A Noite Em Que Prenderam o Pai Natal

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  • 8/18/2019 A Noite Em Que Prenderam o Pai Natal

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    N O I T E

      E M Q U E P R E N D E R M  O P I N T L

    O   ve l ho Pascoal t i n ha u r na ba rba c om p r i da , bra nc a ,  m u i t o  branca, que lhe caía

    e m

      t u m u l t o

      pelo peito. Estilo? Nao: era desleixo, desleixo mesmo, puríssima,

    ge nu ína m i se r i a . Ma s fo i p or causa  daquela barba que e le conseguiu trabalho.

    Po r  isso  e por ter nasc ido albino, pele de  osga  e piscos olhinhos cor-de-rosa,

    sempre escondidos p or detrás de uns enormes óculos escuros. N aquela época, já

    n em

      pensava m ais em procu rar emprego, certo de que mor rer i a em breve num a

    rúa qualquer da c idade, m ais de tr isteza do que de fome , pois para se a l im entar

    bastava-lhe a sopa que todas as noites lhe dava o General, e urna ou outra

     codea

    de pao descoberta nos contentores. Á n oite , do rm ia na cerve jar ia , na

     mesa

      de

    bilhar,  enrolad o nu m cobertor , ou tro favor do General , e sonhava com a pisc ina.

    T i n h a

      t r a ba l ha do qu a r e nt a  anos  na pisc ina - desde o   p r i m e i r o  d i a -

    como zelador .  Sabia  1er, contar, e ainda todas as devocóes que aprenderá na

    Missáo, sem falar na honest idade, higiene , amor ao trabalho. Os brancos gos-

    t avam

      dele, era  Pascoal  p a r a  aqu i ,  Pascoal  para a l i , con fiav am -lhe as cr iancas

    p e qu e ña s , a l gu ns a t é o c onvi da va m p a r a joga r fu t e bol ( fo i u m bom gu a r da -

    -redes) , outros segredavam confidencias, pediam o quarto emprestado para

    fa z e r na mor os . O qu a r t o de

      Pascoal

      f icava junto aos vest iar ios mascul inos.

    A q u e l a

      era a sua casa.  Os br a nc os da v a m-l he p a lma da s ña s costas:

    -

      Pascoal

    o ú ni c o p r e t o e m A n go l a qu e t e m  casa  c om p i sc i na .

    Pdam-se:

    -  Pascoal o preto mais branco de Áfr ica .

    C o n t a v a m

      p iadas sobre a lbinos:

    -  Conheces  aquela do

     soba

    no D i a da

     Raca

    que  fo i  c onvi da d o p a r a d i scu r

    sar?

     O ga jo su biu ao palanque,

     a f in o u

     a voz e c ome c ou : « A qu i e m A ng ol a somos

    todos portugueses, brancos, pretos, mulatos e a lbinos, todos portugueses».

    Os p r e t os , p e l o c ont r a r i o , na o gost a va m de

     Pascoal.

     A s m u l h e r es m u x o x a -

    v a m ,  c u sp i a m qu a ndo e l e  passava o u , p i o r  do que isso,  fingiam  n e m  sequer  o

    ver.

      As cr iancas sal tavam o  m u r o ,  m a dr u ga d i nh a , e l a nc ava m-se á p i sc i na . E le

    t i n h a

      de se levantar, em

      cuecas

    para os  t i r a r  de l á . U m di a c om p r o u u r na e s

    pi ng ard a

     de c hu mb o, u r na p r e ssá o-de -a r e m se gu nda má o , e p a ssou a d i sp a r a r

    c ont r a  elas emboscado por detrás das  acacias.

