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Adonai Sant'Anna Matemática e Sociedade quinta-feira, 14 de março de 2013 A matemática necessária para compreender física Frequentemente jovens perguntam o quão profundamente devem estudar matemática para compreender física teórica. Honestamente, nunca gostei desta pergunta. Isso porque implicitamente ela encerra a noção de que há um limite de conhecimento matemático necessário para compreender física. E tal limite simplesmente não existe. Quem interrompe seus estudos de matemática, limita seriamente seus conhecimentos físicos. No entanto, existe um conhecimento matemático mínimo necessário para iniciar estudos básicos em física teórica: cálculo diferencial e integral, equações diferenciais, álgebra linear, teoria de probabilidades e teoria de grupos. Sobre cálculo diferencial e integral e equações diferenciais já discuti empostagem anterior . Grosso modo, equações diferenciais (fundamentadas a partir do cálculo diferencial e integral) constituem o coração de qualquer formulação usual das teorias físicas mais comuns. O eletromagnetismo clássico, por exemplo, se fundamenta nas equações de Maxwell. Mecânica quântica se sustenta na equação de Schrödinger. Mecânica clássica é fundamentada na segunda lei de Newton . Teoria da relatividade geral se baseia nas equações de Einstein. E as equações de Maxwell, Schrödinger e Einstein são equações diferenciais, assim como a segunda lei de Newton. Comentários análogos podem ser feitos em relação às teorias de gauge, a termodinâmica e demais exemplos de teorias físicas. A álgebra linear minimamente aceitável para iniciar estudos em física teórica é aquela Início

A Matemática Necessária Para Compreender Físi

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Adonai Sant'Anna

Matemática e Sociedade

quinta-feira, 14 de março de 2013A matemática necessária para compreender física

Frequentemente jovens perguntam o quão profundamente devem estudar matemáticapara compreender física teórica. Honestamente, nunca gostei desta pergunta. Issoporque implicitamente ela encerra a noção de que há um limite de conhecimentomatemático necessário para compreender física. E tal limite simplesmente não existe.Quem interrompe seus estudos de matemática, limita seriamente seus conhecimentosfísicos.

No entanto, existe um conhecimento matemático mínimo necessário para iniciarestudos básicos em física teórica: cálculo diferencial e integral, equações diferenciais,álgebra linear, teoria de probabilidades e teoria de grupos.

Sobre cálculo diferencial e integral e equações diferenciais já discuti em postagemanterior. Grosso modo, equações diferenciais (fundamentadas a partir do cálculodiferencial e integral) constituem o coração de qualquer formulação usual das teoriasfísicas mais comuns. O eletromagnetismo clássico, por exemplo, se fundamenta nasequações de Maxwell. Mecânica quântica se sustenta na equação de Schrödinger.Mecânica clássica é fundamentada na segunda lei de Newton. Teoria da relatividadegeral se baseia nas equações de Einstein. E as equações de Maxwell, Schrödinger eEinstein são equações diferenciais, assim como a segunda lei de Newton. Comentáriosanálogos podem ser feitos em relação às teorias de gauge, a termodinâmica e demaisexemplos de teorias físicas.

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que envolve o enunciado, a demonstração e aplicações do teorema espectral. Se umapessoa conhece bem os pré-requisitos necessários para discutir criticamente sobreaplicações do teorema espectral, já domina um conteúdo matemático necessário(apesar de insuficiente) para desenvolver alguns estudos sobre mecânica quântica. Arigor, estudos avançados de análise funcional (espaços de Hilbert e espaços deBanach) é extremamente recomendável. Caso contrário, o estudante corre o risco deapenas repetir procedimentos usualmente adotados em livros sobre mecânicaquântica, mas sem compreender o significado de tais procedimentos.

Existem também inúmeras aplicações fundamentais de teoria de probabilidades emfísica teórica. As mais conhecidas ocorrem em mecânica estatística clássica emecânica quântica. No entanto, físicos ainda não conseguiram explicar de forma clarao papel de probabilidades no último caso.

