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NOUVELLE CUISINE
(Excertos retirados do livro “De caçador a gourmet”, Ariovaldo Franco).
A luta entre o novo e o velho, o simples e o complicado é constante na história de
todas as artes. A culinária não é exceção. Inevitavelmente o conceito do que é bom ou mau
em matéria de cozinha muda através dos tempos. Assim, tomar como definitivas as
características da culinária de um momento, transformando-as em dogmas gastronômicos, é
esquecer o fato de que a maneira de comer, além de expressão de uma realidade complexa, é
também moda. Na "boa cozinha", dizia Curnonsky, "as coisas têm o gosto do que são". Ao
advogar simplicidade culinária e enfatizar a qualidade das matérias-primas, Curnonsky foi
também crítico acérrimo dos pratos complicados e dos menus pomposos.
A nouvelle cuisine, com ênfase nos pratos à base de ingredientes com sabores
inerentes, abriu caminho para um grande influxo das técnicas, processos culinários e padrões
estéticos japoneses. Na verdade, a própria nouvelle cuisine é fruto de tal influência. Frescor
dos ingredientes, simplicidade das técnicas de cozimento e preservação dos sabores naturais -
normas que constituem o fundamento da cozinha japonesa - converteram-se em cânones da
gastronomia ocidental.
Os defensores da nouvelle cuisine, que surgiu em meados da década de 1960, aprovam
essas noções. Segundo eles, a cozinha deve ser uma extensão da natureza. Não deve, portanto,
anular o trabalho da natureza e sim completá-lo. De acordo com as normas da nouvelle
cuisine, os molhos devem evidenciar o sabor do alimento que acompanham. A propósito diz
Isabel Allende: "Na cozinha moderna os molhos são leves, muitas vezes parecem simples
caldos transparentes; já não se trata de sepultar a comida sob um manto dissimulador que
impede que se perceba sua identidade".
Nesse ponto, também a nouvelle cuisine se distancia completamente do princípio
alquimista que norteou a preparação dos molhos durante séculos, ou seja, a obtenção da
"quintessência" das substâncias sápidas através do cozimento lento. As raízes da atual
nouvelle cuisine são anteriores à Segunda Guerra Mundial. Já então Fernand Point, que Paul
Bocuse considera seu mestre, abolia os molhos pesados e os pratos complicados da
gastronomia. Para Fernand Point, grande cuisine não significava cozinha complicada. Ao
simplificar as preparações, reduzia também o tempo de cozimento.
A expressão nouvelle cuisine tampouco é original. Já havia sido empregada em
meados do século XVIII para designar a culinária de La Chapelle, Menon e Marin, e, no final
do século XIX, para denotar a cozinha de Escoffier e alguns de seus contemporâneos. Outras
cozinhas, portanto, já foram novas em seu tempo. O termo foi retomado na década de 1960
por Henri Gault e Christian Millau, quando identificaram um estilo novo no trabalho de Paul
Bocuse, Jean e Pierre Troigros, Michel Guérard, Roger Vergé e Raymond Olivier. Sem negar
o caráter individual da cozinha de cada um desses chefs, Gault e Millau perceberam uma
tendência comum que apresentava as seguintes características:
1ª) oposição às complicações desnecessárias;
2ª) redução dos tempos de cocção e redescoberta da utilização do vapor, método de cozimento
tradicionalmente empregado pelos chineses;
3ª) prática do que Bocuse denomina cuisine du marche, ou seja, utilização dos ingredientes
mais frescos que o mercado oferece a cada dia;
4ª) rejeição de menus extensos nos quais figuram pratos preparados com antecedência em
favor de menus pequenos, compostos em função dos ingredientes disponíveis no mercado a
cada dia;
5ª) supressão de marinadas fortes para carne e caça;
6ª) desaprovação dos molhos "pesados", inclusive dos molhos à base de roux, em favor de
manteiga, limão e ervas frescas;
7ª) interesse pelas cozinhas regionais e abandono da haute cuisine parisiense como única fonte
de inspiração;
8ª) receptividade com relação a novas técnicas e equipamentos avant-garde;
9ª) preocupação dietética;
10ª) inventividade.
A nouvelle cuisine recomenda, como vimos, a utilização dos melhores produtos da
estação. Assim, há que se observar o ciclo sazonal para se consumir os produtos no momento
em que deles se pode obter a qualidade máxima. Essa é a idéia básica da cuisine du marche,
difundida mundialmente por Bocuse. Para os adeptos da cuisine du marche, não se pode
estabelecer um menu em abstrato, sem antes verificar o que o mercado oferece de melhor e de
mais fresco, a cada dia. É oportuna a importância que a cuisine du marche atribui à qualidade
e ao frescor dos ingredientes, à preferência que se deve dar a tudo que é produzido no local ou
que tenha viajado o menos possível. O desenvolvimento dos meios de conservação e de
transporte leva muitas pessoas a desejarem produtos fora da estação, mesmo em detrimento de
sua qualidade.
Na opinião de Bocuse, as refeições são quase sempre demasiadamente grandes.
