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A MOÇA TECELÃ "Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo

A Moça Tecelã

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Literatura

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Page 1: A Moça Tecelã

A MOÇA TECELà        

  "Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.  E logo sentava-se ao tear.

          Linha clara, para começar o dia.  Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

          Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

          Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.  Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido.  Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

          Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

          Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

          Nada lhe faltava.  Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas.  E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido.  Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete.  E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

          Tecer era tudo o que fazia.  Tecer era tudo o que queria fazer.

          Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

          Não esperou o dia seguinte.  Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo

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aprumado, sapato engraxado.  Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

          Nem precisou abrir.  O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

          Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

          E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu.  Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

          — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher.  E parecia justo, agora que eram dois.  Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

          Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.     — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou.  Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

          Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.  Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

          Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.          — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

          Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.  Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

          E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza

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lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.  E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

         Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

          Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. 

          A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar.  Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas.  Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

          Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara.  E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte."

                                                     Fim

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  Resenha do Jô:          Este conto de fadas narra o dia a dia de uma menina que tece, tece, tece.  Seus momentos, passa-os ela a bordar, carinhosamente, a Vida e a Natureza.  E, sob cores diversas, em seu tear, concretizam-se os mais legítimos sentimentos, que se tornam reais, criativos, válidos, práticos, transmutando-se em forma e movimento assim que tecidos.

          Contente em seu labor, vai imaginando e tecendo, materializando auroras, noites, sol, chuva, aves, bichos, paisagens...

          Nada lhe falta: alimentos (leite, peixes etc), roupas...  Tudo lhe sai do tear, pronto e bonito.  Perfeccionista moça.

          Até que se percebeu envolta em uma cósmica e desamparada solidão, necessitando de alguém junto a si, para sempre: constrói então, dos fios mais fortes e belos, um companheiro, o esperado esposo.  Passa logo a sonhar com filhos, lar, vizinhos, com um cotidiano pacato e social, enfim.

          O homem, porém, tinha idéias opostas: após conhecer o poder do tear e a habilidade da moça, cresceu em ambição: trancafiou-a, cercando-a de ordens absurdas: uma casa melhor e maior; depois um palácio, com pompas, torres, tesouros, jardins, criadagem...  Mas amor que era bom, não lhe dava.  Sequer a

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notava.

          Inteligente, sensível e decidida, uma noite ela quis se desfazer de todo aquele luxo inútil: rápida, destece castelo, ouro, prata, animais e o próprio opressor.  Livre, finalmente!

          ...É quando percebe a manhã que tenta chegar, enviada pelos segredos insondáveis da Natureza: auxilia-a, manejando com prazer o tear, conduzindo-a desde as misteriosas brumas do tempo.  Música nascente.

          Traz com a aurora as nuvens, os pássaros, o arvoredo, os ventos, os sons maviosos da harmonia universal. (Harmonia que, interrompida pela presença dominadora do ex-marido, ressurgia agora, por suas mãos tenras, inefáveis.)

          Retornara afinal à sua vida singela e ditosa, povoada de simplicidade e alegria, bondade e sonhos, gentileza e primaveras.

toda-poderosa Mulher administra sabiamente o Mundo, manejando o seu tear.  Mas, como um dos limites do poder é a solidão, cria (tece) ela um companheiro.

          Não correspondendo este aos seus justos anseios, a jovem o descria, destecendo-o - restabelecendo assim, de forma natural, o equilíbrio das coisas.

        As estações do ano se reajustam, as emoções se consolam, a justiça se faz: desapareceu, pelas suas mágicas e decididas mãos, o marido egoísta, insensível e cruel.

          E tudo operado de uma maneira simples, breve, eficiente, objetiva, silenciosa: bastou descobrir-se

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iludida e ludibriada por um homem que só visava a lucros e bens materiais, e nunca a uma felicidade a dois, para manusear inversamente o tear, desfazendo castelo, criados, tesouros e o próprio esposo.  E o cônjuge de voz apatifada e atitudes maléficas virou nada.

          Note-se o seu senso de responsabilidade, de preservação cósmica: nenhuma atitude de raiva momentânea ou ódio continuado ou vingança generalizante: zeladora da Natureza, ela para no justo momento em que desteceu o marido, não desconstruindo nada além.

          Guardiã consciente dos segredos da Vida, fá-los funcionar de novo: neve, luz, noite, aurora, plantas e seres, tudo ela rege, regiamente.  Projeta-se aí, inteira, a teoria do eterno retorno. ( 1 )

          Tolice dizermos coisas como:"Trabalha exaustivamente a linguagem...","porque a delicadeza das expressões...""porque isso, porque aquilo..."

e outras bobagens afins.

          Por quê?  Por óbvio.  A palavra escrita, matéria-prima da Literatura, precisa passar de prima a irmã, a mãe, ou não se realiza plenamente --- e, por conseguinte, encanta menos.   Ou nem encanta.   (Disso todo mundo sabe.)

          Ora, trabalhar a linguagem é, na obra colasantiana, fiscalizar erros gramaticais,

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incoerências vazias (que as há lindas também), selecionar termos e expressões até torná-los insubstituíveis, num exorcismo sobrenatural.  Eis aí a bênção da palavra certa, exata, única.

          O prazer estético se casa, então, com essas experiências de vida/domínio estilístico/perfeição técnica do gênero textual escolhido (no caso, o conto).  E desse casamento nasce a nossa admiração pelo que lemos e relemos e trelemos.

          Também nesse conto, o maravilhoso não pede licença nem alinha explicações: a garota já surge em profícua atividade; e, após o marido acidente-de-trabalho, pedra-ruim-no-caminho, prossegue tecendo - concedendo cores, vida e harmonia ao Universo.

                       >>>  *** <<< 

          Notas:1 - Permitam-nos uma digressão:          Esse restabelecimento da ordem original ocorrerá, sim, só que próximo ao Fim dos Tempos, quando não mais existirmos...  Tenhamos fé nesse dia!  Maldito seja o Homem!

2 - Envolvi-me neste trabalho durante 39:00h, até 12/05/2011.Jô do Recanto das Letras Publicado no Recanto das Letras em 30/01/2009Código do texto: T1413806

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é talvez seu o conto mais risível e chorável, pensável e sentível, sonhável e pisável, beijável e inapagável --- e a isto se chama obra-prima.

 Princesença          Normalmente nos perguntamos, ao terminar de ler uma história: "Hum...  Que outro final lhe daríamos?"           (Muitas sequer merecem esta reflexão.)

          Em Marina não: a densidade onírica de suas narrativas nos conduz a perguntas como:  "Que finais?  Que outras histórias poderiam, a partir desta, surgir e prosseguir?"

          Criadora travessa, ousada, curiosa, ela apedreja as vidraças das palavras corriqueiras.  E de tal coragem vêm não as chineladas (dos críticos), mas os afagos (dos leitores e críticos), ao perceberem a surpreendente visão não de outras vidraças, porém de uma mansão resplandescente de vitrais, palavras além das palavras.

          Milagre?           Não, não: são os esforços contínuos dela Marina, na seleção das pedras certas, da pontaria, do "Triiiim!" dos vidros denotativos partindo-se, do poder demiúrgico da reconstrução verbal.  Eis ante nós o verdadeiro casarão plurissignificativo, visível num rincão onde circulam, passeiam, convivem livres e

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felizes os vocábulos, já sob o encantamento, num labirinto multicor de termos, idéias, ânsias, devaneios.

     Palavras que voam. Que pousam. Que nos acenam e cortejam, cativando-nos.  Palavras-princesas que se mudam em:           povo           ministros           vizires           sultões           crianças           aias           pajens           menestréis           cavaleiros           avós...           e novamente princesas.

          Sua escritura de pique-esconde nos estimula à troca de papéis: ora narratário, ora crítico; aqui narrador, ali personagem...

          Entretanto, nada de redes passivas, camas comportadas, fundas poltronas triunfantes: seus personagens e enredos nos expulsam dali e nos fazem metáforas suas.  Que felicidade!      

          Uma literatura etíope-brasileira --- flor de todas as Áfricas.

 As mil e uma Marinas          Ficcionista e ilustradora, sua obra se volta

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para o maravilhoso, o deslumbramento, a suprema irrealidade que caracterizam os contos de fadas. 

          Seus contos, escritos a partir da realidade, atravessam fronteiras abarrotadas de sonhos, de fantasia, alargando o espaço de um território abstrato; tal território, sem definição precisa, traz todavia a definição das várias belezas que compõem a Beleza. 

          Suas líricas narrativas, falando do lado oculto, místico da Vida, nos brindam com sonhadores de toda ordem, tornando-nos igualmente sonhadores.

          São histórias cuja leitura criam sortilégios, propiciam a construção de uma linguagem do inconsciente.

         O cânone literário, tão impenetrável para certas correntes críticas, se transforma em amor e morte, encontro e desencontro, angústia e plenitude, promessas em tenros presentes. 

          O horror, o ciúme, a felicidade, sentimentos tão comuns, tão íntimos da alma, se metamorfoseiam em seres solitários em busca da nossa compreensão e afeto. 

          É incrível como a presença nas histórias de um rei, um trono, escadas, salões, aposentos suntuosos e uma rainha cativante fazem-nos viajar no tempo, do passado longínquo ao complexo ambiente contemporâneo.

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          A idéia de solidão, de busca interminável, o medo dominado e vencido, tudo isto a criança absorve e catalisa, reconstruindo em sua linguagem peculiar as aventuras de jovens castelões, cavaleiros e heróis míticos. 

          Princesas, castelos, metamorfoses, feitiçarias: ingredientes mágicos de todo bom conto de fadas. Sem descartar, é claro, seres extraordinários, como dragões, ogros, sábios solitários e outros entes, produzindo assim um efeito encantatório e assustador.

          A realização dessas fantasias na mente infantil, além da sensação de liberdade, conduz ainda a uma atitude crítica, de análise séria do mundo dos fatos. 

          Contemplando alaúdes suspensos          Na literatura de Marina, dona de uma linguagem sublime, a fantasia se estabelece, os animais raciocinam, o cotidiano se torna impressionante, o real se e nos desmonta. Sua forma tão espontânea de narrar, a vivacidade de seus personagens, tudo contribui para consolidar a formação da personalidade infantil.

