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Ulll Por que "norma"? Por que "culta"? No que diz r es peito às questões li ngüís- ticas, o conceito de rwr ma ma:rgcm a muit a d . - , · 1 Nr . , . H. . d iscussao teo nca . o _ 1 . cwnano ouau; s a Língua Por t..uguesa fica evidente a duplicidade de noções contida na palavra norma quando se trata de ng ua: 4 Rubrica: lingüí stica, gramática conj Ui lto dos preceitos estahelccidos na selc- çã.o do que deve ou não ser usado numa certa língua, levando e.m conta fat0rcs lin- 1 Ru.sta ver, por exemp lo , as diversas e diferentes propostas de amílise do conce ito de "norma''' que apare- cem nos ensaios dos muitos autores (cswmgei:ros e bra - s il eiros} reunidos nos vros Norma língii i.5tíca (2001} e lingüística da nonna ( 2002} (ver referências completas 11.11 Bibliografia).

A Norma Oculta - Marcos Bagno

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Ulll

Por que "norma"? Por que "culta"?

N o que diz respeito às questões lingüís­ticas, o conceito de rwrma dá ma:rgcm a muit a d. - , · 1 Nr n· . , . H. . d iscussao teonca . o _ 1.cwnano ouau;s a Língua Port..uguesa fica evidente a duplicidade de noções contida na palavra norma quando se trata de língua:

4 Rubrica: lingüística, gramática conjUilto dos preceitos estahelccidos na selc­çã.o do que deve ou não ser usado numa certa língua, levando e.m conta fat0rcs lin-

1 Ru.sta ver, por exemp lo, as diversas e diferentes propostas de amílise do conceito de "norma''' que apare­cem nos ensaios dos muitos autores (cswmgei:ros e bra­sileiros} reunidos nos lívros Norma língiii.5tíca (2001} e lingüística da nonna (2002} (ver referências completas 11.11 Bibliografia).

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güísticos e não lingüísticos, como tradição e valores socioculttll'ais (prestígio, elegância, estética etc.)

5 Rubrica: lingüística tudo o que é de uso corrente numa lfogua relativamente estabilizada pelas instituições sociais.

Como é possível, nwn mesmo campo de inves­tigação~ llsar um únko termo para o que é "'preceito estabelecido" e para o que é "uso corrente"? Diversos autores~ realmeute, desta­cam o fato de que do mesmo substantivo nor·­ma derivam dois adjetivos - norma l e norma­tivo - usados com sentidos bem distintos. O normal é o que descreve a acepç,ão 5 do dicio­nário de Houaiss, enquanto a acepção 4 se re­fere ao normativo. O antropólogo canadense S. Aléong assim define cada um deles (2001.: 148):

Se se emende por normativo um ideal defi­nido por j ufaos de valor e pela presença de um elemento de. reflexão consciente da parte das pessoas concemidas, o normal pode ser definido no sentido matemático de freqüên­cia real dos comportamentos observados [g.rifos meus].

Descrição semelhante se encontra na-; refle­xões do lingüista francês A. Rey (2001: 116):

Antes de toda tentativa de defiuil· a "nor­ma", a consideração lexicológica mínima descobre por t rás do teimo dois conceitos. um atinente à obscrvai,.:ão, o outro à elabo~ raç.ão de um sistema de valores; um corres­pondeme a uma situação objetiva e estatís­~ca, o outro a um feixe de intcnç,ões subje­llvas~ A mesma pulavra, utilizada sem prc­cauçao, corresponde ao mesmo tempo à idéia de médfo: de freqüência, de tendência ueral-

c ~eote e habitualmente realizada. e à de conformidade a uma regra, de juí~o de va­lor, de finalidade designada.

Essas op~sições ficam muito claras quando apa­recem dispostas lado a lado:

n01mal normativo

• uso coneme • real

• preceitos • ide.ai

• comportamento • observação • situação objetiva • média estatística • freqüência • tendêncin getal e habitual

• reflexão consciente • elaboração • intrnçõc,-s subjetivas • conformicladc • juízos de valor • finalidnde designada

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42 Essa duplicidade de sentidos registrada no diciouário, e de"tecr.acla por Aléong e Rey, apa­rece muito claramente no discurso das pessoas que íalam sobre a língua, seja no campo da iiw cs1 igaç,ão cier~tífica ou na abordagem leiga do tema. Para piorar a situação, a palavra norma quase 111.mca anda soziuha. Dona Nor­ma, na maioria das vezes; é citada com nome e sobrenome, 5sto é, vem seguida de al.gum qua lificativo que tenta defini-la mais cspcciJi ­camcnte. Dos diversos adjetivos usados para qualificar a norma, o mais commn, certamen­te, é o adjetivo culta, e a expressão norma cul­ta circula livreruente nos jornais, na televisão, na iuternet, nos livros didáticos, na fa la dos professores, nos rnrumais de redação das gran­des empresas jornalísticas, nas gramáticas, nos textos científicos sobre língua etc. Mas o que é, afinal, essa norma culta? Ela se refere ao que é (ao normal, ao freqüente, ao habitual) ou ao que deveria ser (ao 11orrnativo., ao ela­borado, à regra imposta)?

A maior difü:,'U ldade em lidar com a norma culta é precisamente o foto dela ter dupla personali­dade, o fato de por trás desse rótulo - norma culJ,cJ. - se esconderem dois conceitos opostos no qne diz rcspeiw à língua que falamos e es­crevemos. Vamos ver do que se trata.

