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ANDERSON JACOB ROCHA
A LÍNGUA, A HISTÓRIA E AS PRÁTICAS CARTORIAL E RELIGIOSA EM TESTAMENTOS PRODUZIDOS EM PASSOS NO
SÉCULO XIX
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2005
ANDERSON JACOB ROCHA
A LÍNGUA, A HISTÓRIA E AS PRÁTICAS CARTORIAL E RELIGIOSA EM TESTAMENTOS PRODUZIDOS EM PASSOS NO
SÉCULO XIX
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Língua Portuguesa, sob a
orientação do Professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO - 2005
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
DDDEEEDDDIIICCCAAATTTÓÓÓRRRIIIAAA
À Andréa Simão Rocha, minha esposa, dedico este trabalho.
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Ensino Superior de Passos - FESP, pela ajuda de custo.
Ao professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento, meu orientador e amigo,
pela disponibilidade e atenção.
Aos professores Doutores da Banca do Exame de Qualificação, João Hilton
Sayeg de Siqueira e José Everaldo Nogueira Júnior, pelas expressivas
sugestões dadas a nossa pesquisa.
Ao professor Doutor Luiz Fernando Fonseca Silveira, por me incentivar a
ingressar na pesquisa acadêmica.
Ao professor Mestre Antônio Theodoro Grilo, responsável pelo acervo do
Centro de Memória Estação Cultura de Passos, MG, pela amizade e pelo apoio
que possibilitou o acesso às fontes sobre a história de Passos.
Aos meus pais, irmão, sogros, cunhados, sobrinhos e afilhados, pelo apoio
constante.
À minha avó, Altina, e aos meus tios e primos, José Assis, Nilda Jacob,
Mônica, Marcelo, Itamar, Felipe e Lucas, pelo carinho e apoio em minhas idas
a São Paulo.
Aos professores Jorge Luís Costa, Nilton Conde, Mara Corrêa Senna e
Rosângela Aparecida Ribeiro Carreira, pela amizade e apoio.
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES,
pelo apoio financeiro.
RESUMO
A dissertação tem como tema um estudo da língua, da história e das
práticas cartorial e religiosa em testamentos produzidos na cidade de Passos,
Minas Gerais, no século XIX. Nossa pesquisa apóia-se na Historiografia
Lingüística, que se constitui em um arcabouço teórico-metodológico de
pesquisa, na medida em que se propõe explicar e descrever características da
língua e da história de uma comunidade, impressas em documentos escritos.
Propomos como objetivo geral examinar em testamentos produzidos em
Passos, em 1864, a língua, a história e as instâncias cartorial e religiosa pelas
quais se constituem alguns traços de memória social presentes naqueles
documentos. E como objetivos específicos, pretendemos identificar
características do português em uso àquela época e verificar o estatuto
jurídico-religioso dos testamentos selecionados.
A relação entre língua e história permite que o homem hodierno
reconheça a importância do saber contextual, já que a análise lingüístico-
histórica do documento se abre à reconstrução do passado do homem e da
língua, no mesmo instante em que nos oportuniza a compreendê-la à luz de
teorias atuais.
Os testamentos, utilizados como amostra, cujos testadores são João
Pimenta de Abreu e Maria Joaquina do Espírito Santo, estão arquivados no
acervo do Centro de Memória Estação Cultura em Passos, MG, e foram
analisados na perspectiva histórico-lingüística, conforme perpspectivas
apontadas por Konrad Koerner (1995, 1996), entre outros autores, revelando
marcas da língua portuguesa em uso àquela época, bem como indícios das
práticas cartorial e religiosa naquela sociedade. Nessa visão interdisciplinar,
característica essencial da HL, nossa pesquisa confirmou que a língua não
pode ser vista apenas sob o olhar de sua dimensão interna, mas faz-se
necessário olhá-la no contexto do clima de opinião da época em que o
testamento foi elaborado.
Pudemos perceber, também, que a prática testamentária era corriqueira
e que a cultura católica apostólica romana tinha presença marcante no
cotidiano da sociedade passense daquele contexto, haja vista a declaração
oficial dos testadores, ao declararem sua fé.
ABSTRACT
This dissertation has as a theme a study of the language, the history,
and the archival and religious practices in produced wills in the city of Passos,
Minas Gerais, in the nineteenth century. Our research is based on the Linguistic
Historiography, which consists of a theoretical-methodological framework of
research, as it proposes to explain and describe characteristics of the language
and history of a community, printed in written documents.
We propose, as a general objective, to examine in wills produced in
Passos, in 1864, the language, the history, and the archival and religious
instances in which some traces of the social memory presented in those
documents are constituted. And as specific objectives, we intend to identify
characteristics of the Portuguese language in use at that time and verify the
juridical-religious statute of the selected wills.
The relationship between language and history permits the modern man
to recognize the importance of the contextual knowledge, since the historical-
linguistic analysis of the document opens the reconstruction of the past of the
man and his language, whereas it gives us the opportunity to understand it due
to recent theories.
The wills used as a sample, whose testators are João Pimenta de Abreu e
Maria Joaquina do Espírito Santo, filed in the patrimony in the Memory Center
“Estação Cultura” in Passos, MG, were analyzed on historical-linguistic
approach, according to perspectives pointed by Konrad Koerner (1995,1996),
among other writers and revealed marks of the Portuguese language in use at
that time as well traces of archival and religious practices in that society. Under
this interdisciplinary vision, essential feature of Linguistic Historiography, our
research confirmed that the language can not be seen just under the look of its
internal dimension, but it is necessary to look at it in the context of the
atmosphere of opinion at the time that the will was elaborated.
We could also realize that the will practice was common and that the
Roman Catholic culture had a strong presence in the everyday life of the society
in Passos in that context, considering the testators’ official declaration, when
they declared their faith.
SUMÁRIO
CAPÍTULO I ....................................................................................................... 6
A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA: CONCEPÇÃO E PRINCÍPIOS................ 6
1.1 PARADIGMA NA CIÊNCIA ................................................................................ 6
1.2 LINGÜÍSTICA COMO CIÊNCIA .......................................................................... 9
1.3 A HISTÓRIA COMO CIÊNCIA.......................................................................... 12
1.4 O SURGIMENTO DA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA NO INTERIOR DAS CIÊNCIAS DA
LINGUAGEM, SEU CONCEITO E PRINCÍPIOS .......................................................... 16
1.4.1 A metalinguagem em Historiografia Lingüística ................................ 19
CAPÍTULO II .................................................................................................... 22
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E INTELECTUAL................................... 22
2.1 O BRASIL NA 2ª METADE DO SÉCULO XIX ..................................................... 22
2.1.1 Processos econômicos, escravistas e de imigração ......................... 22
2.1.2 O pensamento católico na sociedade brasileira na 2ª metade do
século XIX .................................................................................................. 27
2.2 PASSOS NO SÉCULO XIX ............................................................................ 29
2.2.1 Primeiros passos............................................................................... 29
2.2.2 De vila a cidade................................................................................. 32
2.3 CONCEPÇÕES LINGÜÍSTICAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX ............................... 38
2.4 A LÍNGUA PORTUGUESA NA 2ª METADE DO SÉCULO XIX................................ 40
CAPÍTULO III ................................................................................................... 51
O TESTAMENTO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO-LINGÜÍSTICO............ 51
3.1 ASPECTOS JUDAICO-GRECO-ROMANOS DOS TESTAMENTOS ........................... 51
3.1.2 A influência da religião católica, a concepção de morte e a concepção
religiosa presentes nos testamentos do século XIX. .................................. 52
3.2 O ESTATUTO JURÍDICO NOS TESTAMENTOS DO SÉCULO XIX........................... 56
3.3 O TESTAMENTO COMO DOCUMENTO JURÍDICO NO SÉCULO XXI....................... 59
3.4 O DOCUMENTO EM HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA......................................... 62
3.4.1 O documento como fonte na investigação científica ......................... 62
3.4.2 Fonte primária, fonte secundária, documento oficial e documento
marginal...................................................................................................... 63
3.5 IDENTIFICAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CORPUS........................................ 65
3.5.1 João Pimenta de Abreu .................................................................... 65
3.5.1.1 O testamento de João Pimenta de Abreu.................................... 66
3.5.2 Maria Joaquina do Espirito Santo...................................................... 70
3.5.2.1 O testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo .................... 71
3.6 O TESTAMENTO E A AXIOLOGIA DE SUA FORMA TEXTUAL ................................ 73
3.6.1 A organização do testamento passense oitocentista......................... 73
3.6.2 A tematização do testamento ............................................................ 86
3.6.3 O campo lexical dos testamentos...................................................... 91
3.6.3.1 Relações de oposições ............................................................... 91
3.6.3.1.1 Pares antonímicos................................................................. 91
3.6.3.1.2 Associação semântica em torno da mesma palavra ............. 93
3.6.3.2 Relações de associações............................................................ 95
3.6.3.3 Relações de identidade ............................................................... 98
3.7 MARCAS ORTOGRÁFICAS DOS TESTAMENTOS ............................................. 100
3.8 OS TEMPOS E OS MODOS VERBAIS DOS TESTAMENTOS ................................ 108
3.9 CARACTERÍSTICAS PROSÓDICAS DOS TESTAMENTOS................................... 112
3.10 OUTRAS QUESTÕES LINGÜÍSTICAS ........................................................... 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 120
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 123
ANEXOS ........................................................................................................ 128
ANEXO A..................................................................................................... 129
1. Testamento de João Pimenta de Abreu. .............................................. 129
2. Transcrição do testamento de João Pimenta de Abreu........................ 129
ANEXO B..................................................................................................... 140
1. Testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo. ............................... 140
2. Transcrição do testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo. ....... 140
1
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como tema um estudo da língua, da história e das
práticas cartorial e religiosa em testamentos produzidos na cidade de Passos,
Minas Gerais, no século XIX. Nossa pesquisa apóia-se na Historiografia
Lingüística (doravante HL) que se constitui como um arcabouço teórico-
metodológico de pesquisa e propõe-se a explicar e descrever características da
língua e da história de uma comunidade, impressas em documentos escritos.
Por meio de princípios norteadores da HL, objetivamos examinar em
testamentos a língua, a história e as instâncias cartorial e religiosa pelas quais
se constituem alguns traços de memória social presentes naqueles
documentos produzidos na segunda metade do século XIX, em Passos, MG.
Essa relação entre língua e história permite que o homem hodierno reconheça
a importância do saber contextual, já que lhe são propostas análises
lingüístico-históricas reconstrutoras do passado, possibilitando a oportunidade
de compreendê-las à luz de teorias atuais.
Os testamentos, que utilizaremos como amostra, estão arquivados no
acervo do Centro de memória Estação Cultura em Passos, MG, e serão
analisados na perspectiva histórico-lingüística, podendo revelar, dessa
maneira, marcas do português em uso àquela época, bem como indícios das
práticas cartorial e religiosa naquela sociedade. Nessa visão interdisciplinar,
característica essencial da HL, o trabalho historiográfico sobre a língua delineia
a associação de várias áreas do conhecimento, tendo em vista que assumimos
a língua como fato social. Assim, há a possibilidade, no âmbito histórico, de
olhar o clima de opinião da época estudada, rechaçando, por conseguinte, a
idéia de que o estudo da língua se baseia apenas na verificação de dados
gramaticais, internos ao documento. Nesse sentido, percebemos que algumas características lingüísticas,
cartoriais e religiosas da segunda metade do século XIX poderão ser
identificadas por meio da relação língua e história, uma vez que o testamento
produzido naquele momento apresenta aspectos de organização jurídica e
religiosa que o constitui.
2
Os testamentos a serem analisados, cujos testadores são João Pimenta
de Abreu e Maria Joaquina do Espirito (sic) Santo, foram elaborados em 1864.
Nessa época, o conceito que o Brasil tinha de testamento estava determinado
no Código Civil português. Assim, será possível identificar a organização desse
documento que se constitui pelo despojamento de bens materiais a
destinatários juridicamente constituídos, mesmo que os bens do testador
fossem parcos. A garantia de uma morte feliz dependia do arrependimento que
o testador revelava naquele ato oficial. Nesse processo, a religião se configura
numa ação social que expressa, de modo particular, o modus vivendi do povo
sul-mineiro. Ademais, a conduta eclesial sul-mineira era influenciada, de forma
bastante explícita, pelo bispado de São Paulo, tendo em vista a implantação de
várias freguesias (paróquias) e, como conseqüência, vários padres naquela
região. O intuito de desvelar dados de usos lingüísticos do Brasil, da memória
social e das características cartorial e religiosa da região, possibilita-nos
depreender dados que lhe são peculiares.
A HL, por meio de princípios metodológicos propostos por Konrad
Koerner (1995), além dos direcionamentos apresentados por Júlio Ribeiro
(1885), Régine Robin (1977), Ciro Flamarion Cardoso & Ronaldo Vainfas
(1997) e Mário Eduardo Viaro (2004) toma o documento como objeto de
análise. Apreendem-se, nessa perspectiva, os testamentos, como uma das
possibilidades de recuperação de aspectos da sociedade passense da
segunda metade do século XIX, abertos à interpretação. Vale ressaltar que um
estudo como esse possibilita-nos, à luz da orientação teórico-metodológica da
HL, conhecer aspectos daquela sociedade que se configura histórica e
culturalmente naqueles documentos.
O caráter científico da HL tem como fonte a organização dos fatos
históricos e lingüísticos, a fim de que se crie uma relação estreita entre eles.
Cabe ao historiógrafo da língua essa função, pois, sabedor dos conhecimentos
lingüísticos e históricos, deve propor a aproximação dessa relação com
pesquisas pertencentes às ciências sociais, na medida em que essas
contribuirão para o reconhecimento de valores sociais e lingüísticos que se
cristalizaram na sociedade, bem como possibilitarão novas descobertas que
serão legitimadas pelas mesmas, pois são ciências constituídas.
3
As considerações feitas acima confirmam que os testamentos escritos
naquela época, de modo especial, os que selecionamos, podem revelar, por
meio da análise lingüística e histórica, aspectos da língua portuguesa usada
naquela comunidade e resgatar práticas culturais do homem passense,
naquele contexto, propiciando novas visões e proposições à comunidade
contemporânea. A possibilidade dessa proposta se justifica dada a relevância
da HL na análise documental. K. Koerner (op. cit.: 35) afirma:
Os historiógrafos da língua devido à natureza particular do objeto de investigação da Historiografia Lingüística (HL), as teorias da linguagem (e também as teorias da Lingüística) e sua transformação no tempo, devem encontrar sua própria metodologia e epistemologia de pesquisa, e não podem esperar que seja possível aplicar métodos e intuições de outros campos diretamente em seus temas de investigação.
Na relação da língua e história, percebe-se que o conhecimento dessas
duas realidades resulta na possibilidade de entendimento do homem e da
língua, que se manifesta dinâmica em sua trajetória de transformações e
permanências. Desse modo, é necessário verificar, no caso dos testamentos
da época delimitada, o material lingüístico neles impresso, a fim de que
possamos desvelar aspectos da organização sócio-econômico-cultural
constituídos no período escolhido. A par disso, sabemos que o historiógrafo da
língua deve estar atento às teorias lingüísticas e suas fontes de transmissão,
haja vista a mudança constante que ocorre por meio do tempo.
Dessa maneira, será necessário utilizar o princípio da contextualização,
para que o processo de análise e interpretação do documento possa alcançar,
pelos estudos do clima de opinião de um recorte temporal do século XIX,
resultados que apontarão marcas lingüísticas portadoras de ações da língua
que se manifesta, também, como promotora da interação entre o indivíduo e a
sociedade. Por ele, encontraremos as evidências que possibilitam a
compreensão de alguns traços sociais daquele contexto, já que, segundo K.
Koerner, toda e qualquer idéia lingüística desenvolve-se a partir de outras
correntes intelectuais, principalmente, as de seu tempo.
4
É preciso salientar que, pela interpretação dos testamentos,
pretendemos reconstruir aspectos histórico-sociais presentes nos documentos
testamentais passenses. Para isso, é preciso dar ênfase ao conhecimento
lingüístico materializado neles, adotando uma visão crítica em relação às
continuidades/descontinuidades, à questão da metalinguagem como recurso e
outros problemas particulares, pois segundo K. Koerner, os historiógrafos da
língua têm muito trabalho para fazer antes que a HL se torne uma Historiografia
das Ciências da Linguagem.
K. Koerner (1995) diz que o quadro geral da teoria sob investigação,
assim como a terminologia usada no texto, deve ser definida internamente, e
não em referência à doutrina lingüística moderna. Essa consideração pode ser
chamada de princípio da imanência que propiciará a compreensão dos usos
lingüísticos empregados nos testamentos da segunda metade do século XIX.
A partir desses princípios surgirá a necessidade de esclarecer as
transformações lingüísticas, para que a sociedade moderna possa obter a
compreensão plena do estudo feito. Segundo K. Koerner esta ação é chamada
de princípio de adequação, isto é, faremos a aproximação entre o vocabulário
técnico dos referidos documentos e a terminologia atual. Para delinear, de forma clara, os nossos objetivos, essa dissertação será
organizada em três capítulos:
No capítulo I, apresentaremos o processo epistemológico da H L, cujos
princípios nortearão as análises que serão empreendidas nos documentos
selecionados.
No capítulo II, explicitaremos o contexto histórico-social-político-religioso
do Brasil, do sul de minas e de Passos. Na apresentação do clima intelectual
da segunda metade do século XIX, nossa preocupação será com as
concepções lingüísticas vigentes no Brasil, bem como com o uso da Língua
Portuguesa.
No capítulo III, apresentaremos a concepção de testamento com seus
estatutos jurídico-religiosos. Para isso, por meio da análise de sua organização
e seus temas, verificaremos a constituição jurídica e religiosa do testamento. A
partir disso, serão empreendidas análises que tratam de suas relações de
oposições, da associação semântica, de relações de associações, relações de
5
identidade, marcas ortográficas, prosódicas, verbais, semânticas e
etimológicas.
Por fim, seguirão as considerações finais, a bibliografia e os anexos.
6
CAPÍTULO I
A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA: CONCEPÇÃO E PRINCÍPIOS
A atividade historiográfica que ambiciona compreender os movimentos em história da ciência, presume, inevitavelmente, uma atividade de seleção, ordenação, reconstrução e interpretação dos fatos relevantes (história rerum gestarum) para o quadro de reflexão que constrói o historiógrafo. Não se trata, pois, de incluir quaisquer fatos passados, só por serem passados.
(Cristina Altman)
1.1 Paradigma na ciência
Preocupado com as tendências paradoxais da ciência, Boaventura de
Sousa Santos (2003), a quinze anos do final do século XX, refletiu sobre a
importância do ser humano fazer indagações de cunho pueril. Para ele, as
coisas simples são de fácil compreensão, mas são profundas e, por isso,
conseguem iluminar os caminhos indecisos do homem. O autor refere-se,
ainda, sobre as questões simples, mas intensas, formuladas por Jean-Jacques
Rousseau que, entre outras, fez a seguinte pergunta: o progresso das ciências
e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?,
B. de S. Santos (op.cit.:16).
B. de S. Santos afirma que o paradigma dominante entrou em crise
porque seu objetivo é tratar de um fenômeno mecânico isolado, em que toda
7
forma de conhecimento pretende ser utilitária e funcional em detrimento daquilo
que nos torna capazes de compreender e dominá-la e, desse modo,
transformá-la. Para superar essa crise é preciso que o novo paradigma seja
social, além de científico. Para isso, é necessário deixar de lado as posições
positivistas que, ainda, teimam ser absolutas desde sua ascensão no século
XIX.
Thomas Samuel Kuhn (1992) propôs um novo olhar no progresso da
ciência que, num processo contraditório, consegue revolucionar o pensamento
científico e convencer a comunidade ligada a uma determinada área a romper
com posições tradicionais passíveis de reformulação. Nessa perspectiva, este
cientista idealizou o conceito de paradigma pelo qual a comunidade científica
segue realizações do ato pesquisador, que são universalmente conhecidas e
fornecem problemas e soluções modelares. Para ele, o paradigma só é
substituído pelos profissionais de determinada área de conhecimento, quando
não consegue resolver problemas pesquisados. Assim, um novo paradigma
surge a partir de crises provocadas pelo paradigma anterior. T. S. Kuhn (op.
cit.: 116) salienta que:
A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações. Durante o período de transição haverá uma grande coincidência (embora nunca completa) entre os problemas que podem ser resolvidos pelo antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo. Haverá igualmente uma diferença decisiva no tocante aos modos de solucionar os problemas. Completada a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção da área de estudos, de seus métodos e de seus objetivos.
Como toda e qualquer ciência, a Lingüística, por meio de seu
cientificismo, pretende produzir conhecimento em sua investigação. Para isso,
8
ela busca relações associativas que determinem uma visão dialética na
investigação da língua e que provoquem o aparecimento de novos paradigmas.
Segundo Enrique Alcaraz Varó (1990), uma investigação científica, no
nosso caso, uma pesquisa sobre o objeto língua, deve ficar atenta à
metodologia do paradigma em que se apóia tal tarefa; no que vai ser
investigado; no fim que se pretende alcançar e no propósito de se fazer uma
pesquisa lingüística. A língua é objeto de estudo da Lingüística que, por sua
vez, quer dar conta de descrever os fenômenos e os termos lingüísticos, tal
como são diante do pesquisador. Dessa forma, podemos considerar que é por
meio da uniformidade de idéias e crenças que a comunidade científica entende
um paradigma em seu sentido lato. Mas, em todo paradigma há variantes
particulares que são conhecidas como escolas. Cabe à Lingüística, do ponto de
vista descritivo, a refutação ou ratificação de conceitos e modelos que
fundamentam determinada análise das línguas. Assim, E.A. Varo (1990) aponta
que, após a confirmação desses conceitos e modelos lingüísticos, realizada
pelos estudos da Lingüística descritiva, temos, então, um paradigma
consolidado que se instaura como referência e que se caracteriza a partir de
um pensamento teórico básico, a fim de proporcionar à comunidade científica
critérios para: marcar novas metas que estimulem a formulação de teorias
enriquecedoras; selecionar fatos relevantes que se convertam em problemas
de investigação; e propor soluções aos problemas anteriores dentro do
paradigma.
Desse modo, todo paradigma proposto num determinado momento pode
desencadear uma reação contrária a um outro paradigma ou sofrer alguma
modificação formulada por um outro teórico. Por exemplo, a gramática gerativo-
transformacional de Noam Chomsky surgiu como forte crítica ao estruturalismo
bloomfieldiano e, o estudo lingüístico concebido apenas por meio da frase é
substituído por uma lingüística textual, tendo em vista o novo entendimento dos
teóricos em relação ao texto, que foi considerado uma unidade superior à frase.
Assim, aconteceu uma ruptura que possibilitou o começo de uma perspectiva
teórica mais funcional. Percebeu-se, então, que a Lingüística Textual tinha em
seu escopo a noção de que a gramática da frase não consegue estabelecer e
direcionar tudo aquilo que se encontra no texto.
9
No estudo da Lingüística, como em qualquer outra ciência, não
podemos conceber a idéia de que o processo investigativo se esgota nos
paradigmas da lingüística estruturalista, gerativista e pragmaticista. A
investigação histórica também se torna importante, porque se abre ao diálogo
com várias outras áreas, entre elas: a sociolingüística, a psicolingüística, a
filosofia da linguagem, a neurolingüística, a historiografia lingüística etc. As
transformações que um paradigma lingüístico sofre ao longo da história são
benéficas, pois estimulam a análise de um mesmo fenômeno de diferentes
ângulos.
Partimos, então, do pressuposto de que numa investigação científica, a
relação entre ciências distintas é indispensável, pois não podemos considerar
que as teorias sejam intocáveis e absolutas. Karl Popper (apud E.A. Varo
(1990: 16) confirma esta afirmação quando diz: aunque la Idea de verdad sea
absolutista, no podemos pretender alcanzar uma certeza absoluta: somos
buscadores de la verdad pero no sus poseedores.
Assim, o investigador deve buscar respostas para aquilo que ainda é
parcialmente conhecido. Para isso, faz-se necessária a relação interdisciplinar
(pluridisciplinar) que estabelece relações entre dois ou mais ramos de
conhecimento, para que eles possam apontar a formulação de um novo
paradigma. As ciências, elencadas para tal investigação científica, devem estar
fortalecidas em seu aparato metodológico e ter como propósito um objeto
definido. Para que haja a construção de um novo conhecimento, frente a um
novo paradigma e naquilo que propomos neste trabalho, focalizaremos duas
ciências nesta configuração teórica, que, com certeza, são os vieses dessa
investigação científica: a Lingüística e a História. Essas ciências darão
condições para o surgimento da H L.
1.2 Lingüística como ciência
A epistemologia da ciência sustenta um processo axiológico, quando
adentra nos estudos humanísticos. Todavia, faz-se necessária a ação de dar
cabo àquela postura dicotômica entre sujeito e objeto, e sem essa ação, a
compreensão do mundo fica mais difícil. Essa nova ação diante do
10
conhecimento resultará naquilo que T.S. Kuhn intitula de revoluções científicas,
que não podem ser cumulativas, já que o paradigma velho é total ou
parcialmente substituído por um novo. Quando o homem colhe dados, teorias e
utiliza métodos constitui uma área de conhecimento em ciência. Em
decorrência, ela pode estabelecer, então, um caráter combinatório ou isolado a
fim de firmar-se em seu aparato científico-metodológico.
Por causa disso, Cristina Altman (1998: 27) indica quais foram as
contribuições que o trabalho de T. S. Kuhn propiciou à Lingüística:
Na visão kuhniana de progresso científico, cada nova etapa de evolução implica em ruptura – de teorias, métodos, seleção de problemas e critérios de solução de problemas – como o conhecimento anterior. Ao invés de somente continuidade e acumulação, haveria, de tempos em tempos, períodos de descontinuidade e ruptura responsáveis pela formação de um novo paradigma, incomparável e incomensurável em relação ao que o precedeu. Assim, na conhecida – e controvertida – distinção kuhniana entre períodos de ‘ciência normal’ e períodos de ‘ciência extraordinária’ (Kuhn 1987, Toulmin 1979, Watkins 1979), a Lingüística contemporânea se encontraria, na melhor das hipóteses, em pleno estado de crise, à procura de um novo paradigma.
Nessa ótica, o aspecto historiográfico da Lingüística se entrou em crise
quando observou que o seu modelo de ação – registro de fatos passados –
encontrava-se obsoleto. Por isso, desbravou um caminho de concepção
diferente por meio da HL, que abarcou princípios metodológicos que ajudaram
a ampliar o campo da Lingüística como ciência.
Em nossos dias, não há mais dúvidas quanto ao caráter científico da
Lingüística. Émile Benveniste (1989:30) diz que a Lingüística recomeçou e se
reengendrou a si mesma várias vezes e, por isso, ela engloba as ciências da
linguagem como a gramática, a filologia, a fonética etc. Parafraseando Mortéza
Mahmoudian (1982), podemos dizer que a Lingüística é a ciência da
linguagem, porém não consideraremos um lingüista aquele que domina vários
idiomas e os usa apenas para a prática social. Nem podemos considerar a
Lingüística como ciência, quando atribuímos a ela o caráter de normatização. É
11
por meio do rigor científico que o pesquisador procura compreender o objeto
língua.
Esse processo demorou a ser constituído porque foi preciso obter o
reconhecimento da Lingüística como área científica. Isso não implica que os
debates sobre o objeto e método dessa ciência estejam fechados. Na medida
em que os lingüistas procuram mirar no objeto e na metodologia da Lingüística,
há o surgimento de novas experiências e conhecimentos. Para confirmar essa
tendência, faz-se necessária uma reflexão sobre a visão da língua como
sistema, fato que levou Ferdinand de Saussure a empreender um estudo
descritivo da língua. Apesar de ser reconhecido somente em 1916, por meio da
publicação póstuma do Curso de Linguística Geral, F.de Saussure já revelava,
quarenta anos antes, portanto, ainda no século XIX, o caráter estruturalista do
seu objeto de estudo, ou seja, a langue em oposição a parole e forma em
oposição à substância. A comprovação da cientificidade da Lingüística se dá
quando August Schleicher (1869: 5-7) diz que, em geral, as afirmações que
Charles Darwin fez sobre a criação animal podem ser atribuídas aos
organismos da linguagem e pede aos naturalistas a merecida atenção a esse
campo de pesquisa, pois não haviam feito isso até aquele momento. A.
Scheicher preocupa-se com linguagem, quando postula o seguinte:
Não me refiro aqui exclusivamente à investigação fisiológica dos vários sons da língua, um estudo que fez progresso considerável nos últimos tempos, mas também à observação e aplicação das variedades lingüísticas no seu significado para a história natural do homem. E se essas variedades lingüísticas formassem a base para um sistema em relação ao genus homo singular? Não é a história da formação e progresso da linguagem o aspecto principal do desenvolvimento da humanidade? Tanto assim que um conhecimento da relação lingüística é absolutamente requisito para qualquer pessoa que queira obter noção sobre sua natureza e existência do homem... ...As línguas são organismos da natureza; nunca foram dirigidas pela vontade do homem; elas surgiram e se desenvolveram de acordo com leis explícitas; envelheceram e morreram.
