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1 “...e algum amor talvez possa espantar as noites que eu não queria e anunciar o dia. Vou voltar, sei que ainda vou voltar...” (Sabiá, Tom Jobim) A NOITE DO AQUÁRIO Texto de Sérgio Roveri PERSONAGENS A mãe mulher na faixa dos 50 a 55 anos José o filho mais velho, entre 28 e 30 anos Pedro o filho caçula, por volta de 20 anos Época e lugar um vilarejo à beira-mar, no início de 1965 A sala de uma casa perto do mar. Ao fundo, uma janela permite a vista de um vilarejo em uma praia quase deserta. Um corredor de passagem entre esta sala e a imagem do vilarejo, por onde os personagens possam circular. Alguns poucos móveis, velhos e gastos. Essenciais, apenas, uma poltrona e uma mesa com três cadeiras. PRÓLOGO Mãe sentada à direita do palco, filho mais novo à esquerda. No centro, o filho mais velho. MÃE

A NOITE DO AQUÁRIO - peça Sergio Roveri

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Mãe sentada à direita do palco, filho mais novo à esquerda. No centro, o filho mais velho. “...e algum amor talvez possa espantar as noites que eu não queria e anunciar o dia. Vou voltar, sei que ainda vou voltar...” (Sabiá, Tom Jobim) PERSONAGENS A mãe – mulher na faixa dos 50 a 55 anos José – o filho mais velho, entre 28 e 30 anos Pedro – o filho caçula, por volta de 20 anos Época e lugar – um vilarejo à beira-mar, no início de 1965 MÃE 1

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“...e algum amor talvez possa espantar as noites que eu não queria e anunciar o dia. Vou voltar, sei que ainda vou voltar...” (Sabiá, Tom Jobim)

A NOITE DO AQUÁRIO

Texto de Sérgio Roveri PERSONAGENS A mãe – mulher na faixa dos 50 a 55 anos José – o filho mais velho, entre 28 e 30 anos Pedro – o filho caçula, por volta de 20 anos Época e lugar – um vilarejo à beira-mar, no início de 1965 A sala de uma casa perto do mar. Ao fundo, uma janela permite a vista de um vilarejo em uma praia quase deserta. Um corredor de passagem entre esta sala e a imagem do vilarejo, por onde os personagens possam circular. Alguns poucos móveis, velhos e gastos. Essenciais, apenas, uma poltrona e uma mesa com três cadeiras.

PRÓLOGO Mãe sentada à direita do palco, filho mais novo à esquerda. No centro, o filho mais velho. MÃE

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Na noite em que ele foi embora, o barulho do mar não me deixou ouvir o ranger da porta, e nem seus passos atravessando a sala. Quando as ondas se acalmaram, a casa já não era a mesma. PEDRO Na noite em que ele foi embora, eu ouvi o choro da minha mãe, que conseguia ser ainda mais triste que o barulho das ondas. Não foi a primeira vez em que ela chorou tão alto, e estava longe de ser a última. Na manhã seguinte, os peixes estavam mortos. JOSÉ Na noite em que eu fui embora, eu deixei para trás metade das minhas coisas. Porque eu não sabia para onde ir. E, quando não se sabe para onde está indo, corre-se o risco de voltar muito em breve. MÃE E então eu comecei a sentir o tempo passar pela janela. Eu queria ser a primeira a ver o seu regresso, dobrando a esquina do porto com seu passo sempre decidido. Mas tudo que o vento me trazia era a areia, que entrava por debaixo da porta e por todas as frestas da casa, se amontoando no chão desta sala, como um desenho a me lembrar que, depois de sua partida, seriam para sempre só duas pegadas por aqui: as minhas, cada vez mais arrastadas, e as do mais novo. Até que hoje.... PEDRO Até que hoje voltaremos a ser três à mesa. Mas a metade das coisas que ele deixou aqui já não existe mais. O tempo se encarregou de dar cabo de cada uma delas – e também de outras coisas que ele nem sabia que deixou para trás. JOSÉ Até que hoje voltaremos a ser três à mesa. Mas nunca mais os três que éramos antes daquela noite em que o barulho mar encobriu o ranger da porta, mas não o lamento da minha mãe. Os três saem de cena, vagarosamente. Música, de início suave, aumenta de intensidade enquanto as luzes vão baixando. Luzes voltam a subir

ATO ÚNICO

Casa vazia. José abre a porta devagar e entra na sala. Observa o ambiente e coloca sua mala sobre uma poltrona. Fica parado, em pé. Mãe surge de dentro da casa. Olha para o filho e depois para a poltrona. MÃE

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A poltrona. É aí que o seu irmão costuma descansar, quando ele chega do trabalho. José tira a mala da poltrona e a coloca no chão. Mãe vai até a janela. MÃE (de costas para o público) Ainda não está na hora de ele vir, mas... talvez ele chegue mais cedo hoje. Talvez queira se sentar na poltrona. É só por isso. JOSÉ Como ele está? MÃE Um pouco como todo mundo aqui. Mãe afasta-se da janela e caminha até a mala. Faz menção de apanhá-la. MÃE É melhor levar para o quarto. Eu nunca gostei de ver nada no chão, acho que disso você ainda se lembra bem. Era uma coisa que te incomodava tanto, a minha mania de recolher tudo. Sempre houve tanta areia, em todos os cantos desta casa que eu... JOSÉ (aproximando-se da mãe pela primeira vez) Não. Deixa, depois eu levo. Os dois se observam por algum tempo, a mala entre eles. MÃE (apontando para o rosto de José) Eu sempre achei que a cicatriz fosse desaparecer com o tempo. Não sumiu de tudo, mas ficou bem mais suave. JOSÉ (levando a mão até um dos lados do rosto) Meninos brincando com garrafa quebrada. Disso também a senhora nunca gostou. MÃE Fiquei dois anos sem falar com a mãe do Elias por causa daquela briga. Ela não teve coragem de dar uma palmada que fosse no menino. Você, com o rosto sangrando, e ela me dizendo que criança é assim mesmo. JOSÉ Que fim levou ele? MÃE Foi embora depois que a mãe morreu.