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    J O S É  E D U R D O G U L U S

      C T Á L O G O

      D E

      L U Z E S

    Q u a n d o

      os portugueses  f u g i r a m ,

     Pascoal

      co m pr een d eu que o s d ias f e liz es

    h a v i a m   cheg ad o ao f im . Ass is t iu co m d esg ost o á en t r ad a d o s g ue r r i l he i r o s ,

    ao s  t i r os ,  ao  saque  da s  casas.  O que m ais l he cus t o u , no s meses  seguintes , fo i

    vé- l o s en t r ar n a p isc ina , cam ar ad a par a

     a q u i ,

      c a m a r a d a p a r a

      al i ,

      co m o se já

    n ing uém t ivesse n o m e. As cr iancas , as

     mesmas

      que ant ig am en t e , que

     Pascoal

    expul sava a t i r o s d e pr essá o -d e-ar , f az iam

      x i x i

      do al to das pranchas. Até que,

    n u m a  cer ta tarde,  f a l t o u  a ag ua . N ao ve io no d ia seg uin t e , n em n o  o u t r o ,  n e m

    nunca m ais . O c l o r o acab o u po uco d epo is . A p isc in a  m u r c h o u .  F ico u am ar e l a ,

    d e u m a m a r e l o b a c o ,  ficou  a i n d a m a i s

      baca

    e súb i t am en t e

      encheu-se

      de ras.

    A o p r i n c i p i o ,

      Pascoal

      t en t o u co m b at er a in vasá o  i n d o  buscar a espingarda.

    N a o

      r esu l t o u . Qu ant o m ais r as m at ava , m ais r as apar ec iam , r as fe l iz es , en o r

    m es , que ñas no i t es d e l úa che ia can t avam at é d e m ad r ug ad a , ab af an d o o eco

    do s  t i r os ,  ao longe, e o  l a t i do  d o s caes.

    U r n a  especie

      de

     cansaco

      desceu por sobre as casas e a c id ad e co m eco u a

    m o r r e r .

      Á f r i c a - v a m o s c h a m a r - l h e a s s i m -  v o l t o u  a apoderar-se do que fora

    seu . Ab r i r a m -se cac im b as no s qu in t á is . Acend er am -se f o g ueir as no s

      j a r d i n s .

      O

    c a p i m   r o m p e u o a s fa lt o ,  i n v a d i u  os passeios o s m ur o s , o s pat io s . Mul her es   p i -

    l a v a m

      m i l h o  nos salóes. Os f r igor íf icos passaram a servir para guardar sapatos.

    P iano s d er am

      excelentes

      co e l he i r as . G er acóes d e

      cabras

      cr escer am a co m er

    b ib l io t ecas ,

     cabras

      eruditas , especial izadas em

      l i t e r a tur a

      f rancesa, urnas, outras

    e m

      f inan cas o u

     a r q u i t e tu r a . Pascoal

      esvaz io u a p isc ina ,

     l i m p o u - a ,

      j u n t o u  t o d o

    o d i n h e i r o q u e t i n h a e c o m p r o u g al i n h a s . P e d i u d e s cu l p a á p i s c i n a :

    - A m ig a - d isse - l he - é só po r a l g uns

      meses.

      V o u v e n d e r o v o s , v e n d o

    os   p i n t o s e c o m p r o  agua boa,  compro  cloro

    v is

      voltar

     

    s e r b o n i t a c o m o

    a n t i g a m e n t e .

    Os t em po s que se seg uir am , po r ém , f o r am a in d a p io r es . U r na t ar d e , apa-

    r ecer m

      sold dos

     e Ievar am as g a l inhas .

     Pascoal

      nao disse nada. Devia, talvez ,

    te r

      d i t o

      a l g um a co isa .

    -  Esse  a l b i n o e s tá a r m a d o e m a r r o ga n t e - i r r i t o u - s e u m s o l d a d o - D e v e

    pensar que é b r anco , ve jam só , um b r anco d e im i t acá o .

    B a t er a m - l h e . D e i x a r a m - n o c o m o m o r t o d e n t ro d a p i s c i na . Meses d epo is ,

    v i e r a m   o u t r o s s o l d a d o s . T i n h a m - l h e s  d i t o  q u e a l i h a v i a u m a l b i n o q u e c r i a v a

    g a l i n h a s , e c o m o n a o e n c o n t r a r a m n e n h u m a ,  éctezQ JMtexawJh^tamten:

    A

      g uer r a r eg r esso u co m

      m u i t a

      r a i v a . A v i ó e s b o m b a r d e a r a m a c i d a d e , o

    que r es tava d é l a , d ur an t e c in q uent a e c in c o d ias . A o t rig és im o sext o , ur na d as

    b o m b a s  d e s t r u i u a p i s c i n a . D u r a n t e semanas a n d o u  Pascoal á d er iva po r en t r e

    os escombros.