          A leitura coletiva (queremos dizer, do adulto para um grupo de jovens) aviva interesses, amadurece sentimentos e pensamentos, eleva-os com os pés no chão. Faz, enfim, que cresçam muito emocionalmente. Facilita o surgimento e a solidez dos aspectos mais positivos de sua fértil imaginação.

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          Sua construção ficcional aparentemente simples encobre enigmátcos símbolos, que, mexendo nos profundos mistérios da mente, faz o leitor meditar.

          Tocam-nos pela intensidade e a arte da sua confecção, minuciosa e sensível, provocando às vezes a comoção, o riso, a gargalhada aberta, o silêncio conjetural, a cumplicidade solidária enfim.

          Esses reis, princesas, fadas, cisnes, unicórnios e gnomos, todos entrelaçados num bordado colorido, não trazem nenhuma mensagem admonitória, sinalizando apenas para o simples prazer de ler e sonhar. Um resgate necessário e oportuno dos contos de fadas, do delírio estético, em contraposição ao nosso moderno e complicado mundo.

          Conduzem nossa lógica à magia cósmica sem tempo nem espaço, aprisionando deliciosamente nossos sentimentos s sensações. Sem lições de moral, sem "moral da história", sem pompas filosóficas, sem nada além do puro aspecto lúdico. 

          Os termos e expressões inesperadas criam expectativas nas crianças e nos jovens, colaborando decididamente para o seu amadurecimento psicológico.          

     Nos seus contos, seres reais procuram se relacionar com seres irreais: a moça tecelã com o marido-de-lã, o rei com a esposa dos sonhos, o jardineiro com a mulher-rosa.

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@&@&@&@&@&@&@&@&@&@&@&@&@&@@&@@&@

          Ela celebra a alegria das palavras eleitas, num culto ao Verbo onde a pompa das valsas, a beija-florice dos passos, a inocência dos gestos e a emoção dos olhares nos arrebatam para sempre.     Sentimo-nos convidados.     Marina Tecelanti.     Marina das mil auto-oficinas.     Fábrica de letras possantes.     Congresso de palavras de pedra.     Escritura de alta linhagem.

          Há em inúmeros textos seus, inequivocamente, bênçãos e maldições. Das grandes. (Lógica desconexa, a que chamam alguns de estranhamento.)

          "Enquanto houver estrelas" (1), seus textos serão questionados, atacados e defendidos --- porque nos parecem eles merecedores desse "Enquanto". 

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O encanto místico de uma literatura multissecular" (Monografia)                (reflexões sobre um conto de Marina Colasanti) Por Jô Siqueira Souza(aluno do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil)      Monografia final apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à conclusão da Especialização em Literatura Infantil.                     UFRJ / Faculdade de Letras                     Segundo semestre / 2008

  DedicoA Luciana de Andrade Guimarães, colega e protetora.       Agradecimentos:Cláudia Simone Alvino CruzPaulaDoc                   Sinopse       A proposta desta pesquisa concentra-se em No dorso da funda duna, conto onde Marina Colasanti exercita, mais uma vez e tão bem, a sua poderosa arte.  Fundamenta-se esta tese, portanto, numa leitura da obra dela, como um todo, e daquele conto, em particular, sob o ponto de vista estilístico e semântico.      Logo, propõe este trabalho de pós-graduação uma viagem na variada temática colasantina, enfocando e esclarecendo situações-limite que nos atingem como raios de lua no deserto.  Propõe análises sucintas, tendo como objetivo-síntese um estudo aprofundado da obra daquela escritora.

 Sumário:Introdução 

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Capítulo 1  - Conceitos Essenciais1.1  - Os Gêneros Textuais1.2  - Os Tipos Textuais 

Capítulo 2 - O Texto Narrativo2.1 - Enredo, fatos, tempo, espaço2.2 - O foco narrativo2.2.1 - Características dos personagens2.2.2 – Voo ou naufrágio?  Desmontando a farsa2.2.3 - Olhar maior sobre a narratividade 

Capítulo 3 - Panvisão (conceitos de leitura e escrita) 

Capítulo 4 - Fundamentos Teóricos da Literatura4.1 - Discutindo Conceitos e Métodos4.2 - Da Literatura e do Ódio Oficial4.3 - Do adjetivo "infantil"4.4 - Do Maravilhoso4.5 - Da Atemporalidade Semântica

 Capítulo 5 – Conclusões 

Referências Bibliográficas6.1 - Ficção6.2 - Teoria6.3 - Revistas6.4 - Artigos diversos6.5 - Outras mídias6.6 - Notas    1 - Introdução       Procurarei enfocar as produções do ponto de vista de sua excepcional riqueza literária.       A ponte intertextual lançada entre diversas escrituras dela prima pela arte, gestos e movimentos, muito além das imagens convencionais, adapta-as ao público mirim, que se apropria deliciosamente desse discurso não mais alheio, porém inerente às suas expectativas de vida e prazer.       O "corpus" literário deste trabalho objetiva articular os pontos de referência da literatura, a saber, autor, leitor, crítico e obra.

a) Autor:       Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11anos na Itália e desde

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então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão.       Dentre outros, escreveu: A morada do ser, A nova mulher, Aqui entre nós, Contos de amor rasgados, E por falar em amor, Eu sozinha, Gargantas abertas, Intimidade pública, Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado e Zooilógico.       Escritos para crianças, ela tem: Doze reis e a moça do labirinto de vento e Uma idéia toda azul.       Colabora, também, em revistas femininas e é constantemente convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. Casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

b) Leitor:       Em contato com as narrativas de Marina Colasanti, ele fica intrigado com a ambiência medieval, a perspectiva do cânone literário (temas tratados), a proeminência da função lúdica sobre a pedagógica, a moralista e histórica...  Dotado de grande sentimentalidade, assume sem o saber um tipo de receptor e um tipo de recepção usuais na leitura e enfoque da obra dessa escritora.

c) Crítico:       Entendendo-se este item como a análise literária propriamente dita, visa a possibilitar uma leitura crítica da produção ficcional daquela autora, toda ela praticamente em prosa.       O papel da crítica literária é aí, a meu ver, ressaltar o processo criativo, a produção de novos sentidos, a progressão temática, os recursos textuais empregados - propor enfim uma reflexão sobre uma das inúmeras leituras, em aberto. Reflexão essa não destituída de um competente estudo de interpretação.       Grande, exuberante é a safra marinana entre os gêneros literários atuais.  E ela enfatiza, nesse processo, os traços de oralidade, o ritmo da contação de histórias, as técnicas narrativas, os diferentes discursos estéticos...       Identificamos semelhanças e diferenças entre personagens emblemáticos hodiernos, conectando a veneranda e milenar saga oriental (arábica) e a modernidade, numa confirmação de que a Literatura, como as Artes e as Ciências, segue uma sequência eterna, regular, lógica.       Este trabalho objetiva, portanto, dar relevo às seguintes “áreas temáticas ou campos de interesse” (1 - Notas, ao final) da Linguística do Texto, numa perspectiva plural:       a – Associação da leitura à produção de textos, estimulando o desenvolvimento da capacidade comunicativa.       b –Valorização do entendimento do leitor para o processo de construção de significados inerentes ao texto.       c – Facilitação do contato com grande variedade de estilos e de gêneros, visando à formação de um leitor e produtor de textos competente.       d – Análise dos aspectos dialógicos da obra focada, como o retórico, o bíblico, o metafísico e o dramático.

d) Obra:       Bibliografia de Marina Colasanti (segundo Fernanda Biagini Sá Verçoas e Andréia Guerini):Eu sozinha. Rio de Janeiro: Record, 1968.Nada na Manga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1973.

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Zooilógico. Rio de Janeiro: Nórdica, 1975.A morada do ser. Rio de Janeiro: Record, 1978.Uma idéia toda azul. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.A nova mulher. Rio de Janeiro: Nórdica, 1980.Mulher daqui pra frente. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981.Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.A menina e o arco-íris. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.E por falar em amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.O lobo e o carneiro no sonho da menina. São Paulo: Ediouro, 1985.Uma Estrada junto ao Rio. São Paulo: Ftd, 1985.Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.O verde brilha no poço. São Paulo: Global, 1986.O menino que achou uma estrela. São Paulo: Global, 1988.Um amigo para sempre. São Paulo: Quinteto, 1988.Ofélia, a ovelha. São Paulo: Global, 1989.Será que tem asas? São Paulo: Quinteto, 1989.A mão na massa. Rio de Janeiro. Salamandra, 1990.Intimidade pública. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.Agosto 91 estávamos em Moscou. São Paulo: Melhoramentos, 1991.Cada bicho seu capricho. São Paulo: Global, 1992.Entre a espada e a rosa. Rio de Janeiro. Salamandra, 1992.Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.Ana Z aonde vai você? São Paulo: Ática, 1993.Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.De mulheres sobre tudo. São Paulo: Ediouro, 1995.O homem que não parava de crescer. São Paulo: Global, 1995.Um amor sem palavras. São Paulo: Global, 1995.Aqui entre nós. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.Gargantas abertas. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.O leopardo é um animal delicado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.Longe como o meu querer. São Paulo: Ática, 1999.Um espinho de marfim e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 1999.Esse amor de todos nós. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.A amizade abana o rabo. São Paulo: Moderna, 2001.Penélope manda lembranças. São Paulo: Ática 2001.Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 2002.A moça tecelã. São Paulo: Global, 2004.Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004.Fonte: www.dicionariodetradutores.ufsc.br   Acesso: 02/01/2009.

e) "No dorso da funda duna"       O sol atravessava lentamente o céu.  E abaixo dele, bem abaixo, um emir com sua caravana atravessava o deserto.  A claridade era envolvente como  um sono.  Mas de repente, pelas frestas dos olhos apertados, o emir viu a figura escura de um homem recortar-se no dorso de uma duna.  De um homem e de uma cabra.       Que parasse a caravana, ordenou o emir.  Um homem sozinho no deserto é um homem morto.