Nomv. CULTA: t:M PHECONCEl'J'O .MILENAH

O primeiro desses conceitos é o que podería­mos chamar de do senso comum, tradicional º.u ideol~gico, e é a.qi1efo que tmn mais ampla c1rculaçao na sociedade. Na verdade, 1.ra1a-se

mu.ito mais de um preconcei/,() do que de um conceito propriamente dilo. E que p reconceilo seria esse? E o preconceito de que existe uma Úl~ca maneira :'certa '1 de falàr a língua, e que sen a a<~ele conjt.mto de regras e preceitos que a~arece estampado nos üvros chamados gramá­úcas. Por sua vez1 essas gramó.l.icas se hnsea.­riam, supostamente, num rlpo pecufüu· de ativi­dade lingüística - exclusivamenle escrit.a - de um grupo muilo especial e sclcco de cidadãos. os grn.udcs estilistas da língua, que t.amhém cos~1-mam sc1· chan1ados de ''os clássicos'1 • luspirados nos usos que aparecem nas grandes obras lile­rárias, sobretudo do passado, os gr'dliláticos ten­tam preservar esse::; usos rnmpondo com eles wn modelo de língua, um padrão a sc,i· ohscrva­do ~or todo e qualq11er folimtc que deseje usar a líagua de maneira "correta ", "civilizaria" "elegante" etc. É esse modelo ql.le recebe. tra~ dicionalmente, o nome de rwrma culta. V~mos ver, por exemplo, como alguus importantes gramáticos definem o seu trabalho e. deutro dele, como usam o adjetivo culta. . 43

44 Os filólogos Celso Cunha (brasileiro) e Lindley Cintra (po1iugnês ) , ao apresentarem sua Nova gramática do português contemporâneo (1985: xiv), assim escrevem:

Trata-se cre uma lentativu de descrição do

português atual na sua forma culta, isto é, da língua c:omo a rfan utilizado os escritores portuguesrs, brasifoiros e africa nos rio Ho­rnaut ismo para. cá.

Já Rocha Lima, cm sua Gramática normativa da Língua portuguesa (1.989: p. 6 \ declara:

FlUldmncmtam-i;e a 1> regra;; da Cl'amát.ic u

Normativa mi.s obrus dos grandes esc:rilores, ern cuja linguagem as classes iluso:adas pÕl'Jn o seu idcaJ de perfeição, porque nela é que ~e espelha o qne o uso idiomáti co c~tabili-

. zou e consagrou .

E vanildo Dechara não usa o adjetivo cuüa -prefr.re 1uu eufemismo: " língua exemplar", que define de modo eonfuso e pouco consisrente - , mas também se refere à .literatura. Assim, na rnab recente eclição de ,;ua :'1/odema gramática da 11.ngua portuguesa (1999: 52), ele explica:

A gramática normativa recomenda como se <leve falar e -t'screvcr segundo o uso e a au­toridade dos escritores corretos e dos gramáticos e cücionaristas esclarncidos.

Mas q ucm é que diz se mu detenuinado escri ­tor .. é ou não é correto? E, pio r ai oda. quem <lefiue se este ou aq11eJe gramático é ou uão <>scln.rccido? O autor uão explica, o q11e pode Je,~ar ~ g~nte a pensar que é ele próprio quem vai an·ilil.Ul· a si m r,smo autuiidad~ ))asta11te para l\.;ta helecer esses ciitérios de das..'iifkaç.ão ...

Evitando falar de literatura, o c,onhecido com­pêndfo gramatical de Domin.cros Pasdwal Cegalla, Novíssimo gramática d°a lí.ngua por­tuguesa (1990: xix), é apresentado <lo seguin-te mudo: ·

Este livro pretende ser wnu Crnmátic:a Nor­mativa da Língua Porluguesa, conforml' A fa­lam e escrevem m; pessoas cultas na. íSpoca atual.

Muito beru. ~fas quem são essas pessoas cul-1 ? () . , . as. ue cn tenos o autor utilizou rara cla.s:;i-ficá-ln.s assim: onde, quando e com que

metodologia científica? Ele não esclarece, e o que vemos, consu ltando o livTo, é <.JUe os exem­plos são tirados ou de sua própria irnarrinação

. o . 0 11, ma.is uma vez, de obras literá rias.

Todos esses autores .. porfanto. ao <lefiuir assim u lingua cu/la, ou.forma culta, ou norma r:al­ta, ocupam o lugar que lhes calH! numa. lon­guíssima fila de estudiosos da Ifugua que. há

46 quase 2.500 anos, associam üngua culta com escrita Lilerária. Essa é uma tradição que co­m eçou por vo1te do século 111 a .C., eutrc os filósofos e filólogos gregos, quando f oí criada o. própria disciplina batizada de gramática. Aliás, s.intoma1icamente. a palavra gramá­tica, cm grego, significava , na oiigcm, "a ru:te de escrever~\ . Ao se interessar exclusivamente pelo. língua dos grandes escritores do pus:;ado, ao dcsprcziu- completamente a língua falada

d d " , . ., t.< j] , • ,. '" • (consi era a caotica· , · og1ca ·, estropia-da"), e tam.bém ao classificarem a mudança da lfogua ao longo do t empo de " n.úna'° ou "'deca<lênóa '\ os fm1dadores da disciplina gra­ma tica I cometci·ain um eqlúvoco que podería­mos chamar de '"'pecado original y, dos estudos tradicionais sobre a língua. Foram eles e sem; seguidores, de fato, que plantaram as semen­tes do preconceito lingüístico, Cflle iam dru· tantos e tão am argos frntos ao longo dos sécu­los segui.nres. Foram eles que sacralizaram na cultura oc:idcuto.l o mito de que e..-xiste "erro" na língua, principalmente na língua falada . Por isso, at é · hoje~ as pessoas julgam a líng ua fala.da usando corno ÍlJstrumento de m edição a líugua escrita. literáiia mais consagrada: qual­quer regra lingüística. que não esteja prese111c na grande literatura (e como são numerosas essas regras!) é imediatamente tachada de

'1en-o". É essa dout rina milenar que orienta as

observações de Dora Kramer! Daniel Piza e muita gente mais: uma crenç,a que teve lauto tempo para se cristalizar, para se petrificai·: que é pra­ticamente in1possível convencer as pessoas do contrário - afinal, é uma crença m ais an1 iga do que os dogmas da própria religião cristã!