    U r n a

      v e z a p a r ec e r am t re s h o m e n s d e j i p e , u m b r a n c o , u m m u l a t o , u m

    pr e to ,

      e t o d o s d e

     casaco

     e gravata.

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    N O I T E

      E M Q U E

      P R E N D E R M

      O P I

      N T L

    - M e u D e u s , m e u D e us - L a m e n t o u o m u l a t o , f a ze n d o c o m a m á o u m

    largo

     gesto

      de desá ni m o - Foi u m u rb i c íd i o i s t o , u m u rb i c íd i o .

    Pascoal

      n a o  sabia  o s i gni f i ca do da pa l a vra m a s gost ou dél a . « Foi u m u r

    bicíd io», rep et iu , e a inda hoje, sempre que se lemb ra da piscin a, f ica horas a

    rem o er a qu ela f ra se : « Foi u m u rb i c íd i o , a qu i l o , u m u rb i c íd io .» U rna t ropa de

    b ra ncos

      m u i t o

      es t ra ngei ros , t odos com cha peu z i nhos a z u i s , recol heu -o nu m a

    m a d r u g a d a de chu va e t rou x e -o pa ra Lu a nda . F i cou doi s d i as no  h o sp i ta l ,  o n d e

    l he t ra t a ra m da s fer i da s e l he dera m de com er . Depoi s m a nda ra m -no em b ora .

    O   velho passou a  v ive r  na rú a . U m di a , era dez em b ro e faz i a

      m u i t o

      calor, o

    i n d i a n o

      do no vo su perm erca do, n a Mu t a m b a , ve i o fa l a r com ele :

    -  Precisamos  de u m P ai N a t a l - d i sse- l he - cont i go pou pá va m os na b a rb a

    e, a lém disso, como tens um

      t ipo

      nórdico, f icava a coisa  mais autént ica .  Esta-

    m os a da r t res m i l hóes po r d i a .

     Serve?

    A   fu ncá o del e era f icar em f rent e a o su perm erca do , ves t i do co m u m p i

    ja m a verm el ho, e de b a rret e na

     cabeca

    C o m o

      estava

     m a g r i n h o , f o i n e c e s s ár i o

    a m a rra rem - l he du a s a l m ofa da s na b a rr i ga .

     Pascoal

      sofría com o calor, suava o

    d ia in te i r o  debaixo do sol mas, pela  p r i m e i r a vez ao f im de mu itos anos, se nt ia-

    -se

      feliz.

      A s s i m v e s t id o , c o m u m

     saco

      na máo, ele oferecia prendas ás crianci -

    nha s (preserva t i vos doa dos po r u rna orga ni z a cá o ná o-gov erna m ent a l

      sueca

      ao

    M i n i s t e r i o

      da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja .

    « Sou o P a i N a t a l ca m b u l a dor» , ex p l i cou a o Genera l .

    C a m b u l a do r fo i o f i c i o em A ngo l a a té á p r i m e i r a  metade

     deste

      século: gente

    contratada para a l iciar cl ientes á port a dos estabelecimentos com erciáis . Cada

    d ia  Pascoal

     gostava m ais daquele

     t r aba lh o .

     A s criancas

      c o r r i a m

     pa ra ele de bracos

    a b er tos . A s m u l heres r ia m -se , cú m pl i ces, p i sca va m -lhe o o l h o (nu nca n enh u m a

    m u l h e r

      l he t i nha s or r id o) ;  os hom ens cu m pri m ent a va m -no com deferenci a :

    - Boa tard e, Pai

      Na ta l Este

      a no com o é qu e

     estamos

      de prendas?

    O   velho apreciava sobretudo o espanto dos meninos da rúa. Faziam roda.

    P edi a m   m u i t a  l i cenca para tocar o

      saco

    U m , p e q u e n i n o , f r a q u i n h o , s e g u r o u -

    -lhe as

      calcas:

    - P a i z i nho N a t a l -

      i m p l o r o u

      - me dá um baláo.

    Pascoal

     t i n h a i n s t ru c ó e s severas para só oferecer preserv at ivos ás criancas

    a com pa nha da s , e m esm o a ss i m dependía do a spet o da com pa n hi a . O c ont ra t o

    era c l a ro : m e ni no s da rú a devi a m ser enx ot a dos .

