A Musica e o Violao de Dori Caymmi

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JLIO CESAR CALIMAN SMARARO

O CANTADOR: A MSICA E O VIOLO DE DORI CAYMMI

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Msica do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Msica. Orientador: Prof. Dr. Marcos Siqueira Cavalcante

CAMPINAS 2006

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP Bibliotecrio: Liliane Forner CRB-8 / 6244

S25c

Smararo, Jlio Csar Caliman. O Cantador: a msica e o violo de Dori Caymmi. / Jlio Csar Caliman Smararo. Campinas, SP: [s.n.], 2006. Orientador: Marcos Siqueira Cavalcante. Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de

Campinas. Instituto de Artes.

1. Msica. 2. Violo instruo e estudo. 3. Harmonia. 4. Composio. 5. Arranjo(Msica). 6. Dori Caymmi. I. Cavalcante, Marcos Siqueira. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Artes. III. Ttulo.

Ttulo em ingls: Like a Lover: the music and the guitar of Dori Caymmi Palavras-chave em ingls (Keywords): Music Guitar(instruction and study) - Harmony Composition Arrangement(Music) - Dori Caymmi Titulao: Mestre em Msica Banca examinadora: Prof. Dr. Marcos Siqueira Cavalcante Prof. Dr. Claudiney Carrasco Prof. Dr. Giacomo Bartolini Prof. Dr. Rafael dos Santos Prof. Dr. Luis Otvio Braga Data da defesa: 23 de Fevereiro de 2006

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar ao meu orientador Marcos Siqueira Cavalcante pela confiana, pelo apoio constante e por seus valiosos conselhos. Aos professores que me ajudaram diretamente na realizao deste trabalho, Rafael dos Santos, Claudiney Carrasco e Ricardo Goldemberg. A todos os professores que me acompanharam nesta longa jornada de Unicamp, em especial Hilton Jorge Valente (Gog), Jos Roberto Zan e Alberto Trindade. Aos companheiros de ps-graduao, principalmente Adriano de Carvalho e Leonardo Saldanha, alm dos amigos que me ajudaram, Bud Garcia, Antnio Dias (Nan), Dinoel Gandini, Eduardo Klbis e Humberto Mancuso. A todos os funcionrios do Instituto de Artes, especialmente aqueles da Ps-Graduao e do Laboratrio de Informtica. minha companheira Ldia e aos meus pais, Lourdes e Joo Ari, pelo seu amor. A Dori Caymmi, por ser sempre to acessvel e atencioso, mas acima de tudo por sua msica.

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Resumo

O Cantador: a msica e o violo de Dori Caymmi

A presente dissertao tem como propsito estudar a vida e a obra do msico Dori Caymmi. Neste trabalho sua discografia divida em trs fases distintas, representando cada uma delas um momento especfico de sua carreira. Sero analisados neste estudo as composies de sua autoria, e seus respectivos arranjos, presentes quase em sua totalidade nas duas primeiras fases, que cobrem o perodo de 1972 a 1994. As anlises vo buscar as caractersticas principais de sua msica, com um enfoque mais aprofundado em seu violo.

Abstract

Like a Lover: the music and the guitar of Dori Caymmi

This study encompasses the life and work of composer, arranger and guitar player Dori Caymmi. His discography is presented in three main periods, each representing a specific moment of his career. Most of his compositions and arrangements are analyzed in the two first periods, spanning from 1972 to 1994. This analysis aims at finding major characteristics of his music, focusing closely on his approach to the guitar.

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SUMRIOINTRODUO ...............................................................................................15

CAPTULO 1 - DA INFNCIA AOS PRIMEIROS TRABALHOS .................19 Primeiros anos ........................................................................................................19 Primeiros professores .............................................................................................20 Tom Jobim e a Bossa-Nova ...................................................................................23

O VIOLONISTA ..............................................................................................................24 ...Baden e Joo, os pais do meu violo... ............................................................24 Primeiro disco ........................................................................................................26

O ARRANJADOR ...........................................................................................................28

Primeiros trabalhos no teatro .................................................................................28 Primeiros trabalhos como orquestrador .................................................................30 Trabalhos com os Tropicalistas..............................................................................32 Outros arranjos........................................................................................................35

O COMPOSITOR.............................................................................................................36 Festivais..................................................................................................................36 Outras gravaes.....................................................................................................38 Segunda gerao da bossa-nova..............................................................................39

TRS FASES.....................................................................................................................41 Fase brasileira .........................................................................................................41 Fase americana........................................................................................................44 Homenagens............................................................................................................46

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CAPTULO 2 PRIMEIRA FASE......................................................................49

Dori Caymmi, 1980, o segundo disco.................................................................50 Canes regionais e bossanovsticas .....................................................................51

A) CANES REGIONAIS......................................................................................52 O VIOLO........................................................................................................................53 Cego Aderaldo........................................................................................................61

O RITMO E A SEO RTMICA.................................................................................69 Ausncia de orquestra..................................................................................................................69 Seo rtmica...........................................................................................................69 Instrumentao........................................................................................................72

HARMONIA E MELODIA.............................................................................................73 Anlises...................................................................................................................74

B) CANES BOSSANOVSTICAS ......................................................................86 Anlises...................................................................................................................86

RESUMO ..........................................................................................................................94 Tabela 1...................................................................................................................95 Tabela 2...................................................................................................................95

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CAPTULO 3 SEGUNDA FASE...................................................................... 97

Cano e msica instrumental.................................................................................99

O VIOLO........................................................................................................................100 HARMONIA......................................................................................................................112 O acorde m7b6........................................................................................................112 Inverses.................................................................................................................115 Progresses paralelas..............................................................................................125 Harmonia modal.....................................................................................................133 Pedais......................................................................................................................141

RITMO/SEO RTMICA.............................................................................................144 Ritmos nordestinos..................................................................................................149 Instrumentao........................................................................................................151 Seo rtmica...........................................................................................................152 Arranjos de base......................................................................................................154 Convenes rtmicas...............................................................................................155

RESUMO ...........................................................................................................................164

CONCLUSO...........................................................................................................165

BIBLIOGRAFIA......................................................................................................167

APNDICE I Discografia....................................................................................171

APNDICE II Entrevista com Dori......................................................................173

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SEQNCIA DE FAIXAS DO CD

1- Vai de Vez 2- Lenda 3- Nosso Homem Em Trs Pontas 4- Desenredo 5- Desafio 6- Saveiros 7- Evangelho 8- Porto 9- Guararapes 10- Gurarapes (2) 11- Estrela Da Terra 12- Toucans Dance 13- Histria Antiga 14- Trs Curumins 15- Its Raining 16- From The Sea 17- My Countryside 18- Romeiros 19- Romeiros (2) 20- Ogum Quem Sabe 21- Saudade Do Rio 22- The Desert 23- The Desert (2) 24- To My Father/Pescaria 25- Flor Da Bahia 26- Kicking Cans 27- Jogo De Cintura 28- Trs Curumins (2) 29- Toucans Dance (2) 30- Toucans Dance (3) 31- Its Raining (2) 32- The Colors Of Joy

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INTRODUO

O presente trabalho tem por objetivo estudar e analisar a vida e a obra autoral do msico Dori Caymmi, com nfase no seu instrumento, o violo. Filho do compositor e intrprete Dorival Caymmi, Dorival Tostes Caymmi mais conhecido como Dori Caymmi, e desenvolve uma importante carreira como violonista, arranjador, compositor e cantor. Embora sua obra tenha alcanado reconhecimento mundial em funo da qualidade de suas composies e seus arranjos, da sofisticao de suas harmonias e do seu estilo singular de tocar violo, ainda no foi publicado nenhum trabalho acadmico sobre ele ou sua msica, tornando-se imprescindvel a consecuo deste e de outros estudos sobre o mesmo tema. Sua carreira na indstria fonogrfica comeou com a participao no disco Caymmi visita Tom, de 1964, uma colaborao entre Tom Jobim e a famlia Caymmi (Dorival, Nana, Dori e Danilo). Nesse trabalho Dori atuou apenas como instrumentista. J nos seus trabalhos posteriores, sua participao se d quase sempre como arranjador e violonista. Dori tambm teve projeo como compositor, ao ganhar o primeiro lugar na edio nacional do I FIC (Festival Internacional da Cano), com a msica Saveiros. Depois disso teve msicas suas gravadas por intrpretes como Elis Regina, Nana Caymmi, MPB 4, Sarah Vaughan, Srgio Mendes, Nara Leo e Jair Rodrigues. Seus trabalhos individuais1 se iniciaram em 1972 com o lanamento de seu primeiro disco, Dory Caymmi e se encerram, at o presente momento, com o disco Contemporneos, de 2002. Nesse perodo que cobre trinta anos, Dori lanou onze discos,

Sero considerados somente os discos onde Dori o nico condutor do trabalho, sendo responsvel pelos arranjos, vocais, composies (quando for o caso) e produo.

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que neste estudo sero agrupados em trs fases distintas (1972-1982, 1988-1994, 19972002). Sero analisadas neste trabalho, as duas primeiras fases, correspondentes ao perodo autoral de sua msica, onde Dori grava suas prprias composies, destinando-se a cada uma das fases um captulo (respectivamente, captulos dois e trs) onde sero investigadas e analisadas as principais caractersticas de sua msica, os pontos em comum e as mudanas que ocorreram de uma fase para a outra. Sero estudados tpicos como harmonia, melodia, ritmo, seo rtmica, instrumentao, arranjo e principalmente o seu violo, que receber neste trabalho uma ateno especial, sobretudo quando este for representativo do seu estilo. Aspectos de carter mais biogrficos, tais quais, formao musical, professores, influncias e os seus primeiros trabalhos, sero o foco do primeiro captulo, reservando aos demais, as anlises musicais propriamente ditas. O primeiro captulo procura situar o contexto em que Dori se desenvolveu, suas principais influncias e sua formao. Ele vivenciou o surgimento e o apogeu da bossanova, tornando-se intimamente ligado aos dois principais lderes desse movimento, Joo Gilberto e Tom Jobim, que se tornariam suas duas maiores influncias, o primeiro em relao ao instrumento, e o segundo nos aspectos de composio e harmonia. O segundo captulo traz anlises da primeira fase de Dori, que foi, neste estudo divida em duas vertentes principais, canes regionais e bossanovsticas. As anlises apresentadas se concentraram principalmente nas canes regionais, que possuem caractersticas que fazem a msica de Dori Caymmi extremamente pessoal, e onde o seu violo alcana a sua maior expressividade. No terceiro captulo, sero analisados os trabalhos gravados aps sua mudana para os Estados Unidos onde ele passa a gravar com msicos e engenheiros de som americanos. 16

Sua msica nessa fase ainda possui algumas caractersticas especficas das canes regionais e bossanovsticas, mas existe uma uniformidade quanto a alguns aspectos, em particular os arranjos e as harmonias. Nesta fase, soma-se cano, a msica instrumental, que ganha um espao maior, atravs da abertura para solos e com a presena de msicos convidados. A voz tambm passa a ser encarada como um instrumento, cantando algumas melodias sem a presena da letra. Acompanha o trabalho uma gravao em cd com as ilustraes musicais de todos os exemplos de violo utilizados neste estudo.

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1 DA INFNCIA AOS PRIMEIROS TRABALHOS

Primeiros anos

O compositor, arranjador, violonista e cantor Dorival Tostes Caymmi, mais conhecido como Dori Caymmi1, nasceu no dia 26 de agosto de 1943 em Andara, na cidade do Rio de Janeiro, filho de Dorival Caymmi, um dos mais importantes compositores e intrpretes brasileiros e de Stella Maris (nascida Adelaide Tostes), ex-cantora da Rdio Mayrink Veiga. Sua irm Nana nascera dois anos antes, no dia 29 de abril de 1941. Seu irmo Danilo, o caula da famlia, nasceu cinco anos depois, em 7 de maro de 1948. Todos eles tornaram-se msicos importantes no cenrio brasileiro. Com um ano de idade mudou-se com a famlia para o Leblon, onde passou grande parte de sua infncia. Ao contrrio do que alguns podem imaginar, portanto, Dori no baiano, e sim carioca. Foi no Rio de Janeiro onde passou a maior parte dos seus primeiros anos. Sua influncia baiana vem da famlia paterna. Seu pai, Dorival, um baiano de Salvador que faz questo de representar em sua arte, na msica, em especial, mas tambm em seus quadros, o pescador, os deuses e deusas africanos, Yemanj, a vendedora de acaraj, a mulata sensual e todo um conjunto de tipos humanos e situaes recorrentes em sua terra natal. Dorival dedicou discos inteiros ao mar e suas personagens, com sua importante srie de canes praieiras. Isso tudo, sem dvida, influenciou seus filhos. Dori possui tambm a influncia mineira da me. Dona Stella natural de So Pedro de Pequeri, uma pequena cidade de Minas Gerais, embora tenha se mudado para o Rio de

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Em alguns trabalhos poderemos encontrar, tambm, erroneamente, Dorival Caymmi Filho.

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Janeiro com seis meses de idade. Alm da influncia materna, Dori tambm morou na cidade mineira de Cataguazes entre 1957 e 1958, quando foi transferido para um internato. Ser filho de algum como Dorival possibilitou ao menino Dori um contato precoce com a msica e com figuras importantes da nossa cultura. Seu pai, com o talento e sucesso que tinha, alm de uma personalidade magntica, recebia visitas constantes de gente como Jorge Amado, Di Cavalcante, Assis Chateubriand, Tom Jobim, Baden Powell e Joo Gilberto. Assim, muito precocemente, o seu talento para msica foi revelado, como conta Stella Caymmi (2001, p. 230):

Foi nesse perodo [1947] que Dori surpreendeu os pais fazendo um contracanto perfeito melodia de Casinha Pequenina belssima modinha lanada em 1906 por Mrio Pinheiro, de autor desconhecido e a me estava cantando na cozinha: Tinha um coqueiro do lado que, coitado, de saudades j morreu. Dorival e Stella se entreolharam imediatamente reconhecendo o nascente talento musical do filho.

Curiosamente, esse episdio j indica o caminho principal que ele iria seguir, o de compositor e arranjador, como ele mesmo se autodenomina.

Primeiros professores

Dori, nunca gostou de estudar, como ele relata em nota de encarte2:Ainda menino fui estudar piano com D. Lcia Branco, na esperana de poder tocar Clair de Lune(de Debussy). A realidade me mostrou exerccios e escalas. No durei muito como pianista. Virei orquestrador.

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CAYMMI, Dori. Influncias, So Paulo: Universal Music, 2001. 1 CD com encarte.

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Ainda assim, seu pai obrigou-o a estudar. Alm de D. Lcia Branco ex-professora de Tom Jobim e Arthur Moreira Lima sua professora aos oito anos de idade, ele fez aulas tambm com Nise Poggi Obino, uma importante professora de msica do Rio de Janeiro, que teve entre seus alunos Nelson Freire e Eliane Cardoso. Depois disso estudou teoria musical no Conservatrio Lorenzo Fernandes, mas achou muito enfadonho o ensino tradicional de msica. Dori tambm no gostava de estudar piano e sua ltima professora foi Maria Auxiliadora, no perodo em que residiu em Cataguazes. Retornando ao Rio, por volta dos quinze anos, Dori fez aulas de harmonia com Paulo Silva, que segundo ele, era uma pessoa de difcil trato e um professor muito rgido. Silva, por sua vez, tambm no o considerava a despeito de seu talento um de seus alunos mais dceis e, alm disso, no gostava dos exerccios mais modernos que ele lhe trazia. Assim, Paulo Silva o encaminhou a um de seus assistentes, ningum menos que Moacir Santos, um importante compositor e arranjador que teve grande influncia sobre Dori, levando-o a atingir um nvel profissional, como conta em entrevista a Bruce Gilman, editor de msica da Brazzil Magazine3. Com Moacir, Dori teve a oportunidade de estudar harmonia e os modos gregos, mas, acima de tudo conhecer a fundo o trabalho que ele vinha desenvolvendo na poca4, uma vez que eles passavam grande parte do tempo ouvindo e analisando msica. Esses encontros acabaram resultando em uma de suas primeiras composies, Velho Pescador, que juntamente com Amando, so as primeiras msicas de sua autoria

CAYMMI, Dori. Brazzil, Revista Eletrnica, Entrevista concedida em 2001. Disponvel em 4 Pouco tempo depois, em 1965, Moacir Santos lanaria pelo selo Forma o seu importante trabalho, intitulado Coisas.

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a serem gravadas5. Esse primeiro registro foi feito por Luiz Ea em seu disco Luiz Ea e Cordas, de 1964. A msica Velho Pescador voltaria a ser gravada por Nana Caymmi em seu primeiro disco, de 1967, e pelo prprio Dori em 1972, tambm em seu primeiro disco. Outra caracterstica comum s duas msicas o fato de ambas terem sido compostas ao piano, e, segundo consta, foram suas nicas composies feitas nesse instrumento, como ele declara em entrevista6:E eu fiz no piano. , msica de piano. Tem uma influncia grande do Moacir Santos no Nan. Essa msica que eu j fao com influncia do Moacir, de piano. Voc tem outras coisas que comps no piano? Amando e essa, Velho Pescador, mais nada. Que eu me lembre mais nada.

No entanto, sua falta de disciplina fez com que logo abandonasse as aulas e buscasse seus prprios caminhos. Dori, que freqentava a noite carioca e era influenciado pela nascente bossa-nova, no era muito afeito a regras e nem ao rigor da teoria e da harmonia tradicional :Dori ainda novo, com apenas 17 anos circulava na noite [carioca], na nsia de ouvir, tocar e saber das novidades. J era louco por jazz. Ouvia tambm muito Ravel e Debussy. Seu violo foi fruto do autodidatismo, como acontecera antes com o pai. Meninozinho pegava o violo do pai escondido, at que ganhou dele seu primeiro instrumento. Conviveu com figuras importantes como Baden Powell, Luizinho Ea e Joo Donato, Tom Jobim, o prprio Joo Gilberto. (CAYMMI, S. p.388)

Depois de Moacir Santos, Dori no teve mais nenhum professor regular de msica, mas pde aprender um pouco atravs dos msicos que eram seus amigos ou com os quais trabalhava. Eumir Deodato, por exemplo, ofereceu sugestes de como escrever msica com mais facilidade. Com Roberto Menescal, aprendeu a notao atravs de cifras e como5 6

Ainda em 1964, a cantora Luiza gravaria a composio Meu Caminho, parceria de Dori e Edu Lobo. CAMMY, Dori. Entrevista concedida a Jlio Smararo em 16/10/2005.

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utiliz-las. J o perodo em que trabalhou como copista para Luiz Ea, lhe possibilitou o contato com muitos dos seus arranjos, aumentando conseqentemente seu conhecimento de instrumentao e orquestrao7. Sua carreira profissional teve incio em 1959, aos dezesseis anos, acompanhando ao piano e violo a irm Nana, que tambm comeou a cantar cedo. Nana apresentava um programa na TV Tupi chamado Cano de Nana, que ia ar ao uma vez por semana. Nesse programa Nana cantava junto com o irmo ao violo. Stella esclarece:

Dori, o filho do meio, avanara nos estudos de violo e costumava acompanhar a irm, ambos fascinados com a bossa nova. Os irmos j vinham se apresentando juntos com o pai em alguns programas de TV como o de Bibi Ferreira.(CAYMMI, S. p. 386)

Tom Jobim e a Bossa-Nova

Tom Jobim e a bossa-nova tiveram um grande impacto sobre Dori. Ele conta em entrevista a Luiz Roberto Oliveira e Srgio Lima8 : ... a msica comeou a ficar bem moderna... mas eu notava que ainda faltava um detalhe que eu s fui encontrar quando ouvi as msicas do Tom [Jobim] pela primeira vez. Esse primeiro contato com a msica do maestro ocorreu durante o perodo do internato, em Cataguazes, graas s transmisses da rdio dos estudantes. No entanto, ele j conhecia suas composies, atravs das interpretaes de Maysa e da trilha do filme Orfeu Negro, de autoria de Jobim, Vincius e Lus Bonf.

CAMMY, Dori. Entrevista em 16/10/2005 CAYMMI, Dori. Entrevista concedida a Luiz Roberto Oliveira e Srgio Lima em 28/6/1997. Disponvel em < http://nortemag.com/tom/dori/doriframe.html>8

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Jobim foi uma espcie de mentor para Dori. Eles se conheceram em 1954, em Copacabana, bairro carioca onde moravam os Caymmi. Tom logo reconheceu o seu talento e convidou-o para trabalharem juntos, muito a contragosto do pai, que no queria ver os filhos seguirem carreira artstica. O primeiro trabalho que fizeram juntos foi em 1960, quando Jobim foi chamado para fazer a trilha de um documentrio de uma rede de TV americana sobre o Rio de Janeiro. Nessa histrica seo, ocorreu a primeira gravao da ento indita S tinha de ser com voc, e contava ainda com a participao de msicos experientes como Paulo Moura (saxofone), Amauri (percusso), Raul de Souza (trombone), Pedro Paulo, Tio Neto (baixo) e Milton Banana (bateria).

O VIOLONISTA ...Baden e Joo, os pais do meu violo...

A primeira grande influncia musical de Dori foi o seu prprio pai, que no s um dos mais importantes compositores da nossa msica popular, como tambm um exmio violonista. Dorival tinha uma concepo harmnica avanada para a sua poca, e buscava em seu instrumento, o uso de tenses e acordes menos comuns, como ele mesmo admite9 (apud RISRIO, 1993, p.15).Eu, por conta prpria, sempre tive tendncia para alterar os acordes perfeitos. Tirava o dedo de uma corda e punha em outra, procurando a harmonia diferente. Prefiro sempre as stimas, nonas, inverses de acordes. Desde pequeno acho que o som deve ter outra beleza alm do acorde perfeito. Papai dizia que o meu arpejo, a maneira de puxar as cordas do violo de uma raspada s, no era correta.

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O autor transcreve a afirmao sem citar a fonte bibliogrfica.

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O aspecto rtmico da sua execuo, tambm significativo, talvez mais ainda do que a sua harmonia, ao menos na opinio do filho: Baden Powell e eu tentamos, inutilmente, descobrir o jeito sestroso do violo de Dorival Caymmi. Eu compenso essa frustrao complicando a harmonia de sua msica10. No entanto, a inevitvel comparao com Dorival, fez com que Dori se mantivesse longe do violo at quase os quinze anos de idade, optando pelo piano, instrumento com o qual nunca teve muita afinidade, terminando por abandon-lo. Embora reconhea a influncia do pai, para ele, a gnese do seu violo, vem de Joo Gilberto e Baden Powell. ... Baden e Joo, os pais do meu violo. E eu da criei o meu estilo de violo11. Ele teve a oportunidade de acompanhar Joo Gilberto de perto, antes ainda da fama, j que Joo freqentava sua casa, como conta Nelson Motta (2001, p. 42):

Como Joo [Gilberto] visitava [Dorival] Caymmi freqentemente e cantava durante horas para ele, Dory desfrutou o privilgio de ver, ouvir e aprender com quem tinha inventado tudo. Tocava violo o dia inteiro e acompanhava a irm Nana nos shows e festinhas com harmonizaes modernssimas para canes de Tom Jobim e de Caymmi.

Essa foi sua maior influncia no violo. Ele ficou fascinado com as harmonias elaboradas e com o ritmo sutil que saa do violo de Joo Gilberto e procurou imit-lo. A influncia ntida em suas primeiras gravaes. Para Dori, esse contato com a msica de Joo Gilberto foi muito importante para que ele buscasse um caminho prprio, libertando-se assim da influncia do pai. A outra grande e definitiva influncia foi Baden Powell. Dori ouvia seus discos e o assistia tocando ao vivo. Numa dessas vezes ele pde observar Baden afinando a primeira

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CAYMMI, Dori. Influncias. 1 CD com encarte. CAMMY, Dori. Entrevista em 16/10/2005

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corda do seu instrumento (mi), em si, em unssono com a segunda corda. Isso motivou a sua curiosidade, o que acabou levando-o a descobrir uma nova sonoridade e seguir numa direo que se tornaria sua marca registrada.

Primeiro disco

Em outubro de 64, lanado pelo selo Elenco o disco Caymmi visita Tom e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo. Trata-se de sua primeira participao em disco, atuando ainda s como instrumentista, numa colaborao de toda a famlia com Tom Jobim. O disco foi produzido por Aloysio de Oliveira, que teve a idia de juntar dois grandes nomes da nossa msica, como j tinha feito no passado com o prprio Dorival e Ari Barroso. O grupo de apoio era formado por Dom Um Romo (bateria), Edison Machado (bateria) e Srgio Barroso Neto (contrabaixo), msicos que eram associados bossa-nova, alm de Danilo Caymmi em sua estria na flauta, Dori ao violo, Nana e a me Stella que voltava a cantar depois de anos de ausncia e Tom Jobim ao piano. Neste trabalho, a influncia mais ntida no violo de Dori Joo Gilberto. A batida da bossa-nova, normalmente atribuda a ele, predomina por todo disco. Outras influncias podem ser notadas, como por exemplo, no solo de chord melody12 que acontece na msica Vai de Vez (Roberto Menescal/Roberto Freire) e o uso de escala blues13, o que seguramente demonstra que Dori j ouvia msicos americanos, entre ele

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Chord melody um termo usado por msicos de jazz para designar solos de acordes em bloco, especialmente na guitarra ou violo, com uma melodia em destaque na nota soprano do acorde. 13 Na tonalidade de C, seria C Eb F F# G Bb.

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Barney Kessel, em sua antolgica gravao de Cry Me a River, acompanhando a cantora Julie London14.

precioso tambm o exemplo em que seu violo est em destaque, quando acompanha, sozinho, a me, na faixa Cano da Noiva (Dorival Caymmi). uma execuo eficiente, mas ainda simples, perto do que ele viria a fazer. J na abertura da faixa Berimbau (B. Powell/ V. de Moraes), podemos observar Dori harmonizando para o irmo Danilo e fazendo uso de cordas soltas e acordes mais complexos, como F#7sus4 (numa abertura menos usual), F#7(#11), C#7#5 e B7b9(#11).

Dori admite a influncia em seu site < http://www.doricaymmi.com> Alm dele, muitos msicos da poca se disseram influenciados pela gravao, como o professor Hilton Jorge Valente (Gog), que comenta o fato de Barney Kessel utilizar uma concepo harmnica inovadora para a poca.

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O violo de Dori foi rapidamente notado e admirado por seus contemporneos, que o associavam bossa-nova. De fato, podia-se notar a influncia de Joo Gilberto, como relata Caetano Veloso (1997, p.181):Dori, meu amado arranjador de Domingo [...] e sobretudo o melhor violo de bossa nova na linha de Joo Gilberto fora o prprio Joo Gilberto

O jornalista Nelson Motta, que acompanhou o movimento de perto e escreveu letras para as primeiras canes de Dori diz o seguinte: Marcos Valle e Edu Lobo eram compositores de muito talento e tocavam violo muito bem, embora no tanto quanto Dory... (2001, p.42). O prprio Tom Jobim chegou a dizer para Edu Lobo, ao v-lo tocar violo: esses acordes so do Dori. E mais: eu sei, eu identifico o Dori, no vem no, eu conheo o Dori. Esse violo do Dori15. Os comentrios de Tom Jobim mostram no s o respeito que Dori havia angariado no meio musical, como a sua originalidade, que seria consolidada ao longo de sua carreira.

O ARRANJADOR Primeiros trabalhos no teatro

Mais ou menos na mesma poca em que comeou a atuar como instrumentista, Dori iniciou seus trabalhos como arranjador16. Ele, que ao longo de sua carreira fez inmeras trilhas para o cinema e para a televiso, comeou trabalhando no teatro.

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CAYMMI, Dori. Entrevista concedida a Luiz Roberto Oliveira e Srgio Lima. O termo arranjo, neste trabalho, ter significado semelhante quele empregado por Lima Jnior, que situa a atividade de realizao do arranjo muito mais prxima do exerccio composicional, ao invs de associ-lo prtica da transcrio. (2003, p.18). Faremos tambm distino entre arranjo de base (arranjo restrito seo

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Um de seus primeiros trabalhos profissionais foi com o Grupo dos Sete, uma importante companhia formada por sete atores, entre os quais Fernanda Montenegro e seu marido Fernando Torres. O grupo representava peas baseadas em obras da literatura, apresentando-se em um programa ao vivo transmitido pela televiso, j que ainda no havia no Brasil o sistema de vdeo-tape. O grupo musical era formado por Dori, ao violo, um flautista e dois percussionistas. Em seguida, Dori fez a direo musical do espetculo de grande impacto ideolgico Opinio, que ficou em cartaz no Teatro de Arena do Super Shopping Center, na rua Siqueira Campos, em Copacabana, de 10 de dezembro de 1964 at 23 de agosto de 1965. O musical tinha texto de Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa e foi dirigido por Augusto Boal. As msicas eram em sua maioria de Z Ketti e Joo do Valle, que dividiam a frente com Nara Leo (substituda durante um perodo por Maria Bethnia). Dori, alm da direo musical, tocava violo frente de uma banda reduzida, formada por Carlos Guimares (flauta), Francisco Arajo (bateria) e Iko Castro Neves (baixo)17. Mais de 100.000 pessoas assistiram ao espetculo (CAYMMI, S. p. 401). O pas acabara de entrar na ditadura, e eram interpretados trechos como: Podem me prender / Podem me bater / Podem at deixar-me sem comer / Que eu no mudo de opinio, de autoria de Z Ktti. Em seguida, Dori fez a direo musical da pea de Gianfrancesco Guarnieri, Arena Canta Zumbi, tambm de forte carter ideolgico. O texto da pea, que estreou em maio de 1965 em So Paulo (CASTRO, 1990, p.356), inclua inmeras mensagens subliminares

rtmica, ou seja, baixo, bateria, violo, guitarra, piano, etc.) e orquestrao, arranjo que especfico para de naipes de orquestra (cordas, madeiras e metais). 17 Esta foi a formao da ltima apresentao, registrada em disco. Dori relata que muitos msicos participaram desse grupo de apoio.

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com o intuito de driblar a censura fazendo analogia entre a escravido e a ditadura. As msicas, que eram de autoria do ento jovem Edu Lobo, fascinaram Dori pela sua beleza.

Primeiros trabalhos como orquestrador

Como vimos, o primeiro registro em disco de Dori foi como instrumentista, embora ele j estivesse atuando como arranjador e diretor musical em outros trabalhos. Aps essa primeira incurso na indstria fonogrfica, ele comea a ganhar destaque tambm como orquestrador, devido aos seus arranjos para os primeiros trabalhos de Edu Lobo. Dori escreveu o arranjo de base18 em Pra Dizer Adeus, composio de Edu Lobo e Torquato Neto, presente no disco Edu e Bethnia, de 1966, tambm produzido por Aloysio de Oliveira para o selo Elenco. Seu violo discreto, bem executado e com uma concepo harmnica moderna para a poca, devido ao uso intervalos de segundas menores, acordes com stima e nona aumentada 7(#9) e movimento de stima maior para stima menor em acordes com nona aumentada 7M(#9) 7(#9), numa progresso que seria empregada posteriormente pelo violonista Toninho Horta19. No disco, Edu Lobo tambm participa como violonista ao lado de Dori, mas no muito clara a distino entre ambos. De qualquer maneira, o estilo predominante aquele presente no disco Caymmi visita.... Edu e Dori eram e ainda so muito ligados. Dori o considera o msico com o qual tem maior afinidade dentre aqueles de sua gerao20.

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Na ficha tcnica da reedio em cd deste disco, pela Universal em 2003, consta, erroneamente como sendo de Dori a orquestrao de Pra Dizer Adeus. Em entrevista no dia 16/10/2005, ele desmente a informao, atribuindo a Lindolfo Gaya o crdito do arranjo de cordas na segunda parte da msica, admitindo ter criado apenas o arranjo de base. 19 Toninho, considerado um exemplo de sofisticao harmnica, utiliza a progresso em sua composio Pedra da Lua, presente no seu disco Terra dos Pssaros, de 1979, lanado pela Warner Music. 20 Caymmi, Dori. Entrevista concedida a Hugo Sukman, do Jornal O Globo, em abril de 2003.

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Juntamente com Marcos Valle, formaram um trio vocal com arranjos de Dori. O trio cantava quase sempre em unssono, abrindo as vozes em algumas ocasies. O repertrio era formado por msica brasileira moderna, incluindo composies de Edu Lobo e Marcos Valle. Dori no possua ainda uma msica que pudesse ser interpretada pelo grupo. Eles chegaram a tocar na TV Rio, no programa apresentado pelo cantor Lcio Alves, a convite dele prprio, interpretando peas como Sonho de Maria (Marcos Valle/ Sergio Valle), (MOTTA, p. 43). O disco seguinte de Edu Lobo, intitulado Edu, de 1967, foi produzido por Joo Mello para a Philips e conta com quatro arranjos de Dori: Jogo de roda, Candeias, Canto Triste e Meu Caminho. perceptvel a influncia de Gil Evans, um dos seus arranjadores preferidos21. O exemplo mais claro est em Jogo de roda onde os metais harmonizam em posio fechada e em Canto Triste. Na reedio em cd deste disco, em 2003, pela Universal, Edu tece alguns comentrios no encarte. Sobre este arranjo, diz o seguinte22:

Neste arranjo tem tambm a paixo minha e do Dori pelo trabalho de Gil Evans. Aquela coisa de escrever para sopros como se fosse cordas, aquela genialidade de Gil Evans, que nunca mais teve nada parecido.

Outra caracterstica que pode ser observada um uso discreto da seo rtmica, com inseres espordicas do naipe de cordas, freqentemente com unssono nos violinos e violas. Essa escrita para cordas, presente nos primeiros trabalhos de Dori, uma possvel influncia do arranjador Nelson Riddle, como conta Edu, em referncia ao arranjo de

21 22

Ele conta que at hoje escuta seus discos, em especial Miles Ahead, de Evans com Miles Davis. LOBO, Edu. Edu Lobo, Universal Music, Dubas Edition, Rio de Janeiro, reedio em 2003. 1 CD com encarte (lanamento original em 1967).

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Canto Triste: Esse arranjo do Dori bem tpico da poca do disco do Frank Sinatra com Nelson Riddle, ... For Only The Lonely, que a gente ouvia sem parar23. Dori admite ainda a influncia de Johnny Mandel, a quem homenageou em seu disco Cinema: A Romantic Vision, ao gravar sua composio The Shadow of your Smile: Ento eu ouo mais o Johnny Mandel como arranjador, como forma, como estrutura. A entra o arranjador americano, que tem um peso...24 Trabalhos com os Tropicalistas

Ainda em 1967, Dori teve a oportunidade de trabalhar com os lderes do movimento que viria a ser chamado de Tropiclia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Dori e Caetano se conheceram na Bahia em meados dos anos sessenta, e por influncia do primeiro, junto a Joo Arajo, ento diretor artstico da gravadora Philips, Caetano gravou seu primeiro disco long play,25 em parceria com a cantora Gal Costa. Arajo ainda no os julgava prontos para um disco solo (VELOSO, 1997, p. 125). Esse disco foi produzido por Dori, que dividiu os arranjos com Francis Hime e Roberto Menescal. O disco Domingo foi lanado em 1967 e podemos ouvir os arranjos de Dori nas msicas Corao Vagabundo, Candeia, Onde Eu Nasci Passa Um Rio e Zabel. Os arranjos desse disco so mais econmicos do que aqueles feitos para Edu Lobo, no que tange orquestrao. A diferena tambm perceptvel em relao aos arranjos de Hime e Menescal. Caymmi parece estar mais em sintonia com a bossa-nova, trazendo uma certa leveza para os seus arranjos. Eles possuem o seu trao tpico da poca, ou seja, sesso

23 24

LOBO, Edu. Op. Cit. CAMMY, Dori. Entrevista em 16/10/2005. 25 Caetano j havia anteriormente gravado um compacto.

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rtmica discreta e emprego intermitente dos naipes de cordas e sopros, deixando espao para a sesso rtmica e para o cantor. As flautas aparecem em destaque em algumas msicas, como Corao Vagabundo e Onde Eu Nasci Passa Um Rio, numa freqente abertura de vozes com uso de intervalos de segundas, num indcio da j anteriormente mencionada influncia de Gil Evans. Dori demonstra uma predileo por arranjos limpos, onde a voz aparece quase que sozinha, sendo acompanhada em grande parte somente pela seo rtmica, normalmente, violo, baixo e bateria. Seu violo tambm perceptvel na introduo de Corao Vagabundo, Quem Me Dera e em Nenhuma Dor, nas quais reafirma a linha meldica descendente que possivelmente apreendeu das audies de Villa-Lobos26, alm do emprego de intervalos de segunda na distribuio das vozes.

Caetano considera a participao de Dori fundamental para o resultado final do trabalho, que para ele foi o primeiro produto do grupo baiano que ostentava liberdade em relao aos vcios musicais da poca (VELOSO, p. 156). Dori foi responsvel tambm por alguns arranjos do primeiro disco de Gilberto Gil, Louvao, lanado pela Phillips em 1967. Ele escreveu os arranjos de Maria,

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Trecho semelhante, que um clich do perodo barroco, pode ser encontrado na parte B do Preldio n3 em L menor, de Villa-Lobos.

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Procisso e Beira-mar. O restante do disco foi divido entre Carlos Monteiro de Souza e Bruno Ferreira. Apesar desse primeiro contato, Caymmi foi um crtico severo da Tropiclia. Ele, assim como outros msicos (principalmente Francis Hime e Edu Lobo), considerava inaceitvel a ligao dos tropicalistas com o rock e a msica pop, para eles, submsica (MOTTA, pp.170-1). Em uma histrica reunio na casa de Srgio Ricardo, onde se reuniam, entre outros, Dori, Chico Buarque, Francis Hime, Edu Lobo, Sidney Miller, Paulinho da Viola, e os tropicalistas Torquato Neto, Capinam, Caetano e Gil, Dori reagiu fortemente ao discurso de Gil e Caetano, que apresentavam aos colegas os seus ideais tropicalistas (CALADO, 1997, p.99). Isso talvez explique o desentendimento posterior entre Dori e Caetano, durante a gravao do disco Tropiclia, onde Caetano gravaria Dora, de Dorival Caymmi, acompanhado somente pelo violo de Dori. Houve um atrito entre os dois no estdio e o filho de Dorival abandonou a gravao sem ter ao menos registrado um take27 sequer (VELOSO, p.181). Esse episdio nos mostra a personalidade forte e autntica de Dori, que algum que no costuma trair seus princpios. Nesse ponto, Dorival exerceu forte influncia sobre o filho, dizendo-lhe para nunca tocar msica comercial, a menos que fosse absolutamente necessrio. Dori aprendeu com o pai que no se vende a dignidade por dinheiro algum28.

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Take o mesmo que tomada, ou seja, cada uma das gravaes que se faz de uma msica, em uma mesma sesso de gravao. 28 CAYMMI, Dori. Cf. entrevista concedida a Bruce Gilman.

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Outros arranjos

Dori teve tambm a oportunidade de trabalhar com outros artistas que estreavam na poca. Uma das suas primeiras participaes foi com a cantora Nara Leo, tocando violo e escrevendo os arranjos para duas composies de Chico Buarque, Pedro Pedreiro e Ol, Ol, gravadas por ela no disco Nara Pede Passagem, lanado pela Phillips em 1966. Pode-se reconhecer o violo de Dori atravs da escolha dos acordes e da rtmica ainda bastante influenciada por Joo Gilberto. Os dois arranjos so construdos basicamente sobre seu violo acompanhado por um pandeiro, com algumas inseres de cordas em Ol, Ol. No primeiro disco da cantora Joyce, lanado em 1968, tambm pela Phillips, Dori divide a batuta com o experiente Lindolfo Gaya, sendo responsvel pelos arranjos das canes Me Disseram, Cantiga da Procura, Ansiedade, Bloco do Eu Sozinho e Anoiteceu. As cordas comeam a ter um destaque maior, vindo a ser posteriormente uma especialidade sua. O destaque aqui fica para a introduo de Cantiga da Procura. As cantoras Cynara e Cybele, integrantes do Quarteto em Cy, tiveram uma experincia solo em 1968, num disco produzido e arranjado por Caymmi. O trabalho possui maior densidade orquestral que os anteriores, sugerindo uma maior familiaridade com a escrita dos diversos naipes, uma tendncia que seria observada tambm em seu primeiro disco solo. Neste trabalho, Dori tambm faz sua estria como cantor, em uma participao especial na faixa De Onde Vens, de sua autoria.

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O COMPOSITOR Festivais

A partir de meados dos anos 60 teve incio o perodo conhecido como Era dos Festivais, quando diversos compositores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Geraldo Vandr, Milton Nascimento e o prprio Dori Caymmi, tiveram a oportunidade de lanar suas carreiras. Ele j havia se lanado oficialmente como compositor atravs de Luiz Ea em 1964, que gravou duas de suas canes no disco Luiz Ea e Cordas, Velho Pescador e Amando, uma pea instrumental. Ainda naquele ano, a cantora Luiza que gravou somente um disco, pela gravadora RCA Victor tambm gravaria uma composio sua, com letra de Edu Lobo e arranjo de Moacir Santos. Trata-se de Meu Caminho, cano que seria regravada pelo prprio Edu, com arranjo de Dori, no disco Edu Lobo, de 1967, pela gravadora Phillips. Foram os festivais, entretanto, que o tornaram conhecido tambm como compositor. O primeiro festival a incluir uma msica sua foi o I FIC (Festival Internacional da Cano), em 1966. Saveiros era uma composio de Dori com letra de Nelson Motta, seu parceiro freqente no incio da carreira. A msica, interpretada por Nana Caymmi, causou grande impacto entre os msicos, por sua melodia complexa, mas possivelmente pelo mesmo motivo, desagradou o pblico, que a vaiou na final, quando foi anunciada como primeira colocada. Tendo alcanado o primeiro lugar na etapa nacional, Saveiros participou da final internacional do festival, ficando ento em segundo lugar. Isso ajudou no s a alavancar a carreira dos compositores, como tambm da cantora Nana, que gravaria seu primeiro disco logo em seguida. 36

No ano seguinte, outra msica da dupla Caymmi/Motta ganhou destaque. O Cantador foi uma das classificadas para o III Festival da TV Record, que tinha concorrentes fortes, como Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque), Alegria, Alegria (Caetano Veloso) e Ponteio (Edu Lobo/Capinam). O Cantador chegou final do festival, interpretada e posteriormente gravada por Elis Regina. A cano no ficou entre as primeiras colocadas, mas deu a Elis o prmio de melhor intrprete. A vencedora foi Ponteio, que Dori considerava, de fato, a melhor composio do festival29. No festival anterior, algo parecido havia acontecido, uma vez que elei tambm considerou a msica do amigo Edu Lobo, Canto Triste, a concorrente mais forte (MELLO, 2003, p.166). Como j foi dito, Dori possui grande admirao por Edu Lobo, e seu, o arranjo da primeira gravao de Canto Triste. Embora O Cantador no tenha alcanado o mesmo xito de Saveiros, a msica tornou-se uma das mais conhecidas e gravadas do repertrio de Dori, no s no Brasil, mas principalmente nos Estados Unidos. O msico Srgio Mendes, com o grupo Brasil 66, gravou a primeira verso em ingls, com letra de A. Bergman e M. Bergman, no disco Look Around, de 1968, lanado pela A&M. Essa verso fez com que a msica se tornasse conhecida naquele pas e depois fosse gravada em inmeras verses, vocais e instrumentais, por figuras importantes do jazz e muitos outros intrpretes, tais como, Sarah Vaughan, Carmen McRae, Dianne Reaves, Tuck & Patty, Al Jarreau, Earl Klugh, Natalie Cole, Diane Shuur, Gene Harris, Will Downing, Maureen McGovern, Barbara Montgomery, Joanie Sommers, Mark Murphy, Lou Watson, Carla Cook e Cyrus Chestnut, s para citar alguns. Aqui no Brasil, a gravao mais popular foi a de Elis Regina, mas tambm existem verses

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Informao colhida em entrevista por telefone em 2004.

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do prprio Dori, Joyce, Luiz Ea, Victor Assis Brasil, Leila Maria e Flora Purim, entre outros. No II FIC (Festival Internacional da Cano), em 1967, Dori e Nelson Motta participaram com a msica Cantiga, interpretada pelo MPB 4. A cano chegou s finais, mas acabou ficando em nono lugar. Caminho parecido trilharam as composies Dois dias, Rosa da gente, Beira vida, que participaram, respectivamente do III FIC (1968), IV Festival da MPB da TV Record (1968), IV FIC (1969), classificando-se para as finais, sem alcanar, no entanto, alguma premiao. Com exceo de Saveiros e O Cantador, Dori nunca gravou nenhuma dessas composies. A cano Dois Dias foi gravada por Srgio Mendes & Brasil 66, no disco Crystal Illusions de 1969, pela gravadora A&M. Rosa da Gente aparece em gravao da cantora Claudette Soares em seu disco homnimo de 1969, lanado pela Phillips. Beira Vida, por sua vez, foi gravada pelo ator Eduardo Conde, que tambm havia interpretado Dois Dias no festival. A intrprete de Beira Vida havia sido Beth Carvalho.

Outras gravaes

Outras canes de Dori merecem ser mencionadas, em especial De Onde Vens, que, como O Cantador, tambm recebeu inmeras verses. Foi gravada por Elis Regina que gravaria tambm O Cantador e Saveiros no disco Elis Especial, de 1968, pela gravadora Phillips; por Nara Leo, no disco Nara Leo de 1967, tambm pela Phillips; Cynara e Cybele tambm a gravaram em seu disco homnimo; Srgio Mendes fez sua verso em ingls com letra de Leni Hall, recebendo o ttulo de Where Are You Coming

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From, que se encontra no disco Ye-Me-Le, de 1969, ainda pela A&M. Dori gravaria a sua prpria verso da msica em seu primeiro disco. Srgio Mendes gravaria tambm com o conjunto Brasil 66, no disco Fool on the Hill, de 1968, a cano Festa, uma parceria de Dori com Nelson Motta. Caymmi s iria grav-la em 1980. Essa cano, juntamente com Dois Dias tem uma caracterstica inovadora, que o fato de ambas serem um baio, procedimento raro dentre os compositores cariocas daquela gerao, e que vai ser recorrente em sua obra posterior. Milton Nascimento tambm gravou uma composio sua no disco Milton Nascimento, de 1969. Trata-se de O Mar Meu Cho, que Dori viria a gravar no seu primeiro disco. Luiz Ea voltaria a gravar Dori em 1970, nos dois discos que gravou naquele ano, Brasil 70 e Luiz Ea, Piano e Cordas II. No primeiro, gravaria a j conhecida O Cantador e, no segundo, mais duas peas instrumentais ainda inditas de Dori, Nosso Homem em Trs Pontas e O Homem Entre o Mar e a Terra, que ele gravaria em seu disco de 1982. A primeira j havia sido gravada por ele em 1972; a novidade na segunda gravao a letra que a msica ganhou de Paulo Csar Pinheiro.

Segunda gerao da bossa-nova

Dori Caymmi comeou sua carreira no auge do movimento conhecido como bossanova, ou seja, no incio dos anos sessenta30. Como j foi dito, por ela foi influenciado, e com algum de seus protagonistas conviveu. Alguns autores o classificam como sendo de uma segunda ou nova gerao deste movimento, entre os quais se incluiriam tambm Edu Lobo,30

Luis Estevam Gava considera como auge do movimento, o perodo que vai de 1958 a 1962 (2002, p.25).

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Marcos Valle, Francis Hime, Eumir Deodato e Nelson Motta (CASTRO, 1990, p.356). A associao a Edu Lobo e Marcos Valle tambm confirmada por Nelson Motta, que escreve ...[Marcos Valle] era considerado com Dory Caymmi e Edu Lobo um dos maiores talentos da novssima gerao... (2001, p.43). Gilberto Mendes, em texto de 1967, reconhece O Cantador tambm como sendo conseqncia da bossa-nova:

A leveza rtmica, a mobilidade de O Cantador, com aquela exploso num arrebatador transporte meio tom acima, meio tom abaixo da mesma frase meldica final, tambm no teriam sido possveis sem o uso que a BN fez das modulaes distantes. (In CAMPOS, 1978, p. 137)

Entretanto, ao longo de sua carreira, Dori, paralelamente sua vertente bossanovstica, tambm caminhou em outra direo. Ele desenvolveu um tipo de cano de carter mais regional, em que observamos, com freqncia, a utilizao de harmonias tridicas e o emprego de modos, ritmos nordestinos, melodia tambm triadica e com notas repetidas, ou seja, caractersticas quase que opostas quelas normalmente atribudas ao gnero bossa-nova. Essa dicotomia bastante visvel na sua primeira fase a ser analisada no captulo seguinte.

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TRS FASES

Neste trabalho, sero estudados os discos autorais de Dori Caymmi, onze ao todo. Esses trabalhos foram lanados em um perodo de trinta anos (1972 2002) e, por uma questo metodolgica, sero divididos em trs fases principais:

1- Fase brasileira (1972-1980) 2- Fase americana (1988-1994) 3- Homenagens (1997-2002)

Como veremos, cada fase tem suas caractersticas distintas, sendo o propsito desse estudo identific-las e verificar quais foram as mudanas que se processaram ao longo do tempo, e quais caractersticas mantiveram-se inalteradas. Acima de tudo, esse estudo tem como objetivo comprovar a importncia de Dori Caymmi como um msico original e inovador, com uma srie de caractersticas singulares em sua maneira de compor, arranjar e de tocar violo, que fazem com que sua contribuio para a msica brasileira seja indispensvel. Fase brasileira

Nesse perodo Dori lanou trs trabalhos, batizando todos eles com seu prprio nome: Dory Caymmi (1972), Dori Caymmi (1980), Dori Caymmi (1982). Esses discos foram lanados enquanto morava no Brasil. Nesse perodo, alm de sua carreira autoral, ele exerceu intensa atividade como msico, participando de outros trabalhos, primordialmente como arranjador. 41

Em 1973 Dori participou do disco Matita Per, de Tom Jobim, escrevendo com ele os arranjos de guas de Maro e Matita Per. Tambm esteve presente nos trabalhos da irm, participando de quase todos os seus discos. Nana lanou no perodo discos como Nana Caymmi (1975), Renascer (1976) e Atrs da Porta (1977), pela gravadora CID (Companhia Industrial de Discos), ainda em 1977, Nana, pela RCA Victor, alm de Nana Caymmi (1979) e Mudana dos Ventos (1980), pela Emi-Odeon. Escreveu ainda arranjos para artistas como Geraldo Azevedo, em seu primeiro disco solo, de 1977, pela Som Livre e Sueli Costa, no seu disco Vida de Artista (1978), lanado pela Emi-Odeon. Dori continuou trabalhando com trilha sonora, tendo participado de filmes como Casa Assassinada (1971), de Paulo Csar Sarraceni (neste filme ele trabalhou em parceria com Tom Jobim), Tati, a Garota (1973), de Bruno Barreto e O Duelo (1974) de Paulo Tiago, alm de trabalhos para a televiso (Rede Globo de Televiso), incluindo as novelas Gabriela (1975) e O Casaro (1976), e tambm o seriado infantil Stio do Pica-Pau Amarelo (1977).

Dori Caymmi, 1972 Odeon MOFB 37132 Minha doce namorada (Nelson Motta - Dori Caymmi) 3 Velho pescador (Nelson Motta - Dori Caymmi) 4 Depois de tanto tempo (Nelson Motta - Dori Caymmi) 1 O cantador (Nelson Motta - Dori Caymmi) 5 Lenda (Dori Caymmi) (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 7 De onde vens? (Nelson Motta - Dori Caymmi) 8 O mar meu cho (Nelson Motta - Dori Caymmi) 9 Nosso homem em Trs Pontas (Dori Caymmi)

6 Evangelho

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Dori Caymmi, 1980 Emi-Odeon 064 422874

1 Guararapes (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 2 Porto (Dori Caymmi) 3 Alegre menina (Dori Caymmi) 4 Saveiros (Nelson Motta - Dori Caymmi) 5 Estrela da terra (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro)

6 Desenredo (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 7 A porta (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 8 Desafio (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 9 Festa (Nelson Motta - Dori Caymmi) 10 Tati, a garota (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro)

Dori Caymmi, 1982 Emi-Odeon 064 422899

(Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 2 Velho piano (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 3 Flor das estradas (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 4 Nosso homem em Trs Pontas (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 5 Desafio (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 6 Voc j foi a Bahia? (Dorival Caymmi)

7 Iluso (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 8 Negro mar (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 9 Evangelho (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 10 O homem entre o mar e a terra (Dori Caymmi)

1 Serra Branca

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Fase americana

No final dos anos oitenta, aps realizar um trabalho com Srgio Mendes nos Estados Unidos, Dori acabou se mudando para l, dando incio a uma nova fase em sua carreira, com trabalhos de caractersticas diversas daquelas observadas em sua primeira fase. Nesse perodo foram gravados quatro discos: Dori Caymmi (1988), Brazilian Serenata (1991), Kicking cans (1993), If ever (1994). Existe uma grande unidade entre as obras desse perodo, especialmente as trs ltimas, e novos procedimentos podem ser percebidos nas composies de Dori. Essas caractersticas sero analisadas no terceiro captulo. Essas duas primeiras fases so essencialmente autorais.

Dori Caymmi, 1988 Elektra Musician 60790-2

3 Lenda (Legend) (Dori Caymmi) 4 Obsession (Gilson Peranzetta - Tracy Mann - Dori Caymmi) 5 Velho piano (Like an old piano) (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 6 Guararapes (The Battle) (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 7 Porto (The harbor) (Dori Caymmi) 8 Desafio (Defiance)

(Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 9 Desenredo (The unravelling) (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 10 The river (Fernando Pessoa - Dori Caymmi) 11 Like a lover (Alan Bergman - Marilyn Bergman - Nelson Motta Dori Caymmi)

1 Gabriela's Song (Jorge Amado - Dori Caymmi) 2 Apario (The wraith) (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro)

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Brasilian Serenata, 1991 Qwest Records/Warner Music 670.9377

(Tracy Mann - Dori Caymmi) 4 Mercador de siri [The crab peddler] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 5 Ninho de vespa [Beehive] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 1 Amazon river (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 2 Trs curumins [Three young indians] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 3 The colors of joy 6 Toucan's dance (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 7 Flower of Bahia (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 8 Voc j foi Bahia? [Have you been in Bahia?]

(Dori Caymmi) 9 Medley: To my father (Dori Caymmi) Pescaria (Dori Caymmi) 10 Histria antiga [Brasilian serenata] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 11 The desert (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) The Wraith (Dori CaymmiPaulo Csar Pinheiro) 12 Amazon river [Reprise] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro

Kicking Cans, 1993 Qwest Records/Warner Music 945 184-2

6 Kicking cans (Dori Caymmi) 1 Migration (Dori Caymmi) 2 Forever lover and friend (Dori Caymmi) 3 It's raining (At buriti farm) (Dori Caymmi) 4 From the sea (Dori Caymmi) 5 Brasil (Aquarela do Brasil) (Ary Barroso) 7 Spring (Dori Caymmi) 8 Northeast (Dori Caymmi) 9 Hurricane country (Dave Grusin) 10 My countryside (Dori Caymmi)

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If Ever, 1994 Qwest Records/Warner Music M945604-2

1 Send in the clowns (Stephen Sondheim) 2 Irresisible [Jogo de cintura] (Dori Caymmi) 3 The pilgrimage [Romeiros] (Dori Caymmi) 4 Flute, accordion & viola [Flauta, sanfona e viola] (Dori Caymmi) 5 Homesick for old Rio [Saudade do Rio] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro)

6 Ogum knows better [Ogum quem sabe] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 7 Seaweed [Sargao mar] (Dori Caymmi - Dorival Caymmi) 8 We can try love again (Tracy Mann - Dori Caymmi) 9 The moon [A lua] (Dori Caymmi - Paulo Csar Pinheiro) 10 If ever (Tracy Mann - Dori Caymmi)

Homenagens

Aps a morte de Tom Jobim em 1994, Dori encerra sua fase autoral e lana uma srie de discos onde presta homenagens, respectivamente ao pai, aos compositores de trilhas de cinema, s suas influncias e aos seus contemporneos: Tome conta do meu filho que eu tambm j fui do mar (1997), Cinema: a romantic vision (1999), Influncias (2001), Contemporneos (2002). Nessa fase, o estudo dos arranjos passaria a ter preponderncia sobre os aspectos composicionais, uma vez que quase no encontraremos mais obras de sua autoria. Aspectos como rearmonizaes, o tratamento rtmico, sua concepo esttica, alm da utilizao de introdues, pontes e finais, se tornariam o foco de interesse. Isso ultrapassaria, no

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momento, o escopo previsto para esse trabalho, deixando para uma outra oportunidade, portanto, a continuidade dos estudos sobre a sua obra.

Tome Conta Do Meu Filho Que Eu Tambm J Fui Do Mar, 1997 EMI Music 8555772

(Dorival Caymmi) 4 A lenda do Abaet (Dorival Caymmi) 5 Quem vem pra beira do mar (Dorival Caymmi) 6 O vento [Vamos chamar o vento] (Dorival Caymmi) 7 doce morrer no mar (Dorival Caymmi) 8 A jangada voltou s (Dorival Caymmi)

9 Saudade de Itapoan (Dorival Caymmi) 10 Noite de temporal (Dorival Caymmi) 11 Sargao mar (Dorival Caymmi) 12 O mar (Dorival Caymmi) 13 Aca (Dorival Caymmi) 14 Cano antiga (Dorival Caymmi)

1 Promessa de pescador (Dorival Caymmi) 2 O bem do mar (Dorival Caymmi) 3 Pescaria

Cinema: A Romantic Vision, 1999 Atrao Fonogrfica ATR 11074

3 I Believe I can fly (R. Kelly) 4 James Bond theme (Monty Norman) 5 Cinema paradiso (Andrea Morrisone - Ennio Morrisone) 1 Pink Panther (Henri Mancini) 2 My favorite things (Oscar Hammerstein Richard Rogers) 6 Something's coming (Stephen Sondhei - Leonard Bernstein)

7 Manh de carnaval (Antnio Maria - Luiz Bonf) 8 It might be you (Alan Bergman - Dave Grusin - Marilyn Bergman) 9 The shadow of your smile (Paul Francis Webster Johnny Mandel) 10 Raindrops keep falling on my head (Burt Bacharach - A. David)

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Influncias, 2001 Universal Music 325912001412

4 Da cor do pecado (Boror) 5 P do lageiro (Joo do Valle - Jos Cndido - Paulo Bangu) 6 Serenata do adeus (Vinicius de Moraes) 1 Conversa de botequim (Vadico - Noel Rosa) 2 Faceira (Ary Barroso) 3 Linda flor (Yay) (Ai, Yoy) (Cndido Costa - Henrique Vogeler - Marques Porto Luiz Peixoto) 7 L vem a baiana (Dorival Caymmi) 8 Copacabana (Alberto Ribeiro - Joo de Barro) 9 Acontece que sou baiano (Dorival Caymmi)

10 doce morrer no mar (Dorival Caymmi) 11 Berimbau (Baden Powell - Vinicius de Moraes) 12 A felicidade (Tom Jobim - Vinicius de Moraes) 13 Desafinado (Newton Mendona - Tom Jobim) 14 Migalhas de amor (Jacob do Bandolim) 15 Clair de lune (Claude Debussy)

Contemporneos, 2002, Universal Music 325912004932

3 Sampa (Caetano Veloso) 4 Ponta De Areia (Milton Nascimento Fernando Brant) 5 Lembra De Mim (Ivan Lins-Vitor Martins) 1 Coisas Do Mundo, Minha Nega (Paulinho Da Viola) 2 Januria (Chico Buarque) 6 Choro Bandido (Edu Lobo-Chico Buarque) 7 Viola Enluarada (Marcos Valle-Paulo Srgio Valle)

8 Essa Mulher (Joyce-Ana Terra) 9 Bala Com Bala (Joo Bosco-Aldir Blanc) 10 Co Sem Dono (Sueli Costa/P.C.Pinheiro) 11 Procisso (Gilberto Gil) 12 Flor Das Estradas (Dori Caymmi-P.C.Pinheiro)

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2 PRIMEIRA FASE

Dori, j conhecido e respeitado como msico, arranjador e compositor, viria a gravar seu primeiro disco somente em 1972, com o ttulo de Dory Caymmi. O disco estava fora de catlogo, e s recentemente, em 2002, foi lanada a verso em formato digital. Nesse trabalho, Dori reafirma sua ligao com Minas Gerais, com uma banda de apoio formada pelos msicos Wagner Tiso, Nelson ngelo, Novelli, Tavito, Robertinho Silva e Luiz Alves, ligados ao movimento conhecido como Clube da Esquina, alguns dos quais, tambm integrantes do grupo Som Imaginrio. No disco, Dori faz um registro pessoal de composies suas j anteriormente gravadas por outros artistas, como O Cantador, De Onde Vens, Velho Pescador, O Mar Meu Cho, Nosso Homem em Trs Pontas e Minha Doce Namorada, esta ltima gravada por Eduardo Conde para a novela homnima de 1971. Seu lado mais regional comea a despontar nas novas composies, como Evangelho, quando ele utiliza pela primeira vez a afinao EADGBB e em Lenda, em que podemos observar seu dedilhado utilizando cordas soltas, uma de suas marcas registradas, recurso tambm empregado em Nosso Homem em Trs Pontas. Dori no voltaria mais a gravar trabalhos prprios nos anos setenta, mas teve uma atuao intensa como arranjador e produtor. Trabalhou com Tom Jobim no disco Matita Per, colaborando com os arranjos de Ana Luza, Matita Per e guas de Maro. Produziu e arranjou todos os discos da irm Nana Caymmi neste perodo, sendo seis trabalhos ao todo. Fez arranjos para o disco de estria de Geraldo Azevedo e tambm para Sueli Costa no disco Vida de Artista, de 1978. Ainda neste ano participou do disco

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Camaleo, do amigo Edu Lobo, com destaque para o seu arranjo do Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos. Dori continuou mantendo sua ligao com o cinema e a televiso, participando das trilhas de filmes como Casa Assassinada (1971), de Paulo Csar Sarraceni, Tati, a Garota (1973), de Bruno Barreto e O Duelo (1974), de Paulo Tiago. Foi tambm diretor artstico da Rede Globo de Televiso, participando de novelas como O Casaro de 1976 e Gabriela, em 1975, tendo sua msica Alegre Menina includa na trilha, interpretada pelo ento desconhecido Djavan. Seu trabalho mais importante, entretanto, foi a direo musical do seriado Stio do Pica-Pau Amarelo, para o qual contribuiu com diversos arranjos e composies. Ele sempre foi ligado literatura brasileira e era essa a sua preferncia nos seus trabalhos para a televiso. Nunca demais lembrar a grande amizade entre seu pai Dorival e o escritor Jorge Amado. Dori, sobre esse tema diz o seguinte1:

Eu sempre fiz a parte nacionalista do [Stio do] Pica-Pau Amarelo, a parte ligada literatura brasileira. E isso porque eu me negava a fazer novela [...] A nica novela que eu fiz foi Gabriela, porque era Jorge Amado e tinha msica dele pra musicar, e eu fiz o Porto, que era o porto de Ilhus, foi pra essa novela.

Dori Caymmi 1980, o segundo disco

Seu prximo disco seria lanado somente em 1980. O trabalho, intitulado Dori Caymmi, seria um dos mais representativos de sua carreira, trazendo tona o seu lado mais regional. Esse disco, juntamente com o subseqente, lanado em 1982, foi agrupado

CAYMMI, Dori. Entrevista concedida em 16/10/2005. A msica a qual Dori se refere Alegre Menina, composio sua sobre um poema de Jorge Amado.

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em um nico CD e lanado pela EMI em 1994, estando ambos agora, passados mais de dez anos, fora de catlogo. A maior parte das anlises que se seguem sero sobre fonogramas extrados desse segundo disco, o mais importante da primeira fase. Nesse trabalho, Dori alcana seu lado mais pessoal, nas canes agrupadas como regionais. Nelas encontraremos o emprego do violo afinado com as duas primeiras cordas em si e tambm o uso abundante de cordas soltas. Podemos observar ainda ritmos nordestinos, harmonias tridicas e melodias sincopadas. A sua vertente mais ligada bossa-nova tambm est presente, dividindo a primeira fase em duas linhas centrais, conforme veremos a seguir.

Canes regionais e bossanovsticas

Os trs discos da primeira fase contm vinte e nove msicas, sendo que um dos fonogramas, a faixa Desafio, est presente nos dois ltimos trabalhos, reduzindo esse nmero, portanto, a vinte e oito fonogramas distintos2. Duas canes do primeiro trabalho, de 1972, encontram-se tambm no disco de 1982, em uma nova gravao. Trata-se de Evangelho e Nosso Homem Em Trs Pontas. No existe, entretanto, uma mudana significativa na concepo dos arranjos nessas novas verses, o que faz com que no seja necessrio consider-las para nossa anlise. Das 26 canes restantes, apenas uma, Voc J Foi Bahia?, no de autoria de Dori. Assim, sobram 25 canes originais e uma adaptao. Vamos tambm desconsiderar esse fonograma, j que o foco do trabalho so suas composies originais.

2

Desafio foi a msica de abertura da minissrie global Terras do Sem Fim, em 1981, fazendo com que a composio, por fora de mercado, fosse tambm includa no disco de 1982.

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Aps uma acurada audio e anlise das canes mencionadas, foi possvel classific-las em dois grupos com caractersticas bem distintas: a) canes regionais; b) canes bossanovsticas. Justificaremos essa diviso com exemplos musicais a seguir.

A) CANES REGIONAIS

As canes batizadas neste trabalho de regionais tm uma ntima ligao com as canes praieiras de Dorival Caymmi. Dori admite uma preferncia por esse gnero em relao aos sambas, dentre as composies do seu pai: O meu pai tinha uma coisa mgica na cano praieira, no no samba no. O samba eu nunca fui muito f3. O nordeste est muito presente nessas canes, atravs das letras, dos ritmos tpicos daquela regio, principalmente o baio e tambm no emprego de harmonias de carter modal, especialmente do modo mixoldio. Nessa categoria podemos incluir quatorze canes: Velho Pescador, Lenda, Evangelho, O Mar O Meu Cho, Nosso Homem Em Trs Pontas, Guararapes, Porto, Alegre Menina, Estrela Da Terra, Desafio, Festa, O Homem Entre O Mar E A Terra, Desenredo e O Cantador. Quatro caractersticas comuns esto normalmente presentes nas msicas acima, justificando seu agrupamento. Essas caractersticas so:

violo em destaque, explorando com freqncia o uso de afinao alternativa e/ou corda solta,

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CAYMMI, Dori. Op. Cit.

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ausncia de orquestra, seo rtmica mais evidente com a presena de instrumentos de percusso e ritmos nordestinos,

harmonia com predominncia de trades; uso de modos; emprego sistemtico de terceira inverso; ritmo harmnico lento,

melodia sincopada e com nfase em notas da trade inferior.

O VIOLO

Embora tenha sido respeitado como um representante da linguagem desenvolvida pela bossa nova, com o amadurecimento, Dori, tomou rumo bem diverso. Nessa sua vertente regional, seu violo quase sempre dedilhado ou tocado em pares de cordas, evitando os acordes em bloco, to comuns no estilo de Joo Gilberto, a quem costumava ser comparado. Ele busca com freqncia o uso de cordas soltas e est sempre encontrando aberturas e acordes pouco comuns. Na msica Lenda, de seu primeiro disco (cd faixa 2), encontramos um bom exemplo desse procedimento. Podemos observar o uso de movimentos paralelos, em que a horizontalidade do instrumento explorada atravs de posies fixas de acorde. Esse um recurso idiomtico de instrumentos de corda, muito explorado por Villa-Lobos em sua obra para violo. O violo, bem como a guitarra, em funo da sua mecnica, favorece esse tipo de abordagem. Uma mesma posio de acorde, e tambm de digitao, podem ser utilizados em diversas regies, alterando-se assim o registro, para o grave ou para o agudo, mas mantendo a relao intervalar entre as vozes. Isso ganha um sabor especial nesse caso,

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onde ao modelo mvel de acorde (moveable shape4), adicionado um pedal agudo, atravs da primeira corda solta. evidente que neste caso isso no utilizado de maneira aleatria. Existe um sentido harmnico claro, muito bem explorado pelo compositor, que intercala o modelo em questo com outros acordes, sempre fazendo uso de cordas soltas, ora a primeira, ora a segunda. O moveable shape em questo usado nos compassos um, trs e

cinco,

com resultados harmnicos diversos. Observe na

partitura que, nos trs casos, a nota emitida pela corda r funciona como nota de tenso que resolve meio tom abaixo (como uma quarta justa caminhando para a tera), fazendo o seguinte movimento meldico: d sustenido d natural, si l sustenido, sol sustenido sol natural. Os acordes resultantes dessas aberturas atpicas podem gerar controvrsia quanto sua interpretao, principalmente no quinto compasso. No nosso ponto de vista, a anlise harmnica mais coerente para os acordes encontrados seria:

|| C#m7(9) | Am6/C | E6/B | F#7/A# | Bbm7(b5)/Ab | A7(9) | Am7(9) | G#7(#9) ||

De acordo com este enfoque, a progresso harmnica utilizada nos ltimos quatro compassos, corresponderia a duas seqncias de II subV.

4

Moveable shape o termo utilizado em ingls para o recurso de se mover paralelamente (cromaticamente ou em quaisquer outros tipos de intervalos, como segundas maiores ou teras menores) uma relao intervalar, harmnica ou meldica. Em instrumentos de corda isso se torna mais simples, uma vez que possvel manter a mesma digitao.

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Na msica Nosso Homem Em Trs Pontas (cd faixa3), podemos observar a repetio da idia harmnica j observada em Lenda5. Alm de explorar a primeira corda solta, Dori faz contracantos em teras nas cordas intermedirias segunda e terceira, neste caso outra de suas prticas freqentes. Os acordes so bem fechados, recurso possvel graas ao uso de cordas soltas, no caso as duas primeiras, mi e si. O acorde resultante da abertura utilizada nos dois primeiros compassos um C#m com stima, nona e dcima primeira. Em seguida temos um Am/C com a stima maior se movimentando em direo sexta maior. A interpretao sobre qual o baixo, pode variar, uma vez que o mesmo no est presente, e a nota mais grave executada pelo violo no grave o suficiente para ser caracterizada como tal. Em nossa interpretao, a inteno do compositor utilizar um baixo cromtico descendente. Sob este enfoque, teramos na seqncia do E7M/B, um Bb7(#11), dominante substituto do acorde que d continuidade msica, um A7M. Assim, nossa cadncia poderia ser analisada da seguinte maneira:

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Talvez o correto seja o contrrio, j que Nosso Homem em Trs Pontas anterior a Lenda, ao menos em relao ao seu registro fonogrfico, tendo sido gravada por Luiz Ea em 1970.

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|| C#m7 | % | Am/C | Am6/C C | E7M/B | % | Bb7(#11) | % || A7M ...etc.

importante notar o efeito harmnico alcanado devido sustentao das notas, combinadas entre cordas soltas (primeira e segunda) e presas (segunda, terceira e quarta), estas executadas em uma posio aguda. Esse recurso conhecido como campanella e era muito utilizado em afinaes da guitarra no perodo barroco. Uma definio do termo nos dada por Vasconcelos, que descreve campanella como sendo qualquer passagem meldica cujas notas sejam executadas em cordas diferentes, fazendo com que elas soem umas sobre as outras (2002, pp. 20,94). J Lima Jnior entende o termo como o efeito resultante da combinao de sons tocados em cordas presas e soltas e o prolongamento desses sons provocando um batimento de suas ondas quando no caso de fragmentos utilizando-se de 56

graus conjuntos (2003, p.135). No nosso caso, campanella ser usada para designar toda passagem meldica (ou de acordes arpejados) que faa a combinao de cordas soltas e presas, com as notas sustentadas, como coloca Vasconcelos, sem necessariamente a ocorrncia de graus conjuntos, como consta na definio de Lima Jnior. A msica Desenredo (cd faixa 4), assim como O Cantador, nos remete ao lado mais mineiro de Dori, das toadas e canes tpicas de Minas Gerais. Elas se enquadram parcialmente na categoria regional desta primeira fase, possuindo em comum principalmente o violo em evidncia e a harmonia com poucas tenses. A cano j havia sido gravada por Nana Caymmi no disco Renascer, de 1976. Dori reaproveita na segunda verso, a mesma conduo de vozes empregada no arranjo da primeira, a despeito da mudana de tonalidade, demonstrado que a idia original no faz parte s do arranjo, mas de toda a concepo da composio. Ele utiliza mais uma vez o recurso da campanella, com uma alternncia de vozes, entre cordas soltas e presas. Dori repete diatonicamente a mesma idia aplicada ao primeiro grau, E um intervalo de sexta, seguido por outro de segunda e depois de tera um tom abaixo, utilizando-a no quinto grau, B, mantendo sempre como pedais agudos as duas primeiras cordas. O compositor, em entrevista, disse que seu intuito era simbolizar, atravs disso, o sino das igrejas de Minas Gerais. Curiosamente, Yates define o termo campanella como a superposio sonora, como sinos, de notas escalares criadas atravs do uso otimizado de cordas soltas e da digitao sucessiva em cordas adjacentes (YATES, 1999, In VASONCELOS, 2002, p. 94) Com freqncia observaremos em sua obra uma associao entre sons e imagens. Muitas de suas composies e arranjos buscam representar uma histria, um evento ou uma personagem, real ou imaginria. Lenda, por exemplo, representaria a histria de um casal 57

que flerta, trocando olhares, mas separado por um rio bravio. No fim, ela vira o moinho e ele o rio. Ou ento Trs Curumins, onde cada trecho da introduo representa um dos trs ndios, que seriam dois irmos e um primo. Ele, em relao composio se compara a um pintor, que v uma paisagem e pinta6. No demais lembrar que seu pai, Dorival, alm de msico tambm um exmio pintor.

Um dos exemplos mais representativos do violo de Dori encontra-se na msica Desafio (cd faixa 5). Nesta pea, executada uma figura rtmica de semicolcheias

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CAYMMI, Dori. Op. Cit.

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ininterruptas, sempre tocando uma corda solta (mi ou si) na primeira semicolcheia de cada tempo. No primeiro acorde (dois primeiros compassos), a linha meldica simples, com um movimento de vai e vem (ascendente e descendente), ganha beleza com a harmonia decorrente da sustentao das notas, s possvel graas ao uso da campanella. Essa melodia, com conseqncias harmnicas, no causaria o mesmo efeito caso fosse executada em outra digitao ou instrumento. No primeiro acorde, o resultado uma trade maior de si, com uma nona adicionada (Badd9), seguida de um B7 com a quarta adicionada, no terceiro compasso, ou ainda uma trade maior de l, com adio da dcima primeira aumentada, j que na terceira repetio, o B7add4 (ou A/B) substitudo pelo A. Logo depois surge um E7M(9) (numa abertura utilizando trs graus conjuntos, r sustenido, mi e f sustenido, em outro exemplo de campanella) e por fim um F#7sus4. A partir do terceiro compasso, a seqncia das cordas sempre da primeira em direo quarta, usando o dedilhado amip, at o retorno ao B.

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Para concluirmos essa etapa, analisemos a introduo de Saveiros (cd faixa 6), que mesma introduo usada em O Homem Entre O Mar E A Terra, num exemplo de reaproveitamento de material j utilizado7. Essa cano foi inserida em outro grupo (cano bossa-novstica), mas sua introduo possui algumas caractersticas desse grupo (regional), com destaque para o violo e o uso de harmonia modal. Encontramos a exemplos de acordes com corda solta e movimento paralelo de shape. A afinao DADGBE8.

O shape usado com a adio da primeira corda solta (E), primeiramente na segunda posio, resultando em um acorde de D7M/6/9 e depois na primeira posio,

7 8

Dori voltar a repetir o processo com Obsession e Amazon River, ambas de sua segunda fase. A afinao do violo ser sempre considerada da sexta (mais grave) para a primeira corda (mais aguda).

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gerando um acorde de sonoridade modal (elio) e cifragem imprecisa. Talvez esse acorde pudesse ser cifrado como Dm7(9)b6, ou ainda, Bbadd9(#11)/D.

Cego Aderaldo

Em 1968, o violonista Baden Powell, no seu disco 27 Horas de Estdio, lanado pela Elenco, faz uso de uma afinao pouco comum na msica Cego Aderaldo, mudando a primeira corda para si, ou seja, em unssono com a segunda, resultando assim na afinao EADGBB9. Dori ficou interessado pela sonoridade decorrente dessa afinao e comeou a pesquis-la, utilizando tambm a sexta corda afinada em r. Para ele, a novidade estava nas possibilidades advindas de se ter duas cordas com a mesma afinao na regio superior dos acordes. Com isso, faz-se possvel duas abordagens distintas:

a) Abordagem meldica: A primeira implicao derivada dessa afinao tem relao com o timbre, devido possibilidade de se ter a mesma nota executada, simultaneamente ou no, em cordas distintas. Nesse caso h duas possibilidades a serem exploradas. Em

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No demais lembrar para os no violonistas, que a afinao padro do instrumento EADGBE.

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primeiro lugar, a execuo de uma melodia em unssono nas duas cordas, provocando um efeito similar ao que ocorre com os instrumentos de corda dupla (como viola, bandolim ou violo de doze cordas), ou seja, um certo brilho no som, alm de um ganho de volume10. essa a abordagem que Baden Powell utiliza em Cego Aderaldo, e Dori, na introduo de Alegre, Menina. A outra variante seria a alternncia das duas cordas, ao invs de se toc-las simultaneamente, como poderemos observar em O Evangelho, analisada mais adiante.

b) Abordagem harmnica: Outra conseqncia dessa afinao est nas possibilidades decorrentes da nova abertura de vozes, que vai gerar acordes quase sempre com um intervalo de segunda em suas extremidades agudas, o que na maior parte dos casos seria impossvel ou de execuo muito difcil com a afinao tradicional. Por conseguinte, acordes incomuns ou mesmo inditos no instrumento, podero ser criados. Alm disso, como j foi exemplificado com a afinao tradicional, surgem outras possibilidades de uso de corda solta, tanto como nota pedal, quanto atravs da campanella.

O resultado das pesquisas de Dori com a nova afinao aparece j no seu primeiro disco, ainda que discretamente, na faixa Evangelho. O violo transcrito utiliza a afinao DADGBB. Observaremos tambm um outro violo, este com a afinao padro, responsvel por uma execuo mais convencional. Podemos verificar naquele violo a abordagem meldica atravs da repetio de nota nas duas primeiras cordas. A transcrio

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Existe um recurso eletrnico chamado chorus, muito popular entre guitarristas, que simula esse efeito atravs da ondulao da freqncia da nota emitida.

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abaixo apenas uma das possibilidades, j que nesse caso a execuo no to padronizada.

Na parte B da msica podemos encontrar tambm a abordagem harmnica. O acorde utilizado um E7sus4 com um intervalo de segunda menor entre a dcima terceira maior e stima menor, na ponta do acorde (cd faixa 7). Alm disso, o violo dobra a linha de baixo, num padro de conduo rtmica que se tornaria sua marca registrada. Esse aspecto ser discutido com maior profundidade mais adiante.

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Os recursos da afinao, utilizados por Dori em Evangelho, sero utilizados de maneira muito semelhante na faixa Porto (cd faixa 8), composta originalmente para a novela Gabriela de 1975. Na introduo da msica, ele explora a repetio de notas em cordas distintas. Atravs de um baixo r, emitido pela sexta corda solta (dobrada pelo baixo acstico), a execuo feita sobre r maior, alternando a tera maior e a nona do acorde na terceira corda e fazendo a repetio da quinta justa nas duas primeiras. O mesmo dedilhado, um tom abaixo, vai servir agora para A7sus4, alterando, entretanto, os graus do acorde. Na terceira corda, estar sendo tocada a quinta e a quarta justa do acorde, enquanto que a nota a ser repetida nas duas primeiras cordas passa a ser a stima menor.

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A sexta corda afinada em D faz com que seja possvel transpor o modelo de acorde

utilizado por Dori em Evangelho

para outras tonalidades, j que atravs da pestana

com o dedo 1, possvel tocar o baixo na ltima corda, o que seria impossvel caso ela fosse afinada em mi. Dori utiliza em Porto, a mesma posio de acorde em E, A e F#. O mesmo se d com a conduo rtmica, apoiada por uma linha de baixo em quintas, caminhando da fundamental, na sexta corda, at a nona, na quarta corda, passando pela quinta justa, na quinta corda.

O disco Dori Caymmi de 1980 de onde foi extrada a faixa precedente, alm de Desafio e Desenredo extremamente rico no aspecto violonstico. As trs primeiras faixas, Guararapes, Porto e Alegre Menina, usam a afinao com a primeira corda em si11 e adotam um procedimento semelhante no arranjo: cada uma delas utiliza na introduo com o violo o efeito meldico semelhante ao que Baden havia feito em Cego Aderaldo, com a diferena de uma quarta justa adicionada abaixo do unssono, o que resulta em um movimento de quartas paralelas.

Em Guararapes (cd faixa 9) Dori cria uma introduo muito original no modo mixoldio de l, explorando a repetio das duas primeiras cordas em unssono e utilizando um padro semelhante em trs posies distintas (IX, VII, V). Dessa maneira, alterna diatonicamente uma abertura de quintas ou sextas com outra em teras. O ritmo um pouco livre, o que faz com que a transcrio no seja completamente acurada neste aspecto. O

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EADGBB em Alegre Menina e Guararapes e DADGBB em Porto.

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baixo pedal em A est soando quase o tempo todo, sendo executado pelo contrabaixo, s vezes em dobra com o violo.

Na seqncia, o violo faz um padro de conduo que se mantm por toda a msica, seguindo a mesma idia harmnica da introduo, s que agora no tom de si maior. O desenho rtmico bem definido e a questo geogrfica do instrumento muito bem aproveitada, como podemos ver na transcrio. A nota sol, tocada na terceira corda solta, tem execuo quase imperceptvel e serve mais como apoio rtmico para a mo direita (cd faixa 10).

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Em Estela da Terra (cd faixa 11), repete-se a idia de semicolcheias ininterruptas vista j em Desafio, agora com a afinao EADGBB. Os acordes resultantes tm uma sonoridade especial, com pequenos intervalos entre as vozes, quase sempre teras ou segundas. Alguns deles tm uma sonoridade dbia, como um A7/D do sexto compasso, com dcima terceira (13) e quinta aumentada (#5) aplicadas simultaneamente. J no compasso doze encontramos um l com quarta justa (4) e quinta diminuta (b5). Por esse motivo evitaremos o uso de cifras, assinalando apenas as funes harmnicas, como referncia. Essa parte da msica construda inteira sobre um pedal em l, com a harmonia transitando entre os graus I, IV e V, no tom de r maior. O objetivo da anlise harmnica simplesmente localizar os graus, no importando tanto os acordes, e sim as funes principais. H um detalhe que no pode deixar de ser notado nessas transcries: o fato de que os bordes mi e l raramente so utilizados. O violo executado por Dori em suas canes regionais, se restringe na maioria dos casos s quatro primeiras cordas, deixando o polegar quase exclusivo corda r, o que pode ser verificado tambm nas outras transcries. No

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caso de Estrela da Terra, o movimento sempre do dedo anular, na primeira corda, em direo ao polegar, na quarta corda, ocorrendo reentrncia12 apenas no compasso doze.

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Nos instrumentos de corda, o recurso de se tocar uma nota mais grave em uma corda mais aguda, alterando a seqncia natural de alturas das cordas, conhecido como reentrncia. Isso pode ser observado em alguns acordes com a afinao EADGBB. Ver VASCONCELOS, p.76.

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O RITMO E A SEO RTMICA

Ausncia de orquestra

Com raras excees, em suas composies regionais Dori quase no faz uso de orquestra. Talvez o objetivo seja valorizar a seo rtmica e seu violo, o que de fato acaba ocorrendo. Das doze canes inseridas nesse grupo, somente Desafio tem a orquestra em seu arranjo, alm de uma insero discreta de cordas em Lenda, Festa e O Homem Entre O Mar E A Terra. Embora tambm tenham orquestrao, so composies com partes distintas em que a orquestra no se apresenta no momento regional de cada uma delas (parte B de Festa e parte C de O Homem Entre O Mar E A Terra). Essa caracterstica acaba valorizando o arranjo de base e quando o seu violo ganha destaque maior.

Seo rtmica

Nas composies regionais percebe-se uma maior riqueza de elementos rtmicos atravs do uso de instrumentos de percusso, de ritmos nordestinos e um destaque especial para a seo rtmica. Seu tipo de conduo preferida parece ser uma variante do baio, mas no exatamente a mesma coisa. A instrumentao diferente13 e a levada14 mais solta. O baixo, por exemplo, tem conduo bastante variada, nem sempre se prendendo ao queA instrumentao tpica de baio zabumba, acordeon, tringulo e eventualmente cco. O nico desses instrumentos presente com alguma regularidade na msica de Dori o tringulo. 14 Carlos Almada define levada como um termo do jargo musical usado para designar um tipo de frmula essencialmente rtmica, tocado em especial pela bateria e/ou baixo, que define claramente o estilo do arranjo. tambm usado com idntico sentido o termo ingls groove (2000, p. 99).13

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est escrito na partitura abaixo, que apenas uma das muitas possibilidades de execuo. A bateria marca sempre no aro, ao invs da caixa, e tem uma execuo padronizada, embora em momentos especficos possa haver variaes. O violo tem execuo discreta, dobrando o baixo com o bordo e tocando os acordes sem variaes, em semnimas.

Para efeito de comparao, vejamos como seria uma conduo de baio padro, transposta para o baixo e a bateria:

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Embora a linha de baixo seja muito semelhante, a da bateria consideravelmente diferente e mais leve. Essa leveza conseguida pela troca da caixa pelo aro e do lugar de ataque do bumbo, que passa a no mais acentuar a primeira semicolcheia dos tempos um e trs. O chimbau idntico nos dois casos e faz o papel do tringulo, com semicolcheias ininterruptas.

Em Porto a conduo da bateria quase idntica, mas o baixo menos marcado e est quase sempre flutuando, por meio da antecipao dos tempos dois, trs e quatro, num procedimento semelhante ao que feito na salsa.

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Podemos encontrar ainda outros exemplos desse tipo de conduo em Guararapes, Estrela da Terra, Festa, Evangelho, Desafio, O Homem Entre O Mar E A Terra, O Mar O Meu Cho, com pequenas variaes em um caso e outro, mas mantendo sempre a mesma essncia. Em Guararapes, por exemplo, a bateria substituda por diversos instrumentos de percusso, como congas, chocalho e berimbau, e o baixo mantm seu papel usual, marcando com firmeza a pulsao da msica.

Instrumentao

Nesse grupo de canes quase no encontramos o uso de piano acstico, sendo este substitudo pelo rgo ou piano eltrico. No primeiro disco, o rgo est sempre presente, e a nica faixa desse grupo que tem a presena de piano Velho Pescador, mas em acrscimo e no substituindo o rgo executado por Wagner Tiso. No segundo disco, o piano tambm quase no aparece, mesmo entre as canes bossanovsticas. Caymmi, nessa sua primeira fase, parece preferir o rgo, mais presente no primeiro disco, ou o piano eltrico, presente em grande parte das msicas dos dois ltimos discos dessa fase. No disco de 1980, o piano s est presente em Tati, A Garota. Tambm no disco de 1982 o piano s aparece, e com bastante discrio, na ltima faixa, O Homem Entre o Mar e a Terra, ainda assim acompanhado do piano eltrico. H de se considerar a possibilidade de que essa ausncia se deva a questes de natureza prtica, tal qual a inexistncia do instrumento em grande parte dos estdios de gravao no Brasil, j que nas demais fases da msica do compositor, sua presena constante.

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H exemplos de msicas onde nenhum tipo de piano ou teclado est presente, e s as cordas dedilhadas se responsabilizam pela harmonia, como Guararapes, Desenredo, Evangelho e Alegre Menina. O msico demonstra uma preferncia por uma seo rtmica limpa, sem acrscimo de muitos instrumentos. O seu violo tem um papel especial como j foi demonstrado. Sua execuo normalmente precisa e com um papel bem determinado. O contrabaixo, executado quase sempre por Luiz Alves, est sempre em evidncia e tem uma execuo um pouco mais livre. J a bateria de Robertinho Silva tem um comportamento mais discreto quando a percusso est presente, e outro um pouco mais vontade quando no h percusso.

HARMONIA E MELODIA

Dori Caymmi freqentemente associado bossa-nova e reconhecido por suas harmonias e progresses sofisticadas, mas em suas composies regionais nem sempre isso que ocorre. Algumas vezes as harmonias so simples e tridicas, bem como as melodias, e no fogem muito do campo harmnico. Encontramos tambm trechos com o