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Resumo Tendo como foco o ensaio fotográfico que Cyro Almeida dedicou à Ocupacão Dandara, em Belo Horizonte, este trabalho revisita as diferentes modalidades de representação do outro na história da fotografia documental e caracteriza a relação que se estabelece entre o fotógrafo, a câmera e o sujeito fotografado no ato fotográfico, apoiado nas formulações de Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Considerando as características constitutivas do ato fotográfico, buscaremos mostrar como Cyro Almeida constrói uma nova visibilidade para essa ocupação urbana e seus moradores ao fazer determinadas escolhas relativas ao espaço enquadrado e à presença dos sujeitos fotografados.
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas
Departamento de Comunicao Social
Dbora Pereira Lopes Vieira
A Ocupao Dandara, vista por Cyro Almeida
Belo Horizonte
2015
2
Dbora Pereira Lopes Vieira
A Ocupao Dandara, vista por Cyro Almeida
Monografia apresentada ao Curso de Graduao em
Comunicao Social da Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais como requisito parcial para obteno do ttulo de
Bacharel em Publicidade e Propaganda.
Orientador: Csar Guimares
Belo Horizonte
2015
3
Agradecimentos
Agradeo a minha famlia pelo apoio, a Deus, as minhas amigas e amigos por estarem
sempre comigo e ao meu orientador Csar Guimares pela pacincia, compreenso e auxlio.
4
Resumo
Tendo como foco o ensaio fotogrfico que Cyro Almeida dedicou Ocupaco
Dandara, em Belo Horizonte, este trabalho revisita as diferentes modalidades de representao
do outro na histria da fotografia documental e caracteriza a relao que se estabelece entre o
fotgrafo, a cmera e o sujeito fotografado no ato fotogrfico, apoiado nas formulaes de
Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Considerando as caractersticas constitutivas do ato
fotogrfico, buscaremos mostrar como Cyro Almeida constri uma nova visibilidade para
essa ocupao urbana e seus moradores ao fazer determinadas escolhas relativas ao espao
enquadrado e presena dos sujeitos fotografados.
5
Sumrio
Introduo ................................................................................................................... 6
1. Modalidades de Representao do Outro .............................................................. 8
2. A Dimenso indicial da fotografia ....................................................................... 17
3. O Golpe do corte no espao-tempo fotogrfico ................................................... 20
3.1. O corte temporal ....................................................................................... 21
3.2. O corte espacial ........................................................................................ 22
3.2.1. Relao do recorte com o fora-de-quadro ................................ 23
3.2.1.1. Signos de movimento e deslocamento .............................. 24
3.2.1.2. Jogos de olhar dos retratados ............................................ 24
3.2.1.3. Presena direta do fotgrafo no campo.............................. 25
3.2.1.4. Signos do cenrio que fazem um recorte no recorte ......... 25
3.2.1.4.1. Fora-de-campo por efeito de (re)centramento ......... 25
3.2.1.4.2. Fora-de-campo por fuga ........................................... 26
3.2.1.4.3. Fora-de-campo por obliterao ................................. 26
3.2.1.4.4. Fora-de-campo por incrustao ................................. 27
3.2.2. Relao do recorte com o enquadramento a composio ........ 27
3.2.3. Relao do recorte com o espao topolgico ............................ 28
4. O fotgrafo, a cmera e o fotografado .................................................................... 29
5. Procedimentos Metodolgicos ................................................................................ 31
6. Anlise das fotografias ............................................................................................ 33
6.1. A narrativa ..................................................................................................... 36
6.1.1. Viso geral da ocupao .......................................................... 36
6.1.2. Usos do espao ......................................................................... 37
6.1.3. Espao planejado e em construo ........................................... 39
6.1.4. Signos do cotidiano dos moradores .......................................... 41
6.1.5. Dandara: espao de resistncia ................................................. 43
6.2. Espaos externos ........................................................................................... 46
6.3. Espaos internos ............................................................................................ 54
6.4. Retratos dos moradores ................................................................................. 60
Consideraes Finais ...................................................................................................... 66
Referncias Bibliogrficas ............................................................................................. 68
6
Introduo
Em abril de 2009, cerca de 150 famlias ocuparam um terreno de 40 hectares na regio
norte de Belo Horizonte. A insero das famlias no espao se deu por meio da luta
organizada pelos Movimento dos Sem Terra, Brigadas Populares e Frum de Moradia do
Barreiro. A ocupao organizada e planejada, se denominou Dandara, em homenagem
guerreira que lutou contra a escravido no sculo XVII, ao lado de Zumbi dos Palmares. A
posse do terreno reivindicada pela construtora Modelo, que nunca construiu no local e
acumula uma dvida de mais de 2,5 milhes de IPTU no pagos Prefeitura de Belo
Horizonte.
Os moradores da ocupao e movimentos apoiadores lutam pelo direito moradia e
pela dignidade dessas pessoas que no possuem outra alternativa em funo dos altos preos
dos alugueis e da especulao imobiliria. Pesquisa divulgada pela Fundao Joo Pinheiro
em 2013 aponta que o dficit habitacional em Minas Gerais de 557.331 moradias, e s na
regio metropolitana de Belo Horizonte faltam 167.000 casas1. Esses dados tocam na grave
questo da reforma urbana, essencial para que todas essas famlias sejam assentadas e tenham
seus direitos sociais bsicos garantidos.
A Ocupao Dandara surge nesse contexto de necessidade de moradia e em meio
luta judicial. Hoje a comunidade j conta com mais de mil famlias, e o conflito ainda no foi
resolvido. Alm da falta de informao de muitos cidados a respeito da reforma urbana e
sobre as ocupaes, a forma com que ela retratada nos veculos miditicos de massa
contribui para reforar uma viso negativa sobre a ocupao, comumente chamada de
invaso. Em funo da situao irregular e do conflito judicial, as famlias que moram nas
ocupaes viveram sob um risco de despejo h pouco tempo.
Em maio de 2010 os moradores da ocupao organizaram um acampamento na Praa
Sete, em uma tentativa de dilogo com a Prefeitura de Belo Horizonte. Foi nessa ocasio que
aconteceu o primeiro contato do fotgrafo Cyro Almeida com a comunidade e sua luta. Cyro
passou a visitar a ocupao e, entre os anos de 2010 e 2012, realizou vrias fotos em Dandara
que foram selecionadas e publicadas em 2014 em um livro. Elas tambm foram expostas no
Palcio das Artes entre 22 de maro e 4 de maio desse mesmo ano.
Essa monografia busca analisar o trabalho do fotgrafo no contexto da fotografia
documental, em particular, quando esta procura retratar os sujeitos das classes pobres e
1 Pesquisa disponvel em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-
habitacional-municipal-no-brasil-2010/file. Acesso dia 30/06/2015.
http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-habitacional-municipal-no-brasil-2010/filehttp://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-habitacional-municipal-no-brasil-2010/file7
desfavorecidas. Nas diferentes abordagens da fotografia contempornea documental existem
fotgrafos que se interessam em conhecer o mundo do outro, em dar visibilidade a esses
sujeitos, em conceder a eles uma nova representao, diferente da que apresentada pela
mdia. Nesse sentido, torna-se pertinente a reflexo sobre o trabalho fotogrfico de Cyro
Almeida: quais foram suas estratgias de abordagem e aproximao com o outro? Como
escolheu retratar o espao de Dandara e seus moradores? Qual representao ele constri e
que tipo de visibilidade gera para a comunidade com as suas fotografias?
Inicialmente faremos um breve panorama histrico e terico sobre as diferentes
modalidades de representao do outro na histria da fotografia documental, baseados no
trabalho de Anna Karina Castanheira Bartolomeu. Em seguida abordaremos o ato fotogrfico
como ndice e golpe de corte no espao e no tempo, de acordo com as formulaes de
Philippe Dubois. Aps esse levantamento sobre as caractersticas do signo e da imagem
fotogrfica, falaremos sobre as relaes entre fotgrafo, dispositivo e o outro fotografado que
se do na cena, no ato fotogrfico. Passada essa primeira etapa de consideraes reflexivas a
respeito da imagem, realizamos uma primeira descrio da organizao do livro, identificando
algumas das escolhas do fotgrafo na edio e quais sentidos ela sugere. Em seguida
analisamos as fotografias, divididas em trs grandes grupos: espaos externos, espaos
internos e retratos dos moradores.
8
1) Modalidades de representao do outro: brevssimo histrico
Como observou Anna Karina Castanheira Bartolomeu, desde sua inveno, na
primeira metade do sculo XIX, a fotografia esteve envolvida na representao do outro de
classe ou de outra cultura.2 Seja no exotismo despertado pelo Oriente, seja no contexto da
colonizao conduzida pelos pases europeus, o outro, fotografado, era apanhado em
dispositivos de conhecimento, controle e documentao que o categorizavam, estereotipavam,
o colocavam como diferente. Alguns fotgrafos tambm mostraram interesse pelo mundo do
outro, no por este pertencer a uma cultura extica, mas por fazer parte de uma classe social e
econmica diferente da sua. Esses fotgrafos estavam em busca da alteridade no mundo do
outro, este que possua um modo de vida diferente do seu, com o objetivo de dar visibilidade
situao vivida por ele e, assim, contribuir para que ela fosse alterada. Com isso, eles
acreditavam que poderiam promover mudanas.
Alguns fotgrafos se preocuparam em registrar situaes de precariedade social, como
Jacob Riis, que fotografou imigrantes que viviam em bairros pobres de Nova York em
pssimas condies de moradia na ltima dcada do sculo XIX. O objetivo de Riis era
denunciar a situao em que viviam essas pessoas e contribuir, de algum modo, para que ela
fosse alterada. Porm, certas vezes a forma de aproximao escolhida no era nada respeitosa:
no meio da madrugada ele invadia as casas com a ajuda de um policial e disparava o flash
para capturar a real situao em que se encontravam aquelas pessoas. Conforme escreve
Price:
As "meras palavras" deveriam ser substitudas, na opinio de Riis, pela veracidade
irrefutvel da cmera, e ele via sua contribuio como a de produzir evidncia para
provar o que de outra forma seria problemtico. Mas ele no teria considerado sua
viso pessoal como importante: os fatos falariam por si mesmos e os habitantes da
favela haviam sido convertidos, atravs da mirada documental, em "fatos".3
Com esse mtodo de trabalho, o fotgrafo no dava espao para o outro se situar,
negociar a sua representao na imagem fotogrfica; os imigrantes eram pegos de surpresa,
no havia uma conversa prvia, um acordo entre fotgrafo e fotografado. Riis acreditava na
objetividade da cmera, na sua imparcialidade e capacidade de dar conta dos fatos. Ele
trabalhou como reprter policial para o Tribune e depois para o Evening Sun e acreditava que
2 BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira. De dentro da favela: o fotgrafo, a mquina e o outro na cena.