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Mãe caminha devagar pela sala. José senta-se em uma cadeira. Mãe retira um pouco de dinheiro do bolso. MÃE Toma. Nós não precisamos. JOSÉ Se eu mandei é por que não iria me fazer falta. Pode ficar. MÃE Nós não precisamos, eu já disse. Seu irmão tem emprego e eu também faço as minhas coisas. JOSÉ Eu andei pela vila antes de vir para cá. Não tem quase mais nada. Isso aqui está no fim. Eu fiquei assustado com tanta casa vazia, com tanto abandono. Até quando ele vai ter emprego? Quando fecharem o porto, vocês vão fazer o quê? MÃE Nós nunca saímos deste lugar. Eu e seu irmão sabemos muito bem o que está acontecendo aqui. Você não precisa, depois de oito anos, voltar para nos dizer como anda a vila. Quando fechar o porto, seu irmão arruma outra coisa. JOSÉ Mas não existe outra coisa. O prédio da escola está quase sem janelas, a farmácia fechada, tem capim subindo pela escada da capela. MÃE Deixa a capela em paz. Não é toda hora que a gente precisa de Deus. E não vai ser por um punhado de capim que ele vai deixar de ouvir o que a gente tem a dizer. JOSÉ Meu irmão leu a carta? MÃE Eu disse pra ele que você tinha mandado dinheiro. Ele concordou que era melhor a gente não aceitar. JOSÉ O que ele achou da minha idéia? MÃE Não tinha o que achar. Não tem idéia nenhuma. JOSÉ Você não mostrou a carta para ele?

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MÃE Antes de ir embora, você me chamava de senhora. JOSÉ Isso agora é o de menos. Ele concorda que vocês têm de ir embora daqui? MÃE (evasiva) Já passou da hora de o seu irmão chegar. Que horas são? Ele sempre chega no mesmo horário, eu não gosto quando ele se atrasa. JOSÉ Ele não vai sumir no caminho do porto até aqui. Isso aqui ficou pequeno demais até para alguém desaparecer. MÃE Isso eu não vou discutir com você. De desaparecer você entende muito melhor do que eu. JOSÉ O porto não dura mais um mês. A senhora sabe disso. Quando ele fechar de vez, a vila vai virar um lugar fantasma. Quem podia, já foi embora. Eu não posso deixar que a senhora e meu irmão apodreçam neste fim de mundo. MÃE Sabe qual foi sempre a principal diferença entre você e o seu irmão? Com seu irmão, eu dou risada quando ele conta alguma piada. Com você, eu tenho vontade de rir quando você fala sério. Quatro cartas, quatro cartas em oito anos. E na última delas, uns trocados. É isso que você tem para nos oferecer? Por causa de quatro cartas e um punhadinho de dinheiro eu e seu irmão temos de abandonar tudo e seguir você sabe Deus para onde? Não sei, não me parece uma troca muito justa. JOSÉ (resignado) Vocês não estão abandonando nada. É a vida, é tudo isso aqui que está abandonando vocês. É muito diferente. MÃE (na janela) Nem todos foram embora. De noite eu posso ver, aqui mesmo desta janela... Há muitas, há muitas casas iluminadas ainda. Claro que existem os covardes. Os covardes abandonam tudo. Um dia, eles fecham as casas e vão embora. E com isso eles pensam que o problema acabou. Depois eles vão fazer a mesma coisa nos outros lugares. A vida deles vai ser sempre assim, trancando as portas e fugindo. Eu acho que você saiu mais a eles do que a mim. A minha vida inteira eu gostei de olhar por esta janela e ver o porto. Foi de lá que veio seu pai. JOSÉ

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Um dia ele pegou o mesmo caminho de volta. MÃE Esta é uma lição que você não precisava ter aprendido.Os filhos não precisam imitar os pais também nos erros. JOSÉ Erros? A senhora sempre disse que ninguém aqui tinha o direito de julgar o pai. A não ser a senhora mesma. MÃE Sabe quando eu me dei conta de que estava ficando velha? Quando eu não consegui mais enxergar daqui o nome dos navios. Tudo de mais importante na minha vida tinha vindo pelo mar. O seu pai me chegou pelo mar. A partir daquele dia, do dia em que minha vista turvou, o mar começou a me trazer a velhice. Um pouco mais de velhice a cada navio que atracava e eu não conseguia ler o nome. E hoje, hoje o mar me trouxe de volta você. Se eu sair daqui, se eu sair desta janela, talvez a vida nunca mais me encontre em outro lugar, para trazer o que quer que seja. JOSÉ Posso ver o meu quarto? MÃE Agora é do seu irmão. Mas continua no mesmo lugar. José sai de cena. Mãe senta-se à mesa. Entra Pedro, também com andar cuidadoso. PEDRO (vendo a mala) É dele? Mãe consente com a cabeça. PEDRO Ele andou pelo vilarejo. Me falaram que ele amadureceu depressa. Que agora ele usa barba. MÃE O que mais disseram? PEDRO Que ele não parou para conversar com ninguém, cumprimentou todo mundo, mas sem conversa. E que depois parou na frente da capela, sem entrar. Ficou lá por muito tempo, olhando mais para o chão do que para o altarzinho lá dentro. Não sabiam se ele estava rezando ou....

