepções lingüísticas do século XIX, trazemos uma

informação valiosa para o nosso trabalho, já que propomos estudar a Língua

Portuguesa em uso naquele momento histórico. Assim, será possível entender

algumas de características lingüísticas presentes no corpus da análise.

2.4 A Língua Portuguesa na 2ª metade do século XIX

Antes de iniciarmos a exposição de usos da língua portuguesa na

segunda metade do século XIX, julgamos oportuno retroceder ao início do

século, no intuito de configurarmos melhor o contexto onde nossa amostra foi

produzida.

A família real da corte lusitana aportou-se no Brasil, em 1808, porque

Portugal foi invadido pelas tropas francesas comandadas por Napoleão

Bonaparte. Com a mudança da sede da monarquia portuguesa para o Rio de

Janeiro, houve um aumento da população portuguesa no Brasil. Segundo Paul

Teyssier (2001), cerca de 15 mil portugueses seguiram os passos de D. Maria

I, o príncipe regente D. João, sua esposa e seus oito filhos. Com isso, a nova

capital brasileira, por meio da corte de D. João VI, acelerou a expansão da

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cultura portuguesa para todo Brasil com medidas que envolviam questões

sociais. Nesse mister, a questão da Língua Portuguesa estava inclusa por dois

motivos principais. Primeiro, após a terrível experiência de um abalo sísmico e

conseqüentes incêndios que arrasaram a Real Biblioteca com sede em Lisboa

(1755), os portugueses criaram estratégias de emergência para reconstruir seu

valioso acervo. A partir disso, D. José I foi organizando o pouco que sobrou da

Real Livraria, constituindo, no Palácio da Ajuda, um valioso acervo para a

formação da nova biblioteca. Assim, após a chegada da família real no Brasil,

foi determinado que as 60 mil peças da Real Biblioteca da Ajuda, entre elas,

livros, manuscritos, gravuras, mapas, moedas etc, viessem para o Brasil entre

1810 e 1811 para comporem a Biblioteca Nacional que foi implantada, também,

para ajudar na divulgação do vernáculo lusitano em terras brasileiras.

Estudiosos só puderam ter acesso à Biblioteca Nacional com um licenciamento

régio, a partir de 1810. O público pôde consultá-la com a organização do

acervo de modo mais adequado, em 1814. Segundo, D. João VI criou a

imprensa no Brasil que, após ser proibida no período colonial, desenvolveu-se

com grande rapidez no século XIX. Tornou-se, então, um instrumento

importante na implantação definitiva da língua e serviu de apoio às conquistas

políticas do Brasil.

Nessa época, houve um movimento que defendia a tese de que os

professores utilizassem a gramática da língua nacional nas aulas de leitura e

escrita. Segundo Rosa Virgínia Matos e Silva (2004), a norma padrão

instaurou-se com a multiplicação dos normativistas brasileiros, em meados do

século XIX, e, dessa forma, a variante de prestígio foi designada e é este fato

que desencadeia no Brasil, a discussão de cunho político-lingüístico que trata

da caracterização da língua portuguesa em uso no Brasil, tendo em vista as

transformações lexicais, sintáticas e semânticas que ocorrem na língua.

Para confirmar essa tendência, Gladstone Chaves de Melo (1981: 91)

afirma que:

No segundo quartel do século passado, por efeito da independência política, o povo brasileiro toma consciência de sua existência como um todo nacional, já acentuadamente diverso do português. Nasce daí um

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anseio por literatura própria, anseio que se realiza integralmente quando surge, na língua literária, um estilo brasileiro, ou seja, uma expressão lingüística reflexo da sensibilidade, do modo de ser e de viver brasileiro, por um lado, e eco, espelho, ressonância da paisagem, da terra e das vicissitudes históricas, das condições sociais, dos acidentes da nossa formação religiosa, humanística, política, econômica, por outro.

Mais adiante, o autor afirma que já se pode perceber essa nova visão

lingüística no Brasil, sobretudo, quando aponta autores do século XIX, como

José de Alencar e o mineiro de Paracatu, Afonso Arinos. Contudo, G. Ch. de

Melo considera que a mera existência daquilo que chamou de estilo brasileiro,

não pode representar uma língua brasileira. O lingüista e o filólogo devem

observar os fatos e fazer inferências de modo ponderado e com espírito

científico.

Essas questões, de todo modo, foram alvos de debates constantes e

cheios de argumentações dos dois lados. De um lado, portugueses e

brasileiros puristas consideravam que a construção de uma sintaxe própria, por

exemplo, colocava a língua num solecismo. De outro, os brasileiros adeptos da

nova tendência viam essa construção como algo nacionalista, pois seguia

padrões de uma brasilidade constituída.

Para confirmarmos isso, façamos referência ao texto Polêmica, no qual

se encontra o debate entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco. A par

disso, podemos citar, também, o Post Scriptum à Iracema, escrito por José de

Alencar (1870) que explicou, de maneira detalhada, o porquê daquele estilo

lingüístico.

Esses são debates importantes, pois, certamente, contribuíram para

discutir o português em uso no Brasil durante o século XIX, no que diz respeito

às suas marcas socioculturais. José de Alencar (1965: 239) expõe, entre

gramática, estilística e semântica, algo sobre o uso ortográfico em sua obra

Iracema, 2ª edição, assim:

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3º O ditongo ‘eo’ e ‘eu’ é indistintamente usado na desinência de muitas palavras portuguesas; me parece preferível, como já se tem sugerido, reservar a forma ‘eo’ para a desinência aberta, como chapeo, boleo, arpeo, e a forma ‘eu’ para a desinência fechada, como meu, perdeu, deus, ateu etc... ...4º Escrevo a conjunção ‘si’ por essa forma, e não ‘se’, como em geral costumam. Não só a etimologia pede aquela ortografia latina, como tem ela a vantagem de discriminar a conjunção do pronome pessoal ‘se’. Nem importa que este pronome revista aquela forma em um de seus casos, pois então é sempre regido pela preposição, que determina a natureza da partícula – como ‘a si’ , ‘de si’, ‘por si’ etc.

Numa dessas discussões em torno da língua, Camilo Castelo Branco

escreveu a réplica seguinte, no Ecos Humorísticos do Minho, em 1880:

... Os senhores escritores brasileiros, que me enviam preleções de linguagem portuguesa, se me quiserem obsequiar dum modo significativo e proveitoso, mandem-me um papagaio, uma cutia e alguns frascos de pitanga. Quanto a linguagem muito obrigado, mas não se incomodem.

Nesses recortes, vemos que o entrave sempre foi duradouro e em alto

grau. No prefácio da Polêmica de Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco

(1966), Domingos Paschoal Cegalla disse que tanto Camilo Castelo Branco

como Carlos de Laet eram combativos por índole e amavam a luta, tendo sido

o espírito polêmico um dos traços mais acentuados de seu temperamento.

Envolveram-se ambos em constantes e rumorosas discussões com outros

lidadores da imprensa. Aquele era violento, cruel e hábil nas palavras em seus

ataques e réplicas. Este, mesmo feroz e impiedoso, preferia a ironia fina e era

mais calmo e equilibrado.

Conforme Silveira Bueno (1967:271), foram tantas as palavras que

vieram do romantismo brasileiro indianista ao português em uso no Brasil, que

algumas delas apareceram até em textos portugueses. Este autor ressalta,

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ainda, que os elementos vocabulares são tão numerosos e correntes no Brasil,

que os escritores brasileiros poderiam escrever muitas páginas sem que os

portugueses conseguissem entendê-las. Na seqüência, S. Bueno cita algumas

palavras que, na visão dele, são contribuições de caráter essencial do

Romantismo brasileiro que Portugal não conheceu:

Caipira, caipora, imbira, peteca, pururuca, sororoca, mirim, tapera, cacique, urucu, tapioca, graúna, colibri, pipoca, pindaíba, arara, sabiá, sagüi, jaci, guaraci, taquara, camocim, corumim, maracujá, jaguar, jacaré, Iracema, Guaraciaba, Moema, Caramuru, Paraguassu, jururu, urutu, tatu, jararaca, aipim, igarapé, pereba, iara, paca, poti, içá, assay, araçá, genipapo, pajé, sacy, oca, carioca, Guanabara, jaçanã, maracanã, Canindé, boitatá, boi, tatorana, piroga, mandioca, mandi, saracura, pitanga, goiaba, taioba, Butantã etc.

Nessa perspectiva, o autor (op. cit.: 271) admoesta-nos para a questão da

formação de palavras e da sintaxe. Para esclarecer a primeira, ele diz que os

românticos introduziram na morfologia, um modo a mais de formar palavras e

explica que na época romântica brasileira, os autores reuniam dois

substantivos. Um deles funcionava em oposição ao outro, como adjetivo, tais

como: vestido-laranja, luvas-palha, chapéu-cinza, azul-pavão, gravata-marrom,

homem-prece, vida-martírio, vermelho-aurora, verde-mar, vermelho-salmão,

chapéu-chocolate, fita-groselha, vestido-creme, biblioteca-rosa, móveis-malva.

Em relação à segunda, S. Bueno (op. cit.: 272) afirma que a frase se torna

direta, evitando, desse modo, orações de grande extensão. Além disso, o verbo

deixa de ir para o final da frase e os hipérbatos tendiam ao desaparecimento.

Nesse processo, o uso da terceira pessoa ocupa o lugar de uso da segunda.

Do mesmo modo, a segunda do plural tornou-se única para a poesia e a prosa

e, a preferência pelo uso da próclise, também, foi uma característica do

Romantismo. Na regência dos verbos fugir e entrar, por exemplo, houve perda

da regência direta, podendo assumir várias construções: fugir o perigo, do

perigo, ao perigo; entrar a casa, na casa, à casa. Outros exemplos de sintaxes

que sofreram seleção: assistir ao espetáculo / assistir o espetáculo; assistir ao

doente / assistir o doente; visar um fim / visar a um fim; preferir café a leite /

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preferir mais café do que leite; preferir morrer a falar / preferir antes morrer que

falar; estar na janela / estar à janela; entrar o banho / ao banho / no banho; ter

o chapéu na cabeça / ter o chapéu à cabeça; já não chove / já não chove mais;

sempre vai / já vai.

Em relação à ortografia, temos na história da língua portuguesa três

períodos: o fonético, até ao século XVI; o pseudo-etimológico, desde o século

XVI até 1904; e o moderno, desde 1911 até hoje. No século XIX, o movimento

da ortografia brasileira foi influenciado pelo nacionalismo proveniente da

independência do Brasil e outras conquistas políticas e sociais. A falta de uma

normatização da língua portuguesa, tanto para os europeus quanto para os

brasileiros, propiciou algumas oscilações em função das várias tentativas de

simplificações ortográficas, por exemplo. Isto causou alguns desencontros

lingüísticos, que poderão ser confirmados, como veremos adiante, a partir das

análises empreendidas nessa dissertação.

Já que nosso trabalho visa à análise de documentos de ordem jurídica,

não nos custa relatar que essa discussão em torno da língua causou embates,

também, na área do Direito, pois se trata de uma ciência da palavra, em

essência. Para isso, Clóvis Benviláqua (1906), além de criticar o purismo

exacerbado, aponta argumentos a favor de uma língua mais viva e que se

delineasse numa característica que não mutilasse as idéias empregadas no

texto final do Código Civil.

Em virtude dos ataques parnasianos que sofrera do senador Rui Barbosa,

C. Benviláqua defendeu seu anteprojeto, elaborado no final do século XIX, em

1899, deste modo:

... A Réplica é sem dúvida um ótimo expositor de gramática portuguesa, gramática prática, à moda Cândido de Figueiredo, com adubos de erudição mais extensa. Não serviria, porém, para modelo de argumentação. ... Avara na resposta aos pontos litigiosos e pródiga em considerações estranhas ao assunto em debate. Tal se mostra a Réplica; ao menos na parte que mais de perto me toca. E não tanto por nos ter dado um farto volume de filologia, após outro pouco menos volumoso, como

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inesperado exórdio de um debate jurídico, e sim principalmente por achar sempre meios de trazer para o pleito o que melhor seria que permanecesse fora dele.

Diante do exposto, pudemos perceber que o movimento romântico no

Brasil, influenciado por idéias evolucionistas, ajudou a romper com a tradicional

literatura de Portugal. Essa temática foi retomada com maior força no

movimento modernista e, ainda, perdura contemporaneamente.

Nos testamentos produzidos em Passos, na segunda metade do século

XIX, percebemos a tendência brasileira no Português, como o uso proclítico

dos pronomes pessoais átonos:

Documento 1:

123. ra mulher eu me achar individado, fui pagando com al-

126. por Deos me ajudar, tanto que pude pagar as dividas e adquirir

132. e me foi mais facil em vida da minha primeira mulher vender

133. a única escrava que lhe servia para gastar em sua infermidade

139. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra-

Documento 2: 151. me ordenou que mandas-

180. se continha por me achar

181. como já disse pertubada

251. tima e amisade com que sem-

252. pre elles me tratarão= Decla-

O uso da conjunção subordinativa condicional si. Essa conjunção,

atualmente, é o se:

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Documento 2:

125. rios e Partilhas, que si pro-

126. cedeo por fallecimento

127. de minha May

140. inteira embora si ache

146. o que nélle si continha

255. rogo si digne pelo amor de Deos

271. não si achar este em circuns-

O uso do artigo antes do pronome possessivo:

Documento 2:

17. ça e tenha de dar se o meo

18. Corpo á sepultura, recomen-

32. o meo caixão seja preparado . 35. para este fim, sendo con-

36. duzido o meo corpo em o di-

53. = Dezejo que o meo herdeiro

89. sal herdeiro de todos os

90. meos bens á recepção só-

No documento 1 há o uso da forma eu para a desinência fechada. Em

contrapartida, no documento 2 foi registrado o uso da forma eo para a

desinência fechada.

Documento 1:

3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta-

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22. herdeiros dos meus bens, isto é das duas partes dos meus bens, bem

25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José

37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das

41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus

testamenteiros.

Documento 2:

8. ...do me deliberado a fazer meo

9.testamento como faço, de

10.minha livre vontade e posto

11.que enferma, em meo perfei-

12.to Juízo declaro minhas des-...

13.posições pela maneira e for-

14.ma seguinte; Primeiramen-

15.te que meo herdeiro, e testa-

16.menteiro logo que eu falle-

17.ça e tenha de dar se o meo

18.Corpo á sepultura,

32....o meo caixão seja preparado .

34. já tenho pronptos d’ antemão

35. para este fim, sendo con-

36. duzido o meo corpo em o di-...

53.= Dezejo que o meo herdeiro

54.e testamenteiro faça todos

55.os esforços para que este

56.acto do meo desaparecimen-

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57.to seja tão inapercebido

65. tima dos meos fallecidos

66. Pais Joaquim Rodrigues

67. Rodrigues Lopes e Francisca Xa-

68. vier de Jesús...

Tupinismos que fazem parte do léxico do português do Brasil:

Documento 1:

9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias

10. do Termo de Tamanduá do Bispado de Marianna.

Documento 2:

71. por Freguesia de Pouzo Ale-

72. gre do Mandú désta Pro-

73. vincia de Minas Geraes,

Tamanduá (tamandu'a 'tipo de mamífero desdentado'); Mandú (ma'ndu

'feixe que anda').

Constatamos o uso da palavra capangas, de origem banta, provavelmente,

no documento 1.

139. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra-

140. zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven

kappanga (entre sovaco). Canpanga era uma bolsa que os viajantes

usavam para carregar objetos pequenos e diamantes dos garimpos. Uma

outra acepção da palavra é guarda-costas, pois os comerciantes que

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compravam os achados dos garimpeiros, mandavam avisos, por meio de

seus empregados, que alertavam os homens do garimpo sobre a presença

da polícia nos garimpos.

Segundo K. Koerner (1995), o principio de contextualização é utilizado

para apresentar teorias lingüísticas propostas em períodos anteriores e

estabelecer o contexto geral do período pesquisado, pois as teorias

lingüísticas precisam de outras correntes intelectuais para se

desenvolverem. Para ele, a situação sócio-econômica e política merece a

atenção do historiógrafo da língua. Por isso, consideramos os pressupostos

históricos e intelectuais acima explicitados, importantes instrumentos para

entendermos melhor o clima de opinião da época estudada. Com isso,

utilizando, ainda, o princípio de contextualização, e os da imanência e da

adequação teórica, teremos condições de analisar os testamentos, a fim de

registrar suas características lingüísticas, cartoriais e religiosas.

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CAPÍTULO III

O TESTAMENTO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO-LINGÜÍSTICO

Veste esta mortalha

Quem mandô foi Deus; Quem mandô visti

Foi a mãe de Deus.

Amarre este cordão, Quem mandou foi Deus;

Quem mandou marrá Foi a mãe de Deus.

Bota este capuz,

Quem mandou foi Deus; Quem mandô buscar

Foi a mãe de Deus.

Bendito popular de Pernambuco para preparar o defunto – Getúlio César

3.1 Aspectos judaico-greco-romanos dos testamentos

Segundo Affonso Dionysio Gama (1953), a origem do testamento é

antiga. Os Hebreus, antes da Lei Mosaica, já utilizavam esse documento em

seus clãs. Consta esse costume em alguns capítulos do livro do Gênesis, entre

eles: Gn 15,3∗; Gn 25, 5∗∗ e Gn 48, 21-22∗∗∗. Assim, o uso dos testamentos

* E acrescentou: “Como não me deste descendência, um dos servos de minha casa é que será o meu herdeiro!” ** Abraão deu todos os seus bens a Isaac. *** Em seguida, Israel disse a José: “Estou para morrer, mas Deus estará com vocês e os levará de novo para a terra de seus pais. A você, e não a seus irmãos, eu darei Siquém, que eu tomei dos amorreus com minha espada e arco”.