12
Nessa perspectiva, A. Schleicher não vê nenhuma diferença entre a
ciência da linguagem e outras ciências da natureza, porque aquela está sujeita
a fenômenos que encerramos sob o nome de “vida” e o seu método é o mesmo
de qualquer ciência natural.
Ao caracterizarmos a HL como uma ciência pluridisciplinar, na medida
em que engloba outras áreas de conhecimento, o lingüista, isto é, o
historiógrafo da língua deve comprovar um conhecimento “quase”
enciclopédico, pois, ao mesmo tempo em que ele precisa ser dotado de um
arcabouço teórico-lingüístico, necessita ter uma visão geral dos fatos históricos,
para que a pesquisa delineada possa abarcar o clima de opinião cristalizado no
documento escolhido.
O objetivo da Lingüística Geral é linguagem humana e sua perspectiva é
unidisciplinar. Quando a Lingüística se associa à História e a outras ciências,
torna-se pluridisciplinar e, dessa parceria se constitui a HL que, por sua vez, se
apropria dos recursos metodológicos dessas diferentes áreas de
conhecimentos, para consolidar seu referencial.
A HL confirma-se como ciência, porque tem a língua como prática social
e, ainda, pode ser uma teoria utilizada por meio de várias perspectivas de
abordagem, tendo em vista que pode ser tomada como um reflexo do
comportamento do homem no contexto sociocultural. A língua muda porque
está a serviço do homem e configura-se como fato social. Se não mudasse, ela
morreria. É por isso que a HL assume a língua, no dizer de Edward Sapir
(1969) como um valioso instrumento de uma dada cultura.
1.3 A História como ciência
Apesar de haver um processo de atenuação entre ciências da natureza
e ciências humanas e sociais, Frédéric Mauro (apud José M. Amado Mendes:
1993) considera que, ainda, há diferença entre elas, pois, para ele, o
determinismo social, a liberdade humana, a dificuldade de repetir as
experiências, entre outras coisas, possibilitam a separação dessas ciências. A diferença marcante, no caso das ciências da natureza, se dá no
método. Seus objetos são analisados pelo método experimental, ao passo que,
13
as ciências sociais precisam utilizar métodos diversificados pela característica
de sua própria natureza. No entanto, não se pode considerar que determinado
conhecimento científico persevere isoladamente, pois todos os tipos de
conhecimento têm o objetivo de focalizar o homem e o mundo. Esse foco exige
uma relação entre os vários ramos do conhecimento científico para sua melhor
compreensão. B. S. Santos (op. cit.: 38) corrobora esta afirmação, dizendo que:
A ciência social será sempre uma ciência subjectiva e não objectiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas acções, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos das correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjectivo, descritivo e compreensivo , em vez de um conhecimento objectivo, explicativo e nomotético.
A História se constitui uma ciência autônoma no momento em que define
um aparato epistemológico que, por sua vez, se realiza quando há a eleição do
objeto de estudo e seus procedimentos. Nessa perspectiva, a História revela-se
uma ciência, já que seu objeto de estudo é o homem em sociedade. Edward H.
Carr (1961) alerta sobre a importância de considerarmos a História como
ciência, pois ela estuda aquilo que é geral dentro do singular. Com isso,
podemos partir do procedimento de estudo da micro-história e elencar um
actante de determinado contexto e relacioná-lo a fatos que ocorreram no
período pesquisado. O estudioso lembra, ainda, que o estudo da História
permite compreender melhor o presente, haja vista a possibilidade de observar
o enfoque do historiador, que nos fornece condições para analisar um fato
histórico e tê-lo como guia para ações futuras. Contudo, dentro do pensamento
idealista de Benedeto Croce (apud Daniel Sousa, 1982), não existe história
quando há apenas uma descrição do passado. Quando isso acontece, trata-se
de crônica, significando, simplesmente, um relato de acontecimentos, que são
registrados por ordem cronológica, sem apresentar, todavia, nenhuma relação
de conexão. Podemos, então, considerar a legitimidade da ciência História,
14
quando os fatos são tratados de forma teórica e passíveis de comprovação. D.
Sousa (op. cit.: 50) diz que:
Na verdade, falar da história como ciência é supô-la fundamentalmente um sistema de elementos inter-relacionados e interdependentes, sobretudo no que respeita à definição precisa de uma teoria geral de orientação, de um objecto próprio e de uma metodologia específica, nos termos em que nos parece que já desenvolvemos. A teoria geral que a história deve apresentar, como qualquer ciência, deve não só consistir na fonte própria dos princípios que orientam a sua investigação e dos que constituem a sua metodologia específica. Claro que a determinação da especificidade do próprio objecto da história se identifica com a sua teoria geral de orientação.
Assim, como já dissemos anteriormente, temos a interdisciplinaridade.
Por ela, a relação entre as áreas do conhecimento acontece num grau mais
elevado que, por meio de um conjunto de processos científico-metodológicos,
possibilita a resolução de problemas existentes no mundo.
J. M. A. Mendes destaca alguns pontos das conceituações sobre
História apontadas por Marc Bloch e Georges Lefebvre, respectivamente.
Aquele autor nos admoesta ao relatar que M. Bloch dá preferência ao coletivo,
ou seja, aquilo que é individual não pode ajudar na conceituação sobre
História, pois o seu objeto é o homem em sociedade. Refere-se, ainda, o
estudioso a outro aspecto de M.Bloch que é a dimensão temporal da História.
Na investigação histórica, as categorias de tempo e espaço tornam-se
imprescindíveis, já que estão presentes explicitamente ou implicitamente no
estudo de qualquer tema.
G. Lefebvre (apud J. M. A.Mendes: 1993) identifica a História com a
memória do gênero humano, também chamada a memória coletiva. Isto
significa que, para fortalecer a identidade de uma sociedade, é preciso atribuir
importância à história dela. Para ele, em história se processa uma filtragem dos
eventos com base na sua significância, mas J. M. A. Mendes chama a atenção
sobre o fato de que pode haver uma reinterpretação ou descoberta de novas
15
fontes, dotadas de uma nova metodologia, que podem mudar o olhar do
historiador sobre a significância dos acontecimentos. Quando a história é vista sob uma perspectiva científica, ou seja, se
partimos da ratificação de que história é uma ciência, afirmam os historiadores
que ela somente se constituirá como tal, observando o seu objeto de pesquisa:
o fato histórico. Segundo Jean Glénisson (1983), o fato histórico é o registro de
um acontecimento que se apóia numa autenticidade indiscutível, porque se
revela importante instrumento para os estudos historiográficos. O
acontecimento se diferencia do fato histórico, pois esse pode repetir-se.
Os acontecimentos tornam-se fatos históricos porque todos são
elementos da realidade. No instante em que o historiador mostra interesse
científico por determinado acontecimento e o descreve, essa ação o torna um
fato, pois é interpretado à luz de correntes ideológico-metodológicas do
pesquisador. Desse modo, a história aponta os acontecimentos, que são
irrepetíveis, e o historiador, por sua vez, escolhe um indivíduo de um
determinado contexto e o interpreta. Esta escolha não acontece por acaso, pois
todo grupo social expõe sua identidade num documento qualquer e quem o
representa é alguém que exerceu alguma liderança na comunidade. J.
Glénisson (op.cit.:127 ), esclarece isso, quando afirma que o fato histórico é um
fato social e sobre a importância do fato, diz o seguinte:
...um fato pode ser considerado como de importância histórica quando produziu conseqüências.Esclarecemos imediatamente, por preocupação, que todos os fatos têm as suas, mas que estas são mais ou menos consideráveis numa escala humana, submetida, de resto, a uma constante revisão... Não basta que um fato tenha verdadeiramente existido numa época anterior para que sua existência seja histórica. É preciso, ainda, que tal existência se tenha manifestado. A importância, frente à história, de um texto inédito durante muito tempo é nula, até o dia de sua publicação.
Está claro para nós que a mera existência do documento, por si só, não
traduz a importância do fato histórico. É o historiador quem deve dizer se tal
fato existe ou não no objeto material da pesquisa, ou seja, no documento. Se o
16
ato histórico-investigador conseguir eleger, como objeto de estudo, o homem
em sociedade, teremos, assim, constatado a autonomia da história como
ciência, pois o homem se revela, quando diz ou escreve algo.
Conforme Jacques Le Goff (apud E.H. Carr, 1961), as técnicas, os
métodos e a necessidade de se estudar História são comprovações de que ela
é e deve ser uma ciência. Dessa maneira, a História apresenta-se de modo
diferente das ciências exatas; nela há uma complexidade mediante a sua
incidência sobre o passado. Isso acontece porque a experimentação e o
registro direto são impossíveis. Para se obter um conhecimento histórico são
necessários outros fatores que intermedeiem todas as conseqüências inerentes
a tal fato. J. Glénisson (1993) conceitua a História, afirmando que seu objeto é
a ação do homem do passado, e que é verificada por meio de metodologia
analítica e interpretativa dos documentos ou indícios intelectuais perpetuados.
É por meio da intersubjetividade que a ciência histórica adquire um
caráter de objetividade, tendo em vista que a interpretação do historiador deve
desprezar os aspectos pessoais para que o trabalho científico seja válido e
sancionado. Nesta perspectiva, John Dewey (apud J. M. A. Mendes, 1993:17)
ratifica esta afirmação da seguinte forma: ser intelectualmente objetivo é
descontar e eliminar os fatores meramente pessoais nas operações pelas quais
se chega a uma conclusão.
Há, ainda, a necessidade de reconhecer a singularidade do
acontecimento histórico. Esse reconhecimento não impede a ocorrência de
acontecimentos com caráter de regularidade e semelhança. Com isso, mesmo
com o complexo processo paradoxal em que o homem se encontra no mundo,
seja individualmente ou em grupo, não se pode negar tendências e
comportamentos relativamente constantes.
1.4 O surgimento da Historiografia Lingüística no interior das ciências da linguagem, seu conceito e princípios Segundo Ricardo Cavaliere (2000) a perspectiva histórica em que se
desenvolveram os estudos da linguagem humana no século XIX foi a maior
inovação que o plano lingüístico poderia receber. Até aquele momento, os fatos
17
passados eram mencionados apenas numa visão de características superficiais
e, portanto, apenas narradoras e estáticas. A partir disso, as línguas
começaram a ser estudadas desde suas origens e avançando na direção de
sua continuidade inerente. No entanto, esse processo animador e crescente
em torno das mudanças da língua foi aos poucos se deteriorando por conta das
progressões da tecnologia no limite do século XIX e no limiar do século XX.
Segundo M. E. Viaro (op. cit.: 12), na Lingüística, os estruturalistas já não se
preocupam com a história, como faziam Benveniste, Jakobson ou mesmo
Saussure. Assim, em meados do século XX, surge a teoria gerativista, de
Chomsky, cuja abordagem não privilegia os estudos históricos da língua,
preocupando-se tão somente com a formação de sentenças lingüísticas que o
indivíduo realiza apoiado em outras sentenças. Não estamos desprezando,
porém, a importante contribuição que essa e outras correntes, o estruturalismo,
o pragmaticismo, por exemplo, deram para a Lingüística, mas não podemos
enfatizar apenas os fenômenos das línguas ao redor de si mesmas em
detrimento de seus estudos históricos. Nessa perspectiva, a HL com o seu
caráter pluridisciplinar, apresenta, no âmbito de sua cientificidade, o elo que
podemos fazer frente aos estudos histórico-contextuais e, principalmente, dos
estudos lingüísticos.
A partir de perspectivas indicadas por Konrad Koerner (1995) sobre o
arcabouço teórico-metodológico da HL, várias pesquisas já se consolidaram,
reconstruindo fatos da história da língua e de características sociais de uma
comunidade, por meio de princípios. A HL se desenvolveu com a progressão
da Lingüística Histórica e apesar de haver objetivos que privilegiam a língua, a
história e outros fatores sociais, ela é uma ciência que se encontra em
ascensão e se distingue da História da Lingüística, da História das Idéias
Lingüísticas e a Historiografia da Lingüística. Embora a HL esteja relacionada
com a atividade de registrar a história, ela propõe condições para que o
pesquisador compreenda o homem por meio da análise lingüística de
documentos.
Com os avanços dos estudos historiográficos e não havendo uma única
perspectiva de abordagem da língua numa dimensão histórica, o pesquisador
desta área pode dar tratamento metodológico que achar pertinente ao seu
18
trabalho. Para orientar a pesquisa historiográfica, K. Koerner propõe três
princípios básicos, com o intuito de solucionar questões que interferem no
processo de interpretação do documento. Atentando-se para o primeiro desses princípios, K. Koerner (op. cit.:42)
diz que as concepções lingüísticas nunca se desenvolveram
independentemente de outras correntes intelectuais de seu tempo. Por isso,
quando fazemos o levantamento do clima de opinião da época em que se
encontra o documento escolhido, para que possa ser analisado e interpretado,
chamamos este processo, segundo este autor, de princípio de
contextualização. Pela operacionalização desse princípio, podemos encontrar
evidências que possibilitam a compreensão do homem que vive num
determinado contexto histórico-social.
É preciso salientar que pela interpretação contextual que faremos a
partir dos testamentos, pretendemos reconstruir alguns aspectos da história do
homem da sociedade passense do século XIX. Nessa perspectiva, nosso
trabalho se torna interdisciplinar pela possibilidade que temos de aliar a
Lingüística com a História para desvendar os aspectos lingüísticos
materializados nos documentos, e também, o caráter histórico-social, visto que
estamos considerando o século XIX como um todo. Entretanto, o recorte maior
será dado ao período em que os testamentos selecionados foram produzidos,
ou seja, à segunda metade daquele século. Portanto, o texto dos documentos a
serem analisados é o material principal para o estudo. Assim, ao
considerarmos sua materialidade lingüística, adotamos uma visão crítica para
que os documentos se revelem por meio de sua organização interna.
Para confirmar essa orientação, K. Koerner (op. cit.::12) diz que o
quadro geral da teoria sob investigação, assim como a terminologia usada no
texto, devem ser definidos internamente, e não em referência à doutrina
lingüística moderna. Essa posição metodológica pode ser caracterizada como
princípio da imanência. O historiógrafo da língua, diante deste princípio, não
deve analisar o documento com o olhar das teorias atuais, pois o princípio da
imanência permite uma busca de elementos restauradores do passado. Assim,
ao levantar informações e estabelecer um entendimento em relação às teorias
lingüísticas e aspectos históricos no documento, o historiógrafo da língua
19
investiga e possibilita a compreensão do documento, por meio de concepções
existentes na época em que ele foi produzido.
Uma outra orientação para o estudo em HL é aquela que visa a
reatualizar as informações presentes no documento para que a sociedade
moderna tenha a oportunidade de entendê-las. Dessa maneira, após a
aplicação dos dois princípios mencionados anteriormente, surgirá a
necessidade de esclarecer as mudanças e regularidades lingüísticas, pois no
dizer de Serafim da Silva Neto (1986:18):
A língua é um produto social, é uma atividade do espírito humano. Não é, assim, independente da vontade do homem, porque o homem não é uma folha seca ao sabor dos ventos veementes de uma fatalidade desconhecida e cega. Não está obrigado a prosseguir na sua trajetória, de acordo com leis determinadas, porque as línguas seguem o destino dos que a falam, são o que delas fazem as sociedades que as empregam.
A ação metodológica que dará a oportunidade de o homem hodierno
compreender o documento estudado é conhecida como princípio de adequação
teórica, isto é, cabe ao historiógrafo da língua fazer a aproximação entre as
marcas lingüísticas e os dados contextuais do referido documento e a
terminologia e os contextos atuais. Esse princípio requer que o pesquisador,
primeiramente, compreenda o passado que está materializado no documento
e, em seguida, pelo processo de interpretação, à luz das teorias modernas,
compreenda os fatos registrados no documento. Por esse princípio se dá uma
atividade interpretativa, cujo objetivo é fazer com que os fatos do passado
sejam vistos pelos olhares do presente.
1.4.1 A metalinguagem em Historiografia Lingüística
Ao abordar teorias do passado, o historiógrafo da língua deve ficar
atento às condições em que o documento foi escrito e, concomitantemente, ter
cuidado ao tornar acessíveis as informações, contidas nele, ao homem do
presente. Para que a pesquisa em HL se torne interessante no cotidiano do
20
lingüista, faz-se necessário que a intenção e o significado originais expressos
nos documentos sejam preservados. Para isso, os três princípios norteadores,
apontados por K. Koerner, devem ser precedidos pela operacionalização do
recurso da metalinguagem para que a investigação em HL decorra sem falhas.
Por isso, abordaremos, neste momento, os desdobramentos da metalinguagem
por se tratar de um instrumento indispensável na abordagem da HL.
Marly de Souza Almeida (2003) nomeou e sistematizou vários
aspectos teóricos sobre a questão da metalinguagem. Com isso, tem-se um
recurso de análise em HL que torna a leitura do documento do passado
inteligível, tendo-se em vista a pesquisa das implicações contextuais da época
estudada.
A metalinguagem científica se caracteriza pelo estudo lingüístico do
passado com uma abordagem lingüística do tempo presente. Desse modo, a
metalinguagem torna-se um recurso científico de análise, porque permite que o
historiógrafo da língua não cometa equívocos em sua análise. M. de S. Almeida
(op. cit.: 91) confirma isso desta maneira:
... o tempo que separa o historiador do documento que examina precisa ser percebido e principalmente explicado, quando do estudo do texto em questão, e isso deve ser feito graças aos recursos da metalinguagem. Esses recursos tornam evidentes para leitores do momento atual as implicações contextuais do documento analisado. Isto significa que não é possível voltar-se para o passado da língua e interpretá-lo à luz das teorias atuais, sem qualquer cautela ou diferenciação entre o estudo historiográfico moderno que se faz do documento e o recurso metalingüístico de certa forma modernizante, mas cautelosamente empregado e analisado para que não haja equívocos entre as linguagens do passado, do presente e a técnica de análise.
A metalinguagem científica é empregada para o estudo da linguagem
que é considerado longínquo ou diferente dos usos atuais.
As caracterizações da metalinguagem permitem que o historiógrafo da
língua examine o material de análise de acordo com sua necessidade
metodológica. Nessa perspectiva, temos um meio de organizar esse novo
domínio do conhecimento lingüístico, possibilitando ao historiógrafo da língua,
21
no interior do documento, conhecer o passado, isto é, compreender o passado
que se reflete no presente que, por sua vez, é conhecido pelo estudo do
passado.
Refere-se, ainda, a autora sobre a metalinguagem de usos, à
metalinguagem da apropriação, à metalinguagem literária e à metalinguagem
crítica ou de formas. Contudo, aplicaremos apenas a metalinguagem científica
como recurso facilitador da nossa pesquisa.
Ao expor conceitos teóricos em torno da HL, pretendemos garantir aquilo
que K. Koerner (1995) aponta como escopo dessa ciência: a HL deve estar
voltada para a teoria e não para os dados. Isso não significa que queremos
absolutizar a teoria, mas os dados serão entendidos a partir do
estabelecimento das bases da HL que se apóia num conhecimento quase
enciclopédico do pesquisador. A partir disso, queremos levantar o clima de
opinião da época em que os testamentos foram constituídos. Para isso, há
necessidade de utilizarmos o princípio da contextualização como via de
composição para o capítulo seguinte.
22
CAPÍTULO II
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E INTELECTUAL
A língua, como todos os produtos da cultura humana,
é um objeto da contemplação histórica. (Herman Paul)
2.1 O Brasil na 2ª metade do século XIX
2.1.1 Processos econômicos, escravistas e de imigração
Antônio Houaiss (2001:817) entende que contextualização é o conjunto
de condições de uso da língua, que envolve, simultaneamente, o
comportamento lingüístico e o social, e é constituído de dados comuns ao
emissor e ao receptor. Assim, tendo em vista que os testamentos que
selecionamos para análise foram escritos na região de Passos, propomos,
nesse capítulo, operacionalizar o princípio da contextualização histórica e
intelectual por meio do estudo de alguns aspectos econômicos, religiosos,
políticos e culturais do Brasil, daquela cidade, que se localiza no sul de Minas.
No século XIX, mais precisamente a partir de 1850, incrementam-se no
Brasil mudanças profundas de ordem econômica e política. Os políticos
conservadores, chamados saquaremas 1, promulgaram logo após a lei que
1 Os políticos conservadores eram denominados por saquaremas, porque seus líderes, Viscondes de Uruguai e de Itaboraí, eram proprietários de terras e tinham grande força política na região de Saquarema, província do Rio de Janeiro.
23
proibia o tráfico de escravos, a lei de Terras. Por essa lei, almejavam cessar as
lutas por terra, já que eram interessados em manter uma estrutura social que
os beneficiasse. A intenção era a de transformar a terra em propriedade
passível de ser comprada ou vendida. Assim, uma pessoa só se tornaria
proprietária de terras quando as comprasse. Com isso, os imigrantes que
chegavam ao Brasil viam-se forçados a vender aquilo que lhes sobrara: a mão-
de-obra. Essa era uma visão de quem já percebia a aproximação do fim da
escravidão e se tornou uma boa opção àqueles que pretendiam investir na
modernização do Brasil e expandir sua produção cafeeira.
Segundo Boris Fausto (2002), foi nesse período que houve, também, a
valorização da Guarda Nacional e a aprovação do primeiro Código Comercial
que, entre outras coisas, possibilitou a delimitação dos tipos de companhia que
pudessem ser organizadas no Brasil, bem como suas operações. Conforme B.
Fausto (op. cit: 108):
A liberação de capitais resultante do fim da importação de escravos deu origem a uma intensa atividade de negócios e de especulação para as condições da época. Surgiram bancos, indústrias, empresas de navegação a vapor etc. Graças a um aumento nas tarifas dos produtos importados, decretado em meados da década anterior (1844), as rendas governamentais cresceram. Em 1851-1853, elas representavam o dobro do que tinham sido em 1842-1843. No plano político, liberais e conservadores chegaram provisoriamente a um acordo nacional, expresso no Ministério de Conciliação (1853-1856), presidido pelo marquês de Paraná. De algum modo, o acordo perdurou nos ministérios seguintes até 1861.
Percebe-se, nesse mister, a implantação da modernização no país a
partir de princípios capitalistas que, naquele caso, abriam condições para o
mercado de terra, de trabalho e todas as suas relações. Assim, além de outras
necessidades, com o alto crescimento da economia cafeeira, houve a
preocupação em alavancar o precário sistema de transporte com a construção
de ferrovias, rodovias e o investimento na navegação a vapor.
24
Em relação ao trabalho escravo, é ilusório pensarmos que os
fazendeiros de café, principalmente os da promissora região do oeste paulista,
quisessem utilizar o trabalho livre por achar que, dessa maneira, haveria uma
produção maior. Essa era, apenas, uma alternativa em vista do
desaparecimento da mão-de-obra cativa. Contudo, mesmo com a proibição do
tráfico negreiro, em 1850, pela promulgação da lei Eusébio de Queirós, surgiu
um novo modo de se conseguir esse tipo de trabalho. Trata-se do tráfico
interprovincial que transferia, de forma forçada, escravos de uma região para a
outra e, em muitos casos, por via terrestre para fugir dos impostos cobrados
nos portos. Viajantes compradores de escravos percorriam as províncias a fim
de comprar mão-de-obra escrava de pequenos fazendeiros e de pessoas que
moravam na zona urbana.
Por conseguinte, os escravocratas passaram a depender da chegada de
escravos de outros estados. Isso influenciou a vida política do país, acelerando
o processo de abolição da escravatura, pois aconteceram experiências mal
sucedidas em que os fazendeiros propunham aos imigrantes alemães e suíços,
vindos com a ajuda de recursos do governo imperial, trabalho em regime de
parceria. Entretanto, com as péssimas condições de sobrevivência, inclusive
censura de correspondência e cerceamento do ir e vir nas fazendas,
explodiram revoltas que deixaram esse tipo de experiência sem fôlego para
continuar.
Com a promulgação da lei do Ventre Livre2 em 1871 que, segundo Hugo
Fragoso (in História da Igreja no Brasil, 1985:152), representou a declaração de
brasilidade dos negros e a necessidade de dar continuidade ao crescimento da
economia, o governo provincial de São Paulo, por meio legal, propiciou aos
fazendeiros, recursos que permitiam oferecer aos imigrantes ajuda de custo
para a viagem, hospedagem gratuita na capital até oito dias e transporte para
as fazendas. Mas, mesmo com essas manobras para convencer tais imigrantes
a virem para o Brasil, o número de adeptos a essas propostas estava muito
2 Segundo Caio Prado Júnior (1998: 178), o Imperador, sem modificar fundamentalmente a situação no poder, mas remodelando-a com a inclusão no governo de uma fração mais tolerante dos conservadores, revive os antigos projetos discutidos no Conselho de Estado seis anos antes, e amenizando-os muito, faz votar nas Câmaras a chamada lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), em que se declaram livres os filhos de escravos nascidos daquela data em diante, e se dão algumas providências para estimular a alforria dos escravos existentes.
25
aquém daquilo de que a produção cafeeira necessitava. Em 1885, o governo
italiano divulgou uma nota desaconselhando seus compatriotas a emigrarem
para o Brasil por conta das condições adversas encontradas por muitos deles
aqui. B. Fausto (op. cit.: 114) mostra como foi o contra-ataque da burguesia
brasileira desse modo:
As figuras mais proeminentes da elite paulista reagiram a esse estado de coisas, em um momento sensível, quando a desorganização do sistema escravista se tornava evidente. A sociedade Promotora da Imigração, fundada em 1886 por iniciativa, entre outros, dos irmãos Martinho Prado Jr. e Antônio da Silva Prado, tomou uma série de providências a fim de atrair imigrantes para as fazendas de café. A entidade publicou folhetos em português, alemão e italiano, salientando as vantagens da imigração para São Paulo. Fazia comparações favoráveis relativamente a outros países receptores de imigrantes, como os Estados Unidos e a Argentina, cuja atração era maior. Não mencionava, entre outros males, a existência da escravidão. Martinho Prado Jr. realizou uma viagem ao norte da Itália para estudar formas de aliciar imigrantes, e um escritório da Sociedade Promotora foi aberto em Gênova.
A partir dessas vantagens oferecidas pelos burgueses do Brasil, houve
um aumento considerável na imigração para o país, principalmente de italianos.
Segundo B. Fausto, em 1885, 6500 pessoas vieram para esse território. Em
1888, esse número saltou para quase 92 mil, em função disso, no ano da
abolição da escravatura, a mão-de-obra para a colheita do café foi suficiente.
Entretanto, após esse cenário instaurado com a liberdade dos nascituros
negros, temos a impressão de que a abolição da escravatura veio
naturalmente. A lei do Ventre Livre arrefeceu o movimento antiescravista no
Brasil porque não foi entendida como uma simples etapa de um processo
complexo que precisaria de reformas com estruturas eficazes e completas.
Segundo C. Prado Júnior (1998: 179):
A lei de 28 de setembro nada produzirá de concreto, e servirá apenas para atenuar a intensidade da pressão
26
emancipacionista. Ela estabelecera para os filhos de escravos, até a sua maioridade, um regime de tutela exercida pelo proprietário dos pais. Ele teria obrigação de sustentá-los, mas podia utilizar-se de seus serviços. De modo que continuaram escravos de fato, o mesmo que os pais.
As campanhas abolicionistas ganharam força com o surgimento de
associações, jornais e propagandas, a partir de 1880, e tiveram personagens
importantes de origem negra, entre eles: José do Patrocínio, André Rebouças e
Luís Gama3. Em 1885, surgiu a lei do Sexagenário4 que tinha como objetivo
frear as ações abolicionistas mais radicais. Contudo, somente os fazendeiros
dos cafezais do Vale do Paraíba, oeste de São Paulo, permaneciam com o
sistema escravocrata em razão da grande concentração de investimentos
empregados nos escravos. Houve, ainda, algumas tentativas de prorrogação
da lei que libertasse totalmente os escravos. O senador conservador Antônio
Prado, de São Paulo, propôs que os cativos indenizassem e prestassem
serviços por três meses, antes que fossem libertados. Essa medida visava a
assegurar a próxima colheita do café, mas não obteve êxito.
A abolição foi sancionada, após a aprovação de grande parte do
parlamento e sem restrições, em 13 de maio de 1888 pela princesa Isabel,
regente do Brasil.
3 Boris Fausto em seu livro História Concisa do Brasil, (p.122), diz o seguinte: Patrocínio era filho de um padre e fazendeiro, dono de escravos, e de uma negra vendedora de frutas. Foi proprietário da Gazeta da Tarde, jornal abolicionista do Rio de Janeiro, ficando famoso por seus discursos emocionados.