Mesmo quando se trata de um jantar formal, deveriam ser suficientes um hors d'oeuvre, um
prato quente com seus acompanhamentos e uma sobremesa. A nouvelle cuisine, que é
também tentativa de ultrapassar a oposição entre gastronomia e dietética, surgiu para
satisfazer exigências características da vida atual. Hoje, mesmo os trabalhos manuais exigem
muito menos esforço físico do que no passado. A mecanização e a automação reduzem
consideravelmente o dispêndio de energia humana. E não se pode esquecer o fato de que o
automóvel é utilizado cada vez mais como transporte cotidiano. Assim, despende-se menos
energia e necessita-se de menos calorias.
Além disso, a consciência de que o excesso de peso é nocivo à saúde e a moda do
corpo delgado como padrão estético ideal levam as pessoas a preterir pratos e molhos
considerados pesados. Note-se que alguns chefs divulgam a utilização dos laticínios com
baixo teor de gordura e a preparação de molhos à base de purê de legumes. Essas são algumas
das idéias centrais da cuisine minceur de Michel Guérard. Porte esbelto é símbolo de status e
de bom gosto e está associado à idéia de juventude, saúde, educação, disciplina e mesmo de
competência administrativa. Sugere capacidade de cuidar do próprio corpo e pode ser fator de
ascensão social e até política. A "lipofobia" evidencia as contradições de um estilo de vida
que gera corpulência e, ao mesmo tempo, discrimina e culpabiliza os obesos. Essa percepção
da obesidade faz com que a magreza seja para muitos uma obsessão. Nas sociedades
abastadas, a maioria das pessoas sonha em ser magra e sofre com o fato de não o ser.
Contudo, a reação contrária às formas exuberantes não é unânime.
O óleo monoinsaturado, como o de oliva, anteriormente desaconselhado, é o mais
saudável. O azeite virgem é o mais apreciado pelas suas qualidades dietéticas. Ao mesmo
tempo, observa-se que nos países mediterrâneos, de cozinha à base de azeite de oliva, há uma
incidência bem menor de enfermidades cardiovasculares do que nos países do norte da
Europa. Em decorrência, nos países ricos o consumo de óleo de oliva tem crescido
consideravelmente. Entretanto, o aumento da demanda de azeite de oliva coincide com o
abandono de muitos olivais nos países europeus. O cultivo da oliveira parece incompatível
com o estilo de vida das sociedades que se urbanizam e enriquecem. Por outro lado, a
introdução de novas técnicas de cultura, capazes de suavizar o trabalho humano, é dificultada
pela própria topografia e disposição das árvores nas velhas plantações. Assim, os olivais vão
ganhando importância nos países mais pobres do Mediterrâneo, como a Tunísia e a Turquia.
De qualquer forma, parece inevitável que o azeite de oliva, outrora a base da alimentação dos
pobres do Mediterrâneo, torne-se cada vez mais caro, um artigo de luxo.
A nouvelle cuisine, expressão do confronto entre o tradicionalismo e a inventividade,
pôs termo ao dogmatismo que dominou a gastronomia durante tanto tempo. Com ela, a
criação culinária se liberou. Esse, talvez, seja o seu grande mérito. Muitos ingredientes, hoje
comuns, eram desconhecidos ou considerados exóticos há apenas alguns anos. Com a
intensificação do intercâmbio comercial e a facilidade das viagens internacionais,
descobriram-se frutas, verduras, especiarias e novas maneiras de tratar ingredientes
conhecidos. Algumas técnicas e preparações da nouvelle cuisine, que passam por inéditas, são
na verdade resgatadas de outros tempos ou de outras culturas. Exemplos: cozimento a vapor,
ponto de cocção al dente, peixe com frutos do mar e frango com crustáceos, comuns nas
cozinhas asiáticas e latino-americanas. O contato com novas paisagens e culturas conduz à
descoberta de pratos, técnicas e hábitos culinários. Raymond Olivier aponta as viagens dos
cozinheiros e de seus clientes como um dos catalisadores da nouvelle cuisine.
A nouvelle cuisine não escapou a um risco comum a todas as artes: o de levar alguns a
negligenciar o acervo da tradição e a exaltar a invenção pela mera invenção. A preocupação
em apresentar constantemente novidade e a atração de alguns chefs pelo estrelato criam, às
vezes, situações caricaturais. Diz Alain Ducasse de maneira apropriada: "Um cozinheiro não é
um gênio, é somente um mero artesão. Os verdadeiros gênios são pessoas como Leonardo da
Vinci. Nós tratamos do efêmero. Sejamos, portanto, modestos".
Muitos aspectos da nouvelle cuisine, como sua ânsia pelo exótico e pela novidade,
foram criticados. Para muitos, a nouvelle cuisine, apesar da seriedade de sua origem, reduziu-
se à preparação de pequenas porções de alimentos caros, apresentados em pratos
superdimensionados. Quanto a esse traço dos restaurantes adeptos dos padrões nouvelle
cuisine, comenta Isabel Allende: "Fico com a sensação de não haver comido o suficiente e de
ter pagado demasiado". A inaptidão e os excessos de alguns chefs fizeram Paul Bocuse
declarar, já em 1982, que a nouvelle cuisine havia terminado. Alguns anos depois, ele foi
radical em sua crítica, chamando-a de "cozinha para anoréxicos esnobes, feita de porções
diminutas e contas exorbitantes". O aparecimento de uma cozinha nova não é fenômeno
inédito na história da gastronomia. Os séculos passados já conheceram várias, outras
certamente surgirão.