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       - Mas não estou sozinho, nobre senhor - respondeu ohomem, levado à presença do emir.       E este, tendo logo pensado que uma cabra não é companhia suficiente em meio às areias, penitenciou-se no segredo da sua  mente.  Certamente aquele era um homem santo que vagava  em  penitência, e tinha a companhia da sua fé.       Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles.  E  diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e um odre de água.  Em breve, a caravana partia.       O homem apertou as espirais do turbante, puxou uma ponta  do pano sobre a boca, e acompanhado pela cabra recomeçou a andar.       O sol tinha refeito seu percurso muitas vezes e estava do outro lado da terra, quando um tropel de cavaleiros quase  pisoteou o homem que dormia com a cabeça encostada na barriga da cabra.  O primeiro cavaleiro puxou as rédeas, saltou na areia.  O homem acordou num susto.  O tropel parou.       - Um homem sozinho entre as dunas é um homem inútil - disse o cavaleiro, que chefiava aqueles piratas do deserto.  E o convidou para que se juntasse ao bando.       Mas quando o homem recusou a oferta, acrescentando que certamente era um inútil embora não estivesse sozinho, o chefe dos piratas achou que debochava ele, e mandou que o surrassem.  Sem demora e sem ruído, pois cascos não ecoam na areia, o tropel partiu.       Os ferimentos da surra há muito haviam cicatrizado, no dia em que uma caravana de peregrinos passou no seu caminho.  E assim como ele a viu chegar com prazer, também os peregrinos consideraram a presença daquele homem e daquela cabra como um sinal propício, e decidiram acampar ao seu lado no dorso da duna.       Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer. Os peregrinos sentaram-se ao redor, a comida passou de mão em mão.  Só quando ela acabou, o velho perguntou ao homem o que estava fazendo no deserto.       E o sol ainda não havia se posto, e a lua ainda não havia surgido, quando o homem começou a contar.       Havia sido um homem próspero de uma próspera cidade, uma cidade que com seus minaretes e muros surgia em meio ao deserto.       Marido de uma boa esposa, justo pai dos seus filhos, tinha sempre grãos na despensa, e a figueira junto à porta de sua casa a cada ano dava frutos.  Um dia, chamado pelos negócios, havia partido em longa viagem.  E ao regressar, não mais havia encontrado sua cidade.  Só depois de muito indagar entendera que o deserto, soprado pelo vento, havia passado por cima dos muros, engolindo os minaretes, as casas e a figueira.  Toda a sua vida estava debaixo da areia.  Mas, onde, na areia?  E havia começado a procurar.       - É por isso que até hoje anda no deserto? - perguntou o velho chefe da caravana.       Os dentes do homem brilharam à luz da lua que já se havia levantado.       - Ando porque ainda sou morador da minha cidade - respondeu.  Inclinou-se, encostou o ouvido na areia, quedou-se atento por alguns minutos. - Há muito a encontrei - disse, erguendo-se.       Sorriu novamente.  No ventre daquela duna, debaixo da caravana acampada, estavam os minaretes, as casas, a figueira.  Estavam seus filhos e sua mulher.  E ele podia ouvi-los a distância.  Através da areia que os separava, podia ouvir os gritos dos pregões, as preces dos muezins, o riso da mulher e das crianças que certamente agora haviam crescido.       - Caminho para isso.  Para estar sempre acima deles.  Para escutar sua vida.       - As dunas - acrescentou - vagueiam pelo deserto.  E eu vou, acompanhando a minha.       Pouco faltava para a manhã.  Ao alvorecer, os peregrinos partiram.

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       Mas o vento tinha ouvido o relato do homem.  E a próxima caravana que por ali passou já não o encontrou.  A duna soprada grão a grão havia eriçado sua crista, cobrindo o homem e sua cabra como antes cobrira muros e minaretes.  E abrindo caminho para eles, lentamente, até seu ventre.   Capítulo 1 - Conceitos Essenciais1.2 - Os Gêneros Textuais       Os gêneros textuais (2 - Notas) são abundantes: anedota ou caso, assembléia, aula expositiva ou virtual, bate-papo virtual, bilhete, boletim de ocorrência, bula de remédio, cardápio de restaurante, carta comercial, carta de leitor, carta de reclamação, carta de solicitação, carta eletrônica, carta pessoal, conferência, conto, conversação espontânea, "curriculum vitae", debate regrado, discurso de defesa (advocacia), edital de concurso, editorial, horóscopo, inquérito policial, instruções de uso, lista de compras, lista telefônica, notícia ou reportagem jornalística, "outdoor", piada, poema, receita culinária, resenha, resumo, reunião de condomínio, romance, sermão, telefonema...       Aparentemente caóticos devido à impressão inumerável, “eles contribuem no entanto para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia”,       Nada mais necessário, portanto, que a sua conceituação correta.       Transcrevo abaixo a classificação de Mussalim (p. 35), tão didática:       “1 - Próprios para narrar: conto de fadas, conto maravilhoso, fábula, lenda, narrativa de aventura, narrativa de enigma, narrativa de ficção científica, narrativa mítica e romance.       2 - Próprios para relatar: autobiografia, biografia, diário íntimo, ensaio, perfil biográfico, relato de experiência de vida, relato de viagem, relato histórico e testemunho.       3 - Próprios para argumentar: artigos de opinião, ensaio, resenha crítica e sermão.”

1.3 - Os Tipos Textuais       Teoricamente, surgem como narração, argumentação, descrição, injunção e exposição.       Já em Azeredo (in Pauliukonis & Santos, 2006, p. 23) omite a exposição e inclui o diálogo. Para maior clareza, transcrevo o parágrafo dele:       “A enunciação se desenvolve sob cinco formas fundamentais de organização discursiva ou sequenciação textual – a que estamos chamando tipos: a narração, a descrição, a argumentação, o diálogo e a injunção.”              Acresceríamos aí a exposição, como se acha em Cilene et alii, à p. 31, id., ibid.       KOCH (2006, p. 161) expõe:       "É importante assinalar, contudo, que a concepção de gênero de Bakhtin não é estática, como poderia parecer à primeira vista. Pelo contrário, como qualquer outro produto social, ele reconhece que os gêneros estão sujeitos a mudanças."

Capítulo 2 - O Texto Narrativo2.1 – Enredo, fatos, tempo, espaço       a) Enredo - consiste no ilogismo planejado e executado com fins literários.  Uma inconsequência consciente ousada por alguém que possui uma mensagem aprisionada e necessita, sonha libertá-la no infinito interior de todos nós, seus semelhantes.       b) Fatos - são organizados de forma a apresentarem uma seqüência de começo, meio e

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fim.  Esses elementos, para se estruturarem, necessitam de um conflito, vale dizer, um problema a ser superado pelo personagem. Ele é responsável pela tensão que organiza os fatos, criando no leitor uma expectativa relativa ao desfecho.       Na sucessão narrativa, os fatos progridem em ritmo dinâmico, prevalecendo as ações, e permanecendo as reflexões apenas como suportes delas, como uma tropa reserva.  Assim, a caravana "seguia", o emir "viu" o homem, o séquito "parou"... Essa sequência se dá em um espaço e um tempo, sem dúvida. Porém são sobretudo fatos.       c) Tempo – os fatos se acham ancorados no tempo histórico, explicitamente nomeado, chegando até o narratário através dos vocábulos com que a narradora definiu o espaço: deserto, caravana, emir, peregrino...       Então conclui-se por um tempo "fora do tempo", isto é, a vida, o modus vivendi milenar dos povos da África.  E por que se conclui isto, e não algo evoluído, citadino, de megalópole?  Porque estamos condicionados desde os tempos pré-bíblicos a entender e assimilar que o deserto possui suas leis (dunas, ventos, oásis, habitantes imutáveis - mesmas roupas, gestos, atitudes e hábitos) desde um tempo sem conta. Colabora para isto o estilo vetusto, venerando de Marina, como nos trechos:       1 - “Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles.  E diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e um odre de água.  Em breve, a caravana partia.” (p. 16-18)       2- “Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer.  Os peregrinos sentaram-se ao redor, a comida passou de mão em mão.” (p. 41-44)       Enfim, servindo-me de um trecho de Terra & Nicola (2006, p.85), explico melhor:       "Embora a época em que ocorreram os fatos não esteja especificada, a presença de elementos gramaticais como verbos, advérbios e locuções adverbiais indica ao interlocutor o tempo dos acontecimentos narrados."

       É, resumindo, a passarela cronológica onde desfilam os acontecimentos, que o narrador procura situar num tempo combinado, no qual se passa a história.       O tempo do conto em análise é cronológico, linear, pois transcorre segundo a ordem natural dos fatos, do começo para o final, podendo ser medido em horas, dias, meses e anos.       d) Espaço - quanto ao espaço, o lugar, o ambiente (um superdeserto), caracterizam-no inúmeros termos e expressões típicas, peculiares, já a partir do título (e continuando: caravana, odre, tropel, cascos, areias, peregrinos, tendas, acampar...).       O espaço nos remete ao lugar onde se passa a ação, mantendo com as personagens uma indissociável relação de interação. Pode ele, dessa forma, influenciar suas atitudes ou ser transformado por elas. Geograficamente, ele retrata o deserto, onde ocorrem os eventos, obedecendo à movimentação dos actantes.  As descrições desse espaço entremeiam as ações do enredo, ampliando-as.       O espaço social é aberto, contribuindo para a intensificação dos conflitos e grandes movimentações humanas e da natureza (caravanas que vão e vêm, tempestades de areia, dunas semoventes...).       O local (ambiente físico) onde os fatos acontecem implica na presença de elementos naturais, que o formam e modificam, contribuindo para o peculiar final: o vento auxilia o andarilho a penetrar na "funda duna", onde se acha a sua cidade e todos que ele amará para sempre.       E aí ja advem o estranhamento: enquanto todos procuram safar-se daquele inferno, atingindo as bordas verdejantes da civilização, da fartura, ao homem lhe basta seguir uma

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duna. E caminhar sem rumo, com uma mera cabra (não um camelo ou um cavalo).     Enquanto todos (se) "vão", ele (se) "volta", e permanece: permanece imóvel no espaço e no tempo do conto, em oposição aos demais. Enquanto os outros seguem a caminho de suas terras prometidas visíveis, físicas, palpáveis, ele para.      Todos sonham, querem algo.  Nem tanto realidade, nem tanto fantasia.  Apenas sonhos, anelos, desejos, ideais diferentes.  (Daí nasce o conflito.)       Essas terras prometidas, embora reais, são também simbólicas, pois se pode metamorfoseá-las assim:      1 - o emir e sua gente, que não se dirigiam a nenhuma miragem, mas a algum lugar real, um negócio grande, uma solenidade (coroação real, recebimento de honrarias...);      2 - os ladrões, que se dedicavam a saques, a pilhagens, almejando com isto a "terra prometida" da prosperidade fácil e duradoura - ilusão pura, claro, mas de ilusões vivemos todos...     3 - os peregrinos, que buscavam uma "terra prometida" espiritual, admito - fundeada porém num lugar físico (Meca, por exemplo).     Ja o homem, profeta místico, buscava sua “terra prometida” sob a Terra, num simbolismo contrariador do senso comum, com uma razão só vitoriosa no desfecho final. 2.2 - Foco narrativo       Socorro-me aqui da definição de Lígia Chiappini M. Leite (apud  Mussalim, 2004, p. 52), esplendidamente essencializada por esta última:       “Eis os diferentes tipos de narrador encontrados na obra literária: o narrador onisciente, o narrador-testemunha, o narrador-protagonista, o monólogo interior e o fluxo de consciência.       Há portanto várias formas de se contar uma história, prevalecendo sempre as complexidades do foco narrativo (ponto de vista).       O narrador é de terceira pessoa, portanto onisciente. Neste tipo de narração predominam os verbos e pronomes de terceira pessoa.”