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passou pelo Egito, depois se expandiu pela Grécia. A priori, havia em Roma

dois tipos de testamento: o que era feito em tempo de paz e necessitava de

apresentação diante de assembléias para ser aprovado ou rejeitado, e o que

era feito em tempo de guerra em que os soldados, depois de prontos para as

batalhas, nomeavam seus herdeiros perante três ou quatro testemunhas. A par

disso, podemos dizer que os testamentos sempre foram utilizados de acordo

com os moldes e o formato vigentes na Grécia.

Nesse processo, Ney de Mello Almada (1991) diz que na sociedade

romana, propriedade e religião eram valores incondicionais para todos os

cidadãos, tendo em vista que a eleição de um sucessor era o ato mais

significativo na constituição de um testamento. Assim, o testador cumpria um

dever político e outro religioso ao mesmo tempo, pois era uma desonra morrer

intestado, ou seja, morrer sem deixar testamento.

3.1.2 A influência da religião católica, a concepção de morte e a concepção religiosa presentes nos testamentos do século XIX.

O censo do dever religioso na produção de testamentos sempre foi

legitimado pela Igreja Católica. Por meio do Direito Canônico, a Mater Eclesiae

favoreceu as disposições testamentárias em benefício próprio. Com isso, a

privação da comunhão e da sepultura seria um castigo para os crentes

abastados que não deixavam explícito no testamento, algum bem material à

Igreja. Caso acontecesse tal omissão por parte do testador, os herdeiros

aprovariam a concessão de uma parte da herança em proveito da alma do

falecido.

Nessa concepção religiosa, justifica-se a afirmação de Amanda

Aparecida Pagoto (2004), quando aponta que, geralmente, a elaboração do

testamento era feita muito tempo antes do falecimento do testador. Isso se

deve a um pensamento de que se corria o risco de morte súbita ou violenta.

Assim, a salvação da alma ficaria prejudicada porque não seria possível saber

quais eram as últimas disposições e vontades do testador, pois o início da

preparação da alma para o dia do juízo final configurava-se com a elaboração

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do testamento. Nesse processo, o ethos religioso se constituiu e, ainda, em

nossos dias, circula na cultura ocidental.

De todo modo, sempre é perceptível na introdução dos testamentos, a

invocação de Deus ou de um santo. Essa estrutura é encontrada nesse tipo de

documento, desde o século XVI. Segundo A.A. Pagoto (op. cit.: 32):

Essa forma de apelo encontrada na introdução dos

documentos, mencionando os santos de devoção pessoal ou apelando a toda uma Corte Celeste, foi largamente usada nos testamentos, pois jamais um testador iria advogar em causa própria e, com essas apelações, poderia contar com a intervenção de advogados poderosos a seu favor.

Da mesma forma, os testamentos eram feitos como se fossem um ato

de contrição direcionado à Igreja Católica, isto é, era comum ao universo

cultural que pudesse haver um desconto nos débitos de consciência que

tivessem sidos adquiridos no percurso da vida do testador. Seguindo esse

mesmo raciocínio, havia uma preocupação em privilegiar os que prestaram

serviços ao testador durante sua vida. Em muitos casos, alguns escravos eram

alforriados ou, até mesmo, ganhavam algumas posses. Para aqueles escravos

que já se encontravam falecidos, no intuito de alívio de consciência, o testador

mandava dizer (rezar) missas em intenção às almas deles.

Conforme Agostinho Júnior Holanda Coe (2005), ser enterrado nas

igrejas a fim de facilitar a ascensão ao céu, era uma crença que surgiu na

idade média e se expandiu até o século XVIII. No entanto, A.A. Pagoto diz que

esse tipo de ação estendeu-se até o século XIX. Acreditava-se que o morto

somente ressuscitaria no juízo final se estivesse enterrado próximo à imagem

de algum santo dentro da igreja.

Essa prática acontecia apenas com os mais abastados, pois o espaço

físico da igreja era pequeno para tal procedimento. Contudo, muitos fiéis

contentavam-se em ser enterrados nas imediações do templo santo. Quanto

mais próximo o corpo ficasse de uma imagem de santo, mais possibilidades da

salvação o defunto obteria.

Para garantir a salvação da alma no dia do juízo final, alguns

procedimentos tornavam-se práticas obrigatórias testadas naqueles

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documentos. Assim, o testador cultivava o hábito de deixar explícito em seu

testamento, como deveria ser vestido para a ocasião de seu enterro. As

mortalhas mais utilizadas eram os hábitos de Nossa Senhora do Carmo, São

Francisco, São Bento etc.

A presença e a participação das várias irmandades existentes nas

cidades àquela época delineavam o caráter essencial da prática religiosa.

Como já dissemos, os santos eram considerados excelentes advogados,

principalmente, àqueles que tinham certeza de sua passagem pelo purgatório.

Os santos e suas respectivas irmandades eram sempre mencionados nos

testamentos, a fim de que pudessem ser um elo entre o céu e a terra, já que

esse tipo de intercessão ajudaria no alcance do Reino dos céus. Do mesmo modo, estas marcas culturais da sociedade são delineadas

de forma bastante explícita naqueles documentos, quando é possível encontrar

neles, a declaração de que o testador e sua respectiva esposa participavam

das muitas irmandades que se estabeleceram no interior. Segundo Antônio

Theodoro Grilo (2003: 03)

No caso passense, figuravam: Irmandade do Rosário (dos homens pretos e dos homens brancos); Irmandade do Santíssimo Sacramento; Irmandade do Senhor dos Passos, e Irmandade de Nossa Senhora do Carmo (ou do Monte Carmelo), sediada em São João del Rei, que foi uma das mais poderosas da região, além de outras.

O mesmo autor registra que há determinações expressas nos

testamentos passenses que concedem aos herdeiros do testador ou mesmo

aos seus testamenteiros, a obrigação de quitar os débitos com as irmandades

que pertencia. Além disso, era comum que o testador mandasse celebrar

missas de corpo presente, detalhando aos testamenteiros, o número de missas

que deveriam ser rezadas após a realização do funeral, contendo o nome do

celebrante, o valor da esmola para cada celebração, as intenções de missa

para outras almas etc. Segundo A.A. Pagoto (op. cit.: 44), conforme a lei

expressa no título I das Constituições Primárias, as pessoas deveriam utilizar

seus inventários e testamentos para fixar a quantidade de missas e dividi-las

cuidadosamente entre os santos de devoção.

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Isso acontecia porque havia uma preocupação grande com o destino da

alma, haja vista a concepção católica do século XIX sobre céu, inferno e

purgatório. Acreditava-se que, após a morte, poucos conseguiriam ir

diretamente para o céu, ou seja, apenas os santos e os puros de coração.

Dessa forma, restava para a maioria dessas almas, o purgatório, que era

considerado um lugar de purificação, no qual o pecador arrependido de seus

pecados esperava pelo julgamento da Corte Divina. A partir disso, é possível

compreender o porquê dos pedidos insistentes aos vivos para que mandassem

rezar muitas missas em favor do testador na hora de sua partida. Para isso,

seria preciso considerar os oito primeiros dias após a morte, que eram

chamados de oitavário ou otaviáro. As orações feitas nesses dias eram cruciais

para o defunto, porque sua alma poderia alcançar a graça de ter os pecados

perdoados pelo Supremo Tribunal Divino. A necessidade de anunciar a morte de alguém, principalmente da parte

mais abastada da sociedade, fez com que surgisse a idéia de usar os sinos das

Igrejas, para que as pessoas de posse pudessem confirmar suas posições

privilegiadas na sociedade. Em sua origem primeira, os sinos eram usados

para avisar a população de alguma ameaça. O fato de avisar um novo

falecimento, gerou um incômodo para todos, pois o uso dos sinos tornou-se

exagerado. Assim, a Igreja teve que criar uma regulamentação para que o

abuso não continuasse. Neste momento, queremos apresentar um fragmento

das Constituições Primárias do Arcebispado da Bahia que foi apresentado por

A.A. Pagoto (op. cit.: 47) :

Justamente se introduzio na Igreja Catholica o uso, e signaes pelos defuntos; assim para que os fiéis se lembrem de encommendar suas Almas a Deos nosso Senhor, como para que se incite, e avive nelles a memória da morte, com a qual nos reprimimos, e abstemos dos pecados. Porem porque a vaidade humana, e outros menos piedosos respeitos, tem introduzido neste particular alguns excessos; para que daqui em diante os não haja, ordenamos, e mandamos, que nisso haja toda aquella moderação que a prudência Cristhã, e religiosa pede (...).

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O artigo 828 das referidas Constituições discorre sobre o uso dos toques

de acordo com alguns critérios: três sinais breves deveriam ser dados, quando

morria um homem. Quando uma mulher era a falecida, dois sinais. Na

ocorrência fatal de um menor, entre sete e quatorze anos, para ambos os

sexos, um sinal apenas deveria ser dado. Os sinais deveriam ser repetidos na

hora do cortejo fúnebre e, também, no momento do sepultamento. Em suma,

para os homens, não poderia passar de nove sinais, para as mulheres, seis

sinais. Para as crianças entre sete e quatorze anos, três sinais.

Por se tratar de algo oriundo da cultura e costume do povo, não há como

saber se as regulamentações da Igreja foram bem aceitas naquela época, haja

vista as muitas cidades do interior sul-mineiro que utilizam, em nossos dias,

esse recurso como algo marcante em funerais. Ressaltamos que, mais adiante,

nosso trabalho abordará a questão da influência religiosa paulista que se

instaurou na região onde foram produzidas as amostras, objetos de nossa

análise.

Com todos elementos registrados oficialmente por meio de testamentos,

podemos inferir que a Igreja tornou-se a base institucional e estrutural da

formação da sociedade passense do século XIX. Conforme A.T. Grilo os

patrimônios iniciais dos arraiais eram doados aos santos padroeiros. Além

disso, a religião católica organizava as funções sociais dos locais em formação.

3.2 O estatuto jurídico nos testamentos do século XIX

No capítulo I, abordamos sobre o uso da metalinguagem como recurso

para a investigação da HL, pois pretendemos empreender as análises

lingüístico-históricas utilizando os princípios norteadores daquela ciência.

Nesse processo, mencionaremos qual era o estatuto jurídico adotado para a

composição de testamentos no Brasil da segunda metade do século XIX. Para

tal, aplicaremos o recurso da metalinguagem científica no texto fac-similar do

código civil, a fim de fazer um estudo lingüístico do passado com uma

abordagem lingüística do tempo presente.

No Brasil, a história nos mostra que, no século XIX, as leis civis, com

pequenas modificações, eram provenientes de Portugal. Em 22 de dezembro

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de 1858, a Consolidação das Leis Civis foi autorizada pelo Imperador D. Pedro

II. Em seu título III, capítulo IV que é nomeado Das formas dos testamentos,

Augusto Teixeira de Freitas (2003:621) configura o testamento desta maneira:

Artigo 1053. O testamento é de quatro especies, á saber: (1)

§ 1.º Publico, feito por Tabellião (2):

§ 2.º Cerrado, com instrumento de approvação (3) :

§ 3.º Particular, escripto pelo testadôr (4) :

§ 4.º Nuncupativo, ou feito de viva voz (5).

O primeiro era escrito pelo tabelião no livro de notas e deveria ser

assistido por cinco testemunhas varões e maiores de quatorze anos. As

testemunhas, se soubessem e pudessem, podiam assinar com o testador. No

caso desse não saber escrever, uma testemunha podia assinar por ele a seu

rogo, mas, segundo A.A. Pagoto, geralmente, o próprio tabelião assinava.

O segundo tipo de testamento teria que ser escrito pelo testador, ou por

outra pessoa a seu rogo para ser válido. Se ocorresse o segundo caso, o

testador deveria assiná-lo. Contudo, se o mesmo não soubesse assinar, o

documento seria assinado pela pessoa que o escreveu. Após isso, o testador

deveria entregar ao tabelião o testamento perante cinco testemunhas varões,

maiores de quatorze anos e o tabelião, por sua vez, teria que perguntar ao

testador, diante das testemunhas, se realmente aquele se fazia um documento

valioso, bom e firme. Dessa forma, o tabelião fazia o instrumento de aprovação,

declarando no próprio documento que seu testador o entregara de acordo com

sua vontade. Esse era o tipo mais usual e todos o conheciam como

Testamento Particular.

O testamento particular, terceiro da lista, deveria ser feito pelo testador,

senão, a seu rogo, outra pessoa poderia cumprir tal ato, mas, para isso, o

documento deveria ser subscrito por cinco testemunhas varões, maiores de

quatorze anos. O documento teria que ser lido perante as testemunhas e,

depois, assinado por elas. Também, deveria ser publicado em juízo, após a

morte do testador, citando as partes interessadas.

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O quarto e último tipo de testamento era feito de viva voz ao tempo da

morte. Para que tivesse validade, fazia-se necessária a participação de seis

testemunhas, homens ou mulheres. Aqueles não poderiam ser menores de

quatorze anos. Estas, não poderiam ser menores de doze anos. Caso o

testador se convalescesse da enfermidade, o documento perdia seu valor.

Num conceito mais geral, Augusto Teixeira de Freitas (apud A.D.Gama:

1953: 17) adota a seguinte definição de testamento: testamento é a disposição

de última vontade. Além disso, esse autor diz que o testamento é um ato

personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável. Desse modo, segundo

ele, esse documento não pode ser feito por meio de procuradores ou

representantes legais ou, ainda, necessários.

É importante salientar que os testamentos arquivados no Centro de

Memória de Passos possuem a mesma estrutura e apresentam pequenas

variações na disposição do texto. Nas introduções, há a preocupação do

testador em declarar que é Católico Apostólico Romano e um seguidor fiel dos

preceitos da fé institucional. Como já apontamos anteriormente, os textos

trazem os santos de preferência do testador e significam a esperança de haver

uma intervenção celestial na hora do juízo final. Os testamentos produzidos no

sul de Minas confirmam o que A.A. Pagoto (op. cit: 32) disse:

... o testador se preocupava em relatar não somente suas últimas vontades terrenas, mas também servia como um mecanismo de confissão, em que o redator apontava seus pecados, seus infortúnios, suas deslealdades e dívidas pendentes, tanto divinas quanto terrenas, pois acreditavam que só confessando todos os seus pecados e “descarregando sua consciência” poderiam alcançar a Salvação da Alma.

No caso de nossas amostras documentais, são evidentes aquelas

preocupações, tais como: relato das últimas vontades terrenas, revelação dos

infortúnios, dívidas pendentes com as irmandades e com pessoas da

comunidade, como veremos adiante.

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3.3 O testamento como documento jurídico no século XXI Depois de apontarmos quais foram as bases de cunho jurídico que

nortearam a elaboração do testamento, no Brasil, na segunda metade do

século XIX, e, em conformidade com o princípio da adequação teórica,

explicitaremos de que maneira o testamento pode ser produzido no Brasil do

século XXI. Nesse propósito, Arlindo Porto (2002:319) legifera no livro V, título

III, capítulo III que é intitulado Das formas ordinárias do testamento, desta

maneira:

SEÇÃO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1.862. São testamentos ordinários:

I – o público;

II – o cerrado;

III – o particular.

Art. 1.863. É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou

correspectivo.

O testamento público deve ser escrito por tabelião ou por seu substituto

legal em seu livro de notas, seguindo as disposições do testador que pode se

manifestar por meio de minuta, notas ou apontamentos. Após ser lavrado, sua

leitura em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas é obrigatória

e deve ser feita a um só tempo. Mas, se o testador quiser, poderá lê-lo na

presença do oficial e das testemunhas. O instrumento deve ser, depois da

leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.

No parágrafo único do artigo 1.864, A. Porto (op. cit.: 319) legisla que:

O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes

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impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.

Caso o testador não souber assinar ou não puder, o oficial assinará em

seu lugar e pedirá para uma das testemunhas assinar também. Se a pessoa

inteiramente surda sabe ler, lerá o seu testamento, se não, tem que designar

alguém para fazê-lo em seu lugar, com as testemunhas presentes.

O testamento público é a única possibilidade para as pessoas cegas. Tal

documento deve ser lido em voz alta, duas vezes. Uma pelo tabelião e a outra

por uma das testemunhas que será designada pelo testante, fazendo-se de

tudo circunstanciada menção no testamento, A. Porto (op. cit.: 320).

Ao contrário da Consolidação das leis civis do século XIX, o testamento

público feito nos dias atuais é o mais utilizado. Segundo Sebastião Pimentel de

Vasconcelos, tabelião do Cartório do 2º ofício de Notas “Novinho”, em Passos,

MG, mais de 95% dos testamentos feitos em seu cartório são do tipo público.

O testamento cerrado pode ser escrito pelo testador, ou a seu rogo, por

outra pessoa, desde que leve a assinatura daquele. Segundo A. Porto (op. cit.:

320), para ser aprovado pelo tabelião, devem ser observadas as seguintes

formalidades:

I – que o testador o entregue ao tabelião em presença de duas testemunhas; II – que o testador declare que aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado; III – que o tabelião lavre, desde logo, o auto de aprovação, na presença de duas testemunhas, e o leia, em seguida, ao testador e testemunhas: IV – que o auto de aprovação seja assinado pelo tabelião, pelas testemunhas e pelo testador. Parágrafo único. O testamento cerrado pode ser escrito mecanicamente, desde que seu subscritor numere e autentique, com a sua assinatura, todas as páginas. Art. 1.869. O tabelião deve começar o auto de aprovação imediatamente depois da última palavra do testador, declarando, sob sua fé, que o testador lhe entregou para ser aprovado na presença das testemunhas, passando a cerrar e coser o instrumento aprovado. Parágrafo único. Se não houver espaço na última folha do testamento, para início da aprovação, o tabelião

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aporá nele o seu sinal público, mencionando a circunstância no auto. Art. 1.870. Se o tabelião tiver escrito o testamento a rogo do testador, poderá, não obstante, aprová-lo.