Usualmente teoria de probabilidades deve ser estudada a partir dos axiomas deKolmogorov, apesar de existirem outras formulações para a noção de probabilidades.Mas se o estudante de física conhecer bem a formulação devida a Kolmogorov, jápoderá contar com uma visão privilegiada sobre o tema das probabilidades. Porém,vale observar que existem aqueles que creem que a teoria de Kolmogorov não éaplicável à mecânica quântica, apesar de muitos físicos pensarem o contrário, sem defato compreenderem o que são probabilidades.

Finalmente, teoria de grupos constitui uma base fundamental para a compreensão dosprincípios de invariância ou simetria em física teórica. Como entender a diferença entreeletromagnetismo clássico e mecânica clássica, sem um adequado conhecimento deteoria de grupos? Simplesmente não é possível. As leis físicas da mecânica clássicasão invariantes sob transformações do grupo de Galileu. Já as leis doeletromagnetismo (descritas pela teoria relativística de Maxwell) são invariantes sob aação do grupo de Poincaré. E esses dois grupos de transformações são simplesmenteincompatíveis entre si. Foi uma simples aplicação de teoria de grupos que permitiu aconcepção da noção de quark, partícula fundamental que permite descrever aestrutura interna de partículas que compõem o núcleo de átomos. Uma obraexcepcional sobre aplicações de grupos em física é o livro Group Theory and Physics,de S. Sternberg.

Mas a física-matemática (que corresponde ao estudo de métodos matemáticosaplicados em física teórica), como era de se esperar, vai muito além dos tópicos acimaabordados.

O russo Vladimir Arnol'd, por exemplo, apresenta uma formulação para a mecânicaclássica que se sustenta fortemente em elementos de geometria diferencial, tratandofenômenos mecânicos via variedades diferenciáveis e geometria simplética, com umformalismo muito empregado em teorias clássicas de campos. E como conhecervariedades diferenciáveis sem uma visão adequada de topologia geral? Mecânica

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clássica é apenas um exemplo, entre muitos, de teoria física que apresenta inúmerasformulações não equivalentes entre si do ponto de vista matemático.

Também convido o leitor a comparar os livros Mathematical Physics, de EugeneButkov, e Mathematical Physics, de Robert Geroch. Os dois têm o mesmo título, masnão há qualquer outro ponto em comum entre ambos. Isso porque a obra de Butkovtrata do tema da física-matemática sob o ponto de vista conjuntista usual, enquanto olivro de Geroch aborda o mesmo tema sob o ponto de vista categorial. Portanto, comoconhecer amplamente física teórica sem um estudo aprofundado sobre teoria decategorias? Existem inúmeras aplicações importantes de teoria de categorias em físicateórica. Eu mesmo já fiz uma modesta contribuição nesta área.

Existem ainda as aplicações de métodos de lógica matemática em física teórica. Umexemplo bem conhecido é o resultado obtido pelos brasileiros Newton da Costa eFrancisco Doria, no qual se demonstra a impossibilidade de conceber um algoritmoque permita decidir se um sistema dinâmico qualquer é caótico ou não. Esta é uma dasaplicações mais importantes de lógica matemática em teoria do caos. Portanto, semum conhecimento profundo de lógica matemática, qualquer visão a respeito de físicateórica torna-se extremamente limitada.

Em suma, o tema é por demais extenso para ser explorado de forma detalhada emuma postagem de blog. Mas espero ter convencido o leitor de que não faz sentidoperguntar qual é o conteúdo matemático minimamente necessário para compreenderfísica teórica.

Porém, vale um importante alerta para aqueles que pretendem aprofundar seusestudos matemáticos com o objetivo de melhor compreender física. É muito fácil umpesquisador se distanciar da física quando exagera em sua visão matemática domundo. Um exemplo interessante é o estudo das teorias de gauge. As teorias de gaugesão provavelmente as teorias físicas mais fiéis à matemática. E são provavelmente asteorias físicas com maior número de casos de conceitos matemáticos seminterpretação física ou com interpretação polêmica.

Nas demais teorias físicas, muito comumente pesquisadores e cientistas fazemmanobras teóricas sem fundamentação matemática alguma. Um exemplo bemconhecido são as famosas aproximações. Isso ocorre porque mesmo a física de hoje éfortemente sustentada em intuição. E intuições são muito difíceis de serem justificadasracionalmente. Um exemplo histórico bem conhecido é o átomo de Bohr, nosprimórdios do nascimento da mecânica quântica. Niels Bohr criou um modelo paraexplicar a estrutura de átomos, o qual se baseia em ideias absolutamentecontraditórias. Uma discussão detalhada sobre o tema pode ser encontrada no livro OIrracional, de Gilles-Gaston Granger.