Tese (Doutorado em Comunicao Social). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008. 3 PRICE, Derrick, Surveyors and surveyed: Photography out and about, In: WELLS, Liz (org) Photography: a
critical introduction. Londres, Routledge, 1997 (Traduo de Rui Cezar dos Santos), p.7.
9
as fotografias seriam capazes de mostrar s pessoas a realidade e de convenc-las da pobreza
e misria existente em Nova York, o que apenas seus textos no conseguiam. Em funo da
objetividade pretendida e das condies em que Riis realizou as suas fotografias, elas no
possuam uma preocupao esttica e formal. Nas palavras de Price: "Talvez inevitavelmente,
suas fotografias nos provm detalhes etnogrficos da vida material e das condies sociais ao
invs de leituras subjetivas mais complexas da natureza da pobreza e da destituio."4.
Esse efeito de realidade atribudo prtica fotogrfica de Riis estava em consonncia
com as primeiras formulaes tericas sobre a fotografia que surgiram no sculo XIX. Estas
consideravam a cmera como uma mquina objetiva em funo da semelhana entre o objeto
fotografado e a imagem formada pelo aparelho. A fotografia era entendida como um espelho
da realidade, mimtica, a perfeita imitao do real. O dispositivo fotogrfico, por ser um
aparelho mecnico que obedece s leis da fsica e da qumica teria uma preciso capaz de
mostrar a realidade tal como . Como aponta Philippe Dubois, essa concepo mimtica da
fotografia pode ser associada categoria dos cones, tal como formulada por Charles Sanders
Peirce: signos que esto ligados ao objeto que representam por uma relao de semelhana.
No sculo XIX tornaram-se populares as revistas ilustradas, publicaes que se
utilizavam de imagens para contar uma histria. Inicialmente essas revistas utilizavam
ilustraes de gravura em madeira. Com a inveno da fotografia isso iria mudar, mas no
imediatamente, devido s dificuldades tcnicas dos meios de reproduo. Porm, enquanto as
fotografias no conseguiam ser impressas, artistas se baseavam em fotografias para fazer as
ilustraes desses peridicos. O aprimoramento das tcnicas de impresso, heliogravura e
offset, no comeo do sculo XX possibilitou a difuso das fotografias em publicaes em
massa. A reproduo de fotografias pelas revistas ilustradas foi fundamental para a prtica do
fotodocumentarismo moderno. Elas permitiram aos fotgrafos publicar suas fotos de
investigao social em formato de grandes reportagens. Esse movimento de revitalizao do
jornalismo, marcado pela preocupao poltica, surgiu na Alemanha na dcada de 1920. Com
a ascenso de Hitler ao poder, muitos dos editores e fotgrafos das Ilustradas alems
exilaram-se na Frana, Reino Unido e Estados Unidos, e levaram para esses pases essa nova
prtica do fotojornalismo.
Na dcada de 1930 surge o projeto arquetpico do fotodocumentrio, marcado pela
preocupao em denunciar situaes sociais de desigualdade, injustia, pobreza e com uma
4 PRICE, Derrick, 1997, p.7.
10
forte pretenso de mudana e reforma social. De acordo com Derrick Price, a fotografia dos
anos 1930 foi influenciada por vrios fatores:
Tecnicamente, o desenvolvimento das novas e leves cmeras 35mm tornou possvel
novos ngulos de cmera. Houve crescimento no nmero de revistas ilustradas e,
dentro dessas, uma abordagem crescentemente sofisticada do papel dos editores de
fotografia e a construo de fotoensaios. No menos, havia um pblico novo e vasto
com fome de ver imagens derivadas da vida real. O movimento documental era,
claro, amplamente discutido em relao ao cinema e no h dvida de que John
Grierson era uma figura importante na determinao da natureza de seu projeto
esttico e poltico.5
Grierson cunhou o termo documentrio em 1926 para definir um cinema oposto ao
entretenimento e fbrica de sonhos de Hollywood. Ele acreditava que o cineasta poderia, por
meio da sua criatividade, fazer filmes que tivessem um compromisso maior em retratar o real
e em produzir conhecimentos sobre o mundo que seriam teis sociedade. A fotografia foi
influenciada por essa concepo de documentrio, e nesse perodo, entre as dcadas de 1920 e
1930, comea a ser gerada uma mudana na prtica dos fotgrafos documentais. Como aponta
Olivier Lugon:
Na acepo de fotodocumentrio que passou a ser ento gestada, a criao humana
no era mais percebida como um elemento perturbador da capacidade reveladora
supostamente inerente ao automatismo e mecanicidade do equipamento
fotogrfico. Ao contrrio, a liberdade criativa do fotgrafo se firmou como um modo
exceder
a mera reproduo da realidade para, dessa maneira, signific-la.6
Nesse panorama de fotgrafos documentais que j tinham uma preocupao com os
recursos expressivos que poderiam utilizar para interpretar o mundo sua volta e retrat-lo
sob o seu ponto de vista, situam-se alguns fotgrafos da Farm Security Administration (FSA),
organizao criada pelo governo americano de Rossevelt em 1935 na tentativa de reconstruir
a economia americana abalada pela grande depresso. Foi criado um departamento de
fotografia na FSA, dirigido por Roy Stryker. Os fotgrafos contratados deveriam produzir
imagens que fossem capazes de sensibilizar a populao norte-americana acerca da situao
dos agricultores do oeste e do sul e convenc-la que os programas assistenciais do governo
eram necessrios para recuperar essas economias. O projeto fotogrfico tinha um objetivo
definido: as fotos deveriam mostrar a pobreza dos pequenos agricultores, as muitas
dificuldades que enfrentavam. Os fotografados deveriam ser retratados como trabalhadores
5 PRICE, Derrick, 1997, p.10.
6 LUGON, 2010, apud SANTOS, Ana Carolina, Da Inter-relao entre fotodocumentrio e fotomontagem: a
experincia de Pedro Meyer em Truths & Fictions. Tese (Doutorado em Comunicao Social). Belo Horizonte:
Universidade Federal de Minas Gerais, 2014, p. 66-67.
11
dignos de receber a ajuda do Governo. Todas as fotografias passavam pela aprovao de Roy
Stryker, que verificava se elas estavam condizentes com esses propsitos.
Um dos grandes fotgrafos que trabalhou na FSA foi Walker Evans. Por no
concordar com os mtodos de Stryker, desligou-se do projeto em 1938. Em 1941, juntamente
com James Agee, publicou o livro Elogiemos os Homens Ilustres, com fotos que realizou no
perodo. Evans no concordava com o drama sentimentalizado que Stryker exigia que os
fotgrafos da FSA expressassem nas fotos. Submetidos inteno do projeto de despertar o
sentimento e a compaixo da classe-mdia norte americana, frequentemente os agricultores
eram retratados como pessoas destitudas, passivas, assujeitadas a uma situao social
desfavorecida, como sublinha Price:
Os fotgrafos da FSA usaram uma variedade de meios tcnicos para dotar seus
sujeitos com qualidades particulares. [...] Essas fotografias documentais, ento,
como todas as outras, so trabalhos densamente construdos que empregam certas
tcnicas e formas para produzir uma resposta desejada no espectador. Elas
certamente contm 'fatos' em um sentido simples: uma mulher veste um vestido feito
de um saco de farinha, uma famlia vive debaixo de uma tenda improvisada de
estacas e lona. H, em outras palavras, muita evidncia de pobreza indicada por
marcas tradicionais de ausncia de prosperidade material. Mas, em suas verses
mais complexas, elas so fotografias dos (literalmente) destitudos, cuidadosamente
construdas para produzir um significado que transcende o que mostrado.7
No contato que se estabelece entre fotgrafo e fotografado est presente uma relao
de poder, pois a cmera no um aparelho que simplesmente reproduz a realidade; o ato
fotogrfico feito de escolhas, o fotgrafo recorta uma cena, escolhe o que vai mostrar e
como mostrar, efeitos e sentidos so produzidos. Com isso, alguns fotgrafos comeam a
refletir sobre como o outro representado na fotografia documental. Guiado por uma severa
crtica dessas representaes que desconstroem o mundo do outro em sua diferena, James
Agee escreveu no prefcio de Elogiemos os Homens Ilustres:
Parece-me curioso, para no dizer obsceno e totalmente aterrorizador, que possa
ocorrer a uma associao de seres humanos reunidos em uma
companhia, por necessidade e sorte, e por lucro, um rgo de jornalismo, espiar
intimamente as vidas de um grupo de seres humanos indefesos e
consternadoramente injuriados, uma famlia rural ignorante e indefesa, para o
propsito de exibir a nudez, desvantagem e humilhao dessas vidas diante de outro
grupo de seres humanos em nome da cincia do "jornalismo honesto" (o que quer
que seja que esse paradoxo signifique), da humanidade, de bravura social, por
dinheiro e por uma reputao de fazer uma cruzada e por falta de preconceito que,
quando bem competentemente qualificado, cambivel em qualquer banco por
dinheiro... e que essas pessoas possam ser capazes de meditar esse prospecto sem a
menor dvida sobre suas qualificaes para produzir uma pea de trabalho 'honesta',
7 PRICE, Derrick, 1997, p.12.
12
e com uma conscincia melhor do que clara, e na certeza virtual de aprovao
pblica quase unnime.8
Os fotgrafos documentais da dcada de 30 e 40 foram bastante influenciados pelos
preceitos da fotografia moderna e, em especial, pela straight photography ou fotografia direta.
Os seus representantes, como Paul Strand, Edward Weston e Ansel Adams defendiam a boa
forma e o rigor da composio, alm de uma grande nitidez na imagem, capaz de
proporcionar grande preciso de detalhes, gradao de tons e explorao da textura. Os
modernistas reivindicavam uma fotografia pura, em oposio ao pictorialismo popular no
final do sculo XIX e comeo do sculo XX. Pensavam na fotografia como arte, mas por
meio da utilizao de recursos prprios do meio fotogrfico, recursos prprios da cmera.