O uso da linguagem literá ria como material de investigação para a <lescriçõ,o/pres<.:riçõ.o de uma norma (de um conjumo de regras) podia se justificai·, na Autiguidade e na ldade Média, pelo fato da literatura ser praticrunentc a única forma de expressão da lfr1g11a escrita mais monitorada d1Lrante aqueles peiíodos hist<)ricos. Naquela época não tinha jomal nem revista, niio existiam m eios de cormmicaç,ão de massa, nem telefone, nem rádio: nem fax, nem inten1el.. ..

TamMm não tinha J'eito de re!ristrar a límma 17 17

falada para que fosse usada como material de estudo {isso só aconteceu depois da invenção do gravador, no século~"'<). O único modo de es-1 udnr a língua era por meio da cscri~ e a única escrita à qual se tinha acesso era a literária, que incluía não só as obras de ficçã.o, mas tamb ém as de filosofia e teologia. Mesmo as earrns pessoais eram escrito.:; sob a iníluência das re­gras da retórica cláss.i.ca, que exigiam floreios sintáticos e vocabulário ,:equimado.

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Hoje, no séc1Llo XXl, a opção pela literatura como "'m odelo"' de língua a ser ··imitado;' é, no míuirno, absurda. O impacto da liuguagern literária sobre uma sociedaJe como a brasile i­ra, por excrn1)lo, . é úllimo. Tradicionalmente. somos tun povo que lê pouco: nossas práticas sod.ais, mesmo entre as classe.s abastadas, sem­pre foram muito mais guiadas pelf.I o ralidade do que pela cultura livresca. Por outro lado, a literatura que, de fato, exerce poderosa infln­ênda sobre a maioria dos brasileiros é a poe­sia da nossa rica música popular. ou seja, uma poesia oralizada. Somos muito mais influen­ciados p elas ':modas y. lingiüsticas da televisão e do rárlio e: em mcuor escala, da imprensa escrita do que pelo trabalho estilístico dos autores de ficção. Estes, por s ua vez, nos úl­timos cem auos, vêm se esforçando por incor­porar em suas obras traços característicos da língua falaua no dia-a-dia da sociedade - é a arte iuuta11do a vida, e não o contrário, corno sempre se postulou cm questões de língua du­rante o lougo predomÍllio da teutativa de «Uni­tação dos clássicos:•. Além disso, diante da ine­gável evidência de que o pom1guês brasileiro e o portugu~s europeu j tt são d 11as lí uguas marcadnrncute distintas, não tem justificativa nenhuma, como fazem os clicionái·io;; e as gra­máticas, dar exemplos de autores portugueses

(na maioria antigos! ) como modelos para a ati­vidade Jjngüística dos Lrasilciros de hoje2 •

Também foi a parrir do traball10 dos gramá­ticos da Ar1ti€,ruidade que surgiu aquele con­ceito de "'língua"' com a definição que: no Pró­logo, chamei de sobrena.lllral e quase esotérica. Ao longo dos séculos: os defensores dessa con­cepção tradicional isolaram a língua, retira ­ram cl.a da vida social, colocarnm numa re­doma, onde deveria ser mantida intacta, "'pu­ra" e preservada da "'contamü1ação" dos :•ig­norm.1tct1 :' . Por causa de;:;;:;a atitude é que, até hoje, o professor de português ou: mais e:;pc­cialmente, o gramático é visto como uma es­p écie de criatura iJ.1commn, um misto de sábio e mágico, q ue detém o conhecimento dos ruis-

~ Embora eu ren1111 e.scri ro que se rruta de um n "inegável evidência '', é bom salicmar que d a só é ine­gável para os ÜUgiiisras q ue, corno eu , acn:Ji tam que o portus uês brasileiro e o vor t11g11ês ew·opeu são de fato duas lmguas diferentes . Ex"i.~teIU autor1·s true não Sfüteu­tam essa opinião. No fonrlo, tudo depende do que cada pessoa entende por '"líugi111". Coúlo miuha concepção de língua vai a lérn <lo exclnsivwneme lingüístico e <lefine n língua como uma a[ivida<lc socia l, incorporando concei­tos ligado~ U. identidade individuul e coletiv11., fica dHícil pa ra mim (e para muitos es111diosos brasileiros e estrau­gei~·os) mi o co11sider1u o por tuguês b rasilcil'O e o porru­gucs europeu como duas línguas <listiuras - muico apa­rmradai;, é verdade, mas distintas.

... ' E " ,-

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50 térios dessa ''língua'", que existe fora do tem­po e do espaç-0 - e é ei:;se ''saber misterioso'~ que gosto de chamar de '-norma ocultar-3

...

