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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO A naturalização do atraso: os noticiários de El Universal e O Globo sobre o governo Hugo Chávez e as projeções identitárias sobre a América Latina Gláucia da Silva Mendes Juiz de Fora 2009

A Naturalização do atraso_Glauciada_Silva_Mendes.pdf

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO

    A naturalizao do atraso:

    os noticirios de El Universal e O Globo sobre o governo Hugo Chvez e as projees

    identitrias sobre a Amrica Latina

    Glucia da Silva Mendes

    Juiz de Fora 2009

  • 2

    Mendes, Glucia da Silva

    A naturalizao do atraso: os noticirios de El Universal e O Globo sobre o governo Hugo Chvez e as projees identitrias sobre a Amrica Latina / Glucia da Silva Mendes. -- 2009.

    230 f.

    Dissertao (Mestrado em Comunicao)-Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.

    1. Jornalismo. 2. Poltica. 3. Identidade. I. Titulo

    CDU 070

  • 3

    Glucia da Silva Mendes

    A naturalizao do atraso:

    os noticirios de El Universal e O Globo sobre o governo Hugo Chvez e as projees

    identitrias sobre a Amrica Latina

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Comunicao da Faculdade de Comunicao Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, como pr-requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Comunicao Social.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Figueira Leal

    Juiz de Fora 2009

  • 4

    SUMRIO

    INTRODUO

    12

    1 O DISCURSO DO ATRASO COMO TRAO CONSTITUTIVO DA

    REPRESENTAO IDENTITRIA LATINO-AMERICANA

    18

    1.1 Sistemas simblicos e relaes de poder na construo da representao

    identitria do colonizado

    20

    1.2 O discurso estereotpico sobre o latino-americano 27

    1.3 O atraso na representao identitria da poltica latino-americana

    37

    2 O JORNALISMO E A CONSTRUO / REPRESENTAO DA IDENTIDADE

    POLTICA DE UMA NAO

    48

    2.1 Jornalismo e construo de representaes identitrias 50

    2.2 A estereotipizao como estrutura discursiva do processo de construo da

    notcia

    54

    2.3 Jornalismo poltico na mdia massiva

    58

    3 DISPOSITIVO TERICO-METODOLGICO PARA A ANLISE DAS

    REPRESENTAES IDENTITRIAS CONSTRUDAS PELO JORNALISMO

    70

    3.1 Vertentes de anlise do discurso 71

    3.1.1 A teoria de Bakhtin 71

    3.1.2 A escola francesa de anlise do discurso 74

    3.1.3 A anlise crtica do discurso 77

  • 5

    3.1.4 A pragmtica anglo-americana 81

    3.2 Dispositivo analtico para o estudo das representaes identitrias jornalsticas

    84

    4 A REPRESENTAO DO GOVERNO HUGO CHVEZ NO JORNAL EL

    UNIVERSAL: A INCIVILIDADE COMO MARCA IDENTITRIA DO

    ATRASO

    89

    4.1 Agressividade 93

    4.2 Violao de Direitos Humanos 108

    4.3 Ilegalidade 127

    4.4 Concentrao de poderes 131

    4.5 Autoritarismo 140

    4.6 A incivilidade poltica como discurso subjacente ao noticirio de El

    Universal

    146

    5 A REPRESENTAO DO GOVERNO HUGO CHVEZ NO JORNAL O

    GLOBO: O MOTE DISCURSIVO DO ANACRONISMO

    150

    5.1 Agressividade 154

    5.2 Violao de Direitos Humanos 162

    5.3 Ilegalidade 171

    5.4 Concentrao de poderes 175

    5.5 Autoritarismo 182

    5.6 Personalismo 188

    5.7 Igualitarismo, em perspectiva anacrnica

    190

    6 A IDEOLOGIA LIBERAL NOS DISCURSOS DE EL UNIVERSAL E O GLOBO 198

  • 6

    6.1 A viso de mundo liberal 199

    6.2 Valores liberais nos discursos de El Universal e O Globo 201

    6.3 Escolha de fontes jornalsticas e explicitaes ideolgicas 205

    6.4 Recorrncias ideolgicas em outras coberturas

    208

    CONSIDERAES FINAIS

    215

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    220

    REFERNCIAS DE NOTCIAS ANALISADAS EM EL UNIVERSAL

    225

    REFERNCIAS DE NOTCIAS ANALISADAS EM O GLOBO

    232

  • 7

    RESUMO

    Os noticirios dos jornais El Universal (Venezuela) e O Globo (Brasil) sobre o governo Hugo

    Chvez - no ms que antecede o referendo de reforma constitucional venezuelana de 2007 -

    tm, na presente dissertao, suas estruturas discursivas analisadas para verificar a validade da

    hiptese segundo a qual as imagens identitrias projetadas pela grande mdia sobre governos

    latino-americanos anti-liberais reproduzem subliminarmente o discurso de um supostamente

    atvico atraso latino-americano, que se encontra na base de representaes essencialistas

    sobre as identidades poltica e do povo da regio. O trabalho parte de referenciais tericos nos

    quais as identidades so concebidas como construes sociais e simblicas regidas por

    disputas de poder e nos quais o jornalismo compreendido como uma atividade de

    (re)construo da realidade e, portanto, tambm de representaes identitrias. A anlise do

    material, realizada sobretudo com base nos fundamentos tericos e metodolgicos da escola

    francesa de anlise do discurso, revela que os jornais caracterizam o governo venezuelano no

    perodo com base em traos identitrios que reverberam, de forma explcita ou subjacente, a

    idia segundo a qual qualquer proposta poltica adversa ao corolrio liberal associa-se ao

    conceito de atraso.

    PALAVRAS-CHAVE

    Imprensa; Identidades polticas; Ideologia liberal; Amrica Latina; Hugo Chvez

  • 8

    RSUM

    Les actualits des journaux El Universal (Venezuela) et O Globo (Brsil) sur le gouvernement

    Hugo Chvez - dans le mois qui prcde le rfrendum sur la rforme constitutionnelle au

    Venezuela en 2007 - ont, dans cette disssertation, leurs structures discursives analyses pour

    vrifier la validit de l'hypothse selon laquelle les images identitaires projetes par les mass-

    mdias sur les gouvernements latino-amricains anti-libraux reproduisent subliminalement le

    discours dun supposement atavique "retard" de l'Amrique Latine, qui est base sur les

    reprsentations essentialistes de l'identit politique et de la population de la rgion. Le travail

    part de rfrences thoriques dans lesquelles les identits sont conues comme des

    constructions sociales et symboliques rgis par le pouvoir et dans lesquelles le journalisme est

    compris comme une activit de (re)construction de la ralit et, donc, aussi des

    reprsentations identitaires. L'analyse du matriel, principalement base sur des fondations

    thoriques et mthodologiques de l'cole franaise d'analyse de discours, montre que les

    journaux caractrisent le gouvernement vnzulien dans la priode sur la base des traits

    identitaires qui rpercutent, explicitement ou derrire, l'ide selon laquelle toutes les

    propositions politiques opposant le corollaire librale sont associes la notion de "retard".

    MOTS-CL

    la presse; les identits politiques, l'idologie librale, l'Amrique Latine, Hugo Chvez

  • 9

    LISTA DE TABELAS Tabela 1: Marcas discursivas que remetem agressividade e violao de Direitos

    Humanos no noticirio de El Universal 88 Tabela 2: Marcas discursivas que remetem ilegalidade, concentrao de poderes e

    ao autoritarismo no noticirio de El Universal 89 Tabela 3: Marcas discursivas que remetem agressividade e violao de Direitos

    Humanos no noticirio de O Globo 149 Tabela 4:

    Marcas discursivas que remetem ilegalidade e concentrao de poderes no noticirio de O Globo 150

    Tabela 5: Marcas discursivas que remetem ao autoritarismo, ao personalismo e ao

    igualitarismo anacrnico no noticirio de O Globo

    151

  • 10

    Aos meus pais, Luiz Carlos e Ilma,

    por terem me dado a oportunidade de estudar, que eles no tiveram

    Ao meu noivo Lcio,

    companheiro dessa e de outras jornadas

  • 11

    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Dr. Paulo Roberto Figueira Leal, a quem tenho imensa gratido no s

    pela dedicao demonstrada na orientao deste trabalho, mas tambm por ter contribudo

    para minha formao profissional desde a graduao. Agradeo, ainda, a oportunidade de

    conviver minimamente com uma pessoa to especial, para mim uma referncia profissional e

    humana.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), por ter

    me concedido bolsa de estudo durante todo o Mestrado, possibilitando minha dedicao

    exclusiva a essa importante etapa de minha formao.

    s professoras Dras. Iluska Coutinho e Cludia Lahni, pelas contribuies prestadas a

    este trabalho ao longo do curso e no Exame de Qualificao.

    Ao professor Dr. Wedencley, pelas crticas e observaes referentes anlise

    discursiva dos materiais aqui submetidos investigao.

    Ao professor Dr. Jairo Cesar Marconi Nicolau (Iuperj), por ter aceitado integrar a

    banca de defesa desta dissertao.

    Ao Lcio, por ter me amparado nos momentos mais difceis e mais importantes de

    realizao desta pesquisa.

  • 12

    INTRODUO

    A imitao dos modos polticos das naes tidas como avanadas sempre constituiu

    o horizonte pragmtico das elites latino-americanas. Vasta literatura aponta que, desde a

    independncia dos pases do continente, os modelos institucionais europeus/norte-americanos

    foram considerados paradigmticos pelas classes dirigentes regionais, mesmo que houvesse,

    na prtica, numerosas incompatibilidades entre os valores adotados e a realidade local.

    Sempre existiram, no continente, segmentos que se opuseram ou denunciaram tais

    mimetismos. Nos ltimos anos, contudo, cresceu significativamente o nmero de governos

    democraticamente eleitos ( exceo de Cuba) que se caracterizam por explicitar uma recusa a

    esse paradigma. De acordo com Bastenier (2009), a recente configurao poltica assumida

    pela regio instaura modos tipicamente latino-americanos de fazer poltica, que conspiram

    contra as vises hegemnicas entre as elites regionais.

    O autor identifica nesse novo panorama dois modelos principais: um de carter rgido,

    liderado pelo governo de Hugo Chvez, na Venezuela e seguido ainda por Evo Morales, na

    Bolvia; Ral Castro, em Cuba; e, de forma menos ortodoxa, por Rafael Correa, no Equador, e

    Fernando Lugo, no Paraguai - e um de estilo brando, representado especialmente pelo Brasil,

    mas integrado tambm por Argentina e Mxico.

