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ricardo-oliveira
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Conto
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A minha casa
Um homem vigoroso e sem receio enfia a pá na terra solta, lançando-a fria e
eterna para cima do caixão de madeira sereno e sóbrio. Estavam poucas pessoas no
funeral. Já poucos restavam. Mais próximo, quase a tombar para o buraco, estava um
homem magro, corcovado, de olhos fechados, desamparado como a liberdade. Ninguém
ao seu lado. A liberdade trouxera-lhe a solidão. Zé Maria chorava. Em volta, alguns
circunstanciavam, amortalhados nas suas roupas de séculos. Zé Maria chorava a cada pá
de terra que cobria a sua amada. A sua companheira de todos os momentos abandonara-
o finalmente ainda antes que a velhice os apanhasse desprevenidos. O padre jejuava nas
palavras o sentimento que, afinal, não podia ter, porque quem a amava era o Zé Maria e
só quem ama é que sente verdadeiramente. As mangas do seu casaco não lhe chegavam
aos pulsos; nunca se soubera compor. Era um descomposto social por natureza íntima,
porém ela estava lá. Sempre consigo, aprimorando-o com a beatitude da sua beleza. Os
pulsos estavam descalços em desarranjo comentado, enquanto a terra tapava por
completo o caixão. Era o funeral de Bia.
Depois, surgiram abraços e beijos diversos de pessoas sem cara, pessoas sem vida,
porque não existiam. Zé Maria condescendia, perdido e choroso. A sua vida inteira
ruíra; os projectos, as lutas, as ânsias, os sonhos, os sonhos… eterno mundo
partilhado… morrera. Saía, devagar do cemitério, por entre estranhos que lhe
murmuravam segredos em código, para lado nenhum. Não tinha para onde ir, o que
fazer. O que havia a fazer era com Bia, tinha-o combinado no dia anterior. Agora
caminhava pela cidade, olhando para a frente para não esbarrar com algum obstáculo.
Na verdade, o médico já lhes tinha dito que aquela gravidez era de risco, mas as
palavras eram tão difíceis que nem Zé Maria, nem a companheira, conseguiam entender
o que elas queriam dizer. Por isso esperançavam-se. Em casa, na cama, ele punha a mão
sobre a barriga breve de Bia e deslizava, contornando-a, para cima e para baixo, no
princípio do amor de pai que lhe nascia do amor pela mulher. Bia, deitada na cama
sobre a colcha que tinham comprado no dia em que decidiram viver juntos, sorria.
Estava feliz, o mistério da Vida acontecera-lhe como uma surpresa desejada. Mas o
mistério dorme para além da Vida que sabemos e eles não sabiam, não sabiam como
pode a vida que nasce morrer sem ter nascido e puxar-nos para a morte com ela. O
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médico também não sabia, contudo suspeitava. No entanto, ele não conhecia as
palavras. Aprendeu-as antes de entrar para o curso de Medicina e lá esqueceu-as;
deixou-as escondidas num poema clandestino que ficara na mesa-de-cabeceira do seu
quarto de caloiro.
Deitados na cama, Zé Maria contemplava na barriga de Bia o futuro que se
anunciava. Olha, está a mexer-se! E sorriam ansiosos, trocando olhares cúmplices.
Olhares que Zé Maria demorava no verde-transparente dos olhos grandes de Bia. Olhos
de adolescente que se fez mulher sem que o tempo desse conta.
Foi no final da adolescência que se conheceram. Era um fim de tarde de
Setembro. O vermelho do sol desmaiava sobre os prédios e as árvores que ladeavam a
estrada. Havia uma brisa outonal tépida que agitava as folhas discretamente. Zé Maria
passeava. Sempre tivera o gosto saudosista e triste de passear ao final da tarde, como se
lhe custasse que o dia terminasse. Passava diante da Piscina Municipal, onde pára para
fumar. A piscina era uma construção moderna inaugurada no ano anterior, mas ainda
não terminada. Ainda havia que esclarecer uns pontos quaisquer que o senhor doutor
juiz, decerto, decidirá. Contudo, entretanto, as portas abriram-se ao público da vila que
apreciou o novo serviço da terra.
Foi nesse momento que a viu pela primeira vez. Ela saía, deixando o negro
molhado dos seus longos cabelos humedecer a brisa que Zé Maria respirava. Pequena e
hilariante, galhofava em conjunto com as amigas, despreocupadas no seio da sua
juventude eterna. A mochila que trazia era leve e subtil como ela; era azul-celeste como
o infinito; divertida como só nela poderia ser. Ela passava. Zé Maria não conseguia tirar
os olhos daquela rapariga. Como era possível nunca ter reparado nela? A vila não era
assim tão grande. Era uma vila modesta, ponto de passagem de muitos, mas paragem de
um punhado de gente. Bia passou, indiferente ao olhar persistente daquele jovem que
estava sentado no cimento dum vaso que prometia alegrar, num futuro incerto, a entrada
da Piscina Municipal com uma planta. Quando dobrou a esquina do prédio, Bia tinha
sublimado o ar, tinha trazido um pouco de sonho à realidade de Zé Maria.