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MÃE Ou o quê? PEDRO Chorando. MÃE Disseram mais alguma coisa? PEDRO Que depois ele veio para casa. E que...e que eu cresci e não fiquei parecido com ele. Pedro senta-se ao lado da mãe. PEDRO A senhora falou com ele? Ele aceitou o dinheiro de volta? MÃE Não. PEDRO Mas a gente não combinou que não ia ficar com o dinheiro? Onde está? Mãe entrega o dinheiro a Pedro MÃE Ele acha que a gente vai precisar, quando o porto fechar. Eu disse que a gente não precisava, e nem queria o dinheiro dele. Devolve você. José volta do quarto e vê Pedro ao lado da mãe, com o dinheiro na mão. JOSÉ É para você, Pedro. Sei que desta vez não é muito, mas é seu. PEDRO A mãe disse que...que a gente não devia, que... que depois de oito anos... Oito anos, não é mãe? José está parado. Pedro levanta-se, olha para o irmão e corre para abraçá-lo. PEDRO (emocionado e abraçando forte o irmão) Eu sei de cor. Eu sei de cor as quatro cartas. Pode me perguntar. Me diz um trecho e eu falo de que carta é. A mãe ficou na janela, Zé. A vida andou tão devagar... MÃE

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Deixa ele, Pedro. Pedro afasta-se do irmão. PEDRO Todo mundo já te viu, Zé. Lembra do seu Américo, da venda? Ele pediu para te dizer que se você quiser aparecer lá, hoje à noite, a bebida é por conta dele. É a primeira vez que eu vejo o seu Américo oferecendo bebida de graça para alguém. Eu vou guardar sua mala. Vou colocar no meu quarto, que é maior. Quer dizer, no quarto que era o seu. Mas se você quiser, eu também posso colocar no outro quartinho, você é quem sabe. É que eu pensei que caso a gente resolva ir na venda do Américo, a gente podia deixar para arrumar isso depois, só se você... MÃE Não faça isso com você mesmo, Pedro. Guarda sua bondade para quem merece. PEDRO Ele me escreveu, mãe. MÃE Você mesmo acabou de dizer quantas vezes. Quatro cartas em oito anos. PEDRO Meu pai escreveu uma vez só. E eu não vejo a senhora... JOSÉ Pedro, eu trouxe uma coisa para você. MÃE Não me vê o quê? PEDRO Eu não vejo a senhora falando dele com tanto rancor. José começa a revirar a mala. JOSÉ Eu trouxe uma coisa para você, Pedro. Eu coloquei aqui, tenho certeza. Eu sei que eu trouxe. MÃE Se você não encontrar desta vez, pode dar o presente quando vier de novo. Quem sabe daqui a oito anos.... José desiste de procurar e se levanta. JOSÉ

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Depois a gente tira tudo isso daqui de dentro e eu acho. Pedro apanha o dinheiro, que continua nas mãos da mãe. Entrega ao irmão. PEDRO Não precisa mesmo, a pior fase já foi. José, ainda relutante, aceita o dinheiro de volta. PEDRO O que você achou de tudo aqui? Você ainda se lembrava de como era? MÃE Ele acha que a gente está vivendo em um lugar com os dias contados. JOSÉ Pedro, eu soube do porto. Vão fechar. Tudo isso aqui está condenado. Eu voltei para buscar vocês. PEDRO O seu Américo, ele foi o primeiro a dizer que eu não tinha ficado igual a você. Que eu tinha crescido diferente, que mesmo que eu deixasse a barba, assim como você deixou, eu ainda ia ter mais as feições da mãe. MÃE (para José) Leva as suas coisas lá para dentro. Eu vou sair, Pedro. Mãe sai de cena. Pedro e José sentam-se no sofá. JOSÉ Ela mudou muito. PEDRO Todo mundo aqui mudou muito. Com o tempo, você vai se acostumar. Eu sei que você deve ter ficado assustado com o que viu na vila, todo aquele vazio. JOSÉ Eu não quero ter tempo aqui para me acostumar com nada, Pedro. É isso que eu estou tentando dizer desde a hora que eu cheguei. Eu não voltei para ficar, eu voltei para que vocês possam ir embora comigo. PEDRO Ela nunca vai sair daqui, Zé. Eu sei pelo jeito dela, pelas coisas que ela faz. Nem passa pela cabeça dela morar em outro lugar, nem falar sobre isso ela quer. JOSÉ Para onde ela foi agora?

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PEDRO Andar pela vila. É o que ela faz todas as noites. Ela anda por esta vila feito uma...uma louca, ou um fantasma, como eles dizem. Ela sai para contar em quantas casas ainda tem gente morando. Quando termina, ela começa de novo, e repete isso até a madrugada. Eu já fui atrás dela várias vezes, mas ela não aceita voltar comigo. Ela diz que precisa velar para que... para que a vila não morra durante a noite. As pessoas, não todas é claro, mas algumas pessoas...eu sei que elas chegam a ter medo dela. Tem gente que mal diz bom dia pra ela na rua. Falam dela pelas costas. JOSÉ E você? PEDRO Eu tenho que estar aqui, para quando ela voltar. Os dois irmãos permanecem em silêncio. Pedro levanta-se e sai em direção ao quarto. Volta com um aquário vazio e o coloca sobre a mesa. PEDRO Eu guardei para você. Na manhã seguinte, quando eu acordei, ele já estava assim, vazio. Mas a mãe o deixou aqui, em cima da mesa, por muito tempo ainda. Ela disse que o aquário tinha de ficar aqui, vazio e empoeirado sobre a mesa, até que eu aprendesse a lição. Um dia, ela me chamou e disse: agora é seu, faça o que quiser com ele. Eu guardei no meu armário durante todos estes anos, mas nunca soube que lição era aquela que eu tinha de aprender. A mãe surge na janela, do lado de fora da casa, como uma narradora a quem os filhos, em silêncio, não vêem e nem escutam. MÃE Na noite em que ele foi embora, eu saí do meu quarto para me sentar ali, na frente do aquário. Eu devo ter passado muito tempo observando os peixes. Eu sei que ele costumava dar nome a cada um deles, mas eu nunca tive tempo de aprender quem era quem – eles morriam antes que eu os conhecesse pelo nome. Naquela noite eu apressei o que a vida iria levar mais tempo para fazer. Eu os retirei do aquário, um a um, para vê-los morrer diante de mim, em cima da mesa. Alguns se debateram muito antes que o fim chegasse, lutando pelo fiapo de vida que cabia naqueles corpos tão pequenos. Outros não, outros nem se mexeram, parecia que aceitavam a chegada da morte com muito mais calma e paciência. No fim, era impossível separar os que tinham lutado pela vida dos que tinham cedido – na morte todos ficaram iguais. Então eu percebi que neles, nos peixes, não há assim tanta distinção entre a vida e a morte: a natureza não deu a eles o benefício dos olhos fechados. E então eu senti muito medo de que em mim a vida e a morte também me deixassem com a mesma feição. Desde então eu choro e encontro