O testador ou outra pessoa a seu rogo pode escrever o testamento

cerrado em língua nacional ou estrangeira. Esse tipo de testamento não

permite que o testante, que não saiba ou não possa ler, disponha de seus

bens.

A pessoa surda-muda poderá fazer seu testamento cerrado com a

condição de escrevê-lo todo e assiná-lo de próprio punho. Todavia, deverá

entregá-lo ao oficial público, diante de duas testemunhas, escrevendo na capa

do instrumento, o pedido de aprovação porque se trata de seu testamento.

Após sua aprovação e cerramento, esse documento será entregue ao

testador e o tabelião anotará em seu livro, dia, mês e ano da aprovação e

entrega do testamento.

O documento, após a morte do testador, deverá ser apresentado ao juiz

que o abrirá, registrará e ordenará seu cumprimento. Caso haja quaisquer

vícios externos ou suspeita de falsidade, perderá seu valor.

Conforme A. Porto (op. cit.: 321), o testamento particular pode ser

escrito manualmente ou mecanicamente, obedecendo aos incisos abaixo:

§ 1º Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. § 2º Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.

A publicação em juízo do testamento deve ser feita após a morte do

testante. Nesse ato, far-se-á a citação dos herdeiros legítimos. Se houver

concordância das testemunhas em relação à disposição do documento, ou ao

menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias

assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado.

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Na ausência ou morte das testemunhas ou se, pelo menos uma delas

reconhecer o documento, ele poderá ser confirmado pelo juiz, se as provas de

sua veracidade forem suficientes.

No caso de haver fatos excepcionais contidos no testamento particular

de próprio punho e assinado pelo testador, o juiz poderá confirmá-lo, mesmo

não havendo testemunhas subscritas. Esse tipo de testamento pode ser escrito

em língua estrangeira, desde que haja inteligibilidade por parte das

testemunhas.

Ao estudarmos a configuração de uma amostra do documento

testamental dos séculos XIX e XXI, torna-se importante enfocarmos o conceito

de documento e quais são suas características peculiares, já que a HL

necessita de documentos escritos do passado para empreender suas

pesquisas.

3.4 O documento em Historiografia Lingüística

3.4.1 O documento como fonte na investigação científica

Conforme Mário Eduardo Viaro (2004: 171), o termo documento provém

da raiz latina doc- “ensinar” (docere). Ele se designa de doc.u.ment.u.m que,

inicialmente, significava lição. Considerando que lição vem do latim lec.t.io,

lec.t.ionem que, por sua vez vem do latim medieval lec.t.ur.a – ato de escolher

letras e palavras -, podemos conceituar, etimologicamente, o termo documento

como a leitura que ensina algo.

Temos, portanto, em todo tipo de fonte escrita, traços que permitem o

conhecimento das ações do homem em sociedade. J. Glénisson reporta-se ao

termo documento, dizendo que ele, também, é denominado como fonte,

testemunho ou traço. Arquivos oriundos dos poderes públicos ou de

particulares, assim como tudo aquilo que for impresso ou manuscrito, como: as

fontes escritas, leis, bulas pontificais, atos reais, minutas notariadas, biografias

e obras literárias, jornais e revistas, constituem-se documentos.

Não queremos dizer que apenas os documentos escritos são válidos

para a cientificidade da história, pois há uma série de fontes não escritas, em

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que o historiador pode apoiar sua investigação, como por exemplo, os

monumentos, o material arqueológico, a pintura, os objetos, as antigas

moradas, a fotografia etc. J. Glénisson (op. cit.: 140) afirma que até mesmo

uma paisagem é um documento histórico. No entanto, todos os traços não

escritos são constatados após um estudo minucioso de textos seculares da

história.

O documento escrito é essencial para o ato pesquisador, mesmo porque

a nossa proposta investigadora em HL, trata do estudo dos traços deixados

pelo homem de determinado tempo, no nosso caso, as marcas histórico-

lingüísticas presentes em testamentos produzidos em Passos, Minas Gerais,

na 2ª metade do século XIX, possibilitando, dessa forma, o desvelamento de

algumas características lingüísticas e sociais daquela localidade.

3.4.2 Fonte primária, fonte secundária, documento oficial e documento marginal

Tanto a fonte primária como a fonte secundária podem ser tratadas com

olhares diferenciados na pesquisa historiográfica, ou seja, num plano mais

funcional, uma fonte será considerada primordial para determinada

investigação quando, dela, o historiador puder tirar informações que permitam

um conhecimento amplo de mundo. Por exemplo, a fonte primária para a

análise de uma pintura é a própria obra de arte. É óbvio que o historiador da

arte precisa recorrer a textos escritos para fundamentar sua pesquisa, mas,

nesse caso, o documento escrito passa a ser mais um instrumento de

pesquisa. Ao contrário, o historiógrafo da língua necessita primariamente de

fontes escritas, sem as quais é impossível obter resultados de seus estudos.

Outras fontes podem ser aproveitadas nesse tipo de trabalho, mas serão

sempre vistas como secundárias.

Seguindo a mesma reflexão acerca de distintas fontes histórico-

lingüísticas, discutiremos aqui, ainda que pouco claro para muitos

historiadores, o conceito de documento oficial e documento marginal.

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Por um lado, no âmbito jurídico, diz-se que todo documento que tem

como objetivo a instauração de noções de direitos e deveres na sociedade, e é

escrito e assinado pelo titular ou por procuração diante de algum tipo de juízo,

configura-se num documento oficial. Por outro, o documento marginal é aquele

que se encontra fora dos padrões institucionais da sociedade, isto é, não há

registro oficial desses documentos. Além disso, eles são produzidos de uma

forma muito subjetiva, porque são representados por cartas pessoais, obras de

ficção, diário de uma personalidade, transcrição de entrevista etc. No entanto,

para a HL, todo documento eleito pelo historiógrafo da língua como objeto de

pesquisa torna-se oficial, porque, diante da metodologia proposta por ele, fatos

importantes podem vir à tona a partir da minuciosa observação de

particularidades internas contidas nele. Em alusão ao documento literário, M.

de S. Almeida (2003:75) deixa clara esta questão quando afirma que:

Um trabalho, que tenha como fonte de pesquisa o documento literário, não diverge de estudos baseados em outros documentos tidos por oficiais. Ambos são resultados de uma série de análises e interpretações necessárias ao esclarecimento do texto. O pesquisador, contudo, tem na ficção uma fonte maior de riquezas que em outro documento qualquer. Cabe a ele valorizar estes aspectos do documento, validando igualmente a fonte. .

Fica evidenciado, no caso da pesquisa historiográfica, que a análise de

qualquer documento escrito torna-se importante, na medida em que, no interior

do documento, podemos apreender dados da língua e da história de

determinada cultura. Nesse decurso, trazemos à baila o testamento como

documento histórico-lingüístico, já que nesta dissertação é o foco da análise

que estamos empreendendo. Trata-se de um documento emanado do poder

público, haja vista a superestrutura a que deve obedecer, além das diretrizes

do código civil que deve cumprir. O infringir das normas resulta na nulidade

desse documento.

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3.5 Identificação e contextualização do corpus As amostras documentais que norteiam essa dissertação estão

arquivadas no Centro de Memória Estação Cultura na cidade de Passos, Minas

Gerais. Escolhemos, como amostra, dois testamentos que serão o viés de

nossa pesquisa: o testamento de João Pimenta de Abreu (1864) e o

testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo (1864). Queremos destacar

que, embora o testamento tenha um cunho jurídico no século XIX, ele está permeado por marcas de religiosidade. Nesse sentido, analisaremos a

organização lingüística desses documentos, a fim de desvelar determinadas

marcas do português em uso, no Brasil, no século XIX e as instâncias cartorial

e religiosa constitutivas de memória social, por meio de fatores históricos e

socioculturais.

3.5.1 João Pimenta de Abreu 5

João Pimenta de Abreu, como consta de seu testamento, é filho de

Magdalena Maria Rodrigues de Jesus e do Capitão João de Deos Pimenta de

Abreu. Segundo José Gomide Borges (1992), é presumível que os pais desse

testador casaram-se no ano de 1783 em Candeias, MG e conceberam quatro

filhos, na seguinte seqüência: João Pimenta de Abreu, Ana Antônia Pimenta,

Maria Pimenta de Jesus e Joaquim José Pimenta (Joaquim Pimenta de

Abreu?), todos nascidos no Arraial de Nossa Senhora das Candeias (Candeias,

MG). Lá, João Pimenta de Abreu casou-se com Antonia Maria Fausta e tiveram

cinco filhos: Maria, Thereza, Joanna, Anna, e João. Com o falecimento da

esposa, o testador em questão, partiu, ainda em Candeias, MG, para sua 2ª

núpcias com Silvéria Maria da Conceição e desta vez, tiveram quatorze filhos:

5 É oportuno mencionarmos uma particular informação: Antônio Cândido, aquele que é considerado, contemporaneamente, o mais importante crítico literário e autor de obras fundamentais do Brasil, viveu em Cássia (Arraial de Santa Rita de Cássia) até os dez anos; é tataraneto de João Pimenta de Abreu e Silvéria Maria da Conceição e bisneto de João Candido de Mello e Souza, que é o terceiro testamenteiro e genro do João Pimenta.

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José, Joaquim, Antonio, Manoel, Domingos, Francisco, João, Cândido,

Belchior, Maria, Anna, Matildes, Hypolita e Maria.

A irmã de João Pimenta de Abreu, Maria Pimenta de Jesus, casou-se

com o Capitão Manuel José Lemos. Após sua morte, o Capitão consorciou-se

com Hipolita Cassiana do Carmo. Deste tronco familiar, os cunhados João

Pimenta de Abreu e Manuel José Lemos, surgiu a decisão de comprarem

terras às margens do Rio Grande, onde está localizado o município de Passos

nos dias atuais.

3.5.1.1 O testamento de João Pimenta de Abreu Aplicaremos o recurso da metalinguagem científica para explicar o

conteúdo dos documentos testamentais e suas implicações contextuais.

O testamento assinado de próprio punho por João Pimenta de Abreu

em 1º de dezembro de 1864, relata que o testador está numa situação física

frágil e pressente a morte. Por isso, pretende documentar suas disposições de

última vontade. No entanto, faz questão de salientar que suas condições

intelectuais estão intactas, apontando a validade jurídica do documento. João Pimenta de Abreu declara que é católico apostólico romano e filho

legítimo de João de Deos Pimenta de Abreu e de Magdalena Maria Rodrigues

de Jesus. Declara, ainda, que foi casado em conformidade com as leis da

Igreja, por duas vezes. Assim, delineia sua constituição familiar no testamento

e cita seus cinco filhos do 1º casamento com Antonia Maria Fausta que morreu

em Candeias em 1825, e os quatorze filhos do 2º casamento com Silvéria

Maria da Conceição, deixando claro que todos eles são herdeiros das duas

partes de seus bens, inclusive seus netos cujos pais são falecidos. Contudo,

como consta mais adiante do documento, ele exclui muitas pessoas de seu

testamento, até alguns filhos. Em seguida, nomeia seus três testamenteiros:

José Caetano Machado, Antônio Pires de Morais e João Candido de Mello e

Souza. Todos os testamenteiros são seus genros. Deixa 100 mil réis para

quem aceitar sua testamentaria e pede que seus testamenteiros não cobrem os

20% que era um costume daquela época. Dá prazo de dois anos para que seus

testamenteiros cumpram as contas finais de seu testamento e um ano para

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cumprirem as obrigações para com o Pio, ou seja, a Igreja. Cabe salientar que

o Papa da época estudada era o Cardeal italiano Mastai, que foi eleito no dia

16 de junho de 1846 e quis chamar-se Pio IX. É considerado um grande Papa

porque enfrentou desafios por circunstâncias políticas, entre eles, a unificação

da Itália e a perda dos estados pontifícios.

Declara que participa das irmandades Nossa Senhora do Carmo, Terra

Santa e Senhora Mãe dos homens e que nada deve a elas, e declara, ainda,

que é irmão das irmandades do Senhor Bom Jesus dos Passos e da Senhora

do Rosário e deve os anuais a essas instituições da Igreja e pede aos

testamenteiros que paguem estas e outras irmandades as que, por acaso,

deva. João Pimenta dá a incumbência do anúncio de sua morte aos

testamenteiros, que deveriam avisar os procuradores de todas aquelas

irmandades, inclusive a de Nossa Senhora do Carmo, com sede em Ouro

Preto.

Ao falar de sua morte, o testador discorre sobre quais serão os

procedimentos para o seu funeral. Ele ordena que seu corpo seja envolvido

num hábito de Nossa Senhora do Carmo e que esteja com correia e

escapulário. Essa correia é um tipo de cordão que usavam para amarrar os

defuntos na preparação do corpo para o enterro. Continha alguns nós,

simbolizando as orações feitas durante o ritual do vestuário. O escapulário é

um tipo de faixa de tecido que frades e freiras de algumas ordens religiosas

usam pendentes sobre o peito. Significa a devoção representada por dois

pedaços de pano benzido e que são ligados por duas fitas, sobre os quais está

escrito o nome da Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo. A tradição carmelita

conta que o uso do escapulário tornou-se importante instrumento de fé quando,

em 1251, Nossa Senhora do Carmo apareceu ao superior geral da ordem dos

carmelitas, Simão Stock, entregando e dizendo-lhe as seguintes palavras:

Recebe, filho diletíssimo, o escapulário de tua ordem, sinal de minha

confraternidade, privilégio para ti e para todos os carmelitas. Todos os que

morrerem revestidos deste escapulário não padecerão o fogo do inferno. É um

sinal de salvação, refúgio nos perigos, aliança de paz e pacto para sempre.

Para seguir essa tendência purificadora, João Pimenta atesta que quer

um enterro sem pompa e decente, bem como ordena a celebração de missas

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de corpo presente e após o seu sepultamento, sendo no primeiro caso, uma

para cada padre que estivesse presente na data dos rituais fúnebres e, no

segundo, dois oitavários de missas celebrados por dois padres do local. Assim,

podemos dizer que a missa celebrada por um padre no dia do velório, mais oito

missas celebradas em oito dias seguidos, formam uma novena. Esta é uma

prática que remonta a passagem bíblica em que Maria e os Discípulos ficaram

nove dias juntos entre a Ascensão de Jesus e o Pentecostes.

O testante pede aos testamenteiros que mandem celebrar mais quarenta

e cinco missas por sua alma e pede a eles que paguem a esmola de mil réis

por cada missa. Ainda, pede celebração de cinco missas para cada uma de

suas esposas, oito missas pelos seus irmãos falecidos, cinco missas pelas

almas do purgatório e dez pelas almas dos escravos e escravas da casa.

Ele deixa a quantia de 50 mil réis de sua terça para as obras de Nossa

Senhora da Penha. A terça era a parte de que o testador dispunha livremente,

ou seja, o testador podia transmitir apenas um terço de seus bens. A herança

do cônjuge sobrevivente seria de acordo com o regime de casamento

escolhido. O contrato que estabelecia a comunhão de bens, que era a forma

mais comum, era chamada de carta de ametade. Dessa forma, o cônjuge

herdeiro ficava com meia parte do conjunto dos bens que era deixado pelo

testador e depois de descontar as disposições de última vontade do testador,

os filhos recebiam a outra metade dos bens.

A partir de sua terça, deixa a quantia de duzentos mil réis, além daquilo

que é garantido por lei, a sua filha do primeiro casamento, Maria das Dores,

casada com Antonio Pires de Moraes, pelo zelo que ela teve com ele durante

sua vida. Ele, ainda, privilegia uma neta de nome Amélia e exclui o pai dela,

Joaquim José de Toledo Pimenta. Encaminha 100 mil réis a sua neta Maria,

filha de seu genro Miguel Gonçalves Borges, mas exclui os netos, filhos desse

mesmo genro.

Em seguida, deserda o filho Domingos e delega Isabel, esposa desse

filho, para receber no lugar dele, mas alerta que a herança não poderia ser

gasta com dívidas contraídas. Exclui os netos que são filhos de Joze Ferreira

Carvalhaes e, também, o seu filho José Pimenta de Abreu, herdando em seu

lugar, sua neta Rita, casada com o neto João Caetano.

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João Pimenta declara os seguintes dotes que deu aos filhos do primeiro

casamento: a escrava Felícia no valor de trezentos mil réis para sua filha

Joanna; a escrava Joaquina no valor de quatrocentos mil réis para sua filha

Thereza; a escrava Maria no valor de quatrocentos mil réis, bem como a

escrava Joaquina no valor de seiscentos e cinqüenta réis para sua filha Anna; e

ao filho João, o escravo João no valor de trezentos mil réis e cento e cinqüenta

e seis mil e quatrocentos e oitenta réis em dinheiro. O dote, assim como o

cristianismo e outras culturas européias, foi uma prática que chegou ao Brasil

no século XVI, pelos portugueses, mas, ao final do século XIX, esse costume

tornara-se raro e logo desapareceu. Esses dotes eram considerados a parte da

herança adiantada que, na maioria quase absoluta, destinava-se às filhas, para

que pudessem começar, de forma tranqüila, a vida matrimonial.

Na seqüência, João Pimenta de Abreu declara que os dotes dos filhos

do 2º casamento constavam nos recibos que estavam em seu poder. Ele

declara, também, que pagou uma dívida do filho João Pimenta de Moraes e

que, por isso, seria descontada na parte da herança que caberia ao mesmo. Há

uma ressalva: se o valor da parte que ficaria para este não fosse o bastante

para repor aquele débito, o referido filho deveria ressarcir o restante dos

herdeiros.

Em seguida, exclui o filho Antonio de herdar qualquer coisa, pois este já

havia desfrutado muito de sua fazenda, vendendo madeiras que lá existiam. A

mesma declaração de que os bens deveriam ser repartidos na forma da lei

entre os seus herdeiros é contundente ao testar que os excluídos não podiam

herdar. Percebemos na narração do testamento a ação de um espírito justo

que se instaurou no testador, haja vista o desprendimento material que o afetou

por ocasião da aproximação de sua morte.