Zé! Zé, então, pá! Não me ouves? Antero chamava frustrantemente o amigo que
olhava o que o prédio não deixava ver. Zé!, tocou-lhe finalmente no braço. O que se
passa? Nada., respondeu atarantado. Antero era um rapaz gordo de cabelos compridos
que tinha uma enorme vontade de viver. Gostava da paródia e todos os dias mereciam
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uma celebração dionisíaca. Estás aluado! O que precisas é de beber um copo! E ria alto
para que toda a vila conhecesse a sua vitalidade. Logo vou a um jantar. Vão lá estar as
melhores raparigas da vila. Tens de vir! É obrigatória a presença de todos os cidadãos
exemplares desta vila. E tu és um deles?, troçou Zé Maria. Claro, menino! E tu também
és! Zé Maria era um tímido, porém concordou acompanhar Antero no famoso jantar da
sociedade juvenil local.
Antero e Zé Maria foram os primeiros a chegar ao restaurante. Estavam postas
mesas corridas ao longo de toda a sala, repletas, desde logo, de garrafas de vinho,
auspiciando uma noite de folia. À porta do restaurante aglomeravam-se jovens
soberbamente vestidos de adultos, cuidados na toilette ao detalhe, não descurando
domesticar aquele cabelo selvagem que insistia numa outra posição inestética. Todos,
menos Zé Maria que não tinha ido a casa trocar de roupa, nem sequer havia pensado
nisso, todos floresciam brilhantes no luxo fosforescente da nossa civilização. Zé Maria,
apertado na sua ganga e no desmazelo da sua casaca roçada, sentia-se desfasado e inútil.
As raparigas, principalmente, maquilhavam-se em beleza, exibindo decotes arrojados e
pernas longas, longuíssimas. Eram todas bonitas, como se a Natureza tivesse distribuído
a Beleza somente naquela vila. Antero emparelhava com Zé Maria na mesa, onde aquele
nunca deixava o copo de ninguém vazio, repetindo a frase: Não quero ninguém triste ao
meu lado. e logo atestava o copo desse amigo. Era um pândego, a seu lado era
impossível não rir à gargalhada. No entanto, a comida não tinha sido servida, visto que
ainda não tinham chegado todas as pessoas.
Eles ficaram na mesa que dava para a enorme janela de onde se podia ver a rua.
Lá fora, estavam alguns colegas que tardavam a entrada, fumando adultamente e
conversando. Quando, por fim, chega a rapariga da Piscina Municipal. Senta-se à mesa,
no outro lado. Trazia ganchos: eram borboletas de todas as cores que saltitavam pelo
negro-azul dos seus cabelos. Não trazia maquilhagem, porém os olhos brilhavam como
a felicidade. Sentou-se à mesa, longe de Zé Maria, que não atentava nas conversas que
decorriam com alarido. Sorri apenas para que os amigos não notassem o estado em que
se encontrava. Que linda!, pensava Zé Maria. Seria possível que estivesse apaixonado?
Não queria acreditar. Sempre achara essas coisas de “amor à primeira vista” histórias da
televisão. Tão linda, aquela miúda! Não conseguia evitar olhá-la. Perturbava-o. O
coração pulava.
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Entretanto, uns colegas levantavam a voz demasiadamente, em tom agressivo.
Gerara-se uma confusão qualquer que tinha nascido de um nada, fonte de grande parte
das discussões. Os colegas esgrimiam argumentos já com o corpo e o dono do
restaurante acabou por expulsar a sociedade juvenil local. Ficaram à entrada sem se
apaziguarem, encenando um acto de pancadaria insólito entre amigos. Foi uma cena
desagradável, fruto do exagero, do excesso de egoísmo que habita os jovens. Antero,
que gostava de paródia, tentou fazer regressar o espírito festivo, contudo apenas lucrou
um sopapo que lhe inchava a face esquerda.
Evitando a confusão, Bia encosta-se ao parapeito da janela do restaurante. Estava
sozinha, resplandecendo com o cetim das suas pernas descobertas pela curta saia. Zé
Maria recua para junto dela, mas não diz nada. O coração saltava tanto que quase lhe
saía pela boca. No entanto, inesperadamente, Bia pergunta: Que estavas a fazer na
piscina? Zé Maria, estupefacto por ela ter reparado nele, gagueja, suando e ruborizando
as faces. Ela estava a falar para ele. Assim, sem mais. Tinha-o visto, assim como ele a
tinha visto. Tinha de conseguir falar com ela; pôr para trás todos aqueles anos de
timidez que sempre o impediram de falar com raparigas. Tinha de falar. Dizer o quanto
ela o tinha impressionado. Corava: Estava a ver-te. Ela sorriu. Por vezes, quando
sabemos o que os outros nos vão dizer, sorrimos. Foi isso que Bia fez, sorriu. Contente
por aquele rapaz a ter visto. Contente, sorriu: Mas tu não andas na natação? Zé Maria
pareceu surpreendido. Não. Mas gosto de nadar. Não sabes nadar. Apenas dizes isso
para me agradar., gracejou Bia. Ela tinha uma voz pequena e breve como o seu corpo
que era quase transparente no meio da confusão, por isso Zé Maria encheu-se de
coragem e propôs: Queres vir comigo à piscina? Era um arrojo que nunca havia
cometido, transpirava e passava nervosamente as mãos pelo cabelo que começava a
rarear. Bia aceitou: Sim, vamos até à piscina. Sempre podemos conversar melhor. Ela
completava o raciocínio de Zé Maria espontaneamente, sem se esforçar ou, sequer, se
aperceber disso. Era o princípio; a porta aberta por onde o amor entra e se instala na sala
comum que ainda não estava decorada.