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nas lágrimas um jeito de deixar meus olhos vivos e ocupados. Depois eu os joguei todos no lixo e a água eu fiz escorrer pela pia. JOSÉ Ela sempre soube o quanto eu gostava deles. Ela sabia, mais uma vez, o que estava fazendo. PEDRO Quando eu vi o aquário vazio, na manhã do dia seguinte, eu perguntei se era ela que tinha matado todos os peixes. MÃE (da janela) Era eu. PEDRO Por que, mãe? MÃE (da janela) Porque eu não queria ser a única nesta casa a sofrer naquela noite. Mãe sai da janela e caminha em direção ao vilarejo. JOSÉ (olhando para o aquário) Ele tem de ficar aí? PEDRO Você não gosta mais dele? JOSÉ Já não importa. Eu nunca me esqueci mesmo de tudo aquilo que agora ele me faz lembrar. Mas você podia ter jogado fora. PEDRO Tinha ficado tão pouca coisa de você aqui...e ele nunca ocupou muito espaço mesmo.. Zé...o porto. Hoje eu fui dispensado. Só ficou uma turma pequena agora, os que vão desmontar os guindastes e fazer a manutenção. No fim da semana que vem eles fecham de vez. O último navio parte em três dias. José fica em silêncio. PEDRO Você já sabia de tudo isso, não sabia? Desses detalhes todos. JOSÉ Sabia de quase tudo, como todo mundo aqui sabe. Eu só não pensei que ia ser tão depressa.

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PEDRO Quando tiver fechado de vez, eles vão manter só três famílias trabalhando, pra vigiar as instalações. O resto da vila não vai ter mais o que fazer. É por isso que todo mundo está tão diferente por aqui, chorando dentro das casas, enxergando agora o que pertence ao passado. Quando você chegou, eles me contaram depois, teve gente que podia jurar que era nosso pai voltando. Eles falaram que até o seu modo de carregar as coisas é igual ao do nosso pai. O seu jeito de andar, tudo, tudo igual. Agora até a barba. Na hora em que você parou na frente da capela, teve gente que rezou junto. Foi isso que eles falaram. JOSÉ Ele escreveu mesmo para você? PEDRO Só uma vez, você já tinha ido embora também. JOSÉ Você me mostra? PEDRO A mãe queimou. Não no dia, depois, muito depois. Quando ela voltou de São Paulo. A primeira coisa que ela fez foi queimar a carta. JOSÉ São Paulo? PEDRO Foi de lá que ele escreveu. Quando a mãe leu a carta, ela ficou quase um mês quieta, fazendo só o que tinha urgência de fazer. Às vezes, só a comida. Em outros dias, nem isso. Até que um dia ela pôs umas coisas numa bolsa e foi atrás dele. Mas eu deixo você ler a carta. JOSÉ Você acabou de dizer que a mãe queimou. PEDRO Queimou a de verdade, mas eu copiei. Ela já tinha matado os peixes, jogado fora suas roupas, ia dar o fim na carta do pai também. Pedro vai até o quarto e volta em seguida, com um papel nas mãos, que entrega a José. JOSÉ (abrindo o papel) Quanto tempo tem isso? PEDRO Dois anos. Ele mandou em 63, fevereiro de 1963. A data eu deixei de lado.

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JOSÉ (lendo a carta) Pedro, eu acho que esta é a primeira carta que você recebe na vida. Se for mesmo, fico contente de saber que ela veio de mim. E espero que você fique feliz quando a receber, como se estivesse ganhando um presente. Um dia, eu quero que você também possa ver tudo o que estou vendo agora em São Paulo. O tamanho dos prédios, o tanto de gente e de carro nas ruas, a largueza das avenidas, o frio que faz aqui de noite...Mas, se eu te conheço bem, eu sei que você não trocaria nada disso pelo pedacinho de mar que você enxerga da nossa janela. Quem sabe um dia você pense em trocar. Agora eu trabalho num prédio que parece uma onda – e eu sei que dele você ia gostar. Ele tem uma curva de um lado e depois faz uma curva do outro, uma daquelas ondas mansas. Ainda não está pronto. Quando ficar, dizem que vai ser o prédio mais bonito de São Paulo. Nome ele já tem, é edifício Copan. Quando eu olho pra ele, de longe, eu também penso um pouquinho no mar. Por aqui não tem nada que lembre a nossa vila, nem de longe. Acredita que aqui mesmo, bem pertinho do prédio, tem até uma praça de asfalto? Você já pensou numa coisa dessas, uma praça de asfalto, que todo mundo usa não para passear, mas para guardar os carros.... O nome dela é Praça Roosevelt e tem a coisa mais bonita que eu já vi em São Paulo. É a raiz de uma árvore que quebrou o cimento e saiu inteirinha pra fora, subindo pela calçada. Eu ouvi dizer que eles querem asfaltar de novo, pra esconder a raiz. Mas eu acho que ninguém devia deixar. Toda vez que eu vejo aquela raiz ali fora, o marrom no meio do cinza, eu penso numa coisa: que quando a gente quer respirar, não tem cimento no mundo que impede isso. Eu sei que faz muito tempo, Pedro, e que eu fiquei longe nas horas que não devia ficar. Mas quem sabe se o lugar da gente, às vezes, não é longe de uma pessoa que a gente quer bem. Quando você vier para cá, procura o prédio que parece uma onda, ele fica bem no centro da cidade. Quem sabe ele já não ficou pronto? E depois olha a raiz que arrebentou o asfalto da Praça Roosevelt. Neste dia, se Deus quiser, você consegue entender o seu pai”. JOSÉ (depois de uma breve pausa) Tem horas que nem parece ele falando. PEDRO Eu mudei algumas coisas na hora de copiar. Mas o que ele queria dizer, no fundo, está tudo aí. Eu só escrevi do meu jeito. Se a carta é a única coisa que eu guardo dele, eu queria que ela fosse pelo menos bonita. JOSÉ O que mais ele dizia? PEDRO Nada, o que valia a pena está aí. JOSÉ