O engenheiro Rebouças representava o tipo oposto, uma figura retraída, professor de botânica, cálculo e geometria da Escola Politécnica da Corte. Ele ligava o fim da escravidão ao estabelecimento de uma democracia rural, defendendo a distribuição das terras para os escravos libertados e a criação de um imposto territorial que forçasse a venda e a subdivisão dos latifúndios.
Luís Gama tem uma biografia de novela. Seu pai pertencia a uma rica família portuguesa da Bahia e sua mãe, Luísa Mahin, na afirmação orgulhosa do filho, “era uma negra africana livre que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Gama foi vendido ilegalmente como escravo pelo pai empobrecido, sendo enviado para o Rio e depois para Santos. Junto com outros cem escravos, descalço e faminto, subiu a serra do mar. Fugiu da casa de seu senhor, tornou-se soldado e, mais tarde, poeta, advogado e jornalista em São Paulo. 4 Esta lei concedia liberdade aos escravos com mais de sessenta anos e regulamentava a libertação gradual de todos os cativos mediante indenização.
27
2.1.2 O pensamento católico na sociedade brasileira na 2ª metade do século XIX
Entre em 1840 e 1875, a Igreja católica no Brasil voltou-se apenas para
os comandos vindos de Roma. O episcopado brasileiro defendia, com ardor,
que a Igreja de Roma era o ponto mais alto da verdade, ou seja, a verdade
católica era absoluta e os movimentos liberais e protestantes faziam parte de
ações ilusórias e passageiras que formavam uma organizada conspiração
contra os interesses apostólicos romanos. Percebemos, então, uma postura
altamente conservadora e preparada para enfrentar as instigações do inferno.
H. Fragoso (op. cit.: 143) diz que o movimento de independência da
Igreja em face do Estado visava afirmar que éramos católicos romanos e não
católicos do Conselho de Estado. Esta forte tendência é percebida quando
examinamos os testamentos oitocentistas produzidos em Passos, MG, pois há
sempre no início desses documentos, a afirmação de que o testador pertence à
Igreja católica apostólica romana como podemos perceber em nossas
amostras.
Para constituir os procedimentos de análise, colocaremos, a partir daqui,
fragmentos dos documentos que são o alvo de nossa pesquisa. Salientamos
que para seguir critérios de base científico-metodológica, aqueles estarão
dispostos com o mesmo número de linhas dos documentos oficiais,
reproduzindo de forma fac-similar, a macro e a microestrutura textual.
Entretanto, no início de cada linha, haverá um número para que possamos nos
orientar melhor, bem como o testamento de João Pimenta de Abreu será
chamado de Documento 1 e o de Maria Joaquina do Espirito Santo,
Documento 2.
Documento 1:
5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de
6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.
28
Documento 2:
1. como Christão Catholica e Aposto-
2. lica Romana que sou, em qual
3. Religião nasci e fui criada, e
4. educada e em que tenho
conservado, e espero morrer,...
A Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil continuava a ser a Igreja
dos brancos e aproximou-se, de forma mais acentuada, de sua sede em Roma.
Por isso, surgiu um aspecto de europeização da instituição eclesiástica que,
em conseqüência disso, rejeitava os valores culturais dos negros e dos
indígenas. Apesar da condição de brasilidade adquirida a partir da proibição do
tráfico negreiro, os escravos eram considerados seres impuros diante dos
preceitos católicos. Segundo H. Fragoso (op. cit.: 146), os brancos pregavam
que a escravidão dos negros era uma condição de maldição que se fazia
necessária. Os próprios negros livres não se sentiam no âmbito da Igreja como
em sua própria casa, pois ficavam sempre marcados com o ferrete de
descendentes de um povo infiel. Com isso, tornavam-se cristãos de segunda
classe e acreditavam que a participação nas variadas irmandades existentes
trazia-lhes a possibilidade de ascensão religiosa e social.
O padre era considerado, pelas pessoas mais simples, o homem da lei,
e a Igreja era vista como uma organização jurídica por causa de sua ação de
punições e ameaças feitas aos pecadores. Desse modo, na visão popular e do
estado, a Igreja era a expressão da lei e cabia a ela salvar as almas ou mandá-
las para o inferno ou, ainda, conduzi-las ao purgatório.
Aquela obediência sistemática que a Igreja do Brasil tinha em relação a
sua sede romana foi combatida pelos intelectuais liberais. Para eles, Igreja e
Estado deveriam ser separados, pois a lei civil não poderia sucumbir-se às
influências de bispos, com o apoio dos ultramontanos do país, que seguiam
fielmente as orientações do magistério da Igreja.
29
2.2 Passos no século XIX
2.2.1 Primeiros passos
A região onde é situado o município de Passos pertencia, oficialmente,
em 1814, ao termo da Vila de São Carlos do Jacuhy, onde se encontra o
município de Jacuí, MG, atualmente. O pequeno arraial, em que já se
localizavam brancos pobres, que construíram taperas e ranchos muito simples,
formando uma povoação que procurava vestígios do ouro (faisqueiras) no
sertão, começou a ficar movimentado a partir de 1820. Isso aconteceu porque
fazendeiros, motivados pela ação do Governo do Rei D. João VI no Brasil,
começaram a colonizar os sertões, aproveitando as facilitações de negócios de
compra e venda de áreas ocupadas.
Assim, o latifundiário Domingos Teixeira de Carvalho, que comprou uma
grande parte das terras de Dona Faustina das Neves, foi um dos fazendeiros
que estabeleceu uma nova ordem neste arraial. Aliás, para o mostrar o poderio
deste fazendeiro, Antonio Theodoro Grilo (2002: 21) diz o seguinte:
A fazenda Bonsucesso unida a outras de Domingos Teixeira, compreendia um despotismo de terra que ia, da “serrinha”, (Fazenda das Posses), passando pela Prata (Pratápolis), beirando o São João e o Santana, abaixo, estendendo seus domínios até o Aterrado (Ibiraci). Ele possuía sozinho mais de 96 escravos, numa época em que o preço de um cativo beirava o preço de uma fazenda.
Para confirmar a tendência de migração, vindos do arraial de Nossa
Senhora das Candeias (Candeias, MG), Manoel José Lemos e seu cunhado
João Pimenta de Abreu compraram terras nas proximidades do Rio Grande.
Assim, o primeiro se instalou na Fazenda Soledade e o segundo, na Fazenda
Cachoeira. Cabe lembrar que até aquele momento não havia escravos naquele
local, pois eles começaram a surgir, quando as pessoas de posses chegavam.
30
Desse modo, os novos moradores do arraial importavam-se mais com suas
fazendas e negócios do que pela busca do ouro.
Ressaltamos, neste momento que, por uma interpretação ambígua da
demarcação, feita pelo Papa Bento XIV em 1745, e a conseqüente criação das
dioceses de São Paulo e Mariana, houve um conflito de interesses entre os
representantes dessas dioceses. Demoradas discussões eclesiásticas
sucederam-se até que, em 1759, o bispo de Mariana deixou clara, numa carta,
a intenção de colocar a decisão nas mãos do colega de São Paulo, que, por
sua vez, recuperou as paróquias que haviam sido tomadas pelo bispado de
Mariana e seguiu à frente do devocionário sul-mineiro.
Seguindo o desenvolvimento do século XIX, a partir de 1825, houve um
movimento no arraial passense, para que o Bispado de São Paulo autorizasse
a construção da nova capela, já que a capela de Santo Antônio era muito
pequena para ter um padre a sua disposição. A construção do novo templo
Senhor dos Passos ficou a cargo de seu idealizador, Domingos Barbosa
Passos, daí o nome da capela. Assim, os interesses da Igreja e dos
fazendeiros tornaram-se as primazias do local.
Ademais, Manoel José Lemos engendrou o movimento para a criação do
Juizado de Paz tendo em vista a resolução de problemas de demarcação de
divisas porque algumas áreas pretendidas já eram ocupadas pela população
pobre. Por isso, houve conflitos e até violência. A criação daquele Juizado seria
um meio legítimo de reorganizar o povoado. Desse modo, o líder desse
movimento foi o primeiro Juiz de Paz do povoado em 1831. Nessa data, foi
feito o primeiro recenseamento. Em 1838, outro censo apontou o crescimento
da população e do arraial. Criou-se, então, a freguesia (paróquia) do Senhor
Bom Jesus dos Passos.
A partir disso, as terras férteis do Rio Grande e a promissora atividade
econômica local chamaram a atenção de várias famílias de outros cantos de
Minas Gerais, como: Lavras do Funil, Campanha, São João Del Rei, Aiuruoca,
entre outras. Segundo Antonio Theodoro Grilo (1990: 82):
Havia três motivos que atraíram esses novos grupos: a) alguns já tinham familiares residindo aqui; b) o Arraial crescera e ficava numa região que todo mundo achava
31
boa e bonita; c) as pastagens formadas em nossa região eram excelentes e favoreciam o desenvolvimento de engorda de gado de forma muito lucrativa. Neste último caso poderíamos acrescentar também que a fertilidade do solo vinha possibilitando colheitas muito boas e especialmente o cultivo da cana de açúcar, pois alguns engenhos já instalados aqui ofereciam lucros compensadores.
Além disso, a riqueza gerada foi maior quando esses fazendeiros
adotaram uma prática chamada invernada. Essa atividade consistia em fechar
uma pastagem formada com capim colonhão ou capim gordura, e a mão-de-
obra tornara-se uma facilidade, pois esse tipo de serviço não requeria muito
esforço. Dessa forma, o movimento invernista reorganizou a vida social do
arraial passense, porque trouxe excelentes resultados econômicos aos
fazendeiros. Para termos uma idéia, os açougueiros da capital do Brasil, Rio de
Janeiro, comercializavam a carne do gado das invernadas do Senhor dos
Passos. Nesta perspectiva, o comércio cresceu em vista da necessidade de
diversificação dos produtos que eram primordiais para a vida no campo.
Multiplicaram-se os estabelecimentos e os produtos, em ritmo acelerado para
atender às novas características da demanda, conforme afirma A. T. Grilo (op.
cit.: 44).
José Caetano Machado, um dos testamenteiros e genro de João
Pimenta de Abreu, foi um dos que chegaram a esta região. Oriundo de Lavras,
foi pioneiro da nova organização municipal e trabalhou muito para que o arraial
fosse decretado como vila. Com isso, a Câmara da vila de Jacuí deu um
parecer favorável para a criação da vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos
Passos. Conforme A.T.Grilo (1998: 18), o Dr. Bernardino José de Queiroz
sancionou a Lei Provincial, nº 386, desse modo:
A Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais decreta: Art. 1º - Ficam elevadas à categoria de Vilas as seguintes Freguesias: § 1º - A do São Bom Jesus dos Passos do Município do Jacuhy, com a denominação de Vila Formosa do São Bom Jesus dos Passos, compreendendo em seu
32
Município a Freguesia do mesmo nome e as da Ventania e Carmo. § 2º - A do Patafúfio do Termo de Pitangui com a denominação de Vila do Patafúfio, compreendendo em seu Município a Freguesia do mesmo nome e as de Santa Anna de S. João Acima e do Morro de Mateus Leme desmembradas aquela do Município de Bonfim e esta do de Sabará e assim mais os Distritos de São Gonçalo e Santo Antonio de S. João Acima, desmembrados do Termo de Pitangui. Art. 2º - Os habitantes destes novos municípios ficam obrigados a construir à sua custa (...há uma frase riscada) os edifícios necessários para as sessões da Câmara e do Conselho de Jurados e a Cadeia com suficiente segurança para a prisão dos réus. Art. 3º - Não obstante a disposição do artigo antecedente serão instaladas as Vilas logo que os habitantes prontifiquem quaisquer outros edifícios para servirem interinamente; devendo contudo ser suprimidas as Vilas, se no prazo de dois anos não se mostrar satisfeito o ônus do artigo 2º. Art. 4º - Ficam revogadas as disposições em contrário. Sala da Comissão, 6 de outubro de 1848. Horta e Araújo Oliveira.
2.2.2 De vila a cidade
Na observância dos Artigos 2º e 3º do texto final da Lei, os líderes da
recém vila agiram com rapidez para cumprirem as prescrições ali impostas. Por
conseguinte, os pedidos formais de adequação à nova condição foram
enviados pela Câmara Municipal da vila de São Carlos do Jacuhy. Em virtude
disso, em 4 de agosto de 1850, houve a primeira eleição municipal com a
seguinte lista de vereadores: José Caetano Machado que foi o vereador mais
votado e, portanto, deu posse aos demais vereadores por determinação da
Câmara de Jacuhy; Jerônimo Pereira de Mello e Souza que foi o secretário das
primeiras sessões e viria a ser o futuro Barão de Passos; o Sargento-mor
Manuel Cardoso Osório, o Capitão Manoel José Lemos, aquele que saiu de
Candeias, MG; Camilo Antonio Pereira de Carvalho que pertencia ao arraial de
Santa Rita do Rio Claro, Nova Rezende, nos dias atuais; o Padre Fortunato
33
José da Costa do arraial de Nossa Senhora das Dores do Aterrado: Ibiraci;
Fidelis Rodrigues de Faria do arraial de Carmo do Rio Claro.
José Caetano Machado, presidente da Câmara Municipal, deu posse
aos vereadores da vila em 7 de setembro de 1850. Foi um grande
acontecimento da região em decorrência dos novos distritos que passaram a
pertencer ao Termo da vila do Senhor dos Passos. São eles: arraiais de Nossa
Senhora do Monte do Carmo do Rio Claro (Carmo do Rio Claro), São
Sebastião da Ventania (Alpinópolis), Santa Rita do Rio Claro (Nova Rezende),
Nossa Senhora das Dores do Aterrado (Ibiraci) e Santa Rita de Cássia
(Cássia). Antonio Candido (in: Antonio Theodoro Grilo, 2003:9) para confirmar
a disposição do termo acima, diz o seguinte:
Cássia é filha de Passos, irmã da Ventania, do Aterrado, da Forquilha, - todos dispostos no vale desse Rio Grande que me causava um terror inexprimível quando, menino, em noite tempestuosa, eu via meu pai sair de maleta na mão para atravessá-lo, a fim de acudir algum doente do outro lado. O irmão vento e a irmã chuva pareciam então formar com a caudal que eu nunca tinha visto uma conjura temerosas que poderia me roubar o pai.
Desse modo, A.T.Grilo (op. cit.:32) destaca o texto do ato de instalação
e posse da Câmara da Vila:
Ato da instalação e posse da Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos: Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo - de mil oitocentos e cinqüenta, vigésimo ano da Independência do Brasil, aos sete dias do mês de Setembro do dito ano, nesta Povoação do Senhor Bom Jesus dos Passos, desmembrada do Município de Jacuí e ora elevada à Vila, e pertencente à Comarca de Três Pontas, Província de Minas Gerais, aonde reside o Cidadão Brasileiro Tenente Coronel José Caetano Machado - vereador mais votado da Câmara Municipal do novo Município, estando de posse do dito emprego, segundo consta do edital da Câmara Municipal da Vila de São Carlos de Jacuí, datado de 18 de agosto do corrente ano, sendo aí, em casa que serve interinamente para as sessões da Câmara Municipal desta Vila, em conformidade da lei provincial
34
número trezentos e oitenta e sete e Portarias do Exmo. Sr. Presidente da Província de vinte e sete e vinte e nove de maio do corrente ano, elevando esta Povoação à categoria de Vila, manda seja instalada e dada posse no dia de hoje, sete de setembro, com a denominação de Vila Formosa do Senhor Bom Jesus dos Passos, em conformidade com a dita lei e portaria, houve o mesmo cidadão por instalada e de posse a mencionada Vila; e estando presentes os vereadores eleitos para a Câmara Municipal, a saber: o Sargento-mor Manoel Cardoso Osório, o Capitão Manoel, José Lemos, o Reverendo Padre Fortunato José da Costa, o cidadão Camilo Antonio Pereira de Lelis (de Carvalho) e Fidelis Rodrigues de Faria, o mesmo cidadão José Caetano Machado, como vereador mais votado na referida Câmara lhes deferiu o juramento aos Santos Evangelhos, na forma da Lei em presença de grande concurso de cidadãos do novo Município, que em sinal de demonstração do seu regozijo, repetiram freqüentemente os Vivas Nacionais, à Nossa Santa Religião Católica Apostólica Romana; Constituição do Império, e a S.M. Imperial, o Sr. D. Pedro II e, para constar, o dito Presidente mandou lavrar este ato em que se assina com a Câmara e mais cidadãos presentes, depois de lhes ser lido por mim Jerônimo Pereira de MeIo e Souza, secretário interino, por ainda não haver, que o escrevo e assino. (Seguem-se as assinaturas): José Caetano Machado, Presidente; Vereador Manoel José Lemos, Vereador Manoel Cardoso Osório, Vereador Camilo Pereira; Vereador Padre Fortunato José da Costa; secretário Jerônimo Pereira de MeIo e Souza, vereador Fidelis Rodrigues de Faria. Pessoas presentes: José Fernandes de Paula, Raimundo Nato Brasileiro, José Ferreira Corrêa, João Cândido de MeIo e Souza, José Pimenta de Abreu, Manuel Joaquim Bernardes, Antonio Ferreira de Carvalho, Heitor Fernandes da Silveira, Pedro José de Alcântara Pádua, Urias Antonio da Silveira, Vigário Francisco de Assis Pinheiro Ulhoa Cintra, Francisco Ferreira Bernardes, Ludovico Lirimo de Anchieta, Irmão Justiniano Anjos Vieira, José Vieira da Natividade, João Ferreira da Silva, Leonel Gonçalves Gomide, João Pena de Miranda, Joaquim Rodrigues Chagas, Nicolau Tolentino de Brito, Antonio Joaquim da Silva, Fortunato Ribeiro de Andrade, Antonio Barbosa da Silva, José Francisco Bueno, Manuel Lemos Júnior, João Caetano Machado, José Carlos Lima, Bernardo Alves Pereira, Manuel Mendes da Luz, Antonio Caetano de Faria Loulou.
35
Os vereadores daquela época tinham que contribuir financeiramente
com a Câmara porque essa não tinha recursos ainda. A filantropia era uma
característica da época. Entretanto, o município foi crescendo diante da ação
invernista por todos os cantos, ficando relegada a segundo plano, a produção
de alimentos. Talvez, seja por isso que há um registro, em 1853, de uma crise
aguda de altos preços dos alimentos. Os menos favorecidos, obviamente,
foram os mais prejudicados. Muitas famílias sobreviveram às custas das
benesses dos fazendeiros, mas, apesar dessa preocupação que foi
compartilhada com os governantes locais, aconteceram várias mortes em
conseqüência da fome.
A vila crescia cada vez mais e, por isso, começou a faltar água na
medida em que as casas e ruas surgiram, impedindo, assim, o acesso às
fontes. A violência, também, começara a se instalar. Contudo, a Câmara
sempre conseguia apresentar propostas para a solução dos problemas. O
fiscal contratado fazia uma espécie de relatório que chamava a atenção de
todos.
Em 19 de junho de 1852, um ofício do Presidente da Província
comunicava que, por uma decisão Imperial, os Termos de Passos e de Jacuí
haviam sido reunidos, quer dizer, naquele momento, Jacuí passava a pertencer
ao Termo Passense. Depois disso, ao final do mesmo ano, a vila do Senhor
dos Passos tornava-se sede da Vara Eclesiástica. Organizadas pelo bispado,
essas varas tinham a função de decidir questões do direito canônico de menor
complexidade e, ao mesmo tempo, solucionar conflitos interparoquiais. As
paróquias que pertenciam à Vara Eclesiástica passense eram as do Carmo do
Rio Claro, Ventania e Bom Jesus dos Passos, todas elas do bispado de São
Paulo.
Em 1854, a vila de Campanha iniciava mais uma vez, um movimento
separatista. Sua proposta era a de criar uma Província no sul de Minas, já que
a Província de Minas Gerais era de grande extensão. A Câmara da vila
passense em reunião extraordinária, respondeu prontamente à circular enviada
pela vila de Campanha, dizendo que apoiaria aquela proposição, para que os
36
arraiais e vilas daquela região pudessem ser mais bem contemplados por um
governo local.
Com obtenção de uma crescente economia por meio da pecuária e das
ações políticas junto ao governo da Província e ao próprio Imperador, fez-se
necessário o decreto que transformaria a vila em cidade. A.T.Grilo (op. cit.: 60)
diz o seguinte sobre essa transformação:
Penso não haver dúvida de que a transformação da Vila Formosa em Cidade de Passos foi resultado da ação política das mesmas lideranças que há mais de dez anos tinham conseguido a criação da Vila. Entre estas, certamente o nome do Comendador José Caetano Machado, que era Cavaleiro da Ordem de Cristo desde 1849, deve ser lembrado como a mais importante por ter exercido todo o empenho político junto à Assembléia Provincial e por ter feito acompanhar o processo de todo o seu prestígio junto ao Imperador.
Desse modo, a Lei nº 854 de 14 de maio de 1858 diz em seu artigo
único: A Vila de Passos, da Comarca de Sapucaí, fica elevada à categoria de
Cidade, com a mesma denominação, revogadas as disposições em contrário,
A.T.Grilo (op. cit.: 61). A denominação oficial da vila era Formosa do Senhor
Bom Jesus dos Passos, mas com a popularização do nome, a vila tornou-se
cidade de Passos. O nome religioso continua sendo usado nos dias atuais,
assim: Paróquia Senhor Bom Jesus dos Passos.
A partir do ato oficial que a decretou como cidade, Passos foi marcada
com a preocupação de mudanças em sua arquitetura. As casas da cidade
começaram a ser construídas como se fossem um retrato das sedes das
fazendas. Segundo A.T.Grilo (op. cit.:65), essas casas eram grandes mas
simples, com muitas janelas – sinal de “grandeza” do proprietário – porque
indicavam muitos cômodos, significando grande parentela, domínio de muita
gente, inclusive de escravos.... No entanto, as Igrejas construídas, entre outras
edificações urbanas, mostraram a preocupação com a aparência da cidade.
Assim, fica caracterizado que a prática religiosa se constituiu como uma forte
tendência característica na comunidade passense da segunda metade do
século XIX.
37
Havia no município um grande número de escravos. Conforme
Washington Noronha (1969), Passos chegou a ter 5.623 escravos e, segundo o
mesmo autor, a Câmara informou que o valor deles era de 1.297:750$000 (um
mil duzentos e noventa e sete contos, setecentos e cinqüenta mil réis). Embora
tivesse um sistema escravocrata, no município passense havia alguns ideais
abolicionistas, cujos festejos foram mais explícitos com a chegada da notícia
sobre a Lei Áurea. Anteriormente a esse fato, há registros oficiais nos quais a
Câmara municipal se preocupava em alertar a população sobre os maus tratos
dados aos escravos. Se o município se pautava por valores religiosos e, por
isso, aderia a uma cultura filantrópica, não é difícil inferir que as tendências
abolicionistas, também, tinham interesses comerciais. Para ratificar esta
posição A. T. Grilo (op. cit.: 65) explica que:
Há um posicionamento nítido contra a escravidão em várias sessões da Câmara, especialmente por parte daqueles que já se configuram entre os vereadores, como “de oposição”. E talvez a oposição seja justamente esta: de comerciantes para quem o trabalho cativo não era essencial e os produtores rurais que nele se apoiavam.
De qualquer forma, há um registro da Câmara municipal passense, com
data de 25 de outubro de 1888, no qual se encontram os agradecimentos a
Sua Alteza Imperial pela Lei Áurea.
Cabe salientar que a crise do Império trouxe à cidade posições
ideológicas a favor da instalação da república. Entretanto, havia uma espécie
de contradição, porque surgiram manifestações de elogio ao Imperador.
Foi nossa intenção reunir aqui, aspectos históricos, sociais, econômicos,
políticos e religiosos de Passos no século XIX, tendo em vista o objetivo de
reconstruir o passado lingüístico-histórico daquela localidade, por meio de
documentos testamentários.
38
2.3 Concepções lingüísticas no Brasil do século XIX
Segundo Margarida Petter (in: José Luiz Fiorin, 2003:12), o pensamento
lingüístico contemporâneo, mesmo sustentado por um novo alicerce, se
constituiu por meio da metodologia empregada nos estudos filológicos e
gramaticais do século XIX. Em decorrência do interesse do homem em
desvendar a linguagem, surgiu a idéia de se estudar as línguas vivas. Assim,
com um estudo comparativo dos falares, fazia-se uma pesquisa pautada em
questões da materialidade lingüística que, a partir do desenvolvimento desse
método histórico, surgiram gramáticas comparadas e os estudos da Lingüística
Histórica. Em conseqüência disso, a análise dos fatos observados na língua
permitiu a visualização de que as línguas se transformam com o tempo,
independentemente da vontade dos homens, seguindo uma necessidade
própria da língua e manifestando-se de forma regular. Nesta perspectiva, a
obra de Franz Bopp sobre o sânscrito, que foi comparado ao grego, ao latim,
ao persa e ao germânico, tornou-se a precursora dos estudos histórico-
comparativos, ou seja, da Lingüística Histórica do século XIX. Com isso, Bopp
é considerado um dos precursores dos estudos lingüísticos do indo-europeu.
Conforme Gilberto Scarton (2005), o conjunto de características
psíquicas individuais e coletivas é o ponto de apoio das concepções de
linguagem. Desse modo, os lingüistas, na atualidade, conseguiram
compreender melhor que a língua deve ser considerada tanto em sua
modalidade escrita como na falada. Em função disso, no dizer de Joaquim
Mattoso Câmara Jr. (2000), a técnica de confrontação entre as línguas de
origem comum que poderiam ter seus sistemas fonéticos, estrutura gramatical
e vocabulário num sistema de comparação, transformou a Lingüística em uma
ciência autônoma.
Para Ricardo Cavaliere (2000) a Lingüística do século XIX teve esse
perfil científico graças a um rigor metodológico e, por isso, conseguiu compor
um espaço seguro e específico para os estudos sobre a linguagem. Sobre a
origem desse novo método do século XIX, esse autor diz que, o estudioso
Joseph Justus Scaliger, ainda que de forma assistemática, na passagem do
39
século XVI para o XVII, estabeleceu a proposição pioneira de classificação das
línguas em famílias. Para isso, foi preciso traçar um mesmo rumo entre o latim
e o grego. Esse foi o primeiro passo do método comparativo. Além disso,
segundo R. H. Robins (apud R. Cavaliere, 2000), Leibniz, no final do século
XVII, propôs à comunidade científica um estudo mais atento no âmbito da
etimologia na perspectiva metodológica da Lingüística Histórica.
A partir do que afirmamos acima, seria preciso dar ênfase ao estudo dos
topônimos, a fim de que esse pudesse seguir as marcas dos movimentos
sociais que levavam as línguas de um lugar para o outro, aceitando suas
tranformações. Ademais, Leibniz preparou, de forma pioneira, gramáticas e
dicionários das línguas existentes no mundo, bem como organizou e concebeu
um alfabeto universal, tendo como base o sistema gráfico latino. No bojo desse
processo, conforme R. Cavaliere, Sir Willian Jones, em 1786, apresentou um
trabalho sobre os vínculos lingüísticos do sânscrito com o latim e do grego com
as línguas germânicas. Viu-se, dessa maneira, a consolidação da hipótese de
que todos os idiomas conhecidos teriam em comum uma protolíngua. Na
mesma data, o lingüista alemão Peter Simon Pallas, com o aval da rainha
russa Catarina II, organizou um vocabulário comparativo com palavras de 200
línguas.
Além desses preconizadores, há estudos feitos, em 1808, por Friedrich
Schelegel e publicados na obra Über die Sprache um Weisheit der Inder -
Sobre a Língua e a Sabedoria dos Hindus. Essa obra apresenta, de forma
inédita, a teoria da classificação morfológica das línguas e a aproximação das
línguas clássicas, germânicas e persas com a língua indiana da antiguidade.
Após a explanação acima, queremos enfatizar que esse contexto
histórico-lingüístico do século XIX, isto é, a afirmação factual do método
comparativo, inspirou o modelo lingüístico-científico brasileiro. Com essa nova
proposta, alguns filólogos do Brasil acataram o paradigma do comparativismo,
especificando em seus textos as referências bibliográficas européias. Segundo
R. Cavaliere (2000:78):
Sabemos que não eram muitos os filólogos brasileiros que liam textos em alemão, língua em que escreviam quase todos os fundadores de paradigma do século XIX.
40
Tal fato poderia constituir sério empecilho não fossem, já à época, ordinárias as traduções dos autores germânicos em francês ou inglês. Evidentemente, alguns filólogos, como Said Ali e João Ribeiro, que liam textos em alemão – a par de José Oiticica, a julgar por suas citações – podiam saber da teoria nas palavras próprias do autor, assim evitando as traiçoeiras armadilhas das traduções.