Há a preocupação em declarar que ele não possuía quase nada no

momento da morte de sua 1ª mulher, além de uma criolinha e de um escravo

chamado Lourenço. Este último encontrava-se fugido, por isso teve que lançar

mão do escravo José, que havia recebido de dote de sua 2ª mulher, para pagar

dívidas ao Capitão Antonio Rodrigues Neves. Assim, João Pimenta de Abreu

expõe que só conseguiu pagar as dívidas que contraiu quando era casado pela

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primeira vez, com alguns bens que recebeu de dote do segundo casamento e

mais alguns recursos que havia conquistado com a ajuda de Deus.

O autor do documento quis deixar claro que não usou os dotes que as

filhas haviam ganhado de seus padrinhos, em benefício de sua primeira esposa

que estava doente. Por isso, faz questão de mencionar que, na medida que

aquelas iam se casando, ele entregava esses dotes aos maridos.

Destaca, ainda, que fez um inventário de forma amigável com seus filhos

e genros de seu primeiro matrimônio, mas delata o genro Miguel Gonçalves

Borges dizendo que este o coagiu a fazer o referido inventário. E diz que sofreu

ameaças desse genro que trazia capangas armados. O testador termina o seu

documento relatando que o tal inventário continha em seu texto a

impossibilidade de declarar algum bem, pois ele devia muito ao Capitão

Moreira. Essa dívida foi paga somente oito anos após a morte de sua 1ª mulher

e está relatada no testamento de seu finado pai que estava guardado em sua

caixa.

O testamento de João Pimenta de Abreu foi escrito por João Ferreira

Godinho a pedido dele, de acordo com a lei, na Fazenda da Cachoeira em 1º

de dezembro de 1864.

3.5.2 Maria Joaquina do Espirito Santo

Alguns motivos nos fizeram escolher o testamento de Maria Joaquina do

Espirito Santo como corpus de nosso trabalho. Primeiro, ele foi constituído,

como não poderia ser diferente, no mesmo período em que foi feito o

testamento do João Pimenta de Abreu e na região que pertencia ao Termo da

Vila do Senhor dos Passos. Segundo, inicialmente, queríamos observar

possíveis diferenças lingüísticas nos testamentos, já que se tratava de um

testador e de uma testadora. Terceiro e último, Maria Joaquina do Espírito

Santo não é, ou pelo menos não era, conhecida historicamente no local onde

viveu (Ibiraci, MG, atualmente). Desse modo, esta dissertação pode ser uma

fonte de pesquisa para aqueles que pretendem investigar a língua e/ou a

história daquela localidade.

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3.5.2.1 O testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo

Maria Joaquina do Espirito Santo começa seu testamento invocando o

nome de Deus e diz que é cristã católica e apostólica romana e que foi criada e

educada nessa religião e espera morrer nessa fé. Ao aguardar sua morte, se

dispõe a fazer seu testamento por vontade própria. Relata que está doente,

mas em perfeito juízo. Em sua primeira declaração, organiza suas disposições

assim: que o seu herdeiro e testamenteiro, logo após sua morte, fique

responsável pelo funeral, obedecendo a algumas recomendações: que o corpo

fosse envolto no hábito da Ordem de São Francisco das Chagas e com capa

da Senhora das Dores de quem se diz indigna irmã. Além disso, deveria ser

enterrada no adro da Igreja Matriz de Dores do Aterrado (Ibiraci, MG, nos dias

de hoje) o mais perto possível da entrada da porta principal. O caixão deveria

ser preparado com (...6) para levar o seu corpo com acompanhamento solene

que levasse a cruz e outros objetos utilizados nestas ocasiões. Pediu as

encomendações que, na época, eram feitas apenas pelos padres, e toques dos

sinos, respeitando as orientações da Igreja. É vontade da testadora que haja

uma missa de corpo presente e mais um oitavário delas, ou seja, oito missas

celebradas em oito dias consecutivos, que se configuram numa novena. Todos

os pedidos feitos no âmbito religioso confirmam tudo aquilo que mencionamos

no item 3.1.2. Em seguida, Maria Joaquina do Espirito Santo pede ao seu herdeiro e

testamenteiro que sua morte seja tão imperceptível quanto foi sua vida e

recomenda isso com veemência, pois acha que somente nos corações

sensíveis existe compaixão. Declara que é filha legítima de Joaquim Rodrigues

Lopes e Francisca Xavier de Jesus que são de Pouso Alegre, MG e diz que foi

batizada nesta freguesia.

A testadora declara que é casada com Antonio Felippe da Silva que estava

desaparecido há 20 anos e, portanto, não sabia se estava vivo. Declara,

também, que teve apenas um filho legítimo daquele consórcio e o institui como

o seu universal herdeiro. Declara, ainda, que deixa duzentos réis em prol da

liberdade do escravo Manoel, que era pardo, ficando o restante do valor dele

6 Na cópia do testamento que possuímos falta a última linha da primeira lauda.

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como pagamento do testamenteiro que aceitasse seu documento de

disposições de última vontade. Ela declarou o valor desse escravo: dois contos

de réis.

Ela faz uma denúncia sobre um requerimento que teve que assinar por

ocasião da morte de sua mãe. Explana que o requerente, o juiz municipal do

termo, fez o documento em seu nome, mas contra sua vontade. Tal

requerimento dava toda a terça de seus bens a favor do escravo Manoel pardo.

Ela havia demonstrado a intenção de oferecer alguma quantia em favor do

escravo citado, no entanto, repudiou a ação de dar sua terça inteira. Na

seqüência, Maria Joaquina do Espírito Santo conta que assinou o documento,

juntamente com João Gonçalves Lopes (talvez uma testemunha), sem saber o

que nele continha, porque estava perturbada com a presença do juiz e, por

isso, protestou em alto e bom som aquilo que considerou uma extorsão, já que

aquela ação não era de sua vontade, declarando que aquele requerimento não

poderia prevalecer porque se tratava de um ato de má fé. Reafirma que esse

documento foi feito clandestinamente e de forma atropelada na casa de Manoel

Joaquim de Andrade e adverte que tem consciência de seus direitos e quer ser

atendida.

Ela declara que deve à irmandade do Divino Espírito Santo cinqüenta mil

réis e às irmandades de Nossa Senhora Mãe dos homens e de São Francisco

das Chagas vinte anuais. Fazer pagamentos anuais às irmandades existentes

na época era outra prática muito comum. Quitar essas dívidas era uma questão

de honra para o testador, haja vista o seu temor diante das autoridades

celestiais.

Há a declaração de dívidas com pessoas do local e cita os nomes de seus

credores. Algumas dessas dívidas, apesar de ter consciência delas, não sabe

dizer quais são os valores devidos. Depois, declara que é de sua vontade que

a escrava Catharina Africana seja destinada para pagar tais dívidas e, além

disso, declara que possui mais uma escrava chamada Maria Francisca no valor

de oitenta e dois mil e noventa e oito réis; terras no valor de seiscentos mil réis

e outros objetos que estão declarados em seus registros.

Declara e nomeia para seu testamenteiro e herdeiro de sua terça Inocêncio

Gomes Figueira em primeiro lugar. Em segundo, Jose Antunes Cintra e em

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terceiro, Luiz Alves Carrijo da Cunha e relata que os escolhe pela confiança, fé

e amizade que tem por eles. Pede aos testamenteiros que cumpram, pelo amor

de Deus, aquilo que está determinado no prazo de dois anos, a começar pela

abertura do documento. A testadora declara que o seu testamenteiro será o

tutor legal de seu filho Miguel, pois falta a este, capacidade de administração e

senso comum. Provavelmente, o filho dela tinha algum problema de ordem

psicológica. Confirma essa nomeação, para que o magistrado aprove quando

receber o requerimento. Declara que o seu testamenteiro tomará posse de

todos os seus bens logo após o seu falecimento, cumprindo todas as

exigências que constam do testamento e pede a este que zele pelo bem-estar

do filho como se fora seu próprio pai.

Explicita que, por não saber escrever, pediu a Pedro Gil de Oliveira Horta

que o fizesse por ela na Fazenda do Aterradinho em 19 de junho de 1864.

3.6 O testamento e a axiologia de sua forma textual

Conforme Ciro Flamarion Cardoso & Ronaldo Vainfas (1997), um

documento carrega uma superestrutura capaz de deixar interpretar sua

mensagem em função de seu contexto e conteúdo históricos. Por isso, é

preciso que o historiógrafo da língua atente, de maneira pormenorizada, à

forma do texto.

Assim, a análise dessas formas e relações contidas nos documentos

escolhidos mostrará a língua e o clima de opinião da época em que aquele

registro social foi construído. Neste mister, o historiógrafo da língua relaciona o

documento àquilo que é inerente ao social.

Para isso, faz-se necessário levantar uma série de métodos e técnicas

para que, por meio da análise histórico-lingüística, os testamentos possam

revelar algumas características lingüísticas, cartoriais e religiosas, porque

esses documentos são passíveis de interpretação.

3.6.1 A organização do testamento passense oitocentista

São partes constituintes dos testamentos as seguintes estruturas:

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a) A invocação de um santo ou de Deus na introdução do testamento:

Documento 2:

1. Em nome de Deos amem.

b) Declaração de que pertencia à Igreja Católica Apostólica Romana,

como se fosse um ato de contrição, para ter desconto nos débitos de

consciência:

Documento 1:

5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de

6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.

Documento 2:

5. como Christão Catholica e Aposto-

6. lica Romana que sou, em qual

7. Religião nasci e fui criada, e

8. educada e em que tenho

conservado, e espero morrer,

c) Privilégios concedidos para quem prestou serviço ao testador durante

sua vida:

Documento 1:

60. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a minha

61. filha Maria das dores cazada com Antonio Pires de Moraes,

62. em remuneração do zelo e caridade que commigo tem tido, isto

63. alem do que lhe couber nos remanecentes da minha terça.

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Documento 2:

238. = Declaro que nomeio para

239. meo testamenteiro, e herdeiro

240. da minha terça em primeiro

241. lugar ao Senhor Inocencio

242. Gomes Figueira= em segun-

243. do lugar ao Senhor Joze

244. Antunes Cintra= e em terceiro

245. lugar ao Senhor Luiz

246. Alves Carrijo da Cunha, pela

247. muita confiança que ponho

248. na fé, probidade, intelligencia

249. e assiduidade de qualquer

250. déstes Senhores, e pela muita es-

251. tima e amisade com que sem-

252. pre elles me tratarão

d) Posses doadas aos escravos para que comprassem suas alforrias:

Documento 2:

112. Declaro que

113. deicho ao Escravo Mano-

114. el pardo, que houve por

115. herança de minha falle-

116. cida Maÿ, avaliado em

117. dous contos de reis a quan-

118. tia de duzentos mil reis de

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119. esmolla em adjutório

120. de sua alforria, ficando o res-

121. tante do seo valor perten-

122. cendo a minha terça co-

123. mo já disse...

e) Mandar celebrar missas para os escravos que já eram falecidos, para

alívio de consciência:

Documento 1:

55. Assim mais mandará dizer dez missas por tenção e alma de

56. todos os escravos e escravas da caza.

f) Explicitação das vestimentas e paramentos, nas quais o corpo do

testador deveria ser envolvido:

Documento 1:

39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo

40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora.

Documento 2:

16. ...logo que eu falle-

17. ça e tenha de dar se o meo

18. Corpo á sepultura, recomen-

19. do que seja este envolvido

20. em hum habito da Ordem

21. de São Francisco das Cha-

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22. gas e da Senhora Maÿ dos

23. homens com capa da Se-

24. nhora das Dores,...

31. ...e que

32. o meo caixão seja preparado .

33. ..............................(falta uma linha)

34. já tenho pronptos d’ antemão

35. para este fim, sendo con-

36. duzido o meo corpo em o di-

37. to caixão com a companha-

38. mento solenne levando em

39. frente a Cruz e mais objetos

40. que costumão servir em se-

41. melhantes occaziãoes efazen-

42. do se as encommendacãoes do

43. costume...

g) Pedido para sepultar o corpo dentro ou ao redor da Igreja, próximo a

uma imagem de santo, para que houvesse maior possibilidade de salvação:

Documento 2:

24. ...de quem

25. sou indigna Irmam pa-

26. ra ser enterrada no adro

27. da Igreja Matriz desta Fre-

28. guezia o mais proxima-

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29. mente que for possivel

30. a entrada da porta princi-

31. pal da mesma Igreja,...

h) Ordenações para os herdeiros ou testamenteiros, a fim de que

pudessem quitar débitos com as irmandades e com pessoas da comunidade:

Documento 1:

31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter

32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens, as quais irmandades

33. Nada devo, por estarem pagas; bem como sou irmão da irmandade

34. do Senhor Bom Jesus dos Passos, e da Senhora do Rozario desta Ci-

35. dade, e devo annuaes que meus testamenteiros pagarão, e a ou-

36. tra qual quer irmandade que eu esteja a dever. Logo que eu

37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das

38. mesmas irmandades, bem como a do Carmo no Ouro Preto.

135. Alem do que devíamos ao Neves, devíamos mais ao capitão Anto-

136. nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas

Documento 2:

200. Declaro que devo ao

201. Divino Espirito Santo cincoenta

202. mil reis, e assim mais a Nossa

203. Senhora Maÿ dos homens vin-

204. te annos de annuaes entre

205. ella e São Francisco das Cha-

206. gas do tempo que era Juiz o fal-

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207. lecido Superior Padre Jero-

208. nimo Gonçalves de Macedo

209. = Declaro que devo mais ao

210. Senhor Caetano Antunes Cin-

211. tra não sei quanto, e bem as-

212. sim ao Senhor Joaquim Fran-

213. cisco da Silva Souto, que tam-

214. bem não sei quanto, ao Se-

215. nhor Joze Manoel da Silva

216. e Oliveira Sobrinho cento e dezese-

217. te mil reis, ao Senhor Inocen-

218. cio Gomes Figueira oitenta

219. seis mil e quinhentos reis

220. = que anda tudo em trezen-

221. tos e trez mil e quinhentos

222. reis fora os que não sei as

223. quantias a cima declara-

224.das=...

i) Recomendação para um sepultamento sem pompa:

Documento 1:

41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus

testamenteiros

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Documento 2:

53. = Dezejo que o meo herdeiro

54. e testamenteiro faça todos

55. os esforços para que este

56. acto do meo desaparecimen-

57. to seja tão inapercebido

58. como foi a minha vida

59. o que muito lhe recomen-

60. do por que overdadeiro dó

61. só está nos corações sensiveis

62. e não em exterioridades de

63. representação esteril.

j) Mandar celebrar missa de corpo presente e nos oitos dias seguintes

(oitavário), constituindo, dessa forma, a novena. No documento 1, há um

pedido para que o testamenteiro mandasse rezar quarenta e cinco

missas pela alma do testador. Cada missa teria a esmola de mil réis.

Havia a crença de que quanto mais missas fossem rezadas, menos

tempo a alma ficaria no purgatório:

Documento 1:

42. Meus Testamenteiros mandarão dizer por minha alma tan-

43. tas missas de corpo presente quantos forem os Sacerdotes

44. que acompanharem meu corpo a sepultura.

45. Meus testamenteiros mandarão dizer por minha alma dois oita-

46. varios de missas sendo hum pelo Padre João Prudêncio, e outro

47. pelo Vigário Ulhoa Cintra, se a esse tempo forem vivos.

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48. Assim mais quarenta e cinco missas por minha alma pela es-

49. mola de mil reis cada huma.

Documento 2:

48. Tambem he minha vontade

49. que se diga por minha al-

50. ma huma missa de corpo pre-

51. zente, e logo em seguida ma-

52. is hum oitavario déllas =

l) Recomendação para o usar os sinos da Igreja na hora do

sepultamento, de acordo com as regulamentações vigentes:

Documento 2:

43. ...mais demons-

44. traçãoes que há dos signa-

45. es e toques de sino recom

46. mendados pelo rito da Igreja

47. em taes circunstancias=

m) Relato das últimas vontades terrenas: expressou vontade de fazer o

testamento; ressaltou o credo na Igreja Católica; nomeou os

testamenteiros e pediu que um deles que aceitasse sua testamentaria e

que o testamenteiro cumpra os pedidos no prazo máximo de dois anos,

logo depois da abertura do testamento:

Documento 1:

134. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo

135. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen-

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136. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta-

137. de pela forma seguinte.

138. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de

139. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.

25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José

26.Caetano Machado, em segundo a Antonio Pires de Morais,

27.e em terceiro a João Candido de Mello e Souza, e ao que aseitar

28.esta minha Testamentaria deixo de premio a quantia de cem

29.mil reis, e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade

30.e o tempo de dois annos para contas finaes, e hum anno para o Pio.