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Pedro, por favor. PEDRO Se você quer saber se ele falava de você, ou da mãe, sinto muito, mas não falava, eu juro. A única coisa que eu tirei foi o trecho em que ele falava dela, da mulher com quem ele fugiu daqui. (Pausa) – Ela morreu lá em São Paulo. José devolve a carta a Pedro, que a coloca em cima da mesa, ao lado do aquário. JOSÉ Uma única carta em tanto tempo e a gente não consegue descobrir se ele foi feliz ou não. PEDRO Às vezes eu me fazia esta pergunta também. Mas não sobre ele, sobre você. Eu sempre quis saber se você estava feliz, mas as suas cartas nunca falaram de felicidade. A gente sabia, mais ou menos, das suas andanças, o que você estava fazendo, mas em nenhuma carta, Zé, em nenhuma das quatro cartas apareceu a palavra felicidade. JOSÉ Eu devo ter usado uma palavra parecida, um termo que quisesse dizer a mesma coisa... PEDRO Não tem palavra parecida com felicidade, se a gente não usa, mesmo sem perceber, é porque ela não existe naquela hora. JOSÉ Você deve ter lido todos aqueles romances da biblioteca da escola, não leu? Às vezes, você fala de um jeito que parece que eu estou com um livro nas mãos. Onde já se viu, escrever de novo a carta do pai... PEDRO Você passou na frente da escola? Viu as janelas quebradas? Quase não tem mais alunos. Os que sobraram, não enchem meia sala. No ano que vem a professora não volta, ela já avisou. JOSÉ Você não tem sonhos, meu irmão? Não quer deixar tudo isso aqui e ver o que o mundo tem para te oferecer além desta vila e deste porto? Em algumas semanas, não vai ser mais uma questão de sonho, mas de sobrevivência. Você e a mãe vão ter de ir embora e continuar a vida em outro lugar. Você tem 20 anos, Pedro. Nunca saiu daqui. Eu fui embora um dia, até nosso pai foi embora um dia. Chegou a sua vez de ir. PEDRO

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Eu li muitas vezes as cartas que você escreveu. E a que o nosso pai me mandou também. Não foi à toa que eu decorei todas elas. E sabe o que eu descobri, Zé, em todas elas? Que, tirando a paisagem, elas podiam ter sido escritas aqui mesmo. Vocês foram para tão longe, mas tudo que vocês falavam da vida era a mesma coisa que eu e a mãe conversávamos aqui. Como você diz, sem nunca ter saído desta vilinha. Se a gente não vai mudar nada mesmo, Zé, dá menos trabalho ficar por aqui mesmo...Veja você: oito anos longe, e a palavra felicidade nunca saiu da sua boca. JOSÉ E nem da sua, e nem da boca da mãe. PEDRO Mas a gente não gastou a vida correndo atrás dela. JOSÉ A solução é esta, então? Sentar aqui, esperar o porto fechar, ver a vila desaparecer e depois morrer de fome? Sem nunca ter tentado? Sem nunca ter saído para ver o que tem do lado de lá? Pedro, eu estou vendo a nossa mãe falando pela sua boca. Vinte anos, você tem só vinte anos. PEDRO Eu não disse que não vou embora, que vou morrer aqui. Não é isso. É que...é que... Zé, nós ficamos oito anos longe um do outro e na primeira noite em que a gente se vê é disso que a gente precisa conversar? JOSÉ É, é disso, sim. Tem de ser disso. Por isso eu voltei, para ter esta conversa com você. E para levar você comigo quando eu for embora, você e a mãe. PEDRO (muito interiorizado) Eu não quero ser como você e o nosso pai. JOSÉ O quê? PEDRO Você ouviu. Eu não quero ser como você e o nosso pai. Eu não quero abandonar quem gosta de mim. JOSÉ Você ainda me condena? PEDRO Não era para tanto. JOSÉ

