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A IRMÃ MENOS FAMOSA DE CARMEN A MIRANDA DISCRETA Aurora foi a primeira a gravar “Cidade maravilhosa” , cantou com ídolos como Francisco Alves, também fez filmes em Hollywood e completaria 100 anos este mês TEXTO CLARISSA PAINS DESIGN OLIVER PEREIRA As irmãs em um show no Rio Grande do Sul, em 1936. Aurora é a da esquerda REPRODUÇÃO E m meados de 1934, Aurora Miranda estava preocupada. Uma dú- vida martelava em sua cabeça nada pretensiosa: ela deveria ou não gravar uma marchinha recém-composta por André Filho, que andava para cima e para baixo em busca de uma voz para seus versos? A canção, uma tal de “Cidade maravilhosa” , parecia boa aos ouvidos da moça de 19 anos, que, a maioridade recém-alcançada, passou a se apresentar em vários shows pelo Rio de Janeiro, sozinha ou ao lado da irmã famosa, Carmen. O problema era que a música entraria na disputa do concurso de marchinhas do carnaval de 1935, e, segundo a lógica altruísta de Aurora, o mais correto seria que a irmã, cantora profissional desde 1928 e já adorada pelo público, emprestasse voz à canção. Por insistência da própria “mana” , no entanto, Aurora cedeu e, hoje, quem ouvir a gravação original, feita em 4 de setembro de 1934, encontrará uma voz doce, de menina, costurando a letra à melodia que no início do século XXI viraria, por decreto da prefeitura, o hino oficial da cidade. Aurora era a mais nova das moças da família Miranda — além de Car- men, havia Olinda, que morreu de tuberculose aos 23 anos, e Cecília, que não seguiu carreira artística, embora desde criança cantasse com as irmãs na pensão dos pais, na Lapa de início do século. Nascida em 1915, com a família de origem portuguesa estabelecida no Rio, Aurora completaria 100 anos de idade no próximo dia 20. Ela conheceu a era de ouro do rádio na década de 1930, período em que — pasmem! — foi a segunda cantora a gravar mais discos no país. Na frente dela, claro, apenas Carmen. É unanimidade, porém, que as duas nunca se enxergaram como rivais. Eram, ao contrário, unha e carne, conhecidas à época como “as irmãs Miranda” . — A Aurora nunca se sentiu ofuscada pelo sucesso de Carmen. Ela sabia que tinha talento. O problema é que não tinha... vocação. Tanto que, na primeira oportunidade, parou com tudo e foi ser só dona de casa e mãe. A grande diferença entre elas é que Carmen tinha o talento, a vocação e a garra. Aurora, só o talento. E talvez ela fosse até classicamente mais bonita, mas não tinha nem sombra da faísca e do carisma da irmã — avalia o escritor Ruy Castro, autor de “Carmen, uma biografia” , livro que, segundo ele, é o único dos muitos sobre a Pequena Notável que não usou Aurora apenas como fonte de informações, mas contou também sua trajetória. O apelido de Pequena Notável, aliás, bem poderia servir a qualquer uma das duas irmãs, que até nisso eram afinadas: Aurora era pouquíssimos centímetros mais alta que Carmen, conhecida por seus 1,53m. Ainda adolescente, ela já cantava com uma técnica nata, mas teve que esperar até os 18 anos para ser levada por Josué de Barros, o responsável por lançar Carmen, para cantar na Rádio Mayrink Veiga. O sucesso foi grande e, a partir daí, a menina passou a se apresentar periodicamente no “Programa Casé” , da Rádio Philips. Foi também Josué de Barros que a levou para gravar seu primeiro disco na Odeon, em dupla com Francisco Alves, então galã das ouvintes do rádio. O álbum conquistou o público com seu carro-chefe, a marchinha “Cai, cai, balão” , de Assis Valente. Logo no mês seguinte, a Odeon lançaria outro sucesso com a dupla, o fox “Você só... mente” , composto pelos irmãos Hélio e Noel Rosa. Mas a recordação que deleitou Aurora pelo resto da vida foi o número feito ao lado da irmã no filme “Alô, alô carnaval” , de 1936. Essa película é considerada a única que foi preservada da série dos musicais dos anos 1930. CURIOSIDADES VÍDEOS TOQUE NOS QUADROS TOQUE PARA VER O NÚMERO “MOLHA O PANO” 02:58 TOQUE PARA VER O NÚMERO “CANTORAS DO RÁDIO” 02:50 TOQUE PARA VER O TRAILER DE “VOCÊ JÁ FOI À BAHIA?” 