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A novelesca reforma curricular das ciências agrárias e a sustentabilidade: novas demandas, velhos problemas The novelistic curriculum reform of the agricultural sciences and the sustainability: new demands, old problems FROEHLICH, José Marcos¹ 1 Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria/RS, Brasil, [email protected] RESUMO A mudança de rumo nas discussões sobre desenvolvimento que as sociedades contemporâneas estão exigindo e empreendendo, colocam cada vez mais no centro do debate e do jogo político o ideário da sustentabilidade. As propostas daí advindas se derivam e exigem uma nova visão de ciência e tecnologia. Assim, para promover uma agricultura sustentável a formação e, por conseguinte, o perfil profissional dos técnicos não pode ser o mesmo daquele conformado pela agricultura dita “moderna”, posto que o processo formativo das ciências agrárias deve apresentar transformações substanciais em suas concepções educativas e práticas de ensino. Tal processo deve levar a um perfil do profissional que extrapole os limites da especialização, com base cultural ampla e que seja capaz, a partir de uma abordagem sistêmica e complexa da realidade, de estabelecer relações sistemáticas e coerentes entre as diversas áreas do conhecimento contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Ciências Agrárias; Agricultura Sustentável; Perfil Profissional; Desenvolvimento Sustentável; Formação Técnica. ABSTRACT The change of direction in discussions about development that contemporary societies are demanding and undertaking, place increasingly at the center of the debate and the political game the ideals of sustainability. The proposals arising there from derive and require a new vision of science and technology. Thus, to promote sustainable agriculture the formation and therefore the profile of professional technicians may not be the same as that faced by the agriculture called "modern", because the formative process of the agricultural sciences must provide substantial change in their educational concepts and teaching practices. This process should lead to a professional profile that exceeds the limits of specialization, with broad cultural background and that is able, from a systemic and the complex approach of the reality, to establish systematic and coherent relations between the various areas of contemporary knowledge. KEY WORDS: Agricultural Sciences, Sustainable Agriculture, Professional Profile, Sustainable Development, Technical Training. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 3-15 (2010) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 06/08/2010

A novelesca reforma curricular das ciências agrárias e a ...desenvolvimentismo brasileiro no espaço agrário. Tanto que ocorreu uma montagem acelerada de estruturas físicas e institucionais

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A novelesca reforma curricular das ciências agrárias e asustentabilidade: novas demandas, velhos problemasThe novelistic curriculum reform of the agricultural sciences and the sustainability:new demands, old problems

FROEHLICH, José Marcos¹

1Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria/RS, Brasil, [email protected]

RESUMOA mudança de rumo nas discussões sobre desenvolvimento que as sociedades contemporâneas estãoexigindo e empreendendo, colocam cada vez mais no centro do debate e do jogo político o ideário dasustentabilidade. As propostas daí advindas se derivam e exigem uma nova visão de ciência etecnologia. Assim, para promover uma agricultura sustentável a formação e, por conseguinte, o perfilprofissional dos técnicos não pode ser o mesmo daquele conformado pela agricultura dita “moderna”,posto que o processo formativo das ciências agrárias deve apresentar transformações substanciais emsuas concepções educativas e práticas de ensino. Tal processo deve levar a um perfil do profissionalque extrapole os limites da especialização, com base cultural ampla e que seja capaz, a partir de umaabordagem sistêmica e complexa da realidade, de estabelecer relações sistemáticas e coerentes entreas diversas áreas do conhecimento contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: Ciências Agrárias; Agricultura Sustentável; Perfil Profissional; DesenvolvimentoSustentável; Formação Técnica.

ABSTRACTThe change of direction in discussions about development that contemporary societies are demandingand undertaking, place increasingly at the center of the debate and the political game the ideals ofsustainability. The proposals arising there from derive and require a new vision of science andtechnology. Thus, to promote sustainable agriculture the formation and therefore the profile ofprofessional technicians may not be the same as that faced by the agriculture called "modern", becausethe formative process of the agricultural sciences must provide substantial change in their educationalconcepts and teaching practices. This process should lead to a professional profile that exceeds thelimits of specialization, with broad cultural background and that is able, from a systemic and the complexapproach of the reality, to establish systematic and coherent relations between the various areas ofcontemporary knowledge.

KEY WORDS: Agricultural Sciences, Sustainable Agriculture, Professional Profile, SustainableDevelopment, Technical Training.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 3-15 (2010)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 06/08/2010

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IntroduçãoA discussão contemporânea em torno de uma

nova proposta de desenvolvimento, aquele queseria "sustentável", traz implicações que remetema múltiplas dimensões e diferentes níveis deconseqüências. Nas ciências agrárias, como emvárias outras áreas do conhecimento, as questõeslevantadas e presentes no ideário dasustentabilidade, derivam e/ou são derivadas deum complexo conjunto de demandas sociais,transformações tecno-científicas e relaçõespolíticas. Visualizando este processo através deuma rede de relações, que envolve momentoshistóricos da sociedade e concepções tambémdatadas de ciência e tecnologia, dirigimos aquinossa reflexão às bases formativas daquelaspessoas às quais se atribuem e se investemsocialmente os papéis de domínio da técnica e datecnologia, especialmente aquele referido àprodução agropecuária e ao desenvolvimentorural.