    A o

      f im da segunda semana, quan do a loja fechou ,  Pascoal  dec i d i u na o

    t i r a r

      o disfarce e fo i naquele es cánd alo para a cerve jaria . O G ener al

      v i u - o

      e nao

    disse nada. Serviu-lhe a sopa em si lencio.

    - Faz

      m u i t a

      m i s e r i a

      neste

      país - queixou-se o velho enquanto sorvia a

    sopa - o cr i m e recom pensa .

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    J O S É  E D U R D O G U L U S •  C T Á L O G O  D E  L U Z E S

    Nessa  no i t e na o son hou c om a pi sc ina . Vi u u r na senhor a  m u i t o  b o n i t a

    descer do céu e pousar na be ira da

     mesa

     d e

      bi lhar.

      A senhora usava u m vest id o

    c o m p r i d o

      com pedr i nha s b r i l ha nt es e u r na cor oa dou r a da na   cabeca.  A l u z

    sal tava-lhe da pele como se ela

     fosse

      u m ca ndeei r o .

    - Tu és o Pai Na tal - disse- lhe a senhora - M an de i-te aqu i para a judar os

    m e ni no s despa r da la dos . Va i á l o ja gu a r da os b r i nqu edo s no  saco e

      d is t r ibu i - o s

    pelas criancas.

    O

      ve l h o a cor do u es t r em u n ha do. N a noi t e densa em r edo r da

     mesa

     d e b i

    lhar

    f l u t u a va u r na po ei r a i nca ndescent e .

      V o l t o u

      a enrolar-se no cobertor mas

    nao conseguiu adormecer . Levantou-se vest iu-se de Pai   Na ta l p e g o u n o

     saco

     e

    sa iu pa r a a r ú a . Em pou co t em po chegou á M u t a m b a . A l o ja

      br i l h ava

    e n o r m e

    na pr aca deser ta com o u m di sco voa dor . A s

      arbies

      o c u p a v a m a m o n t r a

      p r i n

    c ipa l cada  u r na no seu vest ido m a s t oda s com o m esm o sor r i so ent edi a do. N a

    o u t r a

      m o nt r a es t ava m os m onst r os m ecá ni co s as pi st o l a s de pl á s t ico os  c a r r i -

    nhos e l é t r i cos .

     Pascoal sabia

      que se partisse o  v i d r o dessa m o n t r a c o n s e g u ir i a

    passar

      a máo através das grades e abr ir a porta . Pegou numa pedra e

      p a r t i u

      o

    v i d r o .  Já  estava  a sa ir com o

     saco

      com p l et a m ent e chei o qu a n do a pa receu u m

    pol íc i a . N o m esm o i nst a nt e a t r ás del e acendeu-se  u r na acacia,  na esquina e

    Pascoal

      v iu a senho ra a so rr ir para ele f lu tua nd o sobre o lum e das f lores. O

    pol ícia nao pareceu dar por nada.

    - Vel ho sem ver gonha -   g r i t o u  - Vais dizer-me o que levas

     nesse

     saco?

    Pascoal

      sent iu que a sua

      boca

      se abr ía sem que

      fosse essa

      a su a vont a de

    e ou v i u -se a d i z er :

    - Sao

      rosas,

      senhor .

    O

      po l íc i a o l hou -o confu so :

    -  Rosas?  O ve l ho es tá ca c i m b a do. . .

    Deu - l he u r na cha pa da com as

      costas

      d a m á o .

      T i r o u

      a p i s t o l a do co l dr e

    a pont ou -a á cabeca  dele e   gr i tou:

    - Sao  rosas?  E n t á o m o s t r a - m e l á

     essas rosas

    O   ve l ho hes i tou u m m om ent o . Depoi s  voltou  a olhar para a  acacia e m   flor  e

    v iu  ou tra vez a senhora so rrin do para ele belíssima tod a ela urna festa de  luz.  Pe

    go u

     n o saco  e despejou-o aos pés do guarda. Era m

     rosas,

      realmente - de plástico.

    M a s e r a m

      rosas.

    [6 ]