Para eles, escolhas deveriam ser feitas no momento anterior realizao da imagem, pois
eram contrrios a manipulaes no negativo e na cpia.
As revistas ilustradas continuaram sendo o principal meio de divulgao dos
fotgrafos documentais at as dcadas de 1960 e 1970. Elas exerceram um papel fundamental
no consumo de fotografias pela sociedade; com suas reportagens que privilegiavam o uso de
vrias fotografias aliadas a pequenos textos, elas entraram na rotina de leitura de diversos
pases. As fotografias destinadas a esses espaos tinham um outro tempo de realizao, no
seguiam a lgica do jornalismo dirio em que as fotos eram mais ilustrativas e deveriam ser
realizadas rapidamente. Os fotoensaios das revistas ilustradas permitiam que os fotgrafos
pesquisassem antes de ir a campo e que se prolongassem mais na realizao das imagens, por
meio de uma imerso no tema que seria retratado. Isso proporcionou aos fotgrafos mais
liberdade para compor suas imagens e entrar em contato com o outro que iriam retratar.
Esse estilo de fotorreportagem comeou a ser praticado no Brasil em 1943, com a
contratao do fotgrafo francs Jean Manzon pela revista O Cruzeiro. Ele foi convidado por
Assis Chateaubriand para implantar esse novo jornalismo no Brasil. O peridico foi
responsvel pela divulgao do trabalho de importantes fotodocumentaristas brasileiros, como
Jos Medeiros e Flvio Damm. Apesar da diversidade presente nas fotos, tanto em funo do
tema (serto, manifestaes das culturas negras e indgenas, "tipos brasileiros", movimentos
sociais, etc), quanto pelo estilo e pelo mtodo de trabalho, elas possuem alguns traos em
comum, prprios da fotografia moderna: a tomada frontal, nitidez, luminosidade e a
legibilidade das imagens.9
8 AGEE, James e EVANS, Walker, Elogiemos os homens ilustres, 1939, p.7.
9 LUGON, 2001, apud BARBALHO, Marcelo (2010, p.56) considera caractersticas marcantes do estilo
moderno a tomada frontal, a luminosidade, a nitidez e a legibilidade da imagem. Esse conjunto constitui uma
plasticidade que confere simplicidade formal s imagens documentais modernas, num contraponto patente s
13
Percebe-se na obra de fotgrafos documentais modernistas como Walker Evans e
Sebastio Salgado ressaltadas as enormes diferenas (estilsticas e histricas) uma
preocupao no apenas com o tema social que abordado, mas tambm com a tcnica e a
composio, ao contrrio dos primeiros fotgrafos documentais, como Jacob Riis por
exemplo, que pelas prprias condies de realizao da imagem no tinham esse apuro
formal. Reconhecia-se, portanto, que apesar de manter uma relao com o mundo real e
represent-lo, a fotografia documental no era resultado apenas de processos mecnicos, no
era produto de uma mera transcrio do mundo. Ao contrrio, o fotgrafo interferia nesse
mundo ao fotografar, ao interagir com o outro representado; por meio de escolhas tcnicas de
composio ele codificava a mensagem fotogrfica e, assim, atribua significados ao que ele
representava. Conforme escreve Soulages:
O fotodocumentrio remete ao mundo, estabelecendo relaes com ele, e tambm
dele se separa na medida em que sempre o reconfigura em formas virtuais que no
so mais as dele. A fotografia passou a ser percebida, pois, como resultado de um
processo de transformao e atualizao que se d a partir do modo como o
fotgrafo traduz na imagem, na organizao dos seus elementos constituintes, uma
maneira de recriar o mundo. A fotografia no opera na reproduo ou restituio do
referente, mas na sua reapropriao fotogrfica.10
O discurso da mimese, da fotografia como espelho da realidade perde espao por volta
dos anos 1970 com o surgimento da abordagem estruturalista e os tericos comeam a pensar
na fotografia como um processo de transformao, codificao do real. O fotgrafo, ao
realizar uma foto tem intenes, mostra o seu ponto do vista sobre a cena, escolhe o que vai
dar a ver do retratado e de seu contexto. A fotografia ento uma mensagem codificada
tecnicamente, culturalmente, sociologicamente e esteticamente, como aponta Philippe Dubois:
Logo se manifestou uma reao contra esse ilusionismo do espelho fotogrfico. O
princpio de realidade foi ento designado como pura "impresso", um simples
"efeito". Com esforo tentou-se demonstrar que a imagem fotogrfica no um
espelho neutro, mas um instrumento de transposio, de anlise, de interpretao e
at de transformao do real, como a lngua, por exemplo, e assim, tambm,
culturalmente codificada.11
Ganha fora o discurso da fotografia como um smbolo, sua capacidade de significar
no apenas como evidncia de algo, como um fato, mas como construo de sentidos. O
fotgrafo passa a ser visto como capaz de evocar significados, de expressar o seu ponto de
vista do mundo por meio da fotografia, que ser decodificada pelo espectador na utilizao de
cpias escurecidas e com efeitos crepusculares de pictorialistas como Robert Demachy e Edward Steichen
(especificamente no incio de sua carreira nos primeiros anos do sculo XX). 10
SOULAGES, 2010, apud SANTOS, Ana Carolina, 2014, p.68 11
DUBOIS, Philippe, O Ato fotogrfico, 1984, p.26.
14
referncias culturais comuns. De acordo com Bartolomeu: "Ao valor de evidncia da
fotografia, vem se acrescentar o valor simblico, bem como seu valor esttico."12
.
Em funo de uma maior preocupao dos fotgrafos com os recursos expressivos
para conseguir trazer novos significados cena retratada e a exposio de suas fotografias em
museus tem incio o reconhecimento do autor na fotografia documental. Em 1938 o Museu de
Arte Moderna de Nova York (MoMA) realizou uma exposio com setenta imagens da FSA.
Com isso, a fotografia documental ganhou um novo espao de circulao, no mais restrita s
revistas ilustradas; alcana esse espao da arte que antes era dedicado apenas as fotografias
com pretenses artsticas.13
Alm do espao conquistado nos museus, vrios fotgrafos
publicam livros com suas obras, tanto com um carter retrospectivo, reunindo fotografias de
diferentes temticas, quanto livros de carter ensastico. Como exemplo do primeiro temos o
livro Images la Sauvette (O momento decisivo), lanado em 1952 por Henri Cartier-
Cartier-Bresson, e como exemplos do segundo caso temos as obras American Photographs
publicado em 1938 por Walker Evans e Les Americains (Os americanos) de Robert Frank em
1958, do qual falaremos mais adiante.
A partir dos anos 1950 o discurso do reformismo social da fotografia documental
perde fora e os fotgrafos lanam o seu olhar para outros temas, mais ligados ao cotidiano,
representao da vida social e no necessariamente questes de classe. Os fotgrafos
documentais passam a gozar de uma maior liberdade, segundo Bartolomeu: "Os temas
tacitamente autorizados a serem tratados pelo documentrio fotogrfico se ampliam e passam
a incluir qualquer coisa que seja capaz de mobilizar a ateno do fotgrafo."14
. Este o caso
do trabalho de Robert Frank, Les Amricains, publicado em 1958 em Paris, e no ano seguinte
nos Estados Unidos como The Americans. As imagens foram feitas em viagem realizada por
Frank pelos EUA entre 1955 e 1956, com o auxlio da bolsa Guggenheim. As fotos retratam
os Estados Unidos por um outro ngulo: a viso do estrangeiro que lana um olhar irnico
sobre os acontecimentos da vida cotidiana dos americanos. Nessa obra de Frank percebe-se
uma maior experimentao na esttica documental ao romper com certos preceitos da
fotografia modernista que tem reflexos na fotografia contempornea. Por meio da
utilizao de borres, desfoques e novos enquadramentos Frank atinge uma maior
subjetividade e expressividade.15
12
BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira, 2008, p.57. 13
ROSENBLUM, 1997, apud Anna Karina, 2008, p.58. 14
BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira, 2008, p.61. 15
Os termos subjetividade e expressividade muitas vezes utilizados aqui se referem aos usos de recursos
estilsticos, visuais, compositivos e tcnicos de que os fotgrafos se utilizam para transcender os fatos
15
Aps The Americans, a fotografia documental entrou na fase contempornea de sua
evoluo. Muitos fotgrafos se voltaram para dentro de si mesmos ao mesmo tempo
em que se afastaram do tumulto das aes e da vida pblica das agitaes. A
preocupao deles passou a ser o reconhecimento e os problemas viscerais do
homem. Comunicar a realidade psicolgica se torna mais importante do que
expressar a realidade visual ou social. A emoo do fotgrafo, ou sua experincia,
passa a ser to central para a imagem quanto sua viso de mundo. Esse mapa da
psique fotografia complexa, muitas vezes traioeira, pois leva a imagens que
primeira vista podem parecer borres-rejeitados, estranhamente enquadrados, vazias
como as obras de arte de sucesso. A fotografia exige uma interpretao atenta. O
observador deve pensar sobre as imagens para alcanar a mensagem fotogrfica. 16
Essa maior possibilidade de experimentao na esttica documental tambm teve
reflexos em obras produzidas no Brasil, como o trabalho de Cludia Andujar com os ndios
Yanomami na dcada de 70. Em suas fotografias sobre os rituais xamnicos e o cotidiano na
aldeia, Andujar utiliza-se de elementos como borres, arrastamentos, utilizao de luz de
lampies de querosene no interior de ocas para conseguir retratar nas fotografias a atmosfera
dos rituais indgenas, seu aspecto de transe e representar a relao dos Yanomami com a
floresta. Essa viso mais subjetiva e dotada de liberdade expressiva rompe com a esttica do
modernismo documental, mas suas fotos tambm apresentam influncia desse perodo, tanto
pelo seu engajamento social pelo reconhecimento dos direitos indgenas quanto pelos retratos
realizados em sua obra Marcados. De acordo com Brando e Machado: "a plasticidade
existente em alguns momentos na obra da fotgrafa antecipou, 'de modo visionrio', conceitos
e estticas notados de forma mais recorrente na fotografia contempornea brasileira apenas a
partir da dcada de 90."17
.