Tais pessoas são os profissionais de ciênciasagrárias (agrônomos, veterinários, zootecnistas,engenheiros florestais etc), aos quais édisponibilizada uma determinada formaçãocientífico-tecnológica para atuarem no meio rural,visando à promoção do desenvolvimento nesteespaço social. Porém, quando constróem-senovos entendimento a respeito das noçõesbásicas de suas formações científicas e novasformas de explicar e agir sobre as demandassociais, supõe-se que as exigências a respeito dascompetências destes profissionais também sealteram. Abordamos neste artigo algumasdiferenças do perfil profissional dos técnicosformados pelas ciências agrárias, quandoconfrontadas as exigências colocadas por doismodos de conceber a agricultura, aquela dita"moderna" e a denominada "sustentável". Etambém discutimos alguns dos principaisobstáculos interpostos pela “herançamodernizadora”, em sua vertente difusionista, paraa formação de um novo perfil profissional. Neste

sentido, buscamos apontar algumas lacunas esugestões de mudanças que podem serrealizadas nas grades curriculares de ciênciasagrárias¹, a fim de que novos conteúdos,metodologias e práticas de ensino possam serincorporados e possam formar profissionaiscapazes de trabalhar na construção de estilos deagriculturas mais sustentáveis².

Configuração curricular e perfil profissionalPara melhor situarmos a discussão, podemos

começar perguntando como se configura umdeterminado perfil profissional? Ou melhor, apartir de quê se elabora e se explicita os seuselementos constituintes?

Provisoriamente poderíamos começarafirmando que se constrói um perfil profissional apartir de necessidades, de demandas amplas,articuladas socialmente em discursos quecarreiam poder. Estas demandas condicionam osperfis profissionais. Porém, não é temerário seafirmar que, macrossocialmente, movimentosestruturados politicamente na sociedade tambémcondicionam estas demandas. Assim, nestaóptica, a adoção por determinado modelo dedesenvolvimento que o Brasil fez desde 1930, eque culminou nas décadas de 60 e 70, conformoufundamentalmente o perfil dos profissionais deciências agrárias do país. O Estado, comopromotor-mor deste desenvolvimento, interviudiretamente na formação educativa destesprofissionais, com o intuito de favorecer e aceleraro alcance das metas estabelecidas em seusplanos de desenvolvimento. Conforme colocamLeal e Braga (1993), um dos principais meios deefetivação do projeto de desenvolvimento"modernizante" urbano-industrial, veiculado nospaíses do chamado terceiro mundo após a 2ªguerra, foi a institucionalização da ExtensãoRural. Analisando este aspecto no Brasil, afirmamque:

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“...é possível compreender o significado dodesenvolvimento agrícola e capitalista, bemcomo a influência que tais transformaçõestiveram sobre o direcionamento dado àformação de profissionais. A preocupação doEstado com a formação de recursos humanose com a transformação da base científico-tecnológica da agricultura, para responder asnecessidades do crescimento econômicoatravés dos chamados modelos de difusão denovas tecnologias, levou à expansão do ensinosuperior agrícola brasileiro.” (p.27-8)

Assim, através da formação curricular e daprogramação prévia da atuação do profissional nasociedade consolidou-se um perfil que visavaatender plenamente as exigências do modelo dedesenvolvimento adotado. Este modelo, aoapostar na "industrialização a qualquer custo",prescrevia à agricultura o papel de suporte: deviafinanciar o início da industrialização, transferirmão-de-obra para esta, produzir alimentos baratospara baratear a manutenção da mão-de-obraindustrial e também consumir produtos industriais,tornando-se um mercado consumidor relevante.

O rural, ao não corresponder a estas metas,era visto como atrasado, obstáculo ao progresso,em oposição ao urbano-industrial, vistoautomaticamente como "moderno" e "melhor"³.Era preciso, então, agir sobre o rural, mudandosuas condutas e situação, para que ele nãoimpedisse o progresso e o desenvolvimento. Paratanto, era necessário pessoas, profissionaishabilitados a provocar esta mudança no rural.Configurava-se, assim, um perfil bem definidopara estes profissionais, adequado às exigênciascolocadas pelos objetivos explicitados no modelode desenvolvimento adotado.

As escolas superiores de Veterinária eAgronomia foram fundamentais na estruturaçãodeste projeto "modernizante" dodesenvolvimentismo brasileiro no espaço agrário.Tanto que ocorreu uma montagem acelerada de

estruturas físicas e institucionais (recursoshumanos, financeiros e físicos), que ofereceram oambiente necessário e eficaz para a formação doprofissional demandado. Tal estado de coisas foiconseqüência natural de convênios e acordosfirmados entre diversas instâncias do governobrasileiro e instituições internacionais, como aFundação Rockfeller e a Associação InternacionalAmericana (AIA)4.

