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A menina do quarto escuro

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Menina tem uma infância difícil. Renegada e vendida pelo próprio pai, ela segue em busca de uma sobrevida. A brutalidade personificada no homem ruim destrói o resquício de esperança, mas suscita na pequena vivente o desejo de encontrar a liberdade de diversas maneiras. Em meio aos seus caminhos tortuosos encontra-se com a bondade, e esse desconhecido sentimento mudará sua vida completamente...

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São Paulo 2012

COLEÇÃO NOVOS TaLENTOS Da LITERaTURa BRaSILEIRa

Manoel Fernandes

A MeninA do QuArto escuro

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13 DE AGOSTO – AEROPORTO INTERNACIONAL

Lá do alto, o passageiro olhou pela pequena janela da aero-nave. Imensidão de luzes: milhares, milhões, diversas cores ocu-pando variadas posições no espaço. O outrora lamaçal de nome Lutetia havia se tornado o lugar mais civilizado da terra. O pas-sageiro pensou ter algo em comum com aquela cidade; afinal, ele também avançara mais de mil anos no tempo...

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13 DE AGOSTO – REGIÃO CENTRAL DA MESMA CIDADE

O aglomerado de faróis fazia lembrar um imenso rio de fogo, a lava de um vulcão em movimento frenético que se dividia em vários braços de chama viva. Logo à frente, um rio de verdade, de águas limpas, cujo espelho de água refletia uma embaçada lua cheia que se misturava ao reflexo das luzes dos arredores. Tornando-se parte do espetáculo luminoso, um senhor elegante de cabelos grisa-lhos, acompanhado de uma não menos elegante senhora, trafegava em um carro antigo, impecavelmente cuidado. O senhor estava ca-lado, tinha as mãos geladas e o coração acelerado. Sabia que rumava para uma noite decisiva: com sucesso, chegaria à consagração; caso contrário, voltaria ao ostracismo. A senhora ao lado não se importa-va com o silêncio reinante, pois sabia que em momentos solenes ele ficava assim. Depois de tantos anos juntos, as palavras tornaram--se apenas mais um instrumento de comunicação entre eles. Chegaram ao destino: um recinto milenar tradicionalmente dedicado apenas aos monstros sagrados da pintura universal, que fora aberto excepcionalmente para um artista desconhe-cido, de um país periférico, miserável e sem qualquer tradição. O motivo? Simples: poucos meses antes, algumas obras de sua autoria causaram admiração e alcançaram valores expressivos em mostras coletivas, realizadas na cidade, e vinham arrancando rasgados elogios da crítica especializada.

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15 DE AGOSTO

A mídia repercutiu positivamente a vernissage. Os suplemen-tos culturais dos cadernos de domingo elogiaram o artista. Um jornal lido por todos os cantos do mundo dedicou uma página inteira ao artista. Uma das telas recebeu rara distinção: foi reser-vada para o acervo da ONU. O título era “Tarde seca” e retratava um momento de uma cena rural que acontecera cerca de qua-renta anos antes daquela noite de gala.

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CAIAU – 13 DE AGOSTO – QUARENTA ANOS ANTES

Em uma tarde seca, de um mês cinzento, de ar frio e sol es-condido, um grupo seguia vagaroso por uma estrada estreita e esburacada. O guia mantinha-se à frente, um cavalinho amarelo, orelha murcha, bastante magro; resultado de uma vida longa e sofrida. Andava lento, como se não tivesse pressa. Não precisa-va de mapa, tinha memória prodigiosa; conhecia cada buraco e cada pedra daquele chão. Seguindo-o, pelo menos vinte outros não menos velhos e cansados equinos de variadas cores, desem-penhando múltiplas funções: transportar sal, toucinho, rapadura, carne-seca. E havia, ainda, aqueles que carregavam apenas o tris-te destino de serem abatidos, em breve, no matadouro de uma cidade distante. Logo atrás, comandando o grupo, montado em um belo cavalo tordilho fogoso, um homem alto e corpulento. Um tipo peculiar: gordo e musculoso, portando um chapéu ato-lado na cabeça, o qual escondia a testa estreita e tapava parte da cara redonda, realçando as bochechas salientes, cobertas por uma camada de pele lisa marrom-esverdeada, cujos poros minavam gordura. O ralo bigode castanho-claro, implantado sobre o lábio superior, entrava pela boca larga e beiçola através de uma falha resultante da queda dos dentes da frente, que o tornava um ban-guela de bocarra murcha. A esse conjunto se somava um grande nariz esparramado e olhos sem volume, cinza-apagados. As linhas irregulares do corpanzil desconjuntado, associadas ao jeito lento, o qual quase dava a impressão de que ele estivesse dormindo, conferiam-lhe um desagradável aspecto de anfíbio gigante. Tinha nome e sobrenome, mas era conhecido apenas pela alcunha de Capitão e se ofendia a ponto de sair na faca com quem ousasse