Outros filólogos brasileiros, por sua vez, embora tivessem tido contato
com essas fontes estrangeiras, abdicaram-se de citar qualquer referência
bibliográfica.
R. Cavaliere propôs fazer, ainda, um levantamento dos principais
teóricos do comparativismo do século XIX, por meio dos compêndios
brasileiros, são eles: Franz Bopp, Jacob Grimn, Max Müller, William Dwight
Whitney, Karl Brugmann, Wilhelm Von Humboldt, Michel Bréal, Franz Miklosich,
Friedrich Diez, Anton Marty, Domenico Pezzi, Mathias Duval, Joseph-Ernest
Renan etc.
Ao levantar as concepções lingüísticas do século XIX, trazemos uma
informação valiosa para o nosso trabalho, já que propomos estudar a Língua
Portuguesa em uso naquele momento histórico. Assim, será possível entender
algumas de características lingüísticas presentes no corpus da análise.
2.4 A Língua Portuguesa na 2ª metade do século XIX
Antes de iniciarmos a exposição de usos da língua portuguesa na
segunda metade do século XIX, julgamos oportuno retroceder ao início do
século, no intuito de configurarmos melhor o contexto onde nossa amostra foi
produzida.
A família real da corte lusitana aportou-se no Brasil, em 1808, porque
Portugal foi invadido pelas tropas francesas comandadas por Napoleão
Bonaparte. Com a mudança da sede da monarquia portuguesa para o Rio de
Janeiro, houve um aumento da população portuguesa no Brasil. Segundo Paul
Teyssier (2001), cerca de 15 mil portugueses seguiram os passos de D. Maria
I, o príncipe regente D. João, sua esposa e seus oito filhos. Com isso, a nova
capital brasileira, por meio da corte de D. João VI, acelerou a expansão da
41
cultura portuguesa para todo Brasil com medidas que envolviam questões
sociais. Nesse mister, a questão da Língua Portuguesa estava inclusa por dois
motivos principais. Primeiro, após a terrível experiência de um abalo sísmico e
conseqüentes incêndios que arrasaram a Real Biblioteca com sede em Lisboa
(1755), os portugueses criaram estratégias de emergência para reconstruir seu
valioso acervo. A partir disso, D. José I foi organizando o pouco que sobrou da
Real Livraria, constituindo, no Palácio da Ajuda, um valioso acervo para a
formação da nova biblioteca. Assim, após a chegada da família real no Brasil,
foi determinado que as 60 mil peças da Real Biblioteca da Ajuda, entre elas,
livros, manuscritos, gravuras, mapas, moedas etc, viessem para o Brasil entre
1810 e 1811 para comporem a Biblioteca Nacional que foi implantada, também,
para ajudar na divulgação do vernáculo lusitano em terras brasileiras.
Estudiosos só puderam ter acesso à Biblioteca Nacional com um licenciamento
régio, a partir de 1810. O público pôde consultá-la com a organização do
acervo de modo mais adequado, em 1814. Segundo, D. João VI criou a
imprensa no Brasil que, após ser proibida no período colonial, desenvolveu-se
com grande rapidez no século XIX. Tornou-se, então, um instrumento
importante na implantação definitiva da língua e serviu de apoio às conquistas
políticas do Brasil.
Nessa época, houve um movimento que defendia a tese de que os
professores utilizassem a gramática da língua nacional nas aulas de leitura e
escrita. Segundo Rosa Virgínia Matos e Silva (2004), a norma padrão
instaurou-se com a multiplicação dos normativistas brasileiros, em meados do
século XIX, e, dessa forma, a variante de prestígio foi designada e é este fato
que desencadeia no Brasil, a discussão de cunho político-lingüístico que trata
da caracterização da língua portuguesa em uso no Brasil, tendo em vista as
transformações lexicais, sintáticas e semânticas que ocorrem na língua.
Para confirmar essa tendência, Gladstone Chaves de Melo (1981: 91)
afirma que:
No segundo quartel do século passado, por efeito da independência política, o povo brasileiro toma consciência de sua existência como um todo nacional, já acentuadamente diverso do português. Nasce daí um
42
anseio por literatura própria, anseio que se realiza integralmente quando surge, na língua literária, um estilo brasileiro, ou seja, uma expressão lingüística reflexo da sensibilidade, do modo de ser e de viver brasileiro, por um lado, e eco, espelho, ressonância da paisagem, da terra e das vicissitudes históricas, das condições sociais, dos acidentes da nossa formação religiosa, humanística, política, econômica, por outro.
Mais adiante, o autor afirma que já se pode perceber essa nova visão
lingüística no Brasil, sobretudo, quando aponta autores do século XIX, como
José de Alencar e o mineiro de Paracatu, Afonso Arinos. Contudo, G. Ch. de
Melo considera que a mera existência daquilo que chamou de estilo brasileiro,
não pode representar uma língua brasileira. O lingüista e o filólogo devem
observar os fatos e fazer inferências de modo ponderado e com espírito
científico.
Essas questões, de todo modo, foram alvos de debates constantes e
cheios de argumentações dos dois lados. De um lado, portugueses e
brasileiros puristas consideravam que a construção de uma sintaxe própria, por
exemplo, colocava a língua num solecismo. De outro, os brasileiros adeptos da
nova tendência viam essa construção como algo nacionalista, pois seguia
padrões de uma brasilidade constituída.
Para confirmarmos isso, façamos referência ao texto Polêmica, no qual
se encontra o debate entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco. A par
disso, podemos citar, também, o Post Scriptum à Iracema, escrito por José de
Alencar (1870) que explicou, de maneira detalhada, o porquê daquele estilo
lingüístico.
Esses são debates importantes, pois, certamente, contribuíram para
discutir o português em uso no Brasil durante o século XIX, no que diz respeito
às suas marcas socioculturais. José de Alencar (1965: 239) expõe, entre
gramática, estilística e semântica, algo sobre o uso ortográfico em sua obra
Iracema, 2ª edição, assim:
43
3º O ditongo ‘eo’ e ‘eu’ é indistintamente usado na desinência de muitas palavras portuguesas; me parece preferível, como já se tem sugerido, reservar a forma ‘eo’ para a desinência aberta, como chapeo, boleo, arpeo, e a forma ‘eu’ para a desinência fechada, como meu, perdeu, deus, ateu etc... ...4º Escrevo a conjunção ‘si’ por essa forma, e não ‘se’, como em geral costumam. Não só a etimologia pede aquela ortografia latina, como tem ela a vantagem de discriminar a conjunção do pronome pessoal ‘se’. Nem importa que este pronome revista aquela forma em um de seus casos, pois então é sempre regido pela preposição, que determina a natureza da partícula – como ‘a si’ , ‘de si’, ‘por si’ etc.
Numa dessas discussões em torno da língua, Camilo Castelo Branco
escreveu a réplica seguinte, no Ecos Humorísticos do Minho, em 1880:
... Os senhores escritores brasileiros, que me enviam preleções de linguagem portuguesa, se me quiserem obsequiar dum modo significativo e proveitoso, mandem-me um papagaio, uma cutia e alguns frascos de pitanga. Quanto a linguagem muito obrigado, mas não se incomodem.
Nesses recortes, vemos que o entrave sempre foi duradouro e em alto
grau. No prefácio da Polêmica de Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco
(1966), Domingos Paschoal Cegalla disse que tanto Camilo Castelo Branco
como Carlos de Laet eram combativos por índole e amavam a luta, tendo sido
o espírito polêmico um dos traços mais acentuados de seu temperamento.
Envolveram-se ambos em constantes e rumorosas discussões com outros
lidadores da imprensa. Aquele era violento, cruel e hábil nas palavras em seus
ataques e réplicas. Este, mesmo feroz e impiedoso, preferia a ironia fina e era
mais calmo e equilibrado.
Conforme Silveira Bueno (1967:271), foram tantas as palavras que
vieram do romantismo brasileiro indianista ao português em uso no Brasil, que
algumas delas apareceram até em textos portugueses. Este autor ressalta,
44
ainda, que os elementos vocabulares são tão numerosos e correntes no Brasil,
que os escritores brasileiros poderiam escrever muitas páginas sem que os
portugueses conseguissem entendê-las. Na seqüência, S. Bueno cita algumas
palavras que, na visão dele, são contribuições de caráter essencial do
Romantismo brasileiro que Portugal não conheceu:
Caipira, caipora, imbira, peteca, pururuca, sororoca, mirim, tapera, cacique, urucu, tapioca, graúna, colibri, pipoca, pindaíba, arara, sabiá, sagüi, jaci, guaraci, taquara, camocim, corumim, maracujá, jaguar, jacaré, Iracema, Guaraciaba, Moema, Caramuru, Paraguassu, jururu, urutu, tatu, jararaca, aipim, igarapé, pereba, iara, paca, poti, içá, assay, araçá, genipapo, pajé, sacy, oca, carioca, Guanabara, jaçanã, maracanã, Canindé, boitatá, boi, tatorana, piroga, mandioca, mandi, saracura, pitanga, goiaba, taioba, Butantã etc.
Nessa perspectiva, o autor (op. cit.: 271) admoesta-nos para a questão da
formação de palavras e da sintaxe. Para esclarecer a primeira, ele diz que os
românticos introduziram na morfologia, um modo a mais de formar palavras e
explica que na época romântica brasileira, os autores reuniam dois
substantivos. Um deles funcionava em oposição ao outro, como adjetivo, tais
como: vestido-laranja, luvas-palha, chapéu-cinza, azul-pavão, gravata-marrom,
homem-prece, vida-martírio, vermelho-aurora, verde-mar, vermelho-salmão,
chapéu-chocolate, fita-groselha, vestido-creme, biblioteca-rosa, móveis-malva.
Em relação à segunda, S. Bueno (op. cit.: 272) afirma que a frase se torna
direta, evitando, desse modo, orações de grande extensão. Além disso, o verbo
deixa de ir para o final da frase e os hipérbatos tendiam ao desaparecimento.
Nesse processo, o uso da terceira pessoa ocupa o lugar de uso da segunda.
Do mesmo modo, a segunda do plural tornou-se única para a poesia e a prosa
e, a preferência pelo uso da próclise, também, foi uma característica do
Romantismo. Na regência dos verbos fugir e entrar, por exemplo, houve perda
da regência direta, podendo assumir várias construções: fugir o perigo, do
perigo, ao perigo; entrar a casa, na casa, à casa. Outros exemplos de sintaxes
que sofreram seleção: assistir ao espetáculo / assistir o espetáculo; assistir ao
doente / assistir o doente; visar um fim / visar a um fim; preferir café a leite /
45
preferir mais café do que leite; preferir morrer a falar / preferir antes morrer que
falar; estar na janela / estar à janela; entrar o banho / ao banho / no banho; ter
o chapéu na cabeça / ter o chapéu à cabeça; já não chove / já não chove mais;
sempre vai / já vai.
Em relação à ortografia, temos na história da língua portuguesa três
períodos: o fonético, até ao século XVI; o pseudo-etimológico, desde o século
XVI até 1904; e o moderno, desde 1911 até hoje. No século XIX, o movimento
da ortografia brasileira foi influenciado pelo nacionalismo proveniente da
independência do Brasil e outras conquistas políticas e sociais. A falta de uma
normatização da língua portuguesa, tanto para os europeus quanto para os
brasileiros, propiciou algumas oscilações em função das várias tentativas de
simplificações ortográficas, por exemplo. Isto causou alguns desencontros
lingüísticos, que poderão ser confirmados, como veremos adiante, a partir das
análises empreendidas nessa dissertação.
Já que nosso trabalho visa à análise de documentos de ordem jurídica,
não nos custa relatar que essa discussão em torno da língua causou embates,
também, na área do Direito, pois se trata de uma ciência da palavra, em
essência. Para isso, Clóvis Benviláqua (1906), além de criticar o purismo
exacerbado, aponta argumentos a favor de uma língua mais viva e que se
delineasse numa característica que não mutilasse as idéias empregadas no
texto final do Código Civil.
Em virtude dos ataques parnasianos que sofrera do senador Rui Barbosa,
C. Benviláqua defendeu seu anteprojeto, elaborado no final do século XIX, em
1899, deste modo:
... A Réplica é sem dúvida um ótimo expositor de gramática portuguesa, gramática prática, à moda Cândido de Figueiredo, com adubos de erudição mais extensa. Não serviria, porém, para modelo de argumentação. ... Avara na resposta aos pontos litigiosos e pródiga em considerações estranhas ao assunto em debate. Tal se mostra a Réplica; ao menos na parte que mais de perto me toca. E não tanto por nos ter dado um farto volume de filologia, após outro pouco menos volumoso, como
46
inesperado exórdio de um debate jurídico, e sim principalmente por achar sempre meios de trazer para o pleito o que melhor seria que permanecesse fora dele.
Diante do exposto, pudemos perceber que o movimento romântico no
Brasil, influenciado por idéias evolucionistas, ajudou a romper com a tradicional
literatura de Portugal. Essa temática foi retomada com maior força no
movimento modernista e, ainda, perdura contemporaneamente.
Nos testamentos produzidos em Passos, na segunda metade do século
XIX, percebemos a tendência brasileira no Português, como o uso proclítico
dos pronomes pessoais átonos:
Documento 1:
123. ra mulher eu me achar individado, fui pagando com al-
126. por Deos me ajudar, tanto que pude pagar as dividas e adquirir
132. e me foi mais facil em vida da minha primeira mulher vender
133. a única escrava que lhe servia para gastar em sua infermidade
139. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra-
Documento 2: 151. me ordenou que mandas-
180. se continha por me achar
181. como já disse pertubada
251. tima e amisade com que sem-
252. pre elles me tratarão= Decla-
O uso da conjunção subordinativa condicional si. Essa conjunção,
atualmente, é o se:
47
Documento 2:
125. rios e Partilhas, que si pro-
126. cedeo por fallecimento
127. de minha May
140. inteira embora si ache
146. o que nélle si continha
255. rogo si digne pelo amor de Deos
271. não si achar este em circuns-
O uso do artigo antes do pronome possessivo:
Documento 2:
17. ça e tenha de dar se o meo
18. Corpo á sepultura, recomen-
32. o meo caixão seja preparado . 35. para este fim, sendo con-
36. duzido o meo corpo em o di-
53. = Dezejo que o meo herdeiro
89. sal herdeiro de todos os
90. meos bens á recepção só-
No documento 1 há o uso da forma eu para a desinência fechada. Em
contrapartida, no documento 2 foi registrado o uso da forma eo para a
desinência fechada.
Documento 1:
3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta-
48
22. herdeiros dos meus bens, isto é das duas partes dos meus bens, bem
25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José
37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das
41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus
testamenteiros.
Documento 2:
8. ...do me deliberado a fazer meo
9.testamento como faço, de
10.minha livre vontade e posto
11.que enferma, em meo perfei-
12.to Juízo declaro minhas des-...
13.posições pela maneira e for-
14.ma seguinte; Primeiramen-
15.te que meo herdeiro, e testa-
16.menteiro logo que eu falle-
17.ça e tenha de dar se o meo
18.Corpo á sepultura,
32....o meo caixão seja preparado .
34. já tenho pronptos d’ antemão
35. para este fim, sendo con-
36. duzido o meo corpo em o di-...
53.= Dezejo que o meo herdeiro
54.e testamenteiro faça todos
55.os esforços para que este
56.acto do meo desaparecimen-
49
57.to seja tão inapercebido
65. tima dos meos fallecidos
66. Pais Joaquim Rodrigues
67. Rodrigues Lopes e Francisca Xa-
68. vier de Jesús...
Tupinismos que fazem parte do léxico do português do Brasil:
Documento 1:
9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias
10. do Termo de Tamanduá do Bispado de Marianna.
Documento 2:
71. por Freguesia de Pouzo Ale-
72. gre do Mandú désta Pro-
73. vincia de Minas Geraes,
Tamanduá (tamandu'a 'tipo de mamífero desdentado'); Mandú (ma'ndu
'feixe que anda').
Constatamos o uso da palavra capangas, de origem banta, provavelmente,
no documento 1.
139. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra-
140. zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven
kappanga (entre sovaco). Canpanga era uma bolsa que os viajantes
usavam para carregar objetos pequenos e diamantes dos garimpos. Uma
outra acepção da palavra é guarda-costas, pois os comerciantes que
50
compravam os achados dos garimpeiros, mandavam avisos, por meio de
seus empregados, que alertavam os homens do garimpo sobre a presença
da polícia nos garimpos.
Segundo K. Koerner (1995), o principio de contextualização é utilizado
para apresentar teorias lingüísticas propostas em períodos anteriores e
estabelecer o contexto geral do período pesquisado, pois as teorias
lingüísticas precisam de outras correntes intelectuais para se
desenvolverem. Para ele, a situação sócio-econômica e política merece a
atenção do historiógrafo da língua. Por isso, consideramos os pressupostos
históricos e intelectuais acima explicitados, importantes instrumentos para
entendermos melhor o clima de opinião da época estudada. Com isso,
utilizando, ainda, o princípio de contextualização, e os da imanência e da
adequação teórica, teremos condições de analisar os testamentos, a fim de
registrar suas características lingüísticas, cartoriais e religiosas.
51
CAPÍTULO III
O TESTAMENTO COMO DOCUMENTO HISTÓRICO-LINGÜÍSTICO
Veste esta mortalha
Quem mandô foi Deus; Quem mandô visti
Foi a mãe de Deus.
Amarre este cordão, Quem mandou foi Deus;
Quem mandou marrá Foi a mãe de Deus.
Bota este capuz,
Quem mandou foi Deus; Quem mandô buscar
Foi a mãe de Deus.
Bendito popular de Pernambuco para preparar o defunto – Getúlio César
3.1 Aspectos judaico-greco-romanos dos testamentos
Segundo Affonso Dionysio Gama (1953), a origem do testamento é
antiga. Os Hebreus, antes da Lei Mosaica, já utilizavam esse documento em
seus clãs. Consta esse costume em alguns capítulos do livro do Gênesis, entre
eles: Gn 15,3∗; Gn 25, 5∗∗ e Gn 48, 21-22∗∗∗. Assim, o uso dos testamentos
* E acrescentou: “Como não me deste descendência, um dos servos de minha casa é que será o meu herdeiro!” ** Abraão deu todos os seus bens a Isaac. *** Em seguida, Israel disse a José: “Estou para morrer, mas Deus estará com vocês e os levará de novo para a terra de seus pais. A você, e não a seus irmãos, eu darei Siquém, que eu tomei dos amorreus com minha espada e arco”.
52
passou pelo Egito, depois se expandiu pela Grécia. A priori, havia em Roma
dois tipos de testamento: o que era feito em tempo de paz e necessitava de
apresentação diante de assembléias para ser aprovado ou rejeitado, e o que
era feito em tempo de guerra em que os soldados, depois de prontos para as
batalhas, nomeavam seus herdeiros perante três ou quatro testemunhas. A par
disso, podemos dizer que os testamentos sempre foram utilizados de acordo
com os moldes e o formato vigentes na Grécia.
Nesse processo, Ney de Mello Almada (1991) diz que na sociedade
romana, propriedade e religião eram valores incondicionais para todos os
cidadãos, tendo em vista que a eleição de um sucessor era o ato mais
significativo na constituição de um testamento. Assim, o testador cumpria um
dever político e outro religioso ao mesmo tempo, pois era uma desonra morrer
intestado, ou seja, morrer sem deixar testamento.
3.1.2 A influência da religião católica, a concepção de morte e a concepção religiosa presentes nos testamentos do século XIX.
O censo do dever religioso na produção de testamentos sempre foi
legitimado pela Igreja Católica. Por meio do Direito Canônico, a Mater Eclesiae
favoreceu as disposições testamentárias em benefício próprio. Com isso, a
privação da comunhão e da sepultura seria um castigo para os crentes
abastados que não deixavam explícito no testamento, algum bem material à
Igreja. Caso acontecesse tal omissão por parte do testador, os herdeiros
aprovariam a concessão de uma parte da herança em proveito da alma do
falecido.
Nessa concepção religiosa, justifica-se a afirmação de Amanda
Aparecida Pagoto (2004), quando aponta que, geralmente, a elaboração do
testamento era feita muito tempo antes do falecimento do testador. Isso se
deve a um pensamento de que se corria o risco de morte súbita ou violenta.
Assim, a salvação da alma ficaria prejudicada porque não seria possível saber
quais eram as últimas disposições e vontades do testador, pois o início da
preparação da alma para o dia do juízo final configurava-se com a elaboração
53
do testamento. Nesse processo, o ethos religioso se constituiu e, ainda, em
nossos dias, circula na cultura ocidental.
De todo modo, sempre é perceptível na introdução dos testamentos, a
invocação de Deus ou de um santo. Essa estrutura é encontrada nesse tipo de
documento, desde o século XVI. Segundo A.A. Pagoto (op. cit.: 32):
Essa forma de apelo encontrada na introdução dos
documentos, mencionando os santos de devoção pessoal ou apelando a toda uma Corte Celeste, foi largamente usada nos testamentos, pois jamais um testador iria advogar em causa própria e, com essas apelações, poderia contar com a intervenção de advogados poderosos a seu favor.
Da mesma forma, os testamentos eram feitos como se fossem um ato
de contrição direcionado à Igreja Católica, isto é, era comum ao universo
cultural que pudesse haver um desconto nos débitos de consciência que
tivessem sidos adquiridos no percurso da vida do testador. Seguindo esse
mesmo raciocínio, havia uma preocupação em privilegiar os que prestaram
serviços ao testador durante sua vida. Em muitos casos, alguns escravos eram
alforriados ou, até mesmo, ganhavam algumas posses. Para aqueles escravos
que já se encontravam falecidos, no intuito de alívio de consciência, o testador
mandava dizer (rezar) missas em intenção às almas deles.
Conforme Agostinho Júnior Holanda Coe (2005), ser enterrado nas
igrejas a fim de facilitar a ascensão ao céu, era uma crença que surgiu na
idade média e se expandiu até o século XVIII. No entanto, A.A. Pagoto diz que
esse tipo de ação estendeu-se até o século XIX. Acreditava-se que o morto
somente ressuscitaria no juízo final se estivesse enterrado próximo à imagem
de algum santo dentro da igreja.
Essa prática acontecia apenas com os mais abastados, pois o espaço
físico da igreja era pequeno para tal procedimento. Contudo, muitos fiéis
contentavam-se em ser enterrados nas imediações do templo santo. Quanto
mais próximo o corpo ficasse de uma imagem de santo, mais possibilidades da
salvação o defunto obteria.
Para garantir a salvação da alma no dia do juízo final, alguns
procedimentos tornavam-se práticas obrigatórias testadas naqueles
54
documentos. Assim, o testador cultivava o hábito de deixar explícito em seu
testamento, como deveria ser vestido para a ocasião de seu enterro. As
mortalhas mais utilizadas eram os hábitos de Nossa Senhora do Carmo, São
Francisco, São Bento etc.
A presença e a participação das várias irmandades existentes nas
cidades àquela época delineavam o caráter essencial da prática religiosa.
Como já dissemos, os santos eram considerados excelentes advogados,
principalmente, àqueles que tinham certeza de sua passagem pelo purgatório.
Os santos e suas respectivas irmandades eram sempre mencionados nos
testamentos, a fim de que pudessem ser um elo entre o céu e a terra, já que
esse tipo de intercessão ajudaria no alcance do Reino dos céus. Do mesmo modo, estas marcas culturais da sociedade são delineadas
de forma bastante explícita naqueles documentos, quando é possível encontrar
neles, a declaração de que o testador e sua respectiva esposa participavam
das muitas irmandades que se estabeleceram no interior. Segundo Antônio
Theodoro Grilo (2003: 03)
No caso passense, figuravam: Irmandade do Rosário (dos homens pretos e dos homens brancos); Irmandade do Santíssimo Sacramento; Irmandade do Senhor dos Passos, e Irmandade de Nossa Senhora do Carmo (ou do Monte Carmelo), sediada em São João del Rei, que foi uma das mais poderosas da região, além de outras.
O mesmo autor registra que há determinações expressas nos
testamentos passenses que concedem aos herdeiros do testador ou mesmo
aos seus testamenteiros, a obrigação de quitar os débitos com as irmandades
que pertencia. Além disso, era comum que o testador mandasse celebrar
missas de corpo presente, detalhando aos testamenteiros, o número de missas
que deveriam ser rezadas após a realização do funeral, contendo o nome do
celebrante, o valor da esmola para cada celebração, as intenções de missa
para outras almas etc. Segundo A.A. Pagoto (op. cit.: 44), conforme a lei
expressa no título I das Constituições Primárias, as pessoas deveriam utilizar
seus inventários e testamentos para fixar a quantidade de missas e dividi-las
cuidadosamente entre os santos de devoção.
55
Isso acontecia porque havia uma preocupação grande com o destino da
alma, haja vista a concepção católica do século XIX sobre céu, inferno e
purgatório. Acreditava-se que, após a morte, poucos conseguiriam ir
diretamente para o céu, ou seja, apenas os santos e os puros de coração.
Dessa forma, restava para a maioria dessas almas, o purgatório, que era
considerado um lugar de purificação, no qual o pecador arrependido de seus
pecados esperava pelo julgamento da Corte Divina. A partir disso, é possível
compreender o porquê dos pedidos insistentes aos vivos para que mandassem
rezar muitas missas em favor do testador na hora de sua partida. Para isso,
seria preciso considerar os oito primeiros dias após a morte, que eram
chamados de oitavário ou otaviáro. As orações feitas nesses dias eram cruciais
para o defunto, porque sua alma poderia alcançar a graça de ter os pecados
perdoados pelo Supremo Tribunal Divino. A necessidade de anunciar a morte de alguém, principalmente da parte
mais abastada da sociedade, fez com que surgisse a idéia de usar os sinos das
Igrejas, para que as pessoas de posse pudessem confirmar suas posições
privilegiadas na sociedade. Em sua origem primeira, os sinos eram usados
para avisar a população de alguma ameaça. O fato de avisar um novo
falecimento, gerou um incômodo para todos, pois o uso dos sinos tornou-se
exagerado. Assim, a Igreja teve que criar uma regulamentação para que o
abuso não continuasse. Neste momento, queremos apresentar um fragmento
das Constituições Primárias do Arcebispado da Bahia que foi apresentado por
A.A. Pagoto (op. cit.: 47) :
Justamente se introduzio na Igreja Catholica o uso, e signaes pelos defuntos; assim para que os fiéis se lembrem de encommendar suas Almas a Deos nosso Senhor, como para que se incite, e avive nelles a memória da morte, com a qual nos reprimimos, e abstemos dos pecados. Porem porque a vaidade humana, e outros menos piedosos respeitos, tem introduzido neste particular alguns excessos; para que daqui em diante os não haja, ordenamos, e mandamos, que nisso haja toda aquella moderação que a prudência Cristhã, e religiosa pede (...).
56
O artigo 828 das referidas Constituições discorre sobre o uso dos toques
de acordo com alguns critérios: três sinais breves deveriam ser dados, quando
morria um homem. Quando uma mulher era a falecida, dois sinais. Na
ocorrência fatal de um menor, entre sete e quatorze anos, para ambos os
sexos, um sinal apenas deveria ser dado. Os sinais deveriam ser repetidos na
hora do cortejo fúnebre e, também, no momento do sepultamento. Em suma,
para os homens, não poderia passar de nove sinais, para as mulheres, seis
sinais. Para as crianças entre sete e quatorze anos, três sinais.
Por se tratar de algo oriundo da cultura e costume do povo, não há como
saber se as regulamentações da Igreja foram bem aceitas naquela época, haja
vista as muitas cidades do interior sul-mineiro que utilizam, em nossos dias,
esse recurso como algo marcante em funerais. Ressaltamos que, mais adiante,
nosso trabalho abordará a questão da influência religiosa paulista que se
instaurou na região onde foram produzidas as amostras, objetos de nossa
análise.
Com todos elementos registrados oficialmente por meio de testamentos,
podemos inferir que a Igreja tornou-se a base institucional e estrutural da
formação da sociedade passense do século XIX. Conforme A.T. Grilo os
patrimônios iniciais dos arraiais eram doados aos santos padroeiros. Além
disso, a religião católica organizava as funções sociais dos locais em formação.
3.2 O estatuto jurídico nos testamentos do século XIX
No capítulo I, abordamos sobre o uso da metalinguagem como recurso
para a investigação da HL, pois pretendemos empreender as análises
lingüístico-históricas utilizando os princípios norteadores daquela ciência.
Nesse processo, mencionaremos qual era o estatuto jurídico adotado para a
composição de testamentos no Brasil da segunda metade do século XIX. Para
tal, aplicaremos o recurso da metalinguagem científica no texto fac-similar do
código civil, a fim de fazer um estudo lingüístico do passado com uma
abordagem lingüística do tempo presente.