A fotografia documental contempornea marcada por uma variedade de temas
abordados e estilos, englobando fotgrafos com trabalhos bastante distintos. Mas todos eles
tem em comum a ruptura com o modelo de documentrio de reforma social que acreditava
que, por meio de fotografias seria possvel mudar a sociedade. De acordo com Price,
"certamente os fotgrafos documentaristas no esto mais atados ao projeto poltico que foi
esposado pelo movimento documentarista dos anos 1930. Nem so necessariamente
empregados os cdigos que pareciam autenticar as fotografias documentais."18
. O que temos
visto na fotografia documental contempornea uma maior liberdade de experimentao e
expresso. Em alguns fotgrafos documentais brasileiros pode-se perceber uma exacerbao
do uso de elementos estilsticos, como Tiago Santana, que utiliza, por exemplo, imagens
apresentados pela fotografia documental, e assim, atribuir sentidos a foto, que contm o ponto de vista do
fotgrafo sobre determinada realidade. 16
DOCUMENTARY photography. Nova Iorque: Time-Life Books, 1972. apud BARBALHO, Marcelo, 2010,
p.70. 17
BRANDO e MACHADO, 2005, apud BARBALHO, Marcelo, 2010, p.73. 18
PRICE, Derrick, 1997, p.19.
16
borradas, desenquadramentos e a presena de reflexos em superfcies espelhadas. Outra
vertente o documentrio imaginrio19
, tendncia que se utiliza de recursos ficcionais para
afirmar ideias, posies, criar novas possibilidades de significados em obras documentais.
Como exemplo temos a obra Paisagem Submersa, dos mineiros Joo Castilho, Pedro David e
Pedro Motta, exposta em galerias e publicada em livro em 2008. O recurso fico e
montagem em fotografias documentais tem usos atuais, mas reflete discusses anteriores
sobre a capacidade da fotografia em representar a realidade, como j apontava Walter
Benjamin em seu ensaio Pequena histria da fotografia, em 1932, ao destacar o papel da
construo e da montagem.
Mas, se a verdadeira face dessa "criatividade" fotogrfica o reclame ou a
associao, sua contrapartida legtima o desmascaramento ou a construo. Com
efeito, diz Brecht, a situao "se complica pelo fato de que menos do que nunca a
simples reproduo da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. Uma
fotografia das fbricas Krupp ou da AEG no diz quase nada sobre essas
instituies. A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As
relaes humanas, reificadas numa fbrica, por exemplo , no mais se
manifestam. preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado."
O mrito dos surrealistas o de ter preparado o caminho para essa construo
fotogrfica.20
Nessa diversidade de discursos documentais da atualidade a representao do outro
no saiu de cena, mas ganhou novas modalidades, guiadas por novos procedimentos. Alm de
utilizar outros recursos expressivos (o que no uma regra), como no caso de Paisagem
Submersa, em que a fico se faz presente, o documentrio contemporneo que se volta para o
outro (de outra classe, cultura ou grupo social) no tem mais a pretenso de promover uma
reforma social e conseguir realizar mudanas por meio da fotografia. O objetivo maior dar a
ver o outro e o seu mundo, suas particularidades. As imagens reivindicam para esse outro uma
nova representao, diferente da que costumeiramente produzida nas grandes mdias. O
processo em que se da a realizao das fotos tambm diferente: por meio da experincia do
fotgrafo no mundo do outro, da vivncia e da convivncia com o outro, h uma negociao
entre fotgrafo e fotografado, as relaes de poder so problematizadas e o fotgrafo pretende
19
"No Documentrio Imaginrio, os fotodocumentaristas procuram colocar para fora seus sonhos, suas
subjetividades de maneira mais explcita, o que no significa que muitos j no o faziam. Apenas agora isso
acontece de forma aberta, escancarada, sem restries. No h mais a busca de uma relao analgica com o
referente na mesma intensidade que havia na forma clssica da fotografia documental, e as imagens fluem menos
apegadas idia de objetividade, embora as caractersticas fundamentais da fotografia documental sejam
mantidas (pesquisa prvia sobre o tema, projetos de longa durao, conjunto de imagens que formam uma
narrativa etc.)." LOMBARDI, Ktia. Documentrio Imaginrio: Novas potencialidades na fotografia documental
contempornea. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social). Belo Horizonte: Universidade Federal de
Minas Gerais, 2007, p.75. 20
BENJAMIN, Walter, Pequena histria da fotografia, 1932, p.106.
17
que essa proximidade com o outro possa ser refletida em uma representao construda no
encontro entre fotgrafo e fotografado, como Bartolomeu afirma:
Assim, a valorizao de uma experincia comum num projeto de fotografia
configura uma aposta na formao ou na existncia prvia de quadros de sentidos
compartilhados que favoream uma melhor compreenso da vida do outro. Muito
frequente tambm o argumento dos fotgrafos de que, com a convivncia
prolongada, podem ser como que absorvidos pelo grupo em dado momento,
podendo assim penetrar em zonas de outro modo inacessveis. Enfim, o que se
espera que essa experincia de partilhamento possa impregnar as imagens e a
narrativa que ser tecida a partir delas.21
nesse novo contexto que foi realizada a experincia fotogrfica do fotgrafo Cyro
Almeida na Ocupao Dandara, entre 2011 e 2012. Em 2014 ele publicou um livro por meio
de Lei de Incentivo Cultura e realizou uma exposio no Palcio das Artes em maro desse
mesmo ano. Na obra do fotgrafo, na qual nos deteremos mais adiante, percebemos esse
desejo de dar visibilidade ao outro e construir novas representaes possveis, diferente da
forma com que as ocupaes urbanas so representadas pela grande imprensa. Antes de
abordarmos a obra de Cyro Almeida, porm, recordaremos alguns tpicos da teoria da
fotografia que nos sero teis na anlise das imagens.
2) A Dimenso indicial da fotografia
Segundo Philippe Dubois, por volta da dcada de 1970 destaca-se um novo discurso
sobre as teorias da fotografia. Retoma-se as consideraes de Charles Sanders Peirce sobre a
relao do signo com o seu objeto, para caracterizar a fotografia como um signo
primeiramente indicial, em sua gnese. Essas consideraes surgem em oposio ao discurso
da fotografia como processo de codificao e transformao do real, dotada de uma dimenso
primeiramente simblica. As pesquisas ps-estruturalistas, lanando mo da semitica de
Peirce e de consideraes anteriores de outros autores como Andr Bazin, Walter Benjamin e
Roland Barthes, definem o carter referencial da fotografia, sua contiguidade fsica com o
objeto representado, o princpio de formao da imagem fotogrfica por meio de uma
impresso luminosa como a essncia da fotografia. Esta pensada ento como um trao do
real, um signo capaz de atestar a existncia do seu referente, que esteve ali no momento de
realizao da imagem fotogrfica, como afirma Dubois:
A fotografia, antes de qualquer outra considerao representativa, antes mesmo de
ser uma imagem que reproduz as aparncias de um objeto, de uma pessoa ou de um
21
BARTOLOMEU, ANNA Karina, 2008, p.69.
18
espetculo do mundo, em primeiro lugar, essencialmente, da ordem da impresso,
do trao, da marca e do registro (marca registrada, diria Denis Roche). Nesse sentido
a fotografia pertence a uma categoria de "signos" (sensu lato) chamados pelo
filsofo e semitico americano Charles Sanders Peirce de "ndice" por oposio a
"cone" e a "smbolo". Para me adiantar (muito), direi apenas que os ndices so
signos que mantm ou mantiveram num determinado momento do tempo uma
relao de conexo real, de contiguidade fsica, de co-presena imediata com seu
referente (sua causa), enquanto os cones se definem antes por uma simples relao
de semelhana atemporal, e os smbolos por uma relao de conveno geral.22
Sem a luz que o objeto reflete e sensibiliza o material flmico no haveria a formao
da imagem fotogrfica. A dimenso indicial est relacionada com o ato mesmo de fazer a
imagem, aquela frao de segundo em que o obturador disparado e ento no h
interferncia do homem, quando opera-se a transferncia luminosa. somente nesse tempo
situado entre o antes e o depois da realizao da imagem que a fotografia pode ser
considerada, segundo Barthes, uma mensagem sem cdigo, pura denotao. A relao do
signo indicial com seu referente se d por meio de uma conexo fsica, o que implica que os
ndices, como o caso da fotografia, mantm uma relao de singularidade, atestao e
designao com o seu objeto, como explicaremos mais adiante. Outro ponto importante que
Dubois destaca que os signos no se restringem apenas a cones, ndices e smbolos, "um
mesmo signo pode depender das trs categorias semiticas ao mesmo tempo"23
, o que
fundamental para entender o signo fotogrfico.
Antes da tomada da foto, na frao de segundo em que a luz imprime-se no papel
sensvel, existem vrias escolhas, gestos e processos culturais de codificao. O fotgrafo
escolhe o que vai ser fotografado e como ele vai retratar essa cena, faz um recorte, escolhe um
ngulo, um ponto de vista, ajusta os controles de exposio da cmera (diafragma e
obturador), ajusta o foco e aps essa espera realiza o disparo. Depois de realizada a foto, no
momento de revelao e cpia ou no processo digital de tratamento da imagem em programas
de edio, tambm so realizadas escolhas que dizem de cdigos culturais, que influenciam o
sentido da foto e a interpretao do espectador, como ressalta Dubois:
Mas afora isso, afora o prprio ato da exposio, a foto imediatamente (re-)
tomada, (re-)inscrita nos cdigos. Em todos os tipos de cdigos que nunca mais a
abandonaro, que sero tanto mais poderosos, que nela colocaro tanto mais ardor
quanto durante um instante o prprio instante de sua constituio , ela lhes
escapou.24
Como a imagem fotogrfica formada por meio da impresso de raios de luz que
emanam de seu referente, ela mantm com ele uma marca identitria nica, singular, que se
22
DUBOIS, Philippe, 1984, p.61. 23
DUBOIS, Philippe, 1984, p.64. 24
DUBOIS, Pihilippe, 1984, p.86.