Seguiam em silêncio. Estavam ambos nervosos, pisavam ambos um território
desconhecido, andavam sem rota num rumo incerto; por isso, às vezes, cambaleavam e
os seus braços tocavam-se. Tocavam-se e logo recuavam, envergonhados e tímidos.
Todavia, já nas imediações da piscina, os braços voltaram a roçar e, na confusão gerada,
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terminaram de mão dada. Foi de mão dada que chegaram ao parque defronte da Piscina
Municipal. Sentaram-se no local onde ele tinha estado ao final da tarde. Quero ver se
sabes nadar. Sei, já te disse. Queres fazer uma corrida? Aposto que te ganho! Era
atrevida aquela rapariga, mas Zé Maria não se esquiva ao combate: Achas que és capaz
de me vencer?! Sou mais rápido do que um salmão a subir o rio... Sim, tenho a certeza
que sim! Rematou ela, faiscante no olhar e convida: Vamos a isso? Já?!
Bia conhecia uma entrada secreta que dava acesso à piscina. Entraram e, mesmo
vestidos, mergulharam nas águas paradas e escuras da piscina. O céu, pouco estrelado,
reflectia-se na água, dado que a cobertura era de vidro transparente. Mergulharam. Bia
grita: Não me apanhas. Quem chegar primeiro ao muro, ganha! Nada. Nada
velozmente. Zé Maria parte atrás dela, seguro de que seria fácil ultrapassar a pequena e
divertida rapariga, porém ela deslizava pelas águas como uma sereia, por isso a
distância entre eles ia-se alargando. No entanto, Bia retarda a marcha para que Zé Maria
pudesse sentir as ondas do seu movimento desenhado na água, mas não o deixa vencer:
Perdeste com uma menina!, troçava Bia, penteando os longos cabelos, que lhe tapavam
os olhos, para trás das costas. No rio, no rio quero-te ver. Não estou habituado a este
tipo de água. Depois, Zé Maria passa a sua mão por um cabelo que rebeldemente tingia
a face de Bia e esconde-o por trás da orelha. Ela sorri e espera. Ele olha-a bem no verde
profundo dos seus olhos, dizendo-lhe todas as coisas que tinha de dizer mas não têm
palavras. Ela entende e emociona-se, colocando a sua mão por cima da dele que ainda
repousava um pouco abaixo do ouvido. Tremem menos pelo frio da água do que pela
ansiedade. Zé Maria coloca a outra mão sobre a anca miúda de Bia. O espaço entre eles
é cada vez menor, partilham o ar e as pernas encostam-se.
No entanto, Bia recua, aponta para o céu: Já viste este espectáculo? Ele,
envergonhado, retira as mãos do corpo dela e responde: Não. Nunca tinha entrado aqui.
É deslumbrante! Bia chega-se e explica: Aquela é a constelação de balança. Ali é
Marte. Aquele é Vénus. Acolá é... ali devia estar a estrela polar. Era através dessa
estrela que os marinheiros sabiam o caminho. Onde estará ela? e espreitava,
acercando-se cada vez mais de Zé Maria. Eu sei onde ela está. Ela olha-o, surpresa. Que
mistérios teria aquele rapaz? Fui eu que a guardei., continua confiante. Estão os dois
frente a frente. Ele sorri. Sorri de prazer e de medo. Deixa que a palma da sua mão se
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acerque da barriga de Bia e depois sobe, por dentro da camisa dela: Deixei-a aqui., e
pára no seu coração.
Bia sossega a respiração acelerada, aquela mão que lhe subia, ao de leve, pelo
contorno do seu corpo fazia-lhe calor. Ela sossega, quando Zé Maria pára a mão, um
pouco abaixo do seu peito e deixa-se ir. Foi até ao encontro dos lábios de Zé Maria.
Beijam-se. Por cima, a estrela polar norteava o caminho deles.
Agora, Zé Maria caminhava, caminhava sem destino como daquela vez em que
resolveram ir à Cidade da Utopia. Foram a pé; sabiam que a verdadeira utopia está na
paisagem do caminho, porque na cidade mora sempre o fim.