       Ora, não sendo a contadora da história (Marina) personagem da narrativa, não se classifica como narradora-protagonista.  E mais: como ela não se posiciona diante dos fatos, não possui qualquer intencionalidade crítica, classificando-se portanto como narradora onisciente neutra.

2.2.1 - Características dos personagens       O personagem principal é plano, mantendo as mesmas características no decorrer da narrativa: perambula pelo deserto, acompanhando "sua" duna, obsecadamente.       Em diferentes situações, ele:       - foi acolhido pelo emir e sua caravana, que o convidaram a se juntar a eles, permanecendo porém imutável em seu fadário nômade;       - foi surrado pelos salteadores, e sequer se revoltou ou buscou vingança, embora isso fosse possível via terceiros.       Logo, seu caráter não se modifica durante o rumo dos acontecimentos - alguns benfazejos, outros maléficos - permanecendo psicologicamente estacionário em toda a trama.       Os demais personagens se caracterizam pela passância furtiva pelas plagas letais, em atônita odisseia.  Des-destinos, imersos todos numa solidão vazia e impercebível, desertos

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de si. Tróias sem muralhas.       Já o sonhador, esse não: aroma destinal, raízes brutas, ficância; ora ouvido, ora prece, ora espanto --- mas sempre paz ante o milagre das vozes, dos risos, do subsolo em música.       Nunca houve dilemas nem dúvidas: confrontado com seu passado agora subterrâneo, o homem descartava inapelavelmente quaisquer gentilezas e chances que lhe ofereciam, assumindo a responsabilidade por essa estranha e admirável escolha: seguir seu destino de duna da Duna.

2.2.2 – Voo ou naufrágio? Desmontando a farsa     Bem entendido, farsa no sentido de fingimento, ficção, fantasia, alta criação literária. Uma farsa elegante.       O conto é uma versão “light” do relato bíblico; com efeito, na Bíblia o dócil, humilde e corajoso profeta João Batista é preso e decapitado, por ordem do nefasto rei Herodes. Ele que, em vida, anunciava, batizava, descortinava portais eternos em nome Daquele que viria; que seduzia, acenava com a redenção aos que cressem... Em suma: o bom mercador, o comerciante não de bens, mas do Bem.       Aí vem Marina “lightizar” tal relato, tal vida, por um escapismo literário, eufemísmico, que se conclui pelo mistério tremendo da Duna que se abre maternalmente, recolhendo o neo-João, antes que ele acabe perdendo (de novo) a cabeça sobre a Terra.       Suas multidões, seu rebanho, seu Jesus se movem sob o chão. Sacrilégio? Absurdo? A ti, sublime leitor, se assim pensares, responderei contrito com um verso khayyamiano:       “Tens defeitos maiores”. (3)       “Meu reino não é deste mundo”: poder-se-ia respeitosamente aplicar ao João marinano, agasalhado enfim pela Mãe-duna, este versículo. De fato ele transitou, habitou no deserto, conviveu com seres que jamais se aprofundaram nas razões da sua estranha permanência numa região tão hostil - quanto mais na sua suposta mensagem de fé no futuro...       Ninguém se dignou a interpretar a possível lucidez e razão desse João. Só o idoso chefe da caravana que, por curiosidade – sem portanto qualquer intenção edificante - indaga a respeito.       Deus realmente escreve certo por linhas tortas: pois aquele encontro fê-lo narrar-se, expor-se, socializar seu destino - e foi o quanto bastou para que o vento, sob as ordens do misericordioso Allah, solucionasse o problema - ventando.       Isto sem contar com o derradeiro milagre da história: nenhum vivente o vê descendo ao fundo da duna; foi portanto uma vida, uma passagem pela terra sem ser notado, sentido, pranteado ou exaltado. Fisicamente visível e espiritualmente invisível, ele passa, só passa, rumo à Felicidade.       Ninguém contextualizou a filosofia pura de seu discurso de esperança na vida, ninguém. Profeta do silêncio e do segredo, antivoz do nada, sonho cantante, retirou-se imperceptível. Ainda bem. Salvou todo o seu povo interior.       ...E questionará ainda o suave locutário: “Que sina triste! Não seria melhor, mais pomposo se, ao final, a narradora tivesse promovido uma descida-em-triunfo, apoteótica, vitrinal?”       Respondo ao percuciente e impressionável interpretador: “Já pensaste que teu final subverteria crenças e atitudes, mudando o foco mental do Paraíso, cuja localização seria não mais nas alturas, entre as estrelas, mas logo abaixo de nós?"       E aqueles piratas, o chefe deles surrando mais e mais gente, obrigando o povo a cavar fundo na duna, nas dunas todas, em busca de todas as riquezas que eles já buscam e

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arrebatam na superfície?  Afora as  gafanhotais corjas que se juntariam aos malfeitores, tornando universal a ânsia de tesouros fáceis, ou pelo menos certos.       E mais te digo, meu tão fiel narratário: além de prata e de ouro, não uma, mas mil multidões unânimes e convictas escavariam a Terra de um lado a outro, em busca do Paraíso, da Eternidade feliz...       Ecologica e ecumenicamente o conto está, salvo engano, correto.       ...E aí ja advem o estranhamento: enquanto todos procuram safar-se daquele inferno, atingindo as bordas verdejantes da civilização, da fartura, ao homem lhe basta seguir uma duna. E caminhar sem rumo, com uma mera cabra (não um camelo ou um cavalo).       Enquanto todos (se) "vão", ele (se) "volta", e permanece: permanece imóvel no espaço e no tempo do conto, em oposição aos demais. Enquanto os outros seguem a caminho de suas terras prometidas visíveis, físicas, palpáveis, ele para.     Todos sonham, querem algo.  Nem tanto realidade, nem tanto fantasia.  Apenas sonhos, anelos, desejos, ideais diferentes.  (Daí nasce o conflito.)     Essas terras prometidas, embora reais, são também simbólicas, pois se pode metamorfoseá-las assim:     1 - o emir e sua gente, que não se dirigiam a nenhuma miragem, mas a algum lugar real, um negócio grande, uma solenidade (coroação real, recebimento de honrarias...);     2 - os ladrões, que se dedicavam a saques, a pilhagens, almejando com isto a "terra prometida" da prosperidade fácil e duradoura - ilusão pura, claro, mas de ilusões vivemos todos...     3 - os peregrinos, que buscavam uma "terra prometida" espiritual, admito - fundeada porém num lugar físico (Meca, por exemplo).     Ja o homem, profeta místico, buscava sua “terra prometida” sob a Terra, num simbolismo contrariador do senso comum, com uma razão só vitoriosa no desfecho final.

 Todas as regiões do Planeta são férteis em contos populares.  Marina pode ter-se valido de alguma versão onde algum mendigo ou miserável sem história, razão ou juízo percorria sem cessar (e sem sentido) o deserto, e que - louco - foi ao encontro da morte nalguma tempestade de areia, sendo a sua não-história “escrita” pelo povo.     Ou que por fatalidade a tempestade o colheu, ambos involuntariamente.     Ou que vagava, contava histórias e sumiu, abrindo espaço para especulações fantasiosas do povo.     Ou não passa de uma miragem de um emir sonolento que, julgando visualizar um viajante perdido, e não o tendo salvo, condoeu-se de oníricos remorsos, sonhando o conto e seu final feliz. Marina “apenas” interpretou tal sonho.     De qualquer forma, trata-se de uma parábola, uma apologia, uma alegoria, um enigma, um paradoxo dos bons.

2.2.3 - Olhar maior sobre a narratividade       A investigação teórica se vale do instrumental analítico para captar e detalhar o interesse do leitor infantil, revelando todo um universo paralelo: editoras, "marketing", apoio governamental a autores infanto-juvenis...       Contra estas manobras, temos bastantes obras direcionadas a crianças e jovens, que, reduplicando o jogo escritor-leitor, procuram formar e valorizar o leitor-mirim; leitor que constrói, pelo jogo de suas primeiras palavras e imagens literárias, um mundo diferente da massificação cultural que a televisão, por exemplo, tanto facilita.