19
refere quele momento que aconteceu uma nica vez e no vai se repetir mais
existencialmente. Com isso, "o trao (fotogrfico) s pode ser, em seu fundo, singular, to
singular quanto seu prprio referente"25
. Alm disso, devido a relao de contiguidade que
tem com o referente, o ndice fotogrfico tambm atesta a existncia do objeto que est
presente na imagem; a fotografia testemunha que ele esteve ali no momento da tomada
fotogrfica. Est a o "isso-foi", que Barthes definiu como o noema da fotografia:
Ao contrrio dessas imitaes, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve
l. H dupla posio conjunta: de realidade e de passado. E j que essa coero s
existe para ela, devemos t-la, por reduo, como a prpria essncia, o noema da
fotografia. (...) O noema da Fotografia ser ento 'Isso-foi'.26
O trao indicirio/fotogrfico tambm aponta para algo, designa, chama a ateno do
espectador. Para finalizar a explicao terica do discurso da fotografia como um trao do real
importante destacar que o ndice apenas atesta a existncia do objeto retratado, ele no
capaz de afirmar um sentido: "O ndice para com o 'isso-foi'. No o preenche com um 'isso
quer dizer'. A fora referencial no se confunde com qualquer poder de verdade."27
.
Alm disso, preciso estar atento aos limites do discurso da referncia, para no
absolutizar a relao da fotografia com o real. O signo fotogrfico no coincide com o seu
referente, h uma distncia temporal e espacial entre eles. Apesar da luz que vm do referente
incidir no suporte sensvel da mquina fotogrfica, h uma distncia fsica entre o referente e
o local onde ser formada sua imagem: "toda foto implica portanto que haja, bem distintos um
do outro, o aqui do signo e o ali do referente."28
. H tambm uma distncia temporal entre o
referente e a imagem fotogrfica, que sempre se refere a algo exterior e anterior ao momento
de fruio da imagem. Ao vermos a imagem gerada, o instante ao qual ela faz referncia j
passou, no existe mais.
Como se v, o princpio de uma separao simultnea no tempo e no espao, de uma
falha irredutvel entre signo e referente realmente fundamental. Vem sublinhar
radicalmente que a fotografia, como ndice, por mais vinculada fisicamente que seja,
por mais prxima que esteja do objeto que ela representa e do qual ela emana, ainda
assim, permanece absolutamente separada dele.29
25
DUBOIS, Philippe, 1984, p.72 26
BARTHES, Roland, A Cmara Clara, 1979, p.115 27
DUBOIS, Philippe, 1984, p.85. 28
DUBOIS, Philippe, 1984, p. 88. 29
DUBOIS, Philippe, 1984, p.93.
20
Ao teorizar os sentidos presentes na imagem fotogrfica, Barthes (1990)30
distingue
trs nveis de sentido. O primeiro, chamado informativo, o nvel da comunicao, aquele
que o espectador consegue decodificar por meio do contexto da imagem. O segundo nvel est
no campo do simblico, da significao, possvel identificar a inteno do fotgrafo, que se
utiliza de signos que remetem a uma conveno, a um lxico geral, uma imagem com um
sentido mais evidente, que se apresenta a ns. o que Barthes chamou de sentido bvio. O
terceiro nvel de sentido aquele que o autor chama de teimoso, que impe uma leitura que
desperta mais questes; ele no est dado, um significante que no nos deixa claro o seu
sentido "por um lado, esse significante no se pode confundir com o simples estar l da cena,
extrapola a cpia do motivo referencial, [...], e, por outro lado, tampouco se confunde com o
sentido dramtico..."31
. Esse terceiro sentido o que Barthes chamou de obtuso, aquele que
est velado, no tem um sentido claro, o nvel da significncia (remete ao campo do
significante, e no da significao): "O sentido obtuso um significante sem significado; da a
dificuldade para nome-lo: minha leitura fica suspensa entre a imagem e sua descrio, entre a
definio e a aproximao."32
.
3) O golpe do corte no espao-tempo fotogrfico
Em O Ato Fotogrfico, Dubois tambm apresenta outro princpio formador da imagem
fotogrfica, o corte. Alm da impresso luminosa, o recorte do espao e do tempo realizado
pelo fotgrafo no ato da tomada da imagem o que constitui o ato fotogrfico, um s golpe
que recorta ao mesmo tempo a dimenso espacial (contnuo da extenso) e temporal (fio da
durao). A foto ento uma fatia nica e singular do espao tempo. Ao mesmo tempo que
corta, isola, separa uma poro do espao, ela tambm recorta um instante no tempo,
interrompe a sua durao e o fixa na imagem fotogrfica: "Marca tomada de emprstimo,
subtrada de uma continuidade dupla. Pequeno bloco de estando l, pequena comoo de aqui-
agora, furtada de um duplo infinito."33
.
Dubois compara a realizao de uma fotografia com uma jogada (golpe). Segundo ele
qualquer ato de tomada ou de olhar para a imagem uma tentativa de jogada, pois o fotgrafo
tem um objetivo, baseado neste ele parte para a ao, para o ato, em seguida ele vai avaliar o
30
BARTHES, Roland, O bvio e o obtuso, Ensaios Crticos III, 1990, Ed. Nova Fronteira, Trad. La Novaes,
p.54. 31
BARTHES, Roland, 1990, p.46. 32
BARTHES, Roland, 1990, p.54. 33
DUBOIS, Philippe, 1984, p.161.
21
resultado, tal qual em um jogo: "Nesse sentido, a fotografia uma partida sempre em
andamento, onde cada um dos parceiros (o fotgrafo, o observador, o referente) vem arriscar-
se tentando fazer a jogada certa."34
. Segundo o autor o golpe de corte acontece em duas
dimenses: temporal e espacial, que sero explicadas a seguir.
3.1 O corte temporal
O obturador corta, guilhotina a durao, e com isso instala um de fora-de-tempo.
Dubois afirma que o instante fotogrfico eminentemente paradoxal, pois ao mesmo tempo
que fixa um tempo que se dava na continuidade, ao mesmo tempo que imobiliza, "no exclui
nem uma certa relao com a durao, nem a existncia de uma grande mobilidade interior."35
O golpe temporal acontece de uma s vez, o tempo de exposio escolhido pelo
fotgrafo, que ajusta o obturador, permite a entrada da luz que atinge o filme (ou sensor
digital) por inteiro a uma s vez, "so atingidos simultaneamente e sobretudo ao mesmo
tempo, so cortados de sua fonte luminosa."36
. Alm disso, ao mesmo tempo em que a
fotografia recorta este instante no tempo, que reduz o contnuo, ela tambm eterniza; a foto
tona-se um instante perptuo: "uma frao de segundo, decerto, mas 'eternizada', captada de
uma vez por todas, destinada (tambm) a durar, mas no prprio estado em que ela foi captada
e cortada."37
. O tempo da foto no , portanto, o tempo do Tempo, no se trata do tempo
cronolgico, contnuo. O fragmento de tempo isolado pelo gesto fotogrfico passa de uma s
vez para o "outro mundo", entra em uma nova temporalidade, simblica, da foto:
"temporalidade que tambm dura, to infinita (em princpio) quanto a primeira, mas infinita
na imobilidade total, congelada na interminvel durao das esttuas."38
. O ato fotogrfico
implica, portanto, no s um corte na continuidade do real, mas tambm uma passagem para o
outro lado da fatia, de um tempo evolutivo a um tempo paralisado, do instante perpetuao e
do movimento imobilidade.
O corte temporal que o ato fotogrfico implica no , portanto, somente reduo de
uma temporalidade decorrida num simples ponto (o instantneo), tambm
passagem (at superao) desse ponto rumo a uma nova inscrio na durao: tempo
de parada, decerto, mas tambm, e por a mesmo, tempo de perpetuao (no outro
mundo) do que s aconteceu uma vez.39
34
DUBOIS, Philippe, 1984, p.162. 35
DUBOIS, Philippe, 1984, p.166. 36
DUBOIS, Philippe, 1984, p.167. 37
DUBOIS, Philippe, 1984, p.168. 38
DUBOIS, Philippe, 1984, p.168. 39
DUBOIS, Philippe, 1984, p.174.
22
No instante captado e fixado pelo dispositivo fotogrfico tambm se instala uma greta,
uma fenda, devido distncia espacial e temporal que o dispositivo fotogrfico mantm com
o seu referente. Essa no correspondncia do signo com o referente, a vacilao que tal
separao implica coloca o sujeito em movimento, "suscita um movimento interno, uma
corrida que no cessa de fazer o 'sujeito' fotogrfico correr."40
. O vazio imvel do corte,
paradoxalmente, atravessado de intensos vaivens no interior do ato fotogrfico. O abismo
provocado pelo corte e pela distncia abala a certeza representativa da imagem, o que gera o
movimento do sujeito imagem e da imagem ao referente.
Confrontado com dois universos que no aderem um ao outro, o sujeito, a princpio
surpreso, intrigado e depois inquieto, angustiado, finalmente transformado, cada vez
mais aprisionado numa espiral vertiginosa, comea a ir e vir incessantemente a
princpio na imagem, depois entre as imagens, depois da imagem ao objeto, do
objeto imagem no dispositivo, como se corresse atrs de uma adequao
impossvel, como se tratasse de recuperar um atraso por princpio irrecupervel.41
3.2 O corte espacial
Ao contrrio do espao da pintura, que construdo sucessivamente pelo pintor, que
encher o quadro, preencher a superfcie determinada com vrios signos, o espao
fotogrfico um recorte que o fotgrafo faz de um espao j existente, de um espao
referencial presente no mundo, " um espao que deve ser capturado (ou deixado de lado), um
levantamento no mundo, uma subtrao que opera em bloco."42
. O fotgrafo no preenche um
quadro aos poucos; ao contrrio, recorta, com um golpe arranca tudo de uma vez de um
espao contnuo. Sua ao consiste em subtrair um espao j "pleno".
Em outras palavras, bem aqum de qualquer inteno ou de qualquer efeito de
composio, em primeiro lugar o fotgrafo recorta, separa, inicia o visvel. Cada
objetivo, cada tomada inelutavelmente uma machadada (golpe de machado) que
retm um plano real e exclui, rejeita, renega a ambincia (o fora-de-quadro, o fora de
campo, de que voltaremos a falar daqui a pouco). Sem sombra de dvida, toda
violncia (e a predao) do ato fotogrfico procede essencialmente desse gesto do
cut.43
Dubois desenvolve trs consequncias tericas derivadas do corte como gesto que
funda um espao propriamente fotogrfico: a relao do recorte com o fora-de-quadro, com o
quadro propriamente dito (a composio), e por ltimo, sua relao com o espao topolgico
do sujeito que v. Ao fazer isso, o autor utiliza quatro grandes categorias que sero explicadas
40
DUBOIS, Philippe, 1984, p.174. 41
DUBOIS, Philippe, 1984, p.175. 42
DUBOIS, Philippe, 1984, p.178. 43
DUBOIS, Philippe, 1984, p.178.