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Eu iria embora de qualquer jeito PEDRO Foi só uma noite. A tempestade, o barulho das ondas, aquele vento infernal. Essas noites são difíceis para qualquer pessoa, Zé. Para quem está doente de saudades e de abandono, é ainda pior. Por isso que a mãe fez aquilo. Uma noite, meu irmão, e na manhã seguinte tudo voltaria a ser como era. Você não precisaria ter feito nada, era só esperar a tempestade passar. JOSÉ Algumas tempestades não passam nunca, Pedro. Mãe volta. Entra na casa alterada, possessa. MÃE Vinte e oito. Vocês me ouviram? Vinte e oito. Vinte e oito, Pedro. Onde está o meu caderno? Eu preciso anotar. Vinte e oito... Meu Deus, meu Deus, como eu pude deixar? (Anda pela casa, vasculha os móveis e encontra o caderno). Aqui, está vendo aqui, trinta. Até ontem eram trinta. E foram trinta por duas semanas. Agora são 28, foi só eu me descuidar, um dia de descuido e eles fugiram. Malditos, traidores, malditos, malditos cada um deles. Que a sorte não os encontre mais, que eles se sintam perdidos e desgraçados. (Entre soluços) – Vinte e oito, meu Deus, só vinte e oito... José olha assustado para Pedro. PEDRO (baixo para José) Deixa, deixa, depois ela se acalma. Vamos sair um pouco, nestas horas não adianta dizer nada para ela. JOSÉ Do que ela está falando? PEDRO Do número de famílias que continuam na vila. Mais duas foram embora hoje à tarde, eu vi quando estava vindo pra casa. Eu sabia que ela iria ficar assim, sempre que alguém se vai é a mesma coisa. MÃE (em direção a José) A culpa é sua. Você voltou para me distrair. Só pra isso que você voltou. Você sabia, você sabia que eu não podia descansar, que eu não podia abandonar minha vigília. E me fez ficar aqui, ouvindo suas histórias. Enquanto isso, eles fugiam. Eles fugiam como ratos. Ah, mas não. Não mesmo. Você não vai mais me enganar. Eu gritei, eu gritei na frente da casa deles. Ratos, ratos fujões. Covardes. PEDRO Mãe, a senhora está com o braço sangrando.

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MÃE Me deixa você também. Eu bati na porta de cada um deles. Depois eu corri, eu corri pela vila inteira. Mas já era tarde, eles já tinham ido. Eu não podia ter me descuidado, meu filho, eu não podia. JOSÉ Mãe. MÃE Quieto, você. (Indo em direção a Pedro e dizendo, entre soluços) – Por que, Pedro? Por que eles vão embora deste jeito? Por que eles me abandonam assim, quando eu estou distraída? Por que eles vão embora de um jeito tão silencioso. Eu não posso dormir, Pedro, você tem de prometer. Não, você tem de jurar, isso, você tem de jurar que nunca mais, que nunca mais você vai me deixar dormir. Jura, meu filho, jura aqui. Na frente do seu irmão. Pelo menos de testemunha ele tem de servir. Você viu, não viu? Viu quando eles estavam indo embora. Foi na hora em que você chegou aqui. Você deve ter visto, deve ter cruzado com eles, quem sabe não desejou boa viagem pra eles? Quem sabe até não ajudou a colocar as malas deles em cima do carrinho. Não foi isto que você fez? PEDRO Vi. MÃE E por que não me falou? Eu podia ter feito alguma coisa. PEDRO O que a senhora iria fazer? Se jogar na frente deles? Como é que a senhora ia impedir que eles fossem embora? MÃE Não duvide mais de mim, Pedro, não duvide, não na frente dos outros... (Caminha nervosa pela sala. Vê o aquário e a carta. Olha para Pedro) – O que mais você contou para ele? Riram de mim? JOSÉ A senhora não quer descansar? Cuidar deste braço? MÃE (para José) Você também acha que eu me humilhei, não acha? Todos aqui acharam isso, ninguém teve coragem de dizer, mas eu via no jeito com que cada um deles me olhava. Ir atrás do homem que me abandonou. Foi isso que você contou para ele, não foi, Pedro? Que quando aquela maldita carta chegou eu larguei tudo aqui para ir atrás dele. (Apanha a carta e a rasga) – Ainda que você passe a vida copiando, eu vou rasgar todas elas, até que não sobre mais nenhuma, até que sua mão se canse para sempre.

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PEDRO Eu sempre escreverei uma nova MÃE E eu sempre estarei por perto para destruir. Esta vai ser a nossa guerra. JOSÉ Pedro, acho que é melhor eu sair um pouco. Eu vou dar uma volta pela vila. Você vem comigo? MÃE Não tem mais nada lá fora. Nada mais pra se ver a esta hora. Você vai atrás de quê, de movimento? Ouça sua mãe uma vez na vida, então: vai andar no cemitério. Faz muito tempo que o número de mortos aqui já é maior do que o de vivos. Era isso que você queria saber? José faz menção de abrir a porta, mas a voz da mãe o interrompe. MÃE Eu deixei seu irmão aqui e fui. Eu sabia que a cidade era grande, mas se aquele prédio, o tal de Copan, era mesmo o mais bonito de São Paulo, qualquer um ia poder me dizer onde era. Seu pai sempre viu as coisas de um jeito diferente. Quando eu olhei para o prédio, não enxerguei nada de onda ali. Eu pensei: se é para fazer uma coisa tão grande, por que não fazem direito? Quantos anos esta coisa torta vai ficar em pé? Ninguém nunca tinha ouvido falar no seu pai. O que ele faz? Em que seção ele trabalha?, me perguntavam. Ele trabalhou no porto a vida inteira. Aqui eu não sei o que ele faz. Me falaram para voltar no dia seguinte, de manhã, e conversar com o chefe das obras. Voltei. Ele conhecia seu pai, disse que ele tinha trabalhado na parte elétrica. Mas o serviço dele acabou e ele foi embora. Para onde? Nesta cidade, só Deus sabe, minha senhora. Quando eu já estava quase do outro lado da rua, eu voltei. E a Praça Roosevelt, o senhor sabe onde fica? Esta é fácil. Três quadras daqui. Eu tinha encontrado as duas coisas que o seu pai falou na carta, o Copan e a praça, menos ele. Sentei na praça e fiquei ali, as horas correndo e eu olhando para aquela maldita raiz que tinha quebrado o asfalto. Eu não entendia como é que alguém podia prestar atenção naquilo, achar aquilo bonito, uma coisa tão boba. No que que pode pensar uma pessoa que está sozinha numa cidade que nunca viu, olhando para uma calçada rachada? De tanto me ver sentada ali, veio um homem conversar comigo, um homem de terno azul marinho. A senhora está esperando para comprar ingresso? Não tem mais. Ingresso, que ingresso, eu perguntei. Para o show de hoje. Acabou tudo, ele falou. Eu nem sei de show nenhum, eu disse. Está todo mundo dizendo que vai ser muito bom, dizem que a moça é das boas, ele respondeu. Que moça? O nome dela é Elis Regina, ele falou. Ela vai cantar aqui hoje. É a primeira vez que ela canta em São Paulo. E vai ser aqui na praça. Nunca ouvi falar, eu disse. Nem eu, falou o homem. Mas ingresso eu sei que não tem mais. Quando chegou de noite, o homem abriu a casa para um monte de gente entrar. Eu continuei lá na