Documento 2:

50. ...Eu Ma-

51. ria Joaquina do Espirito Santo

52. como Christão Catholica e Aposto-

53. lica Romana que sou, em qual

54. Religião nasci e fui criada, e

55. educada e em que tenho

56. conservado, e espero morrer, ten-

57. do me deliberado a fazer meo

testamento

238.= Declaro que nomeio para

239. meo testamenteiro, e herdeiro

240. da minha terça em primeiro

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241. lugar ao Senhor Inocencio

242. Gomes Figueira= em segun-

243. do lugar ao Senhor Joze

244. Antunes Cintra= e em terceiro

245. lugar ao Senhor Luiz

246. Alves Carrijo da Cunha,

256. acceitar este meo testamento

257. para dar comprimento,=

258. A prazo de dous annos para

259. prestar contas de sua testa-

260. mentaria, cujo prazo será

261. contado a começar da da-

262. cta em que for por elle aber-

263. to o mesmo testamento, e te...

n) Revelação dos infortúnios:

Documento 1:

136.nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas, dinheiro este que

137.dei a descrever no Inventario amigavel que fiz com meu(s) filhos, genros

138.do primeiro matrimonio, cujo inventario o fiz coacto por

139.ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra-

140.zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven-

141.tario a força;

Documento 2:

123. Declaro que

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84

124. nos Autos de Inventa-

125. rios e Partilhas, que si pro-

126. cedeo por fallecimento

127. de minha May= Françis-

128. ca Xavier de Jezus existe

129. hum requerimento do

130. Senhor Juiz Municipal

131. do Termo, feito em meo

132. nome, e contra meo consenso

133. consenso e sciencia offerecendo

134. toda a minha terça em prol

135. da liberdade do dito escravo,

136. isto por ter eu mostrado in-

137. tenção de ofavorecer com

138. qualquer quantia, mais

139. nunca com toda a terça

140. inteira embora si ache

141. o dito requerimento ina-

142. divertidamente assigna-

143. do por João Gonçalves

144. Lopes Sobrinho á meo ro-

145. go porque ignorando

146. o que nélle si continha

147. e pertubada com apresen-

148. ça do Senhor Juiz ........-

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149. .............. e inadivertidamen-

150. te obedeci lhe quando

151. me ordenou que mandas-

152. se assignar o dito reque-

153. rimento contra o qual

154. protesto alto e bom som

155. por semelhante extorção,

156. que pretendem fazer em

157. detrimento de minhas des-

158. posições, e ultima vontade;

159. fallo do Autor de seme-

160. lhante requerimento=

161. Declaro que esse requeri-

162. mento não pode, e nem

163. deve prevalecer por não

164. se achar revestido de cir-

165. cunstancias indispensaveis

166. indispensaveis a hum acto practi-

166. cado em boa fé, pois si assim

167. fora ter se hia feito e assig-

168. nado por alguém a meo

169. rogo em minha presença de-

170. pois de me ser lido, e mos-

171. trar me saptisfeita, e não

172. em minha ausencia fei-

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173. to atropelado, e clandestina-

174. mente em casa do Senhor

175. Manoel Joaquim de Andra-

176. de para ser assignado co-

177. mo foi, em deversa paragem

178. em caza de minha finada

179. Maÿ sem saber o que nélle

180. se continha por me achar

181. como já disse pertubada

182. e por conseguinte affecta-

183. da mo meo moral=

Depois dessas constatações, confirmamos a especificidade do nosso

trabalho quando tratamos da superestrutura dos testamentos passenses,

produzidos na segunda metade do século XIX. As práticas cartorial e religiosa

são características que permeiam esses documentos e são perceptíveis na

medida em que as análises lingüístico-históricas avançam.

3.6.2 A tematização do testamento

Régine Robin (1977) destaca métodos indicados para análises

lexicográficas e semânticas de textos. A partir da proposta da autora, fizemos

um levantamento estatístico em nossas amostras, para verificarmos suas

palavras-tema e sua relação com as co-ocorrências. Esses registros são as

palavras de significação em torno do tema chave dos testamentos: o estatuto

jurídico e religioso. Segundo os Métodos estatísticos do Laboratório

Lexicométrico da E. N. S. de Saint-Cloud (apud Ciro Flamarion & Ronaldo

Vainfas (1997:382), as palavras-tema do corpus examinado perfazem cerca de

9% do texto. No entanto, ponderam que a escolha do pesquisador pode

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87

apresentar variação, pois depende do enfoque que ele dá a sua pesquisa. Seja

como for, o critério na análise de conteúdo “é sempre de ordem semântica”, de

sorte que, muitas vezes, a (s) palavra (s) e o (s) tema (s) são, no fundo, a

mesma coisa).

Apontaremos, numa tabela, as palavras-tema, suas derivações e os

números de suas ocorrências nos testamentos de João Pimenta de Abreu e

Maria Joaquina do Espírito Santo. Em seguida, faremos uma análise que

mostre a temática principal do texto, proporcionando um entendimento mais

seguro e coerente com os objetivos do documento.

TESTAMENTO DE JOÃO PIMENTA DE ABREU

Palavras-tema Nº de ocorrências

Soma das ocorrências

cazada 9 cazado 1

cazando 1

11

dita 2 ditei 2 dito 1

5

escrava 4 escravo 5

9

excluido 2 excluidos 2

4

fallecendo 1 falleceo 2 fallecer 1 fallecida 2

fallecidos 2 fallecimento 1

9

herdando 3 herdar 5

herdarem 2 herdeiros 4

14

irmandade 2 irmandades 2

4

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meu 16 meus 17 minha 30 minhas 5

68

testamentaria 1 testamenteiro 1

testamenteiros 7 testamento

3

12

Palavras-tema Nº de

ocorrências

alma 8

bens 3 declaro 11 deixo 3 direito 2 dizer 3

missas 8 morte 3

mulher 9 nomeio 1

reis (réis) 13 sacerdote 1

terça 12 vontade 3

TESTAMENTO DE MARIA JOAQUINA DO ESPIRITO SANTO

Palavras-tema Nº de ocorrências

Soma das ocorrências

escrava 1 escravo 1 escravos 2

4

declaro 15

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declarado 1 declaradas 2

18

despozição 1 desposições 3

4

falleça 1 fallecida 1 fallecidos 1 fallecimento 1

4

herança 1 herdeiros 4

5

meo 23 meos 3 minha 12 minhas 1

39

requerimento 5 requeira 1 requerida 1

7

testamentaria 1 testamenteiro 8 testamento 7 testemunha 4

20

Palavras- tema Nº de ocorrências

Bens 5 Dito 7 Missa 1 deicho (há um deixo) 3 Desejo 1 reis (réis) 9

A quantidade total de palavras do testamento de João Pimenta de Abreu

é de 1552, e a quantidade total de palavras do testamento de Maria Joaquina

do Espirito Santo é de 1576. Portanto, temos 216 palavras do primeiro

testamento, que representam, aproximadamente, 13,9% e 140 palavras do

segundo, que representam 9%, aproximadamente. Consideramos que essas

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porcentagens são a representação da temática apresentada, por isso, vamos

justificar a nossa análise, seguindo a ordem estabelecida nas tabelas: A palavra casamento e suas derivações representam a legitimidade dada

pela Igreja, para que as pessoas pudessem ser valorizadas socialmente; a

ocorrência da palavra declaro e suas derivações confirmam o padrão formal do

testamento. Este documento quer tornar público as disposições do testador; a

palavra despozição e sua derivação querem estabelecer e organizar a última

vontade do testante; as palavras dito e dita que, nos dias atuais são arcaísmos,

e o termo ditei afirmam o porte jurídico em que o documento é delineado; no

contexto da escravidão brasileira, o uso das palavras escrava e escravo,

aplicadas à mulher negra e ao homem negro, que eram tomados como bens a

serem comercializados, apontam a característica de coisificação do negro

escravo no Brasil do século XIX; as palavras excluido e excluídos significam

que o testador pode determinar a exclusão de quem quer que seja, tendo a lei

como amparo; as palavras da família fallecer dão o aspecto fúnebre ao

documento da testamentaria; herdar e suas derivações: não há testamento

sem herdeiros constituídos; os pronomes possessivos meu, meus, minha,

minhas indicam aquilo que é característico ao ter e ao poder; requerimento,

requeira e requerida são palavras que denotam a formalidade legal que se faz

por escrito; a palavra testamento e suas ramificações ratificam o cunho jurídico

do documento que, no dizer de Antônio Houaiss (2001: 2709), é um ato

unilateral, personalíssimo, gracioso, solene e revogável, mediante o qual uma

pessoa capaz, de conformidade com a lei, dispõe de seus bens, no todo ou em

parte, para depois de sua morte.

Assim, as palavras alma, bens, deixo, desejo, direito, dizer, esmolla,

missas, morte, mulher, nomeio, reis (réis), sacerdote, terça e vontade designam

e permitem que o leitor compreenda o estatuto jurídico - religioso que é a

qualidade distintiva e fundamental das amostras testamentais produzidas em

Passos na segunda metade do século XIX.

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91

3.6.3 O campo lexical dos testamentos

Após traçar a tematização de nossas amostras, continuaremos no plano

lexical dos testamentos, para definirmos relações de oposições, relações de

associações e relações de identidade que permeiam esses textos e que lhe

dão um caráter jurídico e religioso.

3.6.3.1 Relações de oposições

3.6.3.1.1 Pares antonímicos

Documento 1:

1. ...achando-me infermo

2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes

5. professo a Leÿ de

6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.

74. ...para pagamento de dividas quer anteriores quer posterio-

75. res ao meu fallecimento.

97. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta

98. de Moraes alem de hum credito que serve de recibo da quantia

99. de seis centos mil reis, deve mais a quantia de 735$000 reis...

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Documento 2:

10. minha livre vontade e posto

11. que enferma, em meo perfei-

12. to Juízo...

17. ... dar se o meo

18. Corpo á sepultura, recomen-

19. do que seja este envolvido

20. em hum habito da Ordem

21. de São Francisco das Cha-

22. gas e da Senhora Maÿ dos

23. homens com capa da Se-

24. nhora das Dores, de quem

25. sou indigna Irmam...

76. ...Declaro que sou caza-

77. da com Antonio Felippe da

78. Silva ha de haver quarenta

79. seis annos, de quem não te-

80. nho serteza si hé vivo ou

81. morto por ter si auzen-

82. tado a vinte annos...

136. isto por ter eu mostrado in-

137. tenção de ofavorecer com

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138. qualquer quantia, mais

139. nunca com toda a terça

140. inteira...

3.6.3.1.2 Associação semântica em torno da mesma palavra

Na análise desse item, observamos que o verbo performativo - aquele

cuja enunciação e ação se dão concomitantemente - declarar, usado em

grande número nos testamentos, realmente, cria uma força ilocucionária pela

qual a enunciação em questão representa a atitude intencional do interlocutor,

a fim de persuadir o seu destinatário a praticar a ação pretendida por ele.

Documento 1:

5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de ...

7. Declaro que sou filho legitimo de João de Deos Pimenta de Abreu...

11. Declaro que fui cazado a face da Igreja em primeiras Nupcias ...

31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter...

81. Declaro que dei de dote aos filhos do meu primeiro matrimo-...

95. Declaro que aos meus filhos do segundo matrimonio dei de dote a-...

97. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta

105. Declaro que fica excluido de herdar dos remanecentes da minha

109. Declaro que excluidos os já mencio nados, o restante da minha

112. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu...

128. Declaro que algumas rezes que havião na caza erão de minhas

Documento 2:

12. ...declaro minhas des-

13. posições pela maneira e for-

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ma seguinte

63. ...De-

64. claro que sou filha legi-

65. tima dos meos fallecidos

66. Pais Joaquim Rodrigues...

76. Declaro que sou caza-

77. da com Antonio Felippe da

78. Silva...

82. ...Declaro

83. que tenho hum só filho...

94. ... De-

95. claro que no valor do escra-

96. vo Manoel...

112. Declaro que

113.deicho ao Escravo Mano-

el pardo,...

161.Declaro que esse requeri-

162. mento não pode, e nem...

200. Declaro que devo ao

201.Divino Espirito Santo cincoenta...

209.= Declaro que devo mais ao

210. Senhor Caetano Antunes Cin-...

224. Declaro ser minha von-

225. tade que fique os Escravos

238. Declaro que nomeio para

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239.meo testamenteiro...

252.... Decla-

253.ro que concedo ao meo tes-

254.tamenteiro...

3.6.3.2 Relações de associações

Essas relações são sempre contextuais, e, sem a análise do contexto,

não há como percebê-las.

Documento 1:

2. ...e temen-

3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta-

4. de pela forma seguinte.

Muitas vezes, fazer o testamento significava, e ainda significa, o

pressentimento de que a morte está próxima.

9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias

O pensamento de que todos os recém-nascidos deveriam ser batizados

brevemente, era um costume do século XIX e se constitui como cultura

na sociedade contemporânea do sul de Minas, observando as devidas

proporções. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de

1707, que são a primeira legislação eclesiástica do Brasil (apud Douglas

Batista de Moraes, 2004) definiram que o batismo é o sacramento que

deve ser realizado antes de todos os outros seis sacramentos. Ele é a

porta de entrada da Igreja Católica e sem ele não há como receber os

demais sacramentos. O batismo consiste na absolvição do corpo e deve

ser celebrado com água natural. A fórmula latina era esta: ego te baptizo

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in nomine Patris et filiis et Spiritus Sancti. Amen. Qualquer pessoa podia

e pode batizar em situações extremas.

Com essa análise percebemos que a ideologia religiosa da Igreja

católica está fortemente presente nos documentos estudados.

31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter

32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens,...

A participação nas irmandades e a doação de bens para a Igreja faziam

as pessoas acreditarem no perdão dos pecados e, conseqüentemente,

na obtenção da salvação de suas almas. O testador, João Pimenta de

Abreu, diz que já recebeu a remissão de seus pecados, pois acredita ser

um seguidor fiel das leis de Deus.

39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo

40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora.

Participar da irmandade significava ser irmão constituído do santo,

patrono da confraria.

Documento 2:

4. ... em qual

5. Religião nasci e fui criada, e

6. educada e em que tenho

7. conservado, e espero morrer...

A afirmação de que a pessoa nasceu na Igreja significa que sua

existência só obteve valor quando foi batizada. A declaração de que foi

criada, educada, se conservou e esperava morrer seguindo a doutrina da

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97

Igreja, confirma a constante renovação de sua fé para alcançar o reino

dos céus.

22. da Senhora Maÿ dos

23. homens com capa da Se-

24. nhora das Dores, de quem

25.sou indigna Irmam

A testadora relatou que pertencia à irmandade de Nossa Senhora das

Dores, mas se considera indigna irmã. Em contraponto com o

testamento de João Pimenta de Abreu, percebemos que Maria Joaquina

do Espírito Santo não tinha uma participação efetiva na comunidade

religiosa, pois ela declarou que devia vinte anuais, ou seja, ficou vinte

anos sem dar esmola para as irmandades de Nossa Senhora Mãe dos

homens e São Francisco das Chagas. Provavelmente, ela era

discriminada pela comunidade porque foi abandonada pelo marido. Além

disso, no documento 2, não há a preocupação exacerbada em mandar

celebrar missas como constatamos no documento 1.

67. ...Francisca Xa-

68. vier de Jesús nascida e Bapti-

69. zada na cidade de Pouzo Ale-

70. gre,...

Este fragmento confirma aquele pensamento de que todos os recém-

nascidos deveriam ser batizados para que pudessem ser considerados

filhos de Deus. 117. ... a quan-

118. tia de duzentos mil reis de

119. esmolla em adjutório

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120. de sua alforria,...

Dar dinheiro para o escravo para ajudá-lo a comprar sua Carta de

Alforria era uma prática comum naquele período. Os testadores

declaravam esse tipo de ajuda por considerarem ser um ato de piedade,

confirmando, assim, o caráter de coisificação do negro.

288. tratar délle, ampara-

289. lo, e protegel-o como si fora

290. seo proprio Pay;

Miguel, filho e herdeiro de Maria Joaquina do Espírito Santo, não teve a

presença do poder provedor e autoritário do pai. Por isso, a testadora

preocupou-se em declarar o testamenteiro Inocêncio Gomes Figueira ou

na sua falta, qualquer um dos outros testamenteiros nomeados, como

tutor de seu filho. A relação de proteção paterna estava empregada na

ação de não deixar faltar nada ao filho.

3.6.3.3 Relações de identidade

Não são as denotações dos dicionários, mas, segundo Ciro Flamarion &

Ronaldo Vainfas (1997: 381), são sintagmas que podem ser sempre

intercambiáveis em contextos específicos. Exemplo:

escravo/negro/etíope/preto etc.

Documento 1:

83. ... huma Escrava de nome Felicia

84. no valor de trezentos mil reis, e bem assim em dinheiro trezentos e

quarenta e seis mil reis.

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86. ...huma escrava de nome Joaquina no valor de quatro centos

87. mil reis.

89. úma escrava de nome Maria no valor de quatro centos mil

90. reis, e assim mais huma escrava de nome Joaquina no valor de

92. A meu filho João, hum escravo de nome Joaquim digo de nome João

93. no valor de trezentos mil reis, e em dinheiro a quantia de cento

112. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu

113. nada possuia, pois só tinha uma criolinha de nome Luiza

114. que falleceo, e hum escravo de nome Lourenço que se achava

115. fugido nessa ocazião, sem delle haver noticia alguma, e es-

118. 150$000 e para esse pagamento vendi hum escravo de nome

119. José que minha segunda mulher trouxe de dote, ...

Documento 2:

112. ...Declaro que

113. deicho ao Escravo Mano-

114. el pardo, que houve por

115. herança de minha falle-

116. cida Maÿ, avaliado em

117. dous contos de reis...

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No contexto específico dos testamentos as palavras escravo, escrava e

criolinha estão relacionadas diretamente com as palavras valor,

avaliado, fugido e tinha. Apesar de haver alguns ideais em favor da

abolição da escravatura, os testamentos analisados demonstram o que o

negro era visto como um bem a ser comercializado ou um produto de

troca ou doação.

3.7 Marcas ortográficas dos testamentos

Em relação à ortografia, os testamentos apresentam algumas palavras

com a mesma significação, mas com grafias diferentes. Isto acontece porque

houve oscilações entre o período fonético e pseudo-etimológico, além daquela

tentativa de simplificar a ortografia da língua portuguesa a partir de meados do

século XIX. Indicaremos estudos etimológicos para ficarmos a par de algumas

raízes e entendermos algumas grafias. Cabe salientar que, em um único

documento, há ocorrência de palavras com o mesmo sentido denotativo, mas

com grafias diferentes:

a) acceitar e aseitar – Do latim capère (pegar) surgiu a raiz cap. Está, também,

sob formas apofônicas cep-, cip- ou cup. Captus, que é particípio, gera o

radical cap.t- ou, por apofonia, cep. t- . Essas raízes transformaram o -p em -b:

cab-, ceb- ou em -i-: cei. t, em Português. Às vezes, cai por síncope ca.t-, cet-,

ca-. Assim, ao pegarmos algo que nos oferecem, esta ação fica representada

na palavra aceitar < ac.cep.t.a.re.

b) meo e meu – Vem do latim mèus,a,um. Sua formas históricas são: 1061

mia, 1264 mhas, 1265 ma, século XIII meus, meheu, mios; século XIV meos,

mia, 1529 mei e 1587 inha.

c) habito e ábito – Na ocorrência de um b entre vogais na palavra portuguesa,

originado de um b latino (como em HABITVS > hábito), é muito provável que

se trata de palavra de origem culta, pois as populares o transformam, por

sonorização, em v, ou o sincopam.

