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A P R E N D E R Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação

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A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Campus Universitário – Caixa Postal 95Estrada do Bem-Querer, Km 4 – 45083-900 – Vitória da Conquista – BA

Fone: 77 3424-8716 – E-mail: [email protected] ou [email protected]

REITORProf. Abel Rebouças São José

VICE-REITORProf. Rui Macêdo

PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOSProf. Paulo Sérgio Cavalcanti Costa

DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASProf. João Diógenes Ferreira dos Santos

DIRETOR – EDIÇÕES UESBJacinto Braz David Filho

COMITÊ EDITORIAL: Profª Ms. Andréa Braz da Costa, Prof. Ms. Braulino Pereira deSantana, Prof. Esp. Hugo Andrade Costa, Prof. Ms. Marcos Lopes de Souza, Profª Ms.Marilza Ferreira do Nascimento, Prof. Ms. Rosalve Lucas Marcelino, Prof. Ms. PauloSérgio Cavalcanti Costa, Profª Drª Tânia Cristina R. Silva Gusmão e Profª Drª ZenildaNogueira Sales.

100A661a

Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 5, n. 8, jan./jun. 2007. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2007.Início da publicação: dezembro de 2003. Periodicidade: semestral.ISSN 1678-78461. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoes-te da Bahia. II. Título.

Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb

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A revista Aprender é indexada nas seguintes bases de dados:

1. Index Psi Periódicos (BVS-Psi) - http://www.bvs-psi.org.br2. Clase, Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades, Universidad NacionalAutónoma de México - http://www.dgb.unam.mx/3. Sumários de Revistas Brasileiras-Funpec/RP - http://sumarios.org/4. Latindex - http://www.latindex.unam.mx/5. EDUBASE/Faculdade de Educação/UNICAMP - http://www.bibli.fae.unicamp.br/catal.html

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

ISSN 1678-7846

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 1-274 2007

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Copyright © 2007 by Edições Uesb

APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoDepartamento de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Estadual do Sudoeste da BahiaAno V - n. 8, jan./jun. 2007

EDITORES RESPONSÁVEIS

Prof. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado - UESB

Profª Ms. Zamara Araújo dos Santos - UESB

EDITORIA CIENTÍFICA

Profª Ms. Ana Lucia Castilhano de Araújo - UESB

Profª Ms. Caroline Vasconcellos Ribeiro - UESB

Prof. Ms. Gilson Teixeira - UESB

Prof. Ms. José Luís Caetano - UESB

Prof. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento - UFU

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Prof. Dr. Silvio Gallo - UNICAMP

Profª Drª Tania Beatriz Iwasko Marques - UFRGSProf. Dr. Walter Matias Lima - UFAL

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SUMÁRIO

ApresentaçãoZamara Araújo dos Santos ............................................................................. 7

ARTIGOS

Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricasPaulo Sérgio T. do Prado .............................................................................. 13

Estudo sobre a aplicação da prova piagetiana de escoamento do líquido para avaliação da noção temporalInaiara Bartol Rodrigues ............................................................................... 37

Entre os legados de uma compreensão do Ser às contribuiçõesda Psicologia Educacional para formação do SerMarcelo Ribeiro ............................................................................................. 61

Implicações psicológicas da avaliação escolarRuben de Oliveira Nascimento ....................................................................... 75

A interdisciplinaridade e as novas formas de organizaçãodo conhecimentoMaria Geralda Oliver Rosa ........................................................................101

A pesquisa na escola com crianças pequenas: desafios e possibilidadesReginaldo Santos Pereira e Myrtes Dias da Cunha .....................................113

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Aproximações entre a Psicologia de Vygotsky e a Filosofia para Criançasde Lipman: questões sobre aprendizagem e desenvolvimentoCarmen Lúcia Dias, Cláudio Roberto Brocanelli eCarla Luciane Blum Vestena ......................................................................131

Elementos de Filosofia da Educação a partir da Teoria daModificabilidade Cognitiva Estrutural de FeuersteinCarlos Eduardo de Carvalho Vargas ..........................................................145

Epicuro e os tetrapharmakonFlavia Bruno ...............................................................................................161

Ética e Educação: reflexões sobre amizade e cidadaniaAlonso Bezerra de Carvalho ........................................................................171

Ética na mídia impressa: um estudo de notícias publicadas entre1997 e 2003Helenice Maia ..............................................................................................205

A des-razão como possibilidade criativa na desconstrução da realidadeElenise Cristina Pires de Andrade e Renato Beluche ...................................235

RESENHAS

O potencial do estudo de caso etnográfico para as pesquisas educacionaisBenedito G. Eugênio ....................................................................................257

Reflexões sobre o ensino de ortografia nas séries iniciaisBenedito G. Eugênio ....................................................................................260

Reflexões sobre a sexualidade e a infânciaDilma do Carmo Brito, Gilnúbia Rosa Mendes da Silva, Maria de LourdesBrito de Souza e Rosangela Rodrigues da Silva ...........................................263

Nominata dos pareceristas ..................................................................... 267

Periódicos permutados ...........................................................................268

Normas para publicação de trabalhos ................................................. 269

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APRESENTAÇÃO

É com grande satisfação que apresentamos este oitavo númerode nosso caderno. Em primeiro lugar, porque viemos de receber oresultado final de nossa primeira avaliação pelo sistema Qualis, realizadodesta feita em parceria com a ANPEd, o que por si só, foi mais um fator aqualificar esse importante sistema de avaliação de periódicos em nossopaís, em seu trabalho de apreciação das publicações científicas na área deEducação. O conceito obtido pelo caderno foi o de “Local A”.

Essa primeira avaliação revelou-se fundamental, e por diversasrazões. Em especial por indicar-nos os pontos em que o caderno vaibem, aqueles em que ele decididamente avançou, e, ainda, aqueles emque serão necessários aprimoramentos e alterações. Nossa intenção, apartir dessa avaliação inaugural, é desde já a de redobrar os esforços nointuito de aprimorar ainda mais a publicação, de forma que ela possaavançar ainda mais em seu perfil atual, voltado para duas importantesáreas da pesquisa em educação.

Além disso, nos últimos meses registramos uma considerávelampliação do número de nossas permutas, o que permite que nossocaderno chegue a inúmeras novas instituições e, cada vez mais, apesquisadores por todo o país.

Este número oito compõe-se de 12 artigos e três resenhas.Mantendo a tradição de nossa publicação, esses trabalhos primam por

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sua variedade temática e pela diversidade institucional dos seus autores.É também com satisfação que inclui-se neste número, pela primeiravez, um trabalho de autoria de graduandas do curso de Pedagogia daUESB. As discentes Dilma do Carmo Brito, Gilnúbia Rosa Mendes daSilva, Maria de Lourdes Brito de Souza e Rosangela Rodrigues da Silvaassinam a última resenha publicada nesta edição.

Abrindo o conjunto de trabalhos apresentados neste número 8,temos o artigo “Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricas”, dePaulo Sérgio T. do Prado, Professor Assistente do Departamento dePsicologia da Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP –Campus de Marília, SP). O artigo apresenta uma revisão das pesquisasexperimentais sobre habilidades numéricas, enfocandoprivilegiadamente duas abordagens, a saber, a que trata da tarefa detestar essas habilidades nos sujeitos, e a que trata das condições deensiná-las experimentalmente.

Inaiara Bartol Rodrigues, Professora da Faculdade deComunicação, Educação e Turismo da Universidade de Marília (UNIMAR)e Pedagoga do Centro de Estudos da Educação e da Saúde (CEES) daUNESP (Marília), no artigo “Estudo sobre a aplicação da prova piagetianade escoamento do líquido para avaliação da noção temporal”, promoveuma discussão sobre a construção de tempo na epistemologia genéticae a importância da concepção de Piaget para a compreensão acerca darelação entre as ações mentais e a concepção de tempo nodesenvolvimento cognitivo.

Em seguida, no trabalho “Entre os legados de uma compreensãodo ser às contribuições da psicologia educacional para formação doser”, Marcelo Ribeiro, Professor de psicologia da Universidade Federaldo Vale do São Francisco (UNIVASF), trata de duas importantes correntesfilosóficas (a pré-socrática e a filosofia existencialista) no que concerneàs suas respectivas concepções de Ser, tomado como algo permanenteou transitório, e à sua influência no campo da psicologia da educação.

O texto “Implicações psicológicas da avaliação escolar”, deRuben de Oliveira Nascimento, Professor Assistente do Instituto de

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9Apresentação

Psicologia da Faculdade Federal de Uberlândia (UFU) trata dasimplicações psicológicas da avaliação. O autor expõe a necessidade dese ultrapassarem as avaliações estigmatizantes e estereotipadas, criandocondições que favoreçam o crescimento pessoal e escolar, bem comoo desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem.

No texto “A interdisciplinaridade e as novas formas deorganização do conhecimento e de avaliação”, Maria Geralda OliverRosa, Secretária Acadêmica do Centro de Ensino Superior de Itabira-MG (CENSI), faz uma reflexão sobre os paradigmas da atitude docentee sua mudança face às novas formas de organização do conhecimento.

Em seguida, temos o artigo “A pesquisa na escola com criançaspequenas: desafios e possibilidades”, de Reginaldo Santos Pereira,Professor da UESB, e Myrtes Dias da Cunha, Professora da Faculdadede Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação daUniversidade Federal de Uberlândia (UFU). Tomando como base oexercício investigativo com crianças pequenas, os autores lançam mãode algumas reflexões epistemológicas e metodológicas situando apesquisa qualitativa como instrumento fundamental na utilização detécnicas que favoreçam uma maior elucidação de hipóteses, questões eproblemas inerentes ao processo de pesquisa desenvolvido com crianças.

No artigo “Aproximações entre a Psicologia de Vygotsky e aFilosofia para Crianças de Lipman: questões sobre aprendizagem edesenvolvimento”, os autores Carmen Lúcia Dias (Professora da UNESP

– Marília), Cláudio Roberto Brocanelli (Doutorando em Educação pelamesma instituição) e Carla Luciane Blum Vestena (Docente daUniversidade Estadual do Centro-Oeste – Guarapuava (PR), partindoda psicologia cultural de Vygotsky e da teoria sobre o aprendizadoescolar de Lipman, desenvolvem uma reflexão sobre a dimensãohumanizadora da aprendizagem, concebendo a interação entre osinstrumentos e os signos como mediadores da relação entre sujeito eobjeto no processo de conhecimento.

Em “Elementos de filosofia da educação a partir da teoria damodificabilidade cognitiva estrutural de Feuerstein”, temos o trabalho

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de Carlos Eduardo de Carvalho Vargas, Professor nas FaculdadesIntegradas Santa Cruz de Curitiba. Neste artigo, o autor toma comoponto de partida alguns aspectos da filosofia da educação de ReuvenFeuerstein, situando-os como pressupostos da Teoria daModificabilidade Cognitiva Estrutural e do modelo teórico Experiênciade Aprendizagem Mediada. Partindo disto, o autor demonstra de queforma, por um lado, esses aspectos são aplicados no Programa deEnriquecimento Instrumental de Feuerstein, e por outro, como eles serelacionam, no processo de avaliação educacional, à sua compreensãopsicológica e filosófica.

Em “Epicuro e os tetrapharmakon”, Flavia Bruno, Professora daUniversidade Cândido Mendes, RJ (Campus Centro) e da Faculdade deSão Bento (RJ), faz uma elucidação da ética epicurista nos seus aspectosprincipais, associada à idéia da filosofia como uma medicina que tratada alma.

O artigo de Alonso Bezerra de Carvalho, Professor doDepartamento de Educação da UNESP – Campus de Assis (SP) e doPrograma de Pós-Graduação em Educação da UNESP – Campus deMarília (SP), “Ética e educação: reflexões sobre amizade e cidadania”,trata da relação entre educação e ética, considerando a ética como umcaminho fundamental para a experiência didático-filosófica.

Helenice Maia, Professora do curso de Mestrado em Educaçãoda Universidade Estácio de Sá (RJ) e coordenadora acadêmica da pós-graduação lato sensu da mesma Universidade, no artigo “A ética namídia impressa”, mostra de que forma a mídia impressa, uma vezancorada em alguma opção ética, apresenta os juízos de valor com osquais avalia o cotidiano.

E, finalizando o conjunto de artigos deste número, temos o texto“A des-razão como possibilidade criativa na desconstrução da realidade”,de Elenise Cristina Pires de Andrade, pesquisadora do Laboratório deRecursos Audiovisuais (Olho), da Faculdade de Educação da Unicampe Professora e Coordenadora do curso de Pedagogia das FaculdadesNetwork, Nova Odessa (SP), e Renato Beluche, pesquisador do Núcleo

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11Apresentação

de Infoeducação – USP e do Grupo de Pesquisa “Corpo, IdentidadeSocial e Estética da Existência” (UFSCar). O artigo apresenta aexperiência realizada por professores de filosofia da rede pública deSão Paulo que, tomando como fio condutor o pensamento de Nietzschee Foucault, produziu uma série de atividades tendo como objetivo“revirar” as idéias e valores que vigoram como regimes de verdades,aliando o ensino de filosofia à idéia de jogo e de arte.

Temos ainda, fechando este número, três resenhas: “O potencialdo estudo de caso etnográfico para as pesquisas educacionais”, deBenedito G. Eugenio, Professor da UESB, apresentando o livro Estudode caso em pesquisa e avaliação educacional, de Marli E. D. Afonso de André.O livro traça um panorama das dificuldades metodológicas do processode pesquisa. O mesmo Professor resenha ainda o livro Ortografia: ensinare aprender, de Artur Gomes Morais, que trata do problema da ortografiano ensino fundamental.

Dilma do Carmo Brito, Gilnúbia Rosa, Mendes da Silva, Mariade Lourdes Brito de Souza e Rosangela Rodrigues da Silva, graduandasdo curso de Licenciatura Plena em Educação Infantil e Séries Iniciaisdo Ensino Fundamental (UESB) e Professoras da Rede Municipal deVitória da Conquista, apresentam o livro Sexualidade(s) e Infância(s): asexualidade como um tema transversal, que tece uma reflexão sobre adiscussão da sexualidade na sala de aula e no cotidiano da criança.

Por fim, informamos que já está definida a temática de nossopróximo número: ele será uma edição especial totalmente dedicada aotema das Dificuldades de Aprendizagem. Esse número é organizadopela Professora Eliane Saravali, da UNESP, campus de Marília.

Zamara Araújo dos SantosEditora responsável.

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Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricas

Paulo Sérgio T. do Prado *

Resumo: O texto apresenta uma revisão de pesquisas experimentais sobrehabilidades numéricas, na qual duas abordagens são identificadas. Umaconstitui-se da exposição dos sujeitos a tarefas elaboradas para testar taishabilidades e, a outra, de ensiná-las em condições experimentais específicas.Uma “combinação” das duas abordagens é identificada num conjunto depesquisas em que procedimentos de teste são usados para se avaliar o repertóriode entrada dos sujeitos. Então, estratégias de ensino são planejadas eimplementadas. Finalmente, testes são novamente conduzidos para se avaliaro efeito da intervenção. Embora as pesquisas tenham contribuído para aidentificação de variáveis envolvidas na aquisição de habilidades numéricas, opapel da contagem parece ainda não estar bem estabelecido, aguardando pormais pesquisas.

Palavras-chave: Habilidades numéricas. Contagem. Pesquisa experimental.

Research and theory about numerical skills

Abstract: A revision of experimental researches on numerical skills is presentedin which two approaches are identified. One of them consists to expose subjects

* Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).Professor Assistente do Departamento de Psicologia da Educação da Universidade EstadualPaulista (Unesp – Campus de Marília, SP). E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 13-36 2007

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to tasks designed to test those skills and the other to teach them under specificexperimental conditions. A “combination” of the two approaches is identifiedin a set of researches in which test procedures are used to evaluate initialsubjects’ repertoire. Then, teaching strategies are planed and implemented.Finally, tests are conducted again to evaluate the effect of the intervention.Although researches had contributed to identify variables involved in theacquisition of numerical skills, the role of counting appear not to be welldefined, waiting for further researches.

Key words: Numerical skills. Counting. Experimental research.

Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricas

O exame da literatura sobre habilidades numéricas revela que,grosso modo, o tema vem sendo investigado de duas maneiras: a)expondo-se sujeitos a tarefas elaboradas para testá-las; ou, b) ensinando-as em condições experimentais.

a) Testes de habilidades numéricas

Entre os estudos que analisam as habilidades por meio de testes,o de Beckwith e Restle (1966) identificou um conjunto de variáveis queatuam sobre o contar – como a forma dos estímulos, se são iguais oudiferentes, sua cor e sua disposição – e as estratégias empregadas pelossujeitos (pré-adolescentes e universitários) para a realização daquelatarefa. Em ambos os grupos, conjuntos maiores produziram mais errose requereram mais tempo para serem contados. E, em linhas gerais,ambos os grupos usaram a subitização,1 sendo que os universitários ausaram em combinação com sua capacidade de soma e multiplicação.Potter e Levy (1968) estudaram um dos componentes do contar – ahabilidade de apontar cada item de uma coleção, um por vez e somenteuma vez cada um até que toda a coleção se esgote. (As outras habilidadesseriam, de acordo com os autores, recitar os nomes dos numerais em

1 Tradução de Ottoni (1993) para o neologismo: subitizing, que refere-se a uma capacidade dereconhecer pequenas numerosidades sem o recurso da contagem ou qualquer outro fatorlingüístico.

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15Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricas

ordem e coordenar as duas primeiras habilidades para fazercorresponder cada item a um numeral.) Notaram uma correlaçãopositiva entre a habilidade de tocar os elementos sem omissões nemrepetições e a idade das crianças, o mesmo ocorrendo com relação àhabilidade de contar. Entre as quantidades e o tocar, constatou-se umacorrelação negativa. Em ambos os estudos, o modo como os elementosforam arranjados também exerceu influência sobre o contar.

Para Piaget, a capacidade de reconhecer a equivalência numéricaentre duas coleções mesmo quando não há correspondência um-a-umentre seus elementos, o que o autor denomina noção de conservação,indica a posse do conceito de número pela criança. (Sobre o conceito ea prova de conservação, ver Carraher, 1982; Kamii, 1991; e Piaget eSzeminska, 1981). Do seu ponto de vista, ao contrário do de outrosestudiosos, a enumeração é um mero fator verbal que não desempenhaqualquer papel no progresso da correspondência termo-a-termo e daequivalência numérica (PIAGET; SZEMINSKA, 1981).

Wohlwill (1960) manifesta-se insatisfeito com as análises que seproduziram sobre o desempenho de sujeitos (adultos e crianças) emtarefas isoladas e com a carência de suporte experimental adequado daprincipal construção teórica sobre o assunto, aquela edificada por Piaget.Ministra um conjunto de tarefas numa situação de emparelhamentocom o modelo (matching-to-sample) e elabora uma escala hierárquica dashabilidades envolvidas.

As formulações de Piaget foram alvo também das críticas deGelman (1972). Quanto à prova de conservação especificamente, aautora entende como fonte de vieses a interação verbal adulto-criança.Termos tais como “mesmo”, “mais” e “menos” – necessariamenteenvolvidos na prova piagetiana de conservação – seriam interpretadosde forma diferente por ambos. Através de um procedimento no qualempregaram-se técnicas de shows de magia, a autora elaborou uma provaque dispensava o uso daqueles termos. Demonstrou, dessa forma, quea noção de conservação apresenta-se em idade inferior à que supôsPiaget. (Para uma discussão mais aprofundada sobre essa problemática

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metodológica e uma revisão mais completa de estudos cognitivistassobre o tema, ver Fayol, 1996).

Seguindo pelas trilhas de Wohlwill, autores como Wang, Resnicke Boozer (1971) e Spradlin e colaboradores (1974) também investiramna análise de habilidades em conjunto ao invés de isoladas.Semelhantemente, também o fizeram através de um método que permitea hierarquização de tarefas – a Multiple Scalogram Analysis. Os primeirostrabalhando com crianças normais e, os segundos, com criançasretardadas.

Schaeffer, Eggleston e Scott (1974) aplicaram uma bateria detestes a crianças de dois a seis anos e analisaram os resultados de umaperspectiva segundo a qual habilidades simples vão se integrandohierarquicamente, originando habilidades mais complexas.

Na literatura especializada encontramos também relatos detrabalhos cujos resultados sugerem a presença de habilidades numéricasdesde idade muito tenra. Strauss e Curtis (1981) usaram o procedimentode habituação-desabituação para estudar a discriminação denumerosidades visuais em bebês de 10 a 12 meses. Starkey, Spelke eGelman (1983) investigaram a capacidade de bebês de seis a oito mesespara reconhecerem a equivalência numérica entre conjuntos de estímulosintermodais – visuais e auditivos. Wynn (1992) usou uma variação doprocedimento para estudar a capacidade de soma e subtração em bebêsde cinco meses. (Para uma revisão mais detalhada de estudos com bebês,entre outros, ver Ottoni, 1993 e Prado, 1995.)

Pesquisas como algumas das citadas acima, entre muitas outras,têm sido tomadas como suporte para a idéia de que os bebês sãoinatamente dotados de habilidades numéricas. Baseando-se nelas etambém em pesquisas com animais e interculturais, D. C. Geary (porexemplo: 2001 e Geary e colaboradores, 1996) afirma que a presençadas habilidades são produto de pressões evolutivas e, denominando-as“habilidades biologicamente primárias”, conclui que estas constituem-se a base para o desenvolvimento de outras mais complexas, as quaischama “habilidades biologicamente secundárias” – como a

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17Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricas

aprendizagem dos símbolos numéricos e algébricos, do uso do sistemadecimal, dos cálculos, etc. Estas dependem das primárias, mas seudesenvolvimento se deve também à valoração cultural e a práticasescolares. Resultados de pesquisas interculturais apontam diferençassignificativas, desfavoráveis para estudantes americanos, o que leva oautor a desenvolver uma reflexão sobre as práticas pedagógicas de seupaís. Essa, contudo, é uma discussão que não desenvolverei aqui.

Todas essas pesquisas têm em comum a exposição de sujeitos adeterminadas tarefas consideradas relevantes para o conhecimento dasvariáveis que atuam sobre a formação do conceito de número, para sedeterminar o processo de desenvolvimento desse conceito e até parafundamentar esclarecimentos e críticas sobre aspectos consideradosobscuros ou mesmo equivocados em alguns trabalhos. Outra abordagempara o estudo do tema tem sido o ensino, em condições experimentais,de habilidades numéricas.

Um proeminente pesquisador do comportamento, M. Sidman(SIDMAN; STODDARD, 1966), recomendou: “Não teste, ensine”. Por teressa recomendação algo em comum com outro psicólogo proeminente,parece-me proveitoso recordar primeiro algumas considerações desteúltimo. Refletindo sobre a relação entre desenvolvimento eaprendizagem, Vygotsky (1984) raciocinou que testes psicológicosavaliam aquilo que a criança já conquistou em termos de seudesenvolvimento psicológico, isto é, aquilo que já estaria consolidadoem termos desse desenvolvimento, os seus frutos. Podemos dizer queos testes fornecem uma fotografia, isto é, uma “imagem” estática doque a criança é capaz de fazer por si mesma num dado momento, o queo autor conceituou como nível de desenvolvimento real.

Contudo, ainda segundo Vygotsky, isso não é tudo. Há coisasque embora a criança não saiba fazer por si mesma ela poderá fazer sereceber algum auxílio de um adulto ou outra criança mais experiente.Essas capacidades seriam os “botões” ou “brotos” do desenvolvimento:o nível de desenvolvimento potencial, que encerra tudo aquilo que acriança só pode desempenhar com a ajuda de alguém, mas que no futuro

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Paulo Sérgio T. do Prado18

ela poderá fazer por si própria. A distância entre os dois níveis dedesenvolvimento, real e potencial, constitui-se o que Vygotskyconceituou como zona de desenvolvimento proximal.

Como na concepção desse autor a aprendizagem impulsiona odesenvolvimento, esse raciocínio tem importantes implicaçõespedagógicas. Por isso, numa reação à visão de que o desenvolvimento éque estabeleceria as pré-condições para a aprendizagem e que, portanto,as intervenções pedagógicas deveriam aguardar pelo desenvolvimentopsicológico da criança, ele disse que “o único bom ensino [...] é aqueleque se adianta ao desenvolvimento” (OLIVEIRA, 1993, p. 62). E parapromovê-lo, é exatamente na zona de desenvolvimento proximal quedeve atuar o educador. Mas embora a discussão sobre a educação sejaindubitavelmente importante, permaneçamos no campo da pesquisapsicológica, que é o tema sobre o qual devemos nos concentrar nessemomento. O conceito de zona de desenvolvimento proximal tambémteve implicações no modo de pesquisar de Vygotsky. De acordo comOliveira (1993, p. 64-65),

A postura de Vygotsky, no que diz respeito à intervenção deum indivíduo no desenvolvimento do outro, tem conseqüênciaspara seu próprio procedimento de pesquisa. Muitofreqüentemente Vygotsky e seus colaboradores interagiam comseus sujeitos de pesquisa para provocar transformações em seucomportamento que fossem importantes para compreenderprocessos de desenvolvimento.

Veja que aquele autor não se limitava a testar seus sujeitos. Eleintroduzia variáveis para verificar que efeitos elas exerciam sobre ocomportamento deles. Voltando à recomendação de Sidman, note queela tem uma parte negativa: “não teste”, que se apóia na idéia de quetestes, embora possam revelar coisas importantes, não permitemidentificar com precisão as variáveis responsáveis peloscomportamentos testados. Algumas dessas variáveis podem serinerentes ao próprio teste. Numa extensa e relativamente exaustivarevisão de pesquisas que vêm sendo realizadas desde a década de 80

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sobre habilidades numéricas em bebês, Mix, Huttenlocher e Levine(2002) apresentam um questionamento no sentido de que em taispesquisas o controle experimental sobre determinadas variáveis não ésuficiente para se descartar a possibilidade de que os sujeitosrespondessem a dimensões de estímulo outras que não a numérica. Noentanto, mesmo que o controle experimental fosse perfeito nessaspesquisas, ainda assim permaneceriam no campo das especulações asvariáveis responsáveis pelos comportamentos observados nos testes,pois elas se localizam na história do sujeito (ou da espécie), históriaesta à qual raramente o pesquisador tem acesso, se é que tem algum.

E assim o pesquisador, diante dos resultados produzidos peloseu teste e sem acesso à história do sujeito, atribui a variáveis internas ocomportamento deste. Daí a importância da parte afirmativa darecomendação de Sidman: “ensine”. Embora, obviamente, esse autorreconheça o papel do ensino escolar, seu conselho antes de educacionalé metodológico e relaciona-se com um modo de se fazer pesquisa. Nocontexto da pesquisa comportamental, ensinar alguma coisa a alguémsignifica criar uma história, a qual poderá ser acompanhada em detalhespelo pesquisador. Essa é a alternativa para se superar, pelo menosparcialmente, a falta de acesso à história do sujeito. Na elaboração dosprocedimentos de ensino, o pesquisador encontra meios para controlar,com elevado nível de rigor e precisão, as variáveis às quais poderá,posteriormente, atribuir os comportamentos analisados. Os estudos aseguir são exemplos disso.

b) O ensino experimental de habilidades numéricas

Em Macedo (1972, 1975) encontramos uma revisão exaustivade pesquisas especificamente voltadas para a aquisição experimentalda noção de conservação. Os estudos foram agrupados em nada menosdo que 14 categorias, de acordo com o procedimento básico empregado.O próprio autor adaptou o procedimento de emparelhamento com omodelo à prova de conservação para ensinar a noção de conservação

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de quantidades descontínuas (MACEDO, 1972). Fez o mesmo com oprocedimento de escolha do ímpar – oddity learning (MACEDO; AMÊNDOLA,1980); e comparou a eficácia de dois procedimentos baseados em teoriasdivergentes: na de aprendizagem discriminativa, usando oddity learning;e na teoria da equilibração, replicando um procedimento de autorespiagetianos (MACEDO; ASSIS, 1984).

A produção do autor acima parece ter sido motivada, em grandeparte, por uma discussão suscitada pelo artigo de Gelman (1969).Inspirada em Zimiles (1963) que, numa crítica às concepções de J. Piagete J. F. Wohlwill considerou a possibilidade de algumas criançascomportarem-se como não-conservadoras por atentarem para atributosirrelevantes dos estímulos, Gelman (1969) testou experimentalmenteessa hipótese. Grosso modo, seu procedimento consistiu doreforçamento diferencial a respostas sob controle das dimensõesrelevantes dos estímulos – quantidade numérica de fichas e comprimentode bastões. Sujeitos classificados como não conservadores no pré-teste,após um período de treino evoluíram para a condição de conservadores.

Pautando-se pelos pressupostos da Análise do Comportamento,Drachenberg (1973, 1990) considerou que um determinado valornumérico é uma propriedade abstrata do conjunto. Sendo esse valormantido constante em conjuntos de objetos diferentes, a propriedadese generalizaria para todos os grupos de mesmo valor, significando aabstração do conceito. Para ensinar os conceitos de um a dez, adotouum procedimento de modificação gradual no controle de certos aspectosde um estímulo para outro (fading in), aplicando-o numa situação deemparelhamento com o modelo. Dos 13 sujeitos de dois a seis anos,apenas um completou a longa série de 10 passos (cada um com váriasetapas e um grande número de tentativas); e cada sujeito fez, emmédia, 140 sessões de treino. Parece-nos que para o reconhecimentode um valor comum a grupos de objetos distintos é indispensável ouso da contagem. Melhores resultados poderiam ter sido alcançadospelas crianças se tal habilidade lhes houvesse sido ensinada (verdiscussão abaixo).

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Baseados também nos pressupostos behavioristas, mas jáempregando conhecimento incipiente sobre a produção dedesempenhos emergentes, Gast, VanBiervliet e Spradlin (1979)trabalharam com três crianças com idade entre oito e 11 anosclassificadas como retardadas, e quatro pré-escolares normais de 3a3m(a = anos; m = meses) a 4a7m. Anteriormente à intervenção, todoseram capazes de: 1) reconhecer os numerais; 2) separar subconjuntosde conjuntos totais a partir de números ditados; e, 3) também a partirde numerais impressos; 4) emparelhar numerais a conjuntos; 5)emparelhar conjuntos a numerais; 6) nomear os numerais; e, 7) contarconjuntos totais. Os valores usados foram de um a seis. A essa classede estímulos-respostas foi incluído um novo membro – palavra-númeroimpressa. Isso foi feito através de um treino no qual o sujeito selecionavapalavras-número a partir de números ditados. Observou-se que a partirdo ensino dessa relação, um conjunto de outras novas emergiu. Dessaforma, além das relações que os sujeitos já apresentavam, passaram aapresentar também o emparelhamento de numeral a palavra-número esua inversa, palavra-número - numeral; a selecionar palavras-númerocorrespondentes a conjuntos e vice-versa, e também a nomear as palavras-número. Não houve diferenças entre o desempenho apresentado pelascrianças normais e o daquelas classificadas como retardadas.

Maydak e colaboradores (1995) investigaram a inter-relação entreclasses de estímulos e tarefas de produção de seqüência (sequence-production tasks). Os sujeitos foram um homem e uma mulher com grandeatraso no desenvolvimento. Em linhas gerais, o experimento consistiuda formação de classes de estímulos compostas por nomes de númerosditados, numerais e quantidades (conjuntos de pontos).Subseqüentemente, foi realizado um treino de produção de seqüênciacom as quantidades dois a cinco, no qual, dados conjuntos com essesnúmeros de elementos, dispostos aleatoriamente, o sujeito deviaselecioná-los partindo do menos para o mais numeroso. Por meio detestes apropriados verificou-se, posteriormente, a emergência daseqüenciação dos numerais dois a cinco.

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Também aplicando tecnologia de estudos sobre equivalência deestímulos, Lynch e Cuvo (1995) desenvolveram um programa para oensino de frações. A alunos de sexta e sétima séries que, segundo seusprofessores, apresentavam dificuldades em tarefas envolvendo fraçõese números decimais, foram treinadas as relações: (A) fração – (B)representação pictográfica de fração; e, (B) representação pictográfica– (C) número decimal. Observou-se a emergência das relações B-A, C-B, A-C e C-A. Foi testada, ainda, a generalização com frações de valorescorrespondentes aos das usadas no treino, com frações e númerosdecimais novos; e a conversão de fração para número decimal e vice-versa, numa prova de tipo papel e lápis.

Observamos que nos dois tipos de abordagem um procedimentoempregado com freqüência é o de matching to sample. E nas publicaçõesmais recentes, os autores têm lançado mão de tecnologia que possibilitaque o ensino se faça de modo a produzir aprendizagens que vão alémdo que é ensinado: ensina-se com vistas à produção de desempenhosemergentes.

A metodologia usada nas pesquisas pode servir como recursopara a detecção de necessidades individuais de aprendizagem,propiciando a obtenção de informações que subsidiem a elaboração eimplementação de estratégias individualizadas de ensino. Identificando-se relações presentes, ausentes e/ou não bem estabelecidas no repertórioda criança, pode-se planejar o ensino com vistas à promoção dedesempenhos emergentes. A seguir, serão apresentados dois estudoscujos autores tentaram fazer isso.

“Combinando” as duas abordagens e discutindo a contagem

Usando alguns dos recursos metodológicos descritos e tendocomo sujeitos dois adolescentes, um autista e outro classificado comoportador de retardo mental moderado, ambos com déficit de linguagem,Green (1993) aplicou um pré-teste que revelou que um dos sujeitosemparelhava estímulos por identidade e também numerais a seus

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respectivos nomes ditados. O outro, além dessas mesmas habilidades,fazia os pareamentos número ditado-conjunto e numeral-conjunto nosvalores de um a três e nomeava todos os numerais (sic).

A autora assume que a compreensão numérica implica em tratarcomo equivalentes nomes de números falados, numerais impressos equantidades correspondentes de itens. Ela aponta que freqüentementeassume-se que a contagem é uma habilidade pré-requisito para aaprendizagem de equivalências numéricas e vê no paradigma deequivalência de estímulos a possibilidade de que aquelas equivalênciaspossam ser ensinadas prescindindo-se da contagem.

Um procedimento de treino instalou as relações número ditado-numeral e número ditado-conjunto. Foram usados os numerais 1 a 6 econjuntos nos valores correspondentes. Os elementos que compunhamos conjuntos eram pontos (pequenos círculos pretos sólidos). Umdetalhe importante que diz respeito à disposição espacial dos pontosdeve ser notado: para cada um dos valores de um a seis foram usadostrês padrões diferentes, porém fixos, de configuração.

Ao final do treino, um pós-teste revelou que além das relaçõesensinadas, os sujeitos haviam aprendido também a produzir oralmentenomes de números tanto em resposta a numerais impressos como aconjuntos, a relacionar numerais a conjuntos e vice-versa e aindademonstraram generalização dessa habilidade quando foram usadosconjuntos com figuras de cavalos, casas e moedas. Essas figuras, que nãofizeram parte do treino, foram apresentadas de acordo com um dospadrões de disposição espacial usado com os pontos durante o treino.

G. Green é cautelosa ao concluir seu estudo. Ela afirma quepara os dois sujeitos do experimento, que de início não apresentavama habilidade de contagem, esta não pareceu necessária para aaprendizagem das equivalências numeral-quantidade. É uma conclusãoque decorre naturalmente dos resultados. Os sujeitos não contavame não foram ensinados a contar. Mesmo assim, exibiram desempenhoque atestou a emergência de relações de equivalência entre numeraise conjuntos.

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Vários autores afirmam que quantidades até três ou quatro sãopassíveis de subitização. Bebês com poucos meses de idade parecemdiscriminar conjuntos com esses números de itens (ver, por exemplo,Starkey e Cooper, 1980; Starkey, Spelke e Gelman (1983) e Strauss eCurtis, 1981). Green (1993) usou valores superiores. Porém, parecepossível que eventuais dificuldades envolvidas na discriminação deconjuntos com cinco e seis elementos tivessem sido superadas por umtreino eficiente, tal como o elaborado pela autora. Contudo, há que seconsiderar um pouco mais detidamente o tratamento experimentaldispensado a uma importante variável. Os elementos de cada um dosconjuntos foram dispostos de acordo com padrões fixos. Mesmo noteste de generalização, quando foram usadas figuras em lugar de pontos,elas foram dispostas de acordo com um dos padrões de disposiçãousado no treino.

Conjuntos são estímulos complexos com uma propriedadeespecial. Eles possuem dimensões ou atributos que podem variar quaseinfinitamente. A natureza dos elementos, seu tamanho, cor, textura,cheiro, etc., são todas dimensões irrelevantes. A única dimensãorelevante de um conjunto é o número de elementos que ele contém.Respostas adequadas só serão produzidas sob controle dessa dimensão.

Uma das dimensões irrelevantes de um conjunto é a maneiracomo seus elementos se distribuem no espaço. Trata-se de umadimensão particularmente importante, pois em determinadas situações,pode assumir um controle inadequado de respostas. Jogos de dados edominós apresentam conjuntos de um a seis pontos dispostos de acordocom padrões fixos, o que faz com que cada conjunto assuma umaconfiguração peculiar. Nesses jogos (principalmente no de dados) osconjuntos são, em alta freqüência, emparelhados a nomes de números.A configuração de cada conjunto acaba facilitando o reconhecimentodo seu valor ou, pelo menos, a associação com a palavra-númerocorrespondente, o que empresta agilidade ao jogo. Dependendo dorepertório do indivíduo, no entanto, isso pode tornar-se um problema.Diante de um conjunto de seis elementos quaisquer dispostos de

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maneira não familiar, alguém que sabe contar descobrirá quantos sãoos itens, mas quem não possui essa habilidade, como uma criança emidade pré-escolar, por exemplo, terá dificuldades para determinar o valor.

No experimento de Green (1993), o fato de haver três padrõesde acordo com os quais os pontos eram dispostos pode ter dificultadoum pouco as coisas para os sujeitos. No entanto, a possibilidade de queas respostas tenham ficado sob controle da dimensão irrelevantedisposição espacial dos elementos só poderia ser definitivamentedescartada se ao longo do experimento, de tentativa a tentativa, os itensdos conjuntos fossem arranjados de maneira imprevisível para o sujeito.

Procurei tomar esse cuidado em um estudo conduzidoanteriormente (PRADO, 2001), cujas linhas gerais passo a descrever.Foram consideradas as relações entre os estímulos representados pelosretângulos A, B, C e C’ na Figura 1; e entre eles e as respostasrepresentadas pelos retângulos D, E e F naquela mesma figura. As setas,que vão sempre do estímulo modelo para o de comparação ou resposta,simbolizam relações. O diagrama deve ser lido como segue.

Figura 1 – Diagrama esquemático representando as habilidades numéricasanalisadas no estudo

ANúmeroditado

BNumeral(is)Impresso(s)

CConjunto(s)

C’Variação dadisposição

DNomeação

EProdução de

seqüênciaF

Contagemdesubconjunto

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AB - dados o nome de um número falado como estímulo modeloe diversos numerais como estímulos de comparação escolher, entreestes, o que corresponde ao modelo ditado. AC - dados um númeroditado e vários conjuntos, cada um com um número diferente de itens,selecionar o conjunto cuja quantidade de elementos corresponda aonome do número falado. AF - dados um número falado e um conjunto,separar deste um subconjunto com número de itens correspondenteao especificado. BC - dados um numeral e conjuntos, selecionar destesaquele com a quantidade expressa pelo numeral. BD - dado um numeral,dizer o seu nome em voz alta. BE - dados diversos numerais, colocá-los em ordem crescente. BF - dados um numeral e um conjunto, separardeste a quantidade de itens especificada pelo numeral. CB - dados umconjunto e vários numerais, selecionar destes o equivalente ao valor doconjunto. CC - dados um conjunto como estímulo modelo e outrosconjuntos como estímulos de comparação, todos com os respectivoselementos dispostos de acordo com um mesmo padrão, escolher dentreos últimos aquele numericamente equivalente ao primeiro. CC’ - dadosum conjunto como estímulo modelo e outros conjuntos como estímulosde comparação, não havendo coincidência na disposição dos elementos,selecionar a comparação correspondente ao modelo. CD - dado umconjunto, contar seus elementos e dizer quanto são, isto é, nomear anumerosidade. CE - dados diversos conjuntos com cardinalidadesdiferentes, ordená-los do menos para o mais numeroso. CF - dadosdois conjuntos, um deles com maior número de elementos, separardeste um subconjunto com o mesmo número de elementos do primeiro.

Um programa de computador especialmente desenvolvido parao estudo e o uso de um monitor de vídeo com tela sensível ao toquepossibilitaram que o teste daquelas relações (e o posterior treino dealgumas delas) fosse completamente informatizado. O procedimentobásico adotado foi o de discriminação condicional. Tarefas querequeriam a contagem de subconjuntos ou a produção de seqüênciasforam realizadas através do que na literatura tem sido chamado derespostas construídas. Toda resposta correta levava a uma conseqüênciaproduzida pelo próprio computador: animação efeito sonoro oumensagem de elogio. Porém, cada tentativa de cada tarefa eraapresentada somente uma vez, exceto tarefas envolvendo conjuntos,

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cujas tentativas foram apresentadas duas vezes – uma em que oselementos eram dispostos ordenadamente e outra em que os elementosocupavam posições selecionadas aleatoriamente pelo computador. Odelineamento da pesquisa compôs-se de três fases: pré-teste, treino epós-teste, antecedidas por um treino preparatório para familiarizar ossujeitos com o uso do equipamento, o qual não será descrito.

Na Figura 2 encontram-se os dados do desempenho de umsujeito do sexo masculino, com idade de cinco anos e sete meses. Comele foram usados estímulos nos valores de um a nove. As colunas dolado esquerdo de cada par de colunas representam a porcentagem derespostas corretas no pré-teste. Note que, em linhas gerais, o sujeitoapresentou um desempenho pobre nas tarefas envolvendo numerais(estes representados pela letra B). Algumas tarefas não constam nográfico. São elas: a relação AB, em que os acertos desse sujeito foramde 55,6%; BD e BE, em que os escores ficaram abaixo de 50%.

Figura 2 – Desempenho de um menino de 5 anos e 7 meses no pré-teste (antes daintervenção) e no pós-teste das relações (depois da intervenção), excluídas asdiretamente ensinadas no treino (AB, BD e BE)

AC- Número ditado – conjuntoBC- Numeral – conjuntoCB- Conjunto – numeralCD- Nomeação de numerosidadesCF- Conjunto – contagem de subconjunto

AF- Nº ditado – contagem de subconjuntoBF- Numeral – contagem de subconjuntoCC- Conjunto – conjuntoCE- Ordenação de conjuntos

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Um treino, prevendo reforço a respostas corretas eprocedimentos de correção de respostas incorretas, instalou as relaçõesAB, BD e BE, consideradas estratégicas para produzirem a emergênciade todas as outras relações. A relação AB (número ditado-numeral) foiensinada pelo procedimento de exclusão (ROSE; SOUZA; HANNA, 1996;ROSE et al., 1992; FERRARI; ROSE; McILVANE, 1993). A expectativa eraque desse treino emergisse a nomeação dos numerais (BD), o que nãoaconteceu. Por isso essa relação foi ensinada explicitamente. A relaçãoBE é a produção de seqüência, ou ordenação dos numerais. Reconhecere nomear esses estímulos são respostas indispensáveis, porém inúteissem que se saiba ordená-los. Por isso, a ordenação também foi ensinada.

Estando o sujeito produzindo seqüências com os numerais 1 a 9sem erros, e após ter ele alcançado o critério de 95% de acertos nanomeação daqueles numerais em extinção num bloco em que cadanumeral foi apresentado cinco vezes, conduziu-se um pós-teste dasrelações. Este foi idêntico ao pré-teste, exceto pela ordem em que astarefas foram apresentadas e pela não apresentação das tentativas quetestariam as relações treinadas (AB, BD e BE). O desempenho dosujeito nessa fase é expresso nas colunas da direita de cada par decolunas do gráfico da Figura 2. Exceto na relação CE, em todas asoutras a porcentagem de acertos foi de 89% ou superior.

Outro sujeito do estudo foi um menino de 4 anos e 10 meses,com quem o procedimento adotado foi idêntico ao que se acaba dedescrever, exceto pelos valores dos estímulos usados, que foram deum a cinco. Observe a Figura 3. As relações AC, AF, CD e CF nãoconstam no gráfico porque nelas houve 100% de acertos já no pré-teste. Também nessa fase, os escores foram de 60% na relação ABe inferiores a 50% nas relações BD e BE, que também não constamno gráfico. À semelhança do que se descreveu anteriormente, essastrês últimas relações foram explicitamente ensinadas. Tendo o sujeitoapresentado 100% de acertos em todas elas, procedeu-se a um pós-teste de todas as relações, menos as ensinadas e aquelas em que elejá desempenhava com perfeição. As colunas à direita em cada par

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na Figura 3 representam os desempenhos emergentes. Não houvegrandes diferenças do pré para o pós-teste nas relações BC, CC e CEsendo, contudo, marcantes as diferenças nas relações BF e CB.

Em ambos os casos descritos acima os sujeitos não se saíambem em tarefas que implicavam o uso de numerais, mas após o treinoestes foram integrados à rede de relações, isto é, passaram a fazer partedas classes de equivalência. Quanto à contagem, os sujeitos jáapresentavam habilidades razoavelmente bem desenvolvidas, o quepoderia explicar seu desempenho em algumas das tarefas do pré-testeque envolviam conjuntos. Contudo, na tarefa de produção de seqüênciasde conjuntos (CE), nota-se que não houve grande alteração do prépara o pós-teste, o que merece algumas considerações.

As dificuldades inerentes à tarefa podem ter desencorajado ossujeitos a contar. Ao início de cada tentativa, apresentam-se váriosconjuntos espalhados na parte inferior da tela. A ordenação era feita

Figura 3 – Desempenho de um menino de 4 anos e 10 meses no pré-teste (antes daintervenção) e no pós-teste das relações (depois da intervenção), excluídas as relaçõesdiretamente ensinadas no treino (AB, BD e BE) e aquelas em que houve 100% deacertos no pré-teste (AC, AF, CD e CF)

BC- Numeral – conjuntoBF- Numeral – contagem de subconjuntoCB- Conjunto – numeralCC- Conjunto – conjuntoCE- Produção de seqüências de conjuntos

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tocando-se cada conjunto com o dedo, o que provocava seudeslocamento para a parte superior da tela e seu posicionamento daesquerda para a direita. Conjuntos de até três ou quatro pontos nãooferecem grandes dificuldades para serem ordenados. Porém,quantidades superiores requerem contagem. Não somente isso. Osujeito deve contar os pontos de vários conjuntos ainda não colocadosem seqüência, comparando o valor de cada um com o do últimoconjunto da série dos que já foram ordenados. Os pontos sãorelativamente pequenos e ocupam uma área também pequena. Alémdisso, a contagem deve ser feita com um bastão, pois a tela é sensívelao toque e o dedo só deve ser usado para produzir o deslocamento dosconjuntos e indicar a finalização da tarefa. O controle de estímulos e acadeia de respostas são muito complexos. Produzir as seqüências semcontar pode ser um comportamento de esquiva. De qualquer modo, opior desempenho dos sujeitos foi exatamente na tarefa em que eleseximiram-se da contagem.

Conclusão

Para finalizar, faremos uma breve comparação entre os estudosde Prado (2001) e de Green (1993). Ambos possuem semelhançasimportantes, chegando mesmo a se complementarem. Algumasconclusões da autora serão discutidas.

Green (1993) empregou procedimentos surgidos há algumasdécadas para fins exclusivos de análise do desenvolvimento dehabilidades numéricas (por exemplo: Spradlin e colaboradores, 1974;Wang e colaboradores, 1971 e Wholwill, 1960), usando-os para fazerum pré-teste de relações com seus sujeitos. Estes não tinham habilidadesde contagem, não nomeavam quantidades (ou numerosidades), masemparelhavam numerais a nomes de números ditados.

Os dados obtidos no pré-teste auxiliaram G. Green a tomardecisões concernentes ao treino, em que nomes de números serviramcomo estímulos modelo tanto para a escolha de conjuntos como de

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numerais correspondentes. Posteriormente, verificou-se a emergênciadas relações numeral-conjunto e vice-versa e também a generalizaçãoda relação entre nomes de números ditados e conjuntos com figurasdiferentes das de treino. Os sujeitos apresentaram desempenhosatisfatório em todas essas relações, mesmo sem terem aprendido acontar.

Também em Prado (2001), procedimentos semelhantes aosanteriormente empregados em estudos do desenvolvimento dehabilidades numéricas foram adotados para pré-testar as habilidadesdos sujeitos. Verifiquei que as crianças já eram hábeis contadoras desdeseu ingresso na pesquisa, mas não se saíam tão bem com os numerais.Elas foram ensinadas a nomear e a ordenar os numerais. Posteriormente,exibiram relações entre numerais e conjuntos (entre outrosdesempenhos). Elas não usaram a contagem para produzir seqüênciasde conjuntos e, provavelmente por isso não apresentaram bomdesempenho nessa tarefa.

Green (1993) não ensinou a contagem aos seus sujeitos, masconseguiu que eles fossem mais longe do que os de Drachenberg (1973,1990), que também não ensinou aquela habilidade. Mas até onde elesiriam? Quais seriam as vantagens de uma aprendizagem de relaçõescondicionais das quais fizessem parte conjuntos, sem a aprendizagemde habilidades de contagem?

O paradigma de equivalência surgiu como modelo de relaçõesestímulo-estímulo e trouxe consigo uma reação contrária à idéia dalinguagem como elemento mediador do comportamento simbólico.Em Sidman (1994, 2000), contudo, a noção de classes de equivalêncianão se limita mais a estímulos, passando a incluir respostas. Estas podemser as mais diversas, inclusive verbais. A contagem inclui, entre outras,respostas verbais. Estas devem entrar na classe de equivalências queconstitui o conceito de número. Nos resultados do estudo descritoacima (PRADO, 2001), isso é sugerido pelo desempenho dos sujeitos nacontagem de subconjuntos sob controle de diversos estímulos (relaçõesAF, BF e CF).

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A contagem é uma habilidade tão presente e útil no dia-a-dia,que as vantagens que ela oferece parecem óbvias. Privar dessahabilidade crianças e jovens normais ou com qualquer tipo decomprometimento, significa impor-lhes dificuldades à suaaprendizagem de repertórios acadêmicos e à sua integração social.Como se sairia, por exemplo, um jovem que aprendeu uma série dediscriminações incluindo conjuntos, mas sem ter aprendido a contarquando, no seu trabalho, recebesse de seu chefe uma ordem (oral oupor escrito) para fazer 50 pilhas de 25 caixas?

Para finalizar, é possível afirmar que recursos teóricos emetodológicos da Análise do Comportamento constituem-se em meiosúteis para se estudar, de modo produtivo, habilidades numéricas.Discriminação (simples ou condicional), generalização e equivalênciade estímulos envolvendo estímulos numéricos são necessárias, masparecem não ser suficientes. A contagem aguarda por análises maisdetalhadas tanto em si mesma como no que diz respeito à sua integraçãona rede de relações que compõem o que poderíamos chamar de conceitode número. Mais estudos são necessários.

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Estudo sobre a aplicação da prova piagetiana deescoamento do líquido para avaliação da noção temporal

Inaiara Bartol Rodrigues *

Resumo: O presente artigo trata da avaliação da concepção de tempo dosujeito epistêmico. De acordo com a epistemologia genética, a construção danoção de tempo requer a coordenação das operações de ordem dosacontecimentos e de imbricação das durações. Nossos estudos demonstramque a prova do escoamento do líquido proposta por Piaget é um instrumentode avaliação da noção temporal muito adequado porque possibilita verificarempiricamente como o sujeito está coordenando suas ações mentais em relaçãoà concepção de tempo no decorrer do seu desenvolvimento cognitivo.

Palavras-chave: Noção de tempo. Desenvolvimento cognitivo. Epistemologiagenética.

Étude sur l'application de l'épreuve piagetienne de l'écoulement duliquide pour l'avaliation de la notion temporel

Résumé: Cet article a pour objet l’évaluation de la conception du temps dusujet épistémique. D’après l’épistémologie génétique, la construction de la

* Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista(Unesp) – campus de Marília. Docente da Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo daUniversidade de Marília (Unimar). Pedagoga do Centro de Estudos da Educação e da Saúde(CEES) da Unesp – campus de Marília. E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 37-59 2007

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notion de temps nécessite la coordination des opérations de l’ordre desévènements et de l’imbrication des durées. Notre étude a montré que l’épreuvede transvasement des liquides qui a été proposée par Piaget est un instrumentd’évaluation de la notion temporal bien adéquat parce qu’il permet de vérifierempiriquement comment le sujet coordonne ses actions mentales par rapportà la conception du temps pendant son développement cognitif.

Mots-clés: Notion de temps. Développement cognitif. Épistémologie génétique.

A noção temporal é reconhecida como uma das maissignificativas noções que o aluno deve adquirir para poder apropriar-sedos conhecimentos produzidos sobre a nossa realidade. Por esse motivo,vários profissionais de diversas áreas se preocupam em verificar oconhecimento que o sujeito possui sobre essa complexa noção. Aquestão que colocamos é de que forma podemos avaliar queconhecimento o sujeito possui sobre o tempo.

A maioria das orientações voltadas para a avaliação da noçãotemporal, principalmente na área de ensino da educação infantil e ensinofundamental, propõe verificar o conhecimento sobre noções deanterioridade e posterioridade entre acontecimentos e o conhecimentosobre as métricas temporais expressa basicamente nos conceitos demanhã, tarde, noite, hora, dia, mês, ano. Apesar desses conceitos fazeremparte do conhecimento temporal, eles não demonstram as operaçõeslógicas que o sujeito cognoscente necessita elaborar para compreenderde forma lógica a noção temporal.

Nossos estudos sobre esse tema tomam como referência a teoriapiagetiana que estuda a noção temporal e demonstra como a criançaconstrói esse conhecimento ao longo do seu desenvolvimento cognitivo.

A partir de seus pressupostos teóricos Piaget [19—] propõealgumas provas de avaliação da noção temporal, dentre elas a prova doescoamento do líquido. O ponto de vista que defendemos é que, dentretodas as provas propostas por Piaget, a prova do escoamento do líquidoavalia de forma conclusiva as operações mentais que o sujeito é capazde realizar no momento em que é avaliado sobre seu conhecimento emrelação ao tempo.

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39Estudo sobre a aplicação da prova piagetiana de escoamento do líquido para...

Para argumentar a favor dessa posição teórica, achamos necessárioprimeiro expor os pressupostos teóricos que Piaget defende em relaçãoà noção de tempo para em seguida relatar sobre a prova em si.

Sobre os pressupostos da teoria piagetiana em relação à noçãode tempo

O tempo é definido como coordenação de movimentos develocidades diferentes. Isto significa dizer que os objetos podemapresentar deslocamentos, ou seja, diferentes posições no espaçodenominadas de movimento. Quando há a coordenação entre osdeslocamentos desses diferentes objetos podemos abstrair o tempo.No entanto, se os deslocamentos desses objetos possuírem velocidadesiguais e constantes, a noção temporal se confunde com a noção espacial,permitindo que as operações espaciais estabeleçam as relaçõesnecessárias para a construção temporal. Sem poder contar com apercepção imediata e com puras relações espaciais, quando se trata demovimentos de velocidades diferentes, abstrair a noção de tempo requera coordenação dos co-deslocamentos (coordenação de dois ou maismovimentos).

A estreita relação entre tempo e velocidade leva a impossibilidadede dissociar as noções temporais do contexto físico e cinemático,caracterizando a noção temporal como um conhecimento físico. Porém,o fato de ser um conhecimento físico não significa para Piaget que anoção temporal é um conjunto de constatações perceptivas, pelocontrário, a noção temporal requer a capacidade cognitiva de coordenaresquemas de natureza operatória, ou seja, esquemas antecipatórios quedarão ao pensamento uma flexibilidade (reversibilidade do pensamento)para trabalhar com hipóteses a serem testadas mentalmente.

Mas quais são essas operações específicas para a constituição danoção temporal e quais as relações que essas operações estabelecementre si para resultar no tempo lógico?

As duas principais operações são: (1) a ordem (ou sucessão) dosacontecimentos (ou movimentos) e (2) a imbricação das durações.

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A ordem dos acontecimentos é a transformação espacial (fatodo objeto mudar de posição no espaço) provocada necessariamentepor uma relação causal, fazendo, por exemplo, com que depois do Avenha o B e depois do B venha o C (ou então que o amanhã se tornehoje e o hoje se torne ontem).

A imbricação das durações é a relação de inclusão hierárquicaque se estabelece entre as possíveis séries que o objeto compõe nodecorrer do seu deslocamento, ou seja, a noção de imbricação dasdurações em uma determinada seqüência significa que uma duraçãomenor está contida na duração maior. Por exemplo, na seqüência A ®B ® C ® D a duração AB está contida em AC, a duração AC estácontida na duração AD.

Ambas operações só ganham uma significação temporaloperatória quando o sujeito estabelece essas coordenações entre co-deslocamento (relação entre dois ou mais movimentos). Para que osujeito alcance essa coordenação necessária ele deverá compreenderque para cada estado sucessivo de um determinado movimento existeum único estado sucessivo correspondente no outro movimentosimultâneo e que há uma correspondência entre a relação de imbricaçãoformada pela série de estados sucessivos composta em cada um dosmovimentos envolvidos nessa operação mental.

Essa complexa abstração cognitiva não surge de repente, segundoPiaget, ela é construída de acordo com as coordenações cognitivas queo sujeito vai sendo capaz de elaborar em suas experiências sobre osmovimentos realizados pelos objetos da realidade, inclusive sobre seuspróprios movimentos.

Para explicar como ocorre o desenvolvimento da noçãotemporal em sujeitos epistêmicos, Piaget [19--] descreve ascaracterísticas do pensamento em relação à noção temporal de acordocom dois grandes períodos de desenvolvimento do pensamentocognitivo: período sensório-motor e período da representação. Nósiremos nos restringir ao período da representação nesse artigo devido aonosso objetivo que é tratar sobre a prova do escoamento do líquido.

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No período da representação, Piaget descreve os seguintes níveisdo desenvolvimento cognitivo temporal: nível do tempo intuitivo enível do tempo operatório.

Antes de descrevermos as características desses dois níveis doconhecimento temporal, iremos descrever a prova do escoamento dolíquido proposta por Piaget. Em seguida, iremos caracterizar os níveisde desenvolvimento cognitivo temporal, exemplificando pela análisedas etapas da prova do escoamento do líquido.

Sobre a prova de avaliação da noção temporal

Descreveremos a prova do escoamento do líquido da seguinteforma: primeiro apresentaremos o instrumento e material impressoutilizado, depois apresentaremos os critérios de análise dos resultadose por fim apresentaremos um comentário referente à análise feita emrelação aos resultados obtidos tendo como referência as duas operaçõesque resultam na aquisição da noção temporal.

A prova deve ser aplicada individualmente para cada sujeito. Deveser realizada em uma sala em boas condições sonoras e de iluminação eque possua uma mesa grande para o sujeito poder manipular o materialimpresso. A aplicação da prova dura em torno de 1h30.

Os materiais utilizados na prova do escoamento do líquido são:(1) instrumento do escoamento do líquido: esse instrumento foi

montado usando uma garrafa de forma arredondada que se afunila nogargalo e na qual foi feito um orifício no fundo, para entrada de água e

saída de ar (esse orifício permanece constantementeaberto). Uma segunda garrafa de igual volume da primeira,mas com um formato cilíndrico. As duas garrafas estãograduadas em oito níveis (riscos na garrafa) que possuemidêntica duração de escoamento da água de um nível parao outro. Uma torneira adaptada com pedaços de mangueiraune as duas garrafas, sendo que a garrafa arredondada(que será representada nos exemplos pelo símbolo Ÿ) está

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ligada à garrafa cilíndrica (que será representada nos exemplos pelosímbolo ¶) verticalmente pelos gargalos. Essa montagem se mantém navertical devido a um suporte de madeira que as sustentam e que permitea retirada das garrafas.

(2) ficha de resultados da prova de avaliação da noção temporalconforme modelo abaixo;

Nome:..........................................................................................................................................................data de nascimento..............................................................

FICHA DE RESULTADOS DA AVALIAÇÃO TEMPORAL - data: / /

1a etapa - marcar os níveis da água nas 8 fichas-registro (uma folha para cada parde nível). * ajudar na correção através de perguntas sugestivas, se for o caso.obs.:..............................................................................................................................................................

2a etapa - embaralhar as 8 fichas-registro e pedir que a criança serie da primeiraaté a última. * ajudar na correção através de perguntas sugestivas, se for o caso.obs.:..............................................................................................................................................................

3a etapa - recortar as fichas-registro, separando as garrafas, embaralhar e pedirque a criança serie todo o conjunto através de correspondência biunívoca. * ajudar na correção através de perguntas sugestivas, se for o caso.obs.:..............................................................................................................................................................

4a etapa - pedir que a criança faça a correspondência entre níveis das cópias-garrafa: o correspondente de:

I 3 é: II ...........................................................................................................I 1 é: II ..........................................................................................................I 2 é: II ...........................................................................................................I 8 é: II............................................................................................................I 7 é: II ..........................................................................................................II 5 é: I ...........................................................................................................II 8 é: I ...........................................................................................................II 2 é: I ...........................................................................................................II 1 é: I ............................................................................................................II 7 é: I ...........................................................................................................obs.:..............................................................................................................................................................

(Continua)

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43Estudo sobre a aplicação da prova piagetiana de escoamento do líquido para...

5a etapa - perguntar:quando a água estava em I 4 , a marca de II estava abaixo ou acima de II 6 :..........................................................................................................................quando a água estava em I 7 , a marca de II estava abaixo ou acima de II 5 :..........................................................................................................................quando a água estava em I 2 , a marca de II estava abaixo ou acima de II 4 :..........................................................................................................................quando a água estava em II 3 , a marca de I estava abaixo ou acima de I 4 :............................................................................................................................quando a água estava em II 7 , a marca de I estava abaixo ou acima de I 3 :............................................................................................................................obs.:..............................................................................................................................................................

6a etapa - Igualdade de dois tempos sincrônicos. Perguntar: a água gasta o mesmotempo para:descer de I 2 a I 3 e subir de II 2 a II 3 : ....................................................................descer de I 7 a I 8 e subir de II 7 a II 8 : ...................................................................subir de II 4 a II 5 e descer de I 4 a I 5 : ....................................................................subir de II 1 a II 3 e descer de I 1 a I 3 : ................................................................subir de II 3 a II 5 e descer de I 3 a I 5 : ................................................................obs.: .....................................................................................................................

7a etapa - Desigualdade entre parte e todo. Perguntar: a água gasta mais (variarcom menos) tempo para:descer de I 1 a I 2 ou para descer de I 1 a I 3 ...........................................................descer de I 5 a I 8 ou para descer de I 1 a I 2 : ..........................................................subir de II 1 a II 3 ou para subir de II 3 a II 4 : .........................................................subir de II 5 a II 7 ou para subir de II 2 a II 5 : .......................................................descer de I 3 a I 4 ou para subir de II 4 a II 6 ...........................................................subir de II 2 a II 3 ou para descer de I 1 a I 3 :..........................................................obs.:..............................................................................................................................................................

8a etapa - Igualdade e desigualdade de duas durações sucessivas. Perguntar: épreciso o mesmo tempo ou não para a água:descer de I 6 a I 7 e de I 7 a I 8 : .....................................................................descer de I 2 a I 4 e de I 4 a I 6 : ...............................................................................subir de II 1 a II 2 e de II 2 a II 3 : ..............................................................................subir de II 3 a II 5 e de II 4 a II 6 : ............................................................................obs.:..............................................................................................................................................................

OBSERVAÇÕES GERAIS..............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

(Conclusão)

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(3) oito fichas-registro para marcação dos níveis da água. Éutilizada a mesma ficha para cada marcação realizada a cada escoamentofeito. Essas fichas serão usadas nas etapas 1 , 2 e 3;

(4) dez fichas para marcação das respostas da 4a etapa;

(5) cinco fichas para marcação das respostas da 5a etapa;

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(6) outros materiais utilizados: funil e jarra para auxiliar noenchimento da garrafa Ÿ, caneta hidrocor para marcar os níveis deágua, régua ou tesoura para recortar as fichas-registro utilizadas nastrês primeiras etapas da prova.

A aplicação da prova deve ocorrer da seguinte forma: convidamoso aluno para fazer uma experiência. Apresentamos o instrumento epedimos que nos ajude na preparação da prova (encher a garrafa Ÿ).Então, damos início à prova que contém nove etapas:

1a etapa: a criança irá observar o escoamento da água da garrafaŸ para a garrafa ¶. Esse escoamento é interrompido a cada nível paraque a criança marque na ficha-registro como se encontra a água emambas as garrafas (a criança passa um traço com caneta hidrocor naficha registro sobre o risco que marca o nível em que a água se encontranas duas garrafas). Para cada novo escoamento, a criança recebe umanova ficha-registro que deverá ser marcada. No final, teremos então,oito fichas marcadas. As observações da ação da criança são anotadasna ficha de resultados da prova.

2a etapa: as fichas-registro são embaralhadas pelo orientador eentregues à criança para que ela procure qual foi a primeira ficha marcadae em seguida, qual foi a última. A primeira é colocada à esquerda e aúltima à direita com grande distância entre elas para que a criança procurena seqüência, as fichas que foram marcadas sucessivamente após aprimeira. Se a criança errar a seqüência de colocação de qualquer umadas fichas, são feitas perguntas sugestivas que provoquem uma correçãoempírica. Um lembrete, o instrumento não é retirado da mesa detrabalho, porém o escoamento da água não se faz mais presente.

3a etapa: as oito fichas-registro são recortadas de modo a separaras duas garrafas. São embaralhadas, entregues à criança e pede-se queela monte o quebra-cabeça, ou seja, que ache os pares de garrafas eremonte a seqüência das fichas conforme foi observado no escoamentoda água. Se a criança errar as combinações entre as duas garrafas e/oua seqüência dessas combinações, ela é estimulada a fazer correçõesatravés de perguntas sugestivas.

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4a etapa: é apresentada cada uma das dez fichas-registroreferentes a essa quarta etapa, uma por vez e na ordem em que seencontram na ficha de resultados. Pede-se à criança que marque naoutra garrafa, o nível correspondente em que a água se encontrava nagarrafa oposta a que está assinalada na ficha. Depois de marcado, pede-se que explique porque marcou ali (ex: Como você fez para saber ondemarcar? Por que você acha que é esse aqui e não outro? Você marcouaqui, o João marcou ali, quem está certo? Por que?).

5a etapa: é apresentada cada uma das cinco fichas-registroreferentes a essa quinta etapa, uma por vez e na ordem em que seencontram na ficha de resultados. Essas fichas têm marcado um nívelnuma determinada garrafa e outro nível não-correspondente na outra.Pergunta-se à criança: quando a água estava parada aqui (x, onde x é onível de uma das garrafas), na outra garrafa ela estava para baixo oupara cima desse aqui (y, onde y é o nível não correspondente da outragarrafa). Anota-se a resposta e pergunta-se: onde ela estava, então?Pede-se para a criança marcar a correspondência correta e explicar.

6a etapa: verificar se a criança compreende a igualdade dasdurações sincrônicas, perguntando se a água gasta ou não o mesmotempo para descer de x a y na garrafa ¶ (durações correspondentes).Pedir para ela explicar sua resposta. As durações que são comparadasna 6a etapa estão relacionadas na ficha de resultados da prova.

7a etapa: verificar se a criança compreende a imbricação dasdurações (relações de parte e todo). Pergunta-se à criança: a água gastamais tempo, menos tempo ou é igual para ir de x a y ou para ir de x a z(sendo a seqüência x, y, z). Observação: as duas durações que serãocomparadas podem pertencer à mesma garrafa ou a garrafas diferentes.Pedir para a criança explicar sua resposta.

8a etapa: verificar se a criança compreende a igualdade oudesigualdade, conforme o caso, das durações sucessivas. Pergunta-se àcriança se é preciso o mesmo tempo ou não para a água descer de x a y,ou de y a z (ou w), sendo a seqüência x, y, z, w. Pedir para a criançaexplicar sua resposta.

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47Estudo sobre a aplicação da prova piagetiana de escoamento do líquido para...

Os critérios de classificação das respostas estão baseados naseguinte análise: a prova de avaliação da noção temporal possui oitoetapas, descritas anteriormente, que avaliam a constituição das duasprincipais operações que a criança deverá coordenar para constituir talnoção. Dessas oito etapas, as 2a, 3a, 4a e 5a etapas verificam a constituiçãoda operação de ordenar os acontecimentos, enquanto que as 6a, 7a, 8a

etapas verificam a constituição da operação de imbricar as durações.As coordenações entre as duas operações mencionadas acimadeterminarão o nível de desenvolvimento em que a criança se encontra.Por sua vez, essas operações também serão classificadas em níveis,segundo sua construção, que denominamos de sub-níveis paradiferenciá-los dos níveis mais gerais.

Os sub-níveis referentes à operação de ordem dosacontecimentos são: (1) Sub-nível I A: as crianças classificadas nessenível encontram-se incapazes de seriar as fichas-registro não recortadas;(2) Sub-nível I B: as crianças são capazes de seriar as fichas-registronão recortadas somente por tentativas empíricas e não por relações deconjunto; (3) Sub-nível II A: as crianças seriam as fichas-registro nãorecortadas por coordenação de conjunto, mas não seriam as fichasrecortadas (não realizam a dupla seriação); (4) Sub-nível IIB: as criançassão capazes de seriar as fichas recortadas somente por tentativasempíricas e não por relações de conjunto; (5) Sub-nível III: as criançasobtém êxito na seriação das fichas recortadas devido a capacidade deco-seriação operatória.

Os sub-níveis referentes à operação de imbricação das duraçõessão: (1) Sub-nível I: a criança é incapaz de igualar as durações sincrônicase é incapaz de compreender a imbricação das durações parciais nasdurações totais (tempo e velocidade são diretamente proporcionais);(2) Sub-nível II: a criança compreende a relação inversa entre asgrandezas tempo e velocidade, mas não é capaz de compreender aigualação e imbricação das durações em co-deslocamentos (sócompreende quando se trata de um único movimento); (3) Sub-nívelIII: a criança é capaz de compreender a igualação das durações

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sincrônicas e a imbricação das durações diferentes devido oagrupamento de conjunto.

Os níveis do desenvolvimento da noção temporal no períodorepresentativo são obtidos de acordo com os resultados analisados nosdois agrupamentos das etapas da prova do escoamento do líquido, deacordo com as operações temporais. São eles: (1) Nível pré-operatório:a criança se encontra no sub-nível I em pelo menos uma das duasoperações (sucessão dos acontecimentos e imbricação das durações);(2) Nível Intuitivo: a criança se encontra no sub-nível II nas duasoperações envolvidas ou ela se encontra no sub-nível II em uma dasoperações e no sub-nível III na outra operação; (3) Nível Operatório: acriança se encontra no sub-nível III nas duas operações envolvidas.

Esses critérios de análise dos resultados estão calcados nospressupostos da teoria piagetiana que considera as relações estabelecidasentre as operações de ordem dos acontecimentos e imbricações dasdurações que o sujeito é capaz de coordenar ao longo do seudesenvolvimento cognitivo.

Trataremos a seguir dessas relações para demonstrar como elasse apresentam nos resultados obtidos na prova do escoamento dolíquido.

Quanto à operação de ordem dos acontecimentos, no sub-nívelIA, a criança é incapaz de seriar sozinha as fichas-registro querepresentam os oito níveis de estados sucessivos dos dois movimentosda água (subida e descida) representados em um só conjunto. Estaincapacidade de realizar a 2a etapa da prova significa que apesar de acriança compreender a ordem de sucessão do escoamento da água nomomento em que ele está acontecendo (através da percepção direta),pois ela foi capaz de marcar em seqüência correta os níveis da água, eladeixa de compreender quando o escoamento se torna representadoporque, nesse último caso, os movimentos percebidos se encontramrepresentados por relações espaciais estáticas (ordem de níveis imóveis)e para reconstituir a ordem de sucessão desses estados a criança teráque estabelecer as relações de “antes” e “depois” entre todos eles

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(seqüência linear e global) através da dedução (coordenação deoperações) e não da simples percepção que permitiu a realização daseriação prática através do contato contínuo com o próprio movimento.

No sub-nível IB, a criança não consegue no início seriar as fichasregistro, mas através de tentativas empíricas, ela corrige corretamente“todo” ou “parte” do conjunto.

O progresso atingido pelas crianças nesse sub-nível I é acapacidade de marcar corretamente nas fichas-registro os estadossucessivos que delimitam o movimento conjunto de subida e descidada água, isto porque o sujeito compõe uma só ação de conjunto quedispõe em seqüência cada ação particular de marcar a folha-registro.Uma vez que o movimento já tenha acontecido, a dificuldade torna-semuito maior porque a criança terá que evocar o movimento de todoconjunto e então representá-lo através da seqüência dos estados.

No entanto, Piaget [19--] nos alerta que é uma tarefa complexapara a criança compreender a sucessão de estados que ocorre nomovimento, tanto no momento do escoamento quanto na suaevocação. Ele diz (s.d., p. 24) diz que “uma sucessão de percepçõesnão constitui, por si mesma, uma percepção da sucessão; nem umacompreensão da sucessão”. Isto significa que a intuição perceptivanão é suficiente para reconstituir em pensamento todo processo deescoamento da água.

No sub-nível IIA, as fichas-registro são recortadas, separandoas duas garrafas, são embaralhadas e pede-se que a criança monte aseqüência de todo conjunto, correspondendo os pares de garrafas dodesenho. As crianças desse nível são capazes de seriar as fichas-registronão-recortadas, mas são incapazes de seriar as fichas-registro recortadas.

O resultado negativo da 3a etapa da prova comprova a dificuldadeda criança em estabelecer uma correspondência biunívoca entre osestados dos dois movimentos; a criança apenas justapõe uma seqüênciade pares formada ao acaso. O interessante é que as crianças conseguemseriar separadamente os níveis da garrafa Ÿ e ¶, pois é isto que garanteo acerto imediato da 2a etapa.

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Deparamo-nos frente a duas questões quando se trata do sub-nível II: (1) Por que a criança é capaz de evocar a ordenação dos estadossucessivos de um único movimento ou de dois e até mais movimentosde velocidades constantes e idênticas? (2) Por que a criança não é capazde evocar a ordenação dos estados sucessivos de dois ou maismovimentos de velocidades diferentes como é o caso do instrumentoutilizado na prova de avaliação?

Respondendo à primeira questão, nos dois casos podem constatarque a ordem dos acontecimentos (relações temporais) não se diferenciada ordem das posições (relações espaciais). Basta à criança seriarmentalmente as posições espaciais (alturas) que determinam os estadosda água no decorrer do escoamento e compor o movimento enquantoconjunto para que a coordenação das deslocações (operações puramenteespaciais) seja suficiente para intuir a noção temporal. Vemos aíconstituído o “tempo intuitivo” que se encontra limitado às relaçõesestabelecidas pela “intuição articulada”, ou seja, pela coordenação deoperações espaciais (seriar as alturas) e uma intuição cinemática (evocaro conjunto de um movimento único). Vemos também, o êxitoconquistado pela criança nesse sub-nível.

Respondendo a segunda questão, quando se trata de ordenar asposições sucessivas de dois móveis dotados de velocidades diferentes,não basta seriar todas as locações dos dois móveis em separado; énecessário coordenar as velocidades dos movimentos nas duas garrafaspara compreender as relações de sucessão propriamente temporal. Éjustamente essa complexa operação de co-locação, essa correspondênciatermo a termo na ordenação dos dois movimentos (co-seriação) quegarante a construção do tempo operatório.

A falta dessa coordenação operatória é a causa da limitação noreferido sub-nível. A criança não consegue acertar a correspondênciaserial porque os níveis das duas garrafas não mais se correspondemespacialmente devido à desigualdade das velocidades, o que desfavorecea construção de relações figurais que por si só, bastam para areconstituição de uma seriação simples, mas não para uma co-seriação.

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E também porque a criança não considera a desigualdade do formato evolume das garrafas para poder compensar a elevação rápida em ¶ edescida mais lenta em Ÿ. Assim, a criança constrói as relações desimultaneidade apoiando-se no valor absoluto dos níveis, sem levar emconta a diferença de velocidade e a direção geral dos movimentos (acriança não considera a inversão dos movimentos nas duas garrafas).

O que distingue esse sub-nível é justamente a permanência dopensamento intuitivo que carrega “uma viscosidade irreversível dopensamento”, impedindo que sejam feitas tentativas mentais ouempíricas de todas as ordens de sucessão possíveis até se chegar à únicaque não contradiz o sistema (que garante a conexão causal).

No sub-nível IIB, a criança consegue realizar a co-seriação porintermédio de tentativas empíricas (sem antecipar mentalmente o queirá acontecer de fato) porque seu pensamento ganha uma certaflexibilidade, mas não o suficiente para se depreender dos aspectosfigurativos e tornar-se dedutivo. Não se apresentam dúvidas a esserespeito quando se verifica no comportamento da criança uma incertezaquanto ao conjunto seriado, duvidando até mesmo das correspondênciasque estabeleceu, caso seja questionada. Quando solicitada a buscar umanova tentativa, a simultaneidade é constituída ao acaso, sem resgatarqualquer tipo de lógica que tenha usado na primeira tentativa de seriação.

No sub-nível III, a criança finalmente consegue seriar as fichasrecortadas por agrupamento operatório. Isto significa que a criançasabe antecipar a dupla seriação, apoiada na simultaneidade dos níveis(cada nível de um dos movimentos) porque ela compreende de antemãoque os movimentos possuem uma dependência recíproca (a descida deágua em Ÿ implica necessariamente a subida em ¶). A idéia dedependência recíproca entre os movimentos é produto das relações decausalidade que a criança está construindo paralelamente às relaçõestemporais. Dessa forma, quaisquer movimentos correlativos compõemum “todo” (um sistema) porque são regidos por leis comuns ereconstituir corretamente os co-deslocamentos requer a reversibilidadedo pensamento que permite testar as hipóteses de maneira sistemáticaaté reconstituir mentalmente a co-seriação correta.

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No que se refere à operação de imbricação das durações, nosub-nível I, da mesma forma que na etapa IA da operação de ordemdos acontecimentos, o progresso da criança está em só compreender aduração em movimentos isolados e com velocidades iguais e constantesporque nesse caso a intuição da duração está indistinta da distânciapercorrida pelo móvel (ex.: dois carros que partem do mesmo ponto,aquele que for mais longe terá levado mais tempo ® mais longe = maistempo) ou do trabalho produzido (ex.: duas pessoas começam aomesmo tempo a escrever números, aquela que escrever mais terá levadomais tempo ® mais resultado = mais tempo). No caso de dois móveisde velocidades diferentes, trata-se de comparar a duração pura, semrelação intrínseca com as relações espaciais e com relação inversa entretempo e velocidade. Relações que as crianças desse nível não são capazesde coordenar porque o seu pensamento, apesar de ter entrado na esferada representação, apenas realiza “experiências mentais” apoiadas napercepção sensório-motora (ex: no caso da prova utilizada na avaliação,a água para subir demora mais tempo porque o esforço na subida émaior que na descida, então a distância é avaliada como mais longa).As relações que elas constroem são: mais rápido = mais tempo ou maislonge = mais tempo.

Se o limite do nível precedente ao sub-nível II é o fato de acriança não conseguir comparar durações de dois movimentos develocidades diferentes porque estabelece relações incorretas entre tempoe velocidade (não inversão), veremos que o progresso desse sub-nível éjustamente superar parcialmente essa incorreção. Parcialmente porqueveremos que o progresso desse sub-nível é de inverter a relação entretempo e velocidade, mas sem alcançar as coordenações necessárias paracomparar corretamente as durações entre movimentos de velocidadesdiferentes, sendo que as principais relações no que se refere à duraçãosão: igualar as durações sincrônicas, imbricar as durações sucessivas emedir as durações.

Para Piaget, a compreensão de que o tempo é inversamenteproporcional à velocidade, está relacionada com a avaliação que a criança

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faz entre o resultado do movimento executado pelo móvel ou oresultado da ação (único fato considerado pelas crianças do nívelanterior) e o processo de execução do movimento (ou do fenômeno).Retomando o exemplo dos carros: não basta mais saber até que distânciaeles andaram (ponto de chegada), é preciso considerar como andaram(velocidade).

Piaget faz a seguinte distinção entre os dois sub-níveis: (1) paraas crianças do sub-nível I, quem trabalha mais rápido, produz mais;quem produz mais, trabalha mais tempo (> V = > tr = > T, vemos quesão relações que não formam um sistema coerente com a realidadefísica); (2) para as crianças do sub-nível II, quem trabalha lentamente,tem que trabalhar mais para compensar, o que significa trabalhar maistempo (< V = > tr = > T, vemos que essas relações já requerem uminício de coordenação, mas ainda dependem da percepção).

Constatamos um avanço de um sub-nível para outro, graças àsregulações intuitivas que se fizeram presentes, mas que ainda não sãosuficientes para crer na igualação das durações sincrônicas porque aoperceber que o movimento da água de uma das garrafas escoa comvelocidade superior ao movimento da outra, conclui-se que a primeiragarrafa gasta menos tempo para executar seu movimento do que aoutra. Portanto, a noção temporal encontra-se dependente da velocidade.E mais, a criança conclui que cada movimento dotado de uma determinadavelocidade possui um tempo próprio e a igualação só pode ser comparadaem movimentos que possuam velocidades iguais.

A construção de um tempo homogêneo, para as crianças dessesub-nível, fica limitada a bem poucas situações que não expressam osdados da realidade em geral porque ficam restritas aos fenômenos queimplicam velocidade constante no andamento do universo.Conseqüentemente, a operação de imbricações das durações que garantea continuidade do tempo homogêneo, também se encontra intuitivaporque a criança só compreende a imbricação da parte no todo quandose trata do mesmo plano (mesma garrafa). Quando solicitada a compararum tempo parcial com um tempo total pertencentes a movimentos

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diferentes com velocidades diferentes (ex.: I1 a I2 de Ÿ e II1 a II3 de ¶)a criança não compreende que a parte está incluída no todo, portanto,o todo é maior que a parte e a parte é menor que o todo. Ela só chegaa essa relação quando parte e todo pertencem a um movimento únicoonde o tempo total significa um prolongamento espacial do tempoparcial (= 2 partes sucessivas).

Essa incompreensão se justifica pelo fato de que a operação deimbricar as durações exige um pensamento reversível e umacoordenação com as operações de sucessão e simultaneidade que, porsua vez, não são ainda operatórias.

Nesse sub-nível, o pensamento não adquiriu a reversibilidadeque resultará na compreensão da imbricação das durações. Ele sóprocede por “participação” (relações de parte com parte), o que resultaem coordenações parciais ou até mesmo inexistentes. Ou a duraçãofica indiferenciada da ordem de sucessão ou a coordenação entreduração e sucessão se centra apenas na correspondência de um dospontos limites das durações comparadas (ou no ponto de partida ouno ponto de chegada).

Portanto, a operação de imbricação das durações consiste numagrupamento, como veremos no sub-nível III, quando se comparamduas durações em movimentos de velocidades diferentes, estamosconstruindo um agrupamento das durações qualitativas.

Quando se estabelecem relações entre as durações sucessivas deum único movimento, é possível construir um agrupamento dasdurações métricas se houver comparação das durações por meio deuma unidade de tempo que poderá ser deslocada para o passado e parao futuro.

No sub-nível III, o pensamento se torna reversível, conseguindotrilhar mentalmente nos dois sentidos e com simultaneidade odeslocamento do líquido nas duas garrafas (relações de co-deslocamento). A reversibilidade resulta na compreensão da igualaçãodas durações sincrônicas, na imbricação das durações e nainterdependência com a ordem dos acontecimentos, onde cada uma

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dessas operações constitui um agrupamento: a co-seriação constituium agrupamento multiplicativo de relações assimétricas, a imbricaçãodas durações constitui um agrupamento aditivo de partição e a igualaçãodas durações constitui um agrupamento multiplicativo de relaçõesassimétricas negativas.

Em síntese, vimos que o desenvolvimento da noção de tempoexemplifica a passagem de um pensamento egocêntrico e irreversívelpara um pensamento agrupado e reversível, com todos os intermediários(progresso das intuições articuladas).

Sobre os níveis de desenvolvimento da noção temporal no períododa representação

No início do período da representação, as duas operaçõesfundamentais para a aquisição da noção de tempo, ordem dosacontecimentos e imbricação das durações, encontram-seindiferenciadas da ordem espacial porque a criança está presa a umaintuição egocêntrica que se centra nas relações espaciais,desconsiderando as velocidades dos movimentos e confundindo asucessão temporal (antes e depois) com a sucessão espacial (ponto A eB no espaço), por exemplo, quando perguntamos na 6a etapa da provade avaliação da noção temporal se a água gasta mais tempo para descerde I7 a I8 ou para subir de II7 a II8, a criança responde que I7 a I8gasta mais porque é maior, o que significa que de I7 a I8 o espaçopercorrido é maior. Ou quando perguntamos na 5a etapa se quando aágua estava em I4, o nível de II estava abaixo ou acima de II6, a criançaresponde aleatoriamente ou realiza a correspondência sem inverter omovimento em ¶ ou ainda, ela não considera o nível II1 como pontode partida da subida da água e conta a partir do nível que serve dereferência, ou seja, II6. A criança não é capaz de reconstituir os níveisem Ÿ para os corresponder com os níveis de ¶ e encontrar a soluçãocorreta.

O desenvolvimento será no sentido de superar essa indiferenciaçãoe é nisso que consiste o tempo intuitivo. Graças às regulações intuitivas

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(relações parciais e fragmentárias que o sujeito é capaz de compor) quesão análogas às regulações perceptivas do período sensório-motor, asrelações de natureza temporal começam a se diferenciar das relaçõesespaciais. Isto significa que à medida que a criança ainda não é capaz deconsiderar todos os aspectos do fenômeno, ela privilegia umdeterminado aspecto (ex.: o comprimento entre os níveis das garrafas),subestimando os outros (ex.: velocidade dos movimentos ou quantidadede água escoada). A partir do momento que ela for capaz de alternaressa centração privilegiada com outros aspectos do fenômeno, ela realizaas regulações intuitivas uma vez que uma centração pode anular umaoutra (ex.: o comprimento entre um nível e outro pode ser compensadopela largura das garrafas ou a velocidade maior em ¶ pode sercompensada pelo espaço maior entre seus níveis) ou então, umacentração pode complementar uma outra (ex.: a quantidade de águaescoada entre os níveis sucessivos e a distância entre eles). Dessa forma,a criança vai integrando alguns aspectos do fenômeno a ser analisado eestabelecendo relações entre esses aspectos. Quando o fenômeno a seranalisado diz respeito a co-deslocamentos, as regulações representativasresultam na integração de alguns estados e durações dos movimentosenvolvidos. Mas, a criança não é capaz de coordenar todas as posiçõese deslocamentos dos móveis em questão. Por esse motivo, as operaçõesfundamentais não se encontram coordenadas.

Uma vez que o pensamento ganha flexibilidade, as relações queo sujeito estabeleceu no decorrer do processo de descentraçãorepresentativa permitem antecipações e reconstituições tambémreversíveis que levarão à generalização dessas relações para outrassituações (ex.: quando a criança compreende a igualação de duraçõessincrônicas, como por exemplo, I1 a I2 e II1 a II2, ela conseguirágeneralizar essa compreensão para comparar durações que se encontramimbricadas, como por exemplo, I1 a I2 e II1 a II3). Esse processo queenvolve descentração, reversibilidade e generalização culmina noagrupamento das operações de sucessão e imbricação das durações econseqüentemente no tempo operatório.

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Portanto, a principal característica do tempo operatório éconstituir um sistema de conjunto, na qual os agrupamentos de ordemdos acontecimentos e imbricação das durações se complementam aponto de haver a generalização das relações de um agrupamento parao outro, podendo a sucessão ser deduzida da imbricação ou ao contrário.

A distinção que permanece entre um agrupamento e outroimpede que eles se transformem num único agrupamento quando setrata do tempo qualitativo. Os dois agrupamentos se diferenciam porqueo agrupamento de imbricação das durações possui a propriedade deser comutativo (ex.: sendo as durações A e A’ imbricadas na duraçãomaior B, temos A + A’ = B assim como, A’ + A = B), enquanto que oagrupamento de sucessão dos acontecimentos não possui essapropriedade (ex.: sendo o movimento determinado pelos estadossucessivos A ® B ® C não se pode conservá-lo quando se trata daordem B ® C ® A, porque o movimento real do universo é irreversível).

Apesar das durações qualitativas possuírem a propriedadecomutativa, elas são menos móveis que as durações quantitativas quecaracterizam o tempo métrico porque os intervalos que constituem as“partes” só são relacionados quantitativamente com o intervalo queconstitui o “todo” (ex.: A < B e B > A’), mas ainda não se estabeleceramas relações entre as partes (ex.: A em relação a A’ é igual, maior oumenor?). A noção de quantidade extensiva temporal está relacionada ànoção de velocidade constante e duração sucessiva.

Podemos concluir que para a construção do tempo quantitativoou métrico é necessário que o sujeito construa a priori o tempoqualitativo.

O tempo métrico tem a finalidade de superar esses impassesuma vez que o movimento do mundo externo não é reversível, maspode ser reproduzido representativamente com as mesmascaracterísticas de espaço e velocidade (é o caso dos aparelhos de mediçãodo tempo – ampulhetas, relógios, etc...), garantindo uma terceiracaracterística do tempo, a uniformidade (a homogeneidade e continuidadejá foram destacadas anteriormente). No entanto, Piaget (19--, p. 315-

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316) diz que “as operações métricas e extensivas se constituem tãologo se complete o agrupamento das operações qualitativas ouintensivas, sendo a uniformidade da duração praticamente reconhecidaem correlação imediata com a sua homogeneidade e a sua continuidade”.

O tempo métrico é o arremate do desenvolvimento da noçãotemporal por agrupar as operações fundamentais.

Considerações finais

Considerando a complexidade no processo de conceituação danoção temporal, torna-se necessário adotarmos uma abordagemepistemológica que ofereça um aporte teórico para a conduta de avaliaro conhecimento que determinado sujeito possui sobre o tempo.Acreditamos que a teoria piagetiana não só argumenta e demonstracomo o sujeito adquire esse conhecimento, como também propõe uminstrumento de avaliação coerente com esses pressupostosepistemológicos.

A teoria piagetiana argumenta que a aquisição da noção temporalnão requer exclusivamente uma capacidade perceptiva, mas exige,prioritariamente, a capacidade cognitiva de estabelecer relações mentaislógicas que resultam no conceito científico do objeto de conhecimento.

No caso da noção temporal, as relações necessárias são produtoda capacidade do sujeito em constituir as operações mentais de ordemdos acontecimentos e imbricação das durações e ser capaz de coordenarlogicamente essas operações. Porém, no que se refere à possibilidadede se verificar como o sujeito está constituindo essa capacidadecognitiva, encontramos inúmeras dificuldades que estão relacionadas àmaneira como podemos avaliar com uma certa objetividade esseprocesso mental nos indivíduos.

Nossos estudos indicam que a prova do escoamento do líquidoé um instrumento que atende esse propósito porque instiga o sujeito aagir mentalmente em relação à seqüência de estados da água no decorrerdo seu deslocamento de uma garrafa a outra, bem como agir

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mentalmente em relação às noções de imbricação que ocorrem entreas seqüências de níveis no deslocamento da água e coordenar essasações mentais.

Outro aspecto muito significativo da prova é que uma etapa oumesmo um item dentro de uma certa etapa da prova contém um graude exigência que confronta possíveis incoerências lógicas do pensamentodo sujeito. As terceira, quinta e sétima etapas cumprem esse papel deforma muito adequada, quase isentando o pesquisador de propiciarpor meio de perguntas um conflito cognitivo no sujeito, como propõeo método clínico piagetiano.

Apesar de existirem outras provas de avaliação da noção temporalque verificam a capacidade de elaboração mental do sujeito em relaçãoàs operações que envolvem o tempo como objeto de conhecimento,compreendemos que a prova do escoamento do líquido é a maiscompleta e os resultados obtidos pelas respostas e ações do sujeito, nodecorrer da aplicação da prova de forma adequada, fornecem dadosobjetivos do conceito que o sujeito possui em relação ao temporepresentativo.

Referências bibliográficas

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Entre os legados de uma compreensão do Ser àscontribuições da Psicologia Educacional para

formação do Ser1

Marcelo Ribeiro *

Resumo: O artigo aborda, num primeiro momento, as possíveis influênciasde duas correntes filosóficas pré-socráticas para a psicologia da educação,sobretudo na maneira de conceber o Ser, ora como permanente, ora comotransitório. Num segundo momento, uma perspectiva existencialista éprivilegiada, tendo como legado a visão de Ser transitório e em movimento,possibilitando prováveis contribuições da psicologia da educação paraformação do ser.

Palavras-chave: Filosofia pré-socrática. Formação do Ser. Psicologia daEducação.

Entre les héritages pour comprendre L’être et les contributionsde la Psychologie Éducationnelle à la formation de L’être

Résumé: L’article aborde dans un premier moment de possibles influencesde deux approches philosophiques présocratiques dans la psychologie de

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 61-73 2007

1 Texto apresentado no “I Encontro de Psicologia Educacional da Uesb”. Encontro realizadoem Jequié – Bahia no período de 04 a 06 de julho de 2006.* Psicólogo, mestre em educação, doutorando em educação pela Universidade do Quebec emChicoutimi (UQAC). Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) –Campus Petrolina, PE. E-mail: [email protected]

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l’éducation, surtout à partir de la manière de concevoir l’Être des fois commepermanent d’autres fois comme transitoire. Dans un deuxième moment, uneperspective existentialiste est privilégiée, ce qui nous a laissé en héritage laperception de l’homme en tant qu’un être transitoire et en mouvement, ce quia rendu possible de probables contributions à la psychologie de l’éducationsurtout en ce qui concerne la formation de l’être.

Mots-clés: Philosophie pré-socratique. Formation de l’Être. Psychologie del’Éducation.

Ao sermos convidados para refletir acerca da formação do sernum encontro de Psicologia Educacional, nos veio, quase imediatamente,a questão de como essa disciplina poderia contribuir para a formação doser e como uma ontologia poderia influenciá-la. Aqui, iremos distinguiro Ser em maiúsculo, num sentido ontológico, e a formação do ser, emminúsculo, num sentido de educar o homem, de humanizá-lo.

Entretanto, um problema se coloca antes mesmo de pensarmosessas relações. O problema de início é definir o SER em nossas reflexões.Ora, este problema é de uma ordem incomensurável e que, acreditamos,é até hoje algo em aberto para a humanidade.

Ao mesmo tempo em que a tarefa se apresenta quase impossívelpela limitação do nosso fôlego, ela nos instiga e nos desafia a lançaralgumas idéias, sobretudo porque, nos dias atuais, há uma necessidadede fundamentar a educação e suas disciplinas, de pensar radicalmente aposição que elas ocupam no mundo e de ir até as raízes dos seus maisaltos dilemas.

Diante desse preâmbulo, o convite do presente texto forçou-nos a uma produção. Sentimo-nos agora mais à vontade para dizer quepensar a questão da formação do ser é pensar para além do problemado desempenho do aluno, é pensar para além da instituição escola, épensar para além das inúmeras discussões que rondam as disciplinas,currículos e didáticas da educação. Pensar a questão da formação doser é considerar todos esses itens em circularidades, nas suasespecificidades e contextualidades, mas, ao mesmo tempo, é realçar ascompreensões possíveis dos projetos, projeções e ritmos que se perfilam

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63Entre os legados de uma compreensão do ser às contribuições da psicologia educacional ...

em todas as idiossincrasias, que podem compor o amálgama daquiloque se chama, atualmente, EDUCAÇÃO.

Nesse sentido, a nossa démarche dar-se-á por uma introdução aduas clássicas posições filosóficas, que estabelecem diálogos sobre aquestão do Ser. Em seguida, buscaremos trazer algumas compreensõesda psicologia da educação segundo as influências dessas duas posiçõesfilosóficas. Depois, apresentaremos também algumas apropriaçõesexistencialistas acerca do problema do Ser em confronto com algunsdilemas atuais da educação. Ao final, traremos o problema de algunsparadigmas educacionais como possíveis contribuições da psicologiaeducacional para formação do ser.

Duas posições clássicas a respeito do Ser

Tanto Heráclito quanto Parmênides, filósofos pré-socráticos queestão nas bases do pensamento ocidental, refletiram sobre a questão doSer. Percorrendo caminhos distintos, cada um, ao seu modo, legourespostas às suas inquietações e, ainda hoje, às da humanidade.

Em Heráclito, as coisas se movem e nada permanece imóvel. Anatureza é por excelência transformadora, mutante e recriadora. Não éum novo agora e um novo depois, não é uma mudança agora e outradaqui a pouco. Para este pensador pré-socrático, a mudança seriaconstante e ininterrupta (SOUZA, 2000).

Essas mudanças constantes seriam então concebidas com basena idéia de um mundo e de um Ser que se configurariam pelamultiplicidade. As transformações na natureza do Ser seriam explosõesde formas e sentidos próprios da vida.

Além da valorização da multiplicidade, Heráclito irá propor umasuperação entre Ser e não-Ser. E é para esta superação da dualidade queele parece querer chamar a atenção. Para Heráclito, não haveria divisãoentre Ser e não-Ser, entre parte e todo, porque o que importa é o devir, éo movimento, é a música do universo que ele pôde ouvir e marcar todasua poiesis-filosoficu, como no seguinte fragmento do filósofo: “tudo flui,nada persiste, nem permanece o mesmo” (SOUZA, 2000, p. 103).

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Tomando um caminho contrário, ou pelo menos diferente aode Heráclito, Parmênides vai buscar a superação do dualismo entre Sere não-Ser, via a essência, via o que não muda, via o que permanece.2

Deste modo, segue contra o mobilismo de Heráclito.Parmênides parte do pressuposto de que fora do Ser o não-

Ser nada é, e que só existe, portanto, o Ser. Desta maneira, pareceromper também, porém de um modo diferente, com o dualismo doSer e não-Ser. Além disso, tende, sobretudo, a buscar o imperecível, oque permanece diante das aparentes mudanças e transformações.

A posição de Parmênides é que o que é não-Ser é impossível dese saber, pois se já se sabe do não-Ser, este já não o é mais. E se, seconhece, só se conhece o Ser, pois este é só o que existe. É o eternoque Parmênides irá intuir em sua poiesis-filosoficu.

Se há possibilidade de dizer, o movimento em Parmênides estáfora do Ser. Por trás do aparente perecer, das aparentes transformações,algo fica imutável, algo do eterno não perece, o Ser permanece, o Ser éeterno, conclui o filósofo (SOUZA, 2000).

Influenciando a Psicologia da Educação

Embora possam parecer muito distantes da psicologia daeducação os posicionamentos desses pensamentos pré-socráticos arespeito do Ser, existem muitas influências que, embora não estejamexplicitadas, se fazem presentes nos modos variados, inclusive, deconceber essa própria disciplina.

Historicamente, é sabido que algumas definições ou objetivosda psicologia educacional variaram de algo que se propôs a “consertar”certos transtornos apresentados por determinados alunos, passandopor uma ideologia organicista e indo até uma visão mais crítica esistêmica dos problemas educacionais (COLL, 1996).

2 Do latim Permanentia s.f., ato de permanecer; estado do que é permanente; perseverança;constância; continuidade (HOUAISS, A.; VILLA R, M. de S.; FRACO, F. M. de M. DicionárioHouaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2192).

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Independentemente de entrar nos meandros das discussõesacerca da “correta” definição da psicologia da educação, vale aquientender que podem existir influências no modo de conceber e praticaressa disciplina, a depender de como a questão do Ser esteja situada,explícita ou implicitamente.

É notório, mesmo para qualquer iniciante em psicologia daeducação, que algumas formas de conceber esta disciplina se situamnuma perspectiva naturalista, essencialista ou maturacionista (COLL,1996). Estas perspectivas estão, de certa forma, direta ou indiretamentefiliada a uma longínqua tradição filosófica que remonta a Parmênides,sobretudo pela idéia de permanência do Ser.3

As perspectivas naturalista, essencialista ou maturacionista foramapropriadas pela psicologia da educação, ou ajudaram a engendrá-lajustamente pela visão de permanência, originária dessa tradição filosófica,no que se refere aos processos de aprendizagem, aos processos deaquisição de conhecimento, etc.. Nessa perspectiva, esses processos seriamimutáveis ou estariam já presentes, de modo que o sujeito não seriatambém responsável ou mesmo ator absoluto deles (FIGUEIREDO, 1991).

Assim, muitos psicólogos educacionais, por exemplo, quetrabalharam (e ainda trabalham) com os chamados “testes vocacionais”buscavam descobrir as habilidades ou dons já presentes, desenvolvidosou em latência, no sujeito escolar. Desse modo, seria possívelidentificar previamente as vocações, inclinações, dons e,posteriormente, classificá-los.

A questão fundamental, portanto, para esses que faziam apsicologia da educação não era propriamente a identificação dasinclinações e aspectos do ser, mas o que caracterizava de fato a essênciaimutável dessas inclinações e aspectos. Haveria, portanto, estruturasnas personalidades dos sujeitos escolares que norteariam todo seudesenvolvimento de um modo pré-determinado e imutável.

3 Isto significa dizer que foi a maneira como o pensamento de Parmênides foi sendo apropriado,via a secularização, e não necessariamente o pensamento de Parmênides de modo absoluto semas marcas históricas. Estas influências chegaram até as ciências humanas, ajudando-as a seconstituírem.

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Ao falar dessa permanência, ou melhor, desse inatismo, seriatambém interessante abordar a questão do empirismo. Embora elessejam, em muitos pontos diferentes, tanto o inatismo quanto oempirismo, reservam algo em comum, a saber, o determinismo.

O inatismo, por um lado, ao buscar uma essência do Ser, torna-se determinista; e o empirismo, ao identificar as contingênciasesmagadoras do meio sobre o sujeito, torna-se também determinista.

Uma psicologia educacional influenciada por uma visão de Serpermanente e imutável é uma psicologia que revela um sujeito reativoao meio, um sujeito estritamente determinado, um sujeito sem espaçopara criar, sem espaço para se responsabilizar e sem espaço paraautonomia. De outro modo, quando a psicologia da educação inspira-se numa visão de um Ser em construção e mais relacional, a praxe e asconcepções tornam-se outras.

Nessa perspectiva, a posição básica, no que diz respeito ao Ser,seria concebê-lo como movimento e em transformação em relaçãoindissociável com tudo que é outro. Essa perspectiva rompe com adicotomia entre sujeito e objeto estritamente determinante, entreorganismo e meio e entre as preponderâncias mecanizadas, ora da parte,ora do todo.

Entretanto, uma das inspirações mais importantes seria revelarque esse sujeito da relação e do movimento é um sujeito que podeatuar no mundo em constante transformação, ou seja, um sujeito daautonomia.

Na esteira de tendências que criticavam e questionavam asideologias do imobilismo, dos dogmas científicos que aprisionavam aliberdade humana, das teorias totalizantes que pretendiam darexplicações finais para os problemas humanos, contra as metafísicasque separavam a alma do corpo e os empirismos que mecanizavam ohomem, surgiram algumas correntes de pensamento tocadas por umalongínqua visão do Ser em movimento, que iriam influenciar, maisdiretamente, as ciências humanas e, em particular, a psicologia daeducação.

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Dentre essas correntes de pensamento, muitas se destacaram,como é o caso das tradições oriundas do materialismo histórico deMarx e Engels, as vertentes antropológicas, interacionistas, aepistemologia genética de Jean-Piaget e toda a tradição doexistencialismo e da fenomenologia.

Sem desconsiderar a relevância das diversas correntes que vão,com suas críticas, questionamentos e instigações, contribuir para umnovo projeto civilizatório e de interpretação do humano, iremos optarpor destacar aqui algumas contribuições das correntes existencialistas,fenomenológicas e interacionistas porque entendemos comosuficientemente inspiradoras e, ao mesmo tempo, carentes de seremmais bem desenvolvidas na psicologia da educação.

Estas correntes vão, por exemplo, com inúmeras contribuições(Kierkegaard, Nietszche, Husserl, Heidegger, Sartre, Garfinkel,Vygotsky, entre outros), pensar a questão do Ser como algo concreto,singular, não abstrato, não genérico, em constante relação, emconstrução, impregnado de uma dimensão histórica, presentificado nomundo e num devir, exigindo responsabilidade de uma liberdade(PENNA, 2006).

Desafios da educação

Reafirmamos que o modo de pensar a questão do Ser aindaajuda a fazer face a muitos dos problemas humanos e educacionais.Assim, encontramos, entre esses problemas, apesar de apresentarmosaqui de modo bastante simplificado e sem suficientes desdobramentos,as seguintes questões: a dissolução de valores e a dificuldade de criarnovos valores ajustados a uma ética humanista; a relação entre ser e ter;o desequilíbrio ecológico; a diversidade cultural; as desigualdades sociaise o autoritarismo nas relações (MORAES, 1997; SANTOS, 2000).

Esses problemas vão se materializar na educação na medida emque vivemos um momento, entre outros, de avanço do neotecnicismoque objetiva, acentuadamente, as relações e os processos educacionais

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em função de uma lógica da produtividade. Esse neotecnicismo étambém refletido no modo aligeirado como as formações, sejam elasformações profissionais dos professores ou formações curriculares dosalunos, se dão hoje em dia.

Esse modo de capacitar é reflexo de uma crença de que oindivíduo é responsável pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso. Ademais,as instituições buscam oferecer, o mais rapidamente possível, osinstrumentos básicos necessários e que o resto se dará no esforçorepetitivo do treinamento motivado por uma competição quedeterminará a eficiência (DEMO, 1993).

Um outro problema diz respeito à questão do “quantitatismo”.Numa sociedade de consumo em que a produtividade ganha dimensõesdivinas, facilmente o quantum perde o valor do qualis. Primeiro, se instauraa dicotomia entre um e outro, depois um passa a valer mais do que ooutro. Não se precisa de muito para provar que a humanidade vive essetipo de realidade. Basta checar quaisquer dados educacionais e se veráo quanto se cresce em extensão e o quanto se perde em profundidade.

O problema derradeiro que selecionamos aqui é o do“propagandismo”. As coisas não são, normalmente, o que elasaparentam. Os discursos cada vez mais incorporam as críticas e setravestem de inovadores, mas mantêm os mesmos princípiosconservadores. Essa estratégia, além de criar uma aparência enganosa,mina a palavra, que perde total valor e confunde o que é uma coisacom o que é outra.

Assim, temos um legado, atualizado em várias correntes, comoo existencialismo, a fenomenologia e o interacionismo, que ainda inspira,questiona e critica certo paradigma, convivendo ao lado de uma sériede desafios – que não fazem só parte exclusiva do mundo da educação.

Esses impasses, essas tensões e essas chamadas, que exigem novasrespostas para os desafios atuais, tocam também na maneira dapsicologia da educação se posicionar. Ora, se a psicologia da educaçãotraz em si uma concepção ontológica e se esta oferece as matizes dasua praxe, cabe perguntar: quais seriam as contribuições de uma

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psicologia da educação que se inspira numa perspectiva do Ser emconstrução, do Ser em movimento, do Ser em transformação e do Serem relação e indissociável com o outro? Quais seriam suas concepçõese possíveis praxes diante desses desafios atuais? Que contribuições apsicologia da educação, inspirada, sobretudo pelas influências doexistencialismo, fenomenologia e interacionismo, poderia dar para umaformação do ser diante desses desafios atuais?

Se por uma direção é possível abordar como a questão do Serfoi sendo apropriada pelas ciências humanas e pela psicologia daeducação, em particular, e como as influenciou segundo as raízes pré-socráticas, por outra direção, é possível trabalhar como a psicologia daeducação vai pensar e tratar a questão da formação do ser – entendidocomo onto-humanus.

Que psicologia educacional?

Diante do que já foi exposto a respeito da tradição oriunda deHeráclito, desdobrada no existencialismo, na fenomenologia e nointeracionismo, é possível afirmar uma interpretação acerca do Ser emmovimento, em construção, em devir, na relação e no mundo,impregnando a psicologia da educação. Esta tende a reunir algumascaracterísticas que vão contribuir para uma nova formação (do ser –onto-humanus) em face dos desafios atuais.

Dentre essas características, destacamos os aspectos históricos,sociais e culturais do desenvolvimento e da aprendizagem, a formaçãoética (principalmente a questão relacionada à alteridade), a aprendizagemvista conforme a construção identitária, o conceito de ecologia humana,os processos ensino-aprendizagem, numa perspectiva do sujeito crítico-criativo para uma aprendizagem comunitária, e as múltiplas dimensõesque estão presentes nos processos de aprendizagem e desenvolvimento.

É certo que outras características que vão contribuir para umanova formação poderiam ser listadas, mas pelo momento aceitamosestas como suficientes e ilustrativas neste espaço.

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A seguir, iremos descrever sucintamente cada uma delastentando estabelecer suas possíveis raízes e pertinências para certaformação do ser:

1) Os aspectos históricos, sociais e culturais do desenvolvimentoe da aprendizagem encontram raízes em tradições como oconstrutivismo e o sócio-construtivismo. Estas tradições interpretama formação do ser como inerente ao contexto, num jogo de tensãoentre as interações internas e externas e ao mesmo tempo preserva, emrelação ao sujeito, um nível de autodeterminação.

2) A questão da formação ética, principalmente no que concerneà valorização da alteridade, adquire importância, sobretudo por umanecessidade de recriar valores que possam produzir convivências entreas diferenças intra-individuais (do sujeito aceitando suas diferenças epróprias multiplicidades), interindividuais (do sujeito em relação aooutro) e interculturais.

3) Pensar a relação entre a construção identitária e os processosde aprendizagem é uma outra característica da psicologia da educaçãopara contribuição de uma nova formação do ser. Os processos deaprendizagem, por meio da relação com a construção identitária,passariam a ser vistos como algo que vai além de intervençõescognitivas ou de conteúdos. Essa relação seria constituidora do própriosujeito, considerando ainda as relações entre o Eu, o Outro e aaprendizagem.

4) O conceito de ecologia humana, ou seja, a relação do serhumano com o seu ambiente natural, com contribuição da psicologiada educação, configura-se na consideração de integrar aos processosde aprendizagem e desenvolvimento uma relação de não-extermínioda natureza e de potencialização da diversidade cultural (MARQUES, 2005).

5) Os processos ensino-aprendizagem, numa perspectiva dosujeito crítico-criativo e da aprendizagem comunitária, caracterizariam-se pelo reconhecimento do outro e da própria especificidade comopotencializadora da criatividade. Esta perspectiva gera uma necessidadede preservar as posturas de afirmação e confirmação, que são garantidas

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pela diversidade e complexidade da vida nas suas múltiplas dimensões:individual, coletiva, biológica, subjetiva e objetiva. Além dessa necessidadede preservar as posturas de afirmação e confirmação, instaura-se umacompreensão de espaços, de comunidades, que garantem aprendizagens.Neste sentido, a escola como um todo, por exemplo, seria entendidacomo uma comunidade de aprendizagem e não somente o espaço desala de aula no momento dado de uma disciplina.

6) Ao citar as múltiplas dimensões que estão presentes nosprocessos de aprendizagem e desenvolvimento, chamamos a atençãopara o fato de que os processos da consciência são diversos e que essadiversidade deve ser valorizada. Alguns desses processos, comocriatividade, sentimento, sensação e intuição, muitas vezes sãoesquecidos ou tratados de maneira dicotomizada. A psicologia daeducação, atualmente, segundo alguns estudos, vem apontando paranecessidade de ampliar e aprofundar pesquisas que possibilitem práticasque os integrem (BYINGTON, 1996).

Últimas palavras

Essas contribuições, que são também elaborações da psicologiada educação,4 fundamentam-se numa certa compreensão do Ser, comojá assinalamos anteriormente.

Entretanto, de um modo mais específico, pode-se dizer que essascontribuições fazem referência à idéia de que os fenômenos ligadosaos processos de conhecimento são construídos, são múltiplos,envolvem várias dimensões, são interconectados com todos os níveisda existência, são processuais e relativos, dizem respeito também aoprocesso indentitário e são sistemas abertos em constante interação.

Considerando as limitações dessas reflexões, seja por causa doespaço disponibilizado ou por causa do tempo que condiciona umamenor densidade para apresentar, aceitamos, como finalização do

4 É importante pontuar que a psicologia da educação não é a única disciplina a herdar esselegado acerca do Ser e a influenciar a educação.

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exposto, reafirmar a importância de melhor conhecer as relaçõespossíveis de certa compreensão do Ser e as contribuições da psicologiaeducacional para formação do ser.

De um modo sintético, indicamos a presença de inúmeros pontosque confluem para uma contribuição acerca da formação do ser. Entreelas, destacamos: 1) somos seres inacabados e aprendemos por toda avida; 2) o mais importante é aprender para aprender – isto ajuda aconhecer e a pensar a realidade; 3) aprendemos com o outro; 4) éimportante aprendermos com o respeito pela identidade e diferença;5) o conhecimento tem uma dimensão política; 6) aprendemos algoquando faz parte do nosso projeto de vida; 7) a solidariedade deve sera orientação das nossas aprendizagens porque ela é condição desobrevivência.

Assim, concluímos que este conhecimento pode ajudar a pensara psicologia da educação de uma maneira mais sintética e confluenteem direção à formação do ser, sobretudo uma psicologia da educaçãoque possa ser mais explicitamente desenvolvida com base nas influênciasdo existencialismo, da fenomenologia e do interacionismo.

Referências bibliográficas

BYINGTON, Carlos A. Pedagogia simbólica. A construçãoamorosa de ser. Rio de Janeiro: Record, 1996.

COLL, Cesar. (Org.). Desenvolvimento psicológico e educação:Psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. v. 2.

DEMO, Pedro. Desafios modernos da educação. Petrópolis: Vozes,1993.

FIGUEIREDO, Luis. C. M. Matrizes do pensamento psicológico.Petrópolis: Vozes, 1991.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S.; FRACO, F. M. de M. DicionárioHouaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.2192.

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MARQUES, Juracy. (Org.). Ecologia de homens e mulheres dosemi-árido. Paulo Afonso, BA: Editora Fonte Viva, 2005.

MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente.São Paulo: Papirus, 1997.

PENNA, A. G. Os filósofos e a psicologia. Rio de Janeiro: Imago,2006.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento únicoà consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SOUZA, José Cavalcante. Os pré-socráticos. (Org.). São Paulo: AbrilCultural, 2001. (Coleção Os Pensadores).

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Implicações psicológicas da avaliação escolar

Ruben de Oliveira Nascimento *

Resumo: Esse trabalho aborda algumas implicações psicológicas da avaliaçãoescolar, assinalando que esta se constitui num processo de interação ecomunicação entre os sujeitos que a vivenciam, com importantes impactos noprocesso educacional. Mostra que a avaliação tem o potencial de definirpsicologicamente parte significativa da vida escolar e do progresso do aluno,devendo ser empregada de maneira consciente, competente e razoável, a fimde contribuir para a construção de uma avaliação menos estigmatizante e menosestereotipada. Conclui apontando que a avaliação escolar deve criar oupromover condições psicológicas e pedagógicas mais favoráveis ao crescimentopessoal e escolar do aluno e ao desenvolvimento qualitativo do processo ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Aspectos psicológicos da avaliação escolar. Comunicação.Processo educacional. Progresso escolar do aluno.

Psychological implications of school evaluation Abstract: This paper approaches some psychological implications of schoolevaluation, pointing that it is constituted in an interaction and communication

* Psicólogo com mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).Professor Assistente do Instituto de Psicologia da Faculdade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 75-99 2007

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process among the subjects experiencing it, with important impacts on theeducational process. The work shows that evaluation has the potential ofpsychologically defining a significant portion of school life and student’sprogress as it should be applied in a conscious, competent and reasonableway, in order to contribute to the construction of a less stigmatizing andstereotyped evaluation. We conclude pointing that school evaluation shouldcreate or promote psychological and pedagogic conditions which are morefavorable to the student’s personal and school growth as well as to the qualitativedevelopment of the teaching-learning process.

Key words: Communication. Educational process. Psychological aspects ofschool evaluation. Student’s school progress.

Introdução

Além dos aspectos objetivos que a acompanham, a vida escolartem dimensões subjetivas que definem boa parte da história dos sujeitosdentro do contexto escolar e que precisam ser compreendidas em suaocorrência e efeito. Essas dimensões são observadas também em rituais,discursos, gestos e posturas que comunicam representações,concepções, sentimentos, emoções e atitudes relativas ao processo dedesenvolvimento escolar, conforme a percepção dos sujeitos envolvidosno processo educacional. Nesse quadro subjetivo, vale ressaltar o carátercomunicacional que as ações entre os sujeitos do processo educacionalassumem no contexto escolar, e que veiculam, na aparência ou naessência, os fatores acima colocados dos sujeitos desse processo. Dentreas muitas possibilidades de análise dessas questões, queremos fazê-locom referência a um difícil e ao mesmo tempo importante procedimentoou recurso utilizado no cotidiano da Educação: a avaliação escolar.

Em linhas gerais, no âmbito pedagógico o estudo conceitual daavaliação escolar pode se dar por sua definição, função, natureza,finalidade, procedimentos ou forma de comunicação de resultados.Essas possibilidades, vistas separadamente ou em conjunto,normalmente exprimem a complexidade do processo de avaliação, quetem relação direta com a amplitude do processo educacional e a evoluçãohistórica da Educação. De um modo geral, a avaliação escolar é tida

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como um processo complexo que envolve uma ética educacional, umjulgamento, um juízo de valor ou uma interpretação de resultados,apoiados em critérios e expectativas que remeteriam a tomadas dedecisão. Seu processo e uso não são simples de explicar ou de generalizar,tanto considerando a evolução histórica da avaliação escolar quanto oprocesso de institucionalização que ela normalmente sofre (HOFFMANN,1997; LUCKESI, 1998; SANT’ANNA, 2000; SOUZA, 2000; ANTUNES, 2002;BARLOW, 2006).

Além dos aspectos acima apontados, a avaliação também trazem si um discurso, uma mensagem para os atores envolvidos noprocesso ensino-aprendizagem. Nesse sentido, Rabelo (1998, p. 80),coloca que o principal objetivo da avaliação deve ser uma boaaprendizagem, frisando que “é preciso transformar o discursoavaliativo em mensagem que faça sentido, tanto para aquele que aemite quanto para aquele que a recebe,” fornecendo ao estudanteinformações úteis para sua vida escolar e aumentando o diálogoentre professor e aluno sobre aspectos do processo de ensino e deaprendizagem promovidos.

Mas, a avaliação escolar possui um componente histórico quepode interferir na produção do diálogo acima apontado. SegundoAntunes (2002), uma concepção histórica de que o conhecimento seriaum bem acumulado na mente, e que esse bem ou esse acúmulo podemser medidos, vem prevalecendo entre professores e alunos ainda hoje.Esse autor mostra que esse discurso não cabe mais no desenvolvimentoatual da Educação, apontando para uma necessidade de se ver nocontexto atual a aprendizagem mais na direção da construção designificados e de atribuição de sentidos ao conteúdo aprendido. Mas,Rabelo (1998) assinala que é difícil acabar com o aspecto comparativoque a avaliação historicamente cristalizou no pensamento de seusagentes. Refletindo sobre esse fator, Rabelo (1998) frisa que o problemacentral da avaliação é a postura avaliativa que se adota, e que sobre eladeve recair boa parte da discussão da problemática da avaliação e dasmetodologias empregadas nesse processo.

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Esses exemplos de variáveis do processo de avaliação causamimpactos psicológicos tanto na forma como são expressas para o alunoquanto na maneira como essa expressão (e a mensagem que contém) épercebida por ele. Essas implicações psicológicas colaboram nanomeação ou significação da avaliação no contexto ou na vida escolardo aluno permitindo a produção de sentidos e impressões sobre seupapel no progresso escolar do estudante. Essas implicações psicológicase seus efeitos precisam ser identificados, discutidos e compreendidos,dentro do debate educacional sobre avaliação escolar, visando discerniraspectos subjetivos desse processo.

Nesse artigo, apresentaremos implicações psicológicas daavaliação escolar para discussão, tomando como mote a percepção deBarlow (2006) de que a avaliação também se constitui num processo decomunicação entre professor e aluno, ativando disposições cognitivas,afetivas e atitudinais entre esses sujeitos da avaliação, no contexto escolar.

Nossa intenção com esse trabalho é discutir aspectos subjetivosda avaliação escolar e vislumbrar impactos psicológicos nos propósitosde sua idealização ou promoção. Estes aspectos definem grande parteda vida escolar dos sujeitos que experimentam a avaliação, sendoinclusive capaz de constituí-la numa espécie de “escrita simbólica” dahistória de vida escolar.

As implicações psicológicas da avaliação escolar, imersas noprocesso de comunicação em que ela se constitui, devem ser vistascomo objeto de estudo pelo psicólogo escolar/educacional ou peloprofissional do ensino, pelas contribuições que podem dar ao esforçode compreensão deste tão importante procedimento ou recurso dentroda Educação.

Aspecto global do processo ensino-aprendizagem

O processo ensino-aprendizagem envolve muitos fatores quemobilizam o sujeito como um todo em sua interação com o processoeducacional ou com os objetos de conhecimento. A realização

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pedagógica do processo ensino-aprendizagem abrange aspectoscognitivos, afetivos e atitudinais, tanto de professores quanto de alunos,que caracterizam parte de seu dinamismo. Portanto, a produção desaberes não é totalmente “racional”. Ela comporta também as emoçõese os sentimentos que o processo de produção ou apropriação deconhecimentos evoca aos sujeitos dessa experiência, quando em contatocom os objetos de conhecimento. Arantes (2002, p. 160) comenta assima integração entre pensar e sentir no cenário educacional:

Partimos da premissa de que no trabalho educativo cotidianonão existe uma aprendizagem meramente cognitiva ou racional,pois os alunos e as alunas não deixam os aspectos afetivos quecompõem sua personalidade do lado de fora da sala de aula,quando estão interagindo com os objetos de conhecimento, ounão deixam “latentes” seus sentimentos, afetos e relaçõesinterpessoais enquanto pensam (aspas da autora).

Esta relação cognição-afeto sugere que a ação de aprender nocontexto escolar envolve tanto as disposições mentais e os esquemascognitivos, quanto a motivação, o interesse e as disposições afetivaspara realizar a ação de aprender, vistos como componentes queacompanham a integralidade de sua realização. No caso do rendimentoescolar é importante a percepção de que o aluno é um sujeito integral,que pensa, sente, atua e busca motivos para seu envolvimento com aconstrução ou apropriação de conhecimentos e com as interaçõeseducativas dentro do contexto escolar. Essa percepção tem o méritode não restringir nem o processo de ensino e nem os resultados daaprendizagem aos recursos de um desses elementos apenas, mas àinteração entre eles.

Queremos destacar que assim como o aluno, o professortambém atua como sujeito integral que pensa, sente e desenvolveatitudes dentro do contexto de interação educativa, conforme suasrepresentações ou concepções sobre o processo de ensino e sobre arelação professor-aluno.

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Assim sendo, o cenário escolar seria construído ou constituídonão apenas pelas atividades e interações educativas objetivamentesistematizadas, mas também por aspectos subjetivos imersos narealização dessas atividades ou interações, vistas como a construção deum roteiro simbólico que “conta uma história” de vínculos, afetos,interesses e desempenhos escolares atravessando falas e idealizaçõesdo que é produzido nesse cenário. História essa perpassada por questõesde natureza psicológica, como: concepções de professores e alunos,concepções de ensino e de aprendizagem adotadas ou evocadas,expectativas de desempenho conforme padrões ou critérios pré-estabelecidos, julgamentos, comparações, estereótipos, mitos, etc, queinterferem em resultados (desempenho escolar de todo tipo) esperadostanto por professores quanto por alunos. Portanto, um dinâmico quadrosubjetivo amparado em formas de linguagem e de cultura escolarperpassando os procedimentos e as atividades realizadas no processoeducacional.

Remetendo ao tema desse artigo, a avaliação escolar, comocomponente normal e significativo do processo ensino-aprendizagem,entraria nesse quadro de subjetividades, com uma importância muitogrande, uma vez que transforma, pelo simbolismo que representa dentroda cultura escolar, medidas em “verdades” incorruptíveis, julgamentosem profecias, indicação em determinação, conforme a percepção dossujeitos envolvidos em seu processo.

Nesse sentido, assinalamos que a avaliação escolar apresentavariáveis psicológicas associadas ou decorrentes de aspectospedagógicos que ela compreende, capaz de promover um delicadointercâmbio entre aspectos pedagógicos e psicológicos em sua realizaçãoe comunicação, que precisam ser conscientizados pelos profissionaisda Educação ou na atuação e intervenção do psicólogo escolar/educacional. Apontaremos algumas dessas relações, frisando fatorescognitivos, afetivos e atitudinais associados ao aspecto comunicacionalem que a avaliação escolar se constitui.

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81Implicações psicológicas da avaliação escolar

O delicado intercâmbio entre os aspectos pedagógicos epsicológicos da avaliação escolar

Segundo Mouly (1993), a avaliação escolar, independentementedo modo como é utilizada, normalmente suscita posições e sentimentosa respeito. Ressaltando os apelos emocionais que a avaliação podeprovocar, Mouly (1993, p. 349) frisa que eles variam “desde uma frasedefensiva, como ‘eu não acredito em exames’, até uma firme convicçãode que os exames são praticamente infalíveis”. Para esse autor essasdisposições emocionais são basicamente suscitadas pelo caráter de medidaque a avaliação por vezes acaba se transformando e pela questão danota que acompanha esse caráter.

Nossa posição é de que esse caráter torna-se um dos elementosde interferência na compreensão do alcance real da avaliação para ossujeitos envolvidos em seu processo. Isso porque a nota vem revestidade poder, de uma autoridade apoiada num sentido matemático deprecisão e de verdade, que acaba representando ou significando aavaliação como um instrumento de determinação da vida escolar; e aoprofessor que detém o poder de conferir a nota, a capacidade de fazerdele uma espécie de oráculo da educação.

Queremos frisar que usar a medida como sinônimo de avaliaçãoreduz o alcance pedagógico e psicológico da avaliação escolar, e aindapermite a construção de mitos ou idealizações irreais sobre a finalidadee função desta no contexto escolar.

Nesse ponto é importante fazer uma distinção conceitual entremedida e avaliação, útil aos apontamentos e reflexões levantadas até omomento. Esses termos têm definições e alcance pedagógicos epsicológicos distintos. No caso da medida, ou mensuração, seu status ouinstalação na Educação deu-se historicamente por volta da década de30 do século passado por meio da influência do pensamento norte-americano de base comportamentalista, a partir da ascensão doBehaviorismo e da utilização da Psicometria no processo educacional.Segundo Hoffmann (1997) e Souza (2000), esse mesmo quadro de

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influência ocorreu no Brasil. A premissa básica dessa tendência depensamento é que deve ser medido o grau de mudanças decomportamento do aluno frente ao conteúdo curricular organizado eministrado com esse fim. Nessa premissa considera-se como finalidadeda Educação a promoção detectável dessas mudanças decomportamento, vistas como uma das explicações notáveis deocorrência clara de Aprendizagem. Para tanto, o desempenho observáveldo aluno deveria ser medido com base em parâmetros pré-fixados peloprofessor ou pelo currículo em foco.

Por sua vez, a noção de avaliação é bem mais ampla que a demedida. Souza (2000) explica essa diferença dizendo que “quando setem a representação de uma quantidade ou grau de comportamentosapresentados pelo aluno, tem-se uma medida. Quando se julga esseresultado, está-se avaliando. Dessa forma, a avaliação é vista como umprocedimento mais abrangente, que vai além da medida” (p. 34). Aavaliação, portanto, envolve critérios e julgamentos qualitativosabrangendo uma série de indícios mensuráveis ou não, mas queconfiguram um quadro geral de referências sobre o desempenho doaluno, fazendo-se, inclusive, relações com os objetivos de ensinopretendidos. Desse modo, a medida tem uma importância dentro daavaliação, mas não se constitui o indicador por excelência, e sim umcomponente do processo de avaliação.

Por sua vez, o processo de avaliação obedecerá a critériosdefinidos por cada avaliador que influenciarão a notação. Mas, oprocesso de notação (ou correção) vem carregado do estilo e disposiçãomental do avaliador e de outros elementos subjetivos que tornam averdade da medida discutível e a qualidade da avaliação um desafio, adepender do modo como o professor significa e concretiza em medidaa verificação da aprendizagem do aluno e julga seus resultados.

Nesse sentido, Bordenave e Pereira (2004) mostram que doisprofessores, utilizando o mesmo instrumento, podem chegar aconclusões diferentes no valor (ou nota) atribuído no ato de correção.Esses autores atestam que uma nota atribuída num exame varia de

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examinador para examinador, como também sua notação varia notempo, ou seja, a nota que um professor atribui a uma prova hoje,poderá mudar amanhã, ao rever as respostas. Mouly (1993) comenta omesmo fenômeno, principalmente com relação a questões dissertativas,onde a subjetividade é um de seus elementos principais. Barlow (2006)também comenta as mesmas questões mostrando que a nota vemacompanhada da atitude mental do avaliador sobre a resposta, defantasias a respeito de avaliações, e da crença no valor da nota comocapaz de fornecer precisão inequívoca ao saber avaliado (alimentadopela idéia de que o número é um representante matemático incorruptívelda realidade). Esse autor comenta a respeito dizendo:

A primeira vista nada parece mais inequívoco que uma notacifrada: por definição, 12 não é 11, nem 13. “E se eu lhe deiessa nota, meu amiguinho, é porque não merecia nem maisnem menos!” Contudo, olhando mais atentamente, a nota estábem longe de ter esse caráter objetivo. De fato, ela não exprimedo mesmo modo que uma medida física, uma característicadiretamente contestável: isto pesa 20 gramas; isto mede 11,5 x16,7 centímetros. Como toda forma de avaliação, a nota é ofruto de um julgamento de comparação. Portanto, suasignificação está estreitamente subordinada à qualidade dessaoperação mental. No fim, ela não significa nada se o avaliadornão tem uma idéia exata daquilo que observa, do modelo dereferência e dos critérios que permitem passar de um ao outro.[...] Além disso, sendo um instrumento de comunicação entreo professor e o aluno, a exemplo do código verbal, gestual,etc., a nota está sujeita a todos os riscos dessa relação humana.A mensagem só será compreendida se a grade de codificaçãodo emissor for análoga à grade de decodificação do receptor edesde que ambos visem exatamente o mesmo referente. “Elanão disse, mas tenho certeza de que me tirou pontos por causado meu comportamento na classe!” (BARLOW, 2006, p. 30, aspase itálicos do autor).

Barlow (2006) também mostra que as notas de provas estãoligadas a determinados contextos de avaliação, de critérios utilizados eda percepção do avaliador, que afetam a produção dos julgamentos nas

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avaliações. Citando uma pesquisa, esse autor comenta que a lógica depontuação de uma resposta varia de avaliador para avaliador e que, porconta disso, seriam necessários muitos avaliadores de uma mesma provapara se ter certa confirmação do valor real de uma nota a ser atribuída.Segundo os dados dessa pesquisa citada por Barlow (2006, p. 31) seriamnecessários “não menos do que 13 professores para corrigir uma provade matemática com todas as garantias de objetividade, e esse númerosubiria para 78 em letras e 127 em filosofia”, porque até mesmo acompreensão de erro e acerto de uma questão dependerá dos critériosde correção adotados pelo avaliador, e que serão diferentes com umoutro avaliador. Além disso, Barlow (2006, p. 33) mostra que cadaprofessor tem seu próprio processo de correção, comentando que “todoprofessor tem seus hábitos de notação, sua equação pessoal. Alguns dãonotas ‘generosamente’, outros ‘severamente’. Alguns utilizam ‘todo oleque’ de 0 a 20; outros não se afastam muito da média. Por isso, amesma nota pode ter significados diferentes”.

Barlow (2006) também frisa o caráter de poder e de definição de“verdade” que a nota tem na fantasia ou no imaginário de professorese alunos. Nesse âmbito, a nota assume uma fisionomia de poder nodiscurso do avaliador e um efeito classificatório na percepção doestudante sobre sua capacidade escolar, separando simbolicamentealunos “competentes” de alunos “incompetentes”, decretando o roldos bons e dos maus alunos, com potencial de criar assim um climapsicológico favorável ou desfavorável ao progresso da vida escolar doaluno. Além disso, pode contribuir para a construção do processo de“culpabilização” dentro do sistema escolar.

Por essas e outras questões, Mouly (1993) e Bordenave e Pereira(2004) sugerem que a nota não deve ser vista como o determinante(inequívoco) do conhecimento, mas, apenas como uma variável a serconsiderada na avaliação geral do desempenho do aluno em face deum instrumento ou recurso de avaliação que pode evidenciar muitosoutros dados quando bem analisada; e ainda facilitar o alcance dosobjetivos de ensino e aprendizagem perseguidos (que o discurso daavaliação irá significar).

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Considerando todas as questões apresentadas acima, entendemosque utilizar a nota de forma emblemática dentro da relação professor/aluno, a serviço de uma relação de submissão ou de autoritarismo, éreduzir o potencial da avaliação escolar a um processo simbólico depoder e de controle intelectual. Esse esquema incita os alunos a verema avaliação como o instrumento do professor capaz de selar seu destinocomo estudante e gera disposições psicológicas a respeito de avaliar eser avaliado, que comprometem a qualidade do processo educacional ede formação pretendidas.

Essa tendência gera sentimentos e emoções acerca do processode avaliação, nos termos acima colocados, que podem “contaminar”negativamente a motivação para aprender, inibindo o verdadeiropotencial de crescimento escolar e de construção de conhecimentoque um aluno poderia desenvolver.

Essas questões não se esgotam na discussão da relação entremedida e avaliação, e no simbolismo da nota de prova, mas perpassatambém os modos verbais e não-verbais de julgamento do desempenhodo aluno, assim como o realce de aspectos que acabam determinandoo efeito da avaliação na construção dos sujeitos ou do tipo deaprendizagem que se quer promover no contexto escolar. Esses modose realces têm implicações psicológicas que, somados aos acimaapontados, contribuem diretamente com as configurações que aavaliação pode ter na percepção dos sujeitos nela envolvidos,interferindo significativamente na qualidade e no real alcance pedagógicoe psicológico da avaliação no contexto escolar.

Formas verbais, não-verbais e realces da avaliação escolar

A avaliação também ocorre de modo verbal e não-verbal nocotidiano do processo ensino-aprendizagem. Barlow (2006) assinalaque a avaliação está aliada às expressões dos professores, materializandoa palavra avaliadora em gestos e posturas que, a depender do modo comoé transmitida (codificada) e como é recebida (decodificada), produz

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muitos sentidos. Isso quer dizer que o processo de avaliação escolarnão se resume àqueles momentos concretos formalizados pelo ritualque a acompanha, ou pela representação da nota, mas perpassa toda arelação pedagógica, incluindo os modos verbais e não-verbais em queuma avaliação se configura entre os sujeitos dessa experiência. Sobreisso, Barlow (2006, p. 47) comenta o seguinte:

É um grande dia aquele em que se descobre que a palavrahumana não é feita apenas de palavras pronunciadas, mas detodo um ambiente carnal – mímicas, gestos, olhares... – quesublinha o que é dito, ocupa seu lugar e às vezes o contradiz.Um sinal de negação ou uma careta de dúvida dispensa umcomentário verbal, mas ocorre também que um aceno de cabeçaou um sorriso irônico contradiga a literalidade do que épronunciado. Outras vezes, o corpo se mostra mais sincero quea palavra. [...] É o duo do dito e do não-dito, do falado e dogestuado, que devemos explorar agora no caso da avaliaçãoescolar: como os professores julgam verbalmente e não-verbalmente seus alunos? [...] Qual é a proporção de racional ede imaginário em suas palavras formuladas ou não-formuladas?

O processo de avaliação escolar, portanto, tem muitasfaces. Ela envolve expectativas, julgamentos e tomadas de decisão quenão se restringem aos rituais de emprego e comunicação de resultados,mas a todo um processo de comunicação simbólica e gestualmenteefetivado em sua realização, e que representam julgamentos. Isso tantoda parte do professor quanto da parte do aluno.

Deve-se considerar também que a avaliação se reveste, muitasvezes, de mitos e significados idealizados de forma muito desconexacom o real ou com suas verdadeiras possibilidades educacionais, o quedemanda um cuidado conceitual a seu respeito para que seu uso sejacoerente e voltado para o crescimento escolar e o plenodesenvolvimento da aprendizagem (HOFFMANN, 1997, BARLOW, 2006).

Por todas essas questões, retomamos Mouly (1993) quandoassinala que por falta de uma clara compreensão pedagógica e psicológicada avaliação e sua amplitude, questões emocionais e fatores subjetivos

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muitas vezes obscurecem o que realmente esse recurso pode representarpara o processo educacional e para os sujeitos desse processo. Parasuperar essas dificuldades, Mouly comenta que os professores devemdesenvolver competências para avaliar, assim como buscam desenvolvercompetências para ensinar. Esse autor frisa que a avaliação é uminstrumento que demanda competência para seu emprego, colocandoo progresso do aluno como elemento principal de sua função efinalidade.

Essa relação entre avaliação escolar e progresso do aluno é muitoimportante, porque incide diretamente sobre a construção pedagógicae psicológica da história do professor e do aluno dentro do sistemaescolar. Souza (2000) comenta que os critérios e os procedimentos deavaliação utilizados pelo professor em sua prática pedagógica sãodeterminantes na vida escolar do aluno, uma vez que, segundo a autora,em última instância, esses fatores é que definiriam seu destino enquantoestudante. Portanto, avaliação escolar e vida escolar, tanto paraprofessores quanto para alunos, tem uma relação inequívoca na práticapedagógica e na formação escolar.

Essa relação entre avaliação e progresso escolar do aluno implicatanto na perspectiva de aprendizagem que apóia o processo de avaliaçãoe sua correção, quanto na percepção do tipo de sujeito que se pretendeproduzir por meio da sistemática de avaliação praticada. Nesse caso,função e finalidade de avaliação escolar ganham importância pelasignificação e pelos sentidos que certos realces na sistemática deavaliação acabam dando a entender sobre elas, e que tipo de recadopassa para o aluno em termos de progresso escolar esperado.

Isso porque, a depender do modo como na sistemática deavaliação (e seus propósitos) alguns aspectos ou objetivos são maisrealçados do que outros no que tange à sua função e finalidade, tanto otipo de aprendizagem quanto o tipo de sujeito que se pretende produzirpor meio dela, terão desdobramentos pedagógicos e psicológicosimportantes na formação e na vida escolar do aluno. Conforme o quese realce e se reforce percepções e sentidos serão acentuados no

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processo de avaliação, sobre as metas sinalizadas e as expectativas deaprendizagem que sugere implícita e explicitamente, definindo assimboa parte da relação entre avaliação e progresso escolar.

Por exemplo, com base em Depresbiteris (2000, p. 53), umrealce se dá quando se assinala apenas a função administrativa daavaliação, “pela qual só se exige uma nota final, descartando a funçãode orientação para a melhoria que ela deve exercer”. Nesse caso, aautora assinala que acaba se valorizando mais na escola o papel, oregistro, o procedimento formal, fazendo com que a preocupaçãomaior seja a nota e não a melhoria de procedimentos. Outro realceque Depresbiteris (2000, p. 53-54) aponta ocorre quando se “reduza avaliação à mera atividade de elaborar instrumentos de medida eobter resultados fidedignos, a fim de classificar os alunos com poucamargem de erro”. Segundo a autora, isso pode resultar numa tendênciaperigosa de se exaltar apenas os procedimentos baseados em examesou provas, esquecendo-se outros meios ou atividades de avaliaçãoigualmente úteis e importantes, que ocorrem durante o processo ensino-aprendizagem, em pleno cotidiano da sala de aula e no desenrolar darelação pedagógica, como sinais diretos e indiretos sobre os resultadosproduzidos nessa relação, utilizáveis em prol da melhoria e daqualidade do processo de ensino-aprendizagem.

Luckesi (1998), por sua vez, nos apresenta sérias questõespedagógicas e psicológicas acerca da definição e função da avaliaçãoescolar. O autor comenta que a avaliação acabou se transformandohistoricamente, pela herança da escola moderna ancorada em provas eexames e pela cristalização da classe burguesa, em um tipo de pedagogiado exame, onde a prescrição e o poder do avaliador trazem o estudantesob uma espécie de dominação quando se avaliava sua aprendizagem.Ele ressalta que a avaliação escolar, se usada como meio de classificaçãoe de poder, serve como instrumento de autoritarismo que exclui o alunodo processo ensino-aprendizagem como sujeito ativo. Esse autor explicaa pedagogia do exame, dizendo que

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[...] o sistema de ensino está interessado nos percentuais deaprovação/reprovação do total dos educandos; os pais estãodesejosos de que seus filhos avancem nas séries deescolaridade; os professores se utilizam permanentemente dosprocedimentos de avaliação como elementos motivadores dosestudantes, por meio da ameaça; os estudantes estão semprena expectativa de virem a ser aprovados ou reprovados e, paraisso, servem-se dos mais variados expedientes. O nossoexercício pedagógico escolar é atravessado mais por umapedagogia do exame que por uma pedagogia do ensino/aprendizagem (LUCKESI, 1998, p. 18).

Luckesi (1998) aponta também para o fato de que a avaliaçãoafeta psicologicamente o aluno. Esse autor chama atenção para osprejuízos psicológicos e emocionais que uma avaliação, prioritariamenteautoritária e classificatória, pode deixar no estudante, com repercussõesaté em sua vida futura, dado o grau de exclusão e de subserviênciaintelectual que avaliações desse tipo promovem na disposição mentaldo aluno. Luckesi sugere então o uso de avaliações mais democráticase mais voltadas para o crescimento pessoal e social do aluno.

Realces como estes acabam reforçando significados em suapromoção e expectativa de resultados, fortalecendo ou cristalizandopercepções sobre ensino e aprendizagem ligadas a eles, com importantesefeitos pedagógicos e psicológicos correlatos na vida escolar do aluno.Ao acentuar esses realces, a avaliação escolar reforça em seu processocomunicacional discursos de poder, de classificação e de dominaçãointelectual, conferindo um tom, uma aparência, uma significaçãopsicológica à experiência de avaliação, como também permite a produçãode idealizações irreais e mitos na percepção dos sujeitos envolvidos emsua realização no contexto escolar. Eles sinalizam ou desenham o tipode progresso escolar que sua mensagem frisa, espelhando um tipo dealuno ou sujeito por ela produzido.

Com isso, a avaliação escolar, quando acentua realces quereduzem ou limitam o potencial da avaliação enquanto recurso deorientação de melhorias de procedimentos de ensino, de aprendizagem

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e de crescimento pessoal e social do aluno, acaba alimentando maisprocessos de dominação, classificação e culpabilização na vida escolardo aluno, com sérias repercussões em sua formação escolar e napercepção da importância da educação em sua vida escolar e pessoal.Os pressupostos que levam à manutenção de realces que reduzem oulimitam o potencial da avaliação nos termos que acima colocamos (e asistemática de avaliação que eles sustentam), precisam ser questionadose discutidos criticamente, em nome de uma compreensão de ensino, deaprendizagem e de progresso escolar do aluno, mais razoável, maisjusta e mais sábia pedagógica e psicologicamente.

O caráter enunciador-destinatário da avaliação escolar

A avaliação escolar como um processo de comunicação tambémdemanda aspectos cognitivos, que interferem na produção de respostasem avaliações. É importante verificar esses aspectos, porque sobre aresposta do aluno o professor irá se debruçar para efetuar seujulgamento ou correção a respeito. A ação de responder por escritouma questão de prova apresenta variáveis psicológicas, cognitivas eafetivas, importantes na transposição de formas de pensamento para aforma escrita, que devem ser consideradas como componentes doprocesso de avaliação. Nas disciplinas ou áreas de conhecimento quese exige muita leitura e produção escrita, e principalmente nas avaliaçõesdissertativas, essa transposição é mais complexa e carregada de detalhesde produção intelectual e de comunicação, que merecem atenção.

A produção textual dos alunos tem relação com a fase dealfabetização e a continuação do processo educacional; e a quantidadee qualidade do vocabulário têm relação com o hábito da leitura. Contudo,a produção escrita é por si só um exercício intelectual e psicológicodifícil e complexo. De acordo com Góes e Smolka (2001), a escrita,diferentemente da fala é um sistema simbólico de comunicação baseadoem regras formais, cuja característica principal é a relação enunciador-destinatário. Essas autoras apontam que essa relação, no exercício da

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escrita, assume muita importância gramatical e psicológica porque, comoprocesso comunicativo, o sujeito afeta a ação do outro e também suaprópria ação, uma vez que ao coordenar as operações mentais paraescrever, estará enunciando seu pensamento para o outro, ao mesmotempo em que se constitui como autor do texto. Esse processo não ésimples, porque envolve a ordenação de palavras ou sua corretaortografia, como também tratar a palavra escrita como objeto e comoveículo de comunicação de idéias para o outro. Essa questão, portanto,se concentra na dimensão comunicativa da palavra e no modo como odestinatário a receberá.

Na escola, a forma escrita assume um caráter de formalidadeonde muitas regras têm que ser observadas. Isso fica muito evidenteem disciplinas e áreas de conhecimento que exigem muita leitura eprodução de texto, ou nos tipos de avaliação dissertativa. Nesse caso, aprecisão comunicativa torna-se muito destacada e valorizada naexpressão e formalização do pensamento, o que na fala cotidiana ouno discurso oral é bem mais livre. Esses fatores demonstram como aEscola causa interferência na expressão natural do aluno formalizando-a, e promovendo formas de controle do conhecimento.

Refletindo sobre os aspectos comunicacionais da produçãoescrita, entendemos que essa relação emissor-destinário está presenteno processo de avaliação escolar. De um modo geral, uma das formasde nomeação da avaliação escolar se configura em um indivíduo queavalia e outro que será avaliado, com todo o simbolismo e significaçãoque isso pode representar no imaginário e na percepção de professorese alunos. Assim sendo, uma avaliação escrita suscita dimensõespsicológicas e pedagógicas importantes, levando-se em conta que umaluno responderá questões de prova para o professor ler.

Isso interfere numa demonstração textual natural e mais tranqüilado que o aluno sabe, devido ao extremo cuidado com a palavra tomadacomo objeto de comunicação e a preocupação do aluno com o “olhar”do destinatário. Se no processo de comunicação em que a avaliaçãopode se tornar, essa relação entre “o olhar” do avaliador e a preocupação

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do aluno em satisfazer esse “olhar”, for conformada como umarelação de poder reforçada direta ou indiretamente na interaçãoeducativa, provavelmente essa configuração afetará a dimensãoenunciador-destinatário, condicionando a produção de respostas emuma prova ou exame.

Nesse tipo de conformação, não estaria sendo, de fato, avaliado oconhecimento assimilado, mas a habilidade do aluno em responder domodo como o professor espera que ele responda. Isso acabadesenvolvendo um perigoso jogo comunicacional entre os sujeitos doprocesso, movido por um código de conduta que atenderia mais àpedagogia do exame (LUCKESI, 1998) do que a verificação da amplitudeou consistência do conhecimento assimilado ou apropriado, e que estariasendo construído ou promovido pelo processo educacional. Issodependerá, também, de como a avaliação é representada por professorese alunos dentro da relação pedagógica estabelecida no cotidiano do ensino.

Os tipos de avaliação escolar e suas implicações psicológicas

O tipo de avaliação também apresenta sutilezas psicológicas quemerecem igual atenção. No caso das avaliações dissertativas, Bigge(1977), Mouly (1993) e Bordenave e Pereira (2004), comentam que elasexigem não apenas seleção, mas também organização de material comsentido, o que demanda um grau de aprendizagem mais elevado, umavez que envolverá pensamento mais complexo para responder. Oprofessor deverá solicitar nos exames que pratica o mesmo nível deaprendizagem que desenvolve em seu processo de ensino, mantendocerta coerência entre objetivos de ensino e nível de aprendizagempromovido. Solicitar numa prova o grau de complexidade deaprendizagem que o ensino não promoveu é uma séria distorção quepoderá comprometer o processo ensino-aprendizagem e oenvolvimento cognitivo e afetivo do aluno com a disciplina.

Bigge (1977) afirma que os alunos tenderão a calibrar ou ajustarseus níveis de aprendizagem de acordo com a avaliação do professor.

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Bigge salienta que a natureza do sistema de avaliação usado peloprofessor influenciará efetivamente na qualidade de aprendizagem queocorrerá, assinalando que os alunos se concentrarão no nível deaprendizagem que a avaliação do professor pede, mesmo que seu estilode ensino seja diferente. O autor quer dizer que o processo mentalpelo qual o aluno espera ser testado determinará seu método de estudare de se preparar para as avaliações. Se o que Bigge afirma for umarelação direta, isso reforçaria ainda mais a necessidade de coerênciaentre objetivos de ensino e avaliação da aprendizagem, visando mantersempre coerência direta entre ambos na avaliação empregada, de modoa se avaliar de fato o que é promovido no cotidiano do ensino.

Mouly (1993) também aponta algumas desvantagens oudificuldades de avaliações dissertativas, que merecem atenção por suasconseqüências na produção de respostas. Como uma prova comquestões dissertativas ocorre num prazo limite de tempo, pode ocorrerimprecisão nas respostas porque o aluno, a depender do caso, não teriatempo suficiente para uma elaboração mais segura das respostas. Dessaquestão “tempo” podem decorrer problemas de imprecisão, porque,segundo Mouly, boa redação, fluência verbal, capacidade para exprimiridéias inteligentes, para evitar má interpretação das questões, ou atémesmo para “tapear” nas respostas, exige um tempo hábil de produçãoque o período dedicado à aplicação da avaliação, às vezes, não permite,pressionando psicologicamente o aluno a escrever rápido de acordocom o tempo limite estipulado, podendo comprometer a qualidade dasrespostas. Ansiedade e apreensão aparecem nesse quadro.

No caso de avaliações do tipo oral, limitações e disposiçõesafetivas interferidoras ocorrem em sua realização. Bordenave e Pereira(2004, p. 281) chamam atenção para os aspectos afetivos que os examesorais suscitam, uma vez que “as incompatibilidades e as simpatias entreexaminador e examinando exercem papel importante, talvezincontrolável”. Esses aspectos, de certo modo, interferem naconfiabilidade desse tipo de prova. Esses autores alertam também paraas reações dos alunos diante desse tipo de prova ou situação, resultando

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que alguns ficam “bloqueados” ou intimidados, enquanto outrospodem se sentir mais à vontade.

No caso de avaliações do tipo objetivas (múltipla escolha,preenchimento de lacunas, certo ou errado, verdadeiro ou falso,comparação qualitativa, associação, etc), Mouly (1993) assinala queapesar de serem capazes de avaliar domínio de conceitos, nãoapresentam as mesmas vantagens que as do tipo dissertativo, que seriam:capacidade de desenvolver mais a aprendizagem e de revelar commais eficiência o processo através do qual o aluno chegou à resposta.Contudo, Mouly acentua que as perguntas do tipo dissertativo são asmais complexas para se elaborar e avaliar, pela subjetividade quecontém. Mouly, apesar de colocar maiores vantagens da dissertaçãosobre a prova objetiva, prefere não desmerecer nenhum tipo de provaafirmando que toda avaliação, bem construída e empregada, podeser útil dependendo da natureza do curso e dos objetivos de ensinoe de aprendizagem que se busca. Para Mouly, a problemática emtorno da avaliação objetiva existe porque muitas vezes não se exploradevidamente o potencial das questões objetivas, pela falta dehabilidade em seu uso ou por falta de uma compreensão mais clarasobre seu alcance pedagógico.

O acima exposto demonstra como produzir respostas em umexame ou prova, implica também em aspectos psicológicossignificativos, que devem ser considerados tanto na elaboração dasavaliações quanto na construção dos significados da função,finalidade e alcance pedagógico que os sujeitos do processoeducacional podem desenvolver a seu respeito. Nesse sentido, aavaliação também se caracteriza como uma comunicação psicológicaque não se esgota na expressão ou no registro formal do julgamentodos resultados obtidos, mas perpassa tudo em que, simbolicamente,o processo de avaliação pode se configurar como mensagem oucomo expressão de sentidos, sentimentos e de tendênciascomportamentais entre os sujeitos nela envolvidos.

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A avaliação escolar com um sentido emblemático

Podemos notar que existe uma série de “mensagens” e “posturas”inerentes ao processo de avaliação escolar que a transforma numacomplexa atividade de comunicação entre professores e alunos queconfere a esta um tom emblemático dentro da relação pedagógica.

Nesse sentido, um professor pode sinalizar para seus alunos demuitas maneiras, tanto o que pensa sobre a sua prática de avaliação quantoseus critérios de julgamento do desempenho deles, e isso servir de indíciospara a formação de pensamentos, sentimentos e atitudes frente aos examese provas realizados nesse esquema. O aluno pode fazer o mesmo com oprofessor. Decorre daí um quadro de afetações mútuas, ou uma troca desentidos com finalidades diversas, manipulatórias ou não, fazendo daavaliação mais um jogo com regras implícitas ou explícitas deenfrentamento, controle ou simulação (e dissimulação), do que umaconstrução pedagogicamente consciente de indicativos para melhoria doensino, da aprendizagem ou crescimento dos sujeitos.

Numa perspectiva psicológica, essas questões demonstram oquão simbólica é a avaliação, e como essa característica produz efeitosimportantes para a construção das histórias de vida no contexto escolar.Quando a avaliação não é utilizada de maneira consciente, razoável oucompetente, essa dimensão simbólica da avaliação permite aconsolidação de alguns mitos em torno dos exames e das provas,prejudiciais à qualidade do processo ensino-aprendizagem.

O professor deve simbolizar por meio da avaliação o caminhodo desenvolvimento e envolvimento do estudante com uma construçãomais efetiva de conhecimento, fazendo com que o aluno compreendao valor ou a importância educacional da avaliação em sua vida escolar.Isso não significa enfraquecer o discurso da avaliação, mas fortalecernele aquilo que serviria para a promoção de um clima mais favorável auma formação escolar consciente, confiante e responsável, com amotivação, a auto-estima e o autoconceito necessários para essaformação, permitindo assim o desenvolvimento do potencial escolar

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do aluno e do processo de construção de conhecimento. Isso implicariaem tornar esse discurso menos autoritário, menos alienado ouestereotipado, em prol de um diálogo mais efetivo, mais construtivo emais pedagógico entre avaliador e avaliado.

Comentários finais

O modo como abordamos a avaliação escolar nesse trabalhonão desfavorece ou questiona a validade desse instrumento. Pelocontrário, afirma ainda mais sua importância dentro do processoeducacional. Ao mostrarmos algumas implicações psicológicas,decorrentes ou acompanhadas das questões pedagógicas inerentes aoprocesso de avaliar, apontamos alguns limites ou realces da avaliaçãoque devem ser vistos como indicativos para um cuidado maior comesse recurso, utilizando-o a serviço do desenvolvimento do processoensino-aprendizagem e do progresso escolar do aluno. O que queremossinalizar é que a avaliação escolar, como um processo de julgamento dedesempenhos escolares e como um processo comunicacional, demandacuidados especiais e competência em seu uso. Essa competência deveser buscada pelo professor, a fim de que a avaliação da aprendizagemescolar – em sua definição, função e finalidade – cumpra um papellegítimo, justo e razoável dentro do processo ensino-aprendizagem ena formação escolar do aluno.

Entendemos que o desenvolvimento dessa competência emavaliações, implica também examinar as representações que professorese alunos têm sobre avaliação escolar e que significados e sentidos tecema respeito de sua definição, função e finalidade, para uma discussão ecompreensão clara de seus efeitos e alcance psicológico, considerandoque a avaliação define ou desenha boa parte da vida escolar. Um caminhopara essas propostas seria abordar a avaliação escolar como um processode comunicação que implica tanto aspectos pedagógicos quantopsicológicos em sua concretização; e compreender o quão simbólicoela pode ser em sua percepção e construção de sentidos dentro docontexto escolar.

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97Implicações psicológicas da avaliação escolar

Estudar a avaliação escolar como uma totalidade pedagógica epsicológica investida de processo de comunicação, não exclui os aspectosfilosóficos que ela expressa, e nem tão pouco os fatores políticos esociais que ela envolve. A clareza sobre o processo de avaliação escolarimplica não somente nas crenças e nos valores que o professor assumeem sua prática docente, como também que filosofia educacional norteiasua prática e que nível de consciência possui acerca dos discursospedagógicos que atravessam sua formação.

Seu estudo envolveria também reconhecer que a avaliação temsignificações construídas na ou pela cultura escolar que a abriga e dáexistência. Isso quer dizer que a sistemática de avaliação como umprocedimento instituído na escola, produz representações importantesna percepção de professores e alunos que vivem e convivem nessecontexto. O conteúdo dessas representações precisa ser discutido comclareza, a fim de se obter uma conscientização dos efeitos dessasrepresentações sobre o processo de avaliação praticado na escola.

Todos os fatores acima citados estão inseridos no discurso daavaliação escolar. O importante é que esse discurso faça sentido tantopara professores quanto para alunos em direção a uma boaaprendizagem e a produção de um diálogo saudável entre professor/aluno, como frisa Rabelo (1998), ou o crescimento pessoal e social doaluno, como aponta Luckesi (1998). Entendemos também que aavaliação escolar não deve estar a serviço do controle inexorável doconhecimento, ancorada em discursos apoiados pela discutível lógicade que a nota numa avaliação, matematicamente falando, seria umrepresentante incorruptível da realidade, como coloca Barlow (2006),sugerindo emblematicamente que esta tem condições de representartudo numa avaliação de aprendizagem escolar.

Considerando essas questões, vemos o estudo da totalidadepedagógica e psicológica da avaliação escolar, junto com os outrosfatores acima citados, um conteúdo imprescindível nos cursos deformação de professores, e um tema indispensável dentro de uma práticadocente reflexiva e crítica, visando a qualidade do processo ensino-aprendizagem e da formação escolar.

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Ruben de Oliveira Nascimento98

Reconhecemos que abordamos um tema complexo,multifacetado e de difícil debate, a depender das crenças, concepções eprincípios pedagógicos adotados pelos sujeitos. No entanto, acentuamosque é preciso ver o quanto a avaliação escolar pode conter de rotulação,dominação, controle e culpabilização dos sujeitos no processopsicológico de comunicação psicológico em que também se configura,e que essas questões precisam ser refletidas e discutidas criticamenteno âmbito educacional. Com essas reflexões, esperamos estimularpesquisas na temática que propomos e incentivar um debate menosalienado e menos estereotipado sobre as possibilidades da avaliaçãoescolar no processo educacional formal, considerando algumasimplicações psicológicas que acompanham sua promoção.

Procuramos mostrar que a avaliação é um recurso muito delicadopsicologicamente, mas muito eficiente e com um alcance pedagógicomuito amplo, quando a serviço da construção de um clima psicológicofavorável para o sadio crescimento escolar do aluno, sua auto-estima eo fortalecimento do conhecimento. Por esses motivos deve serclaramente compreendido o quanto a avaliação pode significar nadefinição da vida escolar do estudante e em sua história de envolvimentocom o conhecimento escolar, e o quanto um discurso e uma posturaavaliativa docente podem contribuir para a formação escolar.

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99Implicações psicológicas da avaliação escolar

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A interdisciplinaridade e as novas formas deorganização do conhecimento

Maria Geralda Oliver Rosa *

Resumo: O artigo traz reflexões acerca do paradigma da mudança de atitudedo trabalho docente frente às novas formas de organização do conhecimento.Nesse contexto, a prática interdisciplinar pode melhorar a qualidade daeducação a ser oferecida: o grau dos questionamentos, da análise e da integraçãoteoria-prática.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Conhecimento. Competências.

The interdisciplinary studies and the new ways of knowledgeorganization

Abstract: The article reflects about the paradigm of the attitude changing ofthe teaching work facing the new forms of knowledge organization. In thiscontext, the interdisciplinary work/ studies may improve the quality of theeducation to be offered, the questioning degree, the analysis and the integrationof theory and practice.

Key words: Interdisciplinarity. Knowledge. Competences.

* Mestranda em Políticas Públicas Educacionais pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 101-112 2007

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Maria Geralda Oliver Rosa102

Introdução

Na década de 1970, o modelo de ensino era voltado para aformação de especialistas adaptados a tarefas específicas em que ademanda pela educação era confundida com a oferta de cargos nomercado de trabalho, desconsiderando-se as aspirações dos estudantese familiares relativas à possibilidade de ascensão social.

O processo de industrialização e desenvolvimento foi vivenciadoem um modelo reducionista que separava trabalho intelectual e manual.Nesse contexto, a interdisciplinaridade se coloca como possibilidadede correção das distorções causadas pela especialização e conseqüentefragmentação das disciplinas (paradigma do padrão europeu de ensinocomo forma de aquisição de conhecimento desde a instituição dosprimeiros cursos de ensino superior no Brasil).

Buscando proposta para superar os limites das disciplinas, a partirde 1970 a professora Ivani Fazenda (2001; 2002a; 2002b) desenvolveupesquisas sobre a interdisciplinaridade com uma abordagem maisintegradora da realidade. Nessa perspectiva interdisciplinar é possívelacreditar na escola como espaço-temporal de inclusão social. Comoafirma Freire (2000), a escola domina e humaniza a realidade.

As políticas públicas educacionais atuais acreditam que auniversalização da educação básica, prioritariamente, e do ensinosuperior deverá transformar a sociedade, inclusive os marginalizados.Jantsch e Bianchetti retratam a interdisciplinaridade exigida na esferado pedagógico-educacional e sua importância para os indivíduos e asociedade, enfatizando o papel do ensino superior:

O indivíduo precisa dele para superar sua condição de meraindividualidade, alçando-se à condição de cidadão, membro dacidade; a sociedade precisa dele para estender a todos osindivíduos emergentes das novas gerações a intencionalidadeda cidadania, de modo a poder garantir a tessitura democráticade suas relações sociais (JANTSCH; BIANCHETTI, 2001, p. 174).

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O entendimento dos mundos físico e social e as articulaçõesentre as disciplinas podem oportunizar, com a interdisciplinaridade,uma melhora no conhecimento qualitativo e quantitativo dosindivíduos. A articulação da teoria com a prática, nos vários níveis deensino, é fundamental como forma de oferecer segurança ao discentee contribuir para uma formação mais crítica e responsável,possibilitando também, dessa forma, incluir os excluídos. Isso porque,nessa concepção, todos podem ajudar na construção doconhecimento, parte-se, pois do entendimento de que as vivênciasdos grupos sociais podem contribuir para o enriquecimento e acriatividade dos projetos pedagógicos das escolas. Isso écontextualizar, é entender que as pessoas não são “sacos vazios”.

O paradigma da mudança de atitude

Segundo Kuhn (1994, p. 225), um paradigma constitui “aconstelação de crenças, valores e técnicas partilhadas pelos membrosde uma comunidade científica”. Paradigmas são verdades sociaisnecessárias para orientar a produção e a construção do conhecimentoem momentos históricos determinados. Uma teoria gera um paradigmaque, em um momento seguinte, por exigência de uma resposta imediata,é substituído por outra teoria, gerando um novo paradigma que precisaser aceito pela maioria dos cientistas integrantes de uma comunidade.

É no ensino (especialmente o superior) que se dá a substituiçãodesses paradigmas, como também a formação e disseminação, pois énele que o tripé ensino (transmissão de conhecimento), pesquisa(construção) e extensão (comunicação à sociedade) influem no contextosocial no qual está condicionado.

A educação superior deve assumir a formação das competências1

necessárias para a atuação nesse novo contexto ao preparar os alunospara participarem do processo de construção do conhecimento. Visõesmecanicistas devem ser superadas dando lugar a uma formação holística,

1 Ramos (2001) define competência como uma unidade delineada pelo saber, pelo saber-fazer epelo saber-ser.

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capaz de gerar novas respostas e de criar alternativa. É preciso buscarsoluções éticas em que a ciência se apresente engajada não apenas naprodução, mas na aplicação do conhecimento.

Forças contraditórias precisam ser conciliadas para que haja umaeducação qualificada. De um lado, é preciso contemplar a tendênciaglobalizadora da economia, que requer especialização, domínio detecnologias, ingresso em um mercado cada vez mais competitivo e, deoutro, não esquecer as necessidades dos indivíduos, pessoas portadorasde diferentes padrões culturais interagindo em sistemas dentro deespaços sociais e momentos históricos determinados e que não podemser deles dissociados.

A formação profissional proposta hoje, na maioria das escolas einstituições de ensino, não mais se adapta aos novos modelos de trabalhoexigidos pelo mercado globalizado. Na proposta de trabalhointerdisciplinar, os agentes - professor e aluno – precisam querer mudarde atitude. O processo ensino-aprendizagem só acontece com partilha,com confiança e principalmente com vontade de mudar. A organizaçãodo tempo e do espaço escolar necessita ser repensada na visãointerdisciplinar. Outras formas de estruturas deverão compor o espaçoescolar como forma de garantir o interesse dos alunos. A Internetoferece infinidades de informações, transgredindo territórios. Não dámais, com tantos fenômenos complexos acontecendo,compartimentalizar tudo, fragmentando ciências e disciplinas.

Na prática interdisciplinar, a construção do conhecimento garantetransferir métodos de uma disciplina para a outra, sem quebrar o sistemade divisão do conhecimento em disciplinas e sem perder o objetivoinserido em seu estudo. O currículo precisa ser capaz de garantir aaderência e a afinidade entre as disciplinas de forma holística e integral.Segundo Ramos (2001, p. 49), “a competência associa-se à conjugaçãodos diversos saberes mobilizados pelo indivíduo na realização de umaatividade, dentre os quais se incluem os conhecimentos, as habilidadese os valores”. Dessa forma, poderá desenvolver competências ehabilidades interdisciplinares para abordagens mais abrangentes e críticas

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de arte, política, economia, saúde, sexo, etc. A escola também precisamudar a forma de ensinar.

Da forma de gestão até o ambiente físico, tudo precisa estarconectado, de forma coerente, para que a proposta flua entre alunos,professores, pais e comunidade. A escola precisa ser um espaço abertoao diálogo, à tolerância. Espaço onde se deve recuperar o passado,construindo o presente e prevendo proativamente o futuro. Escolacomo espaço de inclusão social, pois diante de técnicas interdisciplinaresé possível aflorar habilidades nos alunos até então desconhecidas poreles mesmos. Nesse contexto, o docente precisa afinar reflexivamentesuas ações. Precisa, “afinar” sua comunicação com seus alunos comoforma de legitimar a mediação necessária para essa propostainterdisciplinar. O aluno, nessa proposta, sente-se mais livre, portanto,mais criativo. Descobre-se sujeito ativo do processo ensino-aprendizagem, busca conhecimento, dialoga com o professor, é capazde desenvolver análises e críticas da sociedade em que vive, em diversasáreas do conhecimento.

Assim se manifesta Fazenda (2002a, p.13) quanto ao trabalhointerdisciplinar: “Prazer de ver a teoria na prática e a prática na teoria.Prazer de ver possibilidade na utopia e a utopia na possibilidade. Prazerde tornar o uno múltiplo e o múltiplo uno, o anônimo identidade e aidentidade novo anônimo”.

Os PCN(s), Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensinofundamental e médio, vêm oferecer respectivamente transversalidade einterdisciplinaridade que, na maioria das escolas, parece que ainda nãoforam totalmente incorporadadas no processo pedagógico das escolas.Em muitas situações, os projetos pedagógicos incorporaram a proposta,mas as práticas não. Muitos querem, mas não sabem comoredimensionar, na nova proposta dos currículos, as metodologias, astécnicas de ensino, a avaliação e o material didático. Segundo Fazenda(2001, p. 12), “a exigência interdisciplinar que a educação indica reveste-se, sobretudo de aspectos pluridisciplinares e transdisciplinares quepermitirão novas formas de cooperação, principalmente o caminho nosentido de uma policompetência”.

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Como transpor didaticamente os conteúdos ensinados demaneira científica? Como encarar os determinantes sociais, políticos,econômicos e legais que condicionam sua atuação? Para Fazenda,existem quatro tipos de competências a serem alcançadas no contextointerdisciplinar:

[...] intuitiva [...] própria de um sujeito que vê além do seutempo e de seu espaço [...]; intelectiva [...] a capacidade derefletir é tão forte e presente nele, que imprime esse hábitonaturalmente a seus alunos [...]; prática [...] a organizaçãoespaço-temporal é o seu melhor atributo [...]; e emocional [...]trabalha o conhecimento sempre aliado ao auto conhecimento[...] (FAZENDA, 2001, p. 15-16).

Essas competências implicam numa mudança de atitude e nacapacidade de mediar diálogos e questionamentos surgidos dacontextualização do conhecimento e das transgressões dos saberes. Naformação dos docentes busca-se uma nova ética que contemple a filosofia.

No plano das relações educativas, a discussão curricular, quetoma a competência como referência, parte da crítica àcompartimentação disciplinar do conhecimento, em direçãoa um currículo que ressalte a experiência concreta dossujeitos como situações significativas de aprendizagem.Testemunha-se, assim, a passagem de um ensino centradoem conteúdos disciplinares para uma pedagogia reconhecidae validada pelas competências que desenvolve nos educandos(RAMOS, 2001, p. 49-50).

Novas formas de organização do conhecimento e de avaliação

Freire (1997, p. 33-34) questiona:

Por que não discutir com os alunos a realidade concreta que sedeva associar à disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidadeagressiva em que a violência é a constante e a convivência daspessoas é muito maior como a morte do eu com a vida? Por

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que não estabelecer uma necessária “intimidade” entre ossaberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiênciasocial que eles têm como indivíduos? Por que não discutir asimplicações políticas e ideológicas de um tal descaso dosdominantes pelas áreas pobres da cidade? Há ética de classeembutida neste descaso?

Os movimentos de organização do conhecimento e a produçãode novos conhecimentos demonstram que a utilização inadequada dafunção das disciplinas leva à fragmentação do conhecimento, portanto,o distanciamento da ciência, da arte, da religião, da moral. Perde-se aoportunidade de conseguir articular, em currículos, os programas deensino, de pesquisa e de extensão, oportunizando uma verdadeirainserção comunitária de forma a garantir a transformação por meio daação interdisciplinar da comunidade acadêmica onde a escola está inserta.

Segundo Fazenda (2002b, p. 78), “A construção de uma didáticainterdisciplinar pressupõe antes de mais nada a questão de perceber-seinterdisciplinar”. A interdisciplinaridade, portanto, vai além de umaintegração entre os conteúdos das “disciplinas” (entende-se aqui pordisciplina uma pequena área do conhecimento) que estão fragmentadosnos currículos do ensino básico e superior, pois necessita de novasatitudes, quebrando paradigmas para a transformação do velho no novo.

Em um contexto marcado por transformações do conhecimentocada vez mais rápidas e profundas, não se concebe praticar as disciplinasdispostas em um currículo de maneira fragmentada, isolada. Os cursosde formação de docente procuram mudar seus projetos pedagógicospara uma proposta interdisciplinar. A parceria proposta precisa seriniciada urgentemente; seja com outros docentes, com sua comunidade,com seus alunos ou em livros que farão parte da bibliografia a serutilizada na pesquisa diária e constante do docente. A principal molapropulsora da interdisciplinaridade é o compromisso individual ecoletivo que viabilizará ações integradas para uma educação cidadã. Apercepção de conjunto é de extrema necessidade para possibilitar açõescríticas e criativas, pois o isolamento das disciplinas não possibilita ocomportamento crítico e responsável.

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Segundo Santomé (1998, p. 55), “uma disciplina é uma maneirade organizar e delimitar um território de trabalho, de concentrar apesquisa e as experiências dentro de um determinado ângulo de divisão”.Os níveis de relações entre as disciplinas podem ser: multidisciplinar -informações de várias matérias para estudar um determinado elemento,sem a preocupação de interligar as disciplinas entre si; interdisciplinar -interação entre duas ou mais disciplinas e transdisciplinar - cooperaçãoentre as matérias é tanta, que não dá mais para separá-las.

A interdisciplinaridade não é linear; ela é construída em tempose espaços demarcados pela mudança de atitude, pela confiança eentusiasmo no estudo e na pesquisa científica. Não existe uma “receita”para se agir interdisciplinarmente, pois tudo irá depender dos agentesenvolvidos e seu grau de compromisso político e social com suacomunidade. Hissa (2002) fala da fronteira entre as disciplinas comotransição, como espaço vago pronto para ser invadido, como faixa decontatos e de conflitos. Santomé afirma:

Para algumas pessoas, a interdisciplinaridade tem sua razão deser na busca de uma grande teoria, uma nova etapa dodesenvolvimento da ciência caracterizado por uma reunificaçãodo saber em um modelo que possa ser aplicado a todos osâmbitos atuais do conhecimento. Para outras, o caminho rumoa maiores parcelas de interdisciplinaridade é provocado peladificuldade, que se torna mais evidente a cada dia, de delimitaras questões que são objeto deste ou daquele campo deespecialização do saber. Atualmente, a delimitação dasrespectivas fronteiras é uma disputa existente em muitas áreasdo conhecimento (SANTOMÉ, 1998, p. 45).

Diante das mudanças culturais provocadas pelos meios decomunicação, pelo desenvolvimento tecnológico e científico, o homemtem manifestado sua percepção frente à complexidade do mundomoderno. Novas habilidades e competências cognitivas são exigidas...

O saber científico vem evoluindo nesse contexto onde imagenseletrônicas, telefone, cinema, rádio, televisão, computador, discoscompactos, fax e outros instrumentos entram em contato com os

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109A interdisciplinaridade e as novas formas de organização...

esquemas lógicos e cognitivos, fornecendo ao homem novas formasde poder e de controle sobre as ações e as informações. A tecnologia,nesse contexto, facilita a vida dos homens e destrói fronteiras. Aquantidade e a diversidade de informações provocam rompimento comas fronteiras das disciplinas que modificam seus critériosepistemológicos e propõem novos arranjos lógicos. Ainterdisciplinaridade irá acontecer nas atividades-científicas que envolvesujeito e objeto, respectivamente investigador e investigado e vice-versa.

Nosso objetivo era ensinar e produzir conhecimento de umamaneira nova, por meio do pesquisar–ensinando e ensinando-pesquisando como modo de perguntar, questionar, pressupor,associar, relacionar e compreender o que ocorre e se dá oprocesso de conhecimento em sala de aula, tanto para os alunoscomo para o professor (LIMA, 2003, p. 8).

Dessa forma, a autora propõe ensinar-pesquisando e pesquisar-ensinando como uma nova estética e ética sobre o ato de formarprofessores. A interdisciplinaridade nesse processo de ensino-aprendizagem transgride a fronteira entre as ciências e as disciplinasderrubando seus falsos muros. As estruturas mínimas de conhecimentoque constituem e caracterizam a Matemática, a Geografia, a História,etc. possuem conhecimentos básicos (organização estrutural mínima).As disciplinas desses conhecimentos básicos têm a finalidade depermitir que, por meio delas, se desenvolvam novos conhecimentosintegrados com outras ciências ou disciplinas. A interdisciplinaridadepode começar com a troca e a mudança de conceitos como formainicial básica de transpor fronteiras. As mudanças conceituais são asbases lógica e epistemológica da interdisciplinaridade. Existe umarelação de coerência entre a multiplicidade das manifestaçõescientíficas e a complexidade dos problemas a serem investigados. Aciência avança com as divergências. O Estudo de Caso é um exemplode método que exige uma atividade interdisciplinar, pois necessita deuma diversidade de conhecimentos compartilhados para se chegar aum novo conhecimento.

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Os problemas modernos reclamam por rapidez e inovação naspropostas de soluções. Desta maneira, as novas formas de organizaçãodo conhecimento precisam utilizar as diversas disciplinas do currículona solução dos problemas concretos ou na compreensão dedeterminados fenômenos sob diferentes pontos de vista. Astransformações sociais têm apresentado uma diferenciação deconhecimento que darão origem a uma multiplicidade de disciplinasautônomas visando atender as especializações exigidas no processo detrabalho técnico industrial.

A aplicação de conhecimentos de uma disciplina ou área em outraou outras disciplinas e áreas é um dos níveis inquestionáveis deinterdisciplinaridade. Na medida em que cresce a complexidade dosproblemas científicos que exigem soluções, também aumenta a esfera deconhecimentos necessários e que podem ser aplicados em outras ciênciase disciplinas. Assim, conhecimentos de Geografia podem ser úteis emHistória, de Lingüística em Filosofia da Linguagem, de Antropologia emMatemática e de Matemática em qualquer disciplina, etc.

A articulação entre os diversos campos do conhecimento épossível desde que se estabeleçam os eixos conceituais. A metodologiado trabalho didático é estabelecida por meio da articulação entrediferentes elementos: conceitos, tempo, espaço, dinâmica dastransformações sociais, consciência da complexidade humana e da éticanas relações, importância da preservação do meio ambiente e doexercício da cidadania. O planejamento curricular necessita dessaarticulação, por esse motivo é importante que seja elaborado emconjunto com toda a equipe da escola para que seja selecionado o seueixo integrador.

Na proposta de uma atitude interdisciplinar, avaliar e ser avaliadodeverá fazer parte da rotina de alunos, professores e gestores. A avaliaçãodeve ser trabalhada de forma coerente com o Projeto Pedagógico,instigando a integração entre as áreas de conhecimentos trabalhadas. Aavaliação deve ser proposta para que os agentes envolvidos no processoensino-aprendizagem (alunos e professores) possam analisar sua práticaverificando nela o que precisa ser modificado, melhorado, reestruturado.

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A avaliação deverá fornecer subsídios para novas decisões, e utilizar aanálise crítica das ações para formação do novo conhecimento, paraviabilizar o diálogo e a mudança de atitude. Avaliar nesse contextorequer definição clara de eixos conceituais abordados durante oprocesso ensino-aprendizagem. Requer mudança de atitude para umanova ação, uma nova prática, em que se avalia antes, durante e depois,de forma global, sempre numa perspectiva holística dacontextualização vivenciada.

Considerações finais

A interdisciplinaridade sobrevive do desejo de transformação.Existem vários modos de se realizar a interdisciplinaridade: na pesquisa,na produção de conhecimentos, na sistematização de conhecimentos jáproduzidos nas atividades de ensino, na elaboração de seminários, naorganização de manuais didáticos de ensino, na atualização profissional,nos projetos de pesquisas e programas de ensino. Hissa (2002, p. 214)acredita que “um dos passos a percorrer consiste na apropriação dodiscurso do outro, tornando-o parte de seu próprio discurso”.

É necessário apostarmos na integração entre teoria e prática, naação e na reflexão na escola e no ensino (espaços possíveis de inclusãosocial, racial e de gênero). A escola e a sala de aula são ambientes quepossibilitam aos alunos aprenderem a razão crítica, desenvolveremcompetências comunicativas, criarem e recriarem as bases de formaçãocultural para que aprendam a atribuir significado pessoal à informaçãoe à cultura que levam para a sala de aula. A integração entre os conteúdosde várias disciplinas será fundamental para melhorar a qualidade daeducação a ser oferecida, o grau dos questionamentos, da análise e daintegração entre a teoria e a prática. No ensino superior, ainterdisciplinaridade deve ser priorizada na formação de alunos eprofessores e no desenvolvimento de uma ética cooperativa e de trocasde informações entre seus integrantes. Sem diálogo e troca deinformações ficam comprometidos o trabalho interdisciplinar e osobjetivos que se pretende atingir.

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A pesquisa na escola com crianças pequenas1:desafios e possibilidades

Reginaldo Santos Pereira *Myrtes Dias da Cunha **

Resumo: Este artigo apresenta reflexões sobre uma definição epistemológicae metodológica para o trabalho investigativo com crianças pequenas,considerando que a produção de conhecimentos sobre tais sujeitos, no espaço-tempo da escola, requer uma metodologia de pesquisa que permita e valorizea participação direta do pesquisador no contexto em que a pesquisa se realiza.Tal participação torna-se fundamental para conhecer o dito e o não-dito nasrelações estabelecidas entre crianças, entre elas e os adultos e, assim, é tentarevitar produzir uma interpretação errônea ou inadequada da realidadeinvestigada. Portanto, apresentamos a epistemologia qualitativa como requisitoessencial para o desenvolvimento desta tarefa e consideramos que adiversificação e combinação de instrumentos e técnicas podem ajudar a elucidarhipóteses, questões ou a problemática da pesquisa referente às crianças.

Palavras-chave: Crianças pequenas. Instrumentos metodológicos. Pesquisaqualitativa.

1 Utilizamos neste texto a expressão “crianças pequenas” ao referirmo-nos àquelas com idadeentre 0 a 6 anos e que se encontram no período da educação infantil.* Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professor daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Itapetinga - BA. E-mail:[email protected]** Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora daFaculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federalde Uberlândia (UFU). E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 113-130 2007

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The research in the school with small children: challenges andpossibilities.

Abstract: This article presents reflections on a scientific and methodologicdefinition for the inquiry work with small children, considering that theproduction of knowledge on such subjects, in the space and time of the school,requires a methodology of research that allows and values the directparticipation of the researcher in the context where the research takes place.Such participation becomes a condition to understand what is said and whatis not said in the relations established between children, and between themand the adults and, thus, it is a condition to try to prevent a wrong or inadequateinterpretation of the investigated reality. Therefore, we present the qualitativeinquiry as an essential requisite for the development of this task, consideringthat the diversification and combination of instruments and techniques canhelp to elucidate hypotheses, questions or other problems concerning theresearch about children.

Key words: Small children. Methodological instruments. Qualitative research.

Não basta aprender o que tem de se dizer em todos oscasos sobre um objeto, mas também como devemos falar dele.

Temos sempre de começar por aprender o método de abordá-lo.

(Wittgenstein)

O processo de investigação científica relaciona-se às escolhasparadigmáticas que o pesquisador realiza. Esses paradigmas concentramexplicações e demarcam posicionamentos diante de questões históricas,sociais e epistemológicas, tais como concepções de mundo, educação,sujeitos, relações entre sujeito e objetos de conhecimento, por envolverposicionamentos fundamentais para a produção do conhecimento.Assim, podemos dizer que as escolhas de um pesquisador não sãoneutras ou desinteressadas.

Ao discutir a noção de paradigma e os cuidados necessários paraa utilização desse termo, principalmente no campo pedagógico, Veiga-Neto (2002, p. 43), nos alerta que:

[...] não há maior problema se continuarmos falando emparadigma para nos referirmos a uma visão particular de mundo,

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segundo a qual atribuímos determinados significados – e nãoqualquer significado – ao mundo. [...] Temos de saber ondeestamos e de onde falamos. [...] pode-se se dizer que – queiramosou não, saibamos ou não – sempre nos localizamos numparadigma, a partir do qual constituímos nossos entendimentossobre o mundo e construímos nossas representações. No casoda Pedagogia, por exemplo, quando falamos em currículo e emdidática, quando falamos sobre as funções da escola e os papéisdos professores e professoras, e assim por diante, não estamosfalando sobre “coisas” que já estavam simplesmente aí, à esperadaquilo que estamos a dizer sobre elas. O que estamos fazendoé entrar numa rede discursiva precedente que, antes, já as haviacolocado no mundo, na medida que atribui determinadossentidos a ela.

O desenvolvimento do paradigma positivista na ciência moderna,teve como uma de suas características a distinção entre sujeito e objetodo conhecimento, conduzindo a procedimentos metodológicosestatísticos e experimentais, por meio da dedução. Para Santos (2003,p. 27), esse paradigma dominante da racionalidade científica moderna,ergueu-se nas ciências humanas com os seguintes princípios:

Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigorcientífico afere-se pelo rigor das medições. As qualidadesintrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e emseu lugar passam a imperar as quantidades em queeventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável écientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o métodocientífico assenta na redução da complexidade. O mundo écomplicado e a mente humana não o pode compreendercompletamente. Conhecer significa dividir e classificar paradepois poder determinar as relações sistemáticas entre o quese separou.

Entendemos que, a pesquisa com crianças exige do pesquisadoruma revisão e superação do paradigma positivista e de seus princípios,uma vez que estes ainda influenciam a construção de conhecimentosnos dias atuais. De acordo com nossa experiência, o trabalho com

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crianças pequenas e a produção de conhecimentos sobre tais sujeitosno espaço-tempo da escola requer uma metodologia de pesquisa quepermita a valorização e a participação direta do pesquisador no contextoem que a investigação se realiza e a interação com os sujeitos. No casode crianças pequenas, em diversos momentos da rotina escolar, éimportante poder encontrar outros modos de comunicação, sem nosrestringirmos à linguagem oral.

Consideramos também, no presente estudo, que existemdiversos tipos de infâncias, experiências culturais, e que as criançassão sujeitos ativos e atuantes na realidade. De acordo com Honoratoet al. (2006, p. 4):

Perceber a diferença das visões que são possíveis ao pensarmosnas crianças pode modificar, sobremaneira, as idéias quelevantamos acerca das investigações que nos propomos a fazercom elas. Notamos que essa diferença tem se feito explícita naspesquisas, e, de certa forma, explica o movimento percebidomais fortemente nesta última década: passamos de umaprodução eminentemente sobre crianças, a produzir com ascrianças, rompendo, assim, com a perspectiva etimológica dotermo in fans, entendidas como aquelas que não falam (Grifosda autora).

Assim, compreendemos que a abordagem qualitativa,caracterizada como uma visão da produção do conhecimento comoprocesso construtivo-interpretativo e dialógico (GONZÁLEZ REY, 2002b),é adequada para o desenvolvimento de pesquisas com crianças pequenas.Essa abordagem possibilita uma ação reflexiva do investigador, a partirde uma ressignificação dos dados e de uma busca teórica constantepara dar novos sentidos ao que está sendo encontrado durante oprocesso do estudo. Neste sentido, notamos que a abordagem qualitativa“volta-se para a elucidação, o conhecimento dos complexos processosque constituem a subjetividade e não tem como objetivos a predição, adescrição e o controle” (p. 48).

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A epistemologia qualitativa como suporte para o estudo comcrianças justifica-se, segundo nosso entendimento, pelo fato de quenos estudos da subjetividade, o sujeito é a referência fundamental, assimcomo as diferentes formas de organização social e cultural de contextosonde se insere. Os estudos de González Rey (2004, 2005) resgatam oconceito de subjetividade numa perspectiva dialética e histórico-cultural,abandonando a definição de sujeito como uma essência estática eintrapsíquica. A subjetividade é entendida como dimensão do sujeito erepresenta uma forma diferente de constituição do real, caracterizadapor sistemas simbólicos, de significações e de sentidos, no qual aparececonstituída a experiência humana. Para González Rey (1997, p. 98),

A subjetividade é um sistema com definição ontológica própria,que se expressa em sua própria história, em cujo curso sedefinem suas necessidades. No entanto, ela representa umsistema aberto, constitutivo de um sujeito, que através da suaação é também constituinte do desenvolvimento subjetivo. Omesmo ocorre no plano social: a subjetividade social éconstituída de um cenário irredutível a seu momento subjetivo,cujos processos e fenômenos gerais adquirem sentido subjetivono curso da ação de indivíduos, grupos, comunidades einstituições, que em sua interrelação configuram a complexatrama social. A subjetividade, portanto, é inseparável dasociedade, ela existe como fenômeno que caracteriza a vidasocial e cultural do homem.

Dessa forma, a subjetividade se expressa em diferentes níveis deconstituição e a subjetividade social se configura dentro de diferentesespaços e instituições que caracterizam a vida social do homem, poissua atuação como sujeito histórico e concreto é simultaneamenteindividual e social.

Segundo Bogdan e Biklen (1994), uma pesquisa qualitativa possuias seguintes características: ela toma o ambiente natural como fontedireta dos dados, tendo o investigador um papel fundamental napesquisa; é descritiva, visto que os dados serão analisadosminuciosamente para se estabelecer uma compreensão mais

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esclarecedora do objeto de estudo; ela apresenta interesse pelo processo;a análise dos dados se dá de forma indutiva (as abstrações sãoconstruídas, à medida que os dados são recolhidos e vão se agrupando)e há valorização de significados relativos ao fenômeno estudado.

Consideramos que a pesquisa qualitativa se caracteriza, também,por sua unidade indissolúvel entre o epistemológico e o metodológico.Conforme afirma González Rey (2002a, p. 50-51),

A pesquisa qualitativa não corresponde a uma definiçãoinstrumental, é epistemológica e teórica, e apóia-se em processosdiferentes de construção do conhecimento [...]; se debruça sobreo conhecimento de um objeto complexo: a subjetividade, cujoselementos estão implicados simultaneamente em diferentesprocessos constitutivos do todo, os quais mudam em face docontexto em que se expressa o sujeito concreto. A história e ocontexto que caracterizam o desenvolvimento do sujeitomarcam sua singularidade, que é expressão da riqueza eplasticidade do fenômeno subjetivo.

Outra característica importante para a produção deconhecimentos no contexto escolar, especificamente com criançaspequenas, encontra-se na opção por uma orientação etnográfica, poisesta considera o “estar no campo” como um constante diálogo entresujeito pesquisador e sujeito pesquisado, e mais especificamente,considera a pesquisa como um processo de buscar apreendersignificados produzidos e veiculados por grupos e sujeitos. Aconsolidação de uma orientação etnográfica no trabalho de pesquisaconstitui-se num desafio. A etnografia desafia-nos a construir umadescrição densa da realidade estudada, o que segundo Geertz (1989, p. 20)“é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses,incoerências, ementas suspeitas e comentários tendenciosos”. ParaSarmento (2003, p. 166-167), a descrição densa,

Metaforicamente é a realidade social dos contextos de ação edas suas dimensões interpretativas e simbólicas; escrita de umnovo manuscrito, cujas linhas de sentido se pretende que

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desvelem as opacidades daquele primeiro manuscrito, sem que,no entanto, se sobreponha às dimensões complexas da leitura alinearidade de uma interpretação uniformizante. É exatamentea recusa dessa linearidade que legitima a “densidade” dadescrição [...]. O investigar etnográfico não “colhe dados”, comopor vezes a urgência da frase-feita convida a dizer ou escrever.O investigador produz muitos dos seus materiais – as palavrasdas entrevistas, por exemplo – na interação social com os atoresdo terreno (grifos do autor).

Destacamos, ainda, que compreender aspectos relacionados àescola como um todo e, especificamente, às crianças pequenas, não étarefa fácil, uma vez que, “estamos interessados em compreender comonossos sujeitos dão sentido para suas vidas, como interpretam suasexperiências ou estruturam o mundo social no qual vivem” (BOGDAN;BIKLEN, 1994), o que requer, por sua vez, uma diversificação dosinstrumentos de pesquisa para construção dos dados. Nessa perspectiva,concordamos com Delgado e Müller (2005, p. 9) quando afirmam que:

Em etnografia realizamos um trabalho de construção e tessitura,que se relaciona com nossas experiências sociais e culturais emconfronto com as experiências das crianças, estranhas epróximas, íntimas e distantes de nós adultos. Realizamos,portanto, um duplo exercício de familiarização e distanciamentoque é, no mínimo, instigante. Este jogo tenso de estabelecerrelações entre o que é estranho e, ao mesmo tempo, tão próximoe íntimo, é o que consideramos um desafio na produção nosestudos com crianças.

Vale ressaltar, que o envolvimento do pesquisador no contextoeducativo, é fundamental para conhecer o dito e o não-dito nas relaçõesestabelecidas entre os sujeitos levando-os em consideração naconstrução dos dados, tentando evitar, assim, uma leitura linear e umainterpretação uniformizante da realidade investigada.

Kramer (2002, p. 44-45), ao analisar as concepções de infânciasubjacentes às pesquisas atuais, enfatiza a Antropologia e a pesquisaetnográfica como fornecedores de importantes recursos para pesquisar

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a diversidade, estranhar o familiar e para compreender o outro em seuspróprios termos:

A pesquisa etnográfica fornece estratégias e procedimentosmetodológicos influenciando estudos do cotidiano escolar, daprática pedagógica e das interações entre as crianças e os adultos.Aliadas à sociologia e à história, a antropologia e a pesquisaetnográfica – exercício de encontro com o outro e, portanto,consigo mesmo – combinam um cuidadoso mergulho críticono trabalho de campo com um severo questionamento, quantoao processo de pesquisar.

Assim, a investigação com crianças pequenas, no contextoescolar, requer um trabalho colaborativo que se inicia peladisponibilização do pesquisador como participante ativo na investigaçãoe prolonga-se nos encontros, nas entrevistas e na análise de documentos.Podemos dizer que o conhecimento resultante desse processo exprime-se em um texto colaborativo:

Um texto etnográfico – sobretudo quando é um textocolaborativo – é, em suma, uma construção lingüística deenorme exigência conceptual e formal. Uma “descrição densa”de interpretações e ações, que se vai desenvolvendosintagmaticamente na explanação das lógicas plurais em que seestruturam os ambíguos contextos de ação, convocando aodiálogo intratextual a polifonia das vozes que se fazem ouvirnas escolas, por meio da estratégia colaborativa que permitarelativizar as distâncias entre investigadores e entrevistados,estabelecendo a equidade – tal é, em síntese, o complexodesiderato do texto etnográfico (SARMENTO, 2003, p. 172-173,grifos do autor).

Ainda hoje, as crianças têm permanecido à margem das pesquisas.Nós pesquisadores também possuímos dificuldades para comunicarmoscom elas, e em vê-las como sujeitos sociais e históricos, que conviveme produzem no cotidiano das instituições escolares infantis. Por isso,nos perguntamos: quais seriam os instrumentos adequados e necessários

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para a construção de conhecimentos sobre modos de agir, pensar, sentire falar de diversos grupos de crianças? Como construir essesinstrumentos, de modo a possibilitar a presença das múltiplasexperiências e vozes, que se fazem presentes nos contextos escolares,especificamente, vozes das crianças pequenas?

Para Delgado e Müller (2006, p. 11-12), “a investigação comcrianças, pelos inúmeros desafios que nos coloca, deve ser um processocriativo, pois, os pesquisadores das infâncias partilham que estudarcrianças é algo problemático, principalmente ao considerarmos asdistâncias entre adultos e crianças”. Nessa perspectiva, torna-sefundamental na pesquisa com crianças pequenas, nos contextoseducativos, entendê-las como sujeitos ativos que constróem suaspróprias culturas e influenciam a produção do mundo adulto. Daí, énecessário considerar as condições sociais em que vivem, comointeragem, interpretam suas experiências e produzem sentido sobre oque fazem no seu cotidiano.

Precisamos conviver com as incertezas nos estudos dascrianças, agora não mais compreendidas como sujeitospassivos na apreensão dos programas culturais de governodos seus comportamentos. Elas são capazes de burlar algumasregras e normas dos adultos e criam entre elas verdadeirossistemas culturais na apreensão dos significados do mundoque ainda necessitamos estudar e compreender (DELGADO;MÜLLER, 2006, p. 3).

Neste sentido, consideramos que a diversificação e combinaçãode instrumentos e técnicas, podem ajudar a elucidar hipóteses, questõesou problemáticas de pesquisa. Essas ferramentas metodológicas são: aobservação participante, a entrevista, produção de desenhos eelaboração de histórias pelas crianças, registros audiovisuais, atividadeslúdicas (desenhos, pinturas, recorte e colagem de revistas, dramatizações,situações de faz-de-conta), dentre outras.

Entendemos que a observação participante constitui-se em uminstrumento importante para o pesquisador pelo seu caráter dialógico

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e interativo, e por levá-lo ao encontro direto com os sujeitos e revelaruma diversidade de fenômenos e culturas de crianças no cotidianoescolar. Ao discutir o papel das metodologias e técnicas de pesquisautilizadas com crianças, especificamente a observação participante, Cohn(2005, p. 45) analisa que

Seu caráter dialógico, de interação, terá que ser enfatizado,permitindo ao pesquisador tratar as crianças em condições deigualdade e ouvir delas o que fazem e o que pensam sobre oque fazem, sobre o mundo que as rodeia e sobre ser criança, eevitando que imagens “adultocêntricas” enviesem suasobservações e reflexões. Significa lembrar desde a pesquisa (enão apenas na análise dos dados), que a criança é um sujeitosocial pleno, e como tal deve ser considerado e tratado. Evita-se, assim, que o reconhecimento da criança como um sujeitoativo e produtor de sentido sobre o mundo seja apenas umpostulado, esvaziando-lhe seu significado (grifos da autora).

A observação participante é um recurso importante no estudoqualitativo, porém, como já dissemos antes, é necessária a diversificaçãodos instrumentos para que vozes de crianças sejam amplamente ouvidas.Para Cohn (2005, p. 45-46),

A observação participante pode ainda ser complementada comoutros recursos, tais como coleta de desenhos e históriaselaboradas pelas crianças e registros audiovisuais. As opçõessão muitas, e abrem-se à criatividade, aos interesses e recursosdo pesquisador, além das necessidades específicas da pesquisa.Pode-se, por exemplo, optar por coletar desenhos realizadospelas crianças com um mínimo de intervenção, seja nosmateriais, no local de realização, no conteúdo; pode-se aocontrário, pedir que as crianças façam desenhos a partir de umdeterminado tema de interesse de pesquisa, como, digamos, afamília ou a escola. Ou ainda fornecer material, como recortesde imagens de revistas para uma colagem. [...] Tendo osdesenhos em mãos, o pesquisador pode pedir às crianças queos comentem, ou mesmo que elaborem histórias a seu respeito.

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Outra estratégia importante é a entrevista. Esse recurso produzum material privilegiado e constitui-se numa opção teórico-metodológica que está no centro de vários debates entre ospesquisadores. Em geral, a maior parte das discussões trata de problemasligados à postura adotada pelo pesquisador em situação de contatocom o entrevistado, ao seu grau de familiaridade com o referencialteórico-metodológico adotado e, sobretudo, à leitura, interpretação eanálise do material recolhido no trabalho de campo (DUARTE, 2002).Neste sentido, podemos pensar, também, que a entrevista constitui-senum processo de interação humana, onde estão presentes expectativas,sentimentos, dúvidas, interesses, diálogos, resistências, produção designificados e saberes que geram novos conhecimentos. Ao pesquisadorque investiga crianças pequenas, cabe a tarefa de dimensionar seutrabalho com uma leitura/escrita e escuta sensível para captar o que semanifesta nas produções do sujeito pesquisado, de modo a ampliar aanálise. Para Szymanski (2002, p. 14), a entrevista,

Se torna um momento de organização de idéias e de construçãode um discurso para um interlocutor, o que já caracteriza ocaráter de recorte da experiência e reafirma a situação deinteração como geradora de um discurso particularizado [...].Um encontro interpessoal no qual é incluída a subjetividadedos protagonistas, podendo se constituir um momento deconstrução de um novo conhecimento, nos limites darepresentatividade da fala e na busca de uma horizontalidadenas relações de poder.

O recurso da entrevista permitirá também a apreensão designificados subjetivos e complexos, onde talvez instrumentos fechados,tal como o questionário, não conseguissem produzir informaçõessignificativas. A entrevista com crianças requer cuidados adicionais. Asanálises de Carvalho et al. (2004, p. 291-292) sobre o uso desseinstrumento em estudos com crianças indicam que

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A entrevista com crianças é uma técnica ainda relativamentepouco explorada na literatura, inclusive porque, usualmente,pensa-se a criança como incapaz de falar sobre suas própriaspreferências, concepções ou avaliações. Com um conhecimentosobre a criança cada vez mais acurado, essa suposição tem sidoquestionada e tem sido explorado, crescentemente, o uso daentrevista com crianças.

A realização da entrevista envolve um processo de implicação, oqual se constitui em “um engajamento pessoal e coletivo do pesquisador.[...] Consiste sempre em reconhecer simultaneamente que eu implico ooutro e sou implicado pelo outro na situação interativa” (BARBIER, 2003,p. 101). Nas pesquisas realizadas por Carvalho et al. (2004, p. 299), aoexplorarem o recurso da entrevista, concluíram que

A qualidade do dado colhido depende, entre outros fatores, daqualidade da relação entre o entrevistador e o entrevistado; massugerem, principalmente, a disponibilidade e motivação dacriança para esse tipo de instrumento de coleta, desde quecondições favoráveis de interação sejam oferecidas. [...] Aentrevista é o principal instrumento de coleta, na medida quese deseja apreender as concepções e percepções da criança sobredeterminado fenômeno ou situação; [ela] complementa a análiseda observação direta do comportamento, oferecendo pista paraa compreensão de seu processo de desenvolvimento, a partirde seus comentários e justificativas.

Acrescentamos que, dada a complexidade de investigaçõesqualitativas, que envolvem o estudo com crianças, as combinações entreinstrumentos e técnicas de pesquisa podem ampliar o potencialinterpretativo e analítico da pesquisa. Desta forma, destacamos acontribuição de Soares (2006, p. 36-37), quanto a algumas ferramentasmetodológicas, que podem ser complementares ao processo deconstrução dos dados na investigação participativa com crianças:

Ferramentas metodológicas que apelam à oralidade: astradicionais entrevistas individuais, aos pequenos grupos de

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discussão ou aos debates em grande grupo. [...]; as que apelamà criatividade em termos de registro escrito ou gráfico: diários,ensaios ou registros do cotidiano, onde crianças que já dominamo registro escrito, podem assinalar todos aqueles aspectos quecom elas foram definidos relativamente à agenda deinvestigação. [...] as que apelam à utilização de recursos demultimídia: a utilização da fotografia e do vídeo com o manuseiodas crianças [...] as que apelam à expressão dramática: uso detécnicas dramáticas, de role-play ou ainda a observação desituações de faz-de-conta, bem como a realização de pequenasdramatizações à volta de um determinado tema.

Um outro recurso importante para a pesquisa com criançaspequenas, que pode superar a idéia de criança como sujeito passivo, éobservá-la em ação. O registro das crianças em ação pode ser realizadoatravés da técnica da vídeo-gravação, a qual se constitui em uma fontede informações rica, pois, apresenta imagens do sujeito em processosinterativos, ocorridos ao longo do desenvolvimento de diversas práticas.

Honorato et al. (2006, p. 6) problematiza a busca dosencaminhamentos próprios que melhor atendam o trabalho comcrianças, a partir da seguinte questão: “Como registrar tantosmeandros, tantos detalhes, tantas relações para depois debruçar-sesobre?”. Em seguida, afirma que “há ditos que não são pronunciadosoralmente; ditos que não são captados por um gravador e acabamperdidos sem um registro, desdobrando-se a idéia de que a captaçãoda imagem também pode revelar-se como rica fonte de elementos aserem analisados”.

A autora ainda destaca que

Palavra e imagem em movimento fazem, da vídeo-gravação,modos de buscar capturar a essência das narrativas em jogo.[...] A video-gravação não apenas captura mais ângulos de umadada realidade como ainda, por sua capacidade mimética,também minimiza a intervenção do pesquisador – ela não aelimina, é claro, pois há sempre o olhar de quem filma. Olharmarcado social, histórica e culturalmente. Olhar não-neutro quefocaliza e traz aspectos ao centro da cena, enquanto relega

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outros a segundo plano ou deixa-os de fora. Aquele que filma,caso não seja o próprio pesquisador, já é um co-autor dapesquisa, portanto, deve estar totalmente afinado com esta(HONORATO et al., 2006, p. 7).

Outro aspecto a considerar nos processos de registro de eventos,por meio da vídeo-gravação, está relacionado com a possibilidade demostrar as imagens registradas para as próprias crianças e produzir,mediante tal apresentação, novos dados. Para Honorato et al. (2006, p.9) “mostrar às crianças suas ações anteriormente gravadas em vídeopode ser, então, uma forma de devolutiva do visto/vivido por elas” econcluem que “ver-se em ação é, então, entendido como possibilidadede ressignificação dos papéis de pesquisador-pesquisado, sublinhandoo caráter de co-autoria nas pesquisas que se utilizam desteinstrumental”.

Os estudos de Gobbi (2005, p. 86-87) apresentam os desenhosinfantis em conjugação à oralidade, como ferramenta metodológicaimportante para que se possa conhecer mais e melhor crianças pequenas,suas infâncias, seu contexto social, histórico e cultural. A autora entendeque essa não é uma tarefa simples, mas são amplas as possibilidades dever, olhar, interpretar e analisar os desenhos infantis. Ao narrar o processode construção de sua pesquisa com desenhos em conjugação à oralidadeem uma escola de educação infantil, ela comenta que o desenho foiproposto de forma não dirigida com a intenção de suscitar falas:

O desenho da criança é apontado como possibilitador de ummaior aprofundamento sobre como crianças pequenaspercebem o mundo no qual estão inseridas. Parte do princípiode que nós adultos falamos sobre elas, sem, contudo, ouvi-lasou mesmo enxergá-las em suas produções, e de que nossoconhecimento, de um modo geral, ainda é muito pequeno. Nestesentido, o desenho seria um instrumento oferecido para que,sem tornar a escola de educação infantil um espaço terapêuticoem busca de fases do desenvolvimento psíquico ou mesmo deenquadramento de crianças em padrões de normalidade,pudéssemos conhecer mais sobre os olhares e as concepções

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que as crianças pequenas têm de seu universo, que é tambémpor elas construído, vivenciado, imaginado, desejado, desenhado.

Portanto, apesar de considerarmos que utilizado isoladamentenenhum instrumento dá conta de produzir respostas para problemasde pesquisa, as estratégias abordadas acima podem gerar,progressivamente, no desenvolvimento da investigação, uma reflexãoacerca das crianças, como sujeitos históricos, sociais, ativos e parceirosna construção de conhecimentos de seu cotidiano e de suas culturas.

Além das questões epistemológicas e metodológicas,apresentadas no processo de investigação com crianças, existemaspectos deontológicos e éticos importantes para serem pensados pelospesquisadores, uma vez que, é essencial considerarmos as crianças comosujeitos sociais e parceiros na investigação. Para Soares (2006, p. 32),

A ética na investigação com crianças necessita considerar aalteridade e diversidade que definem a infância enquantogrupo social, com especificidades que o distinguem de outrosgrupos, e que exige por isso mesmo, considerações éticasdiferenciadas e com singularidades que dentro de uma mesmacategoria social (a infância), encerram infindáveis realidades,dependentes de aspectos como a idade, o gênero, a experiência,o contexto sócio-econômico, as quais dão origem às múltiplasformas de estar, sentir e agir das crianças e, por isso mesmo,exigem considerações de cuidados éticos singulares,decorrentes da consideração da diversidade que encerram.

Assim, a dimensão ética assume um papel fundamental naspesquisas com crianças e torna-se urgente a discussão sobre a posturado pesquisador, pois novas responsabilidades e desafios se apresentam,seja no processo de autoria, autorização, anonimato ou na devoluçãodos achados da pesquisa (KRAMER, 2002).

Por fim, consideramos que a investigação qualitativa exige,fundamentalmente, a habilidade do pesquisador na articulação teóricae empírica em torno de seu objeto e da problemática de pesquisa, oque demanda esforço, trabalho colaborativo e a (re) construção de

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ferramentas teórico-metodológicas, tornando-as auxiliares na captaçãode indícios, na descrição de práticas, dos ditos e não-ditos no cotidianoescolar, tendo em vista a elaboração de hipóteses e reflexões quelevantem dúvidas ou reafirmem convicções, mas que, sobretudo,promovam o resgate das vozes e ações das crianças.

Referências bibliográficas

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Aproximações entre a Psicologia de Vygotsky e aFilosofia para Crianças de Lipman: questões sobre

aprendizagem e desenvolvimento

Carmen Lúcia Dias *Cláudio Roberto Brocanelli **

Carla Luciane Blum Vestena ***

Resumo: O presente artigo aborda algumas discussões sobre a aprendizagemcomo necessidade humanizadora criada com motivos e interesses do indivíduo,contribuindo para o seu desenvolvimento, tendo como referência a psicologiahistórico-cultural de Vygotsky e o pensamento de Lipman sobre aaprendizagem escolar. Ressaltamos que a relação do sujeito cognoscente como objeto de conhecimento ocorre por meio de interação que é mediada pordois elementos básicos: os instrumentos e os signos, ocorrendonecessariamente, por meio do processo de internalização.

Palavras-chave: Aprendizagem e humanização. Educação para o pensar.Teoria histórico-cultural.

* Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp– Campus de Marília, SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em EpistemologiaGenética e Educação (Gepege) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Neurociências Memóriae Envelhecimento da Unesp. Coordenadora de Projetos e Docente da Fundação para oDesenvolvimento do Ensino, Pesquisa e Extensão (Fundepe – Marília, SP). E-mail:[email protected]** Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”(Unesp), campus de Marília. Membro do Grupo de Estudos em Educação e Filosofia (Gepef).E-mail: [email protected]*** Doutoranda em Educação pela Unesp, campus de Marília. Membro do Gepege. E-mail:[email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 131-144 2007

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Carmen Lúcia Dias, Cláudio Roberto Brocanelli e Carla Luciane Blum Vestena132

Approaches between the Psychology of Vygotsky and Lipman’sPhilosophy for Children: questions on learning and development

Abstract: The present article discusses on the learning as human necessitygenerated by the person’s reasons and interests, contributing to its development,having as reference the Vygotsky’s description-cultural psychology, and theLipman’s thought on the school learning. We stand out that the relation of thecognoscente person with the knowledge object occurs through the interactionthat is mediated by two basic elements: the instruments and the signs, occurring,necessarily, by the internalization process.

Key words: Learning and humanization. Education to thinking. Description-cultural theory.

Introdução

No presente texto, faremos algumas considerações sobre aPsicologia do Desenvolvimento segundo Lev Semionovich Vygotsky,apresentando aspectos de seu pensamento e as idéias que se tornarammais interessantes para a Filosofia de Matthew Lipman;1 este, por suavez, nos oferece condições para pensarmos a realidade da criança naescola e a necessidade de uma educação para o pensar, que ele chama de“pensar bem”, de acordo com o ambiente em que está inserida. Amaioria das obras de Vygotsky no campo da Psicologia(desenvolvimento do indivíduo, pensamento e linguagem) foiconsiderada tempos depois de sua morte. Vale mencionar que Vygotskyviveu pouco tempo: nasceu aos 05 de novembro de 1896, na cidade deOrsha, nordeste de Minsk, na Rússia, e morreu de tuberculose aos 11de junho de 1934, com 38 anos. No que se refere à educação russa, suapresença e contribuição foram marcantes.

Lipman e Vygotsky pertencem a correntes epistemológicasdistintas, mas que podem ser tratadas dentro de uma discussão referenteà educação e à aprendizagem que se dá em um ambiente de interação

1 Matthew Lipman nasceu em Vineland no Estado de New Jersey, Estados Unidos, no dia 24 deagosto de 1923; dedicou-se à Filosofia em várias universidades, dentre elas, a Universidade deColúmbia; é fundador do Programa de Filosofia para Crianças e do Instituto para oDesenvolvimento de Filosofia para Crianças.

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dos indivíduos. O primeiro autor em questão, de uma corrente que seguea tradição do progressivismo e pragmatismo norte-americano,principalmente partindo das idéias de John Dewey, ocupa-se com asquestões da aprendizagem e do pensar dentro de princípios de democracialiberal. Essa educação visa a formação do indivíduo para uma sociedadepragmática onde cada um deve buscar o entendimento da realidade socialpara o bem individual. Por sua vez, o outro autor, situado na tradição domarxismo, propõe o pensar e a educação interacionista numa realidadecomunista em que a formação de cada indivíduo deve contribuircoletivamente para o desenvolvimento da sociedade.

Aprendizagem e desenvolvimento

Vygotsky, antes de se aprofundar em Psicologia, estudou aLingüística, as Ciências Sociais, as Artes e a Filosofia; mais tarde dedicou-se com maior intensidade e interesse à Psicologia do Desenvolvimento,baseando-se nos estudos e pesquisas de psicólogos (alunos ecolaboradores contemporâneos) que buscaram compreender ocomportamento das crianças. Pois as Funções Psicológicas Superiores2

não estão presentes desde o nascimento, mas são fruto de um processode desenvolvimento que envolve a interação do organismo individualcom o meio físico e social em que o indivíduo vive. Os pesquisadoreslevaram em conta algumas questões que, se respondidas, permitem ummaior entendimento da psicologia humana e do desenvolvimentocrescente a partir do meio cultural e suas inter-relações.

1) Qual a relação entre os seres humanos e o seu ambientefísico e social? 2) Quais as formas novas de atividade que fizeramcom que o trabalho fosse o meio fundamental derelacionamento entre o homem e a natureza e quais são asconseqüências psicológicas dessas formas de atividade? 3) Quala natureza das relações entre o uso de instrumentos edesenvolvimento da linguagem? (VYGOTSKY, 1989, p. 21).

2 Para Vygotsky, fazem parte das Funções Psicológicas Superiores a atenção voluntária, a memóriaativa, o pensamento abstrato, a linguagem, as ações conscientemente controladas e ocomportamento intencional.

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Essas são questões que nortearam os estudos e o pensamentode Vygotsky em relação à Psicologia do Desenvolvimento. Com baseem experimentos com animais (chimpanzés) e crianças, perceberam-segrandes diferenças no desenvolvimento de ambos, observandoprincipalmente, que as crianças passam a dominar muito mais oambiente em que vivem. Os animais manipulam os objetos sem fazerconexão alguma. Por sua vez, as crianças, quando começam a manipulá-los, desenvolvem gradualmente os sentidos e, por conseqüência, osobjetos passam a ter significados (específicos e adequados) para elas.Quando a criança reconhece que os signos verbais também têm o seusignificado apropriado, ela vive um momento único, pois é “a maiordescoberta de sua vida” (VYGOTSKY, 1989, p. 26). Após essas descobertase conexões, a criança tende a fazer novas experiências com os objetose palavras, mantendo conseqüentemente uma evolução no domíniodas relações entre os signos e seus significados.

A relação do sujeito que conhece com o objeto de conhecimentoocorre por meio da interação, necessariamente mediada por doiselementos básicos: 1) pelo uso de instrumentos – desde os mais básicosaté os mais sofisticados – que são construídos pelo homem, ampliandoas possibilidades de transformação da natureza; 2) pela constituição euso de signos construídos coletivamente – como a linguagem, umsistema simbólico de todos os grupos humanos. Ao criar osinstrumentos da cultura, o homem cristalizou nesses instrumentos asaptidões, habilidades e capacidades humanas necessárias à sua utilização.Quando a criança aprende a realizar a atividade adequada para a qual oobjeto foi criado, ela se apropria dessas capacidades humanas. Porexemplo: quando ela aprende – por meio de um parceiro mais experiente– a utilizar a colher de acordo com o uso social para o qual ela foiinventada e determinada culturalmente.

Após a descoberta da fala e o uso de signos, o desenvolvimentotoma proporções diferenciadas e mais aceleradas. Ocorre o controledo ambiente pela fala, o controle do comportamento, a produção denovas relações com o ambiente em que a criança está inserida, nova

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organização do próprio comportamento e, mais tarde, tudo isso iráproduzir o intelecto, o qual é base para o trabalho produtivo e formahumana para o uso e desenvolvimento de instrumentos. Desse modo, ouso dos signos é análogo ao uso de instrumentos, uma vez que, ao criaros signos o homem também cristalizou nesses signos as capacidadespsicológicas que determinaram a sua criação, auxiliando-o nas suasatividades psíquicas. Por exemplo, a criança se apropria do conceito, ouseja, do que ele representa, fazendo uso da função social do signo.

Cabe ressaltar que a apropriação dessas capacidades não ocorreespontaneamente, pois ela é dependente das experiências vivenciadasnas relações entre as pessoas. Pergunta-se: como as crianças seapropriam dessas capacidades? Vygotsky explicou que odesenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores ocorre peloprocesso de internalização, o que implica na reconstrução interna deuma operação externa, significando que o plano interno não é pré-existente, mas ele é construído nesse mesmo processo. Qualqueraquisição dessas Funções depende da Lei de Dupla Formação: numprimeiro momento essas funções ocorrem entre as pessoas (categoriainterpsicológica) e, num segundo momento, no interior do sujeito(categoria intrapsicológica). Com relação à linguagem, esta édeterminante na constituição da função interpsicológica.

Para Vygotsky, a gênese do pensamento (inteligência) está naconvergência entre o desenvolvimento da linguagem e odesenvolvimento das ações práticas, momento no qual a criança começaa nomear com significado a sua ação prática. Desde o nascimento, acriança começa a desenvolver a ação prática e a linguagem (a capacidadede articulação dos sons), porém esse desenvolvimento ocorre emparalelo e, ao mesmo tempo, independentemente um do outro. Nessemomento a criança começa a nomear com significado a sua ação prática,ocorrendo uma convergência: ou seja, a ação prática e a linguagem seinterligam, dando origem ao pensamento.

Na criança de quatro a cinco anos, a fala acompanha toda a suaatividade: enquanto ela age, fala o que está fazendo ou o que vai fazer

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logo a seguir. Por exemplo, quando quer atingir um objetivo (pegar umobjeto, um brinquedo, um doce), a ação e a fala fazem parte de umamesma função psicológica (com a fala, a criança cria maiorespossibilidades para solucionar seus “problemas” e controlar seucomportamento) (VYGOTSKY, 1989, p. 30). Ao mesmo tempo, acomplexidade de problemas aumenta na criança o uso emocional dalinguagem, bem como seus esforços para a solução mais inteligentedesses problemas. Quando não consegue resolver os problemas, apelapara o adulto (este é o momento da fala socializada). Com o tempo,descobre que, apesar das dificuldades, pode resolver alguns problemassem o auxílio de outro mais experiente (nesse momento a fala socializadajá é internalizada). Um passo final nesta fase é a função planejada dafala, quando a criança é capaz de planejar e desenvolver por si mesma oseu futuro (VYGOTSKY, 1989).

Todo esse processo pode ser resumido em um trecho quedescreve o comportamento da criança e sua relação com a linguagem:

[...] a capacitação especificamente humana para a linguagemhabilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliaresna solução de tarefas difíceis, a superar a ação impulsiva, aplanejar uma solução para um problema antes de sua execuçãoe a controlar seu próprio comportamento. Signos e palavrasconstituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meiode contato social com outras pessoas. As funções cognitivas ecomunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de umaforma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais (VYGOTSKY, 1989, p. 31).

Os mecanismos psicológicos ligados à fala se desenvolvemgradativamente, de acordo com o meio em que a criança vive; maistarde são desenvolvidas a percepção e a atenção. Depois dessa etapa, apercepção que era parcial, compreende o todo, chegando a atingirformas cada vez mais complexas de percepção cognitiva. As relaçõesda criança com os objetos e signos formam o meio principal para adistinção entre estes e os significados. Desse modo, “a relação entre opensamento e a palavra não é uma coisa, mas um processo, um

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movimento contínuo de vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa” (VYGOTSKY, 1991, p. 108). Tudo o que é aprendido não ocorremecanicamente nem meramente porque alguém ensinou, mas porquefaz parte de um processo de desenvolvimento e aprendizagem porrelações entre o meio, com seus objetos e conceitos.

Outro momento importante do desenvolvimento da criança équando ela descobre a capacidade de memória. A memória permiteque relacione elementos de experiências passadas com as experiênciasdo presente. Dentro desse panorama de desenvolvimento eaprendizagem estão presentes duas linhas qualitativamente diferentes:uma é formada pelo conjunto de processos elementares, de origembiológica (capacidade de andar, pegar coisas, etc.); a outra é formadapelas Funções Psicológicas Superiores, de origem sócio-cultural (usode instrumentos, aquisição da fala). A história da criança nasce doentrelaçamento dessas duas linhas, considerando-se que o que ébiológico é dado (é natural) e o que é cultural (costumes, valores,comportamentos, etc.) é adquirido.

Para Vygotsky (1989, p. 95), o aprendizado, portanto, começabem antes de a criança freqüentar a escola. Na verdade, “aprendizado edesenvolvimento estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vidada criança”. Então, a função e o valor da escola, estão na introdução deelementos novos no aprendizado, devendo estar combinado de algumamaneira com o nível de desenvolvimento da criança.

Com essa idéia, Vygotsky leva em conta o nível de desenvolvimentoreal (que é a solução independente de problemas) e a zona de desenvolvimentopróximo (que é o que define funções que ainda não amadureceram enecessitam da assistência do adulto ou qualquer outra pessoa mais capazque possa orientar a criança). Isso quer dizer que suas capacidades ehabilidades e suas inter-relações juntamente com o meio em que vivedefinem o desenvolvimento mental, ou seja, a interiorização das açõespraticadas durante o desenvolvimento faz o pensamento, e ainteriorização do diálogo com os demais indivíduos e o meio leva alinguagem a influenciar cada vez mais o pensamento. Podemos afirmar

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que existem dois grupos de funções nos indivíduos quando aindacrianças: funções que eles já dominam e funções3 que eles só podempôr em ação sob a orientação de outra pessoa ou em grupos e emcolaboração umas com as outras. Isso reforça que “o aprendizadohumano pressupõe uma natureza social específica e um processo atravésdo qual as crianças penetrem na vida intelectual daquelas que a cercam”(VYGOTSKY, 1989, p. 99).

Com a idéia de zona de desenvolvimento próximo, Vygotsky (1989, p.101) formula uma nova idéia: “a de que o ‘bom aprendizado’ é somenteaquele que se adianta ao desenvolvimento”. Assim, aprendizado não édesenvolvimento, mas o aprendizado adequadamente organizado resultaem desenvolvimento mental e põe em movimento os processos dedesenvolvimento que, de outra forma, não aconteceriam. Conclui-se queo aprendizado escolar é um aspecto essencial e necessário do e para odesenvolvimento das funções psicológicas e intelectuais. O aprendizadoe o desenvolvimento seguem o mesmo caminho, mas o aprendizado estáà frente, ou seja, o desenvolvimento depende do aprendizado.

Portanto, ressaltamos que a intervenção do adulto deveconsiderar sempre a relação entre o desenvolvimento real, já alcançadopela criança, e o nível de seu desenvolvimento próximo, pois, só assima intervenção do educador provoca o aprendizado.

[...] a aprendizagem não resulta de um processo de criação, masde um processo de reprodução do uso que a sociedade faz dosobjetos, das técnicas e mesmo das relações sociais, dos costumes,dos hábitos, da língua (MELLO, 2004, p. 145).

Da mesma forma a criança, ao se apropriar de um objeto ou deuma habilidade, deve realizar por si mesma as atividades, e não umoutro mais experiente por ela ou para ela. Assim, o processo deaprendizagem só se configura como atividade quando aquilo que acriança realiza faz sentido para ela, tendo nesse fazer um objetivo e um

3 Essas funções correspondem ao nível de desenvolvimento potencial.

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motivo. O objetivo, sendo aquilo que deve ser alcançado no final datarefa – seu resultado – e o motivo sendo a necessidade que leva apessoa a agir. O sentido, por sua vez, é dado pela relação entre o motivoe o objetivo previsto para tal tarefa.

Um outro aspecto do aprendizado pensado por Vygotsky (1989,p. 102) é o seguinte:

[...] embora o aprendizado esteja diretamente relacionado aocurso do desenvolvimento da criança, os dois nunca sãorealizados em igual medida ou em paralelo. O desenvolvimentonas crianças nunca acompanha o aprendizado escolar damesma maneira como uma sombra acompanha o objeto quea projeta. Na realidade, existem relações dinâmicas altamentecomplexas entre os processos de desenvolvimento e deaprendizado, as quais não podem ser englobadas por umaformulação hipotética imutável.

Partindo desses dois aspectos da aprendizagem, podemos afirmarque o desenvolvimento depende não somente do que é aprendido, mastambém das mudanças que ocorrem em cada indivíduo de acordo coma passagem de um estágio para outro em relações dinâmicas, ou seja,são inúmeros os fatores internos e externos que direcionam edeterminam o desenvolvimento de cada indivíduo.

A metodologia de Vygotsky privilegia a mudança, considerandoo homem como participante ativo e vigoroso de sua própria existência.Em cada estágio do desenvolvimento a criança adquire meios paraintervir de forma competente no seu mundo e em si mesma. Por fim,o estudo de Vygotsky é uma tentativa de afirmar que a atividade humanatem conseqüências voltadas para a transformação da natureza e dasociedade.

Lipman se interessou pelos estudos de Vygotsky justamente porvalorizar o desenvolvimento da criança com base no meio em que elavive, ou seja, por considerar o desenvolvimento a partir da história ecultura de forma crescente e constante. Para esses dois autores, não háestágios determinados, sendo possível avançar sempre mais, tendo

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sempre o cuidado para não adiantar bruscamente as idades, mas levarcriança a aprender e descobrir o maior número de conceitos e idéiaspossíveis dentro dos limites de suas capacidades.

Buscando um maior entendimento sobre a psicologia deVygotsky, Lipman teve contato com Davidov – seguidor de Vygotsky– por ocasião de sua visita à Rússia. Depois desse contato, iniciou umestudo sobre o desenvolvimento da criança e aprendizagem escolar, àluz da psicologia. Assim, escreveu o livro Natasha: diálogos vygotskyanos.O livro é constituído por um diálogo entre Lipman e Natasha (esta,personagem fictícia criada por ele mesmo), a qual seria conhecedorado pensamento vygotskyano.4

Tomando-se por base alguns estudos e questionamentos sobrea psicologia de Vygotsky, Lipman afirmou que o pensar é a internalizaçãoda fala e que o comportamento recíproco de um grupo em discussãodesempenha papel importante no aprender a pensar. Assim como opensar se desenvolve de acordo com o aprimoramento da fala, tambéma fala enquanto discurso se desenvolve conforme se aprende a pensar.O aperfeiçoamento tanto da fala como do pensar depende de seudesenvolvimento a partir do meio em que o indivíduo está inserido Aorigem de nosso pensamento pode ser explicada pelas atividadesexternas, abertas, principalmente no que diz respeito às atividadeslingüísticas. Essas atividades, primordialmente sociais, passam a serrepresentadas mentalmente por um processo de internalização, ou seja,os pensamentos e suas relações correspondem com nossas atividadesno mundo.

Um exemplo que ilustra essa idéia relacionada à educação é deuma sala de aula na qual o professor é quem sempre domina a discussão,em que ele pergunta e já dá a resposta pronta sem permitir a participaçãodos alunos, obrigando-os a somente copiarem as informações; é bemprovável que o comportamento desses indivíduos continuará no mesmopadrão durante todos os anos escolares, com pouco avanço. Numa sala

4 Além desse livro, que trata especificamente sobre a psicologia de Vygotsky, Lipman escreveuvários outros sobre o ensino de filosofia para crianças e jovens, ressaltando o valor de taldisciplina na aprendizagem escolar.

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de aula como essa não haverá desenvolvimento do pensamento e nemaperfeiçoamento do raciocínio, mas predominará uma letargia cognitiva.

O que pode fazer com que me liberte dessa letargia cognitiva, éo discurso vivo em classe, no qual meus colegas e eu sirvamos,uns para os outros, de modelos de indivíduos animados,reflexivos e racionais, plenamente capazes de pensar por nósmesmos, ao invés de sempre ficarmos esperando para reagir àsperguntas do professor (LIPMAN, 1995a, p. 12).

Nesse sentido, o foco principal de Lipman é o desenvolvimentodo pensar, da capacidade reflexiva e do diálogo. Percebemos claramentenessa passagem o seu interesse pela psicologia e pelos trabalhosrealizados por Vygotsky: fazer da sala de aula uma comunidade reflexiva,participante e inter-relacional por meio de um diálogo vigoroso erazoável, em que não haja grandes distâncias entre professor e aluno,mas que esse diálogo se amplie entre todos os membros da mesmaclasse. Ao mesmo tempo, as intervenções sofridas durante a educação,no caso intervenções pedagógicas, estão diretamente relacionadas como desenvolvimento resultante da mente da criança, e as intervenções eestímulos pedagógicos é que vão definir a atividade e desenvolvimentodo raciocínio habilidoso.

Apoiando-se nessas afirmações de Vygotsky, Lipman pensousobre algumas necessidades naturais da criança: as descobertas e a buscade seus significados. Para ele, a criança não só tem uma necessidade deaprender como também tem total abertura para o aprendizado; estádisponível para o mundo, passando do desconhecido para o conhecido.Em suas experiências, ela vai tomando consciência dessa necessidade,pois conhecer torna-se um prazer para ela, e esse prazer é acompanhadoda curiosidade e vontade de conhecer mais e mais as coisas que a cercam,formando o círculo das inter-relações que duram para a vida toda. Nãohá possibilidade de viver sem que haja uma interação e relação com osobjetos e situações, pois não somos seres isolados do mundo e,sobretudo porque temos consciência da maioria das experiências quefazemos. Na criança tudo isso é mais intenso, pois, por não possuir

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ainda um acúmulo de experiências, fica fascinada com as novas relaçõese situações, e assim cresce o impulso para as descobertas.

Nesse sentido, dois conceitos são caros para o pensamento deLipman sobre o estado de desenvolvimento da criança: a descoberta eo significado. A criança, desde o momento em que nela se desenvolvemas condições físico-motoras que possibilitam seu movimentoindependente e novas relações com os seus brinquedos e outros objetos,vive muitas possibilidades de coisas ainda não experienciadas até omomento. O desenvolvimento das habilidades físicas e de compreensãodas relações vividas é gradativo e num ritmo considerável, faz com quea criança busque sempre os objetos que ainda não conhecia, coisas queainda não estavam ao seu alcance e que desejava ver e sentir. Este é omomento das grandes descobertas.

Nos anos seguintes a essa fase, quando a criança já está na idadede freqüentar a escola, ainda existe nela uma intensa vontade de conheceras coisas que a cercam. A escola, até então desconhecida, possibilita-lhe a viver uma experiência nova com uma grande variedade denovidades, amigos novos, pessoas diferentes e um espaço imenso parabrincar. O que ela deseja é conhecer e desenvolver o que há ali naqueleespaço, bem como tudo o que será vivido com os colegas e o (a)professor (a), pois tudo lhe é novo.

Segundo Lipman, para as crianças, desde os primeiros anosescolares, as aulas, de acordo com as práticas correntes nas escolasnorte-americanas, de modo geral, não são relevantes, não despertamnelas o interesse e não possibilitam, assim, a descoberta dos significados.Isso porque não conseguem enxergar as relações entre a sua vida e oque está sendo ensinado na sala de aula. A falha da educação se manifestaquando esta se prende ao ensino dos fundamentos de sua cultura econteúdos prontos. Apesar de tudo isso fazer parte do processoeducativo, não basta para a satisfação da criança e para a educação queespera o seu desenvolvimento. Por isso ele questiona:

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143Aproximações entre a Psicologia de Vygotsky e a Filosofia para Crianças...

Será que as crianças estão erradas em esperar que o processoeducacional – em cada estágio e no desenvolvimento de estágiopara estágio – seja significativo? Se a escola não pode ajudar ascrianças a descobrirem o significado de suas experiências, se essanão é a sua função, então não há nenhuma alternativa senãodeixar o sistema educacional nas mãos dos que podem melhormanejar o consentimento das crianças de serem manipuladasnum estado de beatitude (LIPMAN, 1995a, p. 23).

Essa crítica, ao mesmo tempo em que constata um problemaeducacional, reclama uma mudança e uma nova forma defuncionamento da educação com a participação das crianças devido àsua indiferença e desinteresse a algumas questões que não as satisfazem.O que as crianças desejam e esperam da experiência educacional é queproporcione a descoberta de significados, de modo que aquilo que éaprendido na aula tenha um valor para ela e traga diferente sentidopara sua vida. Assim, podemos defender a idéia de que tudo aquilo quenos ajuda a descobrir o significado da vida ou para a vida é educativo, eas escolas apenas são educativas e contribuem para a formação daspessoas porque proporcionam e facilitam as descobertas.

Levando em conta a teoria histórico-cultural de Vygotsky, épossível afirmar que o ambiente escolar é oferecido por forças externas,mas os significados são construídos coletivamente pelas crianças.Portanto, a descoberta dos significados está diretamente relacionadacom a experiência que essas crianças têm e fazem na escola. Se aexperiência escolar lhes atrai e nesse processo elas são cercadas desentido (significados), sua vivência é intensa e determina abertura deoutras experiências.

Considerações finais

Por fim, destacamos que os motivos e interesses humanos sãohistóricos e sociais, criados nas crianças pela sociedade em que vivem epor tudo o que acontece ao seu redor. Os motivos, necessidades einteresses são aprendidos com as condições concretas de vida e

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Carmen Lúcia Dias, Cláudio Roberto Brocanelli e Carla Luciane Blum Vestena144

educação. Podemos, então, afirmar que os velhos motivos podem sermodificados e os novos podem ser ensinados ou criados pela escola,contribuindo para o desenvolvimento de aptidões e capacidadeshumanizadoras tornando a criança um ser humano mais completo(MELLO, 2004). Ressaltamos que o papel da instituição escolar não é ode responder às necessidades, aos motivos ou interesses que as criançastrazem para a escola – ligados à sobrevivência do indivíduo – mas criarnelas necessidades humanizadoras, como a de conhecimento, deexpressão pela arte, de reflexão filosófica e de um posicionamento ético,que contribuam para o alcance máximo do desenvolvimento humano.

Referências bibliográficas

LIPMAN, M. Natasha: diálogos vygotskianos. Tradução de LólioLourenço de Oliveira. Porto Alegre: Nova Alexandria, 1995a.

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Elementos de Filosofia da Educação a partir da Teoriada Modificabilidade Cognitiva Estrutural de Feuerstein

Carlos Eduardo de Carvalho Vargas *

Resumo: Esta pesquisa visa apresentar alguns elementos de filosofia da educaçãode Reuven Feuerstein como pressupostos básicos da teoria da Teoria daModificabilidade Cognitiva Estrutural e do modelo teórico Experiência deAprendizagem Mediada. O outro objetivo é mostrar como eles são aplicados noPrograma de Enriquecimento Instrumental de Feuerstein e em pesquisasrelacionadas à compreensão psicológica e filosófica do processo de avaliaçãoeducacional. Após uma breve descrição do Programa de EnriquecimentoInstrumental, o autor, baseando-se também em sua própria prática como mediadorfeursteiniano, apresenta os paradigmas da Modificabilidade Cognitiva Estrutural eda Experiência de Aprendizagem Mediada como as premissas de uma “filosofia daeducação cognitiva”, a partir do estudo da obra de Feuerstein e de seus comentaristas.Para cumprir esta tarefa, listam-se os doze “parâmetros da aprendizagem” da teoriada Modificabilidade Cognitiva Estrutural e outros conceitos fundamentais da teoriada Experiência de Aprendizagem Mediada como “alfabetização cognitiva”, “privaçãocultural” e “disfunção cognitiva”. Na seqüência, apresenta-se a aplicação dessesprincípios à avaliação pedagógica, baseando-se em uma experiência de Nigel Blagge fazendo referência ao método de avaliação dinâmica de Feuerstein como umcontraponto ao “paradigma psicométrico”.

Palavras-chave: Feuerstein. Filosofia da Educação. Aprendizagem Mediada.

* Mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor nasFaculdades Integradas Santa Cruz de Curitiba. E-mail: [email protected] - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 145-159 2007

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Elements of Philosophy of Education assumeds in StructuralCognitive Modifiability and applieds on Reuven Feuerstein's

Instrumental Enrichment Program

Abstract: This research aims to present some elements of Reuven Feuerstein’sphilosophy of education as basic assumptions to the theory of StructutralCognitive Modifiability and the theoretic model of Mediated LearningExperience. The other intent is to show how this elements are applied on theFeuerstein’s Instrumental Enrichment Program and on researches relateds tothe psychological and philosophical uderstanding of the educational assessmentprocess. After a short description of the Instrumental Enrichment Program,the author, also established on your own practice as Feuerstein’s mediator,presents the paradigms of the Structutral Cognitive Modifiability and MediatedLearning Experience as the premisses of a “philosohy of cognoscitiveeducation”, since the study of the Feuerstein’s works and his comentarists. Toaccomplish this task, the author lists the twelve learning parameters of theStructutral Cognitive Modifiability theory and other fundamentals conceptsof the Mediated Learning Experience theory as “cognitive literacy”, “culturalprivation” and “cognitive disfunction”. Ongoing, the author presents theapplication of these principles to the pedagogic assessment, established on aNigel Blagg’s experience and relationing with the dynamic assessment method’sFeuerstein as a counterpoint to the “psychometric paradigm”.

Key words: Feuerstein. Philosophy of education. Cognitive modifiability.

Reuven Feuerstein e o programa de enriquecimento instrumental

Reuven Feuerstein é conhecido como um dos mais importantespsicólogos da sua geração (BLAGG, 1991, p. 1-6). Sua teoria, método eprogramas são utilizados mundialmente de maneira efetiva em escolas,clínicas e empresas. Seu conceito da Experiência de AprendizagemMediada (EAM) tornou-se proeminente na literatura internacional daeducação e da psicologia. O Programa de Enriquecimento Instrumental(PEI) é baseado em sua Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estruturale na Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM). Estes conceitossignificaram uma revolução radical no contexto das estratégiaseducacionais anteriores. Partindo da premissa de que todos podem sermodificados cognitivamente, o professor Feuerstein conseguiu mostrarna prática que mesmo as pessoas com mais dificuldades e deficiências

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podem aprender conteúdos considerados difíceis, desde que sejamdevidamente mediados.

Um auxiliar de Feuerstein descreveu o PEI da seguinte maneira:

[...] o programa consiste de 14 instrumentos que sãocaracterizados pela sua estrutura construtiva, sua naturezainstrumental e pelo fato de serem livres de conteúdo. Cada umdeles focaliza em uma ou duas operações mentais centrais, comocomparação, orientação espacial, análise, categorização,pensamento inferencial e também nos pré-requisitos cognitivossubjacentes a cada uma delas. As tarefas são de natureza maisou menos abstrata e o mediado não necessita ter um alto nívelou conhecimento prévio do conteúdo para realizá-las (SASSON,2000, p. 1).

Há descrições detalhadas de cada um dos instrumentos emFeuerstein (1980, p. 125-226), Sasson e Macionk (2001a, 2001b, 2001c)e Skuy (1999).

Uma breve descrição da metodologia de uma sessão do PEI

Para que os princípios filosóficos pressupostos na Teoria daExperiência de Aprendizagem Mediada (EAM) possam ser maisfacilmente compreendidos, a metodologia de trabalho de cada sessãodo PEI será descrita neste item. Uma típica sessão do PEI inclui: a)introdução, b) trabalho individual, c) discussão em grupo, d) resumodos princípios concluídos na discussão (FEUERSTEIN, HOFFMAN et al.,1986, p. 56).

Na introdução, o mediador e os estudantes definem qual é oproblema com os quais se confrontarão naquela sessão. Uma vez queos objetivos estejam claros, o mediador preparará os estudantesajudando-os a tomar posse dos conceitos necessários, do vocabulárioe das funções cognitivas. Este é o momento de identificar relaçõespresentes nas “entrelinhas” da formulação do problema, assim comoestratégias apropriadas para as resoluções da tarefa (FEUERSTEIN,HOFFMAN et al., 1986, p. 56).

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Enquanto os estudantes trabalham independentemente, omediador se movimenta entre eles, investigando seus processoscognitivos, provendo um feedback interativo, prevenindo frustrações emodelando a conduta cognitiva, se preciso. Nesta interação individual,o mediador visa mediar o sentimento de competência, o controle e aregulação da conduta por parte do próprio aluno, o comportamentode compartilhar e a consciência de si mesmo como uma pessoamodificável (FEUERSTEIN, HOFFMAN et al., 1986, p. 56).

Na discussão em grupo, que ocorre em seguida, as váriasestratégias são comparadas em relação à eficácia. Esse é o momento deexercitar a “transcendência”, isto é, de transitar das tarefas para as outrasatividades, transportando conceitos e significados do PEI para ocotidiano. Nos poucos minutos dedicados ao resumo dos princípiosutilizados na atividade, os alunos avaliam a sessão em termos daquiloque foi combinado no início. No final da sessão, encoraja-se a interaçãocom os colegas. Cada etapa de uma sessão do PEI deve ser utilizadapelo mediador como oportunidade para atingir os vários objetivos destametodologia, de acordo com o seu referencial teórico (FEUERSTEIN,HOFFMAN et al., 1986, p. 56).

Para fazer isso, o próprio Instituto do professor Feuerstein dispõeuma tradução em português de uma espécie de “guia do mediador”que, em termos gerais, oferece alguns princípios para cada página doPEI, assim como a lista das funções e operações cognitivas envolvidasem cada atividade, as prováveis dificuldades que os alunos poderão ter,sugestões e métodos para superar estes obstáculos, antecipando muitasdas dificuldades. Apesar disso tudo, o mediador deve se esforçar parausar exemplos, princípios e soluções contextualizados de acordo coma situação de seus alunos (FEUERSTEIN, HOFFMAN et al., 1986, p. 57).

Dessa maneira, o método a ser seguido é o próprio Programa deEnriquecimento Instrumental, que já vem consolidado por décadas depesquisas e práticas feitas pelo professor Reuven Feuerstein e seuscolaboradores. Para facilitar esta mediação contextualizada, utiliza-se aficha de planejamento do próximo item, a qual foi retirada de Sasson e

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Macionk (2001a, p. 22-24) e baseada nos “parâmetros do ato mental”ou “mapa mental” (FEUERSTEIN, 1980, p. 105-113; SASSON; MACIONK,2001b, p. 5-6).

O PEI no contexto da educação contemporânea: suas condiçõesconcretas

O Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI) já foiaplicado a populações variadas de alunos: desde crianças com dificuldadede aprendizagem a trabalhadores das indústrias e universitários.1 O PEIjá possui um amplo reconhecimento internacional, pois já foi traduzidopara a maior parte das línguas européias e para algumas línguas asiáticas,sendo aplicados em mais de 40 países. O PEI resultou também em umgrande número de estudos experimentais, clínicos e educacionais: jáforam publicados aproximadamente 1500 artigos e cerca de 40 livrossobre o assunto (FEUERSTEIN; HOFFMAN, 1990, p. 115).

Por causa da sua base teórica, da diversidade do material e danatureza instrumental, o PEI é aplicado a uma ampla esignificante gama de diferentes populações, desde privadosculturalmente e indivíduos com dificuldades de aprendizagematé superdotados, pacientes com danos cerebrais epsiquiátricos, na educação de adultos, assim como notreinamento de professores e com pais de crianças em risco(SASSON, 2000, p. 1).

Os materiais do PEI podem ser usados em programas deeducação especial assim como na educação regular. E váriosinstrumentos podem ser aplicados a pessoas analfabetas. Dada a suasamplas possibilidades de disseminação, o PEI pode e já foi aplicadocom sucesso em diversos ambientes sócio-educativos.2 Outra qualidade

1 O autor deste projeto é testemunha dos efeitos positivos do PEI, pois aplica este métododesde fevereiro de 2005 e completou seu processo de formação como mediador dos 14instrumentos em janeiro de 2006.2 Entretanto, sugere-se que seja dada prioridade àqueles adultos que precisam mais, seja pelaprecariedade da situação sócio-econômica ou pelas dificuldades cognitivas que são apresentadas.

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importante do PEI, para ser aplicado a grandes populações com umcusto baixo.3 Além disso, o PEI possui capilaridade, isto é, pode serutilizado como base para a formulação de políticas públicas focadas nainclusão educacional de jovens e adultos, como já aconteceu em várioslugares de vários países.4 Dada a situação preocupante do analfabetismono Brasil, em seus diversos níveis desde o analfabeto pleno até oanalfabeto funcional, o PEI pode colaborar na reversão deste quadrona medida em que pode suprir lacunas que permitirão aos mediadossuperarem suas limitações cognitivas. Ao aplicar o PEI como recursoauxiliar na alfabetização, parte-se do pressuposto de que há problemascognitivos mais fundamentais no caso do aluno adulto analfabeto. Quaissão exatamente estas deficiências que o PEI é capaz de sanar e quefacilitarão a alfabetização? Neste trabalho serão listadas as seguintes: o“analfabetismo cognitivo”, a “síndrome de privação cultural” e a“disfunção cognitiva” (FEUERSTEIN, 1980, p. 71-103). Antes de explicarcada uma delas, alguns pressupostos filosóficos devem ser apresentados.

Os princípios da filosofia da educação de Feuerstein

A teoria da Modificabilidade Estrutural Cognitiva (MCE) e ateoria da Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM), fundamentoteórico do PEI, foram desenvolvidas entre os anos de 1950 e 1963,quando Feuerstein trabalhava na instituição Youth Aliyath, a qual sededicava a reintegrar as jovens crianças judias que sobreviveram aoholocausto feito pelos nazistas (HOON; SENG, 2005, p. 693). Aquelasituação era muito difícil e os psicólogos que aplicavam os testespsicométricos correntes não vislumbravam solução para aquela tarefaque parecia gigantesca. Aquelas crianças eram classificadas por aquelesprofissionais como “retardados mentais”, nos testes de QI, mas

3 Supondo que o mediador já esteja formado e que ele tenha uma sala onde possa realizar assessões, o gasto em material será, em valores atuais, de 9 reais por cada instrumento (totalizando126 reais para o curso inteiro).4 No Brasil há o exemplo de uma grande política pública assim realizada no estado da Bahia,onde o governo fez um projeto de aplicação do PEI aos alunos do ensino médio da redepública (MORAES, 1999).

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Feuerstein não desistiu deles (FEUERSTEIN; HOFFMAN, 1990, p. 134). Aabordagem feuersteiniana não focou diretamente aquelas dificuldades,mas o “potencial de aprendizagem” daquelas crianças. Ele partia dapremissa de que todas aquelas crianças eram capazes de aprender maise melhor ao passarem por uma modificação cognitiva estrutural. Foinesse contexto psicopedagógico que Feuerstein (apud SASSON, 2000, p. 1)desenvolveu o PEI como

[...] um método de intervenção multidimensional quecompreende uma fundamentação teórica, um repertório ricode instrumentos práticos e um conjunto de ferramentasanalítico-didáticas, focalizando em cada um dos trêscomponentes de uma interação mediada: o aprendiz, o estímuloe o mediador, com o objetivo de aumentar a eficiência doprocesso de aprendizagem.

A teoria de Feuerstein está baseada no paradigma fundamental daMCE, que remete à uma concepção filosófica e antropológica, de quetodo indivíduo, independentemente da sua condição, idade ou status social,pode melhorar o seu desempenho cognitivo, tornando-se mais eficientee integrado no ambiente no qual ele interage. Em relação àmodificabilidade, a atitude de Feuerstein é pró-ativa, como se percebe noseu conceito de mediador que já foi resumido assim: “A mediator facilitesa student’s learning by introducing him or her to new ways of perceivinginformation, determining goals, and distinguising relevant from irrelevantdetails The students learns to think strategically”5 (MARKUS, D.; MARKUS,L.; TAYLOR, 2003, p. xvi). O Status Quaestionis sobre a elaboração científicados conceitos e as pesquisas de verificação empírica podem serencontrados em (STERNBERG; GRIGORENKO, 2002, p. 58).

As bases teóricas de MCE estão fortemente vinculadas ao modelode aprendizagem da EAM (FEUERSTEIN, 1980): “The basic assumptionof that theory [MCE] is that much of a person’s modifiability is directely

5 “Um mediador facilita a aprendizagem de um estudante introduzindo a ele ou a ela novasmaneiras de perceber a informação, determinar objetivos e distinguir os detalhes relevantes dosirrelevantes. [Assim,] O estudante aprende a pensar estrategicamente” (tradução livre do autor).

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linked to the amount and quality of mediated learning experiences(MLE) to which he or she has been exposed in earlier life”6 (FEUERSTEIN,HOFFMAN et al., 1986, p. 51-52). A partir deste paradigma feuersteinianoe destas teorias (MCE e EAM), o PEI surge como

[...] um dos três sistemas de aplicação da Teoria daModificabilidade Estrutural Cognitiva e AprendizagemMediada, os outros dois são um instrumento de avaliaçãodinâmica, a Avaliação Dinâmica do Potencial de Aprendizageme uma estrutura para modelar os Ambientes Modificantes(SASSON, 2000, p. 1).

Este método de avaliação dinâmica, ou Learning PotentialAssessment Device (LPAD)7 será abordado, ainda neste trabalho, no itemsobre as aplicações da filosofia da educação de Feuerstein na práticaavaliativa.

O PEI de Feuerstein visa desenvolver habilidades de raciocínioe capacidades lingüísticas correspondentes a um funcionamento efetivodas funções cognitivas. Os objetivos dos instrumentos sãodesenvolvidos amplamente pelo professor Feuerstein na obra, mas suasmetas podem ser explicadas resumidamente, nos termos de MCE e daEAM, assim:

[...] os instrumentos ajudam os mediados a desenvolveremestratégias e hábitos de trabalho os quais são aplicados pararesolver situações problema e generalizar regras e princípiosque podem ser transferidos a um grande número de contextosescolares bem como extracurriculares. Para criar insight epensamento reflexivo, os mediados são encorajados pelomediador do PEI, a dar exemplos nos quais as estratégias eprincípios recentemente adquiridos são aplicados em situaçõesreais de vida. O principal objetivo do PEI é promover amodificabilidade cognitiva e a adaptabilidade social do indivíduo,

6 “O pressuposto básico daquela teoria [MCE] é que muito da modificabilidade da pessoa édiretamente determinada pela quantidade e pela qualidade das experências de aprendizagemmediada [EAM] à qual ele ou ela teve anteriormente” (tradução livre do autor).7 “Instrumento de Avaliação do Potencial de Aprendizagem” (tradução livre nossa).

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de forma a aumentar a sua capacidade de se beneficiar daexposição direta aos estímulos do ambiente e das experiênciasde vida (SASSON, 2000, p. 1).

Estes objetivos situam-se no contexto de uma filosofia daeducação, que é a “filosofia da educação cognitiva” e que possui granderelevância no contexto de uma sociedade “multicultural”: “Theunderlying philosophy of cognitive education, wich stresses individualand social modifibility, awareness, and the education of intellectual andother process, has particular relevance for today’s multicultural society”8

(SKUY; MENTIS; FEUERSTEIN, 1999, p. iii).As diretrizes dos cursos são os parâmetros essenciais dessa

aprendizagem. Estes funcionam como critério de aplicação do PEI –são os seus critérios da aplicação. Elas são doze, de acordo com oprofessor Feuerstein (apud SASSON, 2005, p. 14-16; SASSON; MACIONK,2001a, p. 11):

a) Intencionalidade e Reciprocidade; b) Transcendência; c)Mediação do significado, d) 4. Mediação do sentimento decompetência; e) Mediação da regulação e controle da conduta;f) Mediação do comportamento de compartilhar; g) Mediaçãoda individuação e diferenciação psicológica; h) Mediação daconduta de busca, escolha e realização de objetivos; i) Mediaçãodo desafio: a busca pelo novo e complexo; j) 10. Mediação daconsciência do ser humano como uma entidade modificável;k) Mediação da busca de uma alternativa otimista; l) Mediaçãodo sentimento de pertença (CENTRO..., 2001, p. 1).

Alguns destes critérios serão definidos brevemente nosquestionários de avaliação apresentados na seqüência deste trabalho.

8 “A filosofia da educação cognitiva pressuposta, a qual enfatiza a modificabilidade individual esocial, consciência e a educação da inteligência e de outros processos, possui relevância especialpara a sociedade multicultural atual” (tradução livre do autor).

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Alguns conceitos derivados das teorias da MCE e da EAM

Estes princípios de filosofia da educação de Feuersteinmanifestam-se mais concretamente quando são utilizados na formulaçãode conceitos fundamentais para a descrição da prática do PEI:alfabetização cognitiva, privação cultural e disfunção cognitiva.

A alfabetização cognitiva é o rótulo usado como metáfora paraum paradigma que abarca a teoria da modificabilidade cognitiva, aexperiência da aprendizagem mediada, em relação ao desenvolvimentomental dentro de um contexto social. Trata-se de um processo cíclico,delineado como uma espiral, abrangendo as quatro fases seguintes: a)tomada de consciência, b) internalização, c) realização, d) aplicação(GIBSON, 2001, p. 6).

Privação cultural9 é o termo que, na teoria de Feuerstein, descreve-se o indivíduo que,

[...] não esteve exposto ou não foi capaz de se beneficiar daexperiência de aprendizagem mediada recebida, estando,portanto, desprovido de ferramentas de aprendizagem,hábitos, disposição e propensão para aprender. Sua“modificabilidade” (sua capacidade para beneficiar-se daaprendizagem formal e informal) é mais ou menos restrita(SASSON; MACIONK, 2001d, p. 1).

Finalmente, há o problema das disfunções cognitivas, que

[...] são os pré-requisitos do pensamento que falharam emmanifestar-se ou que estão deficientes devido a falta ou

9 Feuerstein não usa este termo no sentido que é criticado por representates do pensamentomulticulturalista defensores do paradigma da “diferença cultural“ (Bennet; Landis et al., 2004,p. 28). Ele usa esta última expressão em outro sentido, no contexto dos seus estudos sobremigrantes que possuíam uma mediação de aprendizagem adequada, mas traziam uma culturadiferente daquela que existia no meio social em que viviam. Assim, reserva-se o termo “privaçãocultural” para aquelas situações em que há ausência de mediação, independente do conteúdo eda cultura em questão (FEUERSTEIN, KANIEL et al., 1991, p. 182). Alex Kozulyn (2001) observouque, neste sentido feuersteiniano, a oposição entre privação cultural e diferença cultural não éfeita em termos de funções cognitivas deficientes, mas está definida em termos de potencial demodificabilidade, o qual seria menor nas pessoas com síndrome de privação cultural.

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insuficiência de experiência de aprendizagem mediada.Feuerstein elaborou uma lista de funções cognitivas deficientes,com o objetivo de auxiliar o mediador, a identificá-las e corrigi-las, tanto na avaliação como na intervenção (SASSON; MACIONK,2001d, p. 1).

Mais concretamente ainda, essas três deficiências, serão superadasmediante a realização de objetivos do PEI como: a) correção das funçõescognitivas deficientes; b) aquisição de vocabulário, rótulos diferenciadose conceitos relevantes às tarefas do PEI assim como para a resoluçãode problemas em geral; c) suscitação da motivação intrínseca atravésda formação de hábitos; d) criação do insight e pensamento reflexivo;e) criação da motivação intrínseca pela tarefa; f) mudança de um papelpassivo e reprodutor para um papel ativo e gerador de novasinformações (SASSON; MACIONK, 2001a, p. 6).

A filosofia da educação de Feuerstein aplicada na avaliação do PEI

Alex Kozulin comenta sobre os debates críticos acerca dos testesde QI e da avaliação dinâmica dos quais Feuerstein participou na décadade 60. O comentarista compara o criador do PEI com Burdoff, quetambém estudou as avaliações dinâmicas e criticou os testes de QI,mas a atitude de Feuerstein foi mais profunda ainda. O comentário deKozulin é interessante por destacar a polêmica que havia em relaçãoaos princípios de filosofia da educação em questão:

Feuerstein’s position appeared to be much more radicalbecause it dispensed with the entire philosophy of labelingand classifying students and called for an ongoing evaluationof the child’s learning potential with the aim of formulatingan optimal educational intervention for each individual child10

(KOZULIN, 2005, p. 358).

10 “A posição de Feuerstein parecia ser muito mais radical porque dispensava toda a filosofia darotulação e da classificação dos estudantes e clamava por uma avaliação progressista do potencialda criança com o objetivo de formular uma intervenção educacional otimal para cada criançaindividualmente” (tradução livre nossa).

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A diferença filosófica entre Burdoff e Feuerstein11 levou adiferentes encaminhamentos pedagógicos: aquele preferiu métodos deavaliação baseados no “paradigma psicométrico” (KOZULIN, 2005, p. 358).

O PEI não possui algo correspondente a uma avaliaçãopedagógica no sentido “tradicional”. Ele possui apenas seusinstrumentos e suas respectivas atividades. Cada sessão do PEI é umapequena “avaliação”, isto é, a avaliação é constante. Isto não ocorreassim por acaso, mas decorre dos princípios de filosofia da educaçãoque regem o trabalho de Feuerstein.

Nessa linha filosófica, a principal contribuição de ReuvenFeuerstein para a avaliação pedagógica é o seu método de avaliaçãodinâmica, o LPAD (Learning Potential Assessment Device), o qual é umadas três grandes aplicações da teoria da Modificabilidade EstruturalCognitiva e da Experiência de Aprendizagem Mediada. O LPAD foidesenvolvido baseado na noção vygotskiana de “zona dedesenvolvimento proximal” (HOON; SENG, 2005, p. 695), a qual sugereque a criança precisa de mediação para demonstrar seu potencial deaprendizagem. A intenção original das avaliações dinâmicas propostaspor Feuerstein era proporcionar uma oportunidade de aprendizagempara indivíduos em condições precárias e populações consideradas“analfabetas” ou até “incapazes” de aprender de acordo com os testespsicométricos (DEMETRION; PAPADOPOULOS, 2004, p. 456).

Referências bibliográficas

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11 Há mais referências sobre as diferenças entre as concepções de avaliação dinâmica emFeuerstein e Burdoff em Sternberg e Grigorenko (2002, p. 47-114).

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159Elementos de Filosofia da Educação a partir da Teoria da Modificabilidade Cognitiva...

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Epicuro e os tetrapharmakon

Flavia Bruno *

Resumo: Epicuro nos apresenta a filosofia como a medicina que trata daturbação da alma. Seu ensinamento ético prescreve quatro remédios para asquatro principais causas da infelicidade humana, as quais são: temer a cólerados deuses, apavorar-se diante da morte, escolher mal os objetos de desejo eangustiar-se ante o sofrimento.

Palavras-chave: Epicuro. Ética. Tetrapharmakon.

Epicure and the tetrapharmakon

Abstract: Epicurus presents the philosophy as the medicine that takes careof the disorder of the soul. Its ethical teaching prescribes four remedies forthe four main causes of the misfortune human being: to fear the gods, to beterrified ahead of the death, to choose desire objects badly and to becomedistressed themselves before the suffering.

Key words: Epicurus. Ethics. Tetrapharmakon.

* Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora daUniversidade Cândido Mendes, RJ (Campus Centro), e da Faculdade de São Bento, Rio deJaneiro. E-mail: [email protected]

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 161-170 2007

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Flavia Bruno162

Na Atenas do século V a.C., no período áureo da democraciaateniense, todo cidadão em algum sentido era príncipe. O velho demosgovernava o império ateniense. Enquanto cidadão, o ateniense erasenhor de si mesmo, pois a constituição da vida democrática se davapela participação efetiva dos cidadãos, que deviam decidir sobre odestino coletivo.

A participação integral de cada cidadão em todos os aspectosda vida comum persistiu até a tomada do Império Macedônio. Vencidapelo império macedônio, a polis renuncia em parte à sua autonomia eos cidadãos à sua soberania (MOSSÉ, 1999). A partir de então,desempenhar um papel político não era mais participar do podercoletivo do povo, mas pôr-se a serviço do soberano ou do seugovernante em Atenas.

Esses fatos marcam a necessidade histórica de se pensar umanova ética. Diferentemente do que ocorria na ética aristotélica,comprometida com o ideal da polis, nessa nova concepção ética ohomem devia encontrar em si mesmo o princípio de sua liberdade.Aliás, esse será um traço de todas as filosofias helenísticas: o desinteressepela política.

O epicurismo respondeu a essa questão propondo o recuo daágora para o jardim (kepos). A escola de Epicuro era composta de umacasa e de um jardim, que era uma espécie de horta ou horto onde seconcentravam seus alunos e adeptos. Este era o conhecido jardim deEpicuro ou jardim dos prazeres, concebido como um refúgio. Cícero,torcendo a verdade, chamava-lhe “um jardim de prazer onde osdiscípulos languesciam em gozos refinados” (FARRIGTON, 1968, p. 27).Mas a proposta de Epicuro era que lá fosse possível viver livremente,entre amigos, sem déspotas, numa nova forma de comunidade. A casae o jardim foram adquiridos para servir de meios que permitissem avida intelectual e material dos membros da escola.

O pensamento de Epicuro era dirigido aos problemas práticosde sua época. O objetivo do filósofo consistia em “dissipar a angústiamental que a ignorância acerca dos deuses, a ignorância da natureza e aignorância da alma podem produzir” (FARRIGTON, 1968).

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163Epicuro e os tetrapharmakon

Foi principalmente pela originalidade da síntese operada entre afísica atomista de Leucipo e Demócrito e a ética hedonista defendidapelos cirenaicos que Epicuro passou à posteridade como um grandefilósofo. O pensamento de Epicuro está associado ao hedonismo (queelege o prazer – hedoné – como bem supremo) e ao atomismo (queafirma que tudo aquilo que existe é composto de átomos e do vazio).

Epicuro se baseia no suposto fato de que todos os seres vivos,desde o nascimento buscam o prazer e querem elidir a dor. Para elereconhecemos no prazer um bem primário e inato em nós (EPICURO,1996, Carta a Meneceu, p. 129).

Não é preciso explicar a ninguém o que é o prazer. Nascemoschorando pelo leite e calor maternos. Buscamos o prazer e fugimos dador. Buscamos o prazer que nos traz a supressão da dor. Em outraspalavras, o prazer é a concretização do que é bom para nós e a dor, doque é mau para nós.

Mas essa vida de prazer que Epicuro recomenda não é a vida deentrega ao gozo sensual censurada por Platão e Aristóteles. O pontofundamental aqui é a interpretação dada à palavra prazer. O prazer nãoconsiste em deleitar-se, não está relacionado com “a voluptuosidadedos dissolutos e com os gozos sensuais, como pensam alguns ignorantespor preconceito ou má compreensão, mas sim na pura ausência de dorno corpo e perturbação na alma” (EPICURO, 1996, Carta a Meneceu, p.131). Para elevar ao máximo o prazer o essencial é evitar a dor.

Além disso, ao erigir o prazer (hedoné) em bem supremo, Epicuronão sustenta que o bem é aquilo que parece bom a cada qual, nem quea felicidade consiste em buscar todo e qualquer prazer. Todo prazer ébom, mas nem todo prazer deve ser escolhido; toda dor é má, masnem toda dor deve ser evitada. A satisfação dos desejos é coisa boaporque elimina a razão da inquietude, mas às vezes é melhor não cedera esse impulso se essa satisfação, boa em si, se revelar fonte deperturbações ainda maiores.

A missão ética é ensinar a discriminar os prazeres “com o cálculodaquilo que é útil e a ponderação do que é prejudicial, porque em certas

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circunstâncias o bem é um mal e o mal é um bem para nós” (EPICURO,1996, Carta a Meneceu, p.129). A conquista da felicidade resulta deescolhas nas quais freqüentemente é preciso renunciar a certos prazeres,não porque seriam intrinsecamente maus (nenhum prazer em si é ummal), mas porque provocam grandes inconvenientes.

Epicuro vinculou essa ética emancipadora à física atomística.Sua idéia central é a de que compreendendo a ordem cósmica comoefeito mecânico do entrechoque de átomos, libertamo-nos do terrorsupersticioso e do temor da morte.

O atomismo diz que os átomos constituem com o vazio arealidade em sua totalidade. Os átomos são a menor partícula da matéria,existem em quantidade infinita e estão em movimento desde sempre,entrechocando-se ao acaso, formando aglomerações e dissoluções, quesão os fenômenos a que assistimos. A matéria composta muda poracréscimo ou perda de átomo. Todas as coisas nascem dos átomosimperecíveis, que se movem eternamente no vazio e nelas são novamentedecompostos.

O princípio ontológico da física Epicurista é que o substratoúltimo de todas as coisas visíveis e invisíveis são partículas corpóreasindivisíveis e eternas, cuja junção e separação no vazio infinito constróie desconstrói os mundos que foram, são e serão (pois os átomos nãoforam todos consumidos na formação de um só mundo nem de umnúmero limitado de mundos). Em conseqüência desse princípio físico,Epicuro edifica o princípio ético que afirma que por isso mesmo ocosmo não tem

[...] nenhum telos, nenhuma finalidade ou intenção imanenteou transcendente, natural ou divina. A morte é meramente aseparação dos átomos que nos compõem. A vida não anuncia,portanto, nem castigos nem recompensas para os homens.Daí que não devemos temer nem a morte nem as puniçõesinfernais inventadas pela ignorância e pela superstição(MORAES, 1998, p. 8).

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Para o filósofo, sem que se compreendam os mecanismos danatureza, permaneceremos atormentados pelo medo dos deuses, pelotemor da morte e pela ansiedade resultante de não controlarmosadequadamente nossa atitude em face dos sofrimentos e satisfaçõesda vida.

A sabedoria tem como propósito ajudar a suprimir os temoresda sorte do corpo, cuja causa são as opiniões falsas acerca dos deuses,dos corpos celestes e de seus fenômenos e a respeito da morte.

Para suprimir tais temores há um quádruplo remédio – ostetrapharmakon:1

1) Não devemos temer os deuses – os deuses não são temíveis,pois aqueles que são felizes e eternos (os deuses) “não têmpreocupações, nem outro ser perturba; por isso é imune a movimentode ira ou de gratidão, pois todo movimento deste tipo implica fraqueza”(EPICURO, 1996, Máximas Principais, I). Não devemos temer os deusesnem nada esperar deles pela simples razão de que, vivendo em eternasatisfação, eles conosco não se preocupam.

Os deuses são modelos de felicidade. São imortais, livres e bem-aventurados. Residem nos espaços vazios colocados entre os mundos(intermundos), longe das vicissitudes dos homens e da terra. A menorpreocupação com este nosso mundo seria contrária à sua perfeitanatureza. A própria formação deste mundo exclui qualquerintervenção divina.

São incorruptíveis e indestrutíveis: não sofrem nenhuma afeição,pois não estão em contato com algo que possa modificá-los, isto é,agregá-los ou dissolvê-los. Não são nem criadores nem senhores denenhum destino, nem juízes dos mortos. Na Carta a Heródoto (1996,p. 77-78), Epicuro rejeita a idéia de uma providência divina que regeriao mundo presente. Então, após a morte, não haverá uma justiça divina,no sentido de que não há uma mente que ordene e preveja odesenvolvimento das coisas.

1 A rigor o termo tetrapharmakon não aparece nos textos de Epicuro que chegaram até nós, masestá presente em uma tradição muito próxima.

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Inclusive, essa indiferença dos deuses para com os homens seexplica pela própria existência do mal. As doenças, as epidemias, a fome,os animais repulsivos, ferozes e predatórios, as pragas, os terremotos,as inundações são evidências, para quem não quer ser enganado ouenganar a si próprio, que os deuses são indiferentes aos homens. Osdeuses não abandonam a condição de absoluta serenidade nem paranos beneficiar nem para nos castigar.

O sábio epicurista, tendo constatado que não está ao nossoalcance (mas somente no dos deuses) sentir apenas prazer e nuncasofrer dor, concentra o esforço na busca de um prazer durável e nocontrole da dor.

2) É necessário vencer o maior dos medos, que é o medo damorte. A consciência de si depende da união da alma e do corpo. Morteé separação da alma e do corpo e, portanto, o fim da consciência de simesmo. O que está decomposto é insensível e a insensibilidade, o queestá fora de toda sensação, não nos traz riscos. “A morte, o maisaterrador dos males, não é nada para nós. Enquanto estamos presentes,a morte está ausente; quando ela se apresentar, já não mais estamos”(EPICURO, 1996, Carta a Meneceu, p. 125).

Devemos entender que “quando a hora da morte vem, a almadeixa o corpo e os átomos que a compõem se espalham rapidamenteno ar, para se dissipar nas alturas” (LÉVY, 1997).

Claro que a morte dos entes queridos nos faz sofrer. Masjustamente sofre quem, permanecendo vivo, sente a falta de quemmorreu. Ou seja, a experiência da morte é uma experiência dos vivos.

Nada temos a lucrar vivendo eternamente e temos tudo a lucrarvivendo bem. O que conta é a qualidade da vida e não sua duração(FARRIGTON, 1968). Como afirma Epicuro, “da mesma forma que osábio não escolhe seus alimentos pela porção maior, e sim pelo maisagradável, o sábio procura aproveitar o tempo mais agradável e nãomeramente o mais longo” (EPICURO, 1996, Carta a Meneceu, p. 126).

Epicuro diz que todo temor é um temor sobre o nada. Éexatamente porque o temor é vazio de toda sensação que ele pode serum temor. Todos os nossos temores são temores da imaginação. É oantiprazer puro.

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3) É preciso reconhecer que a felicidade é possível. Não é difícilatingir o bem, é preciso apenas saber escolher os objetos de desejo.Para Epicuro, a intensidade suprema dos prazeres é a máxima reduçãode todas as dores. Epicuro reconhece que o prazer não é uma sucessãoininterrupta de banquetes e festas, ou o prazer sexual com meninos emulheres, ou ainda a degustação de iguarias refinadas oferecidas poruma mesa suntuosa (EPICURO, 1996, Carta a Meneceu, p. 132).

Não é o prazer mais refinado que torna a vida feliz. O maisdelicado dos alimentos de vida não nos serviria se não matasse a nossafome. O prazer que seu refinamento nos proporciona seria sempremenor que o prazer que resultaria da supressão do sofrimento que noscausava o estômago vazio.

Só precisamos do prazer quando sofremos com a sua falta. Masquando não sofremos, não temos nenhuma necessidade dele. Por issoo prazer é o começo e o fim da vida feliz (EPICURO, 1996, Carta aMeneceu, p. 128).

Lévy (1997, p. 92) nos ensina que nada é suficiente para quem osuficiente é pouco: “Essa sentença define bem o que seria os desejosvãos que possuem a característica da busca patética de uma impossívelsaciedade.”

4) É possível suportar – Não é difícil suportar o mal com coragem.No tocante à dor e à doença, podemos fortalecer-nos para resistir-lhesao refletir que, se são fracas, são fáceis de suportar e, se são severas, nãosão duradouras (EPICURO, 1996, Máximas Principais, IV).

A primeira das virtudes do sábio é a impassibilidade: nada opode afligir ou abater. É uma espécie de desprezo pelo sofrimento.Agüentar, renunciar, não se deixar afetar.

Lembro-me aqui das palavras de Shelley: “amar e suportar.Esperar. Até que a esperança fabrique de sua própria ruína aquilo quecontempla”.

Portanto, para atingir a felicidade, a tranqüilidade do espírito é acoisa mais importante, pois, como diz Laêrtios (1987), a carne étranstornada apenas pelo sofrimento presente, ao passo que a alma,além de sofrer pelo presente, sofre ainda pelo passado e pelo futuro.

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Além disso, se há uma fluidez do tempo, se tudo passa edesaparece, se a matéria se transforma, é uma insensatez se dilacerarcom tormentos e lamentações. Há uma bela frase de Emerson (1997)que reflete esse ensinamento: “tudo o que a dor me ensinou foi areconhecer o quanto é rasa”.

Em resumo, “os quatro remédios respondem às quatro principaiscausas da infelicidade humana: temer a cólera dos deuses, apavorar-sediante da morte, escolher mal os objetos de desejo e angustiar-se anteo sofrimento” (MORAES, 1998, p. 66).

Os dois primeiros remédios dirigem-se diretamente ao intelecto,e por isso exercem efeito terapêutico imediato. Basta compreender anatureza das coisas: são os átomos em movimento que regem o universoe não os deuses; a morte é apenas a separação dos átomos que compõemo organismo; primeiro se superam as forças transcendentais porque seeliminam o temor dos deuses malévolos, o horror e a incerteza após amorte. Depois resta ao homem sair das inquietações que eles própriosse causam. Por isso o terceiro e o quarto remédios são remédiospropriamente éticos: ensinam a lidar com o prazer e com a dor.

Então, para se conseguir a felicidade, basta seguir a terapia dojardim. A vida boa tem dois constituintes principais: a aponia (carênciade penalidade), a falta de dor física; e a ataraxia (não-perturbação), aausência de dores espirituais. Esse estado de prazer é íntimo e autárquico,pois não depende de nenhuma causa externa.

A ataraxia é a virtude própria do sábio, ela consiste na total ausênciade temor. Os deuses realizam a ausência total dos afetos: como sãoimperturbáveis, são fatalmente felizes. Os deuses são vistos como modelosabsolutos de ataraxia e, portanto, de felicidade. A imperturbabilidade é aplataforma necessária para a consecução do prazer.

O bem supremo consiste em apartar-se o mais possível da vidae satisfazer as necessidades fundamentais de maneira sossegada esimples. A ética epicurista preconiza o recolhimento do sábio e aconcentração da vida comunitária num círculo de amigos escolhidos.

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169Epicuro e os tetrapharmakon

A sabedoria que abre a porta da felicidade exatamente por nãoconstituir nem um dom da natureza nem da graça divina só pode seratingida através de um esforço perseverante. A felicidade é umafelicidade conquistada. Quem lá chegar nunca sofrerá perturbação eassim viverá como um deus entre os homens. Prazer e dor resultam darelação de nosso corpo (incluída a alma) com os objetos que o afetam.Epicuro nos ensina a bem gerir essa relação.

O prazer fundamental é o sereno equilíbrio da alma. Para a vidaser boa basta que não seja demasiado perturbada por dores esofrimentos. “Quando atingimos esse objetivo, desaparece todatempestade da alma” (EPICURO, 1996, Carta a Meneceu, p. 128).

É isso que leva Duvernoy (1993, p. 77) a afirmar que “a filosofiaseria uma medicina da alma. A filosofia seria uma medicina que tratadas almas doentes que não são naturalmente sábias ou uma medicinaque restaura uma saúde perdida”. Ele completa:

É vazio o discurso do filósofo que não trata (therapeuta) denenhuma paixão humana. De fato, do mesmo modo que omédico de nada serve se não extirpa as doenças do corpo, assimtambém a filosofia de nada serve se não expulsa para fora daalma as coisas que a afetam (Fragmento Usener 221 –testemunho de Porfírio, apud DUVERNOY, 1993, p. 78).

Quando se trata de resistir às perturbações, que são agressõesvindas do exterior, a medicina deve intervir para expulsá-las do corpo;se a turbação afeta a alma, convém expulsá-la por meio de uma disciplinaintelectual e espiritual, qual seja, a filosofia.

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Ética e educação: reflexões sobre amizade e cidadania

Alonso Bezerra de Carvalho *

Resumo: O texto apresenta algumas reflexões sobre uma temática que nosdias atuais têm presença garantida nos debates e nas propostas relativos àeducação: a ética. Após fazer uma exposição da experiência francesa sobre aeducação para a cidadania, tomamos a amizade como definida e exposta porAristóteles como possibilidade de uma manifestação da vida cidadã e daformação do cidadão. Nesse aspecto, a ética tornar-se-ia um caminho comfinalidade didático-filosófica, ou seja, uma possibilidade de experimentarmose fazermos o exercício de leitura, reflexão, debates e vivência de temáticas,textos e idéias da filosofia, na escola, como praça pública, por professores ealunos, como recurso permanente de formação.

Palavras-chave: Ética. Educação. Cidadania. Amizade.

Éthique et Éducation: réflexions sur l’amitié et la citoyenneté

Résumé: Le texte présente des réflexions sur une thématique constante dansles débats et dans les propositions relatifs à l’éducation: l’éthique. Après faireune exposition de l’expérience française sur l’éducation à la citoyenneté, nousprenons l’amitié comme définie et exposée par Aristote comme possibilité

* Doutor em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo(USP). Professor do Departamento de Educação da Unesp – Campus de Assis (SP) e doPrograma de Pós-Graduação em Educação da Unesp – Campus de Marília (SP). E-mail:[email protected] - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 171-203 2007

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Alonso Bezerra de Carvalho172

d’une manifestation de la vie citoyenne et de la formation du citoyen. Danscet aspect, l’éthique se rendrait un chemin avec finalité didathique-philosophique, c’est-à-dire, une possibilité pour nous d’essayer et de faire unexercice de lecture, de réflexion, des débats et de l’expérience de thématiques,textes et idées de la philosophie dans l’école, comme place publique, par desenseignants et élèves, comme moyen permanent de formation.

Mots-clés: Éthique. Éducation. Citoyenneté. Amitié.

Esse texto, de caráter ensaístico, pretende apresentar algumasreflexões sobre uma temática com presença garantida nos atuais debatese propostas relativos à educação.1 Haveria um desejo no mundocontemporâneo em fazer brotar elementos propícios e respostas quepossam colaborar nas decisões e no sentido que atribuímos às nossasformas de comportamento e de vida, enfim, à nossa própria existência.Por isso, muito se tem falado, escrito e debatido sobre ética. O professorRoberto Romano chama-nos a atenção para isso. Para ele, sofremosuma violenta inflação do termo “ética”. Tanto o grande público, comoos especialistas têm falado e interrogado demasiadamente sobre quaisos valores ou doutrinas são tomados hoje como fios condutores dasatitudes humanas. É suficiente ficarmos atentos às mensagens veiculadasnos jornais, tv, rádio e internet para encontrarmos assuntos abordandotal crise de valores, ou a necessidade de se estabelecerem novas posturaspara os homens, uma vez que as atuais já não condiziriam com asexigências de uma sociedade democrática, livre e justa:

De um lado, notamos o uso sem peias de uma forma complexade pensamento, uma das mais difíceis dentre as produzidas pelosaber filosófico. De outro lado, presenciamos, nos discursosdirigidos ao público, a negação da moral como fundamento dasociedade e da vida política. Os dois fenômenos são aspectosda mesma experiência humana, e seu nome foi dado porNietzsche: niilismo dos valores (ROMANO, 2001, p. 94).

1 Este artigo é parte constitutiva da pesquisa realizada na Universidade Charles de Gaulle, emLille, França, pelo Programa de Pós-Doutorado no Exterior da Unesp, em parceria com oSantander/Banespa, no ano de 2007.

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Portanto, num primeiro diagnóstico, poderíamos dizer que osdesafios colocados hoje à humanidade demandam de cada um de nósuma postura firme e comprometida, de tal maneira que se busqueefetivamente responder aos dilemas e às crises herdadas do séculopassado. Porém, num outro sinal dessa mesma crise, quanto maisconhecemos, quanto mais ampliamos e conquistamos novos saberese construímos novos valores, adotando novas formas de conduta ede pensar, mais nos sentimos incomodados e insatisfeitos. A sensaçãoé de desconforto e insegurança – e até de ignorância. O nosso tempoparece confirmar a idéia presente no Manifesto Comunista – “tudo queé sólido se desmancha no ar”. Embora, até certo ponto, todos ostempos sejam incertos, pois o desenvolvimento cultural nuncapermanece imóvel, nem é fixo, vivemos a era das incertezas, cujacultura é emergente, contestada e, conseqüentemente, está sempreno processo de ser construída e reconstruída enquanto produçãohistórica (Cf. HYPOLITO, 2000).

Deste modo, uma primeira aposta seria pensar sobre quaiselementos revelam algum sinal de unidade no mundo contemporâneo,mesmo que ele esteja marcado por dilemas e conflitos constantes. Emais. Se considerarmos a ética como uma possibilidade de aprofundare compreender as inquietações que habitam o nosso tempo, a educaçãopode ser tomada como um campo privilegiado e fértil para reflexõesdessa natureza. É nesse sentido que os governos, em todo o mundo –e, nesse artigo, irá interessar-nos, especialmente, o caso da França -têm elaborado importantes propostas de reformulação pedagógica.

Educação para a cidadania

Em 1997, o Conselho da Europa lança o projeto “Educaçãopara a cidadania democrática” (ECD), tendo em vista “determinar osvalores e as competências necessárias para que os indivíduos tornem-se cidadãos plenos, de maneira que possam adquirir estas competênciase aprender a transmiti-las ao outro” (Cf. AUDIGIER, 2007, p. 3). O ponto

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de partida está no reconhecimento de que o termo cidadania, nas últimasdécadas um dos mais empregados para tratar da vida comum emsociedade, poderia servir como horizonte e resposta àquilo que algunsqualificam de crise dos laços e da coesão social e, particularmente, comoelemento para tentar estabilizar e orientar certas práticas concernentesà Escola e, mais amplamente, à educação e à formação.

Elaborado a partir de reuniões e debates entre as representaçõesdos ministérios da educação dos países-membros da União Européia, deespecialistas, organizações internacionais e ONGs implicadas no domínioda educação, o projeto é organizado em torno de três categorias decompetências: 1. cognitivas; 2. éticas e ligadas aos valores e 3. ascompetências sociais (Cf. AUDIGIER, 1999, p. 125-127). Quanto à primeiracompetência – cognitiva – ela é dividida em quatro itens: a) competênciasde ordem jurídica e política; b) conhecimento sobre o mundo atual; c)competências do tipo processual (“compétences de type procédural”) ed) conhecimento dos princípios e valores dos direitos do homem e dacidadania democrática. As idéias gerais dessas competências, queapresentamos a seguir, devem ser lidas e compreendidas como categoriassolidárias e não como partes separadas e excludentes.

As competências de ordem jurídica e política visam abordar e garantir aaquisição de conhecimentos sobre as regras da