No Brasil, a história nos mostra que, no século XIX, as leis civis, com
pequenas modificações, eram provenientes de Portugal. Em 22 de dezembro
57
de 1858, a Consolidação das Leis Civis foi autorizada pelo Imperador D. Pedro
II. Em seu título III, capítulo IV que é nomeado Das formas dos testamentos,
Augusto Teixeira de Freitas (2003:621) configura o testamento desta maneira:
Artigo 1053. O testamento é de quatro especies, á saber: (1)
§ 1.º Publico, feito por Tabellião (2):
§ 2.º Cerrado, com instrumento de approvação (3) :
§ 3.º Particular, escripto pelo testadôr (4) :
§ 4.º Nuncupativo, ou feito de viva voz (5).
O primeiro era escrito pelo tabelião no livro de notas e deveria ser
assistido por cinco testemunhas varões e maiores de quatorze anos. As
testemunhas, se soubessem e pudessem, podiam assinar com o testador. No
caso desse não saber escrever, uma testemunha podia assinar por ele a seu
rogo, mas, segundo A.A. Pagoto, geralmente, o próprio tabelião assinava.
O segundo tipo de testamento teria que ser escrito pelo testador, ou por
outra pessoa a seu rogo para ser válido. Se ocorresse o segundo caso, o
testador deveria assiná-lo. Contudo, se o mesmo não soubesse assinar, o
documento seria assinado pela pessoa que o escreveu. Após isso, o testador
deveria entregar ao tabelião o testamento perante cinco testemunhas varões,
maiores de quatorze anos e o tabelião, por sua vez, teria que perguntar ao
testador, diante das testemunhas, se realmente aquele se fazia um documento
valioso, bom e firme. Dessa forma, o tabelião fazia o instrumento de aprovação,
declarando no próprio documento que seu testador o entregara de acordo com
sua vontade. Esse era o tipo mais usual e todos o conheciam como
Testamento Particular.
O testamento particular, terceiro da lista, deveria ser feito pelo testador,
senão, a seu rogo, outra pessoa poderia cumprir tal ato, mas, para isso, o
documento deveria ser subscrito por cinco testemunhas varões, maiores de
quatorze anos. O documento teria que ser lido perante as testemunhas e,
depois, assinado por elas. Também, deveria ser publicado em juízo, após a
morte do testador, citando as partes interessadas.
58
O quarto e último tipo de testamento era feito de viva voz ao tempo da
morte. Para que tivesse validade, fazia-se necessária a participação de seis
testemunhas, homens ou mulheres. Aqueles não poderiam ser menores de
quatorze anos. Estas, não poderiam ser menores de doze anos. Caso o
testador se convalescesse da enfermidade, o documento perdia seu valor.
Num conceito mais geral, Augusto Teixeira de Freitas (apud A.D.Gama:
1953: 17) adota a seguinte definição de testamento: testamento é a disposição
de última vontade. Além disso, esse autor diz que o testamento é um ato
personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável. Desse modo, segundo
ele, esse documento não pode ser feito por meio de procuradores ou
representantes legais ou, ainda, necessários.
É importante salientar que os testamentos arquivados no Centro de
Memória de Passos possuem a mesma estrutura e apresentam pequenas
variações na disposição do texto. Nas introduções, há a preocupação do
testador em declarar que é Católico Apostólico Romano e um seguidor fiel dos
preceitos da fé institucional. Como já apontamos anteriormente, os textos
trazem os santos de preferência do testador e significam a esperança de haver
uma intervenção celestial na hora do juízo final. Os testamentos produzidos no
sul de Minas confirmam o que A.A. Pagoto (op. cit: 32) disse:
... o testador se preocupava em relatar não somente suas últimas vontades terrenas, mas também servia como um mecanismo de confissão, em que o redator apontava seus pecados, seus infortúnios, suas deslealdades e dívidas pendentes, tanto divinas quanto terrenas, pois acreditavam que só confessando todos os seus pecados e “descarregando sua consciência” poderiam alcançar a Salvação da Alma.
No caso de nossas amostras documentais, são evidentes aquelas
preocupações, tais como: relato das últimas vontades terrenas, revelação dos
infortúnios, dívidas pendentes com as irmandades e com pessoas da
comunidade, como veremos adiante.
59
3.3 O testamento como documento jurídico no século XXI Depois de apontarmos quais foram as bases de cunho jurídico que
nortearam a elaboração do testamento, no Brasil, na segunda metade do
século XIX, e, em conformidade com o princípio da adequação teórica,
explicitaremos de que maneira o testamento pode ser produzido no Brasil do
século XXI. Nesse propósito, Arlindo Porto (2002:319) legifera no livro V, título
III, capítulo III que é intitulado Das formas ordinárias do testamento, desta
maneira:
SEÇÃO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1.862. São testamentos ordinários:
I – o público;
II – o cerrado;
III – o particular.
Art. 1.863. É proibido o testamento conjuntivo, seja simultâneo, recíproco ou
correspectivo.
O testamento público deve ser escrito por tabelião ou por seu substituto
legal em seu livro de notas, seguindo as disposições do testador que pode se
manifestar por meio de minuta, notas ou apontamentos. Após ser lavrado, sua
leitura em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas é obrigatória
e deve ser feita a um só tempo. Mas, se o testador quiser, poderá lê-lo na
presença do oficial e das testemunhas. O instrumento deve ser, depois da
leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.
No parágrafo único do artigo 1.864, A. Porto (op. cit.: 319) legisla que:
O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes
60
impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.
Caso o testador não souber assinar ou não puder, o oficial assinará em
seu lugar e pedirá para uma das testemunhas assinar também. Se a pessoa
inteiramente surda sabe ler, lerá o seu testamento, se não, tem que designar
alguém para fazê-lo em seu lugar, com as testemunhas presentes.
O testamento público é a única possibilidade para as pessoas cegas. Tal
documento deve ser lido em voz alta, duas vezes. Uma pelo tabelião e a outra
por uma das testemunhas que será designada pelo testante, fazendo-se de
tudo circunstanciada menção no testamento, A. Porto (op. cit.: 320).
Ao contrário da Consolidação das leis civis do século XIX, o testamento
público feito nos dias atuais é o mais utilizado. Segundo Sebastião Pimentel de
Vasconcelos, tabelião do Cartório do 2º ofício de Notas “Novinho”, em Passos,
MG, mais de 95% dos testamentos feitos em seu cartório são do tipo público.
O testamento cerrado pode ser escrito pelo testador, ou a seu rogo, por
outra pessoa, desde que leve a assinatura daquele. Segundo A. Porto (op. cit.:
320), para ser aprovado pelo tabelião, devem ser observadas as seguintes
formalidades:
I – que o testador o entregue ao tabelião em presença de duas testemunhas; II – que o testador declare que aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado; III – que o tabelião lavre, desde logo, o auto de aprovação, na presença de duas testemunhas, e o leia, em seguida, ao testador e testemunhas: IV – que o auto de aprovação seja assinado pelo tabelião, pelas testemunhas e pelo testador. Parágrafo único. O testamento cerrado pode ser escrito mecanicamente, desde que seu subscritor numere e autentique, com a sua assinatura, todas as páginas. Art. 1.869. O tabelião deve começar o auto de aprovação imediatamente depois da última palavra do testador, declarando, sob sua fé, que o testador lhe entregou para ser aprovado na presença das testemunhas, passando a cerrar e coser o instrumento aprovado. Parágrafo único. Se não houver espaço na última folha do testamento, para início da aprovação, o tabelião
61
aporá nele o seu sinal público, mencionando a circunstância no auto. Art. 1.870. Se o tabelião tiver escrito o testamento a rogo do testador, poderá, não obstante, aprová-lo.
O testador ou outra pessoa a seu rogo pode escrever o testamento
cerrado em língua nacional ou estrangeira. Esse tipo de testamento não
permite que o testante, que não saiba ou não possa ler, disponha de seus
bens.
A pessoa surda-muda poderá fazer seu testamento cerrado com a
condição de escrevê-lo todo e assiná-lo de próprio punho. Todavia, deverá
entregá-lo ao oficial público, diante de duas testemunhas, escrevendo na capa
do instrumento, o pedido de aprovação porque se trata de seu testamento.
Após sua aprovação e cerramento, esse documento será entregue ao
testador e o tabelião anotará em seu livro, dia, mês e ano da aprovação e
entrega do testamento.
O documento, após a morte do testador, deverá ser apresentado ao juiz
que o abrirá, registrará e ordenará seu cumprimento. Caso haja quaisquer
vícios externos ou suspeita de falsidade, perderá seu valor.
Conforme A. Porto (op. cit.: 321), o testamento particular pode ser
escrito manualmente ou mecanicamente, obedecendo aos incisos abaixo:
§ 1º Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. § 2º Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.
A publicação em juízo do testamento deve ser feita após a morte do
testante. Nesse ato, far-se-á a citação dos herdeiros legítimos. Se houver
concordância das testemunhas em relação à disposição do documento, ou ao
menos, sobre a sua leitura perante elas, e se reconhecerem as próprias
assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado.
62
Na ausência ou morte das testemunhas ou se, pelo menos uma delas
reconhecer o documento, ele poderá ser confirmado pelo juiz, se as provas de
sua veracidade forem suficientes.
No caso de haver fatos excepcionais contidos no testamento particular
de próprio punho e assinado pelo testador, o juiz poderá confirmá-lo, mesmo
não havendo testemunhas subscritas. Esse tipo de testamento pode ser escrito
em língua estrangeira, desde que haja inteligibilidade por parte das
testemunhas.
Ao estudarmos a configuração de uma amostra do documento
testamental dos séculos XIX e XXI, torna-se importante enfocarmos o conceito
de documento e quais são suas características peculiares, já que a HL
necessita de documentos escritos do passado para empreender suas
pesquisas.
3.4 O documento em Historiografia Lingüística
3.4.1 O documento como fonte na investigação científica
Conforme Mário Eduardo Viaro (2004: 171), o termo documento provém
da raiz latina doc- “ensinar” (docere). Ele se designa de doc.u.ment.u.m que,
inicialmente, significava lição. Considerando que lição vem do latim lec.t.io,
lec.t.ionem que, por sua vez vem do latim medieval lec.t.ur.a – ato de escolher
letras e palavras -, podemos conceituar, etimologicamente, o termo documento
como a leitura que ensina algo.
Temos, portanto, em todo tipo de fonte escrita, traços que permitem o
conhecimento das ações do homem em sociedade. J. Glénisson reporta-se ao
termo documento, dizendo que ele, também, é denominado como fonte,
testemunho ou traço. Arquivos oriundos dos poderes públicos ou de
particulares, assim como tudo aquilo que for impresso ou manuscrito, como: as
fontes escritas, leis, bulas pontificais, atos reais, minutas notariadas, biografias
e obras literárias, jornais e revistas, constituem-se documentos.
Não queremos dizer que apenas os documentos escritos são válidos
para a cientificidade da história, pois há uma série de fontes não escritas, em
63
que o historiador pode apoiar sua investigação, como por exemplo, os
monumentos, o material arqueológico, a pintura, os objetos, as antigas
moradas, a fotografia etc. J. Glénisson (op. cit.: 140) afirma que até mesmo
uma paisagem é um documento histórico. No entanto, todos os traços não
escritos são constatados após um estudo minucioso de textos seculares da
história.
O documento escrito é essencial para o ato pesquisador, mesmo porque
a nossa proposta investigadora em HL, trata do estudo dos traços deixados
pelo homem de determinado tempo, no nosso caso, as marcas histórico-
lingüísticas presentes em testamentos produzidos em Passos, Minas Gerais,
na 2ª metade do século XIX, possibilitando, dessa forma, o desvelamento de
algumas características lingüísticas e sociais daquela localidade.
3.4.2 Fonte primária, fonte secundária, documento oficial e documento marginal
Tanto a fonte primária como a fonte secundária podem ser tratadas com
olhares diferenciados na pesquisa historiográfica, ou seja, num plano mais
funcional, uma fonte será considerada primordial para determinada
investigação quando, dela, o historiador puder tirar informações que permitam
um conhecimento amplo de mundo. Por exemplo, a fonte primária para a
análise de uma pintura é a própria obra de arte. É óbvio que o historiador da
arte precisa recorrer a textos escritos para fundamentar sua pesquisa, mas,
nesse caso, o documento escrito passa a ser mais um instrumento de
pesquisa. Ao contrário, o historiógrafo da língua necessita primariamente de
fontes escritas, sem as quais é impossível obter resultados de seus estudos.
Outras fontes podem ser aproveitadas nesse tipo de trabalho, mas serão
sempre vistas como secundárias.
Seguindo a mesma reflexão acerca de distintas fontes histórico-
lingüísticas, discutiremos aqui, ainda que pouco claro para muitos
historiadores, o conceito de documento oficial e documento marginal.
64
Por um lado, no âmbito jurídico, diz-se que todo documento que tem
como objetivo a instauração de noções de direitos e deveres na sociedade, e é
escrito e assinado pelo titular ou por procuração diante de algum tipo de juízo,
configura-se num documento oficial. Por outro, o documento marginal é aquele
que se encontra fora dos padrões institucionais da sociedade, isto é, não há
registro oficial desses documentos. Além disso, eles são produzidos de uma
forma muito subjetiva, porque são representados por cartas pessoais, obras de
ficção, diário de uma personalidade, transcrição de entrevista etc. No entanto,
para a HL, todo documento eleito pelo historiógrafo da língua como objeto de
pesquisa torna-se oficial, porque, diante da metodologia proposta por ele, fatos
importantes podem vir à tona a partir da minuciosa observação de
particularidades internas contidas nele. Em alusão ao documento literário, M.
de S. Almeida (2003:75) deixa clara esta questão quando afirma que:
Um trabalho, que tenha como fonte de pesquisa o documento literário, não diverge de estudos baseados em outros documentos tidos por oficiais. Ambos são resultados de uma série de análises e interpretações necessárias ao esclarecimento do texto. O pesquisador, contudo, tem na ficção uma fonte maior de riquezas que em outro documento qualquer. Cabe a ele valorizar estes aspectos do documento, validando igualmente a fonte. .
Fica evidenciado, no caso da pesquisa historiográfica, que a análise de
qualquer documento escrito torna-se importante, na medida em que, no interior
do documento, podemos apreender dados da língua e da história de
determinada cultura. Nesse decurso, trazemos à baila o testamento como
documento histórico-lingüístico, já que nesta dissertação é o foco da análise
que estamos empreendendo. Trata-se de um documento emanado do poder
público, haja vista a superestrutura a que deve obedecer, além das diretrizes
do código civil que deve cumprir. O infringir das normas resulta na nulidade
desse documento.
65
3.5 Identificação e contextualização do corpus As amostras documentais que norteiam essa dissertação estão
arquivadas no Centro de Memória Estação Cultura na cidade de Passos, Minas
Gerais. Escolhemos, como amostra, dois testamentos que serão o viés de
nossa pesquisa: o testamento de João Pimenta de Abreu (1864) e o
testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo (1864). Queremos destacar
que, embora o testamento tenha um cunho jurídico no século XIX, ele está permeado por marcas de religiosidade. Nesse sentido, analisaremos a
organização lingüística desses documentos, a fim de desvelar determinadas
marcas do português em uso, no Brasil, no século XIX e as instâncias cartorial
e religiosa constitutivas de memória social, por meio de fatores históricos e
socioculturais.
3.5.1 João Pimenta de Abreu 5
João Pimenta de Abreu, como consta de seu testamento, é filho de
Magdalena Maria Rodrigues de Jesus e do Capitão João de Deos Pimenta de
Abreu. Segundo José Gomide Borges (1992), é presumível que os pais desse
testador casaram-se no ano de 1783 em Candeias, MG e conceberam quatro
filhos, na seguinte seqüência: João Pimenta de Abreu, Ana Antônia Pimenta,
Maria Pimenta de Jesus e Joaquim José Pimenta (Joaquim Pimenta de
Abreu?), todos nascidos no Arraial de Nossa Senhora das Candeias (Candeias,
MG). Lá, João Pimenta de Abreu casou-se com Antonia Maria Fausta e tiveram
cinco filhos: Maria, Thereza, Joanna, Anna, e João. Com o falecimento da
esposa, o testador em questão, partiu, ainda em Candeias, MG, para sua 2ª
núpcias com Silvéria Maria da Conceição e desta vez, tiveram quatorze filhos:
5 É oportuno mencionarmos uma particular informação: Antônio Cândido, aquele que é considerado, contemporaneamente, o mais importante crítico literário e autor de obras fundamentais do Brasil, viveu em Cássia (Arraial de Santa Rita de Cássia) até os dez anos; é tataraneto de João Pimenta de Abreu e Silvéria Maria da Conceição e bisneto de João Candido de Mello e Souza, que é o terceiro testamenteiro e genro do João Pimenta.
66
José, Joaquim, Antonio, Manoel, Domingos, Francisco, João, Cândido,
Belchior, Maria, Anna, Matildes, Hypolita e Maria.
A irmã de João Pimenta de Abreu, Maria Pimenta de Jesus, casou-se
com o Capitão Manuel José Lemos. Após sua morte, o Capitão consorciou-se
com Hipolita Cassiana do Carmo. Deste tronco familiar, os cunhados João
Pimenta de Abreu e Manuel José Lemos, surgiu a decisão de comprarem
terras às margens do Rio Grande, onde está localizado o município de Passos
nos dias atuais.
3.5.1.1 O testamento de João Pimenta de Abreu Aplicaremos o recurso da metalinguagem científica para explicar o
conteúdo dos documentos testamentais e suas implicações contextuais.
O testamento assinado de próprio punho por João Pimenta de Abreu
em 1º de dezembro de 1864, relata que o testador está numa situação física
frágil e pressente a morte. Por isso, pretende documentar suas disposições de
última vontade. No entanto, faz questão de salientar que suas condições
intelectuais estão intactas, apontando a validade jurídica do documento. João Pimenta de Abreu declara que é católico apostólico romano e filho
legítimo de João de Deos Pimenta de Abreu e de Magdalena Maria Rodrigues
de Jesus. Declara, ainda, que foi casado em conformidade com as leis da
Igreja, por duas vezes. Assim, delineia sua constituição familiar no testamento
e cita seus cinco filhos do 1º casamento com Antonia Maria Fausta que morreu
em Candeias em 1825, e os quatorze filhos do 2º casamento com Silvéria
Maria da Conceição, deixando claro que todos eles são herdeiros das duas
partes de seus bens, inclusive seus netos cujos pais são falecidos. Contudo,
como consta mais adiante do documento, ele exclui muitas pessoas de seu
testamento, até alguns filhos. Em seguida, nomeia seus três testamenteiros:
José Caetano Machado, Antônio Pires de Morais e João Candido de Mello e
Souza. Todos os testamenteiros são seus genros. Deixa 100 mil réis para
quem aceitar sua testamentaria e pede que seus testamenteiros não cobrem os
20% que era um costume daquela época. Dá prazo de dois anos para que seus
testamenteiros cumpram as contas finais de seu testamento e um ano para
67
cumprirem as obrigações para com o Pio, ou seja, a Igreja. Cabe salientar que
o Papa da época estudada era o Cardeal italiano Mastai, que foi eleito no dia
16 de junho de 1846 e quis chamar-se Pio IX. É considerado um grande Papa
porque enfrentou desafios por circunstâncias políticas, entre eles, a unificação
da Itália e a perda dos estados pontifícios.
Declara que participa das irmandades Nossa Senhora do Carmo, Terra
Santa e Senhora Mãe dos homens e que nada deve a elas, e declara, ainda,
que é irmão das irmandades do Senhor Bom Jesus dos Passos e da Senhora
do Rosário e deve os anuais a essas instituições da Igreja e pede aos
testamenteiros que paguem estas e outras irmandades as que, por acaso,
deva. João Pimenta dá a incumbência do anúncio de sua morte aos
testamenteiros, que deveriam avisar os procuradores de todas aquelas
irmandades, inclusive a de Nossa Senhora do Carmo, com sede em Ouro
Preto.
Ao falar de sua morte, o testador discorre sobre quais serão os
procedimentos para o seu funeral. Ele ordena que seu corpo seja envolvido
num hábito de Nossa Senhora do Carmo e que esteja com correia e
escapulário. Essa correia é um tipo de cordão que usavam para amarrar os
defuntos na preparação do corpo para o enterro. Continha alguns nós,
simbolizando as orações feitas durante o ritual do vestuário. O escapulário é
um tipo de faixa de tecido que frades e freiras de algumas ordens religiosas
usam pendentes sobre o peito. Significa a devoção representada por dois
pedaços de pano benzido e que são ligados por duas fitas, sobre os quais está
escrito o nome da Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo. A tradição carmelita
conta que o uso do escapulário tornou-se importante instrumento de fé quando,
em 1251, Nossa Senhora do Carmo apareceu ao superior geral da ordem dos
carmelitas, Simão Stock, entregando e dizendo-lhe as seguintes palavras:
Recebe, filho diletíssimo, o escapulário de tua ordem, sinal de minha
confraternidade, privilégio para ti e para todos os carmelitas. Todos os que
morrerem revestidos deste escapulário não padecerão o fogo do inferno. É um
sinal de salvação, refúgio nos perigos, aliança de paz e pacto para sempre.
Para seguir essa tendência purificadora, João Pimenta atesta que quer
um enterro sem pompa e decente, bem como ordena a celebração de missas
68
de corpo presente e após o seu sepultamento, sendo no primeiro caso, uma
para cada padre que estivesse presente na data dos rituais fúnebres e, no
segundo, dois oitavários de missas celebrados por dois padres do local. Assim,
podemos dizer que a missa celebrada por um padre no dia do velório, mais oito
missas celebradas em oito dias seguidos, formam uma novena. Esta é uma
prática que remonta a passagem bíblica em que Maria e os Discípulos ficaram
nove dias juntos entre a Ascensão de Jesus e o Pentecostes.
O testante pede aos testamenteiros que mandem celebrar mais quarenta
e cinco missas por sua alma e pede a eles que paguem a esmola de mil réis
por cada missa. Ainda, pede celebração de cinco missas para cada uma de
suas esposas, oito missas pelos seus irmãos falecidos, cinco missas pelas
almas do purgatório e dez pelas almas dos escravos e escravas da casa.
Ele deixa a quantia de 50 mil réis de sua terça para as obras de Nossa
Senhora da Penha. A terça era a parte de que o testador dispunha livremente,
ou seja, o testador podia transmitir apenas um terço de seus bens. A herança
do cônjuge sobrevivente seria de acordo com o regime de casamento
escolhido. O contrato que estabelecia a comunhão de bens, que era a forma
mais comum, era chamada de carta de ametade. Dessa forma, o cônjuge
herdeiro ficava com meia parte do conjunto dos bens que era deixado pelo
testador e depois de descontar as disposições de última vontade do testador,
os filhos recebiam a outra metade dos bens.
A partir de sua terça, deixa a quantia de duzentos mil réis, além daquilo
que é garantido por lei, a sua filha do primeiro casamento, Maria das Dores,
casada com Antonio Pires de Moraes, pelo zelo que ela teve com ele durante
sua vida. Ele, ainda, privilegia uma neta de nome Amélia e exclui o pai dela,
Joaquim José de Toledo Pimenta. Encaminha 100 mil réis a sua neta Maria,
filha de seu genro Miguel Gonçalves Borges, mas exclui os netos, filhos desse
mesmo genro.
Em seguida, deserda o filho Domingos e delega Isabel, esposa desse
filho, para receber no lugar dele, mas alerta que a herança não poderia ser
gasta com dívidas contraídas. Exclui os netos que são filhos de Joze Ferreira
Carvalhaes e, também, o seu filho José Pimenta de Abreu, herdando em seu
lugar, sua neta Rita, casada com o neto João Caetano.
69
João Pimenta declara os seguintes dotes que deu aos filhos do primeiro
casamento: a escrava Felícia no valor de trezentos mil réis para sua filha
Joanna; a escrava Joaquina no valor de quatrocentos mil réis para sua filha
Thereza; a escrava Maria no valor de quatrocentos mil réis, bem como a
escrava Joaquina no valor de seiscentos e cinqüenta réis para sua filha Anna; e
ao filho João, o escravo João no valor de trezentos mil réis e cento e cinqüenta
e seis mil e quatrocentos e oitenta réis em dinheiro. O dote, assim como o
cristianismo e outras culturas européias, foi uma prática que chegou ao Brasil
no século XVI, pelos portugueses, mas, ao final do século XIX, esse costume
tornara-se raro e logo desapareceu. Esses dotes eram considerados a parte da
herança adiantada que, na maioria quase absoluta, destinava-se às filhas, para
que pudessem começar, de forma tranqüila, a vida matrimonial.
Na seqüência, João Pimenta de Abreu declara que os dotes dos filhos
do 2º casamento constavam nos recibos que estavam em seu poder. Ele
declara, também, que pagou uma dívida do filho João Pimenta de Moraes e
que, por isso, seria descontada na parte da herança que caberia ao mesmo. Há
uma ressalva: se o valor da parte que ficaria para este não fosse o bastante
para repor aquele débito, o referido filho deveria ressarcir o restante dos
herdeiros.
Em seguida, exclui o filho Antonio de herdar qualquer coisa, pois este já
havia desfrutado muito de sua fazenda, vendendo madeiras que lá existiam. A
mesma declaração de que os bens deveriam ser repartidos na forma da lei
entre os seus herdeiros é contundente ao testar que os excluídos não podiam
herdar. Percebemos na narração do testamento a ação de um espírito justo
que se instaurou no testador, haja vista o desprendimento material que o afetou
por ocasião da aproximação de sua morte.
Há a preocupação em declarar que ele não possuía quase nada no
momento da morte de sua 1ª mulher, além de uma criolinha e de um escravo
chamado Lourenço. Este último encontrava-se fugido, por isso teve que lançar
mão do escravo José, que havia recebido de dote de sua 2ª mulher, para pagar
dívidas ao Capitão Antonio Rodrigues Neves. Assim, João Pimenta de Abreu
expõe que só conseguiu pagar as dívidas que contraiu quando era casado pela
70
primeira vez, com alguns bens que recebeu de dote do segundo casamento e
mais alguns recursos que havia conquistado com a ajuda de Deus.
O autor do documento quis deixar claro que não usou os dotes que as
filhas haviam ganhado de seus padrinhos, em benefício de sua primeira esposa
que estava doente. Por isso, faz questão de mencionar que, na medida que
aquelas iam se casando, ele entregava esses dotes aos maridos.
Destaca, ainda, que fez um inventário de forma amigável com seus filhos
e genros de seu primeiro matrimônio, mas delata o genro Miguel Gonçalves
Borges dizendo que este o coagiu a fazer o referido inventário. E diz que sofreu
ameaças desse genro que trazia capangas armados. O testador termina o seu
documento relatando que o tal inventário continha em seu texto a
impossibilidade de declarar algum bem, pois ele devia muito ao Capitão
Moreira. Essa dívida foi paga somente oito anos após a morte de sua 1ª mulher
e está relatada no testamento de seu finado pai que estava guardado em sua
caixa.
O testamento de João Pimenta de Abreu foi escrito por João Ferreira
Godinho a pedido dele, de acordo com a lei, na Fazenda da Cachoeira em 1º
de dezembro de 1864.
3.5.2 Maria Joaquina do Espirito Santo
Alguns motivos nos fizeram escolher o testamento de Maria Joaquina do
Espirito Santo como corpus de nosso trabalho. Primeiro, ele foi constituído,
como não poderia ser diferente, no mesmo período em que foi feito o
testamento do João Pimenta de Abreu e na região que pertencia ao Termo da
Vila do Senhor dos Passos. Segundo, inicialmente, queríamos observar
possíveis diferenças lingüísticas nos testamentos, já que se tratava de um
testador e de uma testadora. Terceiro e último, Maria Joaquina do Espírito
Santo não é, ou pelo menos não era, conhecida historicamente no local onde
viveu (Ibiraci, MG, atualmente). Desse modo, esta dissertação pode ser uma
fonte de pesquisa para aqueles que pretendem investigar a língua e/ou a
história daquela localidade.
71
3.5.2.1 O testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo
Maria Joaquina do Espirito Santo começa seu testamento invocando o
nome de Deus e diz que é cristã católica e apostólica romana e que foi criada e
educada nessa religião e espera morrer nessa fé. Ao aguardar sua morte, se
dispõe a fazer seu testamento por vontade própria. Relata que está doente,
mas em perfeito juízo. Em sua primeira declaração, organiza suas disposições
assim: que o seu herdeiro e testamenteiro, logo após sua morte, fique
responsável pelo funeral, obedecendo a algumas recomendações: que o corpo
fosse envolto no hábito da Ordem de São Francisco das Chagas e com capa
da Senhora das Dores de quem se diz indigna irmã. Além disso, deveria ser
enterrada no adro da Igreja Matriz de Dores do Aterrado (Ibiraci, MG, nos dias
de hoje) o mais perto possível da entrada da porta principal. O caixão deveria
ser preparado com (...6) para levar o seu corpo com acompanhamento solene
que levasse a cruz e outros objetos utilizados nestas ocasiões. Pediu as
encomendações que, na época, eram feitas apenas pelos padres, e toques dos
sinos, respeitando as orientações da Igreja. É vontade da testadora que haja
uma missa de corpo presente e mais um oitavário delas, ou seja, oito missas
celebradas em oito dias consecutivos, que se configuram numa novena. Todos
os pedidos feitos no âmbito religioso confirmam tudo aquilo que mencionamos
no item 3.1.2. Em seguida, Maria Joaquina do Espirito Santo pede ao seu herdeiro e
testamenteiro que sua morte seja tão imperceptível quanto foi sua vida e
recomenda isso com veemência, pois acha que somente nos corações
sensíveis existe compaixão. Declara que é filha legítima de Joaquim Rodrigues
Lopes e Francisca Xavier de Jesus que são de Pouso Alegre, MG e diz que foi
batizada nesta freguesia.