Neste sentido, segundo Leal e Braga (1993),as alianças que se estabeleceram, bem como ainstitucionalização do Programa de CréditoSupervisionado para subsidiar a agricultura,reproduziam as experiências extensionistasamericanas. E, para executar a translocaçãodesta experiência para o Brasil, eram necessáriostécnicos bem preparados dentro desta óptica.Assim:

“Os 'agentes', por meio dos quais estaspolíticas seriam efetivadas, saíram dasinstituições de ensino comprometidas com aimplantação do sistema e com o modelomodernizador, cuja base está na visão dualistada sociedade: uma parte rural e arcaicaprecisa modernizar-se para aproximar da outraparte moderna e produtiva.” (p.28)

Então, para atender a estas necessidadesprementes dentro do modelo de desenvolvimentovigente, as escolas de ciências agrárias reuniam-se periodicamente, travando debates que visavamconsolidar, inclusive e principalmente, umarestruturação curricular que veio a uniformizar adefinição do perfil profissional exigido pelamodernização da agricultura brasileira.

O profissional da "modernizaçãoconservadora" da agricultura

A formação de ciências agrárias que subsidioua intervenção no rural do modelo da"industrialização a qualquer custo", provendo sua

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demanda profissional, tinha por baseepistemológica a ciência positivista, interpretadaem relações lineares de causa/efeito; uma ciênciareprodutiva, com verdades científicas objetivas eleis universais invariáveis. Supunha que "as partesdeterminam o todo", precisando-se conhecê-lasnos mínimos detalhes para poder explicar e prevero "todo", absolutizando, assim, a análise comométodo de abordagem. Foi esta concepção quefavoreceu o aprofundamento e a proliferação doprocesso de "especialização" e da visãomonodisciplinar dos fenômenos (ALMEIDA, 1995).Conhecendo-se cada vez mais das partes,acreditava-se cada vez melhor conhecer eplanejar o todo. É a célebre e já caricata idéia doprofissional que sabe cada vez mais das partes emenos do todo, ou seja, sabe "cada vez mais demenos".

Esta noção de ciência é que produziu atecnologia e o técnico coerentes com o padrão dedesenvolvimento adotados no país por força dascorrelações políticas vigentes. Os profissionaisdas ciências agrárias de então eram os técnicosadequados, os manipuladores da tecnologia"moderna", que deveriam transmitir estasinovações aos rurais, a fim de causarem amodernização que, por sua vez, teria o efeitodesejável e “automático” de levar aodesenvolvimento.

O conhecimento e a tecnologia nesta visão sãoconcebidos como "coisa", passíveis dereprodução, transmissão, translocação, semperderem suas capacidades originais. A melhorrepresentação desta idéia de tecnologia é a"caixa-preta", ou seja, sofisticadas "engrenagens"de origem distante e funcionamento não raroestranho aos seus "beneficiários", sempredependentes de assistência exógena. Suamaterialidade se dá pela presença ostensiva de"bugigangas" científicas, como se vê nosprocessos de mecanização e quimificação daagricultura. Os técnicos, como portadores da

verdade científica, único saber válido, devemintervir no rural induzindo a abertura aos inputsexternos. Devem ser aptos a promoverem aadoção dos "pacotes tecnológicos". Sobre talcondição na Extensão Rural, que serviu comoponta-de-lança deste "sistema", Leal e Braga(1993) apontam que seu ensino trabalhava comuma concepção de método que:

“...restringia-se a técnica de dinâmica muitousadas para comunicação. Tal concepção era,com base na eficiência, o ápice de todo oprocesso de aprendizagem, ou seja, métodosdiretivos e trabalhos lineares, comocaracterísticas das relações professor-aluno etécnico-produtores.(p.32)

(...)O ensino de Extensão Rural desta fase,(...)

mantinha-se dentro de uma abordagemtradicional, baseando-se nacomunicação/difusão de técnicas, mediante os"métodos" específicos, sem permitir que oprofissional refletisse/questionasse sobre ascausas responsáveis pelos problemas que arealidade rural apresentava.”(p.33)

Neste sentido, o perfil dos profissionais destaciência agrária exige(ia) a presença dos seguinteselementos, para que fossem considerados"competentes" em seus papéis:

-Capacitação em ser bom difusor detecnologias (reprodutor/transmissor).

-Ter bom marketing depersuasão/convencimento/adestramento.

-Ter espírito de liderança: técnico como líder eportador da única "verdade" (discurso científico).

-Ser bom executor de tarefas instrumentaispré-programadas e de suportar trabalho rotineiro("disciplinado").

-Ter bom domínio de métodos diretivos.-Possuir boa capacidade de aprender (no

sentido de memorizar) conteúdos prontos:

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conforme a expectativa da educação "bancária"recebida e o processo de comunicaçãomecanicista desta pedagogia5.