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d) tambem e tão bem – Também é contração de tão bem e suas formas

históricas são: século XIII tanben; século XIV tã be; século XV tambem e

tãobem.

e) casa e caza – O termo casa vem do latim càsa,ae 'choupana, cabana,

casebre, arribana'; cf. latim domus,us 'casa, morada, habitação, domicílio'.

Formas históricas: 1221 casa, 1278 quasa, 1352 caza, século XIV cassa.

f) esmolla e esmola - O termo grego eleemosýne, “compaixão”, é um caso de

metátese. Ele foi importado para o latim eleemósyna e se popularizou por meio

da Igreja. Sua forma em italiano é elemosina, aumône no francês que é

resultado do antigo francês almosne, com vocalização do l e síncope do s.

Com aférese do e, tornou-se limosna no castelhano e, no português,

manifestou-se como esmola. A forma portuguesa vem do termo eleemosynam

> elemosna, com simplificação dos dois ee e síncope do y. Em seguida

elmosna com síncope do e, depois esmolna, forma revelada no século XIII.

Nela há metátese dupla do s e do l, que trocam de lugar e, por fim, a

assimilação do n resulta na forma esmolla, que é simplificada como esmola.

Há nos testamentos palavras grafadas com consoantes dobradas que,

nos dias atuais, são grafadas com uma consoante :

FORMAS HISTÓRICAS

GRAFIA DAS CONSOANTES

DOBRADAS NOS TESTAMENTOS

GRAFIA

CONTEMPORÂNEA

ac.cep.t.a.re (latim)

acceitar

aceitar

affectátus,a,um (latim) affectada afetada

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affectus,us (latim)

século XV afecto, afeito, afeyto, affecto.

affectos

afetos

attendère (latim)

século XIII atender, ateder, século XIV attemder

attendida

atendida

africanus,a,um (latim)

século XIII aflicao, 1344 affricano, século XV africano,

africãao

affricana

africana

Hannah (hebraico)

“graça, mercê”

Anna

Ana

annus, i (latim)

annuális,e

século XV ãnuaaes

anno

annuais

ano

anuais

Approbatìo,ónis (latim) 1460 aprouaçom, sXV aprouaçam

approvação

aprovação

ille, illa + eccu (latim) =

1152 aquelias, século XIII

aquele, aaquel, aquel,

aquelha, século XV aqueel

aquelle

aquellas

aquele

aquelas

(latim) século XIII aterrar,

século XV aterrado atterradinho aterradinho

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(latim) (com) ego> cum+mecum> cumecum.

século XIII comigo, comego, conmigo, século XIV cõmjgo,

século XV commiguo.

commigo

comigo

COMMVNEM> communis,e

(latim) commum comum

século XIII dele, del, delle

ille, illa

(latim)

delle, dellas elle, ella

dele, delas

ele, ela

en+(commendo,as,ávi,átum,are)

(latim) encommendacãoes encomendações

(latim) *fallescere,

falló,is,fefellí,falsum,fallère

falleceo fallecer fallecida

fallecidos fallecimento

faleceu

falecer

falecida

falecidos

falecimento

Phíl.ipp.o.s = raiz grega - phil

Felippe

Felipe

indene + -izar. (francês indemniser (1398)

indenizar < indemne < latim indémnis,e 'indene') + -iser;

1770 indemnisar, 1858 indemnizar

indennizará

indenizará

(latim) intelligentìa,ae ver leg-;

séuclo XIV jntelligencia, século XV inteligencia

intelligencia inteligência

João <Yohanan (hebraico)=

graça de Deus; pelo latim,

Iohannes/Johannes; grego,

Joanna

Joana

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Ióánnés, e seu feminino

Joana<latim Iohanna/Johanna

contração da preposição em +

pron.pes. ele; século XV nele,

neellas, n'eelle, neello.

nelle

nele

(latim) occasìo,ónis; século XIII ocasyõ, século XIV cagõ,

o cajon, cajão, ocaion, ocasion, occasyoões, 1566

ocasiam, 1720 occasião, 1873 ocasião.

occaziãoes ocasiões

oferecer< latim popular

*of.fer.e.sc.e.re, em vez de

of.fer.re, (antigo oferir);

oferenda< of.fer.e.nd.a,

gerundivo neutro

offerecendo

oferecendo

(latim) *recommendare < lat. commendo,as,ávi,átum,áre

1387 rrecomenden, século XV recomendou

recommendados

recomendados

Severino <Sever.in.u.s,

derivado de Sever.u.s,

“severo”

Severianno Severiano

(latim) sollémnis ou sollénis,e . Século XIV solene, sollenne,

solempnes; século XV soblene

solenne solene

(latim) submitto ou

summitto,is,mísi,missum,tère. Século XIV someter, 1446 somete, 1572 sobmettida,

1682 submetter

submetto

submeto

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(latim) zélo,as,ávi,átum,are.

Século XIV zeam, século XV

zelava

zellar

zelar

Palavras com consoantes mudas que, contemporaneamente, estão em desuso:

FORMAS HISTÓRICAS

GRAFIA COM CONSOANTE MUDA NOS TESTAMENTOS

GRAFIA CONTEMPORÂNEA

Agère = ‘pôr em movimento’.Latim

actus,us vem do radical ag e variantes.Actum,í

'ação'. Século XIV auto, aucto e século XV actu,

auctus.

acto

ato

Latim signáre . Radical sign-: 936 asinauimus, 1261 assinar, século

XIII assijnar, 1340 asignaar, século XV açinar, açinardes , assiinou, asiinadas.

assignado

assigno

assinado

assino

Latim baptismus,i , adptação do grego:

baptismós. Século XIII batismo, baptismo, sXIV

bautizmo.

baptisterio baptizada

batistério

batizada

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Latim data 'dada', fem. do part.pas. de dàre

'dar'.

dacta

data

Latim des + fructus,us .

Século XIII defruytar .

Século XIII fruito, fructo, fruyto, século XIV fruto.

disfructado

fructo

desfrutado

fruto

Grego: Magdaléne,

natural de Magdala

Magdalena Madalena

Radicais jat, jet, jeç, jeit, jeiç. Latim. objectus,us .

Século XV objecto, obiecto, ogeito.

objictos

objetos

Praticar - Latim prax(i).

Século XV praticar, praticaaes, pratycam.

practicado praticado

Latim satisfactus,a,um, particípio passado de satisfacère :'satisfazer a’. 1340 satisfazendo,

1365 satisffeytos, século XV satisfeito, satifecto, satisffeyto.

saptisfeita

satisfeita

Latim signális: 'que

serve de signo, de sinal'. 1130 sinal, século XIII

sinaes, signal.

signaes sinais

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Numerais com grafia diferente daquela que usamos hodiernamente:

FORMAS HISTÓRICAS

GRAFIA DOS NUMERAIS NO TESTAMENTO

GRAFIA CONTEMPORÂNEA

Latim quinquaginta/ cinquaginta. 1269

çincoenta, cincoenta, século XIII cinquaenta, século XIV çinquanta,

século XV çimquoeemta Século XIX cincoenta.

cincoenta cinqüenta

Acusativo masculino plural ‘duos’ do latim

duo,ae,o. Século XIII dox, século XIV doos, dos, século

XV dois. Século XIX dous.

dous dois

oito + -cento(s); raiz oct(a/o.

Século XIV oytoçentos, século XV oyto çentus.

Século XIX oitocentos.

oito centos

oitocentos

Quatro + centos. Século XIV

quatroçentas, século XV quatroceentas,

quatroçemtos,quatro centos, quatrocetos.

Século XIX quatrocentos.

quatro centos

quatrocentos

Latim sexcenti,ae,a + centi,ae,a de centum

'cem'; Século XIV seiscentos, sexcentos, século XV

seys centas. Século XIX seiscentos.

seicentos seis centos

seiscentos

seiscentos

Latim tres,tres,tria. Século XIII tres, século XV trres e trez. Século

XIX tres.

trez três

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Grafias diferentes da terminologia atual: ameasas (ameaças),

infermidade (enfermidade), egualmente (igualmente), iscravo (escravo),

extorção (extorsão), freguezia (freguesia), dispois (depois), dezejo (desejo),

José (Joze), Jesus (Jezus), Pouzo Alegre (Pouso Alegre), objetos (objictos),

outra hora (outrora), Minas Geraes (Minas Gerais), cazado (casado), serteza

(certeza), auzentado (ausentado), seo (seu), procedeo (procedeu), sciencia

(ciência), socego (sossego), concenso (consenso), amisade (amizade),

comprimento (cumprimento), fis (fiz), prezente (presente).

O h é presente no início de palavras antes das vogais: hé (é), hum (um),

huma (uma), hião (iam), hia (ia).

3.8 Os tempos e os modos verbais dos testamentos

Para apresentarmos os tempos e os modos verbais que estão expressos

nos testamentos, utilizamos a Grammatica Portugueza de Julio Ribeiro,

produzida em 1885, que, com certeza, registra os usos em veiculação naquela

época. A obra pesquisada diz que o português do século XIX tem quatro

modos, isto é, quatro formas que o verbo assume para qualificar a sua

enunciação: o indicativo, que representa a enunciação do verbo como real; o

condicional, que representa o verbo como dependente de uma condição; o

imperativo, que exige uma ordem e; o subjuntivo, que representa a enunciação

do verbo como contingente. J. Ribeiro diz que o infinito pessoal e impessoal, e

o particípio são formas nominais do verbo que representam, respectivamente, o

substantivo e o adjetivo, e aponta que o verbo assume uma forma para

determinar a época (presente, passado e futuro) do seu enunciado. Para

indicar as várias gradações de anterioridade e de posteridade do presente, do

passado e do futuro nos diversos modos e formas nominais, salientando que o

verbo português tinha vinte e quatro tempos no século XIX, o autor (op. cit.: 87)

apresenta um quadro que reproduziremos abaixo:

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Modos Formas nominais Tempos

Indicativo Imperativo Condicional Subjunctivo Infinito Participio

Presente 1 1 ... 1 2 1

Imperfeito 1 ... 1 1 ... ...

Perfeito 1 ... 1 1 2 ...

Aoristo 1 ... ... ... ... 1

Plusquam perfeito 1 ... 1 1 ... ...

Futuro 2 ... 2 2 ... ...

Gerundio ... ... ... ... 2 ...

Como já percebemos, no quadro proposto por J. Ribeiro, há sete tempos

verbais e seis modos verbais em que os tempos são utilizados. No português

atual, temos sete tempos com algumas nomenclaturas e conceitos diferentes:

presente; pretérito, que se divide em perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito e;

futuro, que se divide em futuro do presente e do pretérito. Há, ainda, no

português atual, três modos verbais: o indicativo, que abrange todos os tempos

do português atual; o subjuntivo, que envolve os tempos do presente, pretérito

imperfeito e futuro; e o imperativo que abrange o presente afirmativo e o

presente negativo. Nas formas nominais do português de hoje, temos: o

infinitivo (pessoal e impessoal), que se difere da nomenclatura do século XIX; o

gerúndio, que não é mais um tempo verbal; e o particípio. Os tempos verbais

do século XIX apresentam dois nomes diferentes: aoristo e plusquam perfeito.

Aoristo se designa do grego aóristos que significa indefinido, indeterminado.

Esse tempo verbal fazia o verbo agir representando o acontecer verbal do

passado. Atualmente, o verbo no pretérito perfeito tem a mesma ação que o

aoristo tinha no século XIX. O tempo perfeito do século XIX tinha a mesma

função que o pretérito perfeito composto tem nos dias atuais, ou seja, segundo

Mário Vilela & Ingedore Villaça Koch (2001:169) designa um acontecer

começado no passado, mas que tem repercussão ou continuidade no presente.

O tempo verbal plusquam perfeito, em uso no século XIX corresponde, na

atualidade ao pretérito mais-que-perfeito do indicativo e aponta uma ação

anterior a outra já passada.

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Neste momento, mencionaremos os principais tempos verbais utilizados

em nossas amostras:

Documento 1:

Modo Indicativo: Presente (1ª pessoa do singular): vou, sou, protesto, declaro, nomeio,

deixo, devo e digo;

Imperfeito (1ª pessoa do singular): possuía, tinha, achava, devia, fazia;

(1ª pessoa do plural): devíamos.

Perfeito (3ª pessoa do singular): tem tido, tem vendido.

Aoristo (1ª pessoa do singular): fui, passei, dei, paguei, vendi, fiz,

adquiri, mandei e ditei; (3ª pessoa do singular): foi, durou.

Plusquam perfeito: (1ª pessoa do singular): devera.

Futuro: (3ª pessoa do singular): será, mandará, dará, servirá e reporá;

(3ª pessoa do plural): mandarão, pagarão e darão.

Modo Subjunctivo (sic): Presente (1ª pessoa do singular): esteja.

Imperfeito (3ª pessoa do singular): aparecesse, lançasse.

Futuro (3ª pessoa do singular): couber, herdar; (3ª pessoa do plural):

forem, acompanharem, herdarem.

Modo Condicional: Imperfeito (1ª pessoa do singular): faria.

Formas nominais Infinito impessoal gerúndio: achando, gozando, temendo, herdando,

sendo, ficando, devendo e adquirindo.

Particípio aoristo: nascido, cazado, dada.

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Documento 2:

Modo Indicativo: Presente (1ª pessoa do singular): sou, faço, peço, declaro, dezejo,

nomeio, ponho, recomendo, tenho, deixo, devo, protesto, fallo, acho, concedo,

submetto, rogo e digo; (3ª pessoa do singular): há de haver e falta.

Imperfeito (3ª pessoa do singular): hia, continha.

Perfeito (1ª pessoa do singular): tenho conservado, tenho concluído.

Aoristo (1ª pessoa do singular): fui, nasci, obedeci; (3ª pessoa do

singular): ordenou e faltou.

Modo Subjunctivo (sic): Presente (1ª pessoa do singular): falleça, tenha; (3ª pessoa do singular):

seja, diga.

Imperfeito (3ª pessoa do singular): mandasse.

Futuro (3ª pessoa do plural): pretendem.

Formas nominais Infinito impessoal gerúndio: sendo, levando, fazendo, deduzindo, ficando,

pertencendo, offerecendo e ignorando.

Particípio aoristo: nascida, lido, practicado, feito e affectada.

Os documentos, objeto de nossa pesquisa, apresentam o uso constante

de verbos no presente do indicativo. Isso comprova o caráter pessoalíssimo,

unilateral, gratuito, solene e revogável do testamento, pois o testador deixava

expresso sua disposição de última vontade e todas as ordens explícitas no

documento precisariam ser cumpridas. Tanto o documento 1 como o

documento 2 expõem usos parecidos dos tempos e modos verbais. Entretanto,

no testamento de João Pimenta de Abreu, aparecem alguns usos do tempo

futuro do modo indicativo, uma ocorrência do tempo imperfeito do modo

condicional (faria) e uma ocorrência do tempo plusquam perfeito do modo

indicativo (devera). Esses usos não ocorrem no testamento de Maria Joaquina

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do Espírito Santo, porém, como vimos acima, os outros tempos e modos

verbais de nossas amostras são os mesmos.

3.9 Características prosódicas dos testamentos

Há, nos dois testamentos, o uso do til como sinal de nasalidade na

desinência número-pessoal do presente do indicativo, pretérito perfeito e

imperfeito do indicativo, tais como: costumão (costumam - presente do

indicativo), ficão (ficam - presente do indicativo), tratarão (trataram - pretérito

perfeito), forão (foram - pretérito perfeito), havião (haviam - pretérito imperfeito),

erão (eram - pretérito imperfeito) e hião (iam - pretérito imperfeito).

Sobre a contração da preposição a com o artigo a ou com o pronome

demonstrativo, a que damos o nome de crase é, no século XIX, aplicada com o

acento agudo, tendo em vista a não existência do acento da crase. Esse

acento era utilizado todas as vezes que o enunciado pudesse gerar

ambigüidade, como no caso de:

Documento 2:

16. ...logo que eu falle-

17. ça e tenha de dar se o meo

18. Corpo á sepultura,...

89. ... de todos os

90. meos bens á recepção só-

299. ... cumprirá em tu-

300. do á risca o que aqui fica ex-...

J. Ribeiro (1885:30) explica a regra acerca de um dos usos do acento

agudo, desta maneira:

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1) sobre a inicial para indicar contracção de vozes similhantes, ex.: “á” por “aa”, “áquelle” por “á aquelle”. Escreve-se “vestido á Luiz XI – Estylo á Camões”, porque em taes locuções há ellipse da palavra “moda”: “vestido á Luiz XV” é ellipse de “vestido á moda de Luiz XV”.

Em relação ao conceito de acentuação tônica no século XIX, os

vocábulos se dividem em oxítonos e barítonos (paroxítonos e proparoxítonos).

As palavras oxítonas, que tinham, e continuam a ter o acento tônico na última

sílaba, eram chamadas de agudas; as paroxítonas, que tinham o acento tônico

na penúltima sílaba e ainda permanecem com o mesmo conceito nos dias de

hoje, eram chamadas graves e as proparoxítonas, que tinham o acento tônico

na antepenúltima e permanecem do mesmo modo, eram chamadas esdrúxulas

ou dactylicas. Há alguns vocábulos oxítonos presentes nos testamentos que,

de acordo com J. Ribeiro, não precisavam de acentuação gráfica, são eles:

porem, alem, amem. Esses vocábulos devem ser acentuados graficamente nos

dias atuais.