Esse é, então, o- primeiro conjnnt.o de idéias que se esco11de debaixo do rótulo norma culta: uma língua ideal, baseada (snpostamentc) no uso dos grandes escritores (do passado, de preferênda), um modelo abstrato (que não corresponde a nenhum conjunto real das re­gras que govem am a ati vidade lingiH~tica por pa rte dos falantes de Garnc e osso). Esse mo­delo de Jínrua ideal acaba criando uma grade o de c1itérios dicotômicos empregada para qua-lificar as varianf·cs liogi.üslicas: certo vs. erra­do, bonito vs. feio, elegante vs. grosseiro, civi­lizado os. selvagem e, é claro, culto vs. igno­rante. Assi.at , o que não es tá nas gramáticas nã.o é 11onna culla: é '·'erro crasso·", é '·'língua de índjo", "português estropiado" ou, simples­mente, "não é por tuguês" . O próprio nome do idioma - português-, então, deixa de desig­nar toda e qualquer mani fostação falada e escrita da língua por parte de todo e qualquer falante nativo, e passa a designar exclusiva­mente esse ideal abstra lo de língua certa .. essa

3 Tomo aqu i emprestada a P,xpressii.o ·· nonna ocul­ta'' que. rue foi apri-,se.ntad11 pelo profi>~;;sor Ataliba de Casnlhu em convi-rsa iníonnal.

~norma oculta" que só tulS pouoos ilwninados conseguem apreender e dominar integralmen­te. Não é à to~ portanto, que tanta gente <liga que " não sabe portug uês"' ou que "português é (muito) difícil " .

Mas eu disse que havia um outro conjunto de noções contido no rótulo norma culta. E qual é ele? A outra definição que se dá ao rótulo norma culta se refere à linguagem concreta­mente empregada pelos cidadãos que per1 en­cem aos segmentos mais favorecidos da nossa população. Esta é a noção de norma culta que ve.rn sendo empregada cm dívcrsos empreen­dimentos científicos como, por exemplo, o Pro­jeto NURC (Norma Urbana Culta), que desde o início dos anos 1970 vem docmnentando e analisando a linguagem efetivamente usa.eia pelos falantes cultos de cinco grandes cidades brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), sendo estes f alan­tes cnltos definidos por dois cri térios de base: esc:olaridade superior completa e antecedentes biográfico-culwra is urbnnos. Tra.ra-sc, portan­to, de um conceito de norma culta, uru termo técnico estabelecido com. critérios rela tivamen te mais objetivos e de base empúi ca.

... .. ·

51

O que as pesquisas cientfficas feitas no Brasil um; últimos trin ta anos têrn revelado é o se­guinte: e.xis1e mna diforcnça IDuiro grande entre o que as pessoas em geral chamam de! norma culta, inspiradas ,na longa tradição gramatical norma.tivo-prescritiva, e o que os pesquisado­res profissionais chamam de norrna culta, um termo técnico para designar formas lingüísti­cas que ex istem na realidade sodal. Essa di­ferença se reflete também na posnua que a pessoa assume diante dos fatos lingiüsticos. As pessoas que usam a expressão norma cuüa como um pré-conceito tentam encontrar em todas as manifestações lingliísticas, faladas e escritas, esse id<',al de língu~ esse pach-ão preestfil>elecido que, como urna espécie de lf'<i, todos teriam obrigaç.ão de conhecer e de respeitar. Como é virtuahnent.c impossível encontrar esse modelo abstrato na realicladr: tia vida social, os defensores dessa noção de norma cult:a consideram que prati­camente todo.s as p essoas, de todas as classe!! sociais, falam ""errado.,,.

As pessoas ciuc, por outro lado, usam a ex­pressão norma culta corno um conceito, como um termo t6cnico, agem exatrunente ao con­à:ário: elas primeiro investigam a atividade lingüística dos falantes em suas interações sociais, para depois dizer o que é essa ativj<Jo.-

de, por meio de instrumental teórico consis­tente. Com base nessa investigação e nessa análise é que os lingüistas podem afumar, por exempJo, que o pronome cujo praticamente desapareceu da lfogua fo lada no Brasil , íncJu­sive da língua falada pelos brasileiros classifi­cados de cultos; que o I uturo simples do indicativo (eu cantarei) também sohrevive apenas na escrita mais formal; que as regras tradicionajs de colocação pronominal são de uma tolice sem tamauho, e assim por diante.

Q UEM VAI FICAR OOM A "'AIXA?

Portanto, como é fácil perceber, estamos dian­te de um problema. Temos um único nome para designa!' coisas completamente diferen­tes. Se qu isermos resumir bem claramente es­sas diferenças conflitantes, podemos montar a seguinte tabela:

"' . i l ·

:5

i NORvlA CL1LfA?

• pii.·.i;critiva (normativa)

• "IÍJlgun" prescrita•nas gramáLicas nonuativas, iniipín1das ua literatura "clássíc.11 ~

• preconceito (baseia-se em mito.1 sem .fimda­merll.ação na realidade da língua cit'<l, ü1.1pirodos em mlJ<Íe/os fllY:aico.~ de organização sorialj

• doutrinária (compiic-se de cnur1dados cc.tegón'co.s, dogmá11'cos, 11ue mio admitem cor1testnção)

• pretensamente Lomogênt,.a

• elitista

• prc:;a à escrita liteníria, sepnríl rigith1mc11te a Ma da e.~rit11

• vene.rarla cumo urna vc,rdulle ete.n1n e in111táYcl (cultuada}

i NORMA CUUA ?