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       Essa valorização se concretiza satisfatoriamente, seja por recursos poemáticos, seja pela linguagem gestual, escrita ou por ambas.       Os campos temáticos abordados por Marina correspondem, grosso modo, ao conjunto de idéias, veículo dos pressupostos teóricos subjacentes a leituras críticas de obras.       A escritura, o tratamento temático, a modelagem actancial comprovam seus esforços para conduzir ao castelo perfeito a carruagem mágica das palavras. Ela retoma, assim, a tradição do fantástico, acrescentando-lhe novos significados, formas, usos e estratégias.       As referências (pontos de ligação) da história com o deserto unânime, literariamente falando, são delineadas por falas mais sugeridas que enunciadas.       Ela não nos apresenta ou impinge uma imagem idealizada da rica cultura oriental: não se notam aí a presença de haréns, Aladins, Sheerazades ou Califas I, II ou III...       E nem reinventa novas roupagens narrativas; trabalha sobre as estruturas formais, tradicionais, amplamente aceitas do conto.       Os vocábulos-flores bartheanos abaixo foram, sem o saber, a ela ofertados:       "Se [o escritor] renuncia à liberação de uma nova linguagem literária, pode pelo menos valorizar a antiga, carregá-la de intenções, de preciosismos, de esplendores, de arcaísmos, criar uma língua rica e mortal." (2004:63)

Capítulo 3 – Panvisão (conceitos de leitura e escrita)       Capítulo desenvolvido a partir do Módulo “A Cena Escolar Brasileira”, ministrado pelas professoras Leonor Werneck dos Santos e Regina Gomes.       a) Etapas de leitura: Pré-textual, Textual e Pós-textual       b) Estágios de leitura: Descrição, Análise, Interpretação e Julgamento       c) Conhecimentos prévios - reportam-se a aspectos textuais, lingüísticos, intertextuais, contextuais, interacionais e conhecimento de mundo.       d) Tipologias de texto: Narração, Descrição, Injunção, Exposição e Argumentação       e) Gêneros textuais: compõem-se de estrutura composicional, papel social e marcas lingüísticas.

       A literatura se impregna de linguagem, de amplos significados; leva as coisas aos extremos, contradizendo muitas vezes outras formas de pensar, vale dizer, outras faces do Abismo.  Daí eu ter falado alhures (Cap 2 - 2.1- Enredo) na "inconseqüência consciente" do artista.       Cabem, aí, os ditos populares, as sentenças de fácil assimilação pelos usuários: os estereótipos.  Estereótipos são fórmulas já consagradas nos códigos da língua, apresentando-se em expressões que se tornaram parte do discurso do senso comum, tais como"farinha do mesmo saco", "com o rabo entre as pernas", "tempestade em copo dágua", "tal pai, tal filho" etc.       Essas frases feitas, cunhadas durante séculos pela sabedoria popular, desenvolvem a percepção dos aspectos linguísticos, das marcas da linguagem oral na escrita e dos marcadores conversacionais.  E adequam a linguagem às situações inerentes à comunicação.  Ajudam enfim a pensar pela palavra, seja escrita ou falada.  Esse patrimônio inconsciente, regiamente repartido entre milhões de falas (vozes), transforma simples sons numa grande família léxica.       A literatura infanto-juvenil serve-se abundantemente delas, com real proveito e efeito

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estético.       O ato de ler leva o usuário a utilizar seus conhecimentos prévios para elaborar hipóteses, estimulando-o a observar os aspectos linguísticos do texto artístico, sede de intensa poesia.       A produção escrita é vista, portanto, como um processo, do qual fazem parte as etapas de planejamento, de avaliação e de reescrita. Esse processo visa a captar e desenvolver, no leitor, habilidades de empregar mecanismos de produção de sentido capazes de expressar intencionalidade e de construir relações significativas dentro de diversas modalidades textuais.  Almeja transformá-lo, enfim, num leitor crítico, que nunca mais faça uma leitura pela leitura.       Por oportuno, cito José Luiz Fiorin:       "Nosso objetivo não é apresentar a teoria da análise do discurso, mas um dos projetos teóricos de análise discursiva que hoje se desenvolvem." (2008:10)

       Para chegar a tal compreensão, deve o leitor crítico desenvolver a observação, a reflexão e a capacidade de formalizar os conceitos linguísticos em questão, percorrendo o passo a passo da elaboração do texto.  Precisa ele, a rigor, refletir sobre os da língua que caracterizam sua construção.  E os recursos linguísticos utilizados corroboram, sem dúvida, para o seu significado.       O bom texto contempla (privilegia), ainda, os mais diferentes gêneros do discurso e o universo de interesse do leitor.       Como gêneros orais, citam-se: a discussão em grupo, o debate, a entrevista e a mesa-redonda. 

Capítulo 4 - Fundamentos Teóricos da Literatura       Desenvolvido a partir do Módulo “Os Contos de Fadas” (Georgina Martins), e do Módulo “Fundamentos Teóricos” (Luiz Henrique da Costa).

4.1 - Discutindo Conceitos e Métodos       A expressão "Teoria da Literatura" remete a um conceito filosófico, ontológico do fazer poético.       Já como "Crítica Literária" entende-se o seu objeto específico.       E a "História da Literatura" comporta o fenômeno literário nos limites do contexto histórico.       Ora, mas então o que é literatura? Como se revela? Por que prisma ou prismas o interpretador, o destinatário a "transvê" (4 - Notas), afinal?       Entendo como literário um texto que possui a dimensão da literaridade, que se percebe pelas metáforas, as metonímias, a sonoridade peculiar (exposta em ritmos inconfundíveis). E pela narratividade, a descrição, os personagens, os mitos.  E ainda pelos símbolos, ambiguidades e alegorias, que confluem superiormente para compor o panorama artístico da palavra, escrita ou falada.       Toda a exposição acima se justifica plenamente, na presente monografia, porque, como bem doutrina o crítico inglês Terry Eagleton:       "A literatura tem suas leis específicas, suas estruturas e mecanismos. A obra literária não é um veículo de ideias, nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental." (2005:4)

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       Os formalistas russos (albores do Século XX) operavam a abordagem científica do texto literário numa postura fria, analítica e técnica. Cultivavam um profundo desprezo pelo conteúdo psicológico e pelos aspectos meramente sentimentais da obra.  Procuravam, porém, constituir uma ciência da literatura autônoma, explorando a literaridade.       O seu principal legado foi o aperfeiçoamento do método de leitura de textos e o relacionamento da crítica literária com a lingüística estrutural (que nasceu na mesma época). Por outro lado, pecaram pela excessiva concentração na forma, em prejuízo do conteúdo. Afastaram-se assim da história, da psicologia e da sociologia, por eles consideradas como matérias extraliterárias.

4.2 - Da Literatura e do Ódio Oficial       A verdadeira literatura é incômoda, ambígua, e brinca de reorganizar não só os blocos de palavras ou contextos, mas sim o mundo, anunciando-se e atuando como missão, céu e inferno. E atuando como um Anjo maldito ou bendito – conforme a perspectiva. Perigosamente independente, ela falsifica, exagera, distorce, exige, denuncia, expurga e exorcisa, não acatando os discursos tentadores que a realidade comum, cotidiana, "normal" lhe oferece.  Para isso ocorrer, existe o compromisso dos escritores que a realizam como Arte, e não como filosofia, política, história, ideologias efêmeras...  Para tanto, reveste-se ela de permanência, de altruísmo, de sentimento coletivo enfim.       Outrossim, ela avulta em capacidade de não só observar, mas atuar criticamente frente à História, nada perdoando dos acontecimentos imperdoáveis - trazendo tudo à acusante e queimante luz do verbo.       A Arte contemporânea (e inclui-se aí, lógico, a Literatura) constrói paradigmas elaborados ao longo do tempo, tempo esse amalgamado com a história do próprio sujeito.       A literatura, em sua atuação comovente, dolorosa, epifânica, catártica, redentora, fala a toda a Humanidade, servindo-se para essa enunciação de personagens individuais - seres dramáticos, figuras trágicas, espíritos patéticos, sentinelas avançadas da heróica legião de palavras sociais. O seu caráter é a transgressão ao "stablishment", ao "status quo" vigente, ao momento tão caro aos tiranos, porque lhes favorece. Sua essência é a denúncia necessária, inequívoca, cristalina, intemerata e intimorata, tantas vezes isolada, luzinha única num caos de trevas políticas cruéis, puro pavor.  Por isto a odiaram e intentaram abafá-la reis e reinos, déspotas e cortes, czares e impérios; Napoleão Bonaparte, Joseph Stalin, Antonio Salazar, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Getúlio Vargas, Fidel Castro, Juan Domingo Perón, as Ditaduras argentina, brasileira, chilena, espanhola, grega e uruguaia...       Daí a alternância dos conceitos de literatura, que têm variado de acordo com a História, com os eventos proeminentes de cada época. Todos quantos se sentem incomodados, denunciados ou açoitados por ela tentam silenciá-la, impondo-lhe ideologias e terrores, porquanto ela é, por natureza e destino, um condutor de convicções vivas. Alva neve vencedora dos afinais. (5 - Notas)       BARTHES (2004:62) aborda esse colossal enfrentamento, no artigo "Escrita e Revolução":       "Há certamente o fato de que a ideologia stalinista impõe o terror de toda problemática, mesmo e principalmente revolucionária: a escrita burguesa é julgada menos perigosa do que o seu próprio processo."       E isto, segundo ainda ele, "entre um proletariado excluído de toda cultura e uma "intelligentsia" que já começava a questionar a própria Literatura..." (p. 59)

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      A Literatura sobreexiste, por conseguinte, como movimento intelectual da sociedade, como resultado de tensões entre ficção e realidade e como construção ideológica.       No Brasil, eis alguns mártires máximos: Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Gregório de Matos Guerra, Monteiro Lobato e Padre Antônio Vieira.       A tensão da literatura provoca a arte literária, isto é, a escrita artística, com intenções ou fins estéticos.  Podemos analisar o conceito de Literatura conforme os valores que foram construídos ao longo dos tempos, já que este termo atravessa, impávido, todas as proposições teóricas.       A literatura legítima impõe obstáculos, simplesmente.  Que nos fazem sentir, pensar, tremer, recuar, avançar, progredir, evoluir enfim até homens.  Joycemente. Travessia.

4.3 - Do adjetivo "infantil"       No início, as produções não se destinavam originalmente às crianças.       A literatura infantil não é algo separado ou menor que a Literatura. Esse adjetivo subentende escritores e um público específicos. Não há, portanto, relação entre o leitor e o leitor (não existe criança escrevendo para criança).       A literatura infantil acaba às vezes ocupando, ainda, uma função didática, quase vazia de conceito estético. Lamentável isto, pois sua função deveria conservar-se lúdica, primando pela diversão e distração das crianças.

4.4 - Do Maravilhoso       A produção infanto-juvenil hodierna continua ostentando elementos de magia, de deslumbramento, em histórias misteriosas e emocionantes; é feita por autores (consagrados ou não) talentosos; aborda assuntos da atualidade - televisão, tecnologia, informática e internet...       Listei alguns critérios de seleção preferidos (ou mais utilizados): adequação à idade, aventura, ecologia e meio-ambiente, família, ilustrações de qualidade, temas não polêmicos...       E como temas que recebem poucas indicações, eis: ficção científica, mitologia, morte, policial, sexualidade e violência.       Como temas impróprios: drogas e religião.