    Segundo Bastenier (2009), o primeiro grupo se caracterizaria pela tentativa de tirar o

    poder das mos das elites e entreg-lo ao povo, promovendo uma verdadeira mestiagem /

    indigenizao da sociedade. O segundo ainda reivindicaria para si a representao dos

    valores polticos europeus, mas com nfase em algum grau de mudana: a transformao por

    ele protagonizada estaria centrada, sobretudo, na autonomizao da Amrica Latina, na

    independncia das esferas de deciso poltica regional em relao aos interesses europeus

    especificamente espanhis e norte-americanos.

  • 13

    Apesar de estabelecer essas diferenas, Bastenier (2009) defende que as duas vertentes

    convergem para o mesmo fim: a ruptura com os padres polticos ditados pelos pases

    centrais. Ele acredita que, em ltima instncia, experincias como essas conferem poltica

    latino-americana uma feio mais adequada realidade regional.

    Ao discorrer sobre tais transformaes histricas, o autor permite entrever a

    emergncia de um processo de reconstruo identitria poltica, no qual novas configuraes

    das relaes de poder regionais fazem com que certos discursos sobre a prtica poltica latino-

    americana cedam espao a outras formas de identificao.

    Justamente esse contexto que constitui o pano de fundo para o presente trabalho.

    Partindo do conceito de representao identitria, entendido como uma construo simblica

    configurada / reconfigurada por disputas ideolgicas, nas quais o detentor do poder de

    representao acaba por assumir o controle dos processos de (re)construo identitria

    (WOODWARD, 2000), procura-se aqui identificar as representaes efetivadas por

    importantes veculos de comunicao da regio sobre tais governos.

    Visto que, na atualidade, o jornalismo desempenha um importante papel na construo

    simblica da realidade poltica (GOMES, 2004), a pesquisa conduzida a partir da

    investigao das construes discursivas engendradas nos espaos informativos dos meios de

    comunicao latino-americanos, especialmente daqueles que constituem a grande imprensa,

    por serem hoje um dos principais agentes miditicos responsveis pela representao social.

    Em virtude do pertencimento da grande imprensa ao mundo dos negcios, parte-se

    aqui do pressuposto de que os produtos informativos produzidos por veculos dessa natureza

    reproduzem, de forma subjacente, as vises de mundo engendradas por representantes da

    cultura e da ideologia hegemnicas1.

    1 O termo hegemonia usado ao longo desse trabalho no sentido gramsciano: como uma forma de direo poltico-ideolgica, dotada de um certo grau de instabilidade (em virtude da coexistncia de foras contrrias), exercida por uma classe sobre outra(s) no apenas a partir do emprego da fora, mas tambm com um certo nvel de aceitao por parte da(s) classe(s) subjugada(s) (GRUPPI, 2000)

  • 14

    Com base nessas consideraes, lana-se a hiptese de que as representaes

    identitrias projetadas sobre tais governos pela grande imprensa reiteram subliminarmente a

    viso engendrada pela cultura e pela ideologia hegemnicas sobre outras prticas polticas

    tipicamente regionais que, em um nvel mais profundo, calcam-se em um discurso sobre a

    prpria essncia do ser latino-americano.

    Sob esta perspectiva, as especificidades polticas do continente seriam interpretadas

    como sinais de atraso, desvios em relao aos avanados valores e prticas institudos

    pelos modelos polticos europeus / norte-americanos. Atraso esse que, na viso de mundo

    hegemnica, decorreria da natureza dos povos da regio, como uma herana atvica da qual o

    continente no conseguiria se livrar por estar inscrita no gene de seus prprios habitantes.

    Para atestar ou no a validade dessas hipteses, realiza-se aqui uma anlise de

    discursos jornalsticos que tem por finalidade destacar os traos identitrios atribudos a

    governos dessa natureza e evidenciar em que medida eles contribuem para a reproduo

    subtextual dos discursos sobre o atraso da poltica e do povo latino-americanos.

    Estabelece-se como foco desta investigao o noticirio veiculado pelos jornais

    venezuelano El Universal e brasileiro O Globo acerca do governo Hugo Chvez. Como

    recorte emprico, define-se o perodo compreendido entre a aprovao, pelo Congresso

    venezuelano, e a votao em referendo nacional do projeto de reforma constitucional

    apresentado por Chvez em 2007 (3 de novembro e 2 de dezembro, respectivamente).

    Trabalha-se aqui, portanto, com a cobertura empreendida pelos veculos no perodo de

    discusso da proposta presidencial rejeitada pelos venezuelanos e no com a mais recente

    consulta popular para a realizao de alteraes constitucionais, ocorrida em fevereiro de

    2009, da qual Chvez saiu vitorioso.

    A escolha do governo que consiste no foco da presente pesquisa fundamenta-se no

    papel por ele assumido no fenmeno citado. Como reconhece Bastenier (2009), o presidente

  • 15

    venezuelano Hugo Chvez lidera o grupo de pases que contestam com mais veemncia os

    valores polticos implantados na regio pelas elites locais.

    J os veculos submetidos observao foram selecionados em virtude de sua

    relevncia. Tanto El Universal quanto O Globo ocupam um papel de destaque na grande

    imprensa latino-americana o primeiro considerado o maior jornal dirio da Venezuela e o

    segundo desponta como um dos principais veculos impressos brasileiros, alm de pertencer a

    um grande conglomerado de mdia latino-americano - e, enquanto tal, presume-se que sejam

    agentes capazes de reproduzir as vises de mundo engendradas pela cultura e pela ideologia

    hegemnicas.

    O estudo do material que constitui o recorte emprico realizado com base nos

    fundamentos conceituais e nos instrumentos disponibilizados pela anlise do discurso. Tal

    metodologia mostra-se adeqada aos propsitos ora traados por atribuir relevncia s

    determinaes scio-ideolgicas na produo discursiva e, por extenso, nos processos de

    construo de representaes identitrias.

    Integram a base terica que respalda essa anlise especialmente as reflexes

    empreendidas por autores filiados ao interacionismo simblico e aos estudos culturais. Por

    intermdio dessas duas vertentes do saber, procura-se evidenciar o carter simblico e,

    portanto, discursivo e contigente das representaes identitrias.

    Tais aspectos, associados concepo das representaes identitrias como entidades

    relacionais, construdas a partir de disputas de poder com um Outro perspectiva inerente aos

    estudos culturais -, permitem vislumbrar o supostamente natural atraso dos povos latino-

    americanos como uma construo discursiva sobre os habitantes nativos, engendrada

    inicialmente pelos colonizadores e reiterada, em diversos processos de reconstruo

    identitria, por representantes da cultura e da ideologia hegemnicas.

  • 16

    Esta explanao, realizada no primeiro captulo, complementada por referenciais

    tericos que evidenciam como a viso hegemnica sobre um modelo de governo peculiar

    regio - o populismo2 reproduz subliminarmente o discurso do atraso latino-americano,

    apresentando as especificidades polticas do continente como desvios de um padro

    supostamente objetivo, causados pela incivilidade das classes populares regionais.

    Tendo em vista esse contexto, o captulo dois discorre sobre o papel desempenhado

    pelo jornalismo nos processos de (re)construo de representaes identitrias polticas.

    Adota-se como ponto de partida dessa discusso autores que concebem a atividade jornalstica

    como um gnero de construo discursiva da realidade, cujos contedos criam laos sociais

    entre um pblico amplo e disperso.

    Em seguida, so apresentados os principais fatores organizacionais, profissionais e

    sociais que concorrem para a construo de sentidos no jornalismo. Procura-se, neste

    momento, destacar a contribuio de cada um deles para a conformao de uma realidade

    poltica e, por extenso, de representaes identitrias dos agentes imersos nessa esfera -

    perpassada por valores culturais e ideolgicos hegemnicos.

    O terceiro captulo dedica-se construo de um dispositivo terico-analtico

    adequado ao estudo das representaes identitrias engendradas pelos jornalismo. Com base

    em uma breve explanao acerca das principais vertentes de anlise do discurso, indica-se

    aquela cujos fundamentos conceituais estejam mais afinados com as bases tericas da

    presente pesquisa.

    2 O termo populismo empregado aqui no sentido atribudo por Weffort (2003): como um sistema poltico cujas principais caractersticas so o desenvolvimento de uma estrutura institucional de tipo autoritrio e semicorporativa, que assume uma orientao poltica de tendncia nacionalista, antiliberal e antioligrquica, uma orientao econmica de tendncia nacionalista e industrialista e sustentado por uma composio social policlassista, cujo apoio majoritrio advm das classes populares.

  • 17

    Apesar de explicitar a filiao do trabalho s concepes de uma dessas correntes, o

    captulo vislumbra a possibilidade de complementao, no que tange aos instrumentos

    metodolgicos, entre determinadas perspectivas de anlise do discurso. Em virtude disso, ele

    constri um dispositivo analtico que mescla ferramentas de origens distintas, capazes de dar

    conta das especificidades do texto jornalstico.

    A partir da aplicao dessas categorias analticas, o quarto e o quinto captulos

    realizam a anlise dos discursos produzidos pelos jornais El Universal e O Globo,

    respectivamente. Nesses momentos, demonstra-se como as estruturas discursivas presentes

    nos noticirios associam administrao chavista traos identitrios que reiteram

    subliminarmente o discurso do atraso subjacente a vises sobre as prticas polticas e os

    povos da regio.

    As principais marcas discursivas coligidas nessas anlises so, ento, retomadas no

    captulo seis, com o propsito de evidenciar a filiao dos sentidos propagados pelos veculos

    e, por conseguinte, das representaes identitrias sobre o governo Hugo Chvez por eles

    engendradas, aos valores ideolgicos hegemnicos.

  • 18

    1 O DIRCURSO DO ATRASO COMO TRAO CONSTITUTIVO DA

    REPRESENTAO IDENTITRIA LATINO-AMERICANA

    Ao observar diversas caracterizaes da populao latino-americana, empreendidas ao

    longo dos sculos, chama ateno a recorrncia de um atributo presente em tais construes

    discursivas: o atraso. Ele foi evocado, explcita ou subliminarmente, por Colombo e os

    conquistadores, em suas distines entre os espanhis e os povos nativos; pela elite crioula,

    como justificativa para a importao de padres culturais europeus; e mesmo pelos

    nacionalistas, cujos parmetros de projeto nacional bem-sucedido se encontravam alhures.