A ação deste perfil de técnico foi intensa nomeio rural brasileiro, configurando-se umcomplexo dispositivo que integrava técnicos,enunciados tecnológicos, instituições oficiais,corporações privadas e comerciais, capitalfinanceiro etc, num jogo de intervenção planejadado urbano-industrial sobre o rural-agrícola, a fimde "modernizá-lo" e, deste modo, provocar odesenvolvimento nacional. Estabeleceu-se, assim,o fenômeno social conhecido por "modernizaçãoconservadora" da agricultura brasileira,transcorrido mais intensamente nas décadas de1960 e 1970. A análise crítica deste processo já ébastante recorrente na literatura sociológica quetrata do rural, ressaltando-se aí as nefastasconseqüências sociais, econômicas, ecológicas epolíticas deste evento6. Em termos gerais, fala-seem exclusão social, concentração de renda,agravamento da miséria e da fome, perda deautonomia dos setores agrários e profundadeterioração da biodiversidade. A partir destaampla gama de críticas tecidas às conseqüênciasperversas produzidas pela "modernização"agrícola, prescrita pelo modelo dedesenvolvimento então vigente, é que se começoua gestar outra proposta de desenvolvimento.

A sustentabilidade e suas implicaçõesVindos de diferentes espaços e dimensões, de

heterogêneos campos de pensamento e de ação,os enunciados que tecem a rede ampla dodiscurso do "desenvolvimento sustentável" vêm seproliferando e carreando forças nos meandros dassociedades contemporâneas. O discurso dasustentabilidade já tem conseguido, há algumtempo, configurar um campo de disputa políticarelevante que atravessa tanto a dimensãointernacional (países centrais e periféricos do

sistema econômico mundial) quanto os espaçosinternos destes mesmos países.

Neste sentido, uma de suas característicasmais manifestas é a de ser multifacetado e, àsvezes, até mesmo contraditório em suasconsiderações. Toma-se esta possibilidade comoa expressão de uma nova concepção do fazercientífico, a idéia de uma ciência "pluralista", quereconhece e trabalha com as divergências de todaordem. A ciência não só não é mais o únicoconhecimento "verdadeiro", como também écomposta de diversas "verdades" em confronto7.

Neste conceber a ciência, "as partes sópodem ser compreendidas a partir da dinâmica dotodo" (ALMEIDA, 1995, p.3), o que implica nanecessidade de um enfoque sistêmico para oconhecimento, ou seja, um processo preocupadocom as relações entre as partes. Realocando osentido da afirmação de Durkheim, de que o todonão é igual a soma das partes, este enfoquesistêmico8 propõe a abordagem interdisciplinar, afim de superar a atual fragmentação doconhecimento e poder dar conta dos complexosproblemas da realidade contemporânea.

Esta concepção de ciência é coetânea daspreocupações construídas a respeito dasdemandas que evocam respostas para aspropaladas desigualdades econômicas,degradações ambientais e exclusões sociaiscrescentes. Neste enlace bastante problemático econflituoso entre ciência e sustentabilidade,emerge um consenso bastante genérico de quetecnologia e desenvolvimento "sustentáveis"devem corresponder, a um só tempo, à produçãode práticas economicamente viáveis, socialmentejustas e ecologicamente equilibradas (FLORES eNASCIMENTO, 1994; KITAMURA, 1994).

Mas que implicações trazem tais elementos,presentes nesta ciência "pluralista" (onde seancora a idéia de "sustentabilidade"), para aformação e o perfil dos profissionais das ciênciasagrárias? Se a moldura científica se altera, é justo

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raciocinar que a formação técnica dela advinda eas exigências para se ser competente tambémsofram transformações. Portanto, mesmo que achamada "agricultura sustentável" não tenha aindase tornado um movimento profundamenteenraizado e difuso na sociedade brasileira, sendoconsiderado um "paradigma em construção", épossível inferir de seus elementos algunscondicionamentos para um novo perfil doprofissional de ciências agrárias.

Agricultura e sustentabilidade: o desejávelperfil profissional do técnico

Os profissionais das ciências agrárias(técnicos) são as pessoas mais responsabilizadassocialmente pela geração e implementação dastecnologias na agricultura. A formação científicadestes profissionais passa pela idéia de ciênciacomo atividade preocupada em produzir esistematizar conhecimento metódico, sendo destaprática que se deriva o grande volume deprodução de novas tecnologias atualmente.Porém, mesmo tomando a noção de tecnologiaenquanto "conhecimento aplicado" (GASTAL,1986), o deslocamento na concepção de ciêncianão deixa incólume o entendimento que se passaa ter a respeito da tecnologia. Coerente com abusca de uma visão sistêmica e dinâmica darealidade, ou seja, baseada em relações etransformações permanentes, reconhece-se anecessidade de incorporar e construircontinuamente novos saberes. Isto por que setorna cada vez mais explícito que "o novo semprevem" ou é criado, trazendo ou fazendo surgirnovos "problemas", que fórmulas muitas vezesconsagradas não poderão mais solucionar.