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tratá-lo pelo nome de batismo. Ao lado, andando no mesmo rit-mo do cavalo, um cachorro luzidio de porte médio, de aspecto sadio e jeito tranquilo, chamado Canguçu.

Um olhar difuso revelava um momento de tranquilidade de uma cena rural. Um segundo olhar mais atento, entretanto, revelaria algo mais. Havia um menino na garupa, trajando apenas um calção cor de terra. O tórax desnudo expunha as finas e salientes costelas, as quais podiam ser contadas sem muito trabalho. A pele suja e seca, os cabelos desgrenhados, crespos, quebradiços e espetados denuncia-vam o ambiente rude em que ele vivia. Em meio à selva pilosa, um detalhe chamava a atenção: bem no ponto central do couro cabelu-do, havia uma extensa área sem pelos, expondo um couro vermelho inflamado, semelhante a uma coroa de monge, sugerindo que nos últimos tempos algo lhe machucara a cabeça de forma repetitiva. O aspecto geral sugeria alguém de mais ou menos sete anos; tinha dez.

Um olhar mais detalhado, porém, revelaria ainda mais: havia ali não um menino, e sim uma menina de olhar fixo e esbugalha-do, enfeitando uma pétrea face que expressava o estado de horror em que vivia.

A caravana seguia. A tarde caía cada vez mais triste, permeada por um silêncio desolador; nem mesmo um passarinho desgar-rado ousava quebrar-lhe o silêncio desconcertante. Em meio ao vazio de vida, ouviam-se apenas o tropel dos cavalos e, ocasio-nalmente, o zunido melancólico de um redemoinho de vento, que levantava a poeira vermelha do mês de agosto. Vez ou outra, porém, o silêncio era quebrado por frases desconexas, repetitivas, torturantes, sinistras:

– Sua vida agora é minha, retardada! O seu pai me falou... Paguei caro! Aquele pangaré bem valia coisa melhor. Mas tem nada, não. O Capitão não deixa nada pela metade... Na hora certa vai chupar essa groselhinha rala... Essas veiazinhas secas...

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A voz da morte era macia. Falava com expressão pausada, res-piração cadenciada, como que degustando cada palavra. Parecia se deliciar com o pavor imposto à sua presa, que, na garupa, ouvia muda e aterrorizada. Em meio ao pânico, a mente da menina re-cuou um instante, saudosista: cerca de duas horas atrás estava em casa; triste, é verdade, mas ao menos o medo era mais suportável, e havia lá uma pessoa que ligava para ela. Agora, apenas um curto intervalo de tempo depois, a vida não mais lhe pertencia; não era mais pessoa, não tinha mente, alma, espírito ou sentimentos. Fora coisificada, perdera o nome, não tinha título; não era gente. Tudo nela pertencia ao senhor do seu destino; era escrava, e essa classe de vivente não se pertence.

A maldade roubara o que ela possuía de mais sagrado, a espe-rança. Seus sonhos infantis foram brutalizados, arrancados de seu âmago para sempre, desde o instante em que viu, pela primeira vez, o destino maldito. Mas ninguém havia de roubar-lhe o dese-jo íntimo! Queria pular daquele animal. Fugir da vida. Saltar para a libertação... Existia, porém, o horrível medo da dor. Sabia que, em caso de falha, seria torturada até uma morte lenta e sofrida. O temor nem era pela perda da vida; tinha o pavor de ser tocada por aquela figura monstruosa, de mãos geladas, dotada de um estranho poder sobrenatural, que certamente lhe provocaria uma lenta agonia, antes de cortá-la em retalhos.