As paroxítonas do século XIX deveriam ser acentuadas graficamente,

quando terminassem com a, e, o, ea, eo, ia, ie, io, ua, uo, x etc. No entanto, há

algumas palavras que constam nos testamentos que não estão acentuadas

graficamente. São elas: Antonia, Antonio, matrimonio, consorcio, premio,

Rozario, escapulario, oitavarios, purgatorio, Felicia, noticia, inventario, proprio,

circunstancias, sensiveis, baptisterio, sciencia, indispensaveis, ausência,

consiencia, Inocencio, intelligencia. No português moderno, essas palavras

paroxítonas levam o acento gráfico.

J. Ribeiro aponta vários casos de acentuação gráfica nas palavras

proparoxítonas, contudo, o autor ressalta que existem muitas delas que só

serão percebidas como tal a partir de uma prática. Desse modo, percebemos

que as palavras proparoxítonas utilizadas em nossas amostras não levam o

acento gráfico: ultima, Catolico, Apostolico, legitimo, dividas, credito, dadivas,

obito, Espirito, habito, computo, Jeronimo. Talvez os escritores dos

testamentos não tinham a tal prática mencionada por J. Ribeiro. Hoje, todas as

palavras proparoxítonas devem ter o acento gráfico.

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Algumas palavras contidas nos testamentos são ora acentuadas, ora

não: Jose e José, úma e huma, núpcias e nupcias, ultima e última, possuia e

possuía, Candido e Cândido, Chagas e Chagás.

Na gramática de J. Ribeiro produzida no século XIX, como dissemos

anteriormente, o ditongo aberto éi (com o acento gráfico) é chamado de

ditongo puro. Nos testamentos, a palavra reis não segue essa regra do século

XIX. Acena-se, também, a três ditongos nasais: ãe; ão e am; õe e õem. Por

isso, a palavra irmam (linha 25), que está no testamento de Maria Joaquina do

Espírito Santo, foi empregada adequadamente.

Há algumas palavras expressas nos testamentos que são acentuadas

na letra y com o duplo ponto que é chamado trema: maÿ, leÿ, heÿ, escrevÿ, vÿ.

Nas gramáticas portuguesas, esse sinal foi abolido a partir de 1º de janeiro de

1946. Nas gramáticas produzidas no Brasil, o uso do trema incide sobre o u,

quando está nos dígrafos gu e qu e que são seguidos de e ou i. Antes disso, as

gramáticas dos dois países regulamentavam o uso do trema sobre o i e o u

átonos, quando não formavam ditongo com a vogal que os precedia (diérese).

Desse modo, o y tremado, que aparece em nossas amostras, é utilizado no

lugar do i que era acentuado com o trema conforme registram as gramáticas de

então. Na palavra maÿ, percebemos que houve assimilação progressiva em

matrem > madre > *made > *mae > mãe (século XIX). No entanto, mesmo

sendo um ditongo nasal, ela tem algumas formas históricas que usam a letra y:

século XIII mae, século XIII mãy, século XIV mãe, século XV mãi, século XV

maj, século XV may. A palavra leÿ (lei – século XIX), também, tem uma forma

histórica em que se constituía com a letra y: século XIV lley. As palavras heÿ,

escrevÿ e vÿ foram utilizadas nos testamentos, seguindo o mesmo critério de

maÿ e leÿ.

As palavras Pay, vay, que, no século XIX, eram constituídas de ditongos

puros – pae e vai, aparecem nos testamentos com o pingo do i. Temos,

portanto, a substituição do e e do i pelo y.

Os pronomes dellas, desta, neste e nelle são tônicos na vogal e. A

gramática de J. Ribeiro diz que esses pronomes não poderiam receber o

acento gráfico. Contudo, nos testamentos há o uso desses pronomes com o

acento gráfico: déllas, désta, néste e nélle. Hoje, ainda, esses pronomes não

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recebem o acento gráfico. Há, também, nos testamentos, o uso do acento

gráfico nas palavras sómente (somente) e póde que era usado para se

diferenciar de pode, que é pretérito perfeito.

Nas amostras estão expressas algumas palavras que, atualmente,

precisam de acentuação gráfica, mas não há uma regulamentação para isso na

gramática de J. Ribeiro (1885): facil (fácil), amigavel (amigável), possivel

(possível), ampara-lo (ampará-lo), protegel-o (protegê-lo). A forma protegel-o e

outras formas pronominais utilizadas com esse formato, eram comuns no

século XIX.

3.10 Outras questões lingüísticas

a) No documento 1, a expressão deversa paragem foi utilizada com a

significação de em outro lugar.

174. em casa do Senhor

175. Manoel Joaquim de Andra-

176. de para ser assignado co-

177. mo foi, em deversa paragem

178. em caza de minha finada

179. Maÿ sem saber o que nélle

180. se continha por me achar

181. como já disse pertubada

b) Ao abordar as regras de sintaxe, J. Ribeiro (1885) diz que o aposto

deve concordar, sempre que possível, com sua base em gênero e número.

Essa regra não acontece na parte seguinte do testamento de Maria Joaquina

do Espirito Santo:

1. Em nome de Deos amem. Eu Ma-

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2. ria Joaquina do Espirito Santo

3. como Christão Catholica e Aposto-

4. lica Romana que sou...

Além de não apresentar a regra que se impunha sobre o uso das

vírgulas no caso do aposto, não houve concordância de gênero, quando a

palavra christão não concordou com o nome Maria Joaquina. É importante

salientar que as palavras christão e christã, no século XIX, tinham as seguintes

formas: khristão e Khristã (origem grega).

Uma outra explicação pode ser dada a partir da inadequação de sintaxe

nesse fragmento: por ser analfabeta, a testadora Maria Joaquina do Espírito

Santo pediu a Pedro Gil de Oliveira Horta que escrevesse o testamento. Assim,

o ato de escrituração testamental foi feito por um homem e, como

conseqüência, houve um equívoco no momento de empregar a flexão

adequada para aquela frase.

Na linha 259, há uma outra indicação de que o escritor tenha cometido

outro engano ao empregar o pronome possessivo sua como se o documento

estivesse sendo escrito em 3ª pessoa do singular. O uso do pronome minha

seria o mais adequado:

258. A prazo de dous annos para

259. prestar contas de sua testa-

260. mentaria, cujo prazo será

261. contado a começar da da-

262. cta em que for por elle aber-

263. to o mesmo testamento,...

Se o testamento é um documento personalíssimo, a língua deve ser

expressa em 1ª pessoa do singular.

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c) A partir da linha 166, o uso do adjunto adverbial de modo não está

com a terminação mente e, também, não utilizou a expressão de modo:

166. pois si assim

167. fora ter se hia feito e assig-

168. nado por alguém a meo

169. rogo em minha presença de-

170. pois de me ser lido, e mos-

171. trar me saptisfeita, e não

172. em minha ausencia fei-

173. to atropelado, e clandestina-

174. mente em casa do Senhor

175. Manoel Joaquim de Andra-

176.de para ser assignado

O princípio de adequação teórica nos aponta que, na atualidade, a

pragmática é a parte da Lingüística que estuda a linguagem em uso. Assim, o

particípio do verbo atropelar representa, naquele contexto, um advérbio de

modo.

d) Estudos etimológicos de alguns sobrenomes que estão expressos nos

documentos:

SOBRENOME ORIGEM E SIGNICADO

Caetano

= Que é de Gaeta

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Cândido

Latim

< Candìdus,a,um = branco, alvo.

Carvalhaes (Carvalho)

karr ( raiz pré-romana) – pedra,

associada a nomes de plantas.

origem hispânica, possivelmente

ibérica.

Cintra

da cidade de Sintra. Sua origem é

obscura.

Ferreira

de ferraria, mina de ferro.

Gonçalves

Antiga referência ao nome do pai:

< Gundisalv.ici, filho de Gonçalo.

Lopes

Antiga referência ao nome do pai:

< Lup.ici, filho de Lopo.

Machado

Os sobrenomes eram formados com

nomes de objetos também. Mais

exemplos: Botelho (garrafa), Covas,

Torres etc)

Mello (Melo)

pode ser que venha do latim merulum

= melro (pássaro chamado

popularmente, Soldado).

Moraes (Morais)

onde há amoreiras, plural de mor.al,

vem das expressões latinas mora,

amora.

Neves

muitos sobrenomes foram formados a

partir de nomes de acidentes

geográficos vagos. (Campos, Matos,

Ramos etc)

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Pereira

Pimenta

Oliveira

nomes de plantas. Mais exemplos:

Arruda, Teixeira (árvore que produz

teixos) etc.

Rodrigues Antiga referência ao nome do pai:

< Roderiqu.ici, filho de Rodrigo.

Santos sobrenome formado em relação a

epíteto.

Souza (Sousa) nome de um rio português, de origem

pré-romana.

Toledo de Toletum, capital dos carpetanos,

de origem pré-romana.

Silva improvável latinismo silva, - floresta.

Gomes

Antiga referência ao nome do pai:

Gom.ici, filho de Guma.

Antunes Antiga referência ao nome do pai:

Anton.ici, filho de Antônio.

Cunha de culina, - cozinha.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao término dessa pesquisa, queremos dizer que retomamos aspectos da

língua portuguesa escrita no Brasil, considerando os fatores históricos e

socioculturais que caracterizam alguns testamentos da sociedade passense, na

segunda metade do século XIX. Nessa perspectiva, a dissertação examinou

esses documentos, por meio do aparato teórico e dos princípios norteadores da

HL que se constitui como uma ciência que, fazendo uma interface com os

estudos da língua e da história, objetiva reconstruir manifestações humanas.

O enfoque histórico-lingüístico contribuiu para que a língua em uso

naquela época, no Brasil, fosse compreendida em sua dimensão interna e

externa, bem como permitiu que fizéssemos um resgate da história econômica,

política, religiosa, jurídica e social do Brasil, do sul de Minas e de Passos, MG.

Com base nessa perspectiva, pudemos observar que o homem estabelece

relações estreitas com a cultura em que está inserido por meio da língua.

Durante a análise das amostras, pudemos compreender as relações

sociais, religiosas e suas implicações na sociedade, bem como o modo de

pensar e agir característico dos mais abastados, principalmente os brancos. A

participação nas irmandades religiosas era a condição sine qua non, para que

todos se sociabilizassem e, ao mesmo tempo, se redimissem de seus pecados

para obterem a salvação de suas almas. No relato de suas disposições de

última vontade, o testador cumpria um dever jurídico, que seguia as normas

previstas nas leis civis vigentes, e que se apoiavam numa concepção religiosa.

Assim, foi possível compreender que, na segunda metade do século XIX, a

região de Passos já se encontrava numa posição política que lhe permitia

acesso às autoridades da região sul-mineira, da província de Minas Gerais e do

império. Nos testamentos analisados, observamos, também, que os testadores,

auxiliados por seus testamenteiros e, ainda, pelo tabelião local, tinham a

consciência de seus direitos e deveres, no momento em que produzia aquele

documento que se fazia importante e necessário. A operacionalização do

princípio da contextualização possibilitou-nos identificar o estatuto jurídico do

testamento no Brasil, apresentado pela Consolidação das Leis civis, escritas

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por Augusto Teixeira de Freitas e autorizadas pelo governo imperial, em 22 de

dezembro de 1858. Em 14 de maio desse mesmo ano, Passos tornara-se

cidade e, desse modo, firmou sua atividade política, econômica e religiosa,

quando passou a ser uma referência regional, pois parte da produção

invernista de sua carne bovina era destinada para a capital do império, Rio de

Janeiro. Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, percebemos que a

cultura religiosa da religião católica fazia-se uma presença marcante no

cotidiano passense, haja vista a declaração oficial dos testadores, dizendo que

eram católicos apostólicos romanos. Os testadores relatavam, ainda, que

haviam sido batizados e criados pelos dogmas de fé da Igreja católica e, a

partir disso, faziam vários pedidos aos seus testamenteiros, tais como: de

como seus corpos deveriam ser preparados para o enterro; pedidos para

celebração de missas; e pagamentos das contribuições anuais que faziam às

irmandades. Nos dias atuais, a tradição da religiosidade católica continua a ser

uma forte característica de uma parte da população sul mineira. Em Passos,

por exemplo, há, hoje, seis paróquias e todas têm ramificações na zona rural e

em outros bairros da cidade. Vivem ali algumas congregações religiosas, entre

elas: Congregação Rogacionista, que tem um educandário para crianças

carentes e uma casa de formação de padres; Carmelo São José, onde se

encontram as monjas da ordem carmelitana descalça no Brasil. Lá, as monjas

vivem numa pequena comunidade fraterna, pobre e de vida contemplativa,

inteiramente dedicada à oração; e os Irmãos de São Gabriel que zelam pelo

bem-estar do Centro de Aprendizagem Pró-menor de Passos (CAPP).

Há, também, grupos religiosos, por exemplo, os Irmãos da Santíssima

Trindade, compostos de pessoas leigas, que realizam trabalhos diversificados

na comunidade. Esses grupos, na devida proporcionalidade, podem ser

comparados com as irmandades passenses existentes no século XIX, devido

ao caráter de formação religiosa que lhe é peculiar.

Constatamos que os documentos analisados apresentam em sua

materialidade lingüística características do português em uso no Brasil, na

segunda metade do século XIX, tais como regularidades e oscilações

ortográficas, prosódicas e verbais. Identificamos, ainda, a proposta temática, as

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relações de oposições, de associações, de identidade e a associação

semântica em torno da uma mesma palavra, cujo escopo é a organização dos

testamentos. Além disso, numa perspectiva lingüístico-histórica, fizemos um

levantamento etimológico de várias palavras utilizadas nos testamentos,

inclusive de sobrenomes de famílias ainda existentes na região passense.

Os testamentos analisados propiciaram-nos, portanto, a confirmação de

que a língua não pode ser vista apenas sob o olhar de sua dimensão interna,

mas faz-se necessário visualizá-la no contexto do clima de opinião da época

em que o testamento foi produzido. Ao abordar essa temática, não era nosso

objetivo propor questões analíticas acerca do ensino de língua, mas essas

reflexões podem possibilitar, no âmbito histórico-lingüístico, ações

investigadoras que propiciem um processo mais adequado de ensino àqueles

que necessitam ler e escrever com competência, levando em consideração os

aspectos contextuais, sem os quais nossa existência é nula.

Por fim, esperamos que os estudos empreendidos possam ter aberto

nossas perspectivas para a continuidade desse tipo de pesquisa, cumprindo a

meta dos objetivos propostos que permitam a compreensão dos

comportamentos sociais, jurídicos e religiosos contemporâneos, que se

reproduzem na sociedade por meio da língua.

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Anexos

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ANEXO A

1. Testamento de João Pimenta de Abreu. 2. Transcrição do testamento de João Pimenta de Abreu.

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1. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo 2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen- 3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta- 4. de pela forma seguinte. 5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de 6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer. 7. Declaro que sou filho legitimo de João de Deos Pimenta de Abreu 8. e de Magdalena Maria Rodrigues de Jesus, ambos já fallecidos e 9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias 10. do Termo de Tamanduá do Bispado de Marianna. 11. Declaro que fui cazado a face da Igreja em primeiras Nupcias 12. com Antonia Maria Fausta, de cujo matrimonio tivemos cinco 13. filhos de nomes Maria, Thereza, Joanna, Anna, e João; ao dispois 14. fallecendo a dita minha primeira mulher passei a segunda 15. núpcias com Silvéria Maria da Conceição tão bem já falle- 16. cida, e deste consorcio tivemos quatorze filhos que são José, Joa- 17. quim, Antonio, Manoel, Domingos, Francisco, João, Cândi- 18. do, Belchior, Maria cazada com José Caetano Machado, Anna 19. já fallecida sem deixar filhos e Matildes cazada com João Candido 20. de Mello e Souza, Hypolita cazada com João Severianno dos Santos 21. e Maria cazada com Antonio Pires de Moraes, os quaes todos são 22. herdeiros dos meus bens, isto é das duas partes dos meus bens, bem 23. como meus netos cujos pais foram fallecidos, herdando a parte 24. que por direito lhes compretir . 25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José 26. Caetano Machado, em segundo a Antonio Pires de Morais, 27. e em terceiro a João Candido de Mello e Souza, e ao que aseitar 28. esta minha Testamentaria deixo de premio a quantia de cem 29. mil reis, e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade 30. e o tempo de dois annos para contas finaes, e hum anno para o Pio. 31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter 32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens, as quais irmandades

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33. Nada devo, por estarem pagas; bem como sou irmão da irmandade 34. do Senhor Bom Jesus dos Passos, e da Senhora do Rozario desta Ci- 35. dade, e devo annuaes que meus testamenteiros pagarão, e a ou- 36. tra qual quer irmandade que eu esteja a dever. Logo que eu 37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das 38. mesmas irmandades, bem como a do Carmo no Ouro Preto. 39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo 40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora. 41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus 42. testamenteiros. 43. Meus Testamenteiros mandarão dizer por minha alma tan- 44. tas missas de corpo presente quantos forem os Sacerdotes 45. que acompanharem meu corpo a sepultura. 46. Meus testamenteiros mandarão dizer por minha alma dois oita- 47. varios de missas sendo hum pelo Padre João Prudêncio, e outro 48. pelo Vigário Ulhoa Cintra, se a esse tempo forem vivos. 49. Assim mais quarenta e cinco missas por minha alma pela es- 50. mola de mil reis cada huma. 51. Assim mais cinco missas por alma de minha primeira mu- 52. Lher, e bem assim cinco missas por alma de minha segun- 53. da mulher, bem como oito missas por alma de meus irmãos 54. Joaquim e Maria, assim mais cinco missas pelas almas do 55. purgatorio, aquellas mais necessitadas. 56. Assim mais mandará dizer dez missas por tenção e alma de 57. todos os escravos e escravas da caza. 58. Meu testamenteiro dará da minha terça a quantia de cincoen- 59. ta mil reis para as obras de Nossa Senhora da Penha desta Ci- 60. dade de Passos. 61. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a minha 62. filha Maria das dores cazada com Antonio Pires de Moraes, 63. em remuneração do zelo e caridade que commigo tem tido, isto 64. alem do que lhe couber nos remanecentes da minha terça.