Ninguém até hoje estabeleceu de forma clara qual dose de formalismo matemático

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deve ser usada em física teórica e qual a dose de intuição, sem apelo racionalimediato, que deve ser tolerada. Portanto, a melhor saída deste dilema é a discussãocrítica. Física, como todas as demais ciências, é uma atividade social. Se alguém temuma ideia nova, deve submetê-la à análise crítica promovida pelos seus pares. Semdiscussão, não há ciência.

Físicos usam a matemática como se estivessem escrevendo torto em linhas retas. Porisso mesmo muitas teorias matemáticas certas surgem a partir de ideiasaparentemente tortas dos físicos, estabelecidas a partir de meras intuições. QuandoPaul Dirac empregou a função delta que hoje é conhecida pelo seu nome, osmatemáticos ficaram alarmados com a ignorância do físico britânico. Hoje a teoria dedistribuições mostra claramente que todas as intuições de Dirac estavam corretas doponto de vista matemático. Ou seja, fazer física é como navegar em um oceano deideias, sendo algumas delas racionais e outras nem tanto.

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9 comentários:

Stafusa 14 de março de 2013 12:09Interessante:"resultado obtido pelos brasileiros Newton da Costa e Francisco Doria, no qual se demonstra aimpossibilidade de conceber um algoritmo que permita decidir se um sistema dinâmico qualquer écaótico ou não."Poderia nos passar mais detalhes ou ao menos a referência?Responder

Adonai 14 de março de 2013 14:12Oi, Stafusa

Acabo de incluir um link na própria postagem, onde há referências aos artigos originais.

Leandro Martins 14 de março de 2013 13:01Não somente em Física Teórica, mas também em Química Teórica (Teoria dos Orbitais Moleculares eTeoria das Ligações de Valência), Termodinâmica Química e demais áreas da Físico-Química.

Um dos principais e mais importantes conceitos estudados para a compreensão da reatividade químicanuma mistura reacional, tanto em termos termodinâmicos quanto cinéticos, é o conceito de *PotencialQuímico*, usualmente expresso em termos de derivadas parciais, em termos da evolução temporal da

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quantidade de matéria (em mol) envolvida:

u = (dG / dn)t,p,T

Sendo "u" (o correto seria a letra grega "mi", mas não sei representá-la aqui) o potencial químicoatribuído a um dado processo, "t" representando a evolução temporal da reação química, "p" a pressãoe "T" a temperatura do meio reacional (que em situações de variação significativa de acordo com quãoexotérmico ou endotérmico é o processo, também fará parte do processo de derivação).

Derivadas e integrais também são comuns na descrição de processos em que variações significativasda pressão de vapor do meio reagente são importantes.

Como exemplo, temos a equação:

ln (p / p0) = - (variação entalpia / R) (1/T1 - 1/T2)

em que o logaritmo neperiano é obtido pela integração do termo "dp/p" que surge durante a dedução daexpressão acima.

Enfim, estes são apenas 2 dos vários exemplos de conhecimentos de Cálculo Diferencial e Integral quesão importantes na Química.

Várias outras aplicações do Cálculo existem na Química, como por exemplo, no estudo de fenômenosde superfície e interfaces (tensão superficial/interfacial), capilaridade, fluxo de líquido na calibração dealgumas vidrarias de laboratório, formação de meniscos de líquidos em tubos capilares, etc.Responder

Leandro Martins 14 de março de 2013 23:33Adonai

sobre a Física Matemática, um dos livros que vc menciona é o do Butkov.

No entanto, os físicos que conheço afirmam que tal obra é muito resumida e limitada.

Geralmente recomendam a obra do Arfken, que alegam ser mais completa.

O que vc acha do livro do Arfken?????

Outra coisa. Se um dia eu voltar para a área, vou querer remodelar praticamente tudo o que estudei nafaculdade, ignorando boa parte do que aprendi, já que o que é dado na graduação é muitíssimosuperficial frente ao que vejo por aqui.

Que obra vc poderia recomendar para Álgebra Linear por exemplo?????