Pelo canto dos olhos, a menina viu quando o amarelinho vi-rou à direita e seguiu por uma estrada irregular, de solo vermelho, abundante em erosão. Os olhos dela finalmente captaram o mar-co usado pelo animalzinho: um ordinário pau-preto de pouco mais de dois metros de altura, apesar da idade centenária. Ouvira, muita vez, o avô falar daquele que fora palco de uma briga insóli-ta: dois surdos-mudos encontraram-se, casualmente, debaixo da sua pouca sombra e, por não se entenderem, se sentiram arremedados

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um pelo outro. Estranharam-se. Tragicamente atracaram-se até a morte. Desde então, duas pequenas cruzes feitas de aroeira fina e torta, mal aprumadas, marcavam a humilde árvore como um ponto de referência maldito de um lugar sombrio. Lugar de azar! Todos passavam por ali com a respiração acelerada e o peito fe-chado, torturados pelo medo dos símbolos alegóricos da morte.

A morte insistia, proferindo, pausadamente, palavras repeti-tivas que penetravam fundo na alma da criança, provocando-lhe uma opressão que lhe perturbava os sentidos; alterava a percepção das coisas; deformava a representação de tudo.

O magro corpo não se mexia, mas o canto dos olhos atentos captava, e a cabeça confusa avaliava cada ponto da estrada. O tempo estava aprisionado em um compartimento. O horizonte reduzido. A vida se resumia ao próximo instante de desespero.

A caravana seguia a passos preguiçosos. O amarelinho tinha o passo certo, quase mecânico, os olhos semicerrados; expressão de um vivente cansado. O guia, seguido pelo grupo, dirigia-se agora por um caminho estreito, de terra dura, rica em pedra, pobre em vida, tingida de um pó amarelo de nome toá. À frente, um aclive comprido de perder de vista. A menina seguia morta-viva, sem mover um único músculo.

Anda, anda, anda. Partindo do nada para o inferno, chegaram ao cume do terreno íngreme. A menina moveu o primeiro mús-culo, viu à esquerda, afastado não mais de quarenta centímetros de distância da estreita trilha, um precipício sem fim. Passar ali era visitar a morte por um instante. A menina, finalmente, se agi-tou. Chegara à situação limite. O horizonte se reduziu. Atingiu o abismo final. Voou de encontro ao nada. Saltou para a libertação, coitada. Melhor assim, a liberdade está acima da vida.

A um só tempo, um corpo fraco sumiu no escuro e um corpanzil desconjuntado foi atirado ao solo pelo refugo do tor-

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dilho, produzindo um barulho fofo. Em meio ao caos, os outros animais desceram o morro e se espalharam pelo espaço aberto. O homem não se mexia, parecia morto, mas não havia quebrado um único osso e, aos poucos, foi recobrando os sentidos. Estava desolado, sentia uma dor física intensa no corpo todo; doía-lhe, porém, muito mais a vaidade da alma. Desmoralizado por aque-la insignificante criatura, que insistia em querer escapar-lhe das mãos! Estava passando pelo pior momento da existência. Nem mesmo quando criança, quando era desprezado pelo... pelo Major sentira-se assim. Tinha ódio daquele maldito... Impossível que ela estivesse viva. Mas daria tudo, tudo mesmo, para ter aquele pequeno monte de ossos entre as mãos. Se tivesse uma única chance, esmagá-la-ia. Estava bem de saúde, mas a desmo-ralização tirava-lhe o ânimo para se levantar. O Capitão sentiu algo lamber-lhe o rosto. Era o velho guia de cor amarela que voltara para prestar-lhe solidariedade, perguntar-lhe se desejava alguma ajuda. O traste refutou violentamente qualquer ajuda do bondoso auxiliar:

– Saia, miserável! – praguejou, atirando pedras no compa-nheiro de muitas jornadas.

