A mulher na idade média - mertamorfose de um status ok

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    A MULHER NA IDADE MDIA: ametamorfose de um status

    Itamar de Sousa 1

    Resumo

    Aborda a metamorfose do status da mulher na Idade Mdia,passando da concepo de ser desprezvel e perigoso, para ostatus de ser capaz de praticar grandes virtudes humanas ecrists. Aborda tambm o papel que a Igreja Catlica desempenhou nesta mudana.

    Palavras-Chave: Idade Mdia. Mudana de status. Mulher.Canonizao. Vida religiosa. Educao. Matrimnio. Trabalhofora do lar.

    1 INTRODUO

    Desde que os filsofos iluministas franceses (sc. XVIII) tacharam a IdadeMdia de "Idade das Trevas", que se tornou habitual se pensar que tudo foinegativo nesta quadra da histria do mundo ocidental. No resta dvida, que foi

    um perodo histrico (sc. V-XV) marcado por vrios contrastes, como aconteceu com as outras fases da histria humana.

    a poca em que a humanidade, impelida pela fora espiritual da IgrejaCatlica, procurou viver de maneira apaixonada os valores transcendentais docristianismo; isto ficou evidenciado na reflexo filosfica (foi quando a metafsicaalcanou o seu esplendor), na "fuga do mundo" atravs do monasticismo, na artegtica, na literatura, assim como na busca da santidade atravs de uma vidaconsagrada a Deus. Por outro lado, foi um perodo de intolerncia, no qual a

    inquisio procurou controlar o pensamento e a cultura, negando aos indivduosa liberdade de pensar diferentemente.

    semelhana da antigidade greco-romana, a Idade Mdia foi tambmuma poca dominada pelos homens: senhores feudais, cavalheiros, padres e monges. Dissemos predominantemente, mas no exclusivamente, porque neste perodo histrico, algumas mulheres exerceram importantes funes fora do lar, sendoabadessas, rainhas e dirigentes empresariais.

    'Socilogo pela USP, Escritor, Historiador e Professor Universitrio da FARN.

    159Revista da FARN, Natal, v.3, n.1/2, p. 159 - 173, jul. 2003/jun. 2004.

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    Muitas conquistaram o dificlimo status de santas canonizadas pela IgrejaCatlica. No obstante estes casos, a regra dominante na Idade Mdia, era amulher ser uma criatura submissa e dependente do pai e do marido, e juridicamente tutelada.

    Neste artigo, pretendemos abordar as metamorfoses da concepo damulher na Idade Mdia, assim como destacar os papis que ela desempenhou naeducao, no matrimnio e no trabalho fora do lar.

    2 MUDANA DE UM STATUS

    Ao longo da Idade Mdia, houve uma metamorfose na concepo damulher.

    Apesar de Jesus Cristo ter valorizado as mulheres, contrariando assim atradio judaica, muitos de seus seguidores manifestaram uma viso diferente arespeito do sexo feminino.

    So Paulo, na primeira Carta aos Corntios, 14,34-35 diz que: "As mulheresdevem calar na assemblia, pois no lhes permitido falar...." Na primeira Carta aTimteo 2,11-14, ele repete e amplia o seu pensamento discriminador:

    A mulher deve aprender em silncio e ser submissa - No admitido quea mulher d lies ou ordens ao homem. Esteja calada, pois, Ado foicriado primeiro e Eva depois. Ado no do seduzido; a mulher foiseduzida e cometeu a transgresso. (BBLIA..., 2002, p. 1761).

    Alguns Padres da Patristica - Tertuliano, Santo Ambrsio, So Jernimo eSanto Agostinho - viram a mulher como um ser inferior ao homem.

    O antifeminismo de Tertuliano (160-225) foi o mais radical:

    Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhadana penitncia, a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdio aognero humano. Mulher, tu s a porta do diabo. Foste tu que tocaste arvore de sat e que, em primeiro lugar, violaste a lei divina.(DELUMEAU, 1989, p. 316)

    Esta mentalidade discriminadora da antigidade crist perpassou grandeparte do perodo medieval. Por isso, nos sculos X e XI, a encontramos repetidapor alguns prelados. Assim, Godofredo, Bispo de Vandoma, falecido em 1132,

    dizia que:

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    Este sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era tambm o seumarido e pai, estrangulou Joo Batista, entregou o corajoso Sanso morte. De certa maneira, tambm, matou o Salvador, por que, se a suafalta o no tivesse exigido, o nosso Salvador no teria tido necessidadede morrer. Desgraado sexo em que no h nem temor, nem bondade,

    nem amizade e que mais de temer quando amado do que quando odiado. (DALARUM, 1993, p. 34-38).

    Por sua vez, Marbode, Bispo de Rennes falecido em 1123, considerava amulher como "A pior das armadilhas preparadas pelo inimigo", "A raiz do mal,fruto de todos os vcios." (DALARU, 1993, p.34-38).

    Apesar desta mentalidade, o sculo XIII assinala o surgimento de umacorrente de pensamento bem positivo em relao s mulheres.

    A corrente intelectual de valorizao da mulher foi elaborada pelos telogos Joo Duns Escoto, Alberto Magno, Toms de Aquino, quando eles desenvolveram os fundamentos do culto de venerao Virgem Me de Deus. Ento,Maria foi apresentada cristandade como a Nova Eva, escolhida por Deus paraser a me do seu Filho, o nosso Salvador. Sendo assim, nesta perspectiva teolgica, a mulher deixou de ser vista como a "encarnao do mal" para ser consideradacomo um ser humano, criado tambm por Deus, e capaz de adquirir grandes virtudes. O culto mariano valorizou a virgindade como uma forma de consagrao a

    Deus. Esta viso da mulher, a partir de Maria, sensibilizou milhares de jovens detodas as camadas sociais, que ingressaram nas instituies religiosas catlicas.A, atravs do trabalho dedicado aos pobres e da orao contemplativa, elastestemunharam os valores transcendentais da religio crist e conquistaram agloria dos altares.

    Atravs de pesquisa que realizamos em fontes seguras e eruditas, ao longo da Idade Mdia, foram canonizadas 460 mulheres pertencentes a cerca de vintenaes. O quadro, a seguir, mostra as nacionalidades destas santas medievais

    com os respectivos percentuais.

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    NACIONALIDADE N %Italianas 117 25,43Francesas 83 18,04

    Alems 65 14,13Inglesas 56 12,18Sem identificaes 47 10,21Espanholas 20 4,34

    Irlandesas 14 3,04

    Hngaras 10 2,18Portuguesas 10 2,18

    Orientais 8 1,73Belgas 7 1,52

    Escocesas 5 -1,1Holandesas 5 -1,1Polonesas 4 0,88Gregas 3 0,66Suas 2 0,43

    Suecas 2 0,43

    Escandinavas 1 0,21

    Prussianas 1 0,21

    TOTAL 460 100QUADRO 1: NACIONALIDADES DAS SANTAS MEDIEVAISFontes: OLIVEIRA, Amrico Lopes, 1981

    SGARBOSSA, Mrio, 2003.

    Neste quadro, podemos observar que a Itlia teve o maior nmero desantas, seguida pela Frana, Alemanha, Inglaterra, Espanha e outros pases europeus de menor expresso.

    Quanto condio social de cada santa, conclumos o seguinte: 122 (26,52%) pertenciam nobreza; 17 (3,69%) eram camponesas e operrias; 100 (21,73%)foram abadessas, isto , dirigentes de abadias; 63 (13,69%) ingressaram na vidareligiosa depois que enviuvaram; 31 (6,73%) eram virgens e, por ltimo 25 (5,43%)foram martirizadas, isto , testemunharam a sua f crist com a prpria vida.

    Entre as mulheres da Idade Mdia que exerceram importantes papis nasinstituies religiosas catlicas, no podemos esquecer Brgida (1303-1373), nas

    cida na Sucia. Do seu casamento com o nobre Ulf Gudmarsson, nasceram oitofilhos. Quando os filhos se tornaram adultos, ela e o esposo ingressaram na vida

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    religiosa. Apoiada pelo rei da Sucia, Brgida fundou um mosteiro duplo, reunindohomens e mulheres, os quais s se viam nas horas de orao em comum. Estaordem religiosa, chamada do santssimo Salvador, espalhou-se em toda a Europaatravs de 78 mosteiros. Brgida foi proclamada santa, pela Igreja Catlica, em

    1391. aPadroeira da Sucia. (SGARBOSSA; GIOVANNINI, 1983, p. 231-232).

    Outro fato que comprova a valorizao da mulher dentro da Igreja foi ainiciativa tomada pelo anacoreta e pregador Roberto de Arbrissel. Em Fontevrauld(1100-1101), ele fundou trs mosteiros: dois femininos e um masculino, destinados a amparar os leprosos. Para dirigir estas instituies, ele nomeou a nobredama Petronilla de Chemill, com autoridade, inclusive, sobre o mosteiro masculino. Esta ordem espalhou-se pela Frana, Espanha e Inglaterra. Desapareceu coma revoluo francesa. (VILLOSLADA, 1958, p. 764).

    Observaram os historiadores Knowles e Obolensky que, no final da IdadeMdia, "tornou-se normal" que toda Ordem religiosa masculina tivesse tambmuma congnere feminina. (KNOWLES; OBOLENSKY, 1983, p. 475).

    oportuno salientar que a mulher medieval teve outras alternativas devida fora das instituies eclesisticas. Uma delas era participar do movimentodas beguinas, surgido na Blgica, no sculo XIII, e que se prolongou at o sculoXV. Seu nome originou-se de Robert Le Bgue, pregador de Lige. As beguinas

    eram mulheres solteironas ou vivas das camadas superiores da sociedade medieval que formavam comunidades filantrpicas, que davam assistncia aos excludos, aos leprosos e aos pobres. Segundo o historiador Jos Rivair Macedo, elaseram vistas com desconfiana pela Igreja, que procurou integr-las s ordens dosFranciscanos e dos Dominicanos. As que resistiram a esta integrao "foramconsideradas hereges e, por isso, excomungadas, isto , excludas do seio dacristandade." (MACEDO, 2002, p. 49-50).

    Alm disso, no podemos olvidar as prostitutas, as mulheres pblicas,donas de "casaro" que viveram suas vidas bem distantes daquela espiritualidademedieval, negadora dos prazeres corporais.

    3 O MATRIMNIO

    Por outro lado, concomitantemente, a Igreja foi desenvolvendo a doutrinado matrimnio cristo. Ainda no final da antigidade crist, Santo Agost inho (354- 430), Bispo de Hipona, vislumbrava no casamento um trplice bem: a gerao de

    espcie humana, a fidelidade entre os nubentes e a indissolubilidade da unio,que o sacramento: proles, fdes, sacramentum. (GAUDEMET, 1987, p. 55). Esta

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    doutrina foi confirmada pelos Papas, nos sculos posteriores.

    Do sculo VI ao X, a Igreja Catlica lutou para modelar a sociedade medieval de acordo com a doutrina crist do casamento.

    O concilio de Florena (1431 - 1445) corroborou as decises pontifciasassumidas anteriormente sobre o matrimnio como sacramento. Teologicamente,a unio entre o homem e a mulher simboliza a unio indestrutvel entre Cristo e asua Igreja, conforme a doutrina de So Paulo, em Efsius 5,52.

    E escusado dizer que estas determinaes conciliares contriburam paradisciplinar a sociedade medieval e elevaram a dignidade da mulher como pessoahumana.

    Entretanto, na prtica, no foram suficientes para mudar juridicamente aposio da mulher casada na sociedade medieval, que continua sendo subordinada ao marido.

    Verdade que o enlace matrimonial obedecia a interesses econmicos esociais. Assim, entre as camadas sociais de nvel mais elevado, os nubentes notinham vontade prpria, isto , direito de escolha. Nestes segmentos sociais, arealizao de uma unio conjugai obedecia a um plano estratgico, cuja finalidade

    era preservar ou ampliar o patrimnio familiar. Por isso, afirma Hufton que oscontratos de casamento dos filhos eram considerados como "os negcios maisimportantes que a famlia tinha de resolver." (HUFTON, 1993, p. 25).

    Mesmo assim, as mulheres mais ousadas contrapunham-se a estes "arranjos matrimonia is", agindo de duas maneiras: recorrendo autoridade eclesisticaparta anular o casamento, ou ento, fazendo o voto de castidade e ingressandonum convento, onde consagravam a sua vida a Deus.

    Mas, nas camadas sociais populares, elas tinham mais liberdade de escolher o seu parceiro.

    No sculo XIV, quando a Igreja Catlica j possua o monoplio jurdicosobre o matrimnio, o Direito Cannico fixou a idade mnima para o casamento: 12anos para a moa e 14 anos para o rapaz. Quando a filha se casava, o pai no tinhamais responsabilidade legal sobre ela. Ela passava a viver sob a responsabilidadedo marido. Para ajud-lo, a mulher trazia um dote, que podia ser em dinheiro ou em

    bens imveis . A adminis trao do dote era da exclusiv a responsa bilidad e domarido. Este procedimento era um velho costume que deita suas razes na

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    antigidade greco-romana.

    Se, por um lado, o dote conferia estabilidade econmica ao novo casal,por outro lado, empobrecia as famlias mais ricas e numerosas.

    semelhana do que acontece na antigidade romana, a mulher continuasendo tutelada na Idade Mdia. Verdade que, quase toda a legislao dos sculos XIII e XV reconhecia a incapacidade jurdica das mulheres.

    Segundo Optiz,

    Os direitos gentlicos, por exemplo, excluam a mulher da todos osacontecimentos pblicos. No podia aparecer em pessoa perante umtribunal, tendo de se fazer substituir por um homem, o seu "tutor".Entre as mulheres solteiras, o tutor era, por norma, o pai; entre ascasadas, o marido. Por morte destes, a tutela recaia no parente masculino mais prximo pertencente famlia do pai. Alm do direito derepresentar a sua pupila em tribunal, o tutor possua tambm o direitode dispor e de usufruir da fortuna desta, o direito de a castigar - que emcasos extremos podia incluir a morte -, o direito de a dar em casamento, como entendesse, e mesmo o direito de a vender. (OPTIZ, 1993, p.356).

    Acrescenta a referida autora que, no final da Idade Mdia, em algumas

    regies da Europa, esta tutela jurdica ficou mais branda.

    4 A EDUCAO

    No campo educacional, a Igreja Catlica desenvolveu um papel importantssimo. Cessadas as perseguies do imprio romano aos cristos, a Igreja comeou a organizar escolas paroquiais, onde eram ministrados os rudimentos dadoutrina crist e da cultura laica. Com o apoio do Imperador Constantino (306 -338), ela conquistou a necessria liberdade de ao para levar avante a expanso

    do cristianismo.

    Aps a queda do imprio romano, ocorrida no ano 476, a Igreja iniciou ainstalao das escolas monsticas e, mais tarde, das episcopais, chamadas tambm de catedralcias, pelo fato de funcionarem sombra de uma catedral. Por isso,a Igreja foi cognominada de "educadora do ocidente europeu."(LLORCA;VILLOSLADA; MONTALBA, 1958, p. 299).

    Nestas escolas, sem menosprezar a cultura clssica greco-romana, ela fezdo estudo da Sagrada Escritura e dos autores da Patrstica, o ponto central do seucontedo programtico.

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    Na educao da populao medieval, todos os estudiosos atribuem aosmonges um papel extraordinrio. O movimento religioso - asctico, chamado demonasticismo, originou-se no Egito, no sculo III. No sculo seguinte, graas

    divulgao da literatura monstica, este movimento chegou ao ocidente, ondeteve grande aceitao entre os cristos daquela poca. Do sculo V ao X, aEuropa assistiu a uma extraordinria proliferao de mosteiros masculinos e femininos, funcionando separadamente. Todavia, graas iniciativa de So Columbano(543 - 615), monge Irlands, surgiram os mosteiros duplos, agregando homens emulheres.

    E importante ressaltar que os mosteiros femininos eram povoados pormulheres nobres, que eram abandonadas pelos maridos, ou que enviuvavam, ou

    que se rebelavam contra a opresso da famlia. Outras, ainda jovens, obedientesaos pais, se consagravam a Deus.

    A proteo a estes mongas era muito rigorosa. Verdade que, segundoWemple,

    Os homens que eram encontrados nos mosteiros femininos, se fossemleigos, deviam ser excomungados; se fossem clrigos, eram privados doseu mnus e encerrados num mosteiro masculino; e os mongas culpados deviam ser submetidos a oraes e jejum por causa do pecadocometido. (WEMPLE, 1993, p. 249).

    Cada mosteiro era, ao mesmo tempo, um centro religioso e um centro cultural.Funcionavam a dois tipos de escolas: uma interior, destinada aos oblatas e aosmonges jovens, que tinham como professores, os monges mais velhos; e umaescola exterior, voltada para a educao religiosa e literria das crianas e dos

    jovens dos arredores do mosteiro.

    Todas as regras monsticas determinavam que os mongas deviam saberler e escrever. Por isso, encontramos, na Idade Mdia, freiras copistas, escritorase bibliotecrias. Algumas se destacaram como intelectuais, escrevendo biografiasde santos.

    Segundo Wemple,

    No sculo X, uma cnega alem tornou-se famosa pela publicao deobras clssicas da literatura devacional e secular. Era Hrotsvita deGandersheim, uma autora prolfica e talentosa tanto em prosa como

    em poesia. Redigiu peas, legendas, poemas picos. (WEMPLE, 1993,p. 264).

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    Por sua vez, as escolas episcopais, chamadas tambm de catedralcias,foram outro tipo de educandrio eclesistico de grande importncia. Sua finalidadeera formar os clrigos e leigos de famlias nobres. Estas escolas surgiram no

    sculo VIII e a sua organizao era semelhante das escolas monsticas.

    Os dirigentes destas escolas, tanto das monsticas quanto das episcopais, foram obrigados a construir grandes bibliotecas para atenderem aos seusalunos. Isto ensejou o aparecimento deste aforismo: "Clanstrum sine armrioquase castrum sine armamentario "(Mosteiro sem biblioteca como se fosse umquartel sem armamento). (LLORCA; VILLOSLADA; MONTALB AN, 1958, p. 305,traduo nossa).

    Ao fazer esta ligeira retrospectiva da educao medieval, no podemosolvidar as iniciativas leigas, sobretudo, de Carlos Magno (742 - 814), o Imperadordos francos.

    Para suprir as deficincias da educao eclesistica, ele ordenou

    Que se criassem escolas em todas as parquias, e onde as crianaspudessem aprender a ler. Por outro lado, ordenou aos senhores feudaisque todos mandassem os filhos escola para estudar as letras e que omenino permanecesse na escola at ser instrudo nelas. Ao mesmotempo, buscou em Roma mestres para as escolas e instituiu funcionrios [...] para servir de inspetores. (LUZURIAGA, 1987, p. 82).

    importante deixar bem claro que as iniciativas educacionais - particulares e eclesisticas - no beneficiavam todas as camadas sociais. Mas, ao contrrio, o acesso ao ensino formal privilegiou o elemento masculino pertencente nobreza e ao clero. O elemento feminino recebia, primeiro, uma educao elementar em casa e, depois, tinha acesso s escolas paroquiais ou aos conventos femininos.

    Colocando parte, a polmica sobre a origem das universidades na IdadeMdia, ponto pacfico que elas surgiram de iniciativas eclesisticas e particulares, entre os sculos XII e XIII; a palavra "universitas" significava, de inicio,corporao de mestres e alunos. Depois, passou a significar "studium general"(estudo geral). Somente depois do sculo XV, ela adquiriu o sentido atual, isto ,aglomerado de faculdades ensinando todas as cincias.

    Segundo Llorca; Villorlada; Montalban (1958, p. 920), na Idade Mdia,

    Toda instituio universitria tinha carter universal em dois sentidos:

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    enquanto admitia estudantes e professores de todas as naes, e enquanto dava ttulos vlidos universalmente, de tal sorte que quemrecebia, numa universidade, a licentia docendi, podia, sem mais nenhum requisito, ensinar qualquer universidade do mundo. (Grifo dosautores)

    A maior parte das universidades mais antigas da Europa surgiu ao longodos sculos XII e XIII, tais como Bolonha, Paris, Montpellier, Salerno, Cambridge,Salamanca, Coimbra, Pdua e Npoles.

    Segundo Little (2002, p. 238), as escolas episcopais e as universidadesconstituam um territrio "estritamente proibido s mulheres".

    Pelo menos no que se refere s universidades, esta afirmativa no vlida.

    Pois, segundo Sullrot (1970, p. l 10),

    Na Idade Mdia, algumas universidades, e, muito particularmente, auniversidade de Bolonha, tinham admitido, do sculo XII ao sculoXVII, algumas mulheres, e chegaram a oferecer ctedras de direito adiplomadas femininas como, por exemplo, Magdalena Buonsingnori,Betina Calderini e Bettesta Gozzadini. Este liberalismo, contudo, foraesmagado pelo desenvolvimento da burguesia pr-capitalista do sculo XVII, que [...] foi o sculo dos grandes triunfos masculinos. A partirde ento, a carreira de advogado foi vedada s mulheres, mesmo oensino ou o estudo do direito.

    Por causa da proibio ou das dificuldades de acesso do elemento feminino s universidades, as mulheres nobres, que quisessem adquirir um elevadonvel de cultura, contratavam mestres particulares. O famoso "romance" entre ofilsofo Abelardo e a jovem estudante Helosa ilustra bem esta educao ministrada em casa. Abelardo foi contratado pelo cnego Fulbert, tio de Helosa, partainstru-la em casa. (LE GOFF, 1995, p. 39 - 42).

    Por conseguinte, foi por causa deste costume da nobreza e da burguesia,de contratar professores em casa, que encontramos, na Idade Mdia, mulheresadmiravelmente cultas.

    A ttulo de ilustrao, Wemple cita Amalasunta, filha de Teodorico, o grande, rei ostrogodo da Itlia; Euquria, esposa do governador de Marselha, e Duoda,mulher de Bernardo de Septimnia, que instruiu o seu filho mais velho. (WEMPLE,1993, p. 261)

    Nesta galeria de mulheres eruditas, no podemos deixar de lembrar AnaComnena (1083 - 1148), princesa bizantina e filha de Aleixo I Comneno. Alexada

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    o titulo da biografia do seu pai, escrita por ela.

    Semelhante papel de destaque, teve igualmente Cristina de Pisa (1364 -1430) tida como "destacada poetisa francesa". (LOYN, 1997, p. 21;108)

    No obstante o valor cultural destas ilustres mulheres, elas, juntamentecom as monjas inteligentes e eruditas, constituram nobres excees num mundodominado predominantemente pelos homens.

    Por ltimo, lembramos Hildegarda de Bingen (1098-1179), mulher erudita einteligente. Deixou escritos variados, inclusive o tratado Causae et Curae (causae cura) que nos d um retrato bem rico sobre a medicina medieval. (MACEDO,2002, p. 87).

    5 O TRABALHO

    A dignidade que se atribui atualmente ao trabalho fora de casa umaconquista dos tempos modernos, sobretudo a partir da revoluo industrial (sc.XVIII). Ao contrrio, na Idade Mdia, trabalhar, principalmente com as mos, erauma atividade reservada aos servos. Por isso, no conferia honra nem dignidadea ningum. O trabalho era visto com desdm e, muitas vezes, como uma maldio.Mesmo assim, as mulheres trabalhavam fora de casa em diversas atividades,

    ajudando aos homens no sustento de suas famlias.

    Na agricultura, que era a base da economia medieval, a presena da mulherfoi uma constante ao lado do homem.

    Segundo Le Goff(2002, p. 566),

    A mulher no sobe, cumpre sua parte no trabalho medieval. No campocomo testemunham as pinturas e esculturas dos trabalhos dos meses

    do ano, a camponesa no exerce as atividades de produo reservadasao homem (sementeiras, lavra, corte de rvores), mas sua auxiliar nostrabalhos de ceifa, colheita, vindima, e seu principal papel reside natransformao das matrias primas oriundas da criao de animais(fiao, tecelagem).

    Nas cidades, o mundo do trabalho era organizado em guildas, confrarias,corporaes, companhias e comunas. Em todas elas, a mulher estava presente.Nas guildas, onde havia juramento mtuo e hierarquia, uniam-se os mestres, osaprendizes e os assalariados. Segundo o Oexle, na alta Idade Mdia, "essas guildas

    reuniam leigos e eclesisticos, homens e mulheres, e substituam as estruturassociais do Vilarejo, da parquia e do senhorio." (OEXLE, 2002, p. 493).

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    A diviso do trabalho em atividades masculinas e femininas j era bempatente no sculo XVIII. O testemunho de Etienne Boileau, na sua obra Livre desMetirs - muito significativo, em 1268, ele registrou a existncia, em Paris, de 130

    profisses. (LE GOFF, 2002, p. 564).

    Boileau classificou como "femininas", as profisses de que a matria-prima,era a seda ou o ouro: fiadoras, tecedeira de seda e de couro, fabricantes dechapus de ouro, tecedeiras de chapus de seda, batedoras de ouro, etc.(SULLROT,1970,p.51).

    Assinala velyne Sullrot, sociloga estudiosa da insero da mulher nomercado de trabalho que quase todas as profisses foram acessveis s mulheres,

    nos sculos X, XI, XII,XIII, e XIV. Depois nasceram novas dificuldades.(SULLROT, 1970, p. 54).

    A partir do sculo XIII, apenas duas profisses continuam verdadeiramente ilcitas: a das prostitutas e a dos jovens comediantes. (LE GOFF, 2002, p.569).

    6 CONCLUSO

    Estudar a situao da mulher na Idade Mdia uma tarefa bastante rdua,devido heterogeneidade das informaes e amplido do perodo, isto , quaseum milnio. Propusemo-nos a mostrar a metamorfose do status feminino que,embora parcial, realmente aconteceu. De ser perigoso, desprezvel e diablico, amulher passou a ser considerada como dotada de talento, de criatividade e capazde praticar grandes virtudes humanas e crists. Verdade que, numa poca queos valores transcendentais do cristianismo estavam no auge, milhares de mulheres inspiradas no modelo de Maria, a Me de Deus, levaram uma vida santa, nosconventos e dedicaram os seus preciosos dias em cuidar dos pobres, dos doentes, enfim dos excludos. Deus e o ser humano pareciam seres contguos. Este foio ethos predominante da cultura medieval, vivenciado por grande parte da sociedade. Todavia, a liberdade individual impediu outros segmentos sociais a buscarem outras alternativas e vida.

    Vimos que, com exceo da Itlia, nos demais pases da Europa, as mulheres da Idade Mdia no tiveram acesso ao ensino universitrio. Esta barreiracontribuiu muito para impedir a sua ascenso social e, por outro lado, concorreu

    fortemente para mant-las no exerccio de atividades de menor importncia eprestgio social. S romperam estas barreiras aquelas mulheres ricas que tinham

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    condies financeiras de contratar professores que vinham ministrar aulas nassuas prprias casas. Mas, estas constituram nobres excees.

    Do ponto de vista jurdico, a mulher medieval continuou duplamente tute

    lada: primeiro, pelo seu genitor; segundo, aps o casamento, pelo poder marital.Esta situao de controle e de submisso s comeou a mudar a partir do sculoXVIII , quando os movimentos feministas se expandiram e se fortaleceram, reivindicando igualdade de direitos entre homens e mulheres. Cestfini!

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    Abstract

    THE WOMAN IN THE MIDDLE AGE: the metamorphosis ofa status

    An approach about the woman's status' metamorphosis in theMiddle Age, that went from worthless and dangerous to thestatus of being able to achieve great human and Christianvirtues. It also talks about the role the Catholic Church had inthis change.

    Key words: Middle Age. Status Change. Woman. Canonization.Religious Life. Education. Marriage. Work Outside Home.

    Revista da FARN, Natal, v.3, n. 1/2, p. 159 - 173, jul. 2003/jun. 2004. 173

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