       Maravilhoso é tudo aquilo que não pode ser explicado pela racionalidade.  Cinderela, A Bela Adormecida e Pinóquio exemplificam contos que possuem em comum esse elemento, garantido, sublimado pela presença do fantástico.       As narrativas mágicas se prestam a diversas funções, como o afastamento da realidade, o descortino exato do fato, além das sutilezas impostas.       Eis alguns dos seus objetivos:       - evasão da realidade;       - crítica social;       - apropriação daquilo que não se pode adquirir no plano real.       O maravilhoso serve de contrapeso à banalidade, à regularidade. Configura uma inversão do mundo, ou da visão cômoda que se tem dele.  Por isso ele não pode conviver com o cotidiano. Os contos de fadas transportam a fantasia, que se concretiza pelo estranhamento, o insólito, o espantoso e o sobrenatural.       Bastantes histórias, como Sheerazade, não foram em princípio escritas para crianças.

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As crianças que as descobriram.

4.5 – Da Atemporalidade Semântica       O conto maravilhoso não se prende à temporalidade: em Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, 'bolo e manteiga' são 'bolo e manteiga', em qualquer época, não podendo, sem a perda de suas características peculiares, serem outra coisa, como iogurte e biscoito. Sem apelos consumistas.  É que, devido à tradição, os traços estilizados do conto maravilhoso já se encontram arraigados nos corações e mentes.       Da mesma forma, no conto de Marina, o duneiro não será jamais um surfista que segue uma majestosa onda, nem um inquilino que não se muda para outro conjunto de apartamentos, por sentir seu coração perdido naquele em que mora...       E, por coerência, seria inviável o Brasil como ambiente (espaço de ficção) do seu conto, que perderia muito em força mística.       A lealdade/fidelidade a uma montanha única de vento e areia, em contraposição a milhares de outras, constituía a filosofia de vida do duneiro, para quem tal montanha simbolizava sua família, comunidade, cidade e região. 

Capítulo 5 – Conclusões       A parte final deste trabalho, ao dar conta dos conceitos operacionais nele desenvolvidos, também põe à mostra a alquimia literária, a ambivalência, a intertextualidade, a polifonia, os aspectos enfim de uma polissemia única, premiável em nossas almas por infinitas leituras.       Indo além de diferentes tendências e discursos críticos, válidos todavia desnecessários, a obra de Marina Colasanti problematiza e soluciona e concede vitórias não apenas a um exército de personagens valentes, mas a todo o gênero humano. Palavras feitas de gente.       Essencialmente literários, esses seres cristalizados em vocábulos seminus de tão autênticos ajudam a nos despir das veleidades diárias, conduzindo-nos após, humildes e encantados, já vestidos de apenas puros sonhos, à gloriosa festa da Vida.       Numa perspectiva global, sua obra aponta para o maravilhoso, envolvendo a metamorfose lírica da palavra honrada enquanto palavra, simplesmente.  Enquanto Oriente.       "E mais não se lhe pedirá!" --- para citar Antonio Houaiss, em artigo sobre o célebre "Ulisses", de James Joyce, por ele magistralmente traduzido.

http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1506053

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O conto A Moça Tecelã de Marina Colassanti é um conto de fadas moderno que narra o di-a-dia de uma moça que tece.Nada lhe falta, passa seus dias a tecer com cuidado e amor ao trabalho que executa.A moça usa seu tear para expressar seus sentimentos, através das cores das linhas a moça tece a vida e seus humores.É feliz em seu ofício e tece tudo que sua

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imaginação lhe permite.Os dias passam e nada lhe falta, porque tece tudo de que necessita,leite, peixe...Porém chega um tempo em que começa a se sentir sozinha e começa sentir necessidade de uma companhia, um marido a seu lado.Imediatamente pega os fios e começa a tecer o marido imaginário com que sonha.Com cuidado escolhe os fios mais bonitos e delicados e inicia a sua grande obra.O marido imaginado ganha chapéu, corpo e rosto bem desenhados e um belo par de sapados bem engraxados. Terminada a obra, a porta de sua casa se abre, e eis que que surge o marido esperado.Feliz a moça tecelã dorme no ombro do companheiro e sonha com os lindos filhos que teriam.Ela foi muito feliz por algum tempo, porém os propósitos de seu amado eram diferentes dos seus. Ao invés de filhos ele queria uma casa melhor, maior e mais bonita, e exigiu que a esposa logo começasse a tecê-la. Terminada a casa o marido quis um palácio com arremates de prata.A moça tecelã dedicou semanas e meses na construção do tal palácio, sem tempo sequer para ver a luz do dia. Pronto o palácio o marido exigiu que ele tivesse uma torre bem alta para abrigar a esposa em seu ofício de tecer. Encerrada na mais alta torre do palácio a moça tecia e entristecia.Seus pensamentos se voltaram para o passado, para a casa simples em que vivia e para todas as coisas boas que um dia teve.Chegando à noite a moça resolve destecer o marido e puxa o primeiro fio e antes que ele acorde já estava destecido completamente.A moça tecelã volta a sua vida simples e feliz de tecer com simplicidade e alegria seus sonhos de mulher.

Fonte: http://pt.shvoong.com/books/mythology-ancient-literature/155361-mo%C3%A7a-tecel%C3%A3/#ixzz1MdAnQDe3

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O conto A Moça Tecelã de Marina Colassanti é um conto de fadas moderno que narra o di-a-dia de uma moça que tece.Nada lhe falta, passa seus dias a tecer com cuidado e amor ao trabalho que executa.A moça usa seu tear para expressar seus sentimentos, através das cores das linhas a moça tece a vida e seus humores.É feliz em seu ofício e tece tudo que sua imaginação lhe permite.Os dias passam e nada lhe falta, porque tece tudo de que necessita,leite, peixe...Porém chega um tempo em que começa a se sentir sozinha e começa sentir necessidade de uma companhia, um marido a seu lado.Imediatamente pega os fios e começa a tecer o marido imaginário com que sonha.Com cuidado escolhe os fios mais bonitos e delicados e inicia a sua grande obra.O marido imaginado ganha chapéu, corpo e rosto bem desenhados e um belo par de sapados bem engraxados. Terminada a obra, a porta de sua casa se abre, e eis que que surge o marido esperado.Feliz a moça tecelã dorme no ombro do companheiro e sonha com os lindos filhos que teriam.Ela foi muito feliz por algum tempo, porém os propósitos de seu amado eram diferentes dos seus. Ao invés de filhos ele queria uma casa melhor, maior e mais bonita, e exigiu que a esposa logo começasse a tecê-la. Terminada a casa o marido quis um palácio com arremates de prata.A moça tecelã dedicou semanas e meses na construção do tal palácio, sem tempo sequer para ver a luz do dia. Pronto o palácio o marido exigiu que ele tivesse uma torre bem alta para abrigar a esposa em seu ofício de tecer. Encerrada na mais alta torre do palácio a moça tecia e entristecia.Seus pensamentos se voltaram para o passado, para a casa simples em que vivia e para todas as coisas boas que um dia teve.Chegando à noite a moça resolve destecer o marido e puxa o

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primeiro fio e antes que ele acorde já estava destecido completamente.A moça tecelã volta a sua vida simples e feliz de tecer com simplicidade e alegria seus sonhos de mulher.

http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_3769.html

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ara todas as meninas do mundo.

          Na relação entre passado e presente, os contos clássicos são recontados pelos contos modernos, embora com um olhar atual, pois eles imprimem uma ideologia crítica acerca dos valores sociais da época; apropriando-se do simbólico, representam a mudança de atitudes na cultura. 

          Relações de poder, reversão das expectativas, a instabilidade na vida, as neuroses do mundo contemporâneo, a esperteza, a dualidade das pessoas, a rejeição, o questionamento aos valores estabelecidos, os preconceitos contra a mulher, o velho e a criança, a repressão à liberdade de expressão e o desequilíbrio social são tematizados pelo mundo ficcional dos contos de hoje. 

          Em contrapartida, os heróis, os príncipes, os reis, em seus castelos, revisitam os contos dos nossos dias, dialogando com eles e lançando sobre os mesmos um olhar atento, sensível.  As protagonistas das histórias contemporâneas são constrangidas, mas enfrentam e vencem as adversidades através da astúcia, da palavra, da criatividade, da reflexão crítica, da liberdade... 

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          Acredita-se então que, nessa perspectiva, a literatura infantil contemporânea mantenha um diálogo constante com os contos consagrados pelos séculos. Alguns elementos dos antigos contos são frequentemente retomados nos contos criados na atualidade, tais como: florestas, terra distante, castelo, reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, bruxas, sapatinhos, varinha, espelho, vassoura, lenço, maçã, árvore sagrada, tapete voador, números... 

          Analisamos aqui dois contos da literatura contemporânea que mantêm relações intertextuais com a literatura da tradição: A moça tecelã, de Marina Colasanti, e Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda.   1 – A Moça Tecelã – Entre ficção e realidade: a arte de tecer e destecer os fios da Vida           Neste conto, Marina Colasanti apresenta um enredo bem desenvolvido, em que a protagonista vive entre realidade e ficção.  As idéias se encadeiam de forma a garantir uma progressão textual, seja através da coerência cronológica, seja através da lógica.

          Trata-se da história de uma garota, que passa os dias tecendo tapetes, onde retrata sua vida, seus sentimentos, sua imaginação. 

          Nada lhe falta, pois ela concretiza seus desejos e suas necessidades essenciais através do tear.  Tudo o que precisa para sobreviver ela cria, utilizando lãs e cores diversas.  Tece assim a manhã, a tarde, a noite, tece enfim sua vida e seus sonhos, revelando simbolicamente sua idiossincrasia.

          Os dias passam, e ela deseja ter um companheiro, pois se descobre rodeada de imensa e profunda solidão; começa então a tricotar um marido imaginário:              "Não esperou o dia.  Com capricho de quem               tenta uma coisa nunca conhecida, começou a                entremear no tapete as lãs e as cores que lhe                dariam companhia.  E aos poucos seu desejo foi               aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado,               corpo aprumado, sapato engraxado.  Estava                justamente acabando de entremear o último fio               da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.               Nem precisou abrir."           É o marido tão esperado.  Ela deita no seu ombro e, embevecida de felicidade, sonha com os filhos que teriam. 