Foi no Inverno, nas férias de Natal, Zé Maria convida-a: Vamos à Cidade da
Utopia? Bia sorri, indecisa. A época natalícia parecia-lhe demasiado familiar para
loucuras daquelas. Nós somos a família!, anuncia Zé Maria. Ela condescende, embora a
ideia lhe parecesse um pouco amalucada. Porém, Zé Maria prossegue: Iremos a pé. Bia
escandaliza-se: Tu sabes quantos quilómetros são? 333! Por isso mesmo, caminharemos
numa tripla perfeição!
Na madrugada seguinte, com duas mochilas e uma tenda que carregavam na mão,
saíram para a mais longa viagem que fizeram. Chuviscava. Intrépidos como os
cavaleiros medievais, começaram o caminho. Seguiam pela floresta. Não havia estrada
de alcatrão para Utopia: o Homem não pôde sujar para construir aquela civilização; por
isso, eles tinham de trilhar pelo meio das montanhas e vales que separavam a sua vila
daquela cidade. Bia ia à frente, mandara-o para trás para que pudesse ver tudo como
uma timoneira. É que tu és muito grande e tapas-me a paisagem. O trilho era pequeno
e, na verdade, só raras vezes podiam caminhar lado a lado. A terra estava enlameada não
só pelo riacho que a ladeava, mas também pela chuva que aumentava com a alvorada.
Zé Maria festejava: São os deuses que abençoam o nosso amor! Ela, encharcada, com
os cabelos negros e compridos ondulando-lhe colados à cara pequena e sardenta, as
botas cobertas de lama que chapiscava do chão, carregando orgulhosamente a tenda,
brilhava no verde mais vivo dos seus olhos, livre, como nunca fora, amada, como nunca
pensava ser.
Por volta do meio-dia, pararam junto à nascente que ficava na Aldeia Termal. A
aldeia ficava num vale, as casas subiam a montanha com discrição, eternizando-a como
um sagrado imaculado. Diante do átrio de uma capela branca estava a nascente. Bia
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atira para o chão lajeado a mochila e a tenda e passa as mãos na água, esfregando-a na
cara: Que macia é! Zé Maria experimenta: Sim, que macia., diz com as mãos nas faces
de Bia. Chovia copiosamente, por isso abrigaram-se no adro da capela, onde almoçam
do farnel que traziam. Zé Maria pensava: “Que grande mulher que está a meu lado!
Como é que é possível ela estar aqui comigo nesta maluquice? Amo-a tanto...” e,
sobressaltado, grita: Anda! Vem comigo! Arrasta Bia novamente para a nascente. Chovia
dolorosamente. As roupas pesavam no corpo miúdo de Bia. Zé Maria, solene como um
noivo, profere, molhando a mão direita e levando água à cabeça dela: Bia, meu amor,
com esta água eu te baptizo como a minha companheira eterna! Em nome da Água, da
Vida e do Amor... Bia fecha os olhos para que o amor diluído na água lhe entrasse por
todos os poros da cara. Depois, molha a mão e passa-a nos lábios dele. O meu amor...
Eterno companheiro! Beijam-se. A água borbulhava da terra e caía do céu. Mas eles não
ligavam; a eternidade do amor é maior do que isso.
Permaneceram nessa aldeia, onde procuraram um abrigo que os acolhesse.
Virgem santíssima! Como vocês vêm!, exclamava a senhora Noémia, dona da
Pensão. A senhora Noémia levava as mãos à cabeça, aterrada. Eles riam divertidos,
porque na flor da juventude as doenças são uma miragem tão inalcançável como a
velhice. Todavia, Noémia, senhora que vestia um luto que esmagava os seus frescos
cinquenta anos, ralhava: Isso são lá modos?! A caminhar à chuva, sem ao menos se
protegerem com um guarda-chuva! Noémia, minha santa, deixa lá os miúdos. Estão na
altura de viverem as suas aventuras. Um homem vestido com um fato azul aproxima-se
do balcão. A pele da sua cara era lisa como se nunca tivesse havido barba nela e o
cabelo meticulosamente penteado para trás, empastado em gel. Continuou: Noémia,
minha amada, serve-me um gin. Tua o quê? O homem deve estar parvo!, gritou Noémia
agitada, com os seios arfando, escondidos na escuridão do luto. Vá, meninos, vão tomar
um banho que ainda apanham uma gripe! Louvado seja Deus, que o mundo está
perdido!
A Pensão ficava bem no centro da aldeia e da janela do quarto onde Bia e Zé
Maria se hospedavam podia ver-se a nascente, ali mesmo, diante da capela branca.
Chovia. Nos vidros rectangulares da janela de madeira, copiosas gotas obliquavam ao
sabor do vento que crescia com o findar do dia.
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Ainda não sabiam se namoravam. Na verdade, Zé Maria nunca tinha perguntado:
Queres namorar comigo? E Bia, que já sabia a resposta, nunca a pôde dar, visto que
nunca houve nenhuma pergunta a responder. Andavam abraçados pelo desejo que os
fazia permanecer juntos e isso para eles bastava: Queres vir comigo? Sim, vou contigo.