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praça, sentada sozinha. O homem voltou. A senhora não quer ver o show? Eu dou um jeito de pôr a senhora lá dentro, de graça. Não faço questão, eu falei. Então o homem entrou e fechou a porta. Era um sexta-feira à noite, como hoje, eu estava sozinha na praça, do lado de uma calçada rachada e ouvindo, de vez em quando, um monte de aplauso para aquela tal de Elis Regina. Eu nunca me senti tão abandonada no mundo. PEDRO Quando a mãe voltou, eu sabia que a primeira coisa que ela ia fazer era rasgar a carta. Mas eu passei aqueles cinco dias fazendo um monte de cópia...Eu conhecia bem a mãe. Mãe levanta-se e caminha até a janela. Fica um tempo olhando para o vilarejo. PEDRO Eu fui demitido hoje. MÃE É uma desculpa para você aceitar o dinheiro do seu irmão? PEDRO Amanhã eu vou ao porto para buscar as minhas coisas. É quase nada que ficou lá. MÃE Por que você e não os outros? Quantos ficaram? Amanhã eu vou falar com eles, eles me devem uma explicação. PEDRO Só ficaram os que vão desmontar os guindastes. É trabalho para mais alguns dias e depois eles irão também. MÃE Até isso eles vão conseguir...mudar a minha paisagem. Sem os guindastes, agora eu vou enxergar a vida sem moldura. E você, o que você pretende fazer? PEDRO Agora eu... MÃE Eu estou falando com o outro. JOSÉ O último navio parte em três dias. Eu pretendo ir embora no mesmo dia. MÃE Sei. E até lá?

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PEDRO Mãe, talvez ele esteja certo. JOSÉ Até lá eu não sei. Três dias passam rápido. PEDRO Aqui, nem sempre. Pedro aproxima-se de mãe, que continua de costas, olhando pela janela. PEDRO Talvez a gente não tenha muito mais o que fazer aqui mesmo. Sem o porto eu....a senhora sabe, é o único emprego que eu tive aqui também. Nós temos três dias, mãe...A gente consegue arrumar tudo e ir embora com o Zé. Nem que a gente não leve tudo de uma vez só, só para aproveitar e ir com ele. MÃE Para onde você quer nos levar? JOSÉ Brasília. MÃE Tão longe de tudo. JOSÉ A vida está começando lá. MÃE Quantas vezes na vida a gente é obrigada a começar? PEDRO Eu pensava que era para São Paulo, Zé. Depois da carta do pai, o que eu tenho vontade de ver está em São Paulo. MÃE Um prédio e uma praça. Eu posso dizer para você, Pedro: é muito pouco. O problema do seu pai era este. Ele sempre viu além do que era preciso. Mãe fecha a janela e se dirige ao interior da casa. PEDRO (vendo que a mãe se afastou) Talvez hoje ela durma. JOSÉ

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Amanhã eu vou com você ao porto, buscar suas coisas. PEDRO Só se você fizer questão, mas não precisa. Não é o mesmo lugar de quando você saiu daqui. Se eu fosse você, eu ficaria com aquela lembrança. (Pausa) Zé, lá em Brasília, para onde você quer levar a gente, o que a gente vê quando abre a janela? JOSÉ Nisso a mãe tem razão, Pedro. É muito longe de tudo, mas as coisas vão mudar. Pedro caminha em direção ao quarto. JOSÉ Pedro, não é só um prédio e uma praça. Se fosse, o pai não teria falado deles para você. Talvez ele queria que você fosse até lá algum dia. Quem sabe para ver com os seus olhos, não com os da mãe. PEDRO Antes de Brasília você acha que eu devia ir pra São Paulo? Procurar a Praça Roosevelt? Eu acho que já cimentaram a raiz de novo, meu medo é esse. JOSÉ É quase no caminho, Pedro. PEDRO Faz dois anos que a mãe foi. E ela nunca tinha contado a história desse jeito que ela contou hoje. Ela só tinha falado do prédio e que não encontrou o pai por lá. Você acha que aquela moça do show, a tal da Elis Regina, ainda canta na praça? JOSÉ A gente pergunta. Mas em São Paulo, não sei... Tudo parece mudar tão depressa por lá. Talvez hoje a moça já cante em outro lugar. Pedro retira-se para o interior da casa. José adormece na poltrona. É madrugada. Mãe retorna à sala. Sua figura é espectral. MÃE Os trovões. Como é que você consegue dormir com tantos trovões? Esta noite eles não pararam um minuto. O vento, o vento destruiu o píer, eu ouvi o barulho daqui, você não ouviu?. Nós precisamos fechar, fechar tudo...a casa, as janelas. Você não quer ver o tamanho das ondas? Eu vou abrir um pouco a janela para você ver... Não, agora não. Elas vão chegar até aqui, eu tenho medo de que elas nos arrastem, nestas noites elas são muito perigosas. A nossa vila, o nosso mundo, se esta tempestade continuar, amanhã não vai restar mais nada. Não vai restar mais nada de nós aqui....