          E vive feliz por algum tempo ao seu lado, porém tal felicidade logo finda, quando ele descobre o poder que a companheira tinha com o tear. 

          Revela-se então um homem ambicioso, e ordena que ela teça uma casa; depois, não satisfeito, quis um palácio.  A moça passa vários meses tecendo um palácio "com arremates em prata", escadarias, salas, poços, pátios... 

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          Ela já não via o dia, a noite, a neve que caía lá fora. 

          Diante de tal situação, a jovem mergulha numa tristeza sem fim.  Quando o palácio finalmente fica pronto, o marido a aprisiona no mais alto quarto da mais alta torre. 

          Lá ela fica, indefinidamente, dando forma a todas as veleidades do esposo.

          A tristeza aumenta, e ela almeja voltar ao passado, ficar sozinha, pois já não tem vida própria.  Decide então desfazer o gigantesco tapete. 

          À noite, enquanto o desnaturado dorme, senta-se ao tear e desfaz cavalos, carruagens, estrebarias, jardins, criados e o palácio com todas as maravilhas que possuía. E antes que o marido acorde, ela o desfaz por completo.           Agora livre, a menina volta a ter vida própria, a formular seus devaneios e desejos de mulher, como antes.  Volta, assim, a trilhar seu exclusivo caminho:

              "Então, como se ouvisse a chegada do sol,               a moça escolhe uma linha clara.  E foi passando-a               devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a               manhã repetiu na linha do horizonte."            Ainda que indicada para o público infantil, esse conto comporta importantes reflexões quanto ao relacionamento entre marido e mulher.   De início, apresenta uma situação em que a protagonista, embora sozinha, vive harmoniosamente a vida que escolhera.           Ela tem liberdade e poder para realizar seus objetivos e fazer suas escolhas.  Mas, ao realizar o sonho de possuir um marido, começa a sentir-se só, prisioneira do lar.  A princípio não dizia nada, não tinha coragem suficiente para enfrentar as situações.  É a representação, em termos literários, da mulher que foi educada para ser submissa ao marido, realizar as tarefas domésticas com satisfação, ser esposa/mulher e calar-se. 

          Diante do exposto, vê-se a heroína como uma mulher que espelha toda uma classe, que habitualmente se anula para viver à sombra daquele que através dos tempos sempre representou a superioridade, o poder --- o homem. 

          Refletindo historicamente sobre o papel dessa mulher na sociedade, percebe-se alguém submisso, que vive para os afazeres domésticos, herdados de geração em geração: tecer, fiar, zelar pela casa, ter filhos e deles cuidar. 

        Mas, em vez da ênfase na submissão ao marido, o conto termina mostrando uma nova mulher, que, com coragem, segurança, ousadia, imaginação e criatividade, transforma sua vida, a partir do momento em que se sente livre para se decidir, se mandar. 

          As ilustrações comprovam uma criatividade delicada, tenaz, perfecional, emprestando ao texto real expressividade. 

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          Entretanto a autora soube, com absoluta grandeza literária, erguer um verdadeiro palácio de palavras que, mesmo na ausência das ilustrações, o leitor consegue imaginar o cenário da história e anelar um final feliz. 

          Como exemplo, repare-se que a jovem não possui um nome declarado, nem é descrita verbalmente; no entanto, tem sua imagem gravada a letras de lã na mente do leitor.  Isto porque, ao descrever as ações que ela concretiza, o narrador consegue plasmar essa imagem. 

          Importante ressaltar também que, se o leitor tem na memória um repertório de leituras pré-existentes, o aspecto verbal se torna mais facilmente visual. 

          Sendo uma obra destinada às crianças da atualidade, tão plena de imagens, figuras e ícones, as ilustrações se tornam fundamentais; e elas compõem, nesse  caso,  um projeto de qualidade artística significativa.

          Ressalte-se que tais ilustrações, feitas a partir de reproduções fotográficas de peças bordadas pelas irmãs Dumont sobre desenhos de Demóstenes Vargas, provocam no leitor um imprevisto encantamento.  Texto e imagem afirmam, validam, revelam a trajetória de vida dessa garota valente.

          Para imprimir os momentos de equilíbrio e desequilíbrio, as alegrias e tristezas por ela vivenciadas, dando ritmo e movimento a história, o texto não-verbal apropria-se das cores, ora quentes, ora frias; da escolha das linhas, ora grossas, ora finas; dos tecidos, ora opacos, ora macios; dos traços, ora retilíneos, ora curvilíneos...           Um outro recurso utilizado no texto não-verbal desse conto é a ausência dos rostos das personagens, permitindo ao leitor imaginar as expressões dos mesmos em cada cena narrada.

          Releve-se que, para valorizar a hora em que a moça se achava na mais expressiva tristeza (pois já não tinha vida própria, e deseja voltar ao passado), o ilustrador se utiliza da renda nos bordados, simbolizando a recordação das coisas idas e vividas. 

          Nesse ponto da história, as imagens aparecem desbotadas, pois que a garota perdeu o sentido da vida e a alegria das coisas simples.

          Finalizando a história, a moça é bordada sem vestimentas, demonstrando o recomeço.  Nesse instante, ocorre o retorno do equilíbrio nas cores e nos pontos dos bordados.  E, não estando mais cativa do homem ou com ele envolvida sentimentalmente, ela volta a ter liberdade para retrilhar sua hosanante existência. 

          Algumas marcas linguísticas conduzem o leitor atento à construção de sentido do texto.  Primeiro, a presença frequente do verbo tecer, que conduz o ritmo da narrativa:

       1 - "Tecer era tudo o que fazia.  Tecer era tudo              o que queria fazer.  Mas tecendo e tecendo,              ela própria trouxe o tempo em que se sentiu              sozinha...

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       2 – "Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça              tecendo tetos e portas, pátios e escadas, e salas              e poços."       3 – "Sem descanso tecia a mulher os caprichos do              marido..."       4 – "E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que              sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio."           Nota-se também a presença do suspense e de uma quebra na condução da narrativa com o uso da conjunção "mas": 

        "Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha. [...] Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo esqueceu. [...] Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. [...]"           Vale destacar algumas marcas que mostram que no início da história ela era a senhora do seu destino:

          1 - "Em breve, na penumbra trazida pelas                 nuvens, escolhia um fio de prata, que em                 pontos longos rebordava sobre o tecido."         2 – "Bastava a moça tecer com seus belos fios               dourados, para que o sol voltasse a acalmar               e natureza."         3 – "Nada lhe faltava.  Na hora da fome tecia um              lindo peixe. [...] Depois de lançar seu fio de               escuridão, dormia tranquila..."        4 – "Começou a entremear no tapete as lãs e as               cores que lhe dariam companhia..." 

          Após o casamento, o marido passa a ser o senhor das ações por ela efetivadas:

          1 – "Uma casa melhor é necessária – disse para                 a mulher. [...] Exigiu que escolhesse as mais                 belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os                  batentes."          2 – "Para que ter casa, se podemos ter palácio?                – perguntou.  Sem querer resposta imediatamente                ordenou que fosse de pedra com arremates em                prata."          3 – "E entre tantos cômodos, o marido escolheu               para ela e seu tear o mais alto quarto da mais              alta torre."           Para deixar claro que era a moça tecelã a verdadeira dona do seu destino e quem realmente tinha o poder de construir, destruir e reconstruir sua vida, ouvindo o seu próprio coração e seus sentidos, Marina Calasanti encerra a história magnificamente:

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              "Só esperou anoitecer.  Levantou-se enquanto               o marido dormia sonhando com novas                exigências.  E descalça, para não fazer barulho,               subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.               Desta vez não precisou escolher linha nenhuma.              Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a              veloz de um lado para outro, começou a desfazer              seu tecido.  Desteceu os cavalos, as carruagens,               as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os               criados e o palácio e todas as maravilhas que              continha.  E novamente se viu na sua casa              pequena e sorriu para o jardim além da janela.            A noite acabava quando o marido estranhando            a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em            volta.  Não teve tempo de se levantar.  Ela já             desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu            seus pés desaparecendo, sumindo as pernas.  Rápido,            o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito            aprumado, o emplumado chapéu.           Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça           escolheu uma linha clara.  E foi passando-a devagar          entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã          repetiu na linha do horizonte."           Sabe-se que a literatura é criada a partir da literatura.  Segundo Northrop Frye, citado em TODOROV (2007),

             "O desejo do escritor de escrever só pode vir               de uma experiência prévia da literatura...  A               literatura não extrai suas formas senão dela               mesma.              Tudo o que é novo em literatura é o velho              reinventado...  A auto-expressão em literatura              é algo que nunca existiu" (p.15)           Por conseguinte, é possível perceber intertextos da literatura clássica n'A moça tecelã.  Esses traços intertextuais resgatam, no verbal e no não-verbal, elementos da mitologia e dos contos de fada como a própria moça tecelã, palácio, escadarias, carruagens, jardins, torres, príncipe... 

          Os intertextos também se entrecruzam no tocante à relação de poder, ao desejo, à união homem/mulher, ao trabalho com o tear e ao dom da mulher que, ao fiar seu destino, consegue transformar a realidade à sua volta. 

          A moça tecelã é um conto riquíssimo que dialoga com as histórias tradicionais, mantendo uma intertextualidade implícita do tipo paródia. 

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          Por ser uma história que carrega as marcas de um novo tempo, revela uma jovem capaz de recompor seus sentimentos, romper com a secular, tradicional e rotineira submissão e retornar à liberdade para viver seus sonhos de mulher. 

          O texto de Marina Colasanti remete o leitor ao papel da mulher medieval, que durante muito tempo ficou à sombra de um mundo dominado pelo homem.  Na Idade Média os homens da Igreja acreditavam que a mulher era criatura débil e suscetível às tentações, e que só o esposo poderia detê-la.  Por isso, através do matrimônio, a mulher ficava sob o controle do marido. 

          A autora imprimiu marcas desse período no seu conto, ao construir uma personagem que tinha poderes com o fiar e que foi aprisionada pelo marido, que controlou e limitou esses poderes, com a maior naturalidade. 