23
logo adiante: espao referencial, espao representado, espao de representao e espao
topolgico.
3.2.1 Relao do recorte com o fora-de-quadro
Em funo da constituio do ato fotogrfico, que se da por meio de um golpe, um
recorte do espao referencial, uma extrao, o espao fotogrfico sempre parcial em relao
ao seu referente, situado em um espao infinito, contnuo. Isso implica, portanto, uma sobra,
um resto, os elementos do espao referencial que ficam de fora: o fora-de-campo ou espao
"off". a relao desse espao excludo com o espao retido, o campo da foto que ser
abordada nessa seo. Segundo Cavell: "Quando uma fotografia recortada, o resto do
mundo afastado. A presena virtual do resto do mundo e sua evico explcita so to
essenciais para a experincia de uma fotografia quanto o que ela apresenta explicitamente."44
.
O espao off, apesar de ausente do campo da representao, est sempre em relao de
contiguidade com o espao inscrito no quadro; uma presena virtual. Ao vermos o que o
fotgrafo recortou sabemos que algo ficou de fora, notamos que havia mais espao no
momento da tomada do que o que nos foi apresentado; esse ausente est ento presente, mas
fora-de-campo: "Qualquer fotografia, pela viso parcial que nos apresenta, duplica-se assim
necessariamente de uma presena invisvel, de uma exterioridade de princpio, significada
pelo prprio gesto de recorte que o ato fotogrfico implica."45
.
O autor chama ateno para o fato de que no se deve confundir o fora-de-campo
cinematogrfico com o fora-de-campo fotogrfico, pois ambos possuem naturezas distintas e
funes diferentes. O fora-de-campo no cinema opera na diegese do filme, se inscreve no
movimento e opera por continuidade, articulado narrativa. J o fora-de-campo da foto
"sempre se d na parada, num corte temporal estrito, qualquer continuidade apartada, numa
convulso instantnea."46
.
Na fotografia o fora-de-campo literal, o que se encontra excludo, fora do quadro
delimitado pelo espao de representao. J o fora-de-campo no cinema metafrico, tem
valor de dinamizao (narrativo, psicolgico, etc.). Porm, apesar de serem fundamentalmente
diferentes, "alguns signos que asseguram a ancoragem do fora-de-campo no espao
representado podem ser da mesma ordem nos dois meios, embora no funcionem exatamente
44
CAVELL, 1971, apud DUBOIS, Philippe, 1984, p.179. 45
DUBOIS, Philippe, 1984, p.180. 46
DUBOIS, Philippe, 1984, p.180.
24
da mesma maneira."47
. Com isso, o autor define quatro tipos usuais de signos que marcam no
campo a presena de uma exterioridade virtual, indcios de fora-de-campo. So os indicadores
de movimento/deslocamento, jogos de olhares dos fotografados, interveno direta do
fotgrafo no quadro e elementos ligados ao cenrio que promovem um recorte no recorte.
3.2.1.1 Signos de movimento e deslocamento
Dubois oferece como exemplo dois casos extremos: o primeiro se refere s primeiras
fotos realizadas quando da inveno da fotografia, quando era preciso um longo tempo de
exposio para que a imagem pudesse ser fixada na superfcie sensvel. Isso, por vezes,
deixava alguns rastros de movimento, halos, uma aura singular na imagem. O segundo diz do
instantneo fotogrfico: os avanos tecnolgicos e aperfeioamentos da pelcula permitiram o
congelamento da cena, a fotografia pde deter o movimento de uma s vez. Nesse caso, o
movimento tambm apresentado a ns de um modo diferente da maneira como o
experimentamos e como o vemos na sua continuidade. Em ambos os casos podemos dizer que
os signos de movimento, deslocamento presentes no quadro remetem a um fora-de-campo,
nesse caso coloca fora-de-campo o prprio tempo, sua durao.
3.2.1.2 Jogos de olhar dos retratados
Nas fotografias, frequentemente, os retratados olham para a cmera, no s em retratos
individuais, mas tambm em fotos vernaculares e documentais. O sujeito retratado devolve o
seu olhar para aquele que opera a cmera e tambm para o sujeito espectador que v a
imagem. Esse jogo de olhar entre o fotgrafo e o fotografado indica um fora-de-campo na
profundidade da imagem, que avana pela frente, "pelo que est de fato na origem do corte"48
.
Um fora de campo que indica a presena do operador, o fotgrafo, parceiro invisvel do
fotografado, fora-de-campo que designa o lugar do fotgrafo, "que o prprio lugar do olhar
constitutivo da cena e do prprio campo."49
. , portanto, um fora-de-campo aberto, que marca
a presena do sujeito da enunciao.
47
DUBOIS, Philippe, 1984, p.181. 48
DUBOIS, Philippe, 1984, p.183. 49
DUBOIS, Philippe, 1984, p.183.
25
3.2.1.3 Presena direta do fotgrafo no campo
Alguns fotgrafos, comenta Dubois, como Franois Hers, consideravam que apenas o
olhar do sujeito fotografado no era suficiente para mostrar a presena invisvel do olhar do
fotgrafo. Com isso, interviam diretamente no campo. No caso de Hers, ele colocava o seu
brao no quadro, interagindo com a modelo fotografada, evidenciando a presena do
fotgrafo no fora-de-campo e a relao de poder que se d no ato fotogrfico.
3.2.1.4 Signos do cenrio que fazem um recorte no recorte
Nessa categoria de signos embreantes de fora-de-campo encontram-se elementos de
cenrio como portas, janelas, fundos, espelhos, que produzem um novo recorte na foto:
Em suma tudo o que pode indicar ou introduzir dentro do espao homogneo e
fechado do campo fragmentos de outros espaos, em princpio contguos e mais ou
menos exteriores ao espao principal. Tais fora-de-campo, produzidos por
dispositivos de (re)enquadramentos internos, podem assinalar ou relacionar com o
interior do quadro espaos situados indiferentemente na lateralidade ou no avano
frontal, mas tambm espaos, ainda situados no eixo da profundidade, porm atrs e
no mais frente "da imagem", que surgem, por assim dizer, s suas costas, perante
elas.50
um conjunto extenso de espaos off que fazem esse recorte no recorte, que
delimitam um quadro no quadro, e que revelam espaos suplementares mais ou menos
mostrados no campo fotogrfico. O autor apresenta alguns exemplos que esto organizados
em quatro sries: fora-de-campo por efeito de (re)centramento, fora-de-campo por fuga, fora-
de-campo por obliterao e fora-de-campo por incrustao. Porm, esses novos cortes no
podem fazer esquecer o seu prprio campo geral, que tem o recorte como seu princpio
constitutivo, o corte operado no momento de tomada da imagem, "pois ele a condio de
possibilidade da prpria representao. Fingir encen-la no quadro apenas, evidentemente,
recuar em um nvel no verdadeiro recorte."51
.
3.2.1.4.1 Fora-de-campo por efeito de (re)centramento
Trata-se da insero de um quadro no espao da representao, quadro vazio, sem
suporte interno, que no apresenta contedo novo, exerce apenas uma funo enquadrante,
50
DUBOIS, Philippe, 1984, p.187. 51
DUBOIS, Philippe, 1984, p.188.
26
localiza uma parte do espao representado, focalizando-a, dando a esse novo recorte um maior
destaque e esfumando o quadro do recorte principal.
3.2.1.4.2 Fora-de-campo por fuga
constitudo pelo jogo de recortes naturais no espao referencial, portas e janelas
entreabertas, fundos duplos, frestas na imagem que fazem parte do espao representado e que
sugerem um outro espao, um fora-de-campo que no mostrado na imagem, apenas a sua
extenso virtual, "diversas aberturas que do para um novo campo, inesperado ou no, situado
'atrs' do campo fechado da representao [...] O campo (a caixa cnica) e o fora-de-campo
(que as aberturas deixam entrever) constituem um espao contnuo e homogneo no plano
referencial"52
, anota Dubois. No so realizadas manipulaes, o fotgrafo deve apenas
escolher um ponto de vista, um ngulo de viso capaz de mostrar todos esses encaixes e
buracos presentes no espao referencial. S existe nessas imagens um nico cut que constitui
de uma s vez o espao fotogrfico, campo e fora-de-campo. O fora-de-campo, sua
exterioridade virtual, se coloca nesse caso dentro do prprio quadro, em sua fuga, em seus
prolongamentos, "na contiguidade espao-temporal do representado fotogrfico, na
profundidade diegtica do enunciado."53
.
3.2.1.4.3 Fora-de-campo por obliterao
Esse fora de campo remete ao prprio espao da enunciao: trata-se de intervenes
realizadas no campo da imagem e que neutralizam, mascaram, apagam, eliminam
parcialmente certas pores do campo. So modificaes realizadas no espao da
representao que fazem surgir superfcies cheias, opacas, mas sem contedo representativo.
Essas subtraes, esses apagamentos, essas ausncias remetem a "tudo o que constitui a foto
sua condio material de objeto, bem como sua instncia de enunciao. O fora-de-campo
designado por essas manipulaes relativas ao prprio clich s pode ser o sujeito da
representao."54
.
52
DUBOIS, Philippe, 1984, p.192. 53
DUBOIS, Philippe, 1984, p.194. 54
DUBOIS, Philippe, 1984, p.196.
27
3.2.1.4.4 Fora-de-campo por incrustao
Trata-se das fotos com espelhos ou superfcies refletoras que do a ver no campo
imagens de elementos que podem estar fora do quadro fotogrfico, ou ento mostram objetos
e sujeitos que j fazem parte do quadro, mas sob novos ngulos. So inseridos, pelo jogo do
reflexo, espaos virtuais contguos ao primeiro quadro, o campo enquadrado pela cmera. Em
ambos os casos, trata-se de uma multiplicao de olhares, vises diferentes sobre um mesmo
objeto/sujeito, o que marca a heterogeneidade do espao fotogrfico.