O cavalinho bateu em retirada. A menina sentiu a mão fria da morte. Sentiu o contato da

maciez gelada da pele maldita e a dor de ser arrancada dos tocos de árvores enraizados na superfície do abismo, os quais a livraram da morte rápida ao se engancharem no calção da coitada, para apenas lhe retardar o suplício ao devolvê-la ao algoz, dando a ele o privilégio de impor-lhe a morte sofrida. Em meio ao mais pro-fundo pavor, veio-lhe à cabeça uma frase profética, pronunciada de forma eloquente pelo pai, pouco tempo antes: “Vai ter prote-ção e vai demorar a morrer, mas seria bom que acontecesse logo, pois sofrerá intensamente e perecerá de forma dolorosa. O azar a

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acompanhará pela eternidade; causará sofrimento por onde passar e amaldiçoados serão todos os que se aproximarem de você”.

Fracassara em seu plano suicida. Agora, cada um dos arra-nhões que, involuntariamente, deixara na pele macia do Capitão seria descontado com dor, muita dor.

Urros de euforia foram ouvidos ao longe. O animal havia percebido que a vida ainda habitava o corpinho descarnado. Enfim, poderia saciar seus instintos animalescos, saboreando a sua presa. Com um único movimento, o carniceiro estendeu o despojo no solo. Duas poderosas mãos agarraram a garganta da vítima, impedindo que o ar lhe chegasse aos pulmões. Havia, porém, algo ainda pior do que a sensação de sufocamento: lá em-baixo sentiu o corpo ser rasgado pela carne maldita do agressor cruel. Fugir, fugir da dor... E do pavor... A proteção da mente fê-la desmaiar. O monstro – o horror – não permitia; insistia em acordá-la. Tinha prática em fazer o mal, que, aliás, era o seu ofí-cio e o dulcíssimo alimento de sua alma. Gostava de ver a vítima sofrer a cada instante, antes do apoteótico desfecho. A deliciosa agonia. Um momento antes do fim, esse era o momento maior. Degustador de vidas. Usurpador de corpos. A vida da menina se esvaía. O sangue escorria das entranhas. A lâmina afiada iniciava o processo de dissecação da carne viva, desenhando na face dela um “c” de Capitão analfabeto. Era o último instante antes da retirada do troféu. Marca pessoal, busca da perfeição e, de certa forma, uma pista, um aviso de que era ele o ator principal da cena macabra.

Mas, quando tudo caminhava para o final, uma dor horrenda surgiu na face da brutalidade. O sangue jorrou abundante, quen-te, vermelho rutilante, escorrendo pelo corpo dele, misturando--se ao da menina. Obra do amarelinho. Mordida profunda, mais rasgada do que cortada, aberta por dentes gastos, movidos por músculos da mastigação ainda poderosos. O animalzinho tinha

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noção exata do que lhe aconteceria a seguir, mas, acima de tudo, amava as crianças. Sempre fora cavalo de menino. Andava deva-gar para não machucá-las. Tinha orgulho de nunca tê-las der-rubado. Um dia, antes de ter sido tomado do antigo dono pelo homem ruim, fora tratado como gente de casa. Entendia bem o que acontecia ali, por instinto e também por sabedoria. Sabia que não deveria, já no fim da vida, permitir que um anjo inocente padecesse de tamanho sofrimento.

O tropeiro abandonou a sua presa e partiu para cima do pobre animal. Com um único golpe de punhal, atravessou-lhe o coração. O amarelinho soltou um gemido triste, o sangue jorrou novamente, manchando aquele lugar maldito. O corpo enfra-quecido tombou ao solo. Os olhos pararam: cinzentos. Aos pou-cos, a vida já não mais lhe pertencia. Morreu como herói! Fim de uma vida digna. O Criador, porém, não desperdiça a sabe-doria; muitas noites depois, ele voltaria, habitaria vários lugares, seria visto e admirado...