Assim, para responder a tais exigências, odomínio que o técnico detém do processotecnológico não pode ficar restrito a prescrições de"receitas prontas", mas apresentar condições detrabalhar com comportamentos e situaçõesemergentes. O conhecimento e a tecnologia, aqui,

não são mais concebidos como "coisa", "caixas-pretas", mas como "capacidades" desenvolvidaspelo profissional para equacionar/resolverproblemas emergentes. O técnico deve saberconstruir as respostas para os problemasemergentes9, incorporando os elementossingulares destes problemas, conforme osespaços onde eles surgem e a realidade onde eleatua.

Sob esta perspectiva, o profissionalcompetente seria aquele capaz de pensarestrategicamente a situação onde deve atuar,considerando e pesando as variáveis locais comas variáveis globais. Incorpora, deste modo, omote ecologista que prega o "pensar globalmentee agir localmente". Tal possibilidade, no entanto,só se torna factível se na formação curriculardeste técnico predominar a ciência criativa sobre aciência meramente informativa, onde o processode ensino priorize a criação àreprodução/memorização de conteúdos prontos.Nesta óptica construtivista do conhecimento, atecnologia é vista como "conceito", suscetíveis deserem criados, desmontados, recriados,interpretados, transformados, etc, através dacapacidade universal de pensar de todos oshumanos.

O técnico competente não é mais aquele queconsegue aprender/memorizar conteúdosacabados, mas aquele que além de aprender,discute, questiona, analisa, relaciona e,principalmente, cria novos conteúdos e formas(KITAMURA E IRIAS, 2002). Sua maiorcapacidade é "aprender a aprender". Ésinalizando nesta direção, quando fala daadequação do ensino das ciências agrárias àagricultura sustentável, que Silva Neto (1995:2)afirma:

"...uma prioridade absoluta no ensino deciências agrárias deveria ser dado à formaçãocientífica do profissional egresso evitando-se

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seja o excesso de informações, o qual leva aum enciclopedismo pouco realista e ineficaz,seja a transmissão de simples "pacotestecnológicos". Esta orientação deveriaperpassar todas as disciplinas do curso(...)para que o estudante fosse estimulado adesenvolver sua capacidade de definir, analisare solucionar problemas, ao invés desimplesmente memorizar soluçõespadronizadas."

Interessante observar que estas exigênciaspara o profissional são colocadas tanto paraaqueles que pretendem atuar no âmbito de uma"agricultura sustentável", que se define pela opçãoda produção familiar, quanto para o mercado detrabalho constituído pelos setores mais"integrados" ao sistema econômico capitalista, aprodução de larga escala. Pois também aí ascorporações empresariais mais avançadas tendema cada vez mais refugar o emprego deprofissionais meramente "reprodutores depacotes" e apostar naqueles com potencial criativode propor soluções para problemas inesperados,conforme o ideário presente na chamada"qualidade total"10.

Tais posturas sobre a exigência que se passa acobrar dos profissionais envolvidos com atecnologia reflete o impacto das transformaçõesna visão de ciência que se busca adotar. A noçãode tecnologia daí advinda pretende realçar eprivilegiar bem mais a singularidade humana depensar e criar, potencializando o valor social destacapacidade. Assim, segundo Alves (1981, p. 19):

"Pessoas que sabem as soluções já dadassão mendigos permanentes. Pessoas queaprendem a inventar soluções novas sãoaquelas que abrem portas até então fechadas edescobrem novas trilhas. A questão não ésaber uma solução já dada, mas ser capaz deaprender novas maneiras de sobreviver."

Portanto, consoante com este pensamento, otécnico da agricultura sustentável deve ser aqueleque domina o processo tecnológico comocapacidade desenvolvida para equacionar"problemas emergentes". Esta condição tangenciatambém a problemática do uso tecnológico emsua dimensão política, pois passa a postular umauniversalidade prática e metódica para acapacidade de pensar e aprender de todas aspessoas. Implica em tensionar relações de poder(e saber) há muito instituídas, pois como alertaAlves (1981), neste processo "o que está em jogonão é a transmissão daquilo que se inventa, masantes a transmissão do poder de inventar."(p.143).

Com efeito, a capacidade de implementar talconcepção processual no uso da tecnologia deveser uma das principais preocupações na formaçãocontemporânea do profissional de ciênciasagrárias. Para que ele consiga promover oconhecimento, a produção e o planejamento deuso da tecnologia necessária à agriculturasustentável, o perfil deste técnico deverá valorizare tenderá a contemplar cada vez mais osseguintes elementos:

-Aquisição de uma bagagem cultural ampla.-Capacidade de integrar os conhecimentos de

forma interdisciplinar.-Capacidade criativa mais do que só

reprodutora/memorizadora de informações.-Capacidade de interpretar a complexidade da

realidade de forma sistêmica.-Capacidade de trabalhar em grupo (equipe) e

estabelecer o diálogo construtivo interpessoal,intergrupal e interorganizacional.