3.2.2 Relao do recorte com o enquadramento a composio
Para finalizar a discusso sobre o espao fotogrfico, Dubois faz uma reflexo sobre a
srie de fotos de nuvens, denominada Equivalncias, realizadas por Stieglitz entre 1923 e
1932. At o momento, o autor s havia abordado o fora-de-campo por meio dos seus
elementos que esto indicados no campo, ao falar das Equivalncias vai destacar o fora-de-
campo que no est assinalado no campo, que por definio exterior ao quadro. Nas fotos
das nuvens isso pode ser percebido com mais clareza, pois as fotos apresentam apenas
nuvens, sem outros elementos referenciais como linha do horizonte, rvores que poderiam
ajudar o espectador a se situar no espao, a fazer uma correspondncia entre o espao
fotogrfico e o espao topolgico.
Nessa srie de fotos, Dubois afirma que a composio como um efeito do recorte fica
ainda mais evidente: " porque o cu essencialmente no composto que o papel de
organizao do recorte particularmente realado pelas Equivalncias."55
. Todo efeito de
composio no espao representado uma consequncia do prprio ato formador da imagem
fotogrfica, o recorte espacial.
Qualquer quadro, institui necessariamente um sistema de posicionamento dos
elementos presentes em seu espao com relao aos limites que o circunscrevem.
Em outras palavras, qualquer recorte fotogrfico situa uma articulao entre um
espao representado (o interior da imagem, o espao de seu contedo, que o plano
de espao referencial transferido para a foto) e um espao de representao (a
imagem como suporte de inscrio, o espao que construdo arbitrariamente pelos
bordos do quadro). essa articulao entre espao representado e espao de
representao que define o espao fotogrfico propriamente dito.56
55
DUBOIS, Philippe, 1984, p.209. 56
DUBOIS, Philippe, 1984, p.209.
28
O espao de representao sempre levado em considerao na escolha de elementos
que comporo o espao representado. O sistema de eixos ortogonais de enquadramento so
utilizados pelo fotgrafo para determinar as posies direita, esquerda, alto, baixo e centro,
so um parmetro para as suas escolhas de como colocar o sujeito no quadro, quais elementos
mostrar, sob qual ngulo vai mostrar o assunto retratado, ou seja, a composio, cujos valores
plsticos so codificados culturalmente. As diferentes escolhas de composio de que o
fotgrafo dispe provocam efeitos e sentidos diferentes que sero percebidos e interpretados
pelo espectador ao ver a foto. Uma das regras da composio fazer coincidir as linhas
ortogonais do espao representado com as do espao da representao, isso que faz com que
a linha do horizonte esteja em uma posio horizontal na foto.
O que se deve captar de fato a esse respeito que o espao de representao
fotogrfica (o quadro da imagem) se define, em quase todos os casos (existem
algumas excees, raras e marginalizadas), por uma estruturao ortogonal estrita
(retangular ou quadrada dependendo do caso e de formato varivel, mas sempre feita
de um circuito de horizontais e verticais). Todos sabem que essa 'quadrificao' do
espao de inscrio (quadro e quadrado procedem etimologicamente do mesmo
termo: quadrum) nada tem de um dado natural, mas que , ao contrrio, totalmente
arbitrria, predeterminada, construda e modelada por inteiro a partir de um esquema
espacial to velho quanto o mundo.57
A imagem formada pela lente da cmera no retangular ou quadrada, circular, mas
dentro do prprio dispositivo essa imagem reenquadrada, sofre um corte para que tenha o
mesmo formato visualizado pelo fotgrafo no visor. Esse novo corte realizado por um
aparato mecnico denominado janela. " ela que o verdadeiro embreante da relao entre
espao representado e espao de representao. Ela um operador central que define, por sua
circunscrio quadrangular, uma estruturao espacial absolutamente fundamental."58
.
3.2.3 Relao do recorte com o espao topolgico
Dubois utiliza o termo "topologia" para designar aquilo que define espacialmente a
nossa presena no mundo. O espao topolgico o espao referencial do sujeito que olha a
foto e a relao que mantm com o espao que nela recortado e construdo. a conscincia
que temos da presena do nosso corpo no mundo, seres eretos, posicionados na vertical; a
maneira como entendemos o mundo visualmente e nos relacionamos com o espao
fotogrfico. "Esse tipo de definio espacial de nossa existncia terrestre entra em jogo a cada
vez que olhamos uma imagem, pois ela coloca em correspondncia a ortogonalidade do 57
DUBOIS, Philippe, 1984, p.211. 58
DUBOIS, Philippe, 1984, p.211.
29
espao fotogrfico e a ortogonalidade de nossa inscrio topolgica."59
. Muitas vezes, ao
buscar uma harmonia interna na composio fotogrfica, os fotgrafos se valem de uma
homologia entre as quatro categorias de espao: referencial, representado, de representao e
topolgico, uma congruncia na organizao interna desses espaos.
4) O fotgrafo, a cmera e o fotografado
Como foi apontado anteriormente, o contato entre o fotgrafo documental e
fotografado sempre pressupe uma relao de poder. De um lado, o sujeito que opera a
cmera, recorta a cena, escolhe como retratar aquilo que se apresenta a ele; de outro o sujeito
que ser retratado, que vai se posicionar, mas que no detm o controle da representao que
ser feita sobre ele. De acordo com Sontag: "Fotografar apropriar-se da coisa fotografada.
Significa por a si mesmo em determinada relao com o mundo, semelhante ao conhecimento
e, portanto, ao poder."60
. A foto, pelo carter indicial que a constitui, apresenta traos,
vestgios dessa interao entre fotgrafo e fotografado na tomada da cena, e que indicam mais
ou menos as negociaes que se deram entre os dois sujeitos, e as estratgias adotadas pelo
fotgrafo para atribuir sentidos fotografia e que sero interpretados pelo espectador. Porm,
esses sentidos no so totalizantes e fechados em si mesmos; o espectador, no momento de
fruio da imagem, preenche as lacunas por meio de seus conhecimentos laterais, identifica as
intenes do fotgrafo, atribui sentidos fotografia de acordo com a sua experincia,
recepo e relaes que estabelece com as imagens. De acordo com Bartolomeu:
"Observando o tipo de jogo esttico e semntico proposto pelas fotografias e pela forma como
esto justapostas a outras imagens e elementos, situadas num determinado contexto
comunicacional, encontraremos algo da experincia do espectador que pode emergir da."61
. A
recepo no determinada apenas pelo que expresso pelo fotgrafo no ato fotogrfico, mas
tambm pelo contexto em que se d a contemplao das imagens e pelas referncias culturais
e conhecimentos laterais que o espectador tem sobre o tema retratado nas fotografias. Sontag
aborda essa relao do contexto em que as fotos so vistas com o sentido que o espectador vai
dar a elas:
Mesmo aquelas imagens supremas cuja seriedade, cuja fora emocional parece
estabelecida de uma vez por todas, as fotos de campos de concentrao tiradas em
1945, tm um peso diferente quando vistas num museu fotogrfico [...]; numa
59
DUBOIS, Philippe, 1984, p.212. 60
SONTAG, Susan, Sobre a fotografia, 2004, p.14. 61
BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.109-110.
30
galeria de arte contempornea; num catlogo de museu; na tev; nas pginas de The
New York Times; nas pginas da Rolling Stone; num livro.62
Alm de retratar o sujeito fotografado, o fotgrafo documental, ao se posicionar com a
cmera, tambm promove uma representao do espao habitado por esse outro e as relaes
que nele ocorrem.
A cmera, dispositivo que faz a mediao entre fotgrafo e fotografado, tambm
ocupa um papel significativo na constituio da cena. Pelo carter indicial da imagem que o
aparelho fotogrfico capaz de produzir, por atestar que o objeto representado realmente
esteve ali, a imagem fotogrfica documental exerce uma funo testemunhal. Alm dessa
funo, a cmera tambm influencia as relaes que se estabelecem entre observadores e
observados. De acordo com Bartolomeu, a cmera cria uma situao, a sesso de fotos, e no
desenrolar desse acontecimento, fotgrafo e fotografado vo interagir, circunstncia criada
pela utilizao da cmera. Com isso, a fotografia capaz de fazer emergir uma situao que
no seria possvel sem a sua presena. A cmera no vai apenas registrar algo do real que j
estava dado, vai capturar a prpria interao e atos gerados pelo ato fotogrfico.
A subjetividade dos agentes constituda na relao com o outro e, tambm, em
relao atividade organizante em andamento, neste caso, a realizao da sesso de
fotos. Os corpos envolvidos nessa interao carregam uma histria e uma formao
social prprias, mas as performances do fotgrafo e do fotografado sero
mutuamente modeladas pela presena e pela relao com o outro e com a cmera.63
A autora compara o fotgrafo com o mostrador, conceito utilizado no cinema de fico
por Andr Gauldreaut. A mostrao est ligada as atividades de filmagem, no caso da
fotografia documental estaria relacionada com o momento da tomada da foto. A mostrao se
divide em dois campos de interveno possvel: o proflmico, que concerne ao que se coloca
ou colocado diante da cmera e o filmogrfico, que diz respeito aos efeitos gerados pelo
aparelho cinematogrfico utilizado para enquadrar e atribuir sentidos ao campo proflmico. O
fotgrafo documental age como mostrador na medida em que compe a cena, recorta,
seleciona a abertura do diafragma, a velocidade do obturador, ajusta o foco, tudo isso com a
inteno de criar um percurso de leitura para o espectador. O fotgrafo documental tem,
portanto, mais controle sobre o campo filmogrfico. Quanto ao proflmico o controle apenas
parcial: "Embora nada o impea de dirigir seus personagens, a maneira como o fotgrafo
constri uma imagem, bem como a sua performance, ser fatalmente afetada pelo modo como
62
SONTAG, Susan, Diante da Dor dos Outros, 2003, p.99-100. 63
BARTOLOMEU, Anna Karina Castanheira, 2008, p.112.
31
as pessoas fotografadas reagem cmera e sua presena."64
. Sendo assim, o fotgrafo no
constri a mise-en scne sozinho, pois esta tambm determinada pela auto-mise en scne do
sujeito fotografado. Segundo Comolli, esta influenciada por dois fatores, pelo habitus do
fotografado, seu conjunto de prticas e atividades ligadas ao campo (famlia, escola, trabalho,
etc) no qual est envolvido, agindo no inconsciente. O segundo tem a ver com a prpria
situao de filmagem, fazendo um paralelo com a fotografia documental, a prpria realizao
do ato fotogrfico, como afirma Bartolomeu: "Quando o sujeito fotografado sabe que est
exposto ao outro, 'um saber inconsciente, mas certeiro', torna-se legtimo pensar na presena
de um terceiro que constitui a cena e ao mesmo tempo est fora dela."65
. A auto-mise en scne
do fotografado tambm se dirige, portanto, a um terceiro, aquele a quem a foto se destina, ao
espectador.