* * *

O galo ainda não havia começado a cantar. Agenor abriu os olhos, ainda sonolento. Maria Roxa, deitada ao lado, estava acor-dada havia alguns minutos. Agenor espreguiçou, levantou-se va-garosamente e abriu a janela para contemplar o universo. Gostava de acordar àquela hora; dizia que a limpidez do som da madru-gada deixava a toada dos pássaros ainda mais bonita; enxergava a verdadeira face do mundo olhando para a escuridão da noite. Sentia-se orgulhoso por nunca ter perdido um dia de serviço na vida e nunca ter acordado depois do nascer do sol. Agenor era um homem de meia-idade, de aspecto fechado, daqueles que não se permitem nunca nem mesmo um leve sorriso. Um tipo lin-

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guiça de cara ossuda e chupada, barba espetada, cheia de fios de tamanhos irregulares e grossos, tipo raiz de cana, nunca cuidada. Olhava o interlocutor com um olhar castanho firme, sem nunca tirá-lo do foco. A expressão era de uma humildade orgulhosa. Era firme, integrado ao mundo e grato ao senhor por ter-lhe concedido a vida na pessoa de Agenor, mesmo que em caráter de “empréstimo”, como dissera, um dia, um primo distante, um tal vaqueiro Manuelzão, que ganhara o mundo e se tornara imortal ao conhecer um doutor de linguajar complicado de nome Rosa.

Agenor era um homem seco, mas sensível. Olhou mais uma vez o firmamento, estudou o céu e a posição das estrelas; tinha na cabeça o seu próprio mapa celeste e o usava para estabelecer o melhor momento para o plantio. Estava quase na hora! Depois de um longo contemplar de mundo pela janela, sem um pensamen-to específico na cabeça, foi para a cozinha, a fim de preparar o café. Dona Roxa seguiu junto. Nenhum beijo ou palavra bonita; o amor deles não era assim, era calado.

Ainda muito cedo, Agenor direcionou-se para a roça, dona Roxa seguiu o marido. Zé de Lau, o filho homem mais novo do casal, também. O destino dos outros moradores do lugar era parecido. Rosa ficava em casa.

Luiz era homem ao contrário: nunca via o sol nascer, acordava mais tarde. À tarde, Rosa levava o café na roça e voltava para casa. A capoeira gemia sob a cutilada firme de Agenor. Capoeira tem alma? Ogênio falava que sim. Todos os outros diziam: “Não, não tem! Isso é loucura do irmão desajustado de dona Roxa, um ma-luco que vive no mundo dos loucos”. Agenor voltava quando o sol se punha. A Terra girava. O peixe miúdo voltava ao lugar onde nascera para desovar e devolver a vida ao Criador. Luiz descansava embaixo da gameleira, sentado em um toco seco. Agenor dormia cedo e pouco conhecia da lua, que saía mais tarde. Luiz, homem

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ao contrário, saía tarde da noite para caçar. A vaquinha Charita pariu um bezerro chitado. Em outro canto do mundo, um rapaz de nome Miguel, devorador de livros, nada entendia dessas coisas. O dia seguinte seguia o mesmo ritmo e o povo, as mesmas tra-dições. Ninguém questionava o destino. Afinal, as coisas sempre funcionaram assim, imutáveis, desde que o mundo era mundo. Os Morais nasceram para mandar em tudo. Os Marins ainda mais. Eles se odiavam, mas eram unidos no jeito de controlar as almas pobres. Mandamento do destino! Os coronéis cuidavam do povo. Missão apoiada pelo governo da terra, com bênção do governo divino. Sendo assim, a santa igreja apoiava os coronéis, mas, cari-dosa, fornecia o consolo aos sofredores: Deus era justo, somente os privilegiados pela pobreza alcançariam o reino dos céus. Os filhos dos pobres trabalhavam na lavoura. Estudar para que, se o destino os fez ignorantes, com habilidades apenas para servir? Os filhos ricos conheciam as letras. Trabalhar para que, se o destino havia deixado essa vergonha a cargo da gentinha? Destino! O mundo fora feito assim, e que ninguém pecasse, nem em pensamento, ou-sando desafiá-lo. As famílias ricas comungavam na igreja, separadas do povinho por uma grade de madeira, e sustentavam os mesmos pensamentos.

* * *

Caiau! Fóssil vivo. Lugar onde a arte e a beleza ainda não haviam chegado, vivendo a mesma vida desde que os desbrava-dores ali chegaram, atrás de ouro e riqueza. Aldeia arcaica, invi-sível no mapa, perdida no meio do nada, pertencente a um país longínquo, localizado entre a linha do Equador e o trópico de Capricórnio, habitado, nos dizeres dos que chegavam de fora, por um povo falante, preguiçoso e ignorante.

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