    A reincidncia com que tal trao identitrio aparece nesses e em outros pontos de vista

    acaba por atribuir-lhe ares de uma caracterstica natural, como se ele fosse constituinte da

    essncia dos povos do continente. O estreito e indelvel vnculo supostamente existente entre

    a latinoamericanidade e o atraso to pronunciado que impregna tambm vises sobre

    prticas peculiares regio. Ele encontrado, por exemplo, no cerne de interpretaes de

    modelos polticos que aqui vicejaram, como o sistema democrtico-popular conhecido pela

    alcunha de populismo.

    Na contramo desta perspectiva, o presente captulo objetiva evidenciar que tais

    discursos, naturalizados a ponto de serem internalizados nas narrativas que o latino-americano

    projeta sobre si mesmo (vide a assertiva o Brasil no tem jeito, assim mesmo, cujos

    similares se replicam continente afora), operam mais no nvel simblico do que na realidade

    objetiva.

    Estas peremptrias afirmaes sobre o que seriam, essencialmente, tanto o prprio

    latino-americano quanto a poltica aqui praticada (ambos, nesse rumo discursivo, sempre

    fadados ao atraso) configuram, como qualquer fenmeno identitrio, uma questo histrico-

  • 19

    cultural. Por esta razo, parte-se aqui do pressuposto de que a reiterada interpretao sobre os

    habitantes da regio consiste em uma construo discursiva engendrada especialmente por

    representantes da cultura e da ideologia hegemnicas e no em uma qualidade incrustada ao

    ser latino-americano.

    A explanao subseqente almeja, deste modo, apresentar referenciais tericos que

    ofertariam ferramentas conceituais capazes explicar por que contingncias da histria do

    continente so apresentadas como atributos naturais. O discurso do atraso, nessa hiptese,

    decorreria da repetibilidade do esteretipo colonialista sobre os habitantes da regio, efetuada

    ao longo de processos histricos de construo/reconstruo de representaes identitrias.

    Constituem a base da exposio empreendida nesse captulo os fundamentos tericos

    do interacionismo simblico e dos estudos culturais. Com o auxlio das duas vertentes, busca-

    se desmistificar o aspecto essencialista das identidades, evocando seu carter histrico e

    contingente. Estes so sustentados pelo argumento de que a construo de representaes

    identitrias encontra-se intimamente associada a processos sociais e simblicos e, portanto,

    tambm a relaes de poder e a disputas ideolgicas.

    Ambas concebem, ainda, a representao identitria como uma estrutura relacional,

    cuja construo no pode prescindir de um Outro. Considerando as disputas de poder

    envolvidas nessa relao, os estudos culturais tambm sustentam que as

    demarcaes/redemarcaes de fronteiras entre o Eu e o Outro so realizadas pelo detentor do

    poder de representao e conduzem instaurao/reiterao de caractersticas antitticas, que

    atribuem valores axiolgicos opostos aos grupos em disputa.

    Tal aparato terico permite, portanto, que se vislumbre o discurso do atraso como

    uma construo simblica sobre o latino-americano empreendida pela cultura hegemnica, a

    partir de sua prpria perspectiva, com o propsito de se afirmar como o padro universal de

    atribuio de sentido ao mundo, classificando outras vises como concepes desviantes.

  • 20

    Por fim, a sugesto dos tericos vinculados aos estudos culturais, no sentido de que a

    tentativa de essencializao das representaes identitrias resultado da repetio de

    discursos estereotpicos, ajuda a sustentar a tese de que o atraso associado ao ser e s

    prticas polticas latino-americanas encontra suas razes no discurso colonial e se perpetua

    pela incessante repetio do mesmo ao longo da histria e no em funo de caractersticas

    inerentes aos povos da regio.

    1.1 Sistemas simblicos e relaes de poder na construo da representao identitria

    do colonizado

    De acordo com as premissas do interacionismo simblico, a realidade humana uma

    construo social e simblica que resulta de um processo dialtico contnuo entre a estrutura

    institucional e a conscincia individual. Ela permanentemente modelada e remodelada por

    trs operaes de natureza simblica: a interiorizao, a exteriorizao e a objetivao

    (BERGER; LUCKMANN, 1996).

    Por interiorizao, entende-se a introjeo das regras e dos valores sociais na mente de

    cada indivduo pertencente a uma dada comunidade. A exteriorizao abarca as intervenes

    realizadas pelos sujeitos no mundo, sejam estas guiadas pelas expectativas da sociedade da

    qual fazem parte ou resultantes de anseios individuais. A objetivao, por sua vez, consiste

    em uma etapa na qual exteriorizaes do segundo tipo so acolhidas pela coletividade e, por

    conseguinte, destitudas de seu carter individual e incorporadas ao repertrio social como

    uma prtica objetiva.

    Cerne dessa dialtica, o sujeito , portanto, um ser ao mesmo tempo social e

    individual. George Mead (1953), um dos precursores da tradio sociolgica interacionista,

  • 21

    sustenta que cada sujeito constitudo por um mim (me), pelo conjunto organizado de

    atitudes sociais do grupo ao qual pertence, e por um Eu (I), um ente ativo que reage

    situao social de forma peculiar.

    Tal rplica nueva la situacin social involucrada en la serie de actitudes organizadas constituye el yo, en contraste con el m. El m es un individuo convencional, habitual. Est siempre presente. Tiene que tener los hbitos, las reacciones que todos tienen; de lo contrario, el individuo no podra ser um miembro de la comunidad. Pero el individuo reacciona constantemente a dicha comunidad organizada, expresndose a s mesmo, no necesariamente afirmndose en le sentido ofensivo, sino expresndose, siendo l mismo en el proceso cooperativo que corresponde a cualquier comunidad. Las actitudes involucradas son extradas del grupo, pero el individuo en quien se organizan tiene la oportunidad de darles una expresin que, quizs, nunca han tenido antes (MEAD, 1953, p. 222)3.

    Na constituio do sujeito, o mim antecede o Eu. Ao se integrar a uma

    coletividade, o indivduo primeiramente interioriza a ordem institucional vigente. Ele

    incorpora o processo social como um todo em sua experincia individual, adotando as atitudes

    comuns aos membros da coletividade e percebendo as aes dos outros indivduos em relao

    a ele e deles entre si. Em outras palavras, ele assimila o outro generalizado (MEAD, 1953),

    a estrutura social e as posies de sujeito que a compem. E, como conseqncia, tambm se

    localiza nessa estrutura, assumindo determinados papis sociais.

    Vale ressaltar que a interiorizao de identidades no um processo unilateral e

    mecanicista. Ela s se realiza porque h identificao: a personalidade uma entidade

    reflexa [...] implica uma dialtica entre a identificao pelos outros e a auto-identificao,

    entre a identidade objetivamente atribuda e a identidade subjetivamente apropriada

    (BERGER; LUCKMANN, 1996, p. 177).

    3 A rplica nova situao social envolvida na srie de atitudes organizadas constitui o Eu, em contraste com o mim. O mim um indivduo convencional, habitual. Est sempre presente. Tem que ter os hbitos, as reaes que todos tm; do contrrio, o indivduo no poderia ser um membro da comunidade. Mas o indivduo reage constantemente a dita comunidade organizada, expressando-se a si mesmo, no necessariamente afirmando-se no sentido ofensivo, mas expressando-se, sendo ele mesmo no processo cooperativo que corresponde a qualquer comunidade. As atitudes envolvidas so extradas do grupo, mas o indivduo em quem se organizam tem a oportunidade de dar-lhes uma expresso que, qui, nunca tenham tido antes.

  • 22

    Os papis assumidos por um indivduo so talhados de acordo com os papis

    desempenhados pelos outros membros da coletividade. Por conseguinte, sua representao

    encontra-se inserida em uma atitude cooperativa que impe ao sujeito a necessidade de

    adquirir um conjunto de conhecimentos especficos. Isso implica dizer que o desempenho de

    um papel requer um aparelho expressivo coerente com padres socialmente constitudos e

    esperados como resultado de uma interao: ser uma determinada espcie de pessoa [...] no

    consiste meramente em possuir os atributos necessrios, mas tambm em manter os padres

    de conduta e de aparncia que o grupo social do indivduo associa a ela (GOFFMAN, 1999,

    p. 74).

    Os conhecimentos referentes a cada um dos papis assumidos pelo sujeito ao longo de

    sua vida so adquiridos a partir de processos de socializao primrios e secundrios

    (BERGER; LUCKMANN, 1996). A socializao primria abarca os mecanismos de

    aprendizagem responsveis pela transformao de uma criana em um ser social. A

    socializao secundria, por sua vez, refere-se interiorizao dos conhecimentos

    especializados dos segmentos institucionais que compem a sociedade em questo.

    Ambos os processos so conduzidos por agentes que desempenham a funo de

    mediadores entre o mundo e o novo ser social. Por conseguinte, a realidade circundante

    assume contornos bem especficos, provenientes sobretudo dos filtros de ordem estrutural

    aplicados pelos intermedirios.

    Em funo da capacidade de interveno que lhes inerente, os indivduos, quando

    interagem socialmente, no se restringem a assimilar identidades. A potencialidade criativa do

    Eu abre precedentes para exteriorizaes inditas que, se acolhidas pela coletividade,

    passam por um processo de objetivao. Isso implica dizer que as interaes sociais

    estabelecidas pelos sujeitos ao longo da vida podem reforar, mas tambm modificar ou

    remodelar sua perspectiva de realidade, bem como as posies de sujeito que a constituem.

  • 23

    El individuo, como hemos visto, reacciona continuamente contra esta sociedad. Cada adaptacin involucra algn tipo de cambio en la comunidad a la cual el individuo se adapta. Y este cambio, es claro puede ser muy importante [...] Las grandes figuras de la historia provocan cambios fundamentalsimos. Estos cambios profundos que se producen gracias a la reaccin de espritus individuales, son slo la expresin extrema de los que se llevan a cabo continuamente debido a las reacciones que no son simplemente las de un m, sino las de un yo (MEAD, 1953, p. 226-227)4.

    Neste inextricvel processo, os sistemas simblicos despontam como um fator de

    grande relevncia. Na objetivao da realidade, eles no s oferecem o aparato necessrio

    institucionalizao, abstraindo as experincias de suas ocorrncias individuais e

    incorporando-as a um conjunto de tradies, como tambm servem de base para a construo

    de referenciais conceituais que respaldam e procuram manter a ordem institucional

    estabelecida.

    No que concerne realidade subjetiva, os sistemas simblicos de representao

    surgem como importantes instrumento e contedo: por intermdio deles que os agentes

    socializadores transmitem o conhecimento comum para os novos seres sociais e so eles que

    constituem o acervo individual de saberes socialmente partilhados. Tambm valendo-se

    deles que a realidade subjetiva se conserva ou modifica: as interaes simblicas dirias so

    as grandes responsveis pela intensificao e atenuao de aspectos da realidade introjetada.