Outra caracterstica da relao desigual entre fotgrafo documental e pessoas
retratadas se deve ao fato de que, alm do fotgrafo deter o dispositivo por meio do qual as
fotos sero realizadas, usualmente ele tambm ocupa uma posio social e econmica
hegemnica em relao ao outro que ele fotografa. Essas relaes de poder e alteridade
influenciaro a auto-mise en scne dos sujeitos fotografados.
Na atualidade, alguns fotgrafos documentais tem se preocupado em problematizar
essas relaes e usar estratgias de aproximao com o mundo do outro para reduzir esse
desequilbrio e criar mais mobilidades das posies dos sujeitos, como destaca Bartolomeu:
"Na busca anunciada de produzir outras representaes, adotam-se estratgias diferenciadas
visando redefinir papis e, assim, procurar um outro equilbrio de foras neste mapa de
superfcie movedia que cada projeto ir atualizar."66
.
5) Procedimentos Metodolgicos
Com base nas caracterizaes tericas apresentadas e nos conceitos que Stephen Shore
utilizou em A natureza das fotografias, abordados logo adiante, faremos a anlise das fotos do
livro Dandara, de Cyro Almeida. Primeiramente contaremos como se deu o contato do
fotgrafo com a ocupao, como foi feita essa aproximao. Em seguida abordaremos as
escolhas feitas por Cyro na edio do livro, a narrativa construda e o percurso de leitura que
ele sugere para o espectador. Depois analisaremos trs grandes grupos em que as fotos podem
64
BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.113. 65
BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.114. 66
BARTOLOMEU, Anna Karina, 2008, p.117.
32
ser distribudas: espaos interiores, espaos externos e retratos dos moradores. Na anlise
voltaremos nossa ateno para as escolhas do fotgrafo, como ele representa esse outro e o
espao que ele habita, as relaes que so construdas na ocupao, como ele recorta o espao
referencial, o que ele d a ver e que sentidos so suscitados com isso. Enfim, trata-se de
compreender como o fotgrafo mostra o mundo do outro, como constri uma nova
representao para a ocupao. As escolhas do fotgrafo e sua relao com os moradores
sero fundamentais na constituio de uma outra visibilidade para a comunidade.
Cyro Almeida conheceu algumas pessoas da Ocupao Dandara e sua histria em
maio de 2010, quando os moradores acamparam na Praa Sete na tentativa de dilogo com a
prefeitura de Belo Horizonte. Em conversa com o fotgrafo ele nos informou que esse contato
se deu por acaso. Foi nesse acampamento que ele tomou conhecimento da situao dos
moradores de Dandara e da questo reforma urbana. Nesse dia, Cyro realizou algumas fotos
em preto e branco dos ocupantes e retornou ao acampamento (que durou uma semana)
algumas vezes para conversar mais com as pessoas de Dandara e realizar mais fotos, mas
estas no entraram no livro. Cyro Almeida formado em psicologia pela UFMG e seu contato
com a fotografia ainda era bastante recente quando realizou essas primeiras fotos dos
moradores no acampamento. A partir desse contato, o fotgrafo passou a visitar a
comunidade. As fotos que deram origem ao livro foram realizadas entre 2010 e 2012, e a
maior parte foi realizada em 2011 quando Cyro viveu por dois meses na ocupao. Em 2011
foi publicada uma matria no Jornal O Tempo com um texto muito depreciativo para a
imagem dos ocupantes. Algumas semanas depois Cyro foi para a Ocupao, com o intuito de
ficar alguns meses hospedado na casa dos moradores para realizar um documentrio
fotogrfico. Ele diz que no tinha uma linha de trabalho muito bem definida, fotografava de
tudo na comunidade, principalmente onde havia a presena dos moradores, com um certo
repertrio imagtico que tinha na poca e que segundo Cyro, no era muito vasto. As suas
principais referncias eram as fotos de Sebastio Salgado, Paula Sampaio, Cludia Andujar,
Joo Ripper e Andr Cypriano (do qual ele se sente mais prximo do mtodo de trabalho).
Ao final de 2010, o fotgrafo viajou para Belm, onde conheceu a obra de Luiz Braga
em uma exposio. Cyro considera que este foi um divisor de guas na maneira como ele
fotografa. At o final de 2010 Cyro s havia fotografo em preto e branco, e sonhava em fazer
um trabalho parecido com o de Sebastio Salgado e Andr Cypriano. Nesse contato com a
obra de Braga ele trouxe para a sua prtica fotogrfica duas influncias: o uso da fotografia
em cores e uma nova maneira de retratar o sujeito fotografado. Ele afasta-se ento da
dimenso pica muito utilizada por Andr Cypriano e Sebastio Salgado e aproxima-se mais
33
do retrato das pessoas em seu cotidiano. Os sujeitos so apresentados de forma mais simples,
com posturas e gestos despojados. Tambm permitido ao sujeito fazer uma entrega de si
mesmo na foto.
Ao final da primeira semana do perodo no qual viveu na comunidade, Cyro Almeida
acreditava que no havia realizado nada de significativo, mas hoje, quatro anos depois, ele
percebe que no foi bem isso que ocorreu, j que 16 das 48 fotos publicadas no livro foram
realizadas nessa primeira semana de trabalho. Em 2012, ao realizar o processo de edio do
livro o fotgrafo percebe algumas lacunas: no havia muitas fotos das construes sem os
moradores, ento ele volta na comunidade para fazer mais imagens. Cyro diz que o livro
apresenta uma narrativa, mas no possui uma linha imagtica muito bem definida, ele no
trabalha com tipologias, definidas e fixas.
Em seu mtodo de trabalho Cyro pde se aproximar bastante dos moradores, viveu na
casa de alguns deles, passava o dia na comunidade. Com isso, pde conviver de perto com as
pessoas, conhecer o cotidiano delas e a situao de despejo iminente que enfrentavam (esse
foi inclusive o motivo que levou Cyro a realizar esse documentrio). O fotgrafo diz que
realiza a maioria de suas fotos com o auxlio de um trip, mesmo que as condies de
luminosidade sejam boas e que seja possvel fazer as fotos com a cmera nas mos. Ele
acredita que o trip cria um clima de maior aproximao com o fotografado, alm de
proporcionar um outro tempo para a realizao da foto, mais demorado, mais paciente. Cyro
Almeida fez as fotos com uma cmera reflex digital e utilizou duas lentes, uma zoom grande
angular 10-20mm, mas sempre a utilizava em 20 mm e uma 50 mm. Em suas fotos Cyro
trabalhou em cores, a grande maioria, e tambm em preto e branco. Segundo ele, isso j
pensado ao fotografar, e a escolha se d em funo de qual dessas estticas ele considera que
vai conseguir expressar melhor aquilo que buscou na imagem.
6) Anlise das fotografias
As fotos realizadas pelo fotgrafo surgem da urgncia de dar outra visibilidade a
Dandara (distinta daquela correntemente produzida pela mdia), de construir uma nova
representao para a ocupao e para os moradores, por meio de uma justa distncia,
respeitosa, em que o fotgrafo tenta equilibrar as relaes de poder por meio da aproximao
e do contato dirio com os retratados.
De acordo com Didi-Huberman os povos esto expostos a desaparecer, esto
ameaados em sua representao poltica, esttica; suas memrias, tradies e sua existncia
34
encontram-se em risco. Isso acontece porque ora so subexpostos, suas causas so ignoradas
pela grande mdia, no so representados em suas singularidades, diferenas, peculiaridades.
A visibilidade que lhes concedida surge na sombra de uma censura, que apaga a voz desses
povos. Em outros momentos eles so superexpostos, mas de maneira igualmente prejudicial,
de forma espetacularizante. Em nenhuma dessas formas de exposio os sujeitos so
representados em sua alteridade, no lhes concedida formas de negociar a sua representao,
e seus problemas so apresentados de maneira superficial e esquemtica. Didi-Huberman
tambm aborda a capacidade da arte em aceder dimenso de humanitas, tal como
apresentada por Hannah Arendt. A imagem, a fotografia, pode ser utilizada para tentar
resgatar e conferir a esses povos uma parcela de humanidade, representando-os em sua
multiplicidade: "Trata-se, ento, de fazer de maneira que aparea, apesar de tudo, uma forma
singular, uma 'parcela de humanidade', por mais humilde que seja, no meio das runas da
opresso"67
.
O documentrio fotogrfico realizado por Cyro Almeida ajuda a conquistar essa
"parcela de humanidade", a expor os sem nome, a dar uma nova visibilidade para Ocupao
Dandara. A sua obra insere-se no contexto dos fotgrafos documentaristas contemporneos,
pela aproximao com o outro e seu mundo. Graas ao contato mais prolongado com esse
outro cotidiano o fotgrafo almeja construir novas representaes possveis dos moradores e
do espao habitado por eles.
Ao observar as fotos de Dandara presentes no livro percebe-se que o fotgrafo buscou
retratar o cotidiano dos moradores, o espao em construo, os moradores em suas casas e as
relaes que so construdas no espao habitado. Por ter vivido com os moradores, o
fotgrafo estabelece algum tipo de lao afetivo e intimidade com aqueles que observa. Alm
disso, dispe de um tempo maior para a realizao das fotos. A sua experincia no local
fundamental para que uma outra visibilidade, diferente da apresentada na grande mdia, seja
alcanada. Nas fotos podemos ver o espao em construo, as marcas da ocupao, as casas
ainda por terminar, os postes improvisados, eletrodomsticos no quintal, tijolos, caixas d'gua,
roupas no varal, crianas brincando, moradores, as fachadas das casas. Todos esses traos,
esses ndices, dizem de um lugar ocupado, habitado por pessoas, pelos moradores da
ocupao. Dandara no apenas uma ocupao irregular, ela a casa de todas aquelas
pessoas retratadas em seu cotidiano. Alm disso, as fotos mostram que Dandara uma
ocupao que teve planejamento urbano, contou com a ajuda de arquitetos voluntrios para
67
Didi-Huberman, Georges. Coisa pblica, Coisa do povos,