A testadora declara que é casada com Antonio Felippe da Silva que estava
desaparecido há 20 anos e, portanto, não sabia se estava vivo. Declara,
também, que teve apenas um filho legítimo daquele consórcio e o institui como
o seu universal herdeiro. Declara, ainda, que deixa duzentos réis em prol da
liberdade do escravo Manoel, que era pardo, ficando o restante do valor dele
6 Na cópia do testamento que possuímos falta a última linha da primeira lauda.
72
como pagamento do testamenteiro que aceitasse seu documento de
disposições de última vontade. Ela declarou o valor desse escravo: dois contos
de réis.
Ela faz uma denúncia sobre um requerimento que teve que assinar por
ocasião da morte de sua mãe. Explana que o requerente, o juiz municipal do
termo, fez o documento em seu nome, mas contra sua vontade. Tal
requerimento dava toda a terça de seus bens a favor do escravo Manoel pardo.
Ela havia demonstrado a intenção de oferecer alguma quantia em favor do
escravo citado, no entanto, repudiou a ação de dar sua terça inteira. Na
seqüência, Maria Joaquina do Espírito Santo conta que assinou o documento,
juntamente com João Gonçalves Lopes (talvez uma testemunha), sem saber o
que nele continha, porque estava perturbada com a presença do juiz e, por
isso, protestou em alto e bom som aquilo que considerou uma extorsão, já que
aquela ação não era de sua vontade, declarando que aquele requerimento não
poderia prevalecer porque se tratava de um ato de má fé. Reafirma que esse
documento foi feito clandestinamente e de forma atropelada na casa de Manoel
Joaquim de Andrade e adverte que tem consciência de seus direitos e quer ser
atendida.
Ela declara que deve à irmandade do Divino Espírito Santo cinqüenta mil
réis e às irmandades de Nossa Senhora Mãe dos homens e de São Francisco
das Chagas vinte anuais. Fazer pagamentos anuais às irmandades existentes
na época era outra prática muito comum. Quitar essas dívidas era uma questão
de honra para o testador, haja vista o seu temor diante das autoridades
celestiais.
Há a declaração de dívidas com pessoas do local e cita os nomes de seus
credores. Algumas dessas dívidas, apesar de ter consciência delas, não sabe
dizer quais são os valores devidos. Depois, declara que é de sua vontade que
a escrava Catharina Africana seja destinada para pagar tais dívidas e, além
disso, declara que possui mais uma escrava chamada Maria Francisca no valor
de oitenta e dois mil e noventa e oito réis; terras no valor de seiscentos mil réis
e outros objetos que estão declarados em seus registros.
Declara e nomeia para seu testamenteiro e herdeiro de sua terça Inocêncio
Gomes Figueira em primeiro lugar. Em segundo, Jose Antunes Cintra e em
73
terceiro, Luiz Alves Carrijo da Cunha e relata que os escolhe pela confiança, fé
e amizade que tem por eles. Pede aos testamenteiros que cumpram, pelo amor
de Deus, aquilo que está determinado no prazo de dois anos, a começar pela
abertura do documento. A testadora declara que o seu testamenteiro será o
tutor legal de seu filho Miguel, pois falta a este, capacidade de administração e
senso comum. Provavelmente, o filho dela tinha algum problema de ordem
psicológica. Confirma essa nomeação, para que o magistrado aprove quando
receber o requerimento. Declara que o seu testamenteiro tomará posse de
todos os seus bens logo após o seu falecimento, cumprindo todas as
exigências que constam do testamento e pede a este que zele pelo bem-estar
do filho como se fora seu próprio pai.
Explicita que, por não saber escrever, pediu a Pedro Gil de Oliveira Horta
que o fizesse por ela na Fazenda do Aterradinho em 19 de junho de 1864.
3.6 O testamento e a axiologia de sua forma textual
Conforme Ciro Flamarion Cardoso & Ronaldo Vainfas (1997), um
documento carrega uma superestrutura capaz de deixar interpretar sua
mensagem em função de seu contexto e conteúdo históricos. Por isso, é
preciso que o historiógrafo da língua atente, de maneira pormenorizada, à
forma do texto.
Assim, a análise dessas formas e relações contidas nos documentos
escolhidos mostrará a língua e o clima de opinião da época em que aquele
registro social foi construído. Neste mister, o historiógrafo da língua relaciona o
documento àquilo que é inerente ao social.
Para isso, faz-se necessário levantar uma série de métodos e técnicas
para que, por meio da análise histórico-lingüística, os testamentos possam
revelar algumas características lingüísticas, cartoriais e religiosas, porque
esses documentos são passíveis de interpretação.
3.6.1 A organização do testamento passense oitocentista
São partes constituintes dos testamentos as seguintes estruturas:
74
a) A invocação de um santo ou de Deus na introdução do testamento:
Documento 2:
1. Em nome de Deos amem.
b) Declaração de que pertencia à Igreja Católica Apostólica Romana,
como se fosse um ato de contrição, para ter desconto nos débitos de
consciência:
Documento 1:
5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de
6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.
Documento 2:
5. como Christão Catholica e Aposto-
6. lica Romana que sou, em qual
7. Religião nasci e fui criada, e
8. educada e em que tenho
conservado, e espero morrer,
c) Privilégios concedidos para quem prestou serviço ao testador durante
sua vida:
Documento 1:
60. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a minha
61. filha Maria das dores cazada com Antonio Pires de Moraes,
62. em remuneração do zelo e caridade que commigo tem tido, isto
63. alem do que lhe couber nos remanecentes da minha terça.
75
Documento 2:
238. = Declaro que nomeio para
239. meo testamenteiro, e herdeiro
240. da minha terça em primeiro
241. lugar ao Senhor Inocencio
242. Gomes Figueira= em segun-
243. do lugar ao Senhor Joze
244. Antunes Cintra= e em terceiro
245. lugar ao Senhor Luiz
246. Alves Carrijo da Cunha, pela
247. muita confiança que ponho
248. na fé, probidade, intelligencia
249. e assiduidade de qualquer
250. déstes Senhores, e pela muita es-
251. tima e amisade com que sem-
252. pre elles me tratarão
d) Posses doadas aos escravos para que comprassem suas alforrias:
Documento 2:
112. Declaro que
113. deicho ao Escravo Mano-
114. el pardo, que houve por
115. herança de minha falle-
116. cida Maÿ, avaliado em
117. dous contos de reis a quan-
118. tia de duzentos mil reis de
76
119. esmolla em adjutório
120. de sua alforria, ficando o res-
121. tante do seo valor perten-
122. cendo a minha terça co-
123. mo já disse...
e) Mandar celebrar missas para os escravos que já eram falecidos, para
alívio de consciência:
Documento 1:
55. Assim mais mandará dizer dez missas por tenção e alma de
56. todos os escravos e escravas da caza.
f) Explicitação das vestimentas e paramentos, nas quais o corpo do
testador deveria ser envolvido:
Documento 1:
39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo
40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora.
Documento 2:
16. ...logo que eu falle-
17. ça e tenha de dar se o meo
18. Corpo á sepultura, recomen-
19. do que seja este envolvido
20. em hum habito da Ordem
21. de São Francisco das Cha-
77
22. gas e da Senhora Maÿ dos
23. homens com capa da Se-
24. nhora das Dores,...
31. ...e que
32. o meo caixão seja preparado .
33. ..............................(falta uma linha)
34. já tenho pronptos d’ antemão
35. para este fim, sendo con-
36. duzido o meo corpo em o di-
37. to caixão com a companha-
38. mento solenne levando em
39. frente a Cruz e mais objetos
40. que costumão servir em se-
41. melhantes occaziãoes efazen-
42. do se as encommendacãoes do
43. costume...
g) Pedido para sepultar o corpo dentro ou ao redor da Igreja, próximo a
uma imagem de santo, para que houvesse maior possibilidade de salvação:
Documento 2:
24. ...de quem
25. sou indigna Irmam pa-
26. ra ser enterrada no adro
27. da Igreja Matriz desta Fre-
28. guezia o mais proxima-
78
29. mente que for possivel
30. a entrada da porta princi-
31. pal da mesma Igreja,...
h) Ordenações para os herdeiros ou testamenteiros, a fim de que
pudessem quitar débitos com as irmandades e com pessoas da comunidade:
Documento 1:
31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter
32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens, as quais irmandades
33. Nada devo, por estarem pagas; bem como sou irmão da irmandade
34. do Senhor Bom Jesus dos Passos, e da Senhora do Rozario desta Ci-
35. dade, e devo annuaes que meus testamenteiros pagarão, e a ou-
36. tra qual quer irmandade que eu esteja a dever. Logo que eu
37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das
38. mesmas irmandades, bem como a do Carmo no Ouro Preto.
135. Alem do que devíamos ao Neves, devíamos mais ao capitão Anto-
136. nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas
Documento 2:
200. Declaro que devo ao
201. Divino Espirito Santo cincoenta
202. mil reis, e assim mais a Nossa
203. Senhora Maÿ dos homens vin-
204. te annos de annuaes entre
205. ella e São Francisco das Cha-
206. gas do tempo que era Juiz o fal-
79
207. lecido Superior Padre Jero-
208. nimo Gonçalves de Macedo
209. = Declaro que devo mais ao
210. Senhor Caetano Antunes Cin-
211. tra não sei quanto, e bem as-
212. sim ao Senhor Joaquim Fran-
213. cisco da Silva Souto, que tam-
214. bem não sei quanto, ao Se-
215. nhor Joze Manoel da Silva
216. e Oliveira Sobrinho cento e dezese-
217. te mil reis, ao Senhor Inocen-
218. cio Gomes Figueira oitenta
219. seis mil e quinhentos reis
220. = que anda tudo em trezen-
221. tos e trez mil e quinhentos
222. reis fora os que não sei as
223. quantias a cima declara-
224.das=...
i) Recomendação para um sepultamento sem pompa:
Documento 1:
41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus
testamenteiros
80
Documento 2:
53. = Dezejo que o meo herdeiro
54. e testamenteiro faça todos
55. os esforços para que este
56. acto do meo desaparecimen-
57. to seja tão inapercebido
58. como foi a minha vida
59. o que muito lhe recomen-
60. do por que overdadeiro dó
61. só está nos corações sensiveis
62. e não em exterioridades de
63. representação esteril.
j) Mandar celebrar missa de corpo presente e nos oitos dias seguintes
(oitavário), constituindo, dessa forma, a novena. No documento 1, há um
pedido para que o testamenteiro mandasse rezar quarenta e cinco
missas pela alma do testador. Cada missa teria a esmola de mil réis.
Havia a crença de que quanto mais missas fossem rezadas, menos
tempo a alma ficaria no purgatório:
Documento 1:
42. Meus Testamenteiros mandarão dizer por minha alma tan-
43. tas missas de corpo presente quantos forem os Sacerdotes
44. que acompanharem meu corpo a sepultura.
45. Meus testamenteiros mandarão dizer por minha alma dois oita-
46. varios de missas sendo hum pelo Padre João Prudêncio, e outro
47. pelo Vigário Ulhoa Cintra, se a esse tempo forem vivos.
81
48. Assim mais quarenta e cinco missas por minha alma pela es-
49. mola de mil reis cada huma.
Documento 2:
48. Tambem he minha vontade
49. que se diga por minha al-
50. ma huma missa de corpo pre-
51. zente, e logo em seguida ma-
52. is hum oitavario déllas =
l) Recomendação para o usar os sinos da Igreja na hora do
sepultamento, de acordo com as regulamentações vigentes:
Documento 2:
43. ...mais demons-
44. traçãoes que há dos signa-
45. es e toques de sino recom
46. mendados pelo rito da Igreja
47. em taes circunstancias=
m) Relato das últimas vontades terrenas: expressou vontade de fazer o
testamento; ressaltou o credo na Igreja Católica; nomeou os
testamenteiros e pediu que um deles que aceitasse sua testamentaria e
que o testamenteiro cumpra os pedidos no prazo máximo de dois anos,
logo depois da abertura do testamento:
Documento 1:
134. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo
135. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen-
82
136. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta-
137. de pela forma seguinte.
138. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de
139. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.
25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José
26.Caetano Machado, em segundo a Antonio Pires de Morais,
27.e em terceiro a João Candido de Mello e Souza, e ao que aseitar
28.esta minha Testamentaria deixo de premio a quantia de cem
29.mil reis, e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade
30.e o tempo de dois annos para contas finaes, e hum anno para o Pio.
Documento 2:
50. ...Eu Ma-
51. ria Joaquina do Espirito Santo
52. como Christão Catholica e Aposto-
53. lica Romana que sou, em qual
54. Religião nasci e fui criada, e
55. educada e em que tenho
56. conservado, e espero morrer, ten-
57. do me deliberado a fazer meo
testamento
238.= Declaro que nomeio para
239. meo testamenteiro, e herdeiro
240. da minha terça em primeiro
83
241. lugar ao Senhor Inocencio
242. Gomes Figueira= em segun-
243. do lugar ao Senhor Joze
244. Antunes Cintra= e em terceiro
245. lugar ao Senhor Luiz
246. Alves Carrijo da Cunha,
256. acceitar este meo testamento
257. para dar comprimento,=
258. A prazo de dous annos para
259. prestar contas de sua testa-
260. mentaria, cujo prazo será
261. contado a começar da da-
262. cta em que for por elle aber-
263. to o mesmo testamento, e te...
n) Revelação dos infortúnios:
Documento 1:
136.nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas, dinheiro este que
137.dei a descrever no Inventario amigavel que fiz com meu(s) filhos, genros
138.do primeiro matrimonio, cujo inventario o fiz coacto por
139.ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra-
140.zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven-
141.tario a força;
Documento 2:
123. Declaro que
84
124. nos Autos de Inventa-
125. rios e Partilhas, que si pro-
126. cedeo por fallecimento
127. de minha May= Françis-
128. ca Xavier de Jezus existe
129. hum requerimento do
130. Senhor Juiz Municipal
131. do Termo, feito em meo
132. nome, e contra meo consenso
133. consenso e sciencia offerecendo
134. toda a minha terça em prol
135. da liberdade do dito escravo,
136. isto por ter eu mostrado in-
137. tenção de ofavorecer com
138. qualquer quantia, mais
139. nunca com toda a terça
140. inteira embora si ache
141. o dito requerimento ina-
142. divertidamente assigna-
143. do por João Gonçalves
144. Lopes Sobrinho á meo ro-
145. go porque ignorando
146. o que nélle si continha
147. e pertubada com apresen-
148. ça do Senhor Juiz ........-
85
149. .............. e inadivertidamen-
150. te obedeci lhe quando
151. me ordenou que mandas-
152. se assignar o dito reque-
153. rimento contra o qual
154. protesto alto e bom som
155. por semelhante extorção,
156. que pretendem fazer em
157. detrimento de minhas des-
158. posições, e ultima vontade;
159. fallo do Autor de seme-
160. lhante requerimento=
161. Declaro que esse requeri-
162. mento não pode, e nem
163. deve prevalecer por não
164. se achar revestido de cir-
165. cunstancias indispensaveis
166. indispensaveis a hum acto practi-
166. cado em boa fé, pois si assim
167. fora ter se hia feito e assig-
168. nado por alguém a meo
169. rogo em minha presença de-
170. pois de me ser lido, e mos-
171. trar me saptisfeita, e não
172. em minha ausencia fei-
86
173. to atropelado, e clandestina-
174. mente em casa do Senhor
175. Manoel Joaquim de Andra-
176. de para ser assignado co-
177. mo foi, em deversa paragem
178. em caza de minha finada
179. Maÿ sem saber o que nélle
180. se continha por me achar
181. como já disse pertubada
182. e por conseguinte affecta-
183. da mo meo moral=
Depois dessas constatações, confirmamos a especificidade do nosso
trabalho quando tratamos da superestrutura dos testamentos passenses,
produzidos na segunda metade do século XIX. As práticas cartorial e religiosa
são características que permeiam esses documentos e são perceptíveis na
medida em que as análises lingüístico-históricas avançam.
3.6.2 A tematização do testamento
Régine Robin (1977) destaca métodos indicados para análises
lexicográficas e semânticas de textos. A partir da proposta da autora, fizemos
um levantamento estatístico em nossas amostras, para verificarmos suas
palavras-tema e sua relação com as co-ocorrências. Esses registros são as
palavras de significação em torno do tema chave dos testamentos: o estatuto
jurídico e religioso. Segundo os Métodos estatísticos do Laboratório
Lexicométrico da E. N. S. de Saint-Cloud (apud Ciro Flamarion & Ronaldo
Vainfas (1997:382), as palavras-tema do corpus examinado perfazem cerca de
9% do texto. No entanto, ponderam que a escolha do pesquisador pode
87
apresentar variação, pois depende do enfoque que ele dá a sua pesquisa. Seja
como for, o critério na análise de conteúdo “é sempre de ordem semântica”, de
sorte que, muitas vezes, a (s) palavra (s) e o (s) tema (s) são, no fundo, a
mesma coisa).
Apontaremos, numa tabela, as palavras-tema, suas derivações e os
números de suas ocorrências nos testamentos de João Pimenta de Abreu e
Maria Joaquina do Espírito Santo. Em seguida, faremos uma análise que
mostre a temática principal do texto, proporcionando um entendimento mais
seguro e coerente com os objetivos do documento.
TESTAMENTO DE JOÃO PIMENTA DE ABREU
Palavras-tema Nº de ocorrências
Soma das ocorrências
cazada 9 cazado 1
cazando 1
11
dita 2 ditei 2 dito 1
5
escrava 4 escravo 5
9
excluido 2 excluidos 2
4
fallecendo 1 falleceo 2 fallecer 1 fallecida 2
fallecidos 2 fallecimento 1
9
herdando 3 herdar 5
herdarem 2 herdeiros 4
14
irmandade 2 irmandades 2
4
88
meu 16 meus 17 minha 30 minhas 5
68
testamentaria 1 testamenteiro 1
testamenteiros 7 testamento
3
12
Palavras-tema Nº de
ocorrências
alma 8
bens 3 declaro 11 deixo 3 direito 2 dizer 3
missas 8 morte 3
mulher 9 nomeio 1
reis (réis) 13 sacerdote 1
terça 12 vontade 3
TESTAMENTO DE MARIA JOAQUINA DO ESPIRITO SANTO
Palavras-tema Nº de ocorrências
Soma das ocorrências
escrava 1 escravo 1 escravos 2
4
declaro 15
89
declarado 1 declaradas 2
18
despozição 1 desposições 3
4
falleça 1 fallecida 1 fallecidos 1 fallecimento 1
4
herança 1 herdeiros 4
5
meo 23 meos 3 minha 12 minhas 1
39
requerimento 5 requeira 1 requerida 1
7
testamentaria 1 testamenteiro 8 testamento 7 testemunha 4
20
Palavras- tema Nº de ocorrências
Bens 5 Dito 7 Missa 1 deicho (há um deixo) 3 Desejo 1 reis (réis) 9
A quantidade total de palavras do testamento de João Pimenta de Abreu
é de 1552, e a quantidade total de palavras do testamento de Maria Joaquina
do Espirito Santo é de 1576. Portanto, temos 216 palavras do primeiro
testamento, que representam, aproximadamente, 13,9% e 140 palavras do
segundo, que representam 9%, aproximadamente. Consideramos que essas
90
porcentagens são a representação da temática apresentada, por isso, vamos
justificar a nossa análise, seguindo a ordem estabelecida nas tabelas: A palavra casamento e suas derivações representam a legitimidade dada
pela Igreja, para que as pessoas pudessem ser valorizadas socialmente; a
ocorrência da palavra declaro e suas derivações confirmam o padrão formal do
testamento. Este documento quer tornar público as disposições do testador; a
palavra despozição e sua derivação querem estabelecer e organizar a última
vontade do testante; as palavras dito e dita que, nos dias atuais são arcaísmos,
e o termo ditei afirmam o porte jurídico em que o documento é delineado; no
contexto da escravidão brasileira, o uso das palavras escrava e escravo,
aplicadas à mulher negra e ao homem negro, que eram tomados como bens a
serem comercializados, apontam a característica de coisificação do negro
escravo no Brasil do século XIX; as palavras excluido e excluídos significam
que o testador pode determinar a exclusão de quem quer que seja, tendo a lei
como amparo; as palavras da família fallecer dão o aspecto fúnebre ao
documento da testamentaria; herdar e suas derivações: não há testamento
sem herdeiros constituídos; os pronomes possessivos meu, meus, minha,
minhas indicam aquilo que é característico ao ter e ao poder; requerimento,
requeira e requerida são palavras que denotam a formalidade legal que se faz
por escrito; a palavra testamento e suas ramificações ratificam o cunho jurídico
do documento que, no dizer de Antônio Houaiss (2001: 2709), é um ato
unilateral, personalíssimo, gracioso, solene e revogável, mediante o qual uma
pessoa capaz, de conformidade com a lei, dispõe de seus bens, no todo ou em
parte, para depois de sua morte.
Assim, as palavras alma, bens, deixo, desejo, direito, dizer, esmolla,
missas, morte, mulher, nomeio, reis (réis), sacerdote, terça e vontade designam
e permitem que o leitor compreenda o estatuto jurídico - religioso que é a
qualidade distintiva e fundamental das amostras testamentais produzidas em
Passos na segunda metade do século XIX.
91
3.6.3 O campo lexical dos testamentos
Após traçar a tematização de nossas amostras, continuaremos no plano
lexical dos testamentos, para definirmos relações de oposições, relações de
associações e relações de identidade que permeiam esses textos e que lhe
dão um caráter jurídico e religioso.
3.6.3.1 Relações de oposições
3.6.3.1.1 Pares antonímicos
Documento 1:
1. ...achando-me infermo
2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes
5. professo a Leÿ de
6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer.
74. ...para pagamento de dividas quer anteriores quer posterio-
75. res ao meu fallecimento.
97. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta
98. de Moraes alem de hum credito que serve de recibo da quantia
99. de seis centos mil reis, deve mais a quantia de 735$000 reis...
92
Documento 2:
10. minha livre vontade e posto
11. que enferma, em meo perfei-
12. to Juízo...
17. ... dar se o meo
18. Corpo á sepultura, recomen-
19. do que seja este envolvido
20. em hum habito da Ordem
21. de São Francisco das Cha-
22. gas e da Senhora Maÿ dos
23. homens com capa da Se-
24. nhora das Dores, de quem
25. sou indigna Irmam...
76. ...Declaro que sou caza-
77. da com Antonio Felippe da
78. Silva ha de haver quarenta
79. seis annos, de quem não te-
80. nho serteza si hé vivo ou
81. morto por ter si auzen-
82. tado a vinte annos...
136. isto por ter eu mostrado in-
137. tenção de ofavorecer com
93
138. qualquer quantia, mais
139. nunca com toda a terça
140. inteira...
3.6.3.1.2 Associação semântica em torno da mesma palavra
Na análise desse item, observamos que o verbo performativo - aquele
cuja enunciação e ação se dão concomitantemente - declarar, usado em
grande número nos testamentos, realmente, cria uma força ilocucionária pela
qual a enunciação em questão representa a atitude intencional do interlocutor,
a fim de persuadir o seu destinatário a praticar a ação pretendida por ele.
Documento 1:
5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de ...
7. Declaro que sou filho legitimo de João de Deos Pimenta de Abreu...
11. Declaro que fui cazado a face da Igreja em primeiras Nupcias ...
31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter...
81. Declaro que dei de dote aos filhos do meu primeiro matrimo-...
95. Declaro que aos meus filhos do segundo matrimonio dei de dote a-...
97. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta
105. Declaro que fica excluido de herdar dos remanecentes da minha
109. Declaro que excluidos os já mencio nados, o restante da minha
112. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu...
128. Declaro que algumas rezes que havião na caza erão de minhas
Documento 2:
12. ...declaro minhas des-
13. posições pela maneira e for-
94
ma seguinte
63. ...De-
64. claro que sou filha legi-
65. tima dos meos fallecidos
66. Pais Joaquim Rodrigues...
76. Declaro que sou caza-
77. da com Antonio Felippe da
78. Silva...
82. ...Declaro
83. que tenho hum só filho...
94. ... De-
95. claro que no valor do escra-
96. vo Manoel...
112. Declaro que
113.deicho ao Escravo Mano-
el pardo,...
161.Declaro que esse requeri-
162. mento não pode, e nem...
200. Declaro que devo ao
201.Divino Espirito Santo cincoenta...
209.= Declaro que devo mais ao
210. Senhor Caetano Antunes Cin-...
224. Declaro ser minha von-
225. tade que fique os Escravos
238. Declaro que nomeio para
95
239.meo testamenteiro...
252.... Decla-
253.ro que concedo ao meo tes-
254.tamenteiro...
3.6.3.2 Relações de associações
Essas relações são sempre contextuais, e, sem a análise do contexto,
não há como percebê-las.
Documento 1:
2. ...e temen-
3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta-
4. de pela forma seguinte.
Muitas vezes, fazer o testamento significava, e ainda significa, o
pressentimento de que a morte está próxima.
9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias
O pensamento de que todos os recém-nascidos deveriam ser batizados
brevemente, era um costume do século XIX e se constitui como cultura
na sociedade contemporânea do sul de Minas, observando as devidas
proporções. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de
1707, que são a primeira legislação eclesiástica do Brasil (apud Douglas
Batista de Moraes, 2004) definiram que o batismo é o sacramento que
deve ser realizado antes de todos os outros seis sacramentos. Ele é a
porta de entrada da Igreja Católica e sem ele não há como receber os
demais sacramentos. O batismo consiste na absolvição do corpo e deve
ser celebrado com água natural. A fórmula latina era esta: ego te baptizo
96
in nomine Patris et filiis et Spiritus Sancti. Amen. Qualquer pessoa podia
e pode batizar em situações extremas.
Com essa análise percebemos que a ideologia religiosa da Igreja
católica está fortemente presente nos documentos estudados.
31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter
32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens,...
A participação nas irmandades e a doação de bens para a Igreja faziam
as pessoas acreditarem no perdão dos pecados e, conseqüentemente,
na obtenção da salvação de suas almas. O testador, João Pimenta de
Abreu, diz que já recebeu a remissão de seus pecados, pois acredita ser
um seguidor fiel das leis de Deus.
39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo
40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora.
Participar da irmandade significava ser irmão constituído do santo,
patrono da confraria.
Documento 2:
4. ... em qual
5. Religião nasci e fui criada, e
6. educada e em que tenho
7. conservado, e espero morrer...
A afirmação de que a pessoa nasceu na Igreja significa que sua
existência só obteve valor quando foi batizada. A declaração de que foi
criada, educada, se conservou e esperava morrer seguindo a doutrina da
97
Igreja, confirma a constante renovação de sua fé para alcançar o reino
dos céus.
22. da Senhora Maÿ dos
23. homens com capa da Se-
24. nhora das Dores, de quem
25.sou indigna Irmam
A testadora relatou que pertencia à irmandade de Nossa Senhora das
Dores, mas se considera indigna irmã. Em contraponto com o
testamento de João Pimenta de Abreu, percebemos que Maria Joaquina
do Espírito Santo não tinha uma participação efetiva na comunidade
religiosa, pois ela declarou que devia vinte anuais, ou seja, ficou vinte
anos sem dar esmola para as irmandades de Nossa Senhora Mãe dos
homens e São Francisco das Chagas. Provavelmente, ela era
discriminada pela comunidade porque foi abandonada pelo marido. Além
disso, no documento 2, não há a preocupação exacerbada em mandar
celebrar missas como constatamos no documento 1.
67. ...Francisca Xa-
68. vier de Jesús nascida e Bapti-
69. zada na cidade de Pouzo Ale-
70. gre,...
Este fragmento confirma aquele pensamento de que todos os recém-
nascidos deveriam ser batizados para que pudessem ser considerados
filhos de Deus. 117. ... a quan-
118. tia de duzentos mil reis de
119. esmolla em adjutório
98
120. de sua alforria,...
Dar dinheiro para o escravo para ajudá-lo a comprar sua Carta de
Alforria era uma prática comum naquele período. Os testadores
declaravam esse tipo de ajuda por considerarem ser um ato de piedade,
confirmando, assim, o caráter de coisificação do negro.