    Os sistemas simblicos s desempenham esse poder estruturante porque so

    estruturados, regidos por uma lgica que possibilita a formao de consenso em torno do

    sentido do mundo social:

    o poder simblico um poder de construo da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseolgica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lgico, quer dizer, uma concepo homognea do tempo, do espao, do nmero, da causa, que torna possvel a concordncia entre as inteligncias. (BOURDIEU, 2006, p. 9)

    4 O indivduo, como vimos, reage continuamente contra a sociedade. Cada adaptao envolve algum tipo de mudana na comunidade qual o indivduo se adapta. E esta mudana, claro, pode ser muito importante [...] As grandes figuras da histria provocam mudanas fundamentalssimas. Estas mudanas profundas que se produzem graas ao de espritos individuais so s a expresso extrema das que se levam a cabo continuamente devido a reaes que no so simplesmente a de um mim, mas as de um eu.

  • 24

    A condio de estruturas estruturadas e estruturantes de comunicao e conhecimento

    assumida pelos sistemas simblicos transforma-os em um importante locus de disputa

    ideolgica. As manifestaes simblicas dos diferentes grupos so tentativas de imposio de

    uma definio do mundo social afeita a seus interesses. Contudo, para que uma definio da

    realidade seja aceita como universal, garantindo a hegemonia de um grupo sobre outro, ela

    precisa se desvincular de suas condies de produo, adquirir um status de naturalidade que

    encubra sua arbitrariedade e seus interesses subjacentes.

    O poder simblico como poder de constituir o dado pela enunciao, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a viso de mundo e, deste modo, a ao sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mgico que permite obter o equivalente daquilo que obtido pela fora (fsica ou econmica), graas ao efeito especfico de mobilizao, s se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrrio. (BOURDIEU, 2006, p. 14)

    Diante do exposto, pode-se afirmar que os processos pelos quais os indivduos

    reconhecem o mundo e reconhecem-se no mundo (avocando significados para aquilo que

    imaginam ser seu papel social e para sua prpria especificidade) em outras palavras, os

    mecanismos atravs dos quais forjam suas identidades - so uma construo psquica, social e

    simblica. Tais identidades resultam de um fenmeno em que os indivduos se reconhecem e

    passam a ocupar determinadas posies de sujeito. Posies essas que so configuradas ao

    longo do processo scio-histrico e cujos sentidos so produzidos por sistemas simblicos de

    significao.

    Tendo em vista que o foco do presente trabalho so as representaes identitrias, a

    explanao subseqente centra-se especialmente em duas dessas variveis: a social e a

    simblica. No que diz respeito primeira, vale ainda ressaltar que a identidade traduz-se em

    uma disputa por acesso privilegiado a bens simblicos e materiais existentes em uma

    sociedade, que divide esta em ao menos dois grupos: o Eu, ou a identidade, e o Outro, ou a

    diferena.

  • 25

    A afirmao da identidade e a enunciao da diferena traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferena esto, pois, em estreita conexo com relaes de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferena no pode ser separado das relaes mais amplas de poder. A identidade e a diferena no so, nunca, inocentes (SILVA, 2000, p.81).

    A identidade no pode, pois, prescindir de um Outro, de uma diferena. Ao se afirmar,

    ela procura estabelecer fronteiras, definindo includos e excludos. Dicotomia essa instaurada

    no com a inteno de separar classes simtricas, mas sim de contrap-las, atribuindo-lhes

    diferentes pesos: enquanto um dos termos recebe uma carga positiva, o outro negativamente

    valorado.

    O delineamento das fronteiras entre o Eu e o Outro ocorre por meio da representao

    simblica, entendida pelos estudos culturais no como uma espcie de cpia do real

    concepo desenvolvida pela filosofia clssica ocidental -, mas sim como um sistema de

    significao que constri / reconstri significados a partir de perspectivas culturais. Portanto,

    a partir da criao de prticas de significao e de sistemas simblicos destitudos de

    vnculos naturais com um suposto real objetivo que as identidades adquirem cargas

    semnticas diferenciadas.

    Os significados que norteiam o indivduo, atribuindo sentido s suas experincias,

    advm de sistemas classificatrios. Estes impem ordem vida coletiva, a partir da

    classificao dos artefatos, das atitudes e das idias presentes no corpo social. Tendo em vista

    que o detentor do poder de representao acaba por determinar a identidade e a diferena e

    que a valorao dos bens materiais e simblicos feita a partir da perspectiva da identidade

    (SILVA, 2000), as divises e as hierarquizaes empreendidas pelos sistemas classificatrios

    apresentam a identidade como a norma comportamental e a diferena como um ser desviante.

    Deve-se salientar que, apesar de estabelecer fronteiras no mundo social, tal processo

    de construo de representaes identitrias no estanque. Como a identidade e a diferena

    esto sujeitas dinmica das relaes de poder, suas fronteiras encontram-se propensas ao

  • 26

    deslocamento. Esta possibilidade oscilatria transforma-as em algo instvel, em uma questo

    tanto de tornar-se quanto de ser (HALL, 1990 apud WOODWARD, 2000, p. 28).

    Isso implica dizer que a definio da identidade e da diferena no realizada de uma

    vez por todas. As duas instncias no so constitudas por um conjunto cristalino, autntico,

    de caractersticas atemporais fixadas pela tradio; elas so configuradas e reconfiguradas por

    contingncias histricas. Portanto, a tentativa de fixao de posies de sujeito implcita aos

    sistemas classificatrios consiste em uma prtica de essencializao. Por intermdio dela,

    procura-se ocultar as relaes de poder subjacentes s representaes identitrias,

    apresentando como naturais construes simblicas que so socialmente motivadas.

    Essas so as caractersticas que o discurso colonial assume. Em sua busca pela

    legitimao do poder, ele produz conhecimentos antitticos sobre o colonizador e o

    colonizado que visam a [...] apresentar o colonizado como uma populao de tipos

    degenerados com base na origem racial, de modo a justificar a conquista e estabelecer

    sistemas de administrao e instruo (BHABHA, 2005, p. 111).

    A representao do colonizado como um ser inferior deriva de um aparato simblico

    no qual se conjugam o reconhecimento e o repdio das diferenas raciais/culturais/histricas.

    Esse ativa o mito da origem histrica caracterizado pelas supostas pureza racial e prioridade

    cultural do colonizador , estabelecendo-o como parmetro de normalizao das crenas e dos

    sujeitos constituintes do discurso colonial e, por conseguinte, recusando a diferena como

    uma padro de conduta aceitvel.

    A separao entre colonizador e colonizado decorrente de tal sistema classificatrio

    produz efeitos ambivalentes. Se, de um lado, ela torna visvel e incontestvel a diviso

    existente no corpo social, de outro, ela define um modelo de sujeito que, sob certas condies

    de dominao colonial e controle, acionado para reformar o nativo, transform-lo em uma

    diferena que quase a identidade, mas no exatamente.

  • 27

    Na tentativa de essencializar esse Outro como um ser desajustado, fazendo frente s

    contingncias diacrnicas, o discurso colonial vale-se especialmente do esteretipo como

    estratgia discursiva. Entendido como uma forma de conhecimento e identificao que oscila

    entre o j conhecido e algo que deve ser repetido, o esteretipo ajuda a perpetuar o discurso

    colonial, na medida em que a ambivalncia que o caracteriza

    [...] garante sua repetibilidade [do discurso colonial] em conjunturas histricas e discursivas mutantes; embasa suas estratgias de individuao e marginalizao; produz aquele efeito de verdade probabilstica e predictabilidade que, para o esteretipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicitado logicamente (BHABHA, 2005, p. 106).

    Por intermdio dessa repetibilidade, portanto, povos que foram objeto de colonizao

    vem ressuscitado, em momentos posteriores de sua histria, o discurso da anormalidade que

    os procurou definir durante o perodo de sua subjugao. o que atesta o recorrente discurso

    sobre os supostos atributos do ser latino-americano, at hoje estigmatizado pela

    representao identitria do colonizado.

    1.2 O discurso estereotpico sobre o latino-americano

    A repetio, ao longo da histria, do carter desviante dos povos latino-americanos em

    relao aos colonizadores acabou por conformar um discurso sobre o nativo no qual este

    apresentado, de forma estereotpica, como um ser essencialmente inferior/atrasado.

    Contriburam para a construo e a fixao desse trao identitrio no s os relatos sobre os

    primeiros contatos de Colombo com os ndios e sobre a atitude dos colonizadores para com

    estes, como tambm a posterior subservincia dos habitantes da regio aos parmetros de

    civilidade e modernidade estabelecidos pelos pases desenvolvidos.

  • 28

    Instaurado com a chegada dos europeus ao continente, tal discurso derivou das

    percepes iniciais de Colombo sobre os ndios, traduzidas em dois comportamentos: o

    reconhecimento da diferena e a sua conseqente recusa, enquanto um estgio inferior de

    desenvolvimento humano, e o reconhecimento da condio humana dos ndios, que veio

    acompanhada do desejo de assimilacionismo. Exemplificam essas duas posturas as reaes de

    Colombo frente lngua dos nativos:

    Colombo no reconhece a diversidade das lnguas e, por isso, quando se v diante de uma lngua estrangeira, s h dois comportamentos possveis, e complementares: reconhecer que uma lngua e recusar-se a aceitar que seja diferente, ou ento reconhecer a diferena e recusar-se a admitir que seja uma lngua ... Os ndios que encontra logo no incio, a 12 de outubro de 1492, provocam uma reao de segundo tipo; ao v-los, promete: Se Deus assim o quiser, no momento da partida levarei seis deles a Vossas Altezas, para que aprendam a falar (estes termos chocaram tanto os vrios tradutores franceses de Colombo que todos corrigiram: para que aprendam nossa lngua). Mais tarde, consegue admitir que eles tm uma lngua, mas no chega a conceber a diferena, e continua a escutar palavras familiares em sua lngua , e fala com eles como se devessem compreend-lo, e censura-os pela m pronncia de palavras ou nomes que pensa reconhecer (TODOROV, 1983, p.30).

    Embora distintos, tais comportamentos apresentam um carter convergente: ambos

    recusam a diferena como uma posio de sujeito aceitvel. Calcados no eurocentrismo, eles

    partem da premissa de que os valores europeus consistem nos princpios da humanidade em

    geral, de que o mundo apenas um neste caso, apenas aquele concebido pela perspectiva

    espanhola.