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65. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a Amélia, 66. filha natural de meu filho Joaquim Joze de Toledo Pimenta, fi- 67. cando este excluido de herdar dos remanecentes da minha terça. 68. Deixo da minha terça a quantia de cem mil reis a Maria, filha 69. de Miguel Gonçalves Borges, cazada com Joze Gonçalves, fican- 70. do excluidos de herdarem dos remanecentes da minha terça os me- 71. us netos filhos do referido Miguel Gonçalves Borges. 72. Tão bem fica excluido de herdar dos remanecentes da minha terça 73. meu filho Domingos, herdando em seu lugar Dona Isabel mulher 74. do mesmo, com a condição porem, de que não servirá o que her- 75. dar, para pagamento de dividas quer anteriores quer posterio- 76. res ao meu fallecimento. 77. Tão bem ficão excluidos de herdarem da minha terça meus Netos 78. Filhos de Joze Ferreira Carvalhaes. 79. Tão bem fica excluido de herdar da minha terça meu filho José 80. Pimenta de Abreu, herdando em seu lugar minha neta Rita 81. filha do mesmo, cazada com meu Neto João Caetano. 82. Declaro que dei de dote aos filhos do meu primeiro matrimo- 83. nio o seguinte: aJoanna já falecida cazada com Miguel Borges, digo 84. Miguel Gonçalves Borges huma Escrava de nome Felicia 85. no valor de trezentos mil reis, e bem assim em dinheiro trezentos e 86. quarenta e seis mil reis. 87. A minha filha Thereza cazada que foi com Joze Ferreira Carva- 88. lhaes huma escrava de nome Joaquina no valor de quatro centos 89. mil reis. 90. A minha filha Anna cazada com Salvador Pereira da Conceição 91. úma escrava de nome Maria no valor de quatro centos mil 92. reis, e assim mais huma escrava de nome Joaquina no valor de 93. seis centos e cincoenta mil reis. 94. A meu filho João, hum escravo de nome Joaquim digo de nome João 95. no valor de trezentos mil reis, e em dinheiro a quantia de cento 96. e cincoenta e seis mil e quatro centos e oitenta reis.

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97. Declaro que aos meus filhos do segundo matrimonio dei de dote a- 98. quilo que consta dos recibos que passarão. 99. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta 100. de Moraes alem de hum credito que serve de recibo da quantia 101. de seis centos mil reis, deve mais a quantia de 735$000 reis que por 102. elle paguei a Joaquim Theodoro de Andrade, devendo esta última 103. quantia ser dada em pagamento a minha terça, e na partilha 104. dos remanecentes da mesma, se dará esta mesma quantia em 105. pagamento ao dito meu filho João, e se o que lhe couber não Che- 106. gar a dita quantia, reporá elle aos mais herdeiros da terça. 107. Declaro que fica excluido de herdar dos remanecentes da minha 108. terça meu filho Antonio, por ter este disfructado muito da 109. minha Fazenda, em madeiras que de meus matos tem vendi- 110. do, em prejuizo dos mais herdeiros. 111. Declaro que excluidos os já mencio nados, o restante da minha 112. terça será repartido pelos meus herdeiros na forma que for 113. de direito, entre meus herdeiros não excluidos. 114. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu 115. nada possuia, pois só tinha uma criolinha de nome Luiza 116. que falleceo, e hum escravo de nome Lourenço que se achava 117. fugido nessa ocazião, sem delle haver noticia alguma, e es- 118. te mesmo se achava sugeito a huma divida que o cazal de- 119. via ao capitão Antonio Rodrigues Neves da quantia de 120. 150$000 e para esse pagamento vendi hum escravo de nome 121. José que minha segunda mulher trouxe de dote, por aquelle 122. iscravo Lourenço não aparecer, e quando aparecesse ficar em 123. lugar do outro que vendi, e como nada mais possuía para 124. isso senão o dito escravo e mesmo por morte de minha primei- 125. ra mulher eu me achar individado, fui pagando com al- 126. gum bens que me forão dados em dote pelo segundo caza- 127. mento, e com os quais fui adquirindo alguma coiza mais 128. por Deos me ajudar, tanto que pude pagar as dividas e adquirir

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129. adquirir alguma coiza. 130. Declaro que algumas rezes que havião na caza erão de minhas 131. filhas por dadivas dos padrinhos, as quais a proporção que mi- 132. nhas filhas hião se cazando eu fui intregando a seus maridos, 133. sem que lancasse mão dellas para pagar as minhas dividas 134. e me foi mais facil em vida da minha primeira mulher vender 135. a única escrava que lhe servia para gastar em sua infermidade 136. que durou três annos do que lançar mão do gado de minhas filhas. 137. Alem do que devíamos ao Neves, devíamos mais ao capitão Anto- 138. nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas, dinheiro este que 139. dei a descrever no Inventario amigavel que fiz com meu(s) filhos, genros 140. do primeiro matrimonio, cujo inventario o fiz coacto por 141. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra- 142. zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven- 143. tario a força; e neste Inventario dei a descrever o que não devera 144. dar por não haver como forão as duzentos e trinta e oito oitavas 145. que érão para o Capitão Moreira, e estas mesmo adquiri oito 146. annos depois da morte de minha primeira mulher, como consta 147. do Testamento de meu finado pai, e pela certidão de obito que 148. está guardada em minha caixa. E por esta forma heÿ por 149. findo este meu Testamento que mandei escrever por João Ferrei- 150. ra Godinho, o qual depois de lido e o achar conforme ditei, o assig- 151. no de meu proprio punho nesta Fazenda da Caxoeira ao primeiro 152. de Dezembro de mil oito centos e cessenta e quatro. 153. João Pimenta de Abreu. 154. Que este escrevÿ a rogo do Testador e vÿ assignar. 155. João Ferreira Godinho

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ANEXO B

1. Testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo. 2. Transcrição do testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo.

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1. Em nome de Deos amem. Eu Ma- 2. ria Joaquina do Espirito Santo 3. como Christão Catholica e Aposto- 4. lica Romana que sou, em qual 5. Religião nasci e fui criada, e 6. educada e em que tenho 7. conservado, e espero morrer, ten- 8. do me deliberado a fazer meo 9. testamento como faço, de 10. minha livre vontade e posto 11. que enferma, em meo perfei- 12. to Juízo declaro minhas des- 13. posições pela maneira e for- 14. ma seguinte; Primeiramen- 15. te que meo herdeiro, e testa- 16. menteiro logo que eu falle- 17. ça e tenha de dar se o meo 18. Corpo á sepultura, recomen- 19. do que seja este envolvido 20. em hum habito da Ordem 21. de São Francisco das Cha- 22. gas e da Senhora Maÿ dos 23. homens com capa da Se- 24. nhora das Dores, de quem 25. sou indigna Irmam pa- 26. ra ser enterrada no adro 27. da Igreja Matriz desta Fre- 28. guezia o mais proxima- 29. mente que for possivel 30. a entrada da porta princi- 31. pal da mesma Igreja, e que 32. o meo caixão seja preparado . 33. ..............................(falta uma linha)

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34. já tenho pronptos d’ antemão 35. para este fim, sendo con- 36. duzido o meo corpo em o di- 37. to caixão com a companha- 38. mento solenne levando em 39. frente a Cruz e mais objetos 40. que costumão servir em se- 41. melhantes occaziãoes efazen- 42. do se as encommendacãoes do 43. costume sem mais demons- 44. traçãoes que há dos signa- 45. es e toques de sino recom 46. mendados pelo rito da Igreja 47. em taes circunstancias= 48. Tambem he minha vontade 49. que se diga por minha al- 50. ma huma missa de corpo pre- 51. zente, e logo em seguida ma- 52. is hum oitavario déllas = 53. = Dezejo que o meo herdeiro 54. e testamenteiro faça todos 55. os esforços para que este 56. acto do meo desaparecimen- 57. to seja tão inapercebido 58. como foi a minha vida 59. o que muito lhe recomen- 60. do por que overdadeiro dó 61. só está nos corações sensiveis 62. e não em exterioridades de 63. representação esteril. De- 64. claro que sou filha legi- 65. tima dos meos fallecidos 66. Pais Joaquim Rodrigues

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67. Rodrigues Lopes e Francisca Xa- 68. vier de Jesús nascida e Bapti- 69. zada na cidade de Pouzo Ale- 70. gre, outra hora conhecida 71. por Freguesia de Pouzo Ale- 72. gre do Mandú désta Pro- 73. vincia de Minas Geraes, 74. em cuja Matriz si achava 75. o assento do meo Baptiste- 76. rio = Declaro que sou caza- 77. da com Antonio Felippe da 78. Silva ha de haver quarenta 79. seis annos, de quem não te- 80. nho serteza si hé vivo ou 81. morto por ter si auzen- 82. tado a vinte annos = Declaro 83. que tenho hum só filho 84. digo hum filho legitimo 85. de nome Miguel, unico 86. fructo existente déste 87. meo consorcio, ao qual 88. instituo por meo univer- 89. sal herdeiro de todos os 90. meos bens á recepção só- 91. mente da minha terça que 92. deicho departe para cer- 93. tos legados apontados nés- 94. te meo testamento = De- 95. claro que no valor do escra- 96. vo Manoel, pardo, que se- 97. paro para minha terça 98. deduzindo a computo da es- 99. molla que lhe faço de reis

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100. reis duzentos em prol da sua 101. liberdade ficará o resto per- 102. tencendo ao meo testamen- 103. teiro que acceitar este meo 104. testamento , o qual entrará 105. para o monte como rece- 106. bente, qualquer que seja 107. a quantia, e nelle si in- 108. deninizará indennizará 109. do que faltar para com- 110. pletar a mesma terça, 111. alem do premio abaixo 112. declarado= Declaro que 113. deicho ao Escravo Mano- 114. el pardo, que houve por 115. herança de minha falle- 116. cida Maÿ, avaliado em 117. dous contos de reis a quan- 118. tia de duzentos mil reis de 119. esmolla em adjutório 120. de sua alforria, ficando o res- 121. tante do seo valor perten- 122. cendo a minha terça co- 123. mo já disse = Declaro que 124. nos Autos de Inventa- 125. rios e Partilhas, que se pro- 126. cedeo por fallecimento 127. de minha May= Françis- 128. ca Xavier de Jezus existe 129. hum requerimento do 130. Senhor Juiz Municipal 131. do Termo, feito em meo 132. nome, e contra meo consenso

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133. consenso e sciencia offerecendo 134. toda a minha terça em prol 135. da liberdade do dito escravo, 136. isto por ter eu mostrado in- 137. tenção de ofavorecer com 138. qualquer quantia, mais 139. nunca com toda a terça 140. inteira embora si ache 141. o dito requerimento ina- 142. divertidamente assigna- 143. do por João Gonçalves 144. Lopes Sobrinho á meo ro- 145. go porque ignorando 146. o que nélle si continha 147. e pertubada com apresen- 148. ça do Senhor Juiz ........- 149. .............. e inadivertidamen- 150. te obedeci lhe quando 151. me ordenou que mandas- 152. se assignar o dito reque- 153. rimento contra o qual 154. protesto alto e bom som 155. por semelhante extorção, 156. que pretendem fazer em 157. detrimento de minhas des- 158. posições, e ultima vontade; 159. fallo do Autor de seme- 160. lhante requerimento= 161. Declaro que esse requeri- 162. mento não pode, e nem 163. deve prevalecer por não 164. se achar revestido de cir- 165. cunstancias indispensaveis

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166. indispensaveis a hum acto practi- 167. cado em boa fé, pois si assim 168. fora ter se hia feito e assig- 169. nado por alguém a meo 170. rogo em minha presença de- 171. pois de me ser lido, e mos- 172. trar me saptisfeita, e não 173. em minha ausencia fei- 174. to atropelado, e clandestina- 175. mente em casa do Senhor 176. Manoel Joaquim de Andra- 177. de para ser assignado co- 178. mo foi, em deversa paragem 179. em caza de minha finada 180. Maÿ sem saber o que nélle 181. se continha por me achar 182. como já disse pertubada 183. e por conseguinte affecta- 184. da mo meo moral= Ago- 185. ra porem que me acho 186. em socego de consiencia, 187. e destituída de affectos e 188. paixões terrenas, desejo e re- 189. comendo ao meo testa- 190. menteiro que requeira 191. e faça quanto antes 192. extrahir dos Autos o dito 193. requerimento, que não po- 194. de ter vigor em vista das 195. minhas desposições aqui 196. declaradas, e mesmo por 197. que nelle falta e faltou 198. sempre o concenso de minha

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199. minha vontade, que em tais cir- 200. cunstancias parece me dever ser 201. attendida= Declaro que devo ao 202. Divino Espirito Santo cincoenta 203. mil reis, e assim mais a Nossa 204. Senhora Maÿ dos homens vin- 205. te annos de annuaes entre 206. ella e São Francisco das Cha- 207. gas do tempo que era Juiz o fal- 208. lecido Superior Padre Jero- 209. nimo Gonçalves de Macedo 210. = Declaro que devo mais ao 211. Senhor Caetano Antunes Cin- 212. tra não sei quanto, e bem as- 213. sim ao Senhor Joaquim Fran- 214. cisco da Silva Souto, que tam- 215. bem não sei quanto, ao Se- 216. nhor Joze Manoel da Silva 217. e Oliveira Sobrinho cento e dezese- 218. te mil reis, ao Senhor Inocen- 219. cio Gomes Figueira oitenta 220. seis mil e quinhentos reis 221. = que anda tudo em trezen- 222. tos e trez mil e quinhentos 223. reis fora os que não sei as 224. quantias a cima declara- 225. das= Declaro ser minha von- 226. tade que fique os Escravos 227. Catharina Affricana destina- 228. da ao pagamento déstas di- 229. vidas; fora das quais nada 230. mais devo= Declaro que 231. alem destes dous Escravos

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232. Escravos tenho mais huma par- 233. te na Escrava Maria Francis- 234. ca de oitenta dous mil e no- 235. venta e oito reis e assim ma- 236. is Seicentos mil reis em ter- 237. ras alem de outros objectos 238. declarados no meo Formal 239. = Declaro que nomeio para 240. meo testamenteiro, e herdeiro 241. da minha terça em primeiro 242. lugar ao Senhor Inocencio 243. Gomes Figueira= em segun- 244. do lugar ao Senhor Joze 245. Antunes Cintra= e em terceiro 246. lugar ao Senhor Luiz 247. Alves Carrijo da Cunha, pela 248. muita confiança que ponho 249. na fé, probidade, intelligencia 250. e assiduidade de qualquer 251. déstes Senhores, e pela muita es- 252. tima e amisade com que sem- 253. pre elles me tratarão= Decla- 254. ro que concedo ao meo tes- 255. tamenteiro, a quem peço e 256. rogo si digne pelo amor de Deos 257. acceitar este meo testamento 258. para dar comprimento,= 259. A prazo de dous annos para 260. prestar contas de sua testa- 261. mentaria, cujo prazo será 262. contado a começar da da- 263. cta em que for por elle aber- 264. to o mesmo testamento, e te

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265. testamento, e terá de premio alem 266. da terça que lhe deixo mais ter- 267. zentos mil reis em renumeração 268. do seo trabalho= Declaro que o 269. meo testamenteiro ficará sen- 270. do egualmente o Tutor do 271. dito meo filho Miguel por 272. não si achar este em circuns- 273. tancias de poder administrar 274. os poucos bens, que lhe deixo, 275. pela falta que tem de senso 276. commum= e submetto esta 277. minha nomeação á appro- 278. vação do Digno Magistra- 279. do, cuja confirmação deverá 280. ser lhe requerida= Decla- 281. ro que o dito meo testamen- 282. teiro entrará na posse e ad- 283. ministração de todos os meos 284. bens logo depois do meo falle- 285. cimento, ficando egualmen- 286. te entregue do dito meo fi- 287. lho afim de zellar todos 288. os meos bens digo os seos 289. bens, tratar délle, ampara- 290. lo, e protegel-o como si fora 291. seo proprio Pay; sem já- 292. mais consentir que elle 293. padeça, ou lhe falte qual- 294. quer couza por falta de cui- 295. dados na sua conservação 296. =Declaro que como testa- 297. menteiro o Senhor Inocencio

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298. Inocencio Gomes Figueira, ou 299. em sua falta qualquer dos ou- 300. tros nomeados, cumprirá em tu- 301. do á risca o que aqui fica ex- 302. pressamente declarado= E 303. por esta forma tenho con- 304. cluido, e acabado este meo 305. testamento e despozição de 306. ultima vontade que por não 307. saber escrever pedia a Pedro 308. Gil de Oliveira Horta que 309. este por mim escrevesse e......... 310. pelo mesmo a meo rogo as- 311. signado. Fazenda do Atter- 312. radinho dezenove de Junho 313. de mil oitocentos sesenta 314. e quatro. Eu que fis a pe- 315. dido da Senhora Maria 316. Joaquina do Espirito San- 317. to assigno a rogo da mesma 318. por não saber escrever= 319. Pedro Gil de Oliveira Horta 320. =testemunha prezente Ma- 321. noel Honório Garcia= Tes- 322. temunha prezente Joaquim 323. Antonio de Moraes = Teste- 324. munha prezente Joze Alves 325. da Costa = Testemunha prezen- 326. te Joze Antonio de Moraes 327. Junior = Testemunha prezen- 328. te Joze da Costa Rodrigues

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