-Capacidade de articular a participação, aorganização e a comunicação onde atua(comunicação oral e escrita)

-Ser um especialista "flexível", que leva emconsideração outras "partes" do conhecimentoalém da sua, conseguindo estabelecer relaçõesentre estas "partes".

Talvez pudéssemos elencar ainda vários

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outros elementos possíveis de figurar neste novoperfil do técnico sob a óptica da sustentabilidadena agricultura, derivando-os da adequação à novavisão de ciência e da tecnologia que se vemconstruindo atualmente. Porém, sob a sombra deum "paradigma" que se reconhece ainda emgestação, a análise de suas implicações necessitaprudência redobrada. Além do mais, acreditamosque estes elementos acima relacionados já sãosuficientes para sinalizarem o avanço na direçãodo desenvolvimento sustentável na agricultura,principalmente através do envolvimento e atuaçãodeste novo perfil técnico, que se passa a exigircada vez mais do profissional de ciências agrárias.

Os obstáculos e desafios para um novo perfilprofissional

Porém, as mudanças necessárias para que umnovo perfil profissional nas ciências agrárias tenhalugar vêm esbarrando em velhos problemasrecorrentes nas instituições de ensino, jáproblematizados por inúmeros autores: barreirassociais, políticas, econômicas, institucionais,metodológicas e pedagógicas, que acabam porconfigurar na prática curricular os interesses damaioria ou do grupo que possui maior poderdecisório e de disputa. Deste modo, talconfiguração acaba por manter a formaçãoprofissional de forma estática distante da realidadesocial e da sua necessária transformação11.

Em linhas gerais, podemos afirmar que osobstáculos constituem os próprios desafios aserem superados para que a formaçãohumanística e tecnológica nas ciências agráriasconfigure um perfil profissional sintonizado com oideário de uma agricultura e de uma sociedadesustentável. Assim, quais os principais obstáculosque devemos superar? As proposições desuperação destes obstáculos podem constituir,talvez, os desafios que venham a guiar, na formade diretrizes estruturantes, os projetos

pedagógicos de curso (PPC) que são, sempre,escolhas por concepções de mundo, portanto, sãotambém projetos políticos; em suma, projetospolítico-pedagógicos.

Um primeiro grande obstáculo e, portanto, umgrande desafio para os PPCs das ciênciasagrárias, é a necessidade de promover oconhecimento capaz de apreender problemasglobais e fundamentais para neles inserir osconhecimentos parciais e locais. A fragmentaçãodo conhecimento em disciplinas tem como efeitocolateral grave e freqüente o impeditivo de operaros vínculos entre as partes e a totalidade. Assim,o desafio é desenvolvermos métodos e modos deconhecimento capazes de apreender os objetosem seu contexto, complexidade e conjunto, quepermitam estabelecer as relações e influênciasrecíprocas entre as partes e o todo num mundocada vez mais complexo. Seria desenvolver o queMorin (2003) chamou de princípios doconhecimento pertinente.

Outra importante diretriz para balizarmudanças no âmbito dos PPCs seria tomar anoção de condição humana e sua correlata, anoção de identidade terrena, como referênciasproblematizadoras da ação do conhecimento esuas múltiplas conseqüências, desde umapanhado histórico dos grandes ciclos evolutivosaté as perspectivas de construção do futuro.Considerando o ser humano como sendo, a um sótempo, físico, biológico, psíquico, cultural, social ehistórico, tem ele uma identidade complexa quedeve ser minimamente considerada, pois talcondiciona as múltiplas formas dos grupamentoshumanos se relacionarem e intervirem nosecossistemas onde vivem e produzem. Ter porreferência os atributos da condição humana e suainerente identidade terrena é considerar os limitese potencialidades do conhecimento e açõeshumanas num mundo em constantetransformação, atualmente demarcado porcomplexa crise planetária que diz respeito a todos

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os seres humanos, confrontados de agora emdiante com iguais problemas de vida e de morte,num destino comum compartilhado.

Há que dar especial importância também a quea formação seja fundada na capacidade ehabilidade de enfrentar as incertezas, oinesperado, os problemas emergentes, pois eles jásão e continuarão a ser cada vez mais a tônicados desafios aos profissionais do presente e dofuturo. Seria necessário elaborar estratégiasmetodológicas que permitiriam enfrentar osimprevistos, preparar as mentes para esperar oinesperado e tomá-lo como desafio a sersuperado. Um provável corolário desta diretrizaponta que não devemos tomar o conhecimentocomo uma ferramenta pronta e acabada, mascomo um instrumental sempre em construção,sujeito a erros e equívocos, limitado e provisório(MORIN, 2003).