02:18 TOQUE PARA VER O TESTE DE AURORA NA DISNEY 01:15 SUCESSOS DE AURORA MIRANDA — Em uma cena do filme, as duas interpretam “Cantoras do rádio”. Aurora ficou muito feliz com esse número, e, décadas mais tarde, me revelou que achava que esta havia sido a sua melhor apresentação — conta Ricardo Cravo Albin, dono de um instituto sobre música brasileira que leva seu nome. Albin não chegou a conhecer Carmen, que morreu em 1955, depois de morar por 16 anos nos Estados Unidos. Mas, ainda naquela década, ele começou a cultivar uma amizade com Aurora que duraria até a morte desta, em 2005. Continua vivo em sua memória o momento em que ele, então responsável pelo acervo do antigo Museu da Imagem e do Som (MIS), abriu, junto com Aurora e Cecília, os dez baús com pertences de Carmen, após sua morte. Os itens haviam sido enviados para o Brasil pelo viúvo da cantora, o americano David Sebastian. — Nós abrimos os baús juntos e me lembro do choro convulsivo da Aurora — diz Albin. — Ela idolatrava Carmen e não tinha o menor ciúme dos holofotes em cima da irmã. Pelo contrário, ela me disse uma vez: “os que sobrarem me bastam” . Não é bonito isso? Carmen, por sua vez, nunca se conformou que a irmã recusasse holofo- tes. Queria que, sempre que possível, as duas brilhassem juntas. — Eu conheci a Aurora em 1936, no Cassino da Urca. Ela cantava demais e era muito bonita. Só que não era namoradeira. Ela e a Carmen não davam confiança para ninguém — lembra, aos risos, Bob Lester, nome artístico de Edgar Almeida Negrão de Lima, que, hoje com 102 anos, foi o primeiro sapateador contratado do Cassino da Urca. Depois de uns poucos namoricos — daqueles em que o cortejo tem mais trocas de olhares do que qualquer outra coisa —, ela conheceu o comerciante carioca Gabriel Richaid. Ou melhor, ele fez com que se conhecessem. O rapaz tinha visto fotos da moça em revistas e havia se encantado com ela. Conseguiu, não se sabe como, o número de telefone da família Miranda, ligou e convidou Aurora para um encontro. A jovem, surpreendentemente, aceitou, e, em pouco tempo, os dois estavam apaixonados. — O meu pai contava que havia passado um trote na minha mãe. Não sei exatamente o que ele disse nessa primeira conversa por telefone, mas o fato é que a convenceu a encontrá-lo. Ele sempre foi muito apaixonado por ela, até a morte, em 1989 — conta a filha do casal, Maria Paula. Eles se casaram em 1940, curiosamente o ano em que a marchinha que ritmava “ô, ô, ô, ô, Aurora” era lançada. O casamento, segundo Maria Paula, foi às pressas, porque Carmen tinha se mudado um ano antes para os Estados Unidos e insistia para que a irmã passasse a viver lá também. Inicialmente, o contrato de Carmen previa que ela ficaria na terra do Tio Sam por um ano. Quando ela percebeu que a estadia iria se estender, porém, passou a praticamente exigir que a irmã deixasse o Brasil. — Minha mãe não queria abandonar o namorado aqui, então eles resolveram se casar rapidamente e, em seguida, se mudar para os Estados Unidos. Eles passaram a morar na casa da tia Carmen, em Beverly Hills. Pouco depois, a vovó também foi — diz Maria Paula. Em solo americano, Aurora atuou e cantou no filme “Você já foi à Bahia?” , lançado em 1944 pelos estúdios Disney. Esta foi a primeira obra do cinema a trazer pessoas contracenando com desenhos animados. Em uma das cenas, Aurora flerta com Zé Carioca e Pato Donald enquanto canta “Os quindins de Iaiá” , de Ary Barroso. Ela também participou de outros filmes e de programas de rádio ao lado de Orson Wellles e Rudy Valee, além de se apresentar em algumas casas noturnas, mas considerava que “aquela vida de Hollywood era para Carmen” , segundo disse ao amigo Ricardo Cravo Albin. A grande preocupação dela, com o passar do tempo, voltou-se para os filhos que ainda queria ter. Com dificuldade para engravidar, ela recorreu a tratamentos médicos em Los Angeles, até que, em 1947, teve seu primeiro bebê, que recebeu o nome do pai. Dois anos depois, nasceu Maria Paula. Enquanto isso, a irmã havia sofrido um aborto espontâneo e perdia as esperanças de ter herdeiros. — Aurora, na verdade, se realizou mais do que Carmen, porque foi mãe, coisa que Carmen queria desesperadamente ter sido e não foi — sentencia Ruy Castro. O aspecto decisivo para que a cantora retornasse de vez para o Brasil com o marido e os dois filhos, no início de 1952, foi a rotina de brigas entre ela e o cunhado, David Sebastian. Também empresário de Carmen, ele mantinha para a cantora uma exaustiva agenda de compromissos, o que era reprovado pela irmã. — A minha mãe achava que, se a tia Carmen tivesse um marido realmente apaixonado por ela, ele teria freado a vida agitada que ela levava. Ele a colocava para trabalhar sem parar, e por isso ela bebia muito, tomava calmantes e barbitúricos. Minha mãe via isso e brigava muito com ele. Ela veio embora com muito desgosto, sempre o detestou. Nos meus registros ele é como um fantasma — conta a filha de Aurora. — Minha mãe encheu a paciência do meu pai para eles virem para o Brasil. Ele não queria voltar porque estava estabelecido lá, mas fez a vontade dela. A devoção à irmã era tamanha que Aurora chegou a dizer ao amigo Al- bin, num desabafo, já viúva na década de 90, que, se pudesse, trocaria sua vida amorosa bem-sucedida com a de Carmen, apenas para vê-la feliz. De volta ao Brasil, Aurora passou por Urca, Copacabana, Ipanema e viveu seus últimos anos no Leblon. Entre uma ou outra visita de ilustres como Caetano Veloso, que vez ou outra passava em sua casa, ela passou a se dedicar aos cuidados com o legado da irmã. Participou de várias homenagens póstumas à Carmen e foi deixando, aos poucos, sua própria carreira cair no esquecimento. — A própria Aurora não se valorizava como artista. Quando voltou para o Brasil, alguns anos antes da morte de Carmen, tentou timidamen- te retomar sua carreira, mas ela mesma não levou adiante. E, depois que Carmen morreu, parou de falar de si mesma e passou a falar só sobre Carmen. Com isso, os repórteres passaram a perguntar só sobre Carmen. Donde a culpa não foi só da imprensa, foi dela também — considera Ruy Castro. — Quem se dispuser hoje a reabilitar Aurora Miranda estará prestando um serviço à cultura nacional. Nem em casa, a ex-cantora do rádio parecia se preocupar com o próprio legado. A filha confessa que só foi perceber que Aurora teve uma carreira independente da de Carmen quando ela já estava bem velhinha. — No dia a dia, ela só falava da tia Carmen, não dela. Era uma adoração sem tamanho. Sempre tive a impressão de que ela idealizava a irmã — afirma Maria Paula. Em 1990, ela voltou às telas do cinema com uma pequena participação no filme “Dias melhores virão” , de Cacá Diegues. Na história, ela interpretou uma idosa que é contratada para dublar uma mulher jovem cantando “Você só... mente” . O convite não veio à toa: além de Aurora ter gravado essa música, ela ainda mantinha, aos 75 anos, o mesmo timbre doce da juventude. — Ela tinha uma vaidade em especial: adorava quando eu elogiava o nariz dela, que era delicado e levemente arrebitado — revela Ricardo Cravo Albin, que, embora tenha tentado montar uma exposição sobre Aurora enquanto ela estava viva, nunca conseguiu porque a amiga sempre desconversava. Aurora morreu em casa, em dezembro de 2005, em decorrência de um ataque cardíaco. No próximo dia 20, data de seu centenário, o Instituto Cultural Cravo Albin enfim realizará em sua sede, na Urca, uma mostra de discos da cantora. Também será postada no site da instituição uma lista de músicas interpretadas por ela, para serem ouvidas gratuitamente. [email protected] CLIQUES AO LONGO DA VIDA Aurora gravou “Tico-tico no fubá” em esperanto num disco de 1970. O álbum, organizado por um movimento que tinha o objetivo de divulgar o idioma inventado em 1887, reuniu alguns artistas brasileiros, cada um interpretando uma canção.

A OUTRA PEQUENA NOTÁVEL

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A irmã menos famosa de Carmen.Aurora foi a primeira a gravar “Cidade maravilhosa”, cantou com ídolos como Francisco Alves, também fez filmes em Hollywood e completaria 100 anos este mês.

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Page 1: A OUTRA PEQUENA NOTÁVEL

A IRMÃ MENOS FAMOSA DE CARMEN

A MIRANDA DISCRETA

Aurora foi a primeira a gravar “Cidade maravilhosa”, cantou com ídolos como Francisco Alves, também fez filmes em

Hollywood e completaria 100 anos este mês

TEXTO CLARISSA PAINS DESIGN OLIVER PEREIRA

As irmãs em um show no Rio Grande do Sul, em 1936. Aurora é a

da esquerda REPRODUÇÃO

Em meados de 1934, Aurora Miranda estava preocupada. Uma dú-vida martelava em sua cabeça nada pretensiosa: ela deveria ou não gravar uma marchinha recém-composta por André Filho, que andava para cima e para baixo em busca de uma voz para seus versos? A canção, uma tal de “Cidade maravilhosa”, parecia boa aos ouvidos da moça de 19 anos, que, a maioridade recém-alcançada,

passou a se apresentar em vários shows pelo Rio de Janeiro, sozinha ou ao lado da irmã famosa, Carmen. O problema era que a música entraria na disputa do concurso de marchinhas do carnaval de 1935, e, segundo a lógica altruísta de Aurora, o mais correto seria que a irmã, cantora profissional desde 1928 e já adorada pelo público, emprestasse voz à canção. Por insistência da própria “mana”, no entanto, Aurora cedeu e, hoje, quem ouvir a gravação original, feita em 4 de setembro de 1934, encontrará uma voz doce, de menina, costurando a letra à melodia que no início do século XXI viraria, por decreto da prefeitura, o hino oficial da cidade.

Aurora era a mais nova das moças da família Miranda — além de Car-men, havia Olinda, que morreu de tuberculose aos 23 anos, e Cecília, que não seguiu carreira artística, embora desde criança cantasse com as irmãs na pensão dos pais, na Lapa de início do século. Nascida em 1915, com a família de origem portuguesa estabelecida no Rio, Aurora completaria 100 anos de idade no próximo dia 20. Ela conheceu a era de ouro do rádio na década de 1930, período em que — pasmem! — foi a segunda cantora a gravar mais discos no país. Na frente dela, claro, apenas Carmen. É unanimidade, porém, que as duas nunca se enxergaram como rivais. Eram, ao contrário, unha e carne, conhecidas à época como “as irmãs Miranda”.

— A Aurora nunca se sentiu ofuscada pelo sucesso de Carmen. Ela sabia que tinha talento. O problema é que não tinha... vocação. Tanto que, na primeira oportunidade, parou com tudo e foi ser só dona de casa e mãe. A grande diferença entre elas é que Carmen tinha o talento, a vocação e a garra. Aurora, só o talento. E talvez ela fosse até classicamente mais bonita, mas não tinha nem sombra da faísca e do carisma da irmã — avalia o escritor Ruy Castro, autor de “Carmen, uma biografia”, livro que, segundo ele, é o único dos muitos sobre a Pequena Notável que não usou Aurora apenas como fonte de informações, mas contou também sua trajetória.

O apelido de Pequena Notável, aliás, bem poderia servir a qualquer uma das duas irmãs, que até nisso eram afinadas: Aurora era pouquíssimos centímetros mais alta que Carmen, conhecida por seus 1,53m. Ainda adolescente, ela já cantava com uma técnica nata, mas teve que esperar até os 18 anos para ser levada por Josué de Barros, o responsável por lançar Carmen, para cantar na Rádio Mayrink Veiga. O sucesso foi grande e, a partir daí, a menina passou a se apresentar periodicamente no “Programa Casé”, da Rádio Philips. Foi também Josué de Barros que a levou para gravar seu primeiro disco na Odeon, em dupla com Francisco Alves, então galã das ouvintes do rádio. O álbum conquistou o público com seu carro-chefe, a marchinha “Cai, cai, balão”, de Assis Valente. Logo no mês seguinte, a Odeon lançaria outro sucesso com a dupla, o fox “Você só... mente”, composto pelos irmãos Hélio e Noel Rosa. Mas a recordação que deleitou Aurora pelo resto da vida foi o número feito ao lado da irmã no filme “Alô, alô carnaval”, de 1936. Essa película é considerada a única que foi preservada da série dos musicais dos anos 1930.

CURIOSIDADES

VÍDEOS

TOQUE NOS QUADROS

TOQUE PARA VERO NÚMERO “MOLHA O PANO”

02:58

TOQUE PARA VERO NÚMERO “CANTORAS DO RÁDIO”

02:50

TOQUE PARA VERO TRAILER DE “VOCÊ JÁ FOI À BAHIA?”

02:18

TOQUE PARA VERO TESTE DE AURORA NA DISNEY

01:15

SUCESSOS DE AURORA MIRANDA

— Em uma cena do filme, as duas interpretam “Cantoras do rádio”. Aurora ficou muito feliz com esse número, e, décadas mais tarde, me revelou que achava que esta havia sido a sua melhor apresentação — conta Ricardo Cravo Albin, dono de um instituto sobre música brasileira que leva seu nome.

Albin não chegou a conhecer Carmen, que morreu em 1955, depois de morar por 16 anos nos Estados Unidos. Mas, ainda naquela década, ele começou a cultivar uma amizade com Aurora que duraria até a morte desta, em 2005. Continua vivo em sua memória o momento em que ele, então responsável pelo acervo do antigo Museu da Imagem e do Som (MIS), abriu, junto com Aurora e Cecília, os dez baús com pertences de Carmen, após sua morte. Os itens haviam sido enviados para o Brasil pelo viúvo da cantora, o americano David Sebastian.

— Nós abrimos os baús juntos e me lembro do choro convulsivo da Aurora — diz Albin. — Ela idolatrava Carmen e não tinha o menor ciúme dos holofotes em cima da irmã. Pelo contrário, ela me disse uma vez: “os que sobrarem me bastam”. Não é bonito isso?

Carmen, por sua vez, nunca se conformou que a irmã recusasse holofo-tes. Queria que, sempre que possível, as duas brilhassem juntas.

— Eu conheci a Aurora em 1936, no Cassino da Urca. Ela cantava demais e era muito bonita. Só que não era namoradeira. Ela e a Carmen não davam confiança para ninguém — lembra, aos risos, Bob Lester, nome artístico de Edgar Almeida Negrão de Lima, que, hoje com 102 anos, foi o primeiro sapateador contratado do Cassino da Urca.

Depois de uns poucos namoricos — daqueles em que o cortejo tem mais trocas de olhares do que qualquer outra coisa —, ela conheceu o comerciante carioca Gabriel Richaid. Ou melhor, ele fez com que se conhecessem. O rapaz tinha visto fotos da moça em revistas e havia se encantado com ela. Conseguiu, não se sabe como, o número de telefone da família Miranda, ligou e convidou Aurora para um encontro. A jovem, surpreendentemente, aceitou, e, em pouco tempo, os dois estavam apaixonados.

— O meu pai contava que havia passado um trote na minha mãe. Não sei exatamente o que ele disse nessa primeira conversa por telefone, mas o fato é que a convenceu a encontrá-lo. Ele sempre foi muito apaixonado por ela, até a morte, em 1989 — conta a filha do casal, Maria Paula.

Eles se casaram em 1940, curiosamente o ano em que a marchinha que ritmava “ô, ô, ô, ô, Aurora” era lançada. O casamento, segundo Maria Paula, foi às pressas, porque Carmen tinha se mudado um ano antes para os Estados Unidos e insistia para que a irmã passasse a viver lá também. Inicialmente, o contrato de Carmen previa que ela ficaria na terra do Tio Sam por um ano. Quando ela percebeu que a estadia iria se estender, porém, passou a praticamente exigir que a irmã deixasse o Brasil.

— Minha mãe não queria abandonar o namorado aqui, então eles resolveram se casar rapidamente e, em seguida, se mudar para os Estados Unidos. Eles passaram a morar na casa da tia Carmen, em Beverly Hills. Pouco depois, a vovó também foi — diz Maria Paula.

Em solo americano, Aurora atuou e cantou no filme “Você já foi à Bahia?”, lançado em 1944 pelos estúdios Disney. Esta foi a primeira obra do cinema a trazer pessoas contracenando com desenhos animados. Em uma das cenas, Aurora flerta com Zé Carioca e Pato Donald enquanto canta “Os quindins de Iaiá”, de Ary Barroso.

Ela também participou de outros filmes e de programas de rádio ao lado de Orson Wellles e Rudy Valee, além de se apresentar em algumas casas noturnas, mas considerava que “aquela vida de Hollywood era para Carmen”, segundo disse ao amigo Ricardo Cravo Albin. A grande preocupação dela, com o passar do tempo, voltou-se para os filhos que ainda queria ter. Com dificuldade para engravidar, ela recorreu a tratamentos médicos em Los Angeles, até que, em 1947, teve seu primeiro bebê, que recebeu o nome do pai. Dois anos depois, nasceu Maria Paula. Enquanto isso, a irmã havia sofrido um aborto espontâneo e perdia as esperanças de ter herdeiros.

— Aurora, na verdade, se realizou mais do que Carmen, porque foi mãe, coisa que Carmen queria desesperadamente ter sido e não foi — sentencia Ruy Castro.

O aspecto decisivo para que a cantora retornasse de vez para o Brasil com o marido e os dois filhos, no início de 1952, foi a rotina de brigas entre ela e o cunhado, David Sebastian. Também empresário de Carmen, ele mantinha para a cantora uma exaustiva agenda de compromissos, o que era reprovado pela irmã.

— A minha mãe achava que, se a tia Carmen tivesse um marido realmente apaixonado por ela, ele teria freado a vida agitada que ela levava. Ele a colocava para trabalhar sem parar, e por isso ela bebia muito, tomava calmantes e barbitúricos. Minha mãe via isso e brigava muito com ele. Ela veio embora com muito desgosto, sempre o detestou. Nos meus registros ele é como um fantasma — conta a filha de Aurora. — Minha mãe encheu a paciência do meu pai para eles virem para o Brasil. Ele não queria voltar porque estava estabelecido lá, mas fez a vontade dela.

A devoção à irmã era tamanha que Aurora chegou a dizer ao amigo Al-bin, num desabafo, já viúva na década de 90, que, se pudesse, trocaria sua vida amorosa bem-sucedida com a de Carmen, apenas para vê-la feliz.

De volta ao Brasil, Aurora passou por Urca, Copacabana, Ipanema e viveu seus últimos anos no Leblon. Entre uma ou outra visita de ilustres como Caetano Veloso, que vez ou outra passava em sua casa, ela passou a se dedicar aos cuidados com o legado da irmã. Participou de várias homenagens póstumas à Carmen e foi deixando, aos poucos, sua própria carreira cair no esquecimento.

— A própria Aurora não se valorizava como artista. Quando voltou para o Brasil, alguns anos antes da morte de Carmen, tentou timidamen-te retomar sua carreira, mas ela mesma não levou adiante. E, depois que Carmen morreu, parou de falar de si mesma e passou a falar só sobre Carmen. Com isso, os repórteres passaram a perguntar só sobre Carmen. Donde a culpa não foi só da imprensa, foi dela também — considera Ruy Castro. — Quem se dispuser hoje a reabilitar Aurora Miranda estará prestando um serviço à cultura nacional.

Nem em casa, a ex-cantora do rádio parecia se preocupar com o próprio legado. A filha confessa que só foi perceber que Aurora teve uma carreira independente da de Carmen quando ela já estava bem velhinha.

— No dia a dia, ela só falava da tia Carmen, não dela. Era uma adoração sem tamanho. Sempre tive a impressão de que ela idealizava a irmã — afirma Maria Paula.

Em 1990, ela voltou às telas do cinema com uma pequena participação no filme “Dias melhores virão”, de Cacá Diegues. Na história, ela interpretou uma idosa que é contratada para dublar uma mulher jovem cantando “Você só... mente”. O convite não veio à toa: além de Aurora ter gravado essa música, ela ainda mantinha, aos 75 anos, o mesmo timbre doce da juventude.

— Ela tinha uma vaidade em especial: adorava quando eu elogiava o nariz dela, que era delicado e levemente arrebitado — revela Ricardo Cravo Albin, que, embora tenha tentado montar uma exposição sobre Aurora enquanto ela estava viva, nunca conseguiu porque a amiga sempre desconversava.

Aurora morreu em casa, em dezembro de 2005, em decorrência de um ataque cardíaco. No próximo dia 20, data de seu centenário, o Instituto Cultural Cravo Albin enfim realizará em sua sede, na Urca, uma mostra de discos da cantora. Também será postada no site da instituição uma lista de músicas interpretadas por ela, para serem ouvidas gratuitamente. •[email protected]

CLIQUES AO LONGO DA VIDA

Aurora gravou “Tico-tico no fubá” em esperanto num disco de 1970. O álbum, organizado por um movimento que tinha o objetivo de divulgar o idioma inventado em 1887, reuniu alguns artistas brasileiros, cada um interpretando uma canção.

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