Isso bastava para alimentar aquele amor. Era um amor puro, sem convenções ou
formalidades. Era um amor como um sentido de vida.
Durante a noite dormiram abraçados, calmos e sossegadamente protegidos pelos
seus pijamas de Inverno. No entanto, do outro lado da parede fina, ouviam-se gemidos.
Era uma mulher. Cansados, Zé Maria e Bia adormeceram.
Na manhã seguinte, dona Noémia recebia-os já com a sala a branquejar nas
toalhas postas sobre as mesas que mostravam leite, chocolate, café, manteigas, queijos,
compotas, que ela mesma fizera; discreto no cesto de vime, o quente do pão que fora
confeccionado no forno a lenha da pensão acarinhava o amanhecer. Noémia,
encarcerada no seu luto, falava-lhes sobre a qualidade dos produtos que dispunha, numa
conversa que lhe fora ensinada por um mestre que vivera antes do deus dos ladrões
mandar sobre o comércio. Noémia estava feliz. Quando falava do seu pão, cheirava-o
maternalmente para confirmar que era mesmo o seu.
Noémia, filha, anda cá tomar o pequeno-almoço comigo! Era o senhor sem barba
que falava, exibindo os reflexos gelosos do cabelo à luz espantosamente tépida daquele
dia de Verão no meio da invernia. Estou a atender clientes!, resmungou a senhora
Noémia. Serve-te, se quiseres, se não quiseres, tenha um bom dia!, remata, descuidando
um sorriso que lhe contrariava o tom áspero da frase.
Na Aldeia Termal, a vida escorregava devagar, como a água que nascia sem pressa
de morrer no mar. A nascente era a religião da terra: à volta dela juntavam-se os aldeãos,
cavaqueando: Vocês são peregrinos? Zé Maria esclarece: Sim, estamos a caminho da
Cidade da Utopia. O velho, cofiando o bigode antigo, arruma o chapéu como um toque
na modernidade de uma época distante: Sabes, fui eu que fiz a primeira viagem pelos
trilhos desta montanha até lá. Indiquei todo o caminho. Se estiveres atento às árvores,
encontrarás a direcção correcta. Bia, depois do pequeno-almoço, ainda permanecera na
pensão, Ainda tenho de acabar de me arranjar. Zé Maria tinha saído, conversava com
os habitantes sobre um fogo que ocorrera há dez anos. Ainda não havia bombeiros e foi
a força dos homens da terra que salvou a aldeia duma tragédia. Já alguma vez
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enfrentaste o fogo, rapaz? Já. Uma vez a minha casa ardeu... Era a voz de Bia, pequena
e breve, atrás de Zé Maria, como a eterna companheira que nunca o deixa
desprevenido... a minha mãe estava doente na cama e o meu pai paralisado de medo.
Enfrentei o fogo e defendi a minha casa como a minha intimidade. Houve um silêncio...
Zé Maria olha para trás e ali estava ela, linda, excessiva no seu corpo pequeno. Existem
demasiadas coisas que nos superam. Tanto que nos fazem sentir pequenos,
insignificando todo o sonho que o Homem pode inventar. Levantei a minha mãe e levei-
a lá para fora. Os aldeãos relembravam: Quando vem o fogo, temos de nos unir para
superar as dificuldades...
De volta à pensão, já o sol se punha, Noémia, maternal, perguntava por onde
tinham andado. Zé Maria nunca percebera por que motivo as pessoas têm de saber a
vida dos outros. Nunca percebera o benefício que isso poderia trazer à sua vida. Talvez
fortifique os laços entre os homens. Talvez seja uma maneira de se preocuparem uns
com os outros... explicava Bia. Talvez... talvez porque gostamos de falar uns dos outros,
por vezes mal., Zé Maria parecia não concordar. Talvez dizermos mal uns dos outros
seja uma maneira de nos amarmos. Zé Maria sorriu.
Durante a noite, voltaram a ouvir barulho do quarto ao lado. Os mesmos gemidos,
estranho: É do quarto da dona Noémia! Acharam alguma piada na malícia do
pensamento, porém não tentaram descobrir a verdade: esse recanto tão íntimo do ser que
raras vezes se desvenda. Bia tinha sede. Resolveu sair do quarto para ir beber um copo
de água na máquina comum da pensão. Quando regressou, trazia um sorriso desenhado
no seu rosto, um daqueles sorrisos que quer estourar num tropel de palavras. O que é
que te aconteceu? Nem imaginas... Anda diz lá! Nem sei se te devo contar. Deixa-te
disso, diz lá! Vi o senhor do fato azul a sair do quarto da dona Noémia! Zé Maria
espantou-se com o insólito da situação. Mas ela está de luto... Espera. Ainda vi uma
coisa mais incrível! O quê? Bia contraiu a face numa expressão de suspense, os olhos
arregalados como se tivessem desvendado algo incrível e nunca visto. Ele vinha
despenteado! Não tinha gel!