A crescente consciência dos limites e apermanente vigilância sobre os perigos daarrogância do conhecimento (científico) nos leva acolocar a compreensão e a tolerância comovalores e condições de uma nova forma deconceber e pensar nossas relações com os outrose o mundo. Reconhecer e saber lidar com aalteridade, com a grande diversidade cultural ebiológica que marca o mundo, é princípio para quetenhamos uma formação que proporcionecapacidades e habilidades de interagir comdiferentes grupos sociais, respeitando eentendendo as diferenças etnoculturais daídecorrentes, condição de possibilidade para sereconhecer e trabalhar com diferentesracionalidades agronômicas e estilos deagricultura.

Também não podem estar ausentes, masexplícitos na tessitura de um projeto pedagógicosintonizado com os anseios do presente, portantoemancipador, os valores da solidariedade, dademocracia e do exercício de cidadania. Asolidariedade enquanto ética do gênero humano,que reconhece o caráter ternário da condição

humana: individuo/sociedade/espécie. Daí aconvicção de que o conhecimento deve servirprecipuamente para aliviar a miséria humana. Massolidariedade que deve se estender também paratodos os elos vitais com os quais convivemos eque sustentam a (nossa) vida terrestre. E que esteprocesso emancipador só será possível medianteo controle mútuo da sociedade pelo indivíduo e doindivíduo pela sociedade, pela realização dointeresse comum, da participação comunitária,conjugada com as autonomias individuais.Portanto, uma formação que busquecontinuamente superar os atuais grilhões datecnociência12, no sentido dos conhecimentosgerados com vistas precipuamente à acumulaçãode capital, para que a humanidade possadesfolhar as flores imaginárias que encobrem ascorrentes, como afirmou Marx, não para carregara cadeia desoladora e prosaica, mas para querejeite os grilhões e colha a flor viva13.

Considerações FinaisAo finalizarmos estas considerações,

queremos ressaltar que uma análise como esta seposiciona e pretende contribuir para que aconsolidação de uma agricultura sustentável sejaefetivada no espaço agrário do país. Para tanto,entre tantas outras coisas, não deveremosnegligenciar a formação científico-tecnológicadaqueles profissionais que tem por atribuiçãosocial o envolvimento com os procedimentostecnológicos e com a população rural. Assim, aexplicitação dos elementos, coerentes e derivadosde uma nova visão de mundo e da ciência emestruturação, e que devem compor o perfil desteprofissional capaz de promover o desenvolvimentosustentável nos territórios rurais, pode contribuirpara melhor visualizarmos as condições negativase defasagens ora correntes em suas formações.

A relação que fizemos dos elementos destenovo perfil, após analisar e discutir astransformações dos seus condicionantes internose externos, também pode servir para sinalizar aos

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próprios profissionais e futuros, mesmo que aindavagamente, qual a sua atual situação enecessidade de redimensionamento nasatividades cotidianas empreendidas. Nestesentido, como apontamos no corpo do trabalho, háuma correlação de fatores, atualmente, queconverge para a mudança na conformação doperfil profissional nas ciências agrárias, o qualtende cada vez mais a incorporar as exigênciaspresentes nos enunciados da agriculturasustentável. Porém, este perfil ainda está longe deser predominante na agricultura brasileira, emesmo mundial, podendo sofrer alteraçõessubstanciais em sua provisória configuração,dadas as sempre cambiáveis e conjunturaisrelações de forças na sociedade.

De qualquer sorte, para estarem aptos apromover uma agricultura realmente sustentável, operfil profissional dos técnicos não pode ser omesmo daquele conformado pela agricultura dita“moderna”, posto que o processo formativo dasciências agrárias deve apresentar transformaçõessubstanciais em suas concepções educativas epráticas de ensino. Tal processo deve levar a umperfil do profissional que extrapole os limites daespecialização, com base cultural ampla e queseja capaz de estabelecer relações sistemáticas ecoerentes entre as diversas áreas doconhecimento contemporâneo. Porém, afragmentação do conhecimento em conteúdosisolados em diferentes disciplinas; acompartimentalização do conhecimento e daciência sem o necessário diálogo de conhecimentoe saberes (interdisciplinaridade); os projetospedagógicos meramente justificadores de gradescurriculares; a falta de aperfeiçoamentopedagógico para os educadores; o distanciamentoda realidade e ausência de leitura crítica sobre amesma; constituem estas algumas das forçasinerciais da ‘herança difusionista’ queobstaculizam e delongam as mudanças. As novas

propostas curriculares devem adotar uma visãocientífica baseada na complexidade, em temáticastransversais que proporcionem diálogo de saberese integração de conhecimentos, no contato com adiversidade da realidade social, na capacidade dereconhecer e trabalhar com diferentesracionalidades agronômicas e estilos deagricultura (diferentes grupos etno-culturais eecossistemas) e na habilidade de resolverproblemas a partir da compreensão dos contextossociopolítico, econômico, cultural e ambiental. Sobpena da novela não ter final feliz...