288. tratar délle, ampara-
289. lo, e protegel-o como si fora
290. seo proprio Pay;
Miguel, filho e herdeiro de Maria Joaquina do Espírito Santo, não teve a
presença do poder provedor e autoritário do pai. Por isso, a testadora
preocupou-se em declarar o testamenteiro Inocêncio Gomes Figueira ou
na sua falta, qualquer um dos outros testamenteiros nomeados, como
tutor de seu filho. A relação de proteção paterna estava empregada na
ação de não deixar faltar nada ao filho.
3.6.3.3 Relações de identidade
Não são as denotações dos dicionários, mas, segundo Ciro Flamarion &
Ronaldo Vainfas (1997: 381), são sintagmas que podem ser sempre
intercambiáveis em contextos específicos. Exemplo:
escravo/negro/etíope/preto etc.
Documento 1:
83. ... huma Escrava de nome Felicia
84. no valor de trezentos mil reis, e bem assim em dinheiro trezentos e
quarenta e seis mil reis.
99
86. ...huma escrava de nome Joaquina no valor de quatro centos
87. mil reis.
89. úma escrava de nome Maria no valor de quatro centos mil
90. reis, e assim mais huma escrava de nome Joaquina no valor de
92. A meu filho João, hum escravo de nome Joaquim digo de nome João
93. no valor de trezentos mil reis, e em dinheiro a quantia de cento
112. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu
113. nada possuia, pois só tinha uma criolinha de nome Luiza
114. que falleceo, e hum escravo de nome Lourenço que se achava
115. fugido nessa ocazião, sem delle haver noticia alguma, e es-
118. 150$000 e para esse pagamento vendi hum escravo de nome
119. José que minha segunda mulher trouxe de dote, ...
Documento 2:
112. ...Declaro que
113. deicho ao Escravo Mano-
114. el pardo, que houve por
115. herança de minha falle-
116. cida Maÿ, avaliado em
117. dous contos de reis...
100
No contexto específico dos testamentos as palavras escravo, escrava e
criolinha estão relacionadas diretamente com as palavras valor,
avaliado, fugido e tinha. Apesar de haver alguns ideais em favor da
abolição da escravatura, os testamentos analisados demonstram o que o
negro era visto como um bem a ser comercializado ou um produto de
troca ou doação.
3.7 Marcas ortográficas dos testamentos
Em relação à ortografia, os testamentos apresentam algumas palavras
com a mesma significação, mas com grafias diferentes. Isto acontece porque
houve oscilações entre o período fonético e pseudo-etimológico, além daquela
tentativa de simplificar a ortografia da língua portuguesa a partir de meados do
século XIX. Indicaremos estudos etimológicos para ficarmos a par de algumas
raízes e entendermos algumas grafias. Cabe salientar que, em um único
documento, há ocorrência de palavras com o mesmo sentido denotativo, mas
com grafias diferentes:
a) acceitar e aseitar – Do latim capère (pegar) surgiu a raiz cap. Está, também,
sob formas apofônicas cep-, cip- ou cup. Captus, que é particípio, gera o
radical cap.t- ou, por apofonia, cep. t- . Essas raízes transformaram o -p em -b:
cab-, ceb- ou em -i-: cei. t, em Português. Às vezes, cai por síncope ca.t-, cet-,
ca-. Assim, ao pegarmos algo que nos oferecem, esta ação fica representada
na palavra aceitar < ac.cep.t.a.re.
b) meo e meu – Vem do latim mèus,a,um. Sua formas históricas são: 1061
mia, 1264 mhas, 1265 ma, século XIII meus, meheu, mios; século XIV meos,
mia, 1529 mei e 1587 inha.
c) habito e ábito – Na ocorrência de um b entre vogais na palavra portuguesa,
originado de um b latino (como em HABITVS > hábito), é muito provável que
se trata de palavra de origem culta, pois as populares o transformam, por
sonorização, em v, ou o sincopam.
101
d) tambem e tão bem – Também é contração de tão bem e suas formas
históricas são: século XIII tanben; século XIV tã be; século XV tambem e
tãobem.
e) casa e caza – O termo casa vem do latim càsa,ae 'choupana, cabana,
casebre, arribana'; cf. latim domus,us 'casa, morada, habitação, domicílio'.
Formas históricas: 1221 casa, 1278 quasa, 1352 caza, século XIV cassa.
f) esmolla e esmola - O termo grego eleemosýne, “compaixão”, é um caso de
metátese. Ele foi importado para o latim eleemósyna e se popularizou por meio
da Igreja. Sua forma em italiano é elemosina, aumône no francês que é
resultado do antigo francês almosne, com vocalização do l e síncope do s.
Com aférese do e, tornou-se limosna no castelhano e, no português,
manifestou-se como esmola. A forma portuguesa vem do termo eleemosynam
> elemosna, com simplificação dos dois ee e síncope do y. Em seguida
elmosna com síncope do e, depois esmolna, forma revelada no século XIII.
Nela há metátese dupla do s e do l, que trocam de lugar e, por fim, a
assimilação do n resulta na forma esmolla, que é simplificada como esmola.
Há nos testamentos palavras grafadas com consoantes dobradas que,
nos dias atuais, são grafadas com uma consoante :
FORMAS HISTÓRICAS
GRAFIA DAS CONSOANTES
DOBRADAS NOS TESTAMENTOS
GRAFIA
CONTEMPORÂNEA
ac.cep.t.a.re (latim)
acceitar
aceitar
affectátus,a,um (latim) affectada afetada
102
affectus,us (latim)
século XV afecto, afeito, afeyto, affecto.
affectos
afetos
attendère (latim)
século XIII atender, ateder, século XIV attemder
attendida
atendida
africanus,a,um (latim)
século XIII aflicao, 1344 affricano, século XV africano,
africãao
affricana
africana
Hannah (hebraico)
“graça, mercê”
Anna
Ana
annus, i (latim)
annuális,e
século XV ãnuaaes
anno
annuais
ano
anuais
Approbatìo,ónis (latim) 1460 aprouaçom, sXV aprouaçam
approvação
aprovação
ille, illa + eccu (latim) =
1152 aquelias, século XIII
aquele, aaquel, aquel,
aquelha, século XV aqueel
aquelle
aquellas
aquele
aquelas
(latim) século XIII aterrar,
século XV aterrado atterradinho aterradinho
103
(latim) (com) ego> cum+mecum> cumecum.
século XIII comigo, comego, conmigo, século XIV cõmjgo,
século XV commiguo.
commigo
comigo
COMMVNEM> communis,e
(latim) commum comum
século XIII dele, del, delle
ille, illa
(latim)
delle, dellas elle, ella
dele, delas
ele, ela
en+(commendo,as,ávi,átum,are)
(latim) encommendacãoes encomendações
(latim) *fallescere,
falló,is,fefellí,falsum,fallère
falleceo fallecer fallecida
fallecidos fallecimento
faleceu
falecer
falecida
falecidos
falecimento
Phíl.ipp.o.s = raiz grega - phil
Felippe
Felipe
indene + -izar. (francês indemniser (1398)
indenizar < indemne < latim indémnis,e 'indene') + -iser;
1770 indemnisar, 1858 indemnizar
indennizará
indenizará
(latim) intelligentìa,ae ver leg-;
séuclo XIV jntelligencia, século XV inteligencia
intelligencia inteligência
João <Yohanan (hebraico)=
graça de Deus; pelo latim,
Iohannes/Johannes; grego,
Joanna
Joana
104
Ióánnés, e seu feminino
Joana<latim Iohanna/Johanna
contração da preposição em +
pron.pes. ele; século XV nele,
neellas, n'eelle, neello.
nelle
nele
(latim) occasìo,ónis; século XIII ocasyõ, século XIV cagõ,
o cajon, cajão, ocaion, ocasion, occasyoões, 1566
ocasiam, 1720 occasião, 1873 ocasião.
occaziãoes ocasiões
oferecer< latim popular
*of.fer.e.sc.e.re, em vez de
of.fer.re, (antigo oferir);
oferenda< of.fer.e.nd.a,
gerundivo neutro
offerecendo
oferecendo
(latim) *recommendare < lat. commendo,as,ávi,átum,áre
1387 rrecomenden, século XV recomendou
recommendados
recomendados
Severino <Sever.in.u.s,
derivado de Sever.u.s,
“severo”
Severianno Severiano
(latim) sollémnis ou sollénis,e . Século XIV solene, sollenne,
solempnes; século XV soblene
solenne solene
(latim) submitto ou
summitto,is,mísi,missum,tère. Século XIV someter, 1446 somete, 1572 sobmettida,
1682 submetter
submetto
submeto
105
(latim) zélo,as,ávi,átum,are.
Século XIV zeam, século XV
zelava
zellar
zelar
Palavras com consoantes mudas que, contemporaneamente, estão em desuso:
FORMAS HISTÓRICAS
GRAFIA COM CONSOANTE MUDA NOS TESTAMENTOS
GRAFIA CONTEMPORÂNEA
Agère = ‘pôr em movimento’.Latim
actus,us vem do radical ag e variantes.Actum,í
'ação'. Século XIV auto, aucto e século XV actu,
auctus.
acto
ato
Latim signáre . Radical sign-: 936 asinauimus, 1261 assinar, século
XIII assijnar, 1340 asignaar, século XV açinar, açinardes , assiinou, asiinadas.
assignado
assigno
assinado
assino
Latim baptismus,i , adptação do grego:
baptismós. Século XIII batismo, baptismo, sXIV
bautizmo.
baptisterio baptizada
batistério
batizada
106
Latim data 'dada', fem. do part.pas. de dàre
'dar'.
dacta
data
Latim des + fructus,us .
Século XIII defruytar .
Século XIII fruito, fructo, fruyto, século XIV fruto.
disfructado
fructo
desfrutado
fruto
Grego: Magdaléne,
natural de Magdala
Magdalena Madalena
Radicais jat, jet, jeç, jeit, jeiç. Latim. objectus,us .
Século XV objecto, obiecto, ogeito.
objictos
objetos
Praticar - Latim prax(i).
Século XV praticar, praticaaes, pratycam.
practicado praticado
Latim satisfactus,a,um, particípio passado de satisfacère :'satisfazer a’. 1340 satisfazendo,
1365 satisffeytos, século XV satisfeito, satifecto, satisffeyto.
saptisfeita
satisfeita
Latim signális: 'que
serve de signo, de sinal'. 1130 sinal, século XIII
sinaes, signal.
signaes sinais
107
Numerais com grafia diferente daquela que usamos hodiernamente:
FORMAS HISTÓRICAS
GRAFIA DOS NUMERAIS NO TESTAMENTO
GRAFIA CONTEMPORÂNEA
Latim quinquaginta/ cinquaginta. 1269
çincoenta, cincoenta, século XIII cinquaenta, século XIV çinquanta,
século XV çimquoeemta Século XIX cincoenta.
cincoenta cinqüenta
Acusativo masculino plural ‘duos’ do latim
duo,ae,o. Século XIII dox, século XIV doos, dos, século
XV dois. Século XIX dous.
dous dois
oito + -cento(s); raiz oct(a/o.
Século XIV oytoçentos, século XV oyto çentus.
Século XIX oitocentos.
oito centos
oitocentos
Quatro + centos. Século XIV
quatroçentas, século XV quatroceentas,
quatroçemtos,quatro centos, quatrocetos.
Século XIX quatrocentos.
quatro centos
quatrocentos
Latim sexcenti,ae,a + centi,ae,a de centum
'cem'; Século XIV seiscentos, sexcentos, século XV
seys centas. Século XIX seiscentos.
seicentos seis centos
seiscentos
seiscentos
Latim tres,tres,tria. Século XIII tres, século XV trres e trez. Século
XIX tres.
trez três
108
Grafias diferentes da terminologia atual: ameasas (ameaças),
infermidade (enfermidade), egualmente (igualmente), iscravo (escravo),
extorção (extorsão), freguezia (freguesia), dispois (depois), dezejo (desejo),
José (Joze), Jesus (Jezus), Pouzo Alegre (Pouso Alegre), objetos (objictos),
outra hora (outrora), Minas Geraes (Minas Gerais), cazado (casado), serteza
(certeza), auzentado (ausentado), seo (seu), procedeo (procedeu), sciencia
(ciência), socego (sossego), concenso (consenso), amisade (amizade),
comprimento (cumprimento), fis (fiz), prezente (presente).
O h é presente no início de palavras antes das vogais: hé (é), hum (um),
huma (uma), hião (iam), hia (ia).
3.8 Os tempos e os modos verbais dos testamentos
Para apresentarmos os tempos e os modos verbais que estão expressos
nos testamentos, utilizamos a Grammatica Portugueza de Julio Ribeiro,
produzida em 1885, que, com certeza, registra os usos em veiculação naquela
época. A obra pesquisada diz que o português do século XIX tem quatro
modos, isto é, quatro formas que o verbo assume para qualificar a sua
enunciação: o indicativo, que representa a enunciação do verbo como real; o
condicional, que representa o verbo como dependente de uma condição; o
imperativo, que exige uma ordem e; o subjuntivo, que representa a enunciação
do verbo como contingente. J. Ribeiro diz que o infinito pessoal e impessoal, e
o particípio são formas nominais do verbo que representam, respectivamente, o
substantivo e o adjetivo, e aponta que o verbo assume uma forma para
determinar a época (presente, passado e futuro) do seu enunciado. Para
indicar as várias gradações de anterioridade e de posteridade do presente, do
passado e do futuro nos diversos modos e formas nominais, salientando que o
verbo português tinha vinte e quatro tempos no século XIX, o autor (op. cit.: 87)
apresenta um quadro que reproduziremos abaixo:
109
Modos Formas nominais Tempos
Indicativo Imperativo Condicional Subjunctivo Infinito Participio
Presente 1 1 ... 1 2 1
Imperfeito 1 ... 1 1 ... ...
Perfeito 1 ... 1 1 2 ...
Aoristo 1 ... ... ... ... 1
Plusquam perfeito 1 ... 1 1 ... ...
Futuro 2 ... 2 2 ... ...
Gerundio ... ... ... ... 2 ...
Como já percebemos, no quadro proposto por J. Ribeiro, há sete tempos
verbais e seis modos verbais em que os tempos são utilizados. No português
atual, temos sete tempos com algumas nomenclaturas e conceitos diferentes:
presente; pretérito, que se divide em perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito e;
futuro, que se divide em futuro do presente e do pretérito. Há, ainda, no
português atual, três modos verbais: o indicativo, que abrange todos os tempos
do português atual; o subjuntivo, que envolve os tempos do presente, pretérito
imperfeito e futuro; e o imperativo que abrange o presente afirmativo e o
presente negativo. Nas formas nominais do português de hoje, temos: o
infinitivo (pessoal e impessoal), que se difere da nomenclatura do século XIX; o
gerúndio, que não é mais um tempo verbal; e o particípio. Os tempos verbais
do século XIX apresentam dois nomes diferentes: aoristo e plusquam perfeito.
Aoristo se designa do grego aóristos que significa indefinido, indeterminado.
Esse tempo verbal fazia o verbo agir representando o acontecer verbal do
passado. Atualmente, o verbo no pretérito perfeito tem a mesma ação que o
aoristo tinha no século XIX. O tempo perfeito do século XIX tinha a mesma
função que o pretérito perfeito composto tem nos dias atuais, ou seja, segundo
Mário Vilela & Ingedore Villaça Koch (2001:169) designa um acontecer
começado no passado, mas que tem repercussão ou continuidade no presente.
O tempo verbal plusquam perfeito, em uso no século XIX corresponde, na
atualidade ao pretérito mais-que-perfeito do indicativo e aponta uma ação
anterior a outra já passada.
110
Neste momento, mencionaremos os principais tempos verbais utilizados
em nossas amostras:
Documento 1:
Modo Indicativo: Presente (1ª pessoa do singular): vou, sou, protesto, declaro, nomeio,
deixo, devo e digo;
Imperfeito (1ª pessoa do singular): possuía, tinha, achava, devia, fazia;
(1ª pessoa do plural): devíamos.
Perfeito (3ª pessoa do singular): tem tido, tem vendido.
Aoristo (1ª pessoa do singular): fui, passei, dei, paguei, vendi, fiz,
adquiri, mandei e ditei; (3ª pessoa do singular): foi, durou.
Plusquam perfeito: (1ª pessoa do singular): devera.
Futuro: (3ª pessoa do singular): será, mandará, dará, servirá e reporá;
(3ª pessoa do plural): mandarão, pagarão e darão.
Modo Subjunctivo (sic): Presente (1ª pessoa do singular): esteja.
Imperfeito (3ª pessoa do singular): aparecesse, lançasse.
Futuro (3ª pessoa do singular): couber, herdar; (3ª pessoa do plural):
forem, acompanharem, herdarem.
Modo Condicional: Imperfeito (1ª pessoa do singular): faria.
Formas nominais Infinito impessoal gerúndio: achando, gozando, temendo, herdando,
sendo, ficando, devendo e adquirindo.
Particípio aoristo: nascido, cazado, dada.
111
Documento 2:
Modo Indicativo: Presente (1ª pessoa do singular): sou, faço, peço, declaro, dezejo,
nomeio, ponho, recomendo, tenho, deixo, devo, protesto, fallo, acho, concedo,
submetto, rogo e digo; (3ª pessoa do singular): há de haver e falta.
Imperfeito (3ª pessoa do singular): hia, continha.
Perfeito (1ª pessoa do singular): tenho conservado, tenho concluído.
Aoristo (1ª pessoa do singular): fui, nasci, obedeci; (3ª pessoa do
singular): ordenou e faltou.
Modo Subjunctivo (sic): Presente (1ª pessoa do singular): falleça, tenha; (3ª pessoa do singular):
seja, diga.
Imperfeito (3ª pessoa do singular): mandasse.
Futuro (3ª pessoa do plural): pretendem.
Formas nominais Infinito impessoal gerúndio: sendo, levando, fazendo, deduzindo, ficando,
pertencendo, offerecendo e ignorando.
Particípio aoristo: nascida, lido, practicado, feito e affectada.
Os documentos, objeto de nossa pesquisa, apresentam o uso constante
de verbos no presente do indicativo. Isso comprova o caráter pessoalíssimo,
unilateral, gratuito, solene e revogável do testamento, pois o testador deixava
expresso sua disposição de última vontade e todas as ordens explícitas no
documento precisariam ser cumpridas. Tanto o documento 1 como o
documento 2 expõem usos parecidos dos tempos e modos verbais. Entretanto,
no testamento de João Pimenta de Abreu, aparecem alguns usos do tempo
futuro do modo indicativo, uma ocorrência do tempo imperfeito do modo
condicional (faria) e uma ocorrência do tempo plusquam perfeito do modo
indicativo (devera). Esses usos não ocorrem no testamento de Maria Joaquina
112
do Espírito Santo, porém, como vimos acima, os outros tempos e modos
verbais de nossas amostras são os mesmos.
3.9 Características prosódicas dos testamentos
Há, nos dois testamentos, o uso do til como sinal de nasalidade na
desinência número-pessoal do presente do indicativo, pretérito perfeito e
imperfeito do indicativo, tais como: costumão (costumam - presente do
indicativo), ficão (ficam - presente do indicativo), tratarão (trataram - pretérito
perfeito), forão (foram - pretérito perfeito), havião (haviam - pretérito imperfeito),
erão (eram - pretérito imperfeito) e hião (iam - pretérito imperfeito).
Sobre a contração da preposição a com o artigo a ou com o pronome
demonstrativo, a que damos o nome de crase é, no século XIX, aplicada com o
acento agudo, tendo em vista a não existência do acento da crase. Esse
acento era utilizado todas as vezes que o enunciado pudesse gerar
ambigüidade, como no caso de:
Documento 2:
16. ...logo que eu falle-
17. ça e tenha de dar se o meo
18. Corpo á sepultura,...
89. ... de todos os
90. meos bens á recepção só-
299. ... cumprirá em tu-
300. do á risca o que aqui fica ex-...
J. Ribeiro (1885:30) explica a regra acerca de um dos usos do acento
agudo, desta maneira:
113
1) sobre a inicial para indicar contracção de vozes similhantes, ex.: “á” por “aa”, “áquelle” por “á aquelle”. Escreve-se “vestido á Luiz XI – Estylo á Camões”, porque em taes locuções há ellipse da palavra “moda”: “vestido á Luiz XV” é ellipse de “vestido á moda de Luiz XV”.
Em relação ao conceito de acentuação tônica no século XIX, os
vocábulos se dividem em oxítonos e barítonos (paroxítonos e proparoxítonos).
As palavras oxítonas, que tinham, e continuam a ter o acento tônico na última
sílaba, eram chamadas de agudas; as paroxítonas, que tinham o acento tônico
na penúltima sílaba e ainda permanecem com o mesmo conceito nos dias de
hoje, eram chamadas graves e as proparoxítonas, que tinham o acento tônico
na antepenúltima e permanecem do mesmo modo, eram chamadas esdrúxulas
ou dactylicas. Há alguns vocábulos oxítonos presentes nos testamentos que,
de acordo com J. Ribeiro, não precisavam de acentuação gráfica, são eles:
porem, alem, amem. Esses vocábulos devem ser acentuados graficamente nos
dias atuais.
As paroxítonas do século XIX deveriam ser acentuadas graficamente,
quando terminassem com a, e, o, ea, eo, ia, ie, io, ua, uo, x etc. No entanto, há
algumas palavras que constam nos testamentos que não estão acentuadas
graficamente. São elas: Antonia, Antonio, matrimonio, consorcio, premio,
Rozario, escapulario, oitavarios, purgatorio, Felicia, noticia, inventario, proprio,
circunstancias, sensiveis, baptisterio, sciencia, indispensaveis, ausência,
consiencia, Inocencio, intelligencia. No português moderno, essas palavras
paroxítonas levam o acento gráfico.
J. Ribeiro aponta vários casos de acentuação gráfica nas palavras
proparoxítonas, contudo, o autor ressalta que existem muitas delas que só
serão percebidas como tal a partir de uma prática. Desse modo, percebemos
que as palavras proparoxítonas utilizadas em nossas amostras não levam o
acento gráfico: ultima, Catolico, Apostolico, legitimo, dividas, credito, dadivas,
obito, Espirito, habito, computo, Jeronimo. Talvez os escritores dos
testamentos não tinham a tal prática mencionada por J. Ribeiro. Hoje, todas as
palavras proparoxítonas devem ter o acento gráfico.
114
Algumas palavras contidas nos testamentos são ora acentuadas, ora
não: Jose e José, úma e huma, núpcias e nupcias, ultima e última, possuia e
possuía, Candido e Cândido, Chagas e Chagás.
Na gramática de J. Ribeiro produzida no século XIX, como dissemos
anteriormente, o ditongo aberto éi (com o acento gráfico) é chamado de
ditongo puro. Nos testamentos, a palavra reis não segue essa regra do século
XIX. Acena-se, também, a três ditongos nasais: ãe; ão e am; õe e õem. Por
isso, a palavra irmam (linha 25), que está no testamento de Maria Joaquina do
Espírito Santo, foi empregada adequadamente.
Há algumas palavras expressas nos testamentos que são acentuadas
na letra y com o duplo ponto que é chamado trema: maÿ, leÿ, heÿ, escrevÿ, vÿ.
Nas gramáticas portuguesas, esse sinal foi abolido a partir de 1º de janeiro de
1946. Nas gramáticas produzidas no Brasil, o uso do trema incide sobre o u,
quando está nos dígrafos gu e qu e que são seguidos de e ou i. Antes disso, as
gramáticas dos dois países regulamentavam o uso do trema sobre o i e o u
átonos, quando não formavam ditongo com a vogal que os precedia (diérese).
Desse modo, o y tremado, que aparece em nossas amostras, é utilizado no
lugar do i que era acentuado com o trema conforme registram as gramáticas de
então. Na palavra maÿ, percebemos que houve assimilação progressiva em
matrem > madre > *made > *mae > mãe (século XIX). No entanto, mesmo
sendo um ditongo nasal, ela tem algumas formas históricas que usam a letra y:
século XIII mae, século XIII mãy, século XIV mãe, século XV mãi, século XV
maj, século XV may. A palavra leÿ (lei – século XIX), também, tem uma forma
histórica em que se constituía com a letra y: século XIV lley. As palavras heÿ,
escrevÿ e vÿ foram utilizadas nos testamentos, seguindo o mesmo critério de
maÿ e leÿ.
As palavras Pay, vay, que, no século XIX, eram constituídas de ditongos
puros – pae e vai, aparecem nos testamentos com o pingo do i. Temos,
portanto, a substituição do e e do i pelo y.
Os pronomes dellas, desta, neste e nelle são tônicos na vogal e. A
gramática de J. Ribeiro diz que esses pronomes não poderiam receber o
acento gráfico. Contudo, nos testamentos há o uso desses pronomes com o
acento gráfico: déllas, désta, néste e nélle. Hoje, ainda, esses pronomes não
115
recebem o acento gráfico. Há, também, nos testamentos, o uso do acento
gráfico nas palavras sómente (somente) e póde que era usado para se
diferenciar de pode, que é pretérito perfeito.
Nas amostras estão expressas algumas palavras que, atualmente,
precisam de acentuação gráfica, mas não há uma regulamentação para isso na
gramática de J. Ribeiro (1885): facil (fácil), amigavel (amigável), possivel
(possível), ampara-lo (ampará-lo), protegel-o (protegê-lo). A forma protegel-o e
outras formas pronominais utilizadas com esse formato, eram comuns no
século XIX.
3.10 Outras questões lingüísticas
a) No documento 1, a expressão deversa paragem foi utilizada com a
significação de em outro lugar.
174. em casa do Senhor
175. Manoel Joaquim de Andra-
176. de para ser assignado co-
177. mo foi, em deversa paragem
178. em caza de minha finada
179. Maÿ sem saber o que nélle
180. se continha por me achar
181. como já disse pertubada
b) Ao abordar as regras de sintaxe, J. Ribeiro (1885) diz que o aposto
deve concordar, sempre que possível, com sua base em gênero e número.
Essa regra não acontece na parte seguinte do testamento de Maria Joaquina
do Espirito Santo:
1. Em nome de Deos amem. Eu Ma-
116
2. ria Joaquina do Espirito Santo
3. como Christão Catholica e Aposto-
4. lica Romana que sou...
Além de não apresentar a regra que se impunha sobre o uso das
vírgulas no caso do aposto, não houve concordância de gênero, quando a
palavra christão não concordou com o nome Maria Joaquina. É importante
salientar que as palavras christão e christã, no século XIX, tinham as seguintes
formas: khristão e Khristã (origem grega).
Uma outra explicação pode ser dada a partir da inadequação de sintaxe
nesse fragmento: por ser analfabeta, a testadora Maria Joaquina do Espírito
Santo pediu a Pedro Gil de Oliveira Horta que escrevesse o testamento. Assim,
o ato de escrituração testamental foi feito por um homem e, como
conseqüência, houve um equívoco no momento de empregar a flexão
adequada para aquela frase.
Na linha 259, há uma outra indicação de que o escritor tenha cometido
outro engano ao empregar o pronome possessivo sua como se o documento
estivesse sendo escrito em 3ª pessoa do singular. O uso do pronome minha
seria o mais adequado:
258. A prazo de dous annos para
259. prestar contas de sua testa-
260. mentaria, cujo prazo será
261. contado a começar da da-
262. cta em que for por elle aber-
263. to o mesmo testamento,...
Se o testamento é um documento personalíssimo, a língua deve ser
expressa em 1ª pessoa do singular.
117
c) A partir da linha 166, o uso do adjunto adverbial de modo não está
com a terminação mente e, também, não utilizou a expressão de modo:
166. pois si assim
167. fora ter se hia feito e assig-
168. nado por alguém a meo
169. rogo em minha presença de-
170. pois de me ser lido, e mos-
171. trar me saptisfeita, e não
172. em minha ausencia fei-
173. to atropelado, e clandestina-
174. mente em casa do Senhor
175. Manoel Joaquim de Andra-
176.de para ser assignado
O princípio de adequação teórica nos aponta que, na atualidade, a
pragmática é a parte da Lingüística que estuda a linguagem em uso. Assim, o
particípio do verbo atropelar representa, naquele contexto, um advérbio de
modo.
d) Estudos etimológicos de alguns sobrenomes que estão expressos nos
documentos:
SOBRENOME ORIGEM E SIGNICADO
Caetano
= Que é de Gaeta
118
Cândido
Latim
< Candìdus,a,um = branco, alvo.
Carvalhaes (Carvalho)
karr ( raiz pré-romana) – pedra,
associada a nomes de plantas.
origem hispânica, possivelmente
ibérica.
Cintra
da cidade de Sintra. Sua origem é
obscura.
Ferreira
de ferraria, mina de ferro.
Gonçalves
Antiga referência ao nome do pai:
< Gundisalv.ici, filho de Gonçalo.