    As percepes de Colombo sobre os ndios se perpetuaram nos sculos seguintes.

    Assim como o primeiro desbravador europeu da Amrica, os colonizadores oscilaram entre

    uma viso igualitarista e inigualitarista dos povos nativos. O confronto entre as duas

    perspectivas foi eternizado pelo debate de Valladolid (1550-1551), no qual o filsofo Gines

    de Sepveda e o frei franciscano Bartolom de Las Casas tentaram impor uma das concepes

    como universalmente vlida.

    Respaldado em Aristteles, Seplveda sustentava que os indgenas so naturalmente

    imperfeitos, argumentando que todas as diferenas se reduzem dicotomia

  • 29

    superioridade/inferioridade. Las Casas, por sua vez, proclamava a igualdade biolgica entre

    os homens, identificando nesta a base para uma identidade cultural entre europeus e nativos,

    calcada sobretudo na religio catlica.

    A inconcluso do debate parece indicar a direo assumida pelo processo colonial.

    Neste, percebe-se uma articulao entre as duas concepes: ao mesmo tempo em que

    insistiam na diviso entre colonizador e colonizado, os espanhis tentavam conformar os

    indgenas sua prpria imagem.

    Juridicamente, os vencidos constituam um dos dois corpos e dos dois pilares da sociedade colonial: a repblica dos ndios diante daquela dos espanhis. Institucionalmente, eles formavam comunidades inspiradas do modelo castelhano. A um s tempo, a Coroa espanhola separava e juntava: cristalizava as sociedades vencidas numa posio de alteridade, mas esta era um decalque do universo hispnico (GRUZINSKI, 2001, p. 96-97).

    A ocidentalizao dos povos nativos foi presidida tanto pela reorganizao do espao

    social quanto pela imposio da cultura. Por um lado, a metrpole procurava replicar na

    colnia as relaes polticas, sociais e econmicas vigentes no Velho Mundo, redesenhando

    as estruturas de sociabilidade indgenas segundo modelos europeus por exemplo,

    substituindo o traado das aldeias pelo de cidades de Castela ou Galcia e erguendo smbolos

    da supremacia dos vencedores (igrejas, prefeituras, praas) em lugares antes sagrados para os

    nativos.

    Por outro, ela empreendia aes que visavam oficializao dos valores e dos

    costumes europeus como os padres de comportamento colonial. Tendo em vista que a lngua

    [...] carrega consigo todo o sentido de um povo, de uma cultura, de uma nao, uma vez que

    a palavra a traduo simblica de objetos, valores, idias, sentimentos e memrias do ser

    humano (FALABELLA, 2003, p. 97), a imposio do espanhol (e, no caso brasileiro, do

    portugus) como base para a comunicao no continente representou um passo decisivo nesse

    sentido.

  • 30

    A cristianizao dos indgenas tambm prestou uma grande contribuio para a

    europeizao dos habitantes da Amrica Latina. Ainda mais quando se considera que, na era

    renascentista, o cristinanismo no se restringia a uma doutrina religiosa: ele era, acima de

    tudo, um modo de vida com implicaes patentes sobre a temporalidade e as relaes sociais,

    a sexualidade, as prticas alimentares, as relaes familiares etc (GRUZINSKI, 2001).

    A difuso do catolicismo entre os autctones foi facilitada pelo teatro. Reconhecendo

    as barreiras impostas pela diferena lingstica e a importncia da ritualizao dramtica no

    universo indgena, os europeus promoveram encenaes de episdios da histria sagrada,

    montadas e representadas pelos prprios nativos. Mas se, por um lado, tal recurso possibilitou

    a cristianizao dos indgenas, por outro, ele tambm conduziu emergncia de formas de

    representao mestias, marcadas pela sobrevivncia de elementos da religio pag:

    [...] a interveno indgena marca tambm os limites e as ambigidades do mimetismo cnico. Embora os monges no tivessem conscincia, a representao indgena tendia a se desviar do modelo hispnico original, pois estava sujeita ao enfoque indgena da interpretao e do palco [...] O mimetismo imposto pelo ocidente prestava-se, assim, a desvios que prosperavam sob as aparncias enganosas da cpia fiel (GRUZINSKI, 2001, p. 105-106)

    O mimetismo apresentou-se, portanto, como um modo de dominao ambivalente. Ao

    mesmo tempo em que consistia numa estratgia de reforma do ser colonial na qual a

    apropriao do Outro facilitava os processos de regulao e disciplina, ele permitia a

    sobrevivncia de uma diferena que colocava em ameaa os saberes normalizados e o

    prprio poder disciplinar (BHABHA, 2005, p. 130).

    Contudo, mais do que ameaar, tal hibridizao favoreceu os objetivos do colonizador,

    pois [...] ao moldar a religio dos colonizadores sua prpria semelhana, os povos

    indgenas consentiam mais facilmente com a ideologia bsica da colonizao e, portanto,

    passavam mais firmemente para o controle espanhol (CHASTEEN, 2001, p. 66).

  • 31

    Apesar de o uso da fora ter se apresentado como um importante instrumento de

    dominao dos povos latino-americanos, a adeso aos valores e costumes europeus

    exemplifica, portanto, a materializao do conceito de hegemonia. Isto porque o projeto

    colonizatrio s foi possvel e s se sustentou porque se assentou em estratgias que levaram

    parte significativa dos nativos a aceitarem o princpio de sua inferioridade e, como

    conseqncia, participarem de sua prpria subjugao, reconhecendo a cultura europia como

    a verdadeira cultura (CHASTEEN, 2001, p. 60).

    A aceitao da realidade do dominador pelos povos colonizados, assim instaurada,

    perpetuou-se para alm da independncia dos pases latino-americanos. Embora nesse

    momento histrico tenha sido concebida a primeira verso do patriotismo regional o

    nativismo, que pregava a definio da identidade pelo local de nascimento e a valorizao das

    mestiagens prprias do continente -, a proeminncia adquirida pelas idias vigentes na

    Europa garantiu a continuidade dos rumos assumidos pela colnia.

    Os amplos contornos da cultura e sociedade colonial latino-americana no sofreram nenhuma mudana profunda e sbita. [...] A lngua e as leis dos colonizadores ibricos tornavam-se as das novas naes, e os descendentes crioulos dos conquistadores continuaram lucrando com o trabalho mal-remunerado dos conquistados e escravizados. Nesse sentido, a independncia no cancelou o colonialismo nas naes latino-americanas. Pelo contrrio, tornou-as ps-coloniais: agora se auto-governando, mas ainda moldadas pela herana colonial. (CHASTEEN, 2001, p. 93)

    Liderado pela elite crioula, o perodo ps-indepemdncia no se restringiu

    consolidao dos parmetros europeus de civilizao j presentes no continente. Ele

    tambm foi marcado por uma nova forma de submisso, que substitua a velha verso colonial

    por uma nova idia hegemnica: o Progresso. Desviando seus olhares das agora decadentes

    naes colonizadoras Espanha e Portugal em direo aos novos centros desenvolvidos

    Inglaterra, Frana e Estados Unidos -, as elites revitalizaram a oposio binria

    inferioridade/superioridade sob o par atraso/progresso, no qual o latino-americano encarna

    o termo menos valorizado.

  • 32

    Na busca pelo Progresso, as elites latino-americanas promoveram uma nova

    reorganizao espacial. As cidades de estilo colonial, com suas pedras de cantaria e telhados

    vermelhos, gradativamente cederam lugar a grandes metrpoles modernas, habitadas por

    maravilhas tecnolgicas como o bonde e o telefone e cortadas por linhas frreas que

    transportavam de forma admiravelmente veloz as matrias-primas para os pontos de

    exportao.

    Os novos modos de vida europeus, por sua vez, ditavam os parmetros culturais do

    Progresso. Civilizado e elegante, para as mulheres, era falar francs, dispor do ltimo

    figurino parisiense, conhecer a etiqueta dos sales de baile e tocar piano. J para os homens,

    era vestir ternos escuros e de l no trrido calor dos trpicos, fazer negcios em libras

    esterlinas e possuir recentes inventos tcnicos, como o automvel. Por conseguinte, a cultura

    local continuava relegada a uma posio de inferioridade. Os crioulos argentinos, por

    exemplo, [...] rejeitaram a cultura argentina tradicional, em particular a cultura rural, como

    insuportavelmente brbara (CHASTEEN, 2001, p. 140).

    Tambm o ser latino-americano - agora no puramente indgena, mas caracterizado

    pelas hibridizaes raciais prprias do perodo colonial era marginalizado pela nova

    sociedade. As elites locais

    [...] consideravam a mistura de raas uma desonra. As principais teorias cientficas do sculo XIX partiam de premissas racistas. Agradasse ou no, tratava-se do Progresso, segundo os maiores especialistas da poca. E, agradasse ou no, a maioria dos pases latino-americanos possua uma grande mistura de raas. Tratava-se da tragdia nacional [...] (CHASTEEN, 2001, p. 140).

    Esta situao comeou a mudar no incio do sculo XX. Enquanto as elites crioulas

    dedicavam-se ao seu empreendimento progressista, a fora nacionalista gestada pelo

    pensamento nativista ia conquistando novos adeptos, at que, nas primeiras dcadas do sculo

    XX, o movimento ganhou, por fim, grande projeo no continente: seus ideais de celebrao

  • 33

    dos valores locais passaram a ser adotados, em boa parte da regio, como parmetros para a

    constituio de identidades nacionais.

    A condio mestia do povo latino-americano ascendeu ao centro do debate. A busca

    por valores prprios, em contraposio subservincia at ento existente em relao

    cultura europia, conduziu a uma reinterpretao positiva do sentido da diferena racial e

    cultural latino-americana: surge, assim, um novo nacionalismo, baseado na idia de uma

    cultura nacional, que seria a sntese da particularidade cultural e da generalidade poltica, da

    qual as diferentes culturas tnicas ou regionais seriam expresso (MARTN-BARBERO,

    1997, p. 217).

    Tais elementos culturais, no entanto, precisavam adquirir um carter universal para

    serem difundidos entre os cidados e criarem uma comunidade imaginada (ANDERSON,

    1991), um conjunto de smbolos e representaes capazes de [...] unific-los [os membros de

    um pas] numa identidade cultural, para represent-los todos como pertencendo mesma e

    grande famlia nacional (HALL, 2003, p.59).