          Ainda no período medieval, a maternidade e o papel da boa esposa eram exaltados.  No matrimônio, o marido tinha a função de dominar a mulher, educá-la e fazer com que tivesse uma vida pura, casta, ilibada. 

          Acreditava-se que só o trabalho doméstico, realizado em silêncio, poderia vencer os arroubos alimentados pela mulher.

          Remete-nos o texto, também, à clausura feminina. Assim como a protagonista da história, a mulher medieval se submetia a uma separação do marido no interior da própria casa.  O encontro entre o marido e a esposa tinha a função de fecundação. 

          Percebe-se que esse distanciamento, essa separação, principalmente de corpos, fica marcada no seguinte trecho: 

          "Mas se o homem tinha pensado em filhos,            logo os esqueceu."                     Uma representação importante na obra aqui analisada é o ofício de tecer.  No período medieval, as camponesas trabalhavam muito fiando a lã, tecendo, cuidando dos filhos e cultivando a terra.            Existe também na História da Literatura um considerável repertório de contos e mitos que retratam das mulheres que fiam e tecem.

          Dentre elas, destacamos algumas que mantêm relações intertextuais com A moça tecelã, como a lenda de Aracne, as Parcas (ou Moiras - três irmãs fiandeiras), Rumpelstiltskin e o mito de Penélope.

          A lenda da Aracne (pertencente à mitologia clássica) e A moça tecelã se entrelaçam em pontos importantes: ambas tratam do poder, do convencimento e do castigo.  Eis um trecho dessa lenda:

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"Há muito, muito tempo, vivia uma moça que era a maior tecelã do mundo. Os tecidos e tapeçarias que fazia eram tão deslumbrantes que todos se admirava e jurava que nunca tinha visto nada igual. Ela foi ficando muito convencida e começou a dizer que tecia melhor do que qualquer outra, até mesmo do que as deusas. Melhor até do que Minerva (justamente a deusa que lhe ensinara todos os segredos da arte de tecer). Então a divindade resolveu lhe dar uma lição e a desafiou para um duelo de tecelagem. Cada uma se sentou diante do tear e começaram o labor. Minerva fez um imenso tapete com histórias de pessoas que desafiavam os deuses e acabavam muito mal. Enquanto isso, Aracne ia tecendo seus fios e mostrando crimes que os deuses haviam cometido. E a tapeçaria da moça era tão bem feita que a deusa teve que reconhecer sua perfeição. Ela não podia matar a tecelã; mas bateu nela com seu bastão e a transformou numa aranha, condenada a tecer para sempre..." (MACHADO, 2006)           Assim se percebe que A moça tecelã, convencida do seu poder, tece o homem dos seus sonhos; porém, como Aracne, ela acaba castigada, tornando-se escrava da própria criação.

          O jogo dialógico entre o conto colasantiano e a história das Parcas ocorre ao se definir e interferir no destino das pessoas.  Assim como a moça tecelã sonhou, planejou, construiu e destruiu seu marido, as irmãs fiandeiras determinavam o destino humano, especialmente a duração de vida de uma pessoa.  Elas eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida. 

          A fiandeira Cloto segurava o fuso e puxava o fio; Láquesis o enrolava, registrando o filme da vida e a base da existência futura, e Átropos o cortava, indicando o evento morte. 

          Essas irmãs eram dotadas de força sobrenatural e ninguém conseguia manipulá-las.  Conta-se porém que o deus Ares foi o único capaz de submeter as moiras à sua vontade.           Eis um trecho sobre essa lenda:

"Era uma vez três irmãs que passavam o tempo manipulando o fio da vida das pessoas. A primeira tinha um polegar enorme, porque era com ele que ela puxava o fio do chumaço de lã no fuso, e fazia as meadas, comandando os nascimentos. A segunda tinha um beição enorme, porque era nele que ela molhava o fio para enrolar os novelos, determinando os destinos. A terceira tinha os dentes afiados, porque era com eles que cortava a linha, marcando a hora da morte dos homens e mulheres..." (MACHADO, 2006)           Já o conto Rumpelstiltskim, dos irmãos Grimm, também é retomado em A moça tecelã, dialogando com o mesmo no tocante a um mundo dominado pelo homem e sua ambição desmedida; à reclusão e opressão vivenciadas pelas protagonistas das histórias; à união homem-mulher, a um processo de reflexão e autoconhecimento e à transformação da realidade pela própria mulher.

          Rumpelstiltskim narra a história da bela, sensata e esperta filha de um moleiro, uma camponesa que teve como missão tecer palha para transformá-la em ouro e assim se casar com o rei. 

          Caso não conseguisse fiá-la toda, seria condenada à morte.  A jovem ficou então 

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trancada numa sala, onde havia uma grande quantidade de palha e uma roca.   Como não conseguia realizar a tarefa, surgiu um homenzinho engraçado, chamado Rumpelstiltskim, que se propôs a ajudá-la, fazendo antes uma série de exigências. 

          Uma delas: que a moça lhe entregasse seu primeiro filho.  E assim aconteceu.  Quando Rumpelstiltskim reaparece para cobrar o prometido, a filha do moleiro não lhe entrega a criança.  Para que a moça permaneça com seu filho, o anãozinho propõe uma charada que consistiria em descobrir o seu nome.  Ela tenta por três dias descobrir-lhe o nome --- em vão.

          Até que envia um mensageiro à floresta, que descobre o nome dele.  Rumpelstiltskim ficou desnorteado com a descoberta, esbravejou e bateu tão forte com o pé no chão que abriu um buraco no assoalho, ficando preso pelo pé.  A rainha puxou o pé do anãozinho para soltá-lo.  O homenzinho seguiu então seu caminho, sendo motivo de zombaria por todos, pois trabalhou tanto e nada recebeu em troca.

          O mito de Penélope e A moça tecelã se entrelaçam na representação do trabalho por elas realizado: fazem e desfazem a tapeçaria a fim de defender seus anseios de mulher, garantindo assim o fiel --- e feliz --- cumprimento de seus destinos.

          Em Penélope, episódio tramado por Homero na Odisseia, vê-se uma mulher que tece e desmancha a tapeçaria à espera do regresso do marido Ulisses, que foi para a guerra de Tróia, ficando vinte anos ausente. Como muitos pretendentes queriam casar-se com ela, prometeu que escolheria um marido quando sua tapeçaria ficasse pronta.   Só que, enquanto esperava a volta do esposo, ela tecia durante o dia e, à noite, desfazia fio por fio o trabalho começado, recomeçando-o a cada novo dia, adiando a conclusão da tarefa, para não se casar com nenhum deles:

"Era uma vez uma rainha que passava os dias na frente de um tear, fazendo uma tapeçaria.  Havia muitos anos que seu marido tinha ido para a guerra, e todo mundo achava que ele não ia voltar nunca mais.Muitos príncipes queriam se casar com ela, argumentando que o reino precisava de um rei.  Ameaçavam-na, e ela não cedia.  Ficava só na frente do tear, tecendo, fio a fio. Prometeu que ia escolher outro marido quando sua tapeçaria ficasse pronta...  Nunca ficava.  O que ninguém sabia era que toda noite ela puxava o fio e desmanchava o que tecia de dia.  Para dar tempo ao tempo.  Tempo para que o marido pudesse chegar." (MACHADO, 2006)            As Moiras, Aracne, Rumpelstiltskim, Penélope e A Moça Tecelã, apesar de pertencerem a épocas bem distantes, se intertextualizam, que se tocam em vários pontos.  Reiteramos no entanto que as histórias se atravessam, principalmente, na representação da figura feminina que revela o dom de transformar a realidade à sua volta com o poder da palavra invisível, porém poderosa e ao mesmo tempo sensível da mulher. 

          Com base na análise d'A moça tecelã, pode-se dizer que a autora utiliza vários intertextos para construir e estruturar sua narrativa e que, possivelmente, imagina que esses intertextos façam parte da memória coletiva do leitor. 

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          Ao ativar em sua memória os intertextos com os quais a moça dialoga, o leitor terá um amplo repertório de informações, pistas que irão contribuir para o processamento textual, enriquecendo e dando sentido ao texto.

          Encerrando a análise da obra A moça tecelã, que caminha pari passu com temáticas afins da literatura clássica, citamos ainda CANDIDO (2006), que, ao discorrer acerca do escritor e o público, ressalta:

"A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo." (p.84) 

Intertextualidade: a apropriação da Literatura Clássica pela ...http://66.228.120.252/ensaios/2343398

A moça tecelã Recentemente, escrevi uma análise literária do conto "A moça tecelã", da escritora Marina Colasanti. O texto foi entregue na aula de "Teoria da Literatura II", como exercício de classificação dos elementos da narrativa: enredo, personagem, tempo, espaço e narrador.

ANÁLISE

A moça tecelã é apresentada ao leitor como elemento integrante de um enredo que se inicia ao sublime amanhecer. O tear é habilmente manipulado pela personagem, que dá forma, vida e cor a tudo o que brota de sua imaginação. As forças da natureza se submetem à magia do trabalho incansável da protagonista: tece a chuva com os grossos fios cinzentos de algodão, tece a luz do sol a partir dos seus fios dourados e se tem fome, tece um suculento peixe para saciar-se.

Enredo e personagem se entrelaçam num ambiente bucólico, criado sob uma atmosfera fantástica, irreal, inatingível. Mas enfim chegou o dia em que a solidão se fez presente, tão real quanto o que era criado pelas hábeis mãos da moça tecelã. Sentindo-se sozinha, teceu um companheiro para afagar-lhe o coração. É possível surpreender-se com a personagem, pois não abre mão da condição

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humana, reservando para si o direito de amar e ser amada.

A história é permeada de novos enlaces: enfim um companheiro, mas com olhos transbordando de ambição. A protagonista é convencida a tecer um palácio para satisfazer o vil desejo de um homem que não a amava. “Tecia, tecia, tecia e entristecia”. Passava os dias a tecer, sozinha. A personagem, que evolui em todo o enredo, coloca um ponto final em sua agonia e desfaz todo o tecido que compunha a situação infeliz na qual se encontrava.

O conto "A moça tecelã" está disponível na página:

http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=673Postado por vinigupi às 08:51 http://mundodasletras-vinigupi.blogspot.com/2008/09/moa-tecel_1251.html

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