Lopes
Antiga referência ao nome do pai:
< Lup.ici, filho de Lopo.
Machado
Os sobrenomes eram formados com
nomes de objetos também. Mais
exemplos: Botelho (garrafa), Covas,
Torres etc)
Mello (Melo)
pode ser que venha do latim merulum
= melro (pássaro chamado
popularmente, Soldado).
Moraes (Morais)
onde há amoreiras, plural de mor.al,
vem das expressões latinas mora,
amora.
Neves
muitos sobrenomes foram formados a
partir de nomes de acidentes
geográficos vagos. (Campos, Matos,
Ramos etc)
119
Pereira
Pimenta
Oliveira
nomes de plantas. Mais exemplos:
Arruda, Teixeira (árvore que produz
teixos) etc.
Rodrigues Antiga referência ao nome do pai:
< Roderiqu.ici, filho de Rodrigo.
Santos sobrenome formado em relação a
epíteto.
Souza (Sousa) nome de um rio português, de origem
pré-romana.
Toledo de Toletum, capital dos carpetanos,
de origem pré-romana.
Silva improvável latinismo silva, - floresta.
Gomes
Antiga referência ao nome do pai:
Gom.ici, filho de Guma.
Antunes Antiga referência ao nome do pai:
Anton.ici, filho de Antônio.
Cunha de culina, - cozinha.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao término dessa pesquisa, queremos dizer que retomamos aspectos da
língua portuguesa escrita no Brasil, considerando os fatores históricos e
socioculturais que caracterizam alguns testamentos da sociedade passense, na
segunda metade do século XIX. Nessa perspectiva, a dissertação examinou
esses documentos, por meio do aparato teórico e dos princípios norteadores da
HL que se constitui como uma ciência que, fazendo uma interface com os
estudos da língua e da história, objetiva reconstruir manifestações humanas.
O enfoque histórico-lingüístico contribuiu para que a língua em uso
naquela época, no Brasil, fosse compreendida em sua dimensão interna e
externa, bem como permitiu que fizéssemos um resgate da história econômica,
política, religiosa, jurídica e social do Brasil, do sul de Minas e de Passos, MG.
Com base nessa perspectiva, pudemos observar que o homem estabelece
relações estreitas com a cultura em que está inserido por meio da língua.
Durante a análise das amostras, pudemos compreender as relações
sociais, religiosas e suas implicações na sociedade, bem como o modo de
pensar e agir característico dos mais abastados, principalmente os brancos. A
participação nas irmandades religiosas era a condição sine qua non, para que
todos se sociabilizassem e, ao mesmo tempo, se redimissem de seus pecados
para obterem a salvação de suas almas. No relato de suas disposições de
última vontade, o testador cumpria um dever jurídico, que seguia as normas
previstas nas leis civis vigentes, e que se apoiavam numa concepção religiosa.
Assim, foi possível compreender que, na segunda metade do século XIX, a
região de Passos já se encontrava numa posição política que lhe permitia
acesso às autoridades da região sul-mineira, da província de Minas Gerais e do
império. Nos testamentos analisados, observamos, também, que os testadores,
auxiliados por seus testamenteiros e, ainda, pelo tabelião local, tinham a
consciência de seus direitos e deveres, no momento em que produzia aquele
documento que se fazia importante e necessário. A operacionalização do
princípio da contextualização possibilitou-nos identificar o estatuto jurídico do
testamento no Brasil, apresentado pela Consolidação das Leis civis, escritas
121
por Augusto Teixeira de Freitas e autorizadas pelo governo imperial, em 22 de
dezembro de 1858. Em 14 de maio desse mesmo ano, Passos tornara-se
cidade e, desse modo, firmou sua atividade política, econômica e religiosa,
quando passou a ser uma referência regional, pois parte da produção
invernista de sua carne bovina era destinada para a capital do império, Rio de
Janeiro. Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, percebemos que a
cultura religiosa da religião católica fazia-se uma presença marcante no
cotidiano passense, haja vista a declaração oficial dos testadores, dizendo que
eram católicos apostólicos romanos. Os testadores relatavam, ainda, que
haviam sido batizados e criados pelos dogmas de fé da Igreja católica e, a
partir disso, faziam vários pedidos aos seus testamenteiros, tais como: de
como seus corpos deveriam ser preparados para o enterro; pedidos para
celebração de missas; e pagamentos das contribuições anuais que faziam às
irmandades. Nos dias atuais, a tradição da religiosidade católica continua a ser
uma forte característica de uma parte da população sul mineira. Em Passos,
por exemplo, há, hoje, seis paróquias e todas têm ramificações na zona rural e
em outros bairros da cidade. Vivem ali algumas congregações religiosas, entre
elas: Congregação Rogacionista, que tem um educandário para crianças
carentes e uma casa de formação de padres; Carmelo São José, onde se
encontram as monjas da ordem carmelitana descalça no Brasil. Lá, as monjas
vivem numa pequena comunidade fraterna, pobre e de vida contemplativa,
inteiramente dedicada à oração; e os Irmãos de São Gabriel que zelam pelo
bem-estar do Centro de Aprendizagem Pró-menor de Passos (CAPP).
Há, também, grupos religiosos, por exemplo, os Irmãos da Santíssima
Trindade, compostos de pessoas leigas, que realizam trabalhos diversificados
na comunidade. Esses grupos, na devida proporcionalidade, podem ser
comparados com as irmandades passenses existentes no século XIX, devido
ao caráter de formação religiosa que lhe é peculiar.
Constatamos que os documentos analisados apresentam em sua
materialidade lingüística características do português em uso no Brasil, na
segunda metade do século XIX, tais como regularidades e oscilações
ortográficas, prosódicas e verbais. Identificamos, ainda, a proposta temática, as
122
relações de oposições, de associações, de identidade e a associação
semântica em torno da uma mesma palavra, cujo escopo é a organização dos
testamentos. Além disso, numa perspectiva lingüístico-histórica, fizemos um
levantamento etimológico de várias palavras utilizadas nos testamentos,
inclusive de sobrenomes de famílias ainda existentes na região passense.
Os testamentos analisados propiciaram-nos, portanto, a confirmação de
que a língua não pode ser vista apenas sob o olhar de sua dimensão interna,
mas faz-se necessário visualizá-la no contexto do clima de opinião da época
em que o testamento foi produzido. Ao abordar essa temática, não era nosso
objetivo propor questões analíticas acerca do ensino de língua, mas essas
reflexões podem possibilitar, no âmbito histórico-lingüístico, ações
investigadoras que propiciem um processo mais adequado de ensino àqueles
que necessitam ler e escrever com competência, levando em consideração os
aspectos contextuais, sem os quais nossa existência é nula.
Por fim, esperamos que os estudos empreendidos possam ter aberto
nossas perspectivas para a continuidade desse tipo de pesquisa, cumprindo a
meta dos objetivos propostos que permitam a compreensão dos
comportamentos sociais, jurídicos e religiosos contemporâneos, que se
reproduzem na sociedade por meio da língua.
123
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128
Anexos
129
ANEXO A
1. Testamento de João Pimenta de Abreu. 2. Transcrição do testamento de João Pimenta de Abreu.
130
131
132
133
134
135
1. Eu João Pimenta de Abreu abaixo assignado, achando-me infermo 2. mas gozando de todas as minhas faculdades intelectuaes, e temen- 3. do a morte vou fazer meu testamento e disposição de ultima vonta- 4. de pela forma seguinte. 5. Declaro que sou Catolico Apostolico Romano e professo a Leÿ de 6. Christo em cuja Religião protesto viver e morrer. 7. Declaro que sou filho legitimo de João de Deos Pimenta de Abreu 8. e de Magdalena Maria Rodrigues de Jesus, ambos já fallecidos e 9. fui nascido e batizado no Arraial de Nossa Senhora das Candeias 10. do Termo de Tamanduá do Bispado de Marianna. 11. Declaro que fui cazado a face da Igreja em primeiras Nupcias 12. com Antonia Maria Fausta, de cujo matrimonio tivemos cinco 13. filhos de nomes Maria, Thereza, Joanna, Anna, e João; ao dispois 14. fallecendo a dita minha primeira mulher passei a segunda 15. núpcias com Silvéria Maria da Conceição tão bem já falle- 16. cida, e deste consorcio tivemos quatorze filhos que são José, Joa- 17. quim, Antonio, Manoel, Domingos, Francisco, João, Cândi- 18. do, Belchior, Maria cazada com José Caetano Machado, Anna 19. já fallecida sem deixar filhos e Matildes cazada com João Candido 20. de Mello e Souza, Hypolita cazada com João Severianno dos Santos 21. e Maria cazada com Antonio Pires de Moraes, os quaes todos são 22. herdeiros dos meus bens, isto é das duas partes dos meus bens, bem 23. como meus netos cujos pais foram fallecidos, herdando a parte 24. que por direito lhes compretir . 25. Nomeio para meus Testamenteiros em primeiro lugar a José 26. Caetano Machado, em segundo a Antonio Pires de Morais, 27. e em terceiro a João Candido de Mello e Souza, e ao que aseitar 28. esta minha Testamentaria deixo de premio a quantia de cem 29. mil reis, e não cobrarão a vintena por ser essa minha vontade 30. e o tempo de dois annos para contas finaes, e hum anno para o Pio. 31. Declaro que sou irmão remido de Nossa Senhora do Carmo, Ter 32. ra Santa, e da Senhora Maÿ dos homens, as quais irmandades
136
33. Nada devo, por estarem pagas; bem como sou irmão da irmandade 34. do Senhor Bom Jesus dos Passos, e da Senhora do Rozario desta Ci- 35. dade, e devo annuaes que meus testamenteiros pagarão, e a ou- 36. tra qual quer irmandade que eu esteja a dever. Logo que eu 37. fallecer meus testamenteiros darão parte aos procuradores das 38. mesmas irmandades, bem como a do Carmo no Ouro Preto. 39. Meu corpo será envolto em ábito de Nossa Senhora do Carmo 40. levando correia e escapulario, por ser irmão da mesma Senhora. 41. Meu interro será sem pompa porem decente, e a vontade de meus 42. testamenteiros. 43. Meus Testamenteiros mandarão dizer por minha alma tan- 44. tas missas de corpo presente quantos forem os Sacerdotes 45. que acompanharem meu corpo a sepultura. 46. Meus testamenteiros mandarão dizer por minha alma dois oita- 47. varios de missas sendo hum pelo Padre João Prudêncio, e outro 48. pelo Vigário Ulhoa Cintra, se a esse tempo forem vivos. 49. Assim mais quarenta e cinco missas por minha alma pela es- 50. mola de mil reis cada huma. 51. Assim mais cinco missas por alma de minha primeira mu- 52. Lher, e bem assim cinco missas por alma de minha segun- 53. da mulher, bem como oito missas por alma de meus irmãos 54. Joaquim e Maria, assim mais cinco missas pelas almas do 55. purgatorio, aquellas mais necessitadas. 56. Assim mais mandará dizer dez missas por tenção e alma de 57. todos os escravos e escravas da caza. 58. Meu testamenteiro dará da minha terça a quantia de cincoen- 59. ta mil reis para as obras de Nossa Senhora da Penha desta Ci- 60. dade de Passos. 61. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a minha 62. filha Maria das dores cazada com Antonio Pires de Moraes, 63. em remuneração do zelo e caridade que commigo tem tido, isto 64. alem do que lhe couber nos remanecentes da minha terça.
137
65. Deixo da minha terça a quantia de duzentos mil reis a Amélia, 66. filha natural de meu filho Joaquim Joze de Toledo Pimenta, fi- 67. cando este excluido de herdar dos remanecentes da minha terça. 68. Deixo da minha terça a quantia de cem mil reis a Maria, filha 69. de Miguel Gonçalves Borges, cazada com Joze Gonçalves, fican- 70. do excluidos de herdarem dos remanecentes da minha terça os me- 71. us netos filhos do referido Miguel Gonçalves Borges. 72. Tão bem fica excluido de herdar dos remanecentes da minha terça 73. meu filho Domingos, herdando em seu lugar Dona Isabel mulher 74. do mesmo, com a condição porem, de que não servirá o que her- 75. dar, para pagamento de dividas quer anteriores quer posterio- 76. res ao meu fallecimento. 77. Tão bem ficão excluidos de herdarem da minha terça meus Netos 78. Filhos de Joze Ferreira Carvalhaes. 79. Tão bem fica excluido de herdar da minha terça meu filho José 80. Pimenta de Abreu, herdando em seu lugar minha neta Rita 81. filha do mesmo, cazada com meu Neto João Caetano. 82. Declaro que dei de dote aos filhos do meu primeiro matrimo- 83. nio o seguinte: aJoanna já falecida cazada com Miguel Borges, digo 84. Miguel Gonçalves Borges huma Escrava de nome Felicia 85. no valor de trezentos mil reis, e bem assim em dinheiro trezentos e 86. quarenta e seis mil reis. 87. A minha filha Thereza cazada que foi com Joze Ferreira Carva- 88. lhaes huma escrava de nome Joaquina no valor de quatro centos 89. mil reis. 90. A minha filha Anna cazada com Salvador Pereira da Conceição 91. úma escrava de nome Maria no valor de quatro centos mil 92. reis, e assim mais huma escrava de nome Joaquina no valor de 93. seis centos e cincoenta mil reis. 94. A meu filho João, hum escravo de nome Joaquim digo de nome João 95. no valor de trezentos mil reis, e em dinheiro a quantia de cento 96. e cincoenta e seis mil e quatro centos e oitenta reis.
138
97. Declaro que aos meus filhos do segundo matrimonio dei de dote a- 98. quilo que consta dos recibos que passarão. 99. Declaro que meu filho do segundo matrimonio João Pimenta 100. de Moraes alem de hum credito que serve de recibo da quantia 101. de seis centos mil reis, deve mais a quantia de 735$000 reis que por 102. elle paguei a Joaquim Theodoro de Andrade, devendo esta última 103. quantia ser dada em pagamento a minha terça, e na partilha 104. dos remanecentes da mesma, se dará esta mesma quantia em 105. pagamento ao dito meu filho João, e se o que lhe couber não Che- 106. gar a dita quantia, reporá elle aos mais herdeiros da terça. 107. Declaro que fica excluido de herdar dos remanecentes da minha 108. terça meu filho Antonio, por ter este disfructado muito da 109. minha Fazenda, em madeiras que de meus matos tem vendi- 110. do, em prejuizo dos mais herdeiros. 111. Declaro que excluidos os já mencio nados, o restante da minha 112. terça será repartido pelos meus herdeiros na forma que for 113. de direito, entre meus herdeiros não excluidos. 114. Declaro que quando falleceo minha primeira mulher, eu 115. nada possuia, pois só tinha uma criolinha de nome Luiza 116. que falleceo, e hum escravo de nome Lourenço que se achava 117. fugido nessa ocazião, sem delle haver noticia alguma, e es- 118. te mesmo se achava sugeito a huma divida que o cazal de- 119. via ao capitão Antonio Rodrigues Neves da quantia de 120. 150$000 e para esse pagamento vendi hum escravo de nome 121. José que minha segunda mulher trouxe de dote, por aquelle 122. iscravo Lourenço não aparecer, e quando aparecesse ficar em 123. lugar do outro que vendi, e como nada mais possuía para 124. isso senão o dito escravo e mesmo por morte de minha primei- 125. ra mulher eu me achar individado, fui pagando com al- 126. gum bens que me forão dados em dote pelo segundo caza- 127. mento, e com os quais fui adquirindo alguma coiza mais 128. por Deos me ajudar, tanto que pude pagar as dividas e adquirir
139
129. adquirir alguma coiza. 130. Declaro que algumas rezes que havião na caza erão de minhas 131. filhas por dadivas dos padrinhos, as quais a proporção que mi- 132. nhas filhas hião se cazando eu fui intregando a seus maridos, 133. sem que lancasse mão dellas para pagar as minhas dividas 134. e me foi mais facil em vida da minha primeira mulher vender 135. a única escrava que lhe servia para gastar em sua infermidade 136. que durou três annos do que lançar mão do gado de minhas filhas. 137. Alem do que devíamos ao Neves, devíamos mais ao capitão Anto- 138. nio Joze Moreira duzentos e trinta e oito oitavas, dinheiro este que 139. dei a descrever no Inventario amigavel que fiz com meu(s) filhos, genros 140. do primeiro matrimonio, cujo inventario o fiz coacto por 141. ameasas que meu genro Miguel Gonçalves Borges me fazia tra- 142. zendo com sigo capangas armados, dizendo que eu faria o Inven- 143. tario a força; e neste Inventario dei a descrever o que não devera 144. dar por não haver como forão as duzentos e trinta e oito oitavas 145. que érão para o Capitão Moreira, e estas mesmo adquiri oito 146. annos depois da morte de minha primeira mulher, como consta 147. do Testamento de meu finado pai, e pela certidão de obito que 148. está guardada em minha caixa. E por esta forma heÿ por 149. findo este meu Testamento que mandei escrever por João Ferrei- 150. ra Godinho, o qual depois de lido e o achar conforme ditei, o assig- 151. no de meu proprio punho nesta Fazenda da Caxoeira ao primeiro 152. de Dezembro de mil oito centos e cessenta e quatro. 153. João Pimenta de Abreu. 154. Que este escrevÿ a rogo do Testador e vÿ assignar. 155. João Ferreira Godinho
140
ANEXO B
1. Testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo. 2. Transcrição do testamento de Maria Joaquina do Espirito Santo.
141
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143
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1. Em nome de Deos amem. Eu Ma- 2. ria Joaquina do Espirito Santo 3. como Christão Catholica e Aposto- 4. lica Romana que sou, em qual 5. Religião nasci e fui criada, e 6. educada e em que tenho 7. conservado, e espero morrer, ten- 8. do me deliberado a fazer meo 9. testamento como faço, de 10. minha livre vontade e posto 11. que enferma, em meo perfei- 12. to Juízo declaro minhas des- 13. posições pela maneira e for- 14. ma seguinte; Primeiramen- 15. te que meo herdeiro, e testa- 16. menteiro logo que eu falle- 17. ça e tenha de dar se o meo 18. Corpo á sepultura, recomen- 19. do que seja este envolvido 20. em hum habito da Ordem 21. de São Francisco das Cha- 22. gas e da Senhora Maÿ dos 23. homens com capa da Se- 24. nhora das Dores, de quem 25. sou indigna Irmam pa- 26. ra ser enterrada no adro 27. da Igreja Matriz desta Fre- 28. guezia o mais proxima- 29. mente que for possivel 30. a entrada da porta princi- 31. pal da mesma Igreja, e que 32. o meo caixão seja preparado . 33. ..............................(falta uma linha)
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34. já tenho pronptos d’ antemão 35. para este fim, sendo con- 36. duzido o meo corpo em o di- 37. to caixão com a companha- 38. mento solenne levando em 39. frente a Cruz e mais objetos 40. que costumão servir em se- 41. melhantes occaziãoes efazen- 42. do se as encommendacãoes do 43. costume sem mais demons- 44. traçãoes que há dos signa- 45. es e toques de sino recom 46. mendados pelo rito da Igreja 47. em taes circunstancias= 48. Tambem he minha vontade 49. que se diga por minha al- 50. ma huma missa de corpo pre- 51. zente, e logo em seguida ma- 52. is hum oitavario déllas = 53. = Dezejo que o meo herdeiro 54. e testamenteiro faça todos 55. os esforços para que este 56. acto do meo desaparecimen- 57. to seja tão inapercebido 58. como foi a minha vida 59. o que muito lhe recomen- 60. do por que overdadeiro dó 61. só está nos corações sensiveis 62. e não em exterioridades de 63. representação esteril. De- 64. claro que sou filha legi- 65. tima dos meos fallecidos 66. Pais Joaquim Rodrigues
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67. Rodrigues Lopes e Francisca Xa- 68. vier de Jesús nascida e Bapti- 69. zada na cidade de Pouzo Ale- 70. gre, outra hora conhecida 71. por Freguesia de Pouzo Ale- 72. gre do Mandú désta Pro- 73. vincia de Minas Geraes, 74. em cuja Matriz si achava 75. o assento do meo Baptiste- 76. rio = Declaro que sou caza- 77. da com Antonio Felippe da 78. Silva ha de haver quarenta 79. seis annos, de quem não te- 80. nho serteza si hé vivo ou 81. morto por ter si auzen- 82. tado a vinte annos = Declaro 83. que tenho hum só filho 84. digo hum filho legitimo 85. de nome Miguel, unico 86. fructo existente déste 87. meo consorcio, ao qual 88. instituo por meo univer- 89. sal herdeiro de todos os 90. meos bens á recepção só- 91. mente da minha terça que 92. deicho departe para cer- 93. tos legados apontados nés- 94. te meo testamento = De- 95. claro que no valor do escra- 96. vo Manoel, pardo, que se- 97. paro para minha terça 98. deduzindo a computo da es- 99. molla que lhe faço de reis
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100. reis duzentos em prol da sua 101. liberdade ficará o resto per- 102. tencendo ao meo testamen- 103. teiro que acceitar este meo 104. testamento , o qual entrará 105. para o monte como rece- 106. bente, qualquer que seja 107. a quantia, e nelle si in- 108. deninizará indennizará 109. do que faltar para com- 110. pletar a mesma terça, 111. alem do premio abaixo 112. declarado= Declaro que 113. deicho ao Escravo Mano- 114. el pardo, que houve por 115. herança de minha falle- 116. cida Maÿ, avaliado em 117. dous contos de reis a quan- 118. tia de duzentos mil reis de 119. esmolla em adjutório 120. de sua alforria, ficando o res- 121. tante do seo valor perten- 122. cendo a minha terça co- 123. mo já disse = Declaro que 124. nos Autos de Inventa- 125. rios e Partilhas, que se pro- 126. cedeo por fallecimento 127. de minha May= Françis- 128. ca Xavier de Jezus existe 129. hum requerimento do 130. Senhor Juiz Municipal 131. do Termo, feito em meo 132. nome, e contra meo consenso
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133. consenso e sciencia offerecendo 134. toda a minha terça em prol 135. da liberdade do dito escravo, 136. isto por ter eu mostrado in- 137. tenção de ofavorecer com 138. qualquer quantia, mais 139. nunca com toda a terça 140. inteira embora si ache 141. o dito requerimento ina- 142. divertidamente assigna- 143. do por João Gonçalves 144. Lopes Sobrinho á meo ro- 145. go porque ignorando 146. o que nélle si continha 147. e pertubada com apresen- 148. ça do Senhor Juiz ........- 149. .............. e inadivertidamen- 150. te obedeci lhe quando 151. me ordenou que mandas- 152. se assignar o dito reque- 153. rimento contra o qual 154. protesto alto e bom som 155. por semelhante extorção, 156. que pretendem fazer em 157. detrimento de minhas des- 158. posições, e ultima vontade; 159. fallo do Autor de seme- 160. lhante requerimento= 161. Declaro que esse requeri- 162. mento não pode, e nem 163. deve prevalecer por não 164. se achar revestido de cir- 165. cunstancias indispensaveis
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166. indispensaveis a hum acto practi- 167. cado em boa fé, pois si assim 168. fora ter se hia feito e assig- 169. nado por alguém a meo 170. rogo em minha presença de- 171. pois de me ser lido, e mos- 172. trar me saptisfeita, e não 173. em minha ausencia fei- 174. to atropelado, e clandestina- 175. mente em casa do Senhor 176. Manoel Joaquim de Andra- 177. de para ser assignado co- 178. mo foi, em deversa paragem 179. em caza de minha finada 180. Maÿ sem saber o que nélle 181. se continha por me achar 182. como já disse pertubada 183. e por conseguinte affecta- 184. da mo meo moral= Ago- 185. ra porem que me acho 186. em socego de consiencia, 187. e destituída de affectos e 188. paixões terrenas, desejo e re- 189. comendo ao meo testa- 190. menteiro que requeira 191. e faça quanto antes 192. extrahir dos Autos o dito 193. requerimento, que não po- 194. de ter vigor em vista das 195. minhas desposições aqui 196. declaradas, e mesmo por 197. que nelle falta e faltou 198. sempre o concenso de minha
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199. minha vontade, que em tais cir- 200. cunstancias parece me dever ser 201. attendida= Declaro que devo ao 202. Divino Espirito Santo cincoenta 203. mil reis, e assim mais a Nossa 204. Senhora Maÿ dos homens vin- 205. te annos de annuaes entre 206. ella e São Francisco das Cha- 207. gas do tempo que era Juiz o fal- 208. lecido Superior Padre Jero- 209. nimo Gonçalves de Macedo 210. = Declaro que devo mais ao 211. Senhor Caetano Antunes Cin- 212. tra não sei quanto, e bem as- 213. sim ao Senhor Joaquim Fran- 214. cisco da Silva Souto, que tam- 215. bem não sei quanto, ao Se- 216. nhor Joze Manoel da Silva 217. e Oliveira Sobrinho cento e dezese- 218. te mil reis, ao Senhor Inocen- 219. cio Gomes Figueira oitenta 220. seis mil e quinhentos reis 221. = que anda tudo em trezen- 222. tos e trez mil e quinhentos 223. reis fora os que não sei as 224. quantias a cima declara- 225. das= Declaro ser minha von- 226. tade que fique os Escravos 227. Catharina Affricana destina- 228. da ao pagamento déstas di- 229. vidas; fora das quais nada 230. mais devo= Declaro que 231. alem destes dous Escravos
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232. Escravos tenho mais huma par- 233. te na Escrava Maria Francis- 234. ca de oitenta dous mil e no- 235. venta e oito reis e assim ma- 236. is Seicentos mil reis em ter- 237. ras alem de outros objectos 238. declarados no meo Formal 239. = Declaro que nomeio para 240. meo testamenteiro, e herdeiro 241. da minha terça em primeiro 242. lugar ao Senhor Inocencio 243. Gomes Figueira= em segun- 244. do lugar ao Senhor Joze 245. Antunes Cintra= e em terceiro 246. lugar ao Senhor Luiz 247. Alves Carrijo da Cunha, pela 248. muita confiança que ponho 249. na fé, probidade, intelligencia 250. e assiduidade de qualquer 251. déstes Senhores, e pela muita es- 252. tima e amisade com que sem- 253. pre elles me tratarão= Decla- 254. ro que concedo ao meo tes- 255. tamenteiro, a quem peço e 256. rogo si digne pelo amor de Deos 257. acceitar este meo testamento 258. para dar comprimento,= 259. A prazo de dous annos para 260. prestar contas de sua testa- 261. mentaria, cujo prazo será 262. contado a começar da da- 263. cta em que for por elle aber- 264. to o mesmo testamento, e te
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265. testamento, e terá de premio alem 266. da terça que lhe deixo mais ter- 267. zentos mil reis em renumeração 268. do seo trabalho= Declaro que o 269. meo testamenteiro ficará sen- 270. do egualmente o Tutor do 271. dito meo filho Miguel por 272. não si achar este em circuns- 273. tancias de poder administrar 274. os poucos bens, que lhe deixo, 275. pela falta que tem de senso 276. commum= e submetto esta 277. minha nomeação á appro- 278. vação do Digno Magistra- 279. do, cuja confirmação deverá 280. ser lhe requerida= Decla- 281. ro que o dito meo testamen- 282. teiro entrará na posse e ad- 283. ministração de todos os meos 284. bens logo depois do meo falle- 285. cimento, ficando egualmen- 286. te entregue do dito meo fi- 287. lho afim de zellar todos 288. os meos bens digo os seos 289. bens, tratar délle, ampara- 290. lo, e protegel-o como si fora 291. seo proprio Pay; sem já- 292. mais consentir que elle 293. padeça, ou lhe falte qual- 294. quer couza por falta de cui- 295. dados na sua conservação 296. =Declaro que como testa- 297. menteiro o Senhor Inocencio
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298. Inocencio Gomes Figueira, ou 299. em sua falta qualquer dos ou- 300. tros nomeados, cumprirá em tu- 301. do á risca o que aqui fica ex- 302. pressamente declarado= E 303. por esta forma tenho con- 304. cluido, e acabado este meo 305. testamento e despozição de 306. ultima vontade que por não 307. saber escrever pedia a Pedro 308. Gil de Oliveira Horta que 309. este por mim escrevesse e......... 310. pelo mesmo a meo rogo as- 311. signado. Fazenda do Atter- 312. radinho dezenove de Junho 313. de mil oitocentos sesenta 314. e quatro. Eu que fis a pe- 315. dido da Senhora Maria 316. Joaquina do Espirito San- 317. to assigno a rogo da mesma 318. por não saber escrever= 319. Pedro Gil de Oliveira Horta 320. =testemunha prezente Ma- 321. noel Honório Garcia= Tes- 322. temunha prezente Joaquim 323. Antonio de Moraes = Teste- 324. munha prezente Joze Alves 325. da Costa = Testemunha prezen- 326. te Joze Antonio de Moraes 327. Junior = Testemunha prezen- 328. te Joze da Costa Rodrigues
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