    A instaurao de Estados nacionais fortes e centralizadores permitiu a esta instncia de

    poder a oportunidade de definir, classificar, segregar e selecionar os smbolos, as tradies, as

    estrias e os modos de vida que deviam compor a identidade nacional (BAUMAN, 2001). O

    discurso unificador assim constitudo procurou cristalizar determinados elementos culturais

    como caractersticas nacionais imutveis, inscrevendo-os em uma tradio que seria reiterada

    cotidianamente em narrativas capazes de conectar a vida dos cidados a um destino nacional,

    vislumbrado como uma realidade preexistente ao indivduo, que continuaria existindo mesmo

    aps a morte deste.

    A adoo dessa postura conduziu absoro nacional de algumas diferenas culturais

    e folclorizao de outras.

  • 34

    A heterogeneidade de que se forma a maioria dos pases da Amrica Latina sofrer um processo de funcionalizao. Onde a diferena cultural grande e incontornvel, a originalidade deslocada e projetada sobre o conjunto da Nao. Onde a diferena no to grande a ponto de constituir-se como patrimnio nacional, ela ser folclorizada, oferecida como curiosidade aos estrangeiros. (MARTN-BARBERO, 1997, p. 218)

    A difuso e a consolidao do sentimento de pertena comunidade nacional assim

    criada imps ao Estado a necessidade de manter um amplo controle sobre os sistemas

    comunicacionais, para garantir a difuso de contedos em conformidade com a concepo de

    Nao que ele sustentava. Apresentando-se como porta-vozes da interpelao nacional, o

    cinema, em alguns pases, e o rdio, em quase todos, proporcionaram aos moradores das

    regies e provncias mais diversas uma primeira vivncia cotidiana da Nao (MARTN-

    BARBERO, 1997, p. 230).

    Apesar de ter promovido a valorizao da cultura e das etnias locais, o nacionalismo

    tambm almejava, em ltima instncia, a superao do alegado atraso regional, mediante a

    incorporao dos pases latino-americanos ao modo de vida das naes modernas. A

    formao de uma identidade nacional justificava-se na medida em que esta se apresentava

    como a porta de acesso para a modernidade:

    [...] desejava-se ser uma Nao a fim de obter-se uma identidade, mas tal obteno implicava sua traduo para o discurso modernizador dos pases hegemnicos, porque s nos termos desse discurso o esforo e os xitos eram avaliveis e validados como tais. (MARTN-BARBERO, 1997, p. 218)

    Tal discurso assumiu novas feies em meados do sculo XX. Se, no primeiro

    momento, o nacionalismo tivera como eixo definidor da modernidade ou do atraso a

    concepo de Nao, nessa segunda etapa a idia hegemnica foi o desenvolvimento: a partir

    da dcada de 60, o carter progressista de um pas passou a ser quantificado pelo

    crescimento econmico.

    Neste contexto, a ampliao e a diversificao da produo industrial transformaram-

    se em prioridades nacionais. Emprstimos estrangeiros da ordem de bilhes de dlares foram

  • 35

    contrados pelos governos locais com a finalidade de dinamizar o setor secundrio da

    economia regional, implantando especialmente fbricas dedicadas produo de bens de

    consumo durveis, como automveis, televiso etc (CHASTEEN, 2001).

    As indstrias instaladas em territrio latino-americano nesse perodo reproduziram,

    portanto, o modelo econmico das naes desenvolvidas, calcado na produo massiva de

    bens de consumo. Como conseqncia, elas tambm introduziram na regio as bases da

    cultura consumista em voga no Primeiro Mundo, processo este que foi acompanhado de perto

    pela propagao miditica do estilo de vida dos pases situados no centro do capitalismo: o

    estilo de vida das naes desenvolvidas e ricas torna-se conhecido atravs de filmes, revistas,

    publicidade, folhetos etc, que so importados e introduzidos livremente pelos pases

    dependentes (GUARESCHI, 2001, p. 69).

    Os meios de comunicao desempenharam, assim, um importante papel tambm nessa

    nova tentativa de superao do atraso latino-americano. Eles promoveram a massificao da

    demanda por bens de consumo, tentando, a partir da absoro das diferenas, unificar o

    pblico e o gosto cultural de acordo com os parmetros ditados pelos pases desenvolvidos.

    Tal tarefa coube especialmente a um veculo ento nascente: a televiso.

    Imagem plena da democratizao desenvolvimentista, a televiso realiza-se na unificao da demanda, que a nica maneira pela qual pode conseguir a unificao do mercado hegemnico sem que os subalternos se ressintam dessa agresso. Se somos capazes de consumir o mesmo que os desenvolvidos porque definitivamente nos desenvolvemos, e para alm da porcentagem de programas importados dos Estados Unidos , e inclusive da imitao dos formatos de seus programas, o que nos afetar mais decisivamente ser a importao do modelo norte-americano de televiso: este que no consiste apenas na privatizao das redes [...] e sim na tendncia constituio de um s pblico, no qual estejam reabsorvidas as diferenas, a ponto de confundir o maior grau de comunicabilidade com o de maior rentabilidade econmica [...], a tendncia a constituir-se num discurso que, para falar ao mximo de pessoas, deve reduzir as diferenas ao mnimo, exigindo o mnimo de esforo decodificador e chocando minimamente os preconceitos scio-culturais das maiorias (MARTN-BARBERO, 1997, p. 250).

    As provaes vivenciadas pela regio em funo das dvidas externas contradas

    durante esse perodo levaram busca de uma nova alternativa para a modernizao do

  • 36

    subconcontinente. A partir do final dos anos 70, mas sobretudo na dcada de 80 (sob a

    propulso das inovaes tecnolgicas e do aumento de rentabilidade dos pases

    desenvolvidos), a globalizao e o neoliberalismo afiguraram-se como o caminho

    emancipatrio ento almejado.

    A ampliao dos fluxos informacionais e financeiros em mbito global e a

    desregulamentao da provenientes entregaram livre mo de um mercado de dimenses

    planetrias boa parte dos poderes at ento concentrados no Estado. Como conseqncia, o

    antigo vnculo existente entre Estado e Nao passou a ser ainda mais flexvel. Destitudo de

    grande parte de suas atribuies e obrigado a atuar em termos de injunes internacionais, o

    Estado perdeu a capacidade de ser o guardio da identidade nacional. Contribuiu para esse

    desfecho tambm a perda de poder sobre aquele que havia se tornado um dos mais

    importantes instrumentos de difuso informacional: os meios de comunicao, que tambm se

    tornaram transnacionais (CASTELLS, 1999).

    Diante de um Estado com menor poder de interferncia direta ou mesmo de regulao

    (inclusive sobre os contedos simblicos), os indivduos intensificaram ento a busca por

    novas fontes de identificao coletiva. Os elementos nos quais a comunidade imaginada

    (ANDERSON, 1991) havia se ancorado a territorialidade, a nacionalidade e a etnia

    cederam cada vez mais espao a dois novos fatores articulatrios que sempre existiram, mas

    foram potencializados pela globalizao: o consumo e os fluxos internacionais de bens

    simblicos e materiais (FALABELLA, 2003). O livre acesso aos produtos industriais e

    culturais dos pases desenvolvidos conduziram incorporao de novos elementos

    estrangeiros e mercadolgicos nas j historicamente hibridizadas identidades nacionais.

    No mundo globalizado, portanto, h permanente deslocamento e reconstruo das

    fronteiras da identidade nacional - processo que conduz a um incremento da colonizao

  • 37

    cultural dos pases situados na periferia do capitalismo, a uma subordinao de seus

    elementos simblicos tradicionais s culturas superiores.

    Essa nova sociedade planetria, gestada pela fora da revoluo tecnolgica e industrial, atravs dos meios de comunicao e, mais recentemente, da Internet e sua ao hipermiditica, est promovendo um outro tipo de colonizao que afeta principalmente os pases perifricos. Nesse tempo de identidades instveis, a globalizao da cultura prope a excluso das diferenas que apenas sobrevivem se integradas ao discurso do centro, atendendo aos interesses de mercado [...] O Dia dos Mortos, celebrao nacional mexicana, [por exemplo] passa por um processo de hibridizao, em que h a incorporao de elementos estrangeiros e modernos do Halloween que, por sua vez, uma festa norte-americana. Caveiras tradicionalmente feitas de acar passaram a ser feitas com chocolate que uma guloseima prpria do Dia das Bruxas, nos Estados Unidos. No se trata de uma simples importao de bens de consumo estrangeiros, mas de sua incorporao ao imaginrio (FALABELLA, 2003, p. 118-119).

    Assim como nos primeiros momentos da histria do subcontinente, portanto, os

    discursos sobre a natureza e sobre o modo de ser tipicamente latino-americanos ainda so

    associados, por segmentos considerveis da prpria populao que constitui a Amrica

    Latina, a uma forma cultural degradada que, para se modernizar, deve inevitavelmente imitar

    o estilo de vida dos pases desenvolvidos.

    1.3 O atraso na representao identitria da poltica latino-americana

    Apesar de ter sua gnese associada s diferenas tnicas e culturais, o discurso

    estereotpico sobre o latino-americano impregna tambm outros sistemas simblicos que

    procuram dar conta das especificidades regionais. Este o caso da esfera poltica, na qual

    formaes tpicas do continente (vide a experincia populista) so tachadas por representantes

    da viso hegemnica da qual o liberalismo configura a posio modal - como prticas

    inevitavelmente tributrias do atraso.

    Verso poltica da idia de Progresso discutida na seo anterior, o liberalismo prega o

    estabelecimento do Estado de Direito, formao institucional concebida pelos movimentos

  • 38

    burgueses dos sculos XVII e XVIII, com base em teorias filosficas iluministas que

    apregoavam a existncia de liberdades humanas naturais anteriores a qualquer estrutura social

    - as teorias jusnaturalistas (BOBBIO, 1992).

    Em clara oposio ao sistema monrquico, caracterizado pelo absolutismo do prncipe

    e pela reserva de privilgios nobreza, o Estado de Direito constituiu-se como uma

    organizao social individualista, na qual todos os cidados so considerados detentores de

    liberdades que os tornam iguais perante as leis e limitam os poderes estatais. Trata-se,

    portanto, de um regime poltico que tem como cerne o estabelecimento de direitos humanos

    individuais:

    [...] a afirmao dos direitos do homem deriva de uma radical inverso de perspectiva, caracterstica da formao do Estado moderno, na representao da relao poltica, ou seja, na relao Estado/cidado ou soberano/sditos: relao que encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidados no mais sditos, e no do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondncia com a viso individualista da sociedade, segundo a qual, para compreender a sociedade, preciso partir de baixo, ou seja, dos indivduos que a compem, em oposio concepo orgnica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos indivduos (BOBBIO, 1992, p. 4)

    A formao do Estado liberal conduziu ao estabelecimento dos direitos civis,

    concebidos com a finalidade de limitar o poder do Estado, reservando ao indivduo uma

    esfera de liberdade em relao s instituies vigentes, e dos direitos polticos, cuja finalidade

    precpua era garantir o exerccio individual do poder em um novo modelo governamental: a

    democracia liberal.