Estudei na época pelos livros do Alfredo Steinbruch e Paulo Winterle (como a maioria dos estudantesde Exatas) e hoje não me satisfaço nem um pouco com nenhum deles......Responder

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Adonai 15 de março de 2013 01:36Leandro

Todos os livros sobre métodos matemáticos em física que encontrei, incluindo a obra deArfken e colaboradores, apresentam sérias limitações. O tratamento dado por Arfken e tantosoutros é conjuntista. Existem ferramentas incríveis em teoria de categorias que raramentevejo discutidas em livros de física matemática. Por isso o tema da postagem! O estudo demétodos matemáticos em física teórica simplesmente não tem fim.

Com relação à álgebra linear, o melhor livro que conheço para iniciar estudos na área é o dePaul Halmos (Espaços vetoriais de dimensão finita). Mas o livro de Halmos não exploratemas mais avançados, proporcionando apenas uma boa fundamentação. Para avançar naálgebra linear outros livros são recomendáveis. A obra de Steinbruch também apresenta umavisão limitada sobre álgebra linear. Para demonstrar isso, proponho a seguinte questãobásica para você: qual é o conceito de base de um espaço vetorial?

Leandro Martins 16 de março de 2013 13:40Pelo pouco que me lembro do que aprendi em Álgebra Linear (2º semestre de 2001), grossomodo, base de um espaço vetorial seria a representação de um conjunto de vetoresindependentes capazes de originar um dado espaço vetorial.

Provavelmente eu deva estar escrevendo besteira, pois lembro de poucos tópicos acerca deespaços vetoriais e subespaços vetoriais. Então, por favor, me corrija de um supostobesteirol.

Atualmente não tenho acesso ao livro do Steinbruch, então estou sem material para verificare relembrar o que o mesmo aborda acerca desse assunto.

Adonai 17 de março de 2013 01:39Leandro

Apenas omita a palavra "representação" de sua explicação. Carece de sentido. No entanto,observe que essa visão sobre base se sustenta na noção de combinação de vetores (quandovocê menciona sobre vetores independentes).

Pois bem. Combinação linear se define a partir de uma operação binária conhecida comoadição de vetores. Com o axioma da associatividade é possível estabelecer a adição de trêsou mais vetores, mas sempre uma quantia finita de vetores. Portanto, a suposta definição debase que você menciona (comum a todos os livros de álgebra linear que existem no Brasil)funciona somente para espaços vetoriais de dimensão finita. E quanto aos espaços vetoriaisde dimensão infinita? Ou seja, afinal, qual é a definição de base de um espaço vetorial? Esteé um dos motivos porque gosto do livro de Paul Halmos. Já no título ele qualifica: Espaçosvetoriais de dimensão finita. A maioria dos livros de álgebra linear anuncia que o tema desteramo da matemática é o estudo de espaços vetoriais. No entanto, estes são objetos deestudo bem mais complicados do que é sugerido em tais livros.

Por isso sempre insisto. Não é possível se basear em um único livro para estudar qualquerramo da matemática. Se você quiser saber mais sobre espaços vetoriais, precisa estudarlivros sobre análise funcional. É uma extensão natural e muito elegante.

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Anônimo 29 de agosto de 2015 22:52Por onde eu começo a estudar Física ? Conhece alguma boa tradução dos Principia ? (Português,Inglês ou Francês).Responder

Adonai 30 de agosto de 2015 11:41Anônimo

Os Principia de Newton traduzidos para o português podem ser encontrados no link abaixo:

http://www.livrariadafisica.com.br/detalhe_produto.aspx?id=20453

Sobre sua primeira pergunta, recomendo a postagem abaixo:

http://adonaisantanna.blogspot.com.br/2013/03/a-matematica-necessaria-para.htmlResponder

Quem sou eu

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Adonai

Professor Associado do Departamento de Matemática da UFPR. Autor de dois livros sobre lógicapublicados no Brasil, e de dezenas de artigos publicados em periódicos especializados dematemática, física e filosofia, no Brasil e no exterior. Atualmente está trabalhando em dois projetos

cinematográficos, sendo que um deles visa uma crítica inédita às universidades federais brasileiras. Para maisdetalhes ver a página "Sobre o autor do blog".Visualizar meu perfil completo

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