Passaram três dias na calma da Aldeia Termal.
Despediram-se pela manhã. O senhor ainda lá estava sentado na mesa sozinho,
com o cabelo empastado de gel. Noémia, filha, anda cá tomar o pequeno-almoço
comigo! Estou a atender clientes!, resmungou dona Noémia. Serve-te, se quiseres, se
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não quiseres, tenha um bom dia!, remata, arfando o peito sob o peso claustrofóbico da
camisa negra. Ele não ligou. E vocês, já vão? Temos de seguir o nosso caminho, vamos
para Utopia!, anunciou Zé Maria sorridente como a manhã. O senhor levantou-se
festivo: Venham cá esses ossos! Felicidades e boa viagem! Abraçou Zé Maria e Bia,
despedindo-se calorosamente.
O caminho, trilhado pelas montanhas em antigos carreiros calcorreados por gentes
desde tempos imemoráveis, tinha o encanto de ladear rios, ribeiros e lagos, onde os
namorados paravam para fotografar e se banhar. Seguiam as setas que o bom ancião
tinha deixado. No meio dos montes, onde a luz solar quase não tocava as tenras ervas
rasteiras, dependiam totalmente daquelas indicações. Sem elas, perdiam-se na certa, por
isso olhavam as árvores com toda a atenção, vendo nelas o mapa que não traziam.
A floresta era imensa, interminável e as indicações pintadas nas árvores
desvaneciam-se conforme a escuridão nocturna avançava. Num repente, deixaram de
ver as setas e caminharam desesperadamente perdidos até que Zé Maria sentenciou:
Espera! Temos de ter calma! Montamos nesta clareira a tenda e passamos cá a noite.
Bia parecia não muito confortável com a ideia, porém ele agarra no canivete e grava no
pinheiro gigante, que lhes estava defronte, um coração envolvendo os nomes “Bia” e
“Zé Maria”. Não te preocupes, ele protege-nos! Assim, sob a guarda do amor,
pernoitaram na floresta. Bia, de olhos muito abertos e grandes, ouvia os uivos distantes
dos lobos. O seu corpo breve, demasiado próximo do de Zé Maria, pois só tinham um
saco-cama, tocou o dele; então o rapaz envolve-a num abraço protector em que ela
adormece.
No dia seguinte, as pernas doíam. E tiveram de lutar muito até reencontrar o
caminho certo.
Utopia estava perto, eles sabiam-no devido à harmonia da paisagem. Passavam
por um pequeno carreiro, que fazia de ponte, carreiro que trilhava pelo meio de um
grande lago que circundava uma ilha. Utopia ficava nessa ilha, unida ao resto do mundo
apenas por três caminhos: a rua da Justiça, a rua da Igualdade e a rua do Amor. Eles
acercavam-se pela Igualdade; haviam cometido um erro qualquer no percurso, visto que
pretendiam entrar pela do Amor. Todavia, entre os companheiros deve existir igualdade,
por isso estavam satisfeitos e aceleraram o passo.
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Caminhavam, agora em companhia de vários peregrinos, que animavam as ruas
que desaguavam em pórticos graníticos imortais. No frontispício, esculpiam-se os
homens que participaram da construção daquela entrada. Ali viam-se os engenheiros,
além os arquitectos, os políticos, acolá os mestres e os pedreiros... Todas as figuras
estavam desenhadas com os seus traços individuais, ocupando, todas, a mesma
dimensão. À entrada havia músicos melodiando um teatro que decorria, pelas ruas
espalhavam-se pintores, desenhando o que estava por dentro daquilo que viam; numa
praça, as crianças ouviam os professores que lhes ensinavam o saber depois dos livros, o
saber dos homens, que, ao lado, os poetas diziam. Por cima dos arcos que circundavam
a praça escrevia-se: “Todo e cada homem nasce igual. Todo e cada homem é igual em
face da Justiça. Todo e cada homem é igual em face da possibilidade. Todo e cada
homem é igual na diferença que o faz existir.” E era isso que pintavam os pintores, que
ensinavam os professores, que diziam os poetas, que, ao centro, aperfeiçoavam os
políticos e que as pessoas que ouviam sabiam. Era a Praça da Igualdade, onde também
havia gente que vendia, contudo perfumando os produtos com o sabor do equilíbrio.
Bia interessava-se pelos cachecóis, enquanto Zé Maria se espantava com o
ambiente que os envolvia. Ela punha e tirava cachecóis numa dança sensual que
enfatizava com sorrisos cúmplices com o vendedor discreto e paciente. Decidiu por fim.
Porém, quando pagava, apercebeu-se que não tinha a carteira. Zé Maria logo procurou a
dele para resolver a situação constrangedora, contudo também a sua havia desaparecido.