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Mãe vaga pela sala. José permanece em silêncio. MÃE Você não se assusta? Ouça, ouça os trovões. Como é que você pode ficar assim calmo? (Mãe leva a mão aos ouvidos, seu corpo está tenso, amedrontado). O menino também não acorda, ele dorme como se o céu estivesse estrelado, como se fosse uma daquelas noites em que está tudo parado, até a maré....Naquelas noites em que a gente tem certeza de que vai ter sol na manhã seguinte e de que a vida é boa, é assim que ele dorme. Eu o vi, eu acabei de sair do quarto dele...ele já tem doze anos, mas dorme como se fosse uma criança de colo. Eu acho que as crianças nunca percebem nada. Dizem que percebem, mas não. Elas dormem de um jeito tão tranqüilo que eu me pergunto se algum dia eu vou dormir assim de novo... E você aqui, você também não se assusta com nada. Mãe continua a caminhar pela sala. Vê a mala. Passa a mão por ela. MÃE É uma noite tão perigosa para ir embora. Ninguém pode abandonar a vila hoje. Não há mais píer. A estradinha está alagada, com muito menos chuva ela já alaga toda. E eu não me lembro de uma noite assim, tão escura. (Começa a se aproximar de José) – Você se parece tanto com o seu pai. Todos na vila dizem isso. Você sabe que teve gente que chorou hoje à tarde, quando você voltou, não sabe? Todos pensaram que era seu pai voltando. Mas eu me controlei, porque eu sabia que seu pai não voltaria. Desta vila toda eu sempre fui a única que sempre soube que ele não voltaria, por isso eu fui atrás dele. Depois que ele foi embora, você foi ficando ainda mais parecido com ele. Como se o sumiço dele já não fosse castigo suficiente para mim. Eu era obrigada a ver você, dia após dia, cada vez mais parecido com ele. O tom de voz, o jeito de comer, o modo de voltar do mar, as curvas do corpo... (Aproxima-se ainda mais de José, agora tem o rosto muito próximo ao do filho)... E o cheiro, o mesmo cheiro dele. Esse maldito cheiro. JOSÉ (esquivando-se) Mãe, por favor... MÃE (segurando-o pelo rosto) O mais duro sempre foi o cheiro. O resto eu sempre controlei, mas o cheiro atiça demais a saudade. Eu sabia que se eu chegasse mais perto, um pouco mais perto, assim, a saudade toda... e o ódio que eu sentia do seu pai...um pouco mais perto, José, um pouco só... E você ia ser para mim melhor do que o seu pai foi. José, num gesto brusco, empurra a mãe. Corre e abre a janela. JOSÉ Olha, olha pra fora. Não tem chuva nenhuma, não tem trovão nenhum, mãe. Nem vento, nem nada... A vila dorme. MÃE

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Você sempre quis ser melhor que o seu pai, José. Em cada coisa que ele fazia, em cada palavra que ele dizia, eu via na sua cara o desejo de superar aquele homem. Não desperdiça esta chance, José. Com nenhuma outra mulher do mundo você vai conseguir ser melhor do que o seu pai, só comigo. JOSÉ Chega, mãe. Não desta vez. Olha a vila, tá tudo tão claro lá fora. Hoje a senhora não precisa ficar com medo de nada. MÃE (vencida) Nem na hora de me abandonar você consegue ser bom... José apanha a mala e a leva até a porta. MÃE Não eram três dias? Já se passaram três dias? JOSÉ (indo em direção ao interior da casa) Eu vou acordar meu irmão. Ele vai comigo para Brasília. Se a senhora quiser ficar, eu não vou mais insistir. Mas ele tem de ir. MÃE Deixa que ele durma. Ele é tão menino para ir embora. Ele só tem 12 anos, José. Os meninos de 12 anos não abandonam assim suas mães. E nada o acorda, nem os trovões, nem o vento, nada... JOSÉ (grita assustado) Pedro! MÃE Quieto.Hoje ele dorme como uma criança, depois de tanto tempo e de tantos sustos... José corre para o quarto de Pedro. Ouve-se seu grito do interior. JOSÉ Pedro! Pedro! Mãe senta-se na poltrona. José volta à sala estarrecido. JOSÉ (num choro de dor e raiva) A senhora não podia....Ele nunca saiu daqui...Ele nunca viu nada do mundo. Como é que a senhora teve coragem? Mãe aproxima-se de José e lhe dá um abraço. José deixa-se cair em seus ombros e continua a chorar.

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MÃE Calma, José. Agora as coisas vão ficar bem. Ninguém mais vai precisar ir embora. (Com carinho, mãe alisa o cabelo do filho) - Sabe o que eu vou fazer amanhã? Espere um pouco. Mãe acomoda José na poltrona, dirige-se ao interior da casa e volta com uma jarra de água. Despeja a água no aquário até enchê-lo. MÃE Amanhã nós vamos juntos pegar peixes para você. E nunca mais ninguém precisará sair desta casa, José. À noite, à noite nós iremos juntos, eu e você, contar quantas famílias ainda estão na vila. Hoje são 28, você não pode se esquecer, meu filho, 28. Jamais podemos perder a conta. Nós temos de ficar atentos, mais do que nunca. Mãe aproxima-se de José, senta-se no braço da poltrona e abraça a cabeça do filho. MÃE Nós vamos pegar mais peixes vermelhos, os amarelos não duram muito. E vamos batizá-los juntos... você se lembra, não... eu nunca consegui aprender o nome deles, por isso nós vamos escolher juntos um nome para cada um deles. Um nome bem bonito, e fácil de decorar...A nossa vida vai continuar aqui, meu filho. Como sempre foi. E todos os nossos dias serão iguais. Esta é a nossa grande benção. E o nosso maior castigo. Agora vamos dormir, José. Os trovões já passaram. Beija demoradamente a cabeça do filho. FIM

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