Notas1 O epíteto novelesca utilizado no título para

referir-se à necessária reforma curricular dasciências agrárias guarda relação com o delongadotempo que esta questão vem sendo discutida nopaís, desde fins da década de 1980, ao queparece com poucos resultados práticos. Aanalogia com o gênero literário talvez faça sentidose considerarmos a intrincada trama de atores,interesses, cenários e relações de poderenvolvidas. Ilustrativo nesta direção é que boaparte das reflexões críticas a respeito produzidasna década de 1990 se encontram ainda atuais epertinentes, a exemplo de Froehlich (1996),Almeida (1996) e Ferrari (1996), entre outros.

2 Devemos, no entanto, alertar que estas sãoreflexões em curso, pretendendo-se, aqui, muitomais trazer elementos para alimentar esteprocesso do que afirmar conclusões e análisesinequívocas. Neste sentido, nossa posição será ade afirmar algumas coisas, sim, mas muito maisproblematizar outras tantas. Afinal, se o ideário daagricultura sustentável ainda se reconhece como"em construção", nada mais coerente do que aanálise de suas possíveis implicações seremcaudatárias do provisório.

Froehlich

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3 Sobre esta questão é fundamental a análiseteórica que faz Martins (1986).

4 Os aspectos históricos, sociais, políticos eeconômicos destas relações entre o governobrasileiro e órgãos internacionais com intervençãona agricultura, são bem analisados por Fonseca(1985) e Lima (1985); especialmente sobre osserviços de Extensão Rural.

5 Para uma análise crítica destas concepçõesde educação e comunicação, ver Freire (1983) eFriedrich (1978).

6 Sobre a "modernização conservadora" daagricultura há uma vasta produção, de diferentesmatizes teóricos, mas citamos sucintamente aquiGraziano da Silva e Kageyama (1983), Brum(1988) e Graziano da Silva (1982).

7 A noção de "discurso" e de "verdade",implicada naquele, é tomada aqui,respectivamente, de Foucault (1990:97) eFoucault (1992:13).

8 O enfoque sistêmico refere-se àsabordagens que priorizam a identificação ecompreensão das relações interativas entre asdiversas partes componentes de um conjuntorelativamente autônomo e organizado com vistasa alcançar determinados objetivos. Os sistemaspossuem propriedades emergentes, ou seja,aquelas que não podem ser deduzidas do estudoe observação das suas partes isoladas, masemergem da interação entre seus componentes (asinergia é um exemplo). A abordagem sistêmicatem em Bertalanffy (1968) um dos seus principaistrabalhos pioneiros e mais recentemente tem sidoatualizada a partir da contribuição de diversosautores, dos quais podemos destacar Maturana eVarela (1995) e Capra (1996). Sobre a inter-relação entre sistemas sociais e

(agro)ecossistemas, destacamos a teoria dossistemas agrários de Mazoyer e Roudart (2001).

9 Problemas emergentes se referem aproblemas imprevistos, inesperados e que nãotem histórico de recorrência.

10 Qualidade Total é um conjunto de técnicasde administração multidisciplinar formado a partirde diversos Programas, Ferramentas e Métodos,centrado nas pessoas e aplicado ao controle doprocesso de produção das empresas, para obterbens e serviços pelo menor custo e melhorqualidade, objetivando atender as exigências e asatisfação dos consumidores. Seus princípiossurgem no Japão a partir da década de 1950 e sedifundem para o Ocidente a partir de 1970 e1980. Para mais informações ver, entre outros,Ishikawa (1993) e Drucker (1999).

11 Muitos dos problemas que atuaminercialmente dificultando mudanças não sãopropriamente do âmbito das universidades, masda própria sociedade em que vivemos, dosvalores que forjam a existência dos indivíduos soba atual dinâmica social do capitalismo. Mas sobreos quais as universidades não devem se omitir ouignorar, antes pelo contrário, devem confrontá-los,num sentido emancipatório.

12 Tecnociência refere-se ao sistema deprodução e consumo de conhecimentoscientíficos voltados à produção de inovaçõestecnológicas de interesse mercantil. Na atual fasedo capitalismo (capitalismo cognitivo segundoCocco, Galvão e Silva, (2003), ocorre umavinculação cada vez maior da ciência à tecnologiadando origem à tecnociência, que exacerba aspossibilidades de controle da natureza e deprocessos, pessoas e idéias, para servir aosinteresses do capital global. Este processo demercantilização do conhecimento implicado na

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noção de tecnociência tem muitas facetas, desdeo financiamento do sistema de Ciência &Tecnologia até a questão das patentes epropriedades intelectuais, cruciais na atual fase deacumulação capitalista.

13 Somente tomando por fundamentosaxiológicos a solidariedade, a democracia e acidadania é que os projetos pedagógicos de cursopodem deixar de ter um papel meramentejustificador das grades curriculares, pois podem (edevem) promover a sistemática aproximação àrealidade social, diminuindo o indesejáveldistanciamento e ausência de postura críticasobre a mesma.

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