• descritiva (no~mal}

• atividade lini,oiiística dos "fal:mtt:$ cultos", com esoolruid11de superior completa e "i vêut:ia urh11m1

• 1:oac.ci lo {ten110 fHmico u.1ndo em invc.itigações empúicas sobre a líng11nl, co-relacio11ad(1.1 rom fatores sociai.1)

• científir.a (bru eia-.fc em hipóteses e teorias que de1.-em ser /estudas pa m, em seguidn, ser calidadas 011 iml(L/ida­da.s)

• C3~encia.lmcnH\ hcterogêuea

• ~f>l'ia.lrnentc vnri~vel

• :s.f': maniíest11 tanto na fo!11 quanto 11f1 escrit.a

• onjcit:a a tre11sfom1aç~ oo longo dv tempo

No meio desse t iroteio, como é que a gente fica? A quem vamos atribuir a faixa de J\.fiss Non na Culta? A situação é tão complicada, o terreno é tão movediço que, muitas vezes, até mesmo os próprios lingüistas, que geraJmente procuram ser o mais criteriosos possível, es­corregrun no chão pantanoso e se deixam le­var pelas ambigüidades contidas na expressão norma culta (ou por seus próprios preconcei­tos inconscientes) e passam sem perceber de um conjunto de idéias para o outro, do nor­mal para o normativo e vice-versa, deixando o leitor cm dúvida sobr~ qual é, de fato, o fenô­men o que está sendo tratado ali. Isso ocorre ainda mais freqüentemente quando estudiosos de outras áreas de conhecimento (história, sociologia, antropologia, educação, comunica­ção, filosofia etc.) escrevem sobre questões relacionadas à língua.

Exemplos dessa confusão generalizada podem ser encontrados nos materiais que o Ministério da Educação di.stribui para os candidatos do EN'EM (Exarne Nacional do Ensino Médio) e do Provão (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior).

Na "Cartilha" do ENEM 2003, que dá infor­mações práticas às pessoas que vão se subme- 55

56 ter ao exame, aparece a seguinte pergm1ta: "O que o ENEM ava]ia?" Segundo a resposta. oferecida, o ENEM avalia "'cinco competên­cias'\ e a primeira delas é: "Domin~tr a norma culta da Língua Portuguesa" - sem que seja dada nenlnuna. definição do que se entende por "no1n1a cult.a" . Esse modo de enw1ciar os obje­tivos do exame me parece particularmente de­sastroso, porque contradiz frontalmente as pro­postas mais progressistas da educação lingü.ísti­ca: estimular o trabalho com a multiplicidade de gêneros cliscursivos, conscientizar o aluno da rityueza da variação lingüística inerente a qual­quer língua viva, fazê-lo recorihecer as instân­cias adequadas de uso desta ou daquela varie­dade, mostrar que as formas '"certas" são o pro­duto de uma seleção-exdusã.o que corresponde às seleções-exclusões que vigoram na orgaiúza­ção da sociedade etc. - propostas que o mesmo Ministério estampa nos seus Parâmetros Cu:LTiculares Nacionais ... Lll.11.itar o ENEM à avaUaçJio do "domínio da nmma culta'~ é recair no preconceito milenar de que só existe uma forma º'certa" de folar e de escrever4•

No caso do Provão~ o candidato à avaliação do ctrrso de Letras deve responder um ques-

• Acerca do EN°EM, ver a discmsão feíta por C. A. Faraco (2002: 55-58).

tionário que servirá ao Ministério de material para a elaboração de estatísticas e perfis socioe­conómicos. Ora, a p ergunta de número 60 está assim redigida: ':O seu desempenho oral foi avaliado do ponto de vista do dí.aleto culto padrào?" Desastre dos desastres! Aparece aqui a falsa sinonímia culto = padrão e, para. pio­rar tudo, o uso da palavTa dialeto ... Como vou tentar mostrar mais adiante, pode até existir mn dialeto culto (na verdade, existem vários), mas nunca um "dialeto padrão'~.

Será que tem algum jeito da gente resolver isso? Felizmente, me parece que sim. Mas antes de propor mna solução, vamos discutir ainda um pouco mais o adjetivo culla ...

Cu 1,To t o Al\'fôN1Mo DE POPULAR?

Por mais que seja difícil para os estudiosos sé­rios das questões liugüísticas, é preciso reco­nhecer que, mesmo como termo técnico, como fer­ramenta de investigação cien1ifica, a expressão norrna culta revela mn longo processo de impreg­nação ideoJógica que t.em de ser criticado.

Para começar~ quando alguém diz que uma determinada "·norma", que uma determinada maneira de falar e de escrever é culta, auto­maticamente está deixando entender que to- - ;,7

das as demais maneiras de falar e de escrever não se1iam cultas - seriam, portanto, incul­tas. Essa postu~ra é asswnida sem rodeios por C. P. Luft em sua A1oderna grârnática brasi­leira, ao dj..zer que a língua apresenla dois "'ní­veis", o culto e o inculto, vinculando o adje­tivo cuüo à presença da "leitura" muna comu­nidade (2002: 19). Esse par de antônimos aca­ba provocando a inevitável associação com to­dos os sentidos possíveis capazes de se abrigru·, no senso comwn, por trás da palavra inculto: ".rude", "tosco", "grosscil'o", "bronco", "selva­ge1n '\ '1i.nd vilizado", ""c1u", "ignaro", "igno­rante" e por aí vai, e vai longe ...

Ora, do ponto de vista sociológico e antropo­lógico. simplesmente não cxist.e nenhum ser lw.rnano que não esteja vinculado a uma cul­tura, q ue não tenha nascido dentro de um grupo social com seus valores, suas crnnças, seus hábitos, seus preconceitos, seus costumes, sua arte, suas técnicas, sua lúigua .. . A ques­tão, como bem sabemos, é que no senso co­mum só se considera culto aquilo que vem de detemrinadas classes sociais1 as classes sociais privilegiadas. Quando dizemos que lUlla pes­soa é m uito "culta'\ que tem muita ''cultura", estamos dizendo que ela acumulou conheci­mentos de uma determinada modalidade de

cultura, wna en1J:c inuitas: no caso, a cultw·a baseada numa escrita canonizada, a cultu­ra livresca., a cultura que é fruto da produção intelectual e artística valorizada pelas classes sociais favorecidas, detentoras do poder polí­tico e econôrnico5

.

E aqueles pesquisadores que têm utilizado o termo culto para qualificar um determinado grupo de falantes se deixaram levar por esses mesmos deslizamentos que nos fazem passar, ciclicarnente, de mn sentido v.nonnativo" de culto ( = cultuado por um determinado seg­mento social) pro·a um sentido "normal" de cultu ( = inserido numa dada cultura).

Por oul:ro lado, para Lentar designar as varie­dades lingüísticas relacionadas a folantes sem escolaridade superior <.;Ompleta, com pouca ou nenhuma escolarização, moradores da zona rur al ou das periferias empobrecidas das gran­des cidades, aparece freqüentemente im litern­ttrra lingüística a classificação língua popula1; norma popular, variedades populares etc. Cria­se com isso uma distioção nítida entre norma culta e norma popular"'.

;; Ver a propósiro a discussíi.o feita por C. A. F'aroco

(2002: 3~). . ' ' " E o caso, por exemplo, de Luccbcs1 (2002).

... • ;:; ,, .. . -

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60 Novamente, podemos perguntar: culto e po­pular são antônimos? Ou, mais grave a:U1da, popular e inculto são sinônimos? Do ponto de vista da teoria lingüística, não - são apenas domínios de s~~r diferentes. Mas, do ponto de vista do seiiso comum, sim - são vistos como antônimos. Na definição de povo só entram as pessoas que não pertencem às clas­ses sociais prhilegiadas? O p ovo brasileiro são todos os 175 milhões de pessoas que vivem aqui, ou "somente:1 os 1a5 milhões que têm pouco ou nenhum acesso aos bens sociais, à educa~:ão , à moradia, ao luzer, ao consumo, a uma alimentação digna etc. ?7 Ex:iste cultura sem povo? Existe povo inculto? .Tá vimos que não. Mas numa sociedade extremamente (e desiguaiment:e) dividida como a nossa, o adje-

7 Segundo dados do JllCE (www.ibge.net) , 78.4% dos hrnsile:irn,o; recebiam, e1n 1 'J99, menos de 10 salários mínimos. Isso perfazia um tornl de mais de 133 milhões de pessoas. Como a populaçiio restante, de aproxi.mE.da.­mentc :l5 milhões, já constitui um mercado interno ca­paz dü altos fodices de consumo, nõo parece necessário, pela lúgica do c~'lpitalismo neoliberal aqui implantado a partir de 1994 (e que leva adiante as estruturas de ex­clusão implanta.da• desde a época colonial), ampliar esse mercado interno, pois o jií. existente, maior que a popu­la\:iiO lollli do Canadá, por c.'\'.emplo, dava cont.a de ab­sorver a oform da indústria, do comércio e dos serviços. Ess11 polílic11 só tem servido parn aumcnta:r os índices de co1wentraçifo de renda no país.

tivo popular é muitas vezes u.sad.o com conota­ções pejorativas: depreciativas, para indicar algo de menor importância, de menor valor na escala de prestígio social. Tanto é assim que muitas palavras, quando vêm sozinhas, já indicam, au.tomaticameutc, alguma coisa que não tem a ver com o "povo": arte. Literatura, música ... Assim, sem qualifkativos, elas já dizem o que são: "'alta cultura" . O mes mo não acontc .. cc com art..c popalcu; lit..eratura popular; música popu­lar, que precis1:1rn do qualificativo popular.

Essa visão extremamente preconceituosa de povo aparece belll estampada na reportagem de capa da rcvh;ta Veja (nº 172.), de 7/11/ 2001 ), assinacln por João Gabriel de Lima. Ali,. depoic; de elogiar os atuais defensores do dógmaü.smo gro.rnati.ca] que invadiram a mídia bra,sileira contemporânea, o autor passa a ata­car as novas concepções de ensino de língua propostas por lingiüst.as e educadores profissio­nais e baseadas no reconhecimento da varia­

ção lingüística como lLm dos eixos das práticas

pedagógicas:

Trata-se de 1w1 raciocínio t0rto, baseado nwn esquerdismo de meia-pataca.., que idealiza tudo o que é popular - inclusive a ignorân­cia, como se ela. fosRe atributo, e não proble­niu, do ''povo".

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Uru pouco antes, no mesmo parágrafo. o re­pói1er menciona as críti<.:as fei tas pelos lingüis­tas e educadores ao trabalho dos hoje bem co­nhecidos "cousultores gramaticais» {que cu cha­mo de comqnrlos paragramaticais) e escreve:

Elas ecoam o pensaillento de urna certa cor­rente relativista, que acha que os gramáticos preocupndu8 com t\8 regras da norma culta prestam um dc.sscr viço à lír1t,aua.

Temos assim, num só parágrafo , o uso preconceituoso, não-cicnt.ífico e dogmó.f ico de "1nor:ma culto.º", .iunto com a atrib1úçiio reado­

nária de 41iguorância,, ao povo, ou seja~ o não­reconbecimcnlo de wna cultura do povo, que se expressa também na língua. Mais wna vez, temos ele louvar a coragem de uma pessoa que não tem o meuor pudor de exibir muna revis­ta de graudc Liragem sua absoluta desinfor­mação acerca do assWlto 1 ratado, apoiando-se na suposta «autoridade" de pessoas totalmen­te dcsvi.rn .. ·u lo.das da pesqtúsa científica e da rcílexão pedagógica criteriosa .

Chamar a língua dos fa.Jantes plenamente escolaüau.los de norma r:ulta é tão problemá­tico quanto usar esse rótulo para designar aquele ideal de língua abstrato, inspirado na literatura do passado e nas prescrições da

gramátic.a normativa. O que fazer então para evitar que esses problemas de termiJ1ologia passem do senso comum para as pesqu isa.5 científicas?

P ,rn1üo, PRESTfGIO E ESTIGMA: QUf: T..\L ASSIM?

Mesmo usando tcmiinologias que nprcscutam algumas diferenças entre si, as pessoas 'luc se dedicam a es tudar a n ossa r eali dade sociolingüística concordam cm identificar, nas relações entre língua e sociedade 110 Brasil , 11·ês '"coisas" bem distintas. Vamos ver que '"coisas" serão essa.:;:

1. A primeira é a "norma culta" dos prescriri­vistas, ligada à tTadiç.ão grnullltical norma­tiva, que" tenta. preserv<u- um modelo de H11-gua ideal, inspirado na grande literatura do

passado.

2. A seovunda é a "norma culta" dos pP..squi­sadores, a língua re.alment e empregada uo dia-a-dia J>elus falantes que têm escoJm·ida­dc superior .completa, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urhano.

3. A terceira é a "norma popular", expres­são usada tanto pelos tradidonalistas qunn­

to pelos pesquisadores para designar um conjunto de variedades Lingüística.<> que apre-

" 7.

sentam dclen ninadas ctu-aclerísticas fonéti­cas, morfológicas, si aráticas, semânticas, lexicais elC. que uunca ou rouit0 raram ente apaL•ecem nu fala (e na escrita ) dos falautes "cultos". E;;m "'norma popular'\ como já vimos, p rx!domi uu nos umbicutes run us, oude o g ruu de escolarização é nulo 0 11 muito ba ixo. Predomina também nas periferias das cidades, para onde acorrem os moradores do campo expulsos pela crim inosa lradiç.ão latifundiúria deste país, responsável pelo su1·gimem o das favelas e dos cinn1rõt>,s de truséria que envolvern todas as zonas urba­nas brasileiras (onde se concentra hoje a maior µarte tia nossa população!).

A primeira e a segm1da "coisa"', já sabemos, receb em um mesmo nom e mas são, essencial­meu1e, in1riusccamente, diferentes uma da outra. Se <juiscrmos levar adiante nossa dis­cussõo, teremos de dar a cada tuna delas tun nome dif erentc.

Assim, para designar o m odelo ideal de língua "cena", muitos lingüistas têm proposto o ter­mo norma-padrão. Ele serve muito bem, me parece, para designar algo que está fora e aci­ma da atividade lingüística dos falantes. Em­bora algumas pessoas também usem as ex­pressões lfrtgua-padrão, dialeto-padrão e va­riedade-prldrão, eu prefiro ficar com norma-

padrão, porque, se é ideal, se não corresponde integralmente a nenhum conjunto concreto de manifestações lingüísticas regulru.·es e freqüen­tes, não pode ser chamada de "língua", nem de "'dialeto'\ nem de "variedade.,, . É nma norma, no sentido mais jurí:dico do termo: "lei'\ v. ditame'' , "regra compulsória'' 'imposta c:le ci­ma para baixo, decretada por pessoas e insti­tuições q ue tenta1n regrar, regular e regula ­mentar o uso da língua. E é também um padrão: um modelo artificial, a rbitrário, constnúdo segundo critérios de bom-gosto vin­culados a uma determina da classe social, a um determinado período histórico e mun de­terminado lugar.

Quanto à segunda "coisa '", que os pesquisado­res chamam de "norma culta", também já discutimos o problema da contaminação de senti.do a partir do senso comtLm. Se quiser­mos evitar a intervenção dessa noção estereo­tipada e excludente de "cultura~, precisamos encontrar um modo alternativo de designa r as variedades lingüístícas faladas pelos cida dãos c·om alta escolarização e vivênda urbana. Eu proponho a qui a palavra prestígio, muito c•mpregada na literatura sociológica. Afinal, como nessa problemática toda o que está re­ulmente em jogo não é a líugua, propriamente

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66 dita, mas sim o prestigio social dos folantes, <leixo aqui a sugestão para que a gente passe a tratar de variedade.ç de prestígio ou .varieda­des presligiadas. É bom ressaltar, desde logo, que o prestígio ~ocial das variedades lingüísti­c.as das dassr,s favorecidas, dominantes, não tem nada a ver com qualidades intrínsecas, com algum tipo de o:be)eza'' , ':lógica" Oll "ele­gâucia." inerente e na.t:w·al a essas maneiras de falar a língua. Esse presrígio social é uma co.ns1J:ução ideológica: por razões históricas, políticas, oconômicas é que determinadas clas­ses sociais - e não outras - assumiram o poder, grulharam prestigio ou, 1;nelhor, atribuí­rnm prestígio a si mesmas. E aquilo que o sociólogo francr.s Pierre Bourdicu chama de "ato de magia social". Num passe de mágica, as oiigens históricas desse prestígio são esque­cidas (Ilourdicu chama isso de "amnésia da gênese") e aquilo que vem do alto, das classes dominautes, é considerado indiscutivelmente bom, bonito, digno de ser imitado, e passa a er cousiderado como um valor natural, in­

contestável, como se suas qualidades brotas­sem da própria natureza das coisas desde o início das eras ... No mesmo movimento, tudo o que não se encaixa nesse modelo é co.nside­rndo "feio", "indigno", "c01rompido'', :•jncul­to" . Aliás, a. palavra prestigio, em lat.Un, sig-

nificava exatamente isso: "ilusão atribuída a causas sobrenaturais ou a sortilégios; rnagia; artifício usado para seduzir, para encantar; fascinação, atraç.ão, encanto, magia".

Por· fim, como designar a "norma popular", sem incorrer no perigo de identificar popular com inculto, errado, estropiado ... ? Na litera­tura sociolingüística, é comum opor prestigio a estigma. O estigma, cm termos sociológicos, é urn julgamento extremrunente negativo lança­do pelos grupos sociais dominantes sobre os grupos subalternos e oprimidos ~, por extensão, sobre tudo o <fUe caracteriza seu modo de ser. sua cu.ltm·a e, obviamente; sua língua ... Assim; para designar as vaiiedades lingüisticas que caracterizam os grupos sociais dcspres1jgiados do Brasil (ou seja, a maioria da nossa popula­ção), sugiro que a. gente passe a empregar a expressão variedades estigmatizada..ç.

Acredito, sinceramente, que com esta nova terminologia podemos designar com mais pre­cisão os três fenômenos lingüísticos que que­remos estudar; sem perigo de confusãoª:

ij E" ºd . ~v1 entemente, trata-se de uma proposta t1mrunol6gwa, sempre sujeita. a crítica e reformulação. Pode ser que alguém veja nos adjetivos ''presti•dudas" e .. . . l " !:' osogmat1z11c as· os mesmos problernns de imprcgnnçilo

.-

(º'7 ),

1. norma-padrão 2. variedades prestigiadas 3. variedades estigmatizadas

VA.RlEUADES l'HESTIGL.\DAS

VARJEOADRS ESTlGMATIZADAS

Como é possível notar pelo desenho, o ~restí-. 0 e-u· "'"'ª atribuídos a uma variedade gio ou .:i o,.._. .

lio,.,füstica é uma questão de mais e de men?s. En~e as variedades mais prestigiadas e as vane­dadcs mais estigmatizadas, há toda wna zona

d " ·ul · ,. e "po­idcoló!ric;a que t ento denunciar no uso e e ta . . ,

l "~ Nu mumeotu, porém, não me ocorr~lll ad1e~v~s pu u.r d . · " tt · ·' a opo!D'"'º e possam dcsib'lJaI de mo u mws o cu o : :;:trt: estes dois conjuntos de variedades. As sugestoes

seríi.o muito bem-vindas!

intermediária, onde as iufluêocias de wnas so­bre as outras são intensas e constantes. Isso é mais do que natural muna sociedade comple­xa como a brasileira contemporânea.

Quanto à norma-padrão, e]a fica lá no alto, na estratosfera. É verdade que ela exerce uma influência simbólica mui1o forte sohre o Ílna ­ginário de todos os brasileiros, mas é uma influência que vai dinúnuindo progressivamen­te, quanto mais a gente se afasta das camadas sociais privilegiadas. A nonna-padrão está estreitamente ligada à escola, ao ensino for­mal, e como no Brasil o acesso à educação é mais um elemento que contril)lú para a nossa triste posição de campeões da desigualdade so­cial, é fácil imaginar que a norma-padrão tradi­cional tem poder de influência. praticamente nu lo sobre os falantes das variedades mais estigma­tizadas. Assim, mais wna vez, somos obrigados a reconhecer o caráter esotérico da norma-pa­drão: só se aproximam dela (mas nem por isso a usam integralmente) os brasileiros que con-11eguiram passar pelo funil da educação for­mal e conseguiram percorrer até o fim todo o trajeto de sua formação escolar.

l~mbora a classificação das vnriedndcs seja in1-portante para a análise e o entendimento da 1·omple.xidade sociolingi.üstica do Brasil, nw1-

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ca é demais repetir que nas relações entre lín­gua e poder o que realmente pesa é o prestígio ou a falta de prestígio sociaJ do fal11nte, e que esse critério muitas vezes prepondera sobre os elementos csttitamente lingiüsticos presentes em seu modo de falar. Assim é que as formas t.u fàlasltu falaste, tal como preconizadas pela uor:ma-paclrão, ocorrem na atividade lingiüs­tica de falantes socialmente desprestigiados, gente pobre e sem muita escolai·ização, da região Norte, por exemplo. Já as formas tu

fala/tu f alou. , se;m as marcas morfológicas p1·es­critas pela gramática norma1j vil., ocorrem far­tamente na atividade lingilíst ica ele falantes de clac;se média e alta da região Sul, com cscola-1idade superior completa e plenamente inseri­dos na cultm·a letrada. Isso mostra que as relações entre língua e sociedade são muito mais complexas do que a maioria das pessoas

. pensa e que é e1'.-tremamcnte redutor (além de inútil e injusto) tentar compreendê-las usando como critérios únicos os rótulos tradicionais de ""cerLO'' e ~errado" ou os conceitos pouco consistentes de «culto" e "'popular "' .