Sobressaltados, reviraram as suas malas, desfizeram a tenda, esmiuçaram o saco-cama...
nada! Peço-lhe imensa desculpa! Mas não vou poder comprar o cachecol. Perdemos o
nosso dinheiro. Não, não perderam, Bia. Foi o homem do cabelo untado, mascarado de
fato, que vos roubou. Foi naquele abraço. Vocês não reparam, são demasiado jovens
para saber que um abraço pode não ser amor.
Bia desesperava, chorava, juntando uma multidão em volta deles. Calma, miúda,
tudo se há-de arranjar., ouvia-se, Podem ficar em minha casa..., frases soltas sem rosto,
Querem comer?, vozes de uma Igualdade que tarda em chegar, Venham comigo! Era o
homem da Pensão, o seu cabelo lustroso reflectia os oblíquos raios solares invernis.
Não, replicou Bia, temos de ir embora. Para ela não fazia sentido viver dos favores dos
outros. De quê que precisam? Zé Maria responde: Já não temos comida para o
regresso. De pronto, o senhor compra umas sandes e água para que pudessem voltar
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para a vila. Muito obrigada, não sei como pudemos ser tão distraídos! Muito obrigado,
senhor! E saíram de Utopia. Saíram sem terem compreendido a cidade, sem perceberem
que são os homens que enganam os homens e não permitem que a utopia exista.
Voltam... Zé Maria volta, agora sozinho, deixando o corpo de Bia repousar na
campa simples; volta para casa, onde já ninguém habita, apenas a sua mãe que espera o
impossível, olhando pela janela do tempo.
Em frente à sua casa havia um parque infantil. Era um pequeno parque com
baloiços, escorrega e um carrossel. Estava abandonado. Sobre a areia cresciam ervas
daninhas que invadiam o podre das madeiras. Zé Maria ainda lembrava os tempos em
que havia vida naquele parque. Nessa altura, parecia enorme, enorme como parece a
vida. Na sua infância brincava ali com os seus irmãos e amigos. Era o irmão mais novo
dos três filhos que os seus pais haviam criado. Anda para aqui!, chama a irmã, montada
no baloiço: era necessário o seu peso e o dele para equilibrar o do irmão mais velho.
Relembra. O seu ídolo, o irmão mais velho, a lançá-lo ao ar como uma pluma e depois,
juntos, caíam sobre a areia macia, trazida do mar. Anda para aqui!, chama a irmã. Era
uma adolescente plena, bela como a juventude. Já vou!, gritava Zé Maria, levantando-
se, cuspindo ainda a areia que o irmão lhe oferecera. Já vou, para onde foste? O baloiço
oscila ao vento, morto como a esperança do regresso.
Em frente à sua casa havia um parque infantil. Os cavalos do carrossel estavam
gastos e descoloridos. Houve um tempo... relembra... em que o irmão galopava com ele.
O pai fizera-lhes espadas e escudos de madeira, mas eles não lutavam. Montavam no
cavalo. No mais alto cavalo do carrossel. Era o mais veloz e sabido, o mais duro e
corajoso. Montavam no cavalo. O irmão colocava-o à sua frente e erguiam ambos as
espadas, gritando: Liberdade para todos os homens! E lutavam contra os tiranos que
governavam no castelo; lutavam contra os deuses que tomam a vida das pessoas nas
suas mãos, tomando, por elas decisões, mostrando-lhes depois o quão melhor para elas
próprias é obedecer-lhes cegamente. Zé Maria lutava, comandado pelo irmão que, por
trás dele, segurava firme a sua espada. Lutavam em conjunto contra os senhores que
matavam. O cavalo galopava pelas colinas, saltava os muros do castelo, esgueirando-se
às flechas violentas que vinham das ameias. Invadiram a torre de menagem, onde
estavam protegidos os governantes. Havia gentes que se punham em frente a eles, dando
a sua própria vida, como se a deles fosse mais importante do que a sua. Protegidos pelos
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escudos, avançaram. Costas com costas, como exímios espadachins, derrubavam um a
um os defensores da tirania. Todavia, a muralha que suportava Zé Maria cede. O irmão
estatela-se no chão e Zé Maria perde o seu escudo, caindo.
Ele regressa a casa, onde a madeira do cavalo apodrece como a liberdade que o
homem nunca terá. A liberdade de escolhermos as pessoas com quem viajamos. A
liberdade de construirmos o destino. A liberdade que nem na Cidade da Utopia existia...
Zé Maria regressa a casa. A sua mãe esperava-o no vazio do seu quarto, que o pai
tinha abandonado. Ela esperava-o junto à janela do tempo. Olhava uma fotografia. Zé
Maria volta para casa. Entra em silêncio. A mãe já há muito tinha descuidado a limpeza.
A casa envelhecia e morria com ela, como se fossem uma só. Sobe as escadas que
davam para os quartos. As suas portas estavam escancaradas e ele pôde ver o quarto que
habitara durante anos. A sua cama no chão a ser devorada pelos insectos, a servir de
morada aos ratos. A sua cama, onde amei pela primeira vez, Bia.
Foi no Verão. Eles iriam acampar para aquela praia paradisíaca, onde a montanha
desmaiava no mar, despindo rochas da cor da origem. Bia vinha a casa de Zé Maria,
vinha buscá-lo, muito embora preferisse que fosse ele a cumprir essa tarefa. Trazia um
decote, exibindo a perfeição da curva dos seus seios rijos, e uma minissaia leve como a
sensualidade. Olá, já estás preparado? Não. Anda ali ao meu quarto ajudar-me! Zé
Maria era um incompetente; nunca sabia que roupa seria necessário levar. Bia não se
importava, ela até gostava deste papel de mãe, representando-o com o amor de mulher.
Foram para o quarto, onde ele rompe beijando-a, desde o pescoço até às faces. Sem
querer, escorregam e caiem para a cama. Zé Maria, por cima, agarra com força as coxas
de Bia e desliza devagar. Ela puxa-lhe o cabelo demasiado raro para a idade, desaperta-
lhe a camisa e beija-lhe o peito. Zé Maria, não se contendo, sobe as mãos pela anca
dela, desvendando a pele branca e o soutien. Excessivamente, trazendo-a para dentro de
si, beija-lhe a boca. Amo-te! E as palavras eram curtas, por isso, tirou-lhe o soutien. São
para ti!, oferece. Eram cheios e erguidos os seios de Bia. Um milagre de beleza, um
cantinho de repouso do beijo mais profundo que Zé Maria conseguira. Estava calor. Os
corpos suavam, mas eles aproximavam-se cada vez mais, indecisos, incertos,
penetrando os terrenos desconhecidos do amor. A janela aberta deixava entrar a brisa
quente que trazia algumas folhas secas. Bia colhe uma que parara em cima da cama e
coloca-a sobre o bico do seio: Guarda bem esta folha: ela é o símbolo do amor que se
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torna mais forte, quando é alimentado com amor. Ele recupera-a devagar, brincando no
corpo dela e guardou-a no cofre que estava sobre a cómoda.
Abraçam-se como se, de alguma maneira, algum deles pudesse fugir. Ela tira a
saia e ele as calças. Olharam-se. Nos seus olhos traziam sorrisos e promessas de
felicidade eterna. Amaram-se. Amaram-se sem exigências. Amaram-se entregando-se,
mostrando ao parceiro os seus lugares mais íntimos sem medo. E navegaram mais
longe, mais fundo, até lá, onde só chega quem não tem receio de amar. Descobriram
todos os lugares que estavam escondidos nos mitos, desvendaram-nos como timoneiros
da nau do amor. E naufragaram, por fim, nos braços um do outro e ela disse baixinho,
no seu ouvido, enquanto o trincava: Amo-te!
Sobre a cómoda, ainda lá estava o velho cofre. Zé Maria abre-o. Dentro do diário
que manteve durante anos, embora com interrupções, ainda lá estava a folha seca,
eternizando o amor entre os homens, anunciando o regresso ao intenso íntimo de que
fazemos parte. Porque te foste embora, amor? E chorou. Chorou desenfreadamente
sobre o retrato daquela folha. Filho, és tu, filho, que estás aí? Zé Maria tentou
recompor-se: Sim, sou eu, mãe. Já vou ter contigo!
A mãe estava sentada na cadeira que o avô tinha feito. O avô era um carpinteiro
muito reconhecido na comunidade local. As gentes daquela época iam falar com ele
para descobrirem nas palavras que lhes dizia a direcção da vida. E era assim que ele
vivia, carpintando a vida. Quando ofereceu a cadeira à mãe, sentenciou: Toma! Esta
cadeira é para ti! Ela simboliza tudo o que te amo. Depois ama o teu filho. E ele que
ame o seu! E depois pôde partir, após ter dito as palavras essenciais, pôde partir.
Todavia, Zé Maria não pode amar o filho que não teve, apesar de o ter amado antes de
ter nascido. Zé Maria quase não se lembrava do avô. Era um velho, muito velho, bem no
princípio da sua infância, mas sabia o valor das suas palavras. Ainda hoje as pessoas que
iam àquela casa sabiam que era o amor que o avô tinha ensinado que servia de modelo.
Zé Maria dirigiu-se para o quarto da mãe, onde ela estava sentada junto à janela,
olhando uma fotografia. Era a fotografia da casa antes de estar construída. Era uma
fotografia da vida da mãe antes das possibilidades estarem esgotadas. Uma fotografia do
princípio, onde todos os caminhos são adornados com todas as pessoas, onde todos os
caminhos são estradas seguras que conduzem ao sorriso. Uma fotografia velha e salgada
das lágrimas derramadas. Com as lágrimas nos olhos, ele diz: Boa tarde, mãe!,
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beijando-lhe a face. Descansa a tua cabeça aqui, querido! Zé Maria pousa a cabeça no
colo da mãe, que lhe afaga a ausência de cabelo, e deixam cair a folha e a fotografia. A
brisa tépida de final de Verão levanta-as e leva-as para o firmamento, onde enfim tudo o
que amaram pode repousar.
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