    Na Amrica Latina, a adoo de tais princpios foi apenas parcial. Ela se restringiu

    implantao da institucionalidade prevista pelo novo modelo (formao de repblicas,

    elaborao de constituies, realizao de eleies etc). A igual liberdade dos cidados e a

    democratizao da participao poltica preconizadas por esses instrumentos foram, de incio,

    negadas a grande parte da populao. Apenas um pequeno grupo teve acesso a elas: as elites

    agrrias.

  • 39

    O alcance desses direitos foi limitado pela persistncia de antigas relaes sociais e

    econmicas. A Amrica Latina continuava a ser constituda por pases agrrios, divididos em

    latifndios cuja produo dependia, em grande medida, de escravos. At o sculo XIX,

    vigorava na regio um sistema de trabalho que, ao contrrio do j aplicado na Europa, no se

    baseava na liberdade dos trabalhadores e na racionalizao produtiva.

    A rgida hierarquizao das sociedades advinda desse sistema impediu a aplicao

    efetiva da igualdade legal entre todos os cidados latino-americanos. A herana das relaes

    sociais servis entre senhores e escravos, associada grande propriedade agrria, imps limites

    s liberdades civis e econmicas dos cidados e praticamente lhes negou a possibilidade de

    participao poltica autnoma.

    Por conseguinte, a formao dos Estados latino-americanos foi marcada por um

    paradoxo:

    dominao das elites agrrias e ideologia liberal, contedo oligrquico e formas democrticas eis uma das razes do Estado latino-americano. Como se sabe, nas linhas do desenvolvimento poltico europeu o liberalismo confere ao Estado seus fundamentos doutrinrios como Estado de direito, democrtico e nacional, isto , para todos os cidados. Os padres oligrquicos, pelo contrrio, tendem a restringir a participao poltica aos membros de uma elite vinculada grande propriedade da terra ou queles setores que poderiam assimilar-se a ela (WEFFORT, 2003, p.122).

    Modernas formaes sociais e polticas mesclaram-se, assim, a princpios por elas

    combatidos. Repblicas regidas por constituies e renovadas periodicamente por intermdio

    de eleies passaram a conviver com prticas contrrias ao liberalismo. Uma vez no poder, os

    liberais deixaram de lado as idias que os haviam inspirado nas lutas pela Independncia,

    transformando a democracia em um aspecto secundrio do Progresso.

    Interessava-lhes, em primeiro lugar, o desenvolvimento material da sociedade, que

    passou a ser buscado no por intermdio de

    [...] uma poltica de massa, mas [de] um governo cientfico dos supostamente melhores e mais brilhantes da nao, que correspondiam, na maioria dos casos, aos mais ricos e mais brancos. A filosofia que justificava esse governo era o positivismo,

  • 40

    uma doutrina social francesa que prescrevia o remdio autoritrio para alcanar a ordem e o progresso e transformava as normas europias em padres universais (CHASTEEN, 2001, p. 159).

    O liberalismo adquiriu, assim, feies particulares no continente. Enquanto na Europa

    o ideal da liberdade encontrava-se associado democratizao5 da sociedade, o desinteresse

    das elites regionais em desenvolver uma estrutura institucional capaz de atender as demandas

    das massas promoveu a dissociao entre os dois termos na Amrica Latina.

    Como conseqncia, democracia passou a ser sinnimo de anti-liberalismo na regio

    (LACLAU, 2006) e, na perspectiva liberal, o par antinmico do progresso: o atraso. o

    que atesta a viso liberal acerca dos regimes de perfil democrtico-popular que sucederam o

    Estado liberal-oligrquico. Com o epteto de populismo, experincias como o peronismo e o

    varguismo enquadram-se nesta classificao.

    Resultado de uma srie de transformaes sociais e econmicas que culminaram com

    a crise do modelo liberal-oligrquico, o populismo caracterizava-se como um Estado de

    compromisso entre diferentes classes dirigentes destitudas de poder representativo, que s

    adquiriu legitimidade com a incorporao de um novo ator poltico: as massas populares

    formadas pelos processos de industrializao e urbanizao (WEFFORT, 2003).

    Essa diversidade de agentes sociais implicados nos governos populistas produziu

    significativas alteraes no sistema de poder. Para atender as diversas classes que passara a

    representar, o Estado teve que se erigir como instncia suprema. Ele no pde mais se

    submeter incondicionalmente aos anseios particularistas de uma classe, como fizera outrora.

    Foi-lhe necessrio gozar de autonomia para decidir e implementar mudanas na estrutura

    scio-econmica.

    5 Laclau (2006) lembra que, no incio do sculo XIX, o termo democracia era dotado de uma conotao pejorativa na Europa. Mas, aps as revolues burguesas, ele se tornou um elemento indissocivel da viso liberal.

  • 41

    A implantao dessa nova institucionalidade provocou uma ruptura radical em relao

    ao antigo regime. O limitado liberalismo, vigente no perodo anterior, foi suplantado por um

    sistema democrtico-popular de carter anti-liberal. Emergiu na Amrica Latina um modelo

    de Estado com feies particulares:

    nessa nova estrutura o chefe do Estado assume a posio de rbitro e a est uma das razes da sua fora pessoal. Por outro lado, nessa condio de rbitro, sua pessoa tender a confundir-se com o prprio Estado como instituio, pois ambos tendem a distanciar-se da determinao dos interesses imediatos que, em ltima instncia, representam (WEFFORT, 2003, p. 78).

    O sistema poltico emergente promoveu a insero das massas na sociedade urbana a

    partir de uma relao paternalista. Nele, o Estado arrogou para si o papel de representante das

    classes populares e passou a realizar mudanas na estrutura econmica e social que

    implicaram a concesso de uma srie de direitos aos moradores da cidade.

    Desta forma, estabeleceu-se na regio uma democracia anti-liberal, na qual a conquista

    de direitos geralmente no advinha da luta social, mas de uma doao do Estado. Tratava-

    se, portanto, de um sistema de governo que estabelecia uma relao direta entre Estado e

    massas, no qual todas as organizaes importantes que se apresentam como mediao entre o

    Estado e os indivduos so, em verdade, anexos do prprio Estado que rgos efetivamente

    autnomos (WEFFORT, 2003, p.57).

    Essa incorporao poltica das massas realizada de cima aparece nas teorias

    sociolgicas latino-americanas de vis liberal como uma variante da dicotomia

    atraso/progresso utilizada na classificao da etnia e da cultura regionais. Adotando como

    parmetros supostamente objetivos de desenvolvimento democrtico os rumos assumidos

    pelas classes operrias da Europa e dos Estados Unidos, os representantes dessa vertente

    ideolgica interpretavam a particularidade poltica latino-americana como uma aberrao

    provocada pelos desequilbrios e pelas irracionalidades provenientes da situao de

    atraso da regio em relao s naes modernas.

  • 42

    As diferenas observadas em terras latino-americanas eram, ento, imbudas de

    sentidos negativos. A insero das massas no sistema poltico via populismo era vista como

    resultado da inexperincia democrtica ou da inexperincia de classe: a anormalidade do

    processo derivava da inexistncia, entre as massas urbanas, de uma conscincia de si enquanto

    classe social e de um histrico de lutas em defesa de interesses prprios (WEFFORT, 2003).

    Implcita a essa viso encontra-se uma hiptese que reitera o discurso do atraso

    latino-americano: a suposio segundo a qual a ausncia de organizao da classe operria

    resultava dos tardios processos de industrializao e urbanizao. Para os tericos liberais, a

    rpida incorporao de classes populares de origem agrria ao sistema industrial implantado

    na Amrica Latina, com considervel defasagem em relao aos centros desenvolvidos,

    impossibilitou o desenvolvimento das experincias sindical e partidria vivenciadas pelos

    trabalhadores industriais europeus e norte-americanos no auge dos movimentos operrios e

    socialistas. Como conseqncia,

    [...] as classes populares portadoras de tradies agrrias e recm-incorporadas vida urbana, sem experincia de classe e sem experincia poltica, estariam disponveis para a manipulao, desviando-se das formas de comportamento poltico que teoricamente seriam adequadas sua situao de classe (WEFFORT, 2003, p. 152)

    Apesar dessa roupagem historicista, a viso liberal sobre o populismo corrobora o

    sentido do atraso como uma caracterstica essencialmente latino-americana. Em primeiro

    lugar, por conceber a experincia poltica da qual este sistema democrtico-popular se

    distancia como um padro objetivo de desenvolvimento - ao adotar essa perspectiva, o

    discurso liberal sobre o populismo encobre as relaes de poder e a ideologia subjacentes s

    representaes identitrias por ele engendradas, tendendo a apresentar o atraso e o

    progresso como atributos naturais do anti-liberalismo e do liberalismo, respectivamente.

    Em segundo lugar, porque, no fundo, ela apresenta o atraso populista como um

    atributo decorrente de uma suposta caracterstica essencial das classes populares (e, por

  • 43

    extenso, do prprio povo da regio): a sua condio de seres situados em um estgio anterior

    de desenvolvimento humano, cujo padro ditado pela cultura hegemnica, de matriz

    europeizante.

    Esse discurso subjacente adquire evidncia na apropriao da viso liberal comumente

    realizada pelas elites locais. Ao caracterizar o populismo, tal classe, que se sentia

    representante do modelo civilizatrio/racional ditado pela cultura e pela ideologia

    hegemnicas, recorria sobretudo ao argumento da incivilidade/irracionalidade do povo.

    Substextualmente, elas defendiam a tese de que os peculiares contornos assumidos

    pela poltica regional derivavam de caractersticas intrnsecas aos seres aqui residentes. Evite

    por todos os meios obrigar o povo a refletir. A reflexo um trabalho penoso a que o povo

    no est habituado. D-lhe sempre razo. Prometa-lhe tudo que ele pede e abrace-o como

    puder (WEFFORT, 2003, p. 24), aconselhava um liberal a quem desejasse obter xito

    poltico no modelo democrtico-popular.

    Diante dessas consideraes, pode-se afirmar que a viso poltica liberal sobre a

    experincia democrtico-popular tpica regio reverbera a idia essencialista de que o

    latino-americano assim, atrasado, subjacente a diversas representaes identitrias sobre os

    caracteres tnicos e culturais dos povos nativos, engendradas durante praticamente toda a

    histria do subcontinente, com base em valores culturais e ideolgicos hegemnicos.

    Neste quadro interpretativo que o presente trabalho sustenta a hiptese de que o

    discurso essencializador do atraso latino-americano reside, subliminarmente, em

    representaes miditicas acerca dos governos latino-americanos que contemporaneamente

    assumem um carter anti-liberal representados aqui pela administrao de Hugo Chvez .

    A escolha do governo venezuelano como objeto da anlise ora proposta justifica-se em

    funo de sua proeminncia na guinada que vem sendo empreendida por vrios pases latino-

    americanos em relao aos rumos liberais hegemonicamente assumidos pelas naes centrais

  • 44

    e em virtude das particularidades de seu governo em relao s administraes regionais de

    similar natureza.

    Chvez foi o primeiro dos presidentes latino-americanos que, na ltima dcada,

    ascenderam ao poder apresentando-se como uma alternativa ao modelo neoliberal. Sua vitria

    insere-se em um contexto no qual a prosperidade experimentada pela Venezuela na dcada de

    1970 com os xitos da economia petroleira viu-se definitivamente interrompida pela adoo

    de uma srie de medidas de abertura e desnacionalizao econmicas empreendidas por

    Carlos Andrs Prez e Rafael Caldera entre 1989 e 1997, seguindo o receiturio proposto pelo

    Fundo Monetrio Internacional (MARINGONI, 2004).

    A derrocada econmica protagonizada por esses personagens, vinculados

    respectivamente aos partidos Ao Democrtica e Copei6, provocou o descrdito do sistema

    poltico que vigorara no pas durante 40 anos. Representado pelo Pacto de Punto Fijo

    (assinado em 1958), este consistia em uma aliana entre as duas legendas, efetuada com o

    propsito de acomodar diferentes fraes da classe dominante no poder e manter o povo

    distncia da esfera poltica. Tratava-se, portanto, de um sistema oligrquico, calcado

    sobretudo nas benesses do petrleo.

    A crise poltica assim instaurada abriu caminho para a emergncia de um governante

    desvinculado da aliana poltica e que propusesse alteraes no percurso iniciado pelos

    ltimos presidentes. Neste contexto, Chvez se elegeu com uma plataforma de intenes na

    qual eram apontados como principais problemas a serem combatidos por seu governo a

    pobreza e a desnacionalizao.

    Aps sua ascenso ao poder, uma srie de medidas que se encaminhavam nesse

    sentido foram adotadas. Chvez aprovou, no primeiro ano de mandato, uma Constituio que

    6 Apesar de ter rompido com o Copei s vsperas da eleio e ter se lenado por uma coalizao de 17 partidos pequenos, Rafael Caldera ajudou a fundar a legenda e a ele esteve ligado por quase meio sculo.

  • 45

    centralizou poderes nas mos do Executivo, ampliou e atualizou direitos humanos. Dois anos

    depois, em 2001, ele promulgou 49 leis que desferiam um duro golpe contra a oligarquia

    venezuelana, promovendo, por exemplo, a centralizao do controle da atividade petroleira e

    a reduo da autonomia da companhia estatal Petrleos da Venezuela S.A (PDVSA),

    considerada um verdadeiro Estado dentro do Estado (MARINGONI, 2004).

    O governante promoveu, ainda, uma srie de estatizaes em setores como o

    comrcio, as telecomunicaes (CHVEZ ..., 2008a), as indstrias petroleira (MARINGONI,

    2004; MAIS ..., 2008) e de cimento (CHVEZ ..., 2008b). E, recentemente, ele props duas

    vezes (em 2007 e em 2009) reformas constitucionais destinadas a centralizar mais poderes no

    Estado, especialmente no Executivo, e a ampliar direitos e poderes dos cidados.

    Essas e outras aes, reveladoras do carter anti-liberal do governo venezuelano, so

    por vezes revestidas de um contedo peculiar: o iderio que rege Hugo Chvez, por ele

    denominado bolivarianismo. Supostamente baseando-se nas idias de Simn Bolvar, lder da

    independncia da Venezuela e de outros pases latino-americanos, o presidente venezuelano

    d a seu anti-liberalismo uma roupagem anti-imperialista exacerbada.

    Fazendo eco voz de seu dolo, Chvez prega a afirmao no s da particularidade

    venezuelana, como tambm da latino-americana7, em detrimento daquilo que ele apresenta

    como submisso aos anseios e modelos coloniais para ele, personificada principalmente nas

    imposies do imprio norte-americano. Em outras palavras, o anti-liberalismo chavista

    assenta-se sobre um discurso centrado na valorizao do que prprio Amrica Latina.

    Por todas essas razes a instaurao de um anti-liberalismo democrtico-popular que

    se ope a um sistema oligrquico at ento vigente e s imposies culturais e ideolgicas

    hegemnicas acredita-se que as crticas da grande imprensa administrao chavista sejam

    7 Chvez faz da unificao latino-americana uma de suas principais bandeiras contra o imperialismo, como atesta, por exemplo, a criao da Alternativa Bolivariana para as Amricas (Alba) com a finalidade de se opor Alca, rea de livre comrcio do continente americano concebida pelos Estados Unidos.

  • 46

    um espao privilegiado para verificar se, na atualidade, estes textos apresentam-se como

    portadores de um discurso que estereotipiza o latino-americano como um ser naturalmente

    atrasado.

    Como, na base das construes/reconstrues identitrias, encontram-se sistemas de

    representao que desempenham importante papel na construo da realidade social a arte, a

    religio, a organizao do espao social, a arquitetura, o vesturio, as teorias polticas etc -, o

    desvelamento dos sentidos associados a tal governo deve passar pela anlise dos produtos

    engendrados por sistemas simblicos que assumem centralidade na conformao social

    contempornea.

    Embora ainda sejam relevantes nos processos de significao do mundo, sistemas

    como os mencionados compartilham, na atualidade, seu poder de construo da realidade com

    outro dispositivo simblico: os meios de comunicao de massa. Estes, por intermdio da

    atividade jornalstica, permitem aos indivduos ter acesso a uma realidade de dimenses

    planetrias e, por conseguinte, configuram e sugerem-lhes representaes identitrias sobre si

    e sobre o Outro.

    Em virtude dessa posio de destaque adquirida pelo jornaismo na construo de

    posies de sujeito que o presente trabalho prope-se a analisar o noticirio poltico

    produzido por meios de comunicao latino-americanos supostamente vinculados ideologia

    hegemnica, com o intuito de verificar se o discurso estereotpico do atraso latino-

    americano tambm subjaz s construes identitrias sobre a experincia anti-liberal

    vivenciada pela regio nos ltimos anos.

    Para respaldar essa investigao, o captulo seguinte empreende uma explanao sobre

    o jornalismo, apresentando-o como uma atividade de construo social da realidade e, por

    conseguinte, de representaes identitrias. Procura-se desvelar seus processos de atribuio

  • 47

    de sentido ao mundo, e esfera poltica em particular, evidenciando em que medida estes

    facilitam a produo de discursos estereotpicos.

  • 48

    2 O JORNALISMO E A CONSTRUO / REPRESENTAO DA IDENTIDADE

    POLTICA DE UMA NAO

    Desde os primrdios de sua existncia, o jornalismo caracteriza-se como uma

    atividade geradora de representaes coletivas sobre o mundo poltico. Por intermdio dele, as

    aes empreendidas pelos Estados adquiriram publicizao e tornaram-se objeto de discusso

    na esfera pblica que, em grande medida, foi constituda com o auxlio do prprio

    jornalismo (HABERMAS, 1984).

    A simultaneidade com que o consumo e o debate das informaes geradas pela

    imprensa passaram a ser realizados pelos cidados pertencentes a uma mesma unidade

    territorial ajudou a forjar a idia de uma comunidade imaginria que assumiu grande

    relevncia na sociedade moderna: a Nao (ANDERSON, 1991).

    Em um primeiro momento, tais representaes foram engendradas por indivduos e

    grupos que se guiavam primordialmente por posies polticas e circunscreviam sua atividade

    publicizadora especialmente ao mbito local / nacional. Com a introduo das tcnicas

    industriais e comerciais nos processos de produo noticiosa, no entanto, o contedo

    jornalstico passou a ser gerado sobretudo por empresas que, interessadas na obteno de

    lucro, desenvolveram supostos mtodos de objetivao informativa e ampliaram o raio de

    abrangncia dos noticirios, cobrindo tambm as aes polticas de outras naes

    (HABERMAS, 1984).

    Desta forma, representaes identitrias sobre a esfera poltica de um pas passaram a

    ser gestadas cotidianamente no s por veculos atuantes no mbito nacional, como tambm

    por empresas jornalsticas situadas em outros territrios. As aes empreendidas pelas

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    instituies polticas de um determinado Estado tornaram-se objeto de (re)construes

    simblicas no apenas da imprensa nacional; elas tambm comearam a ser imbudas de

    significado por meios de comunicao imersos em uma realidade adversa.

    Com a finalidade de possibilitar a compreenso dos processos de construo /

    reconstruo de representaes identitrias abertos por esse contexto, o captulo em questo

    discorre sobre o modo como o jornalismo estrutura a realidade, especialmente as aes

    concernentes s esferas poltica nacional e internacional, e atribui aos acontecimentos sentidos

    que adquirem o status de conhecimento socialmente partilhado.

    Nesta explanao, as teorias jornalsticas de vis construcionista despontam como

    referenciais tericos fundamentais. Em primeiro lugar, por conceberem a produo noticiosa

    no como um espelho que reflete fielmente a realidade, mas sim como uma construo

    simblica influenciada por fatores organizacionais, profissionais e sociais. Em segundo lugar,

    por sustentarem a tese de que os meios de comunicao ultrapassam o simples aspecto

    tcnico, consistindo em instituies dotadas de uma autonomia relativa frente s demais

    foras sociais.

    A abordagem sobre as rotinas de produo noticiosa realizada especialmente com o

    respaldo da teoria estruturalista, pois esta considera a estrutura social relevante na construo

    miditica da realidade e, por conseguinte, identifica a reproduo da cultura e da ideologia

    hegemnicas como um aspecto primordial do discurso jornalstico - fatores que permitem

    vislumbrar os veculos de comunicao como agentes potencialmente capazes de reiterar em

    seu noticirio o discurso estereotpico do atraso poltico latino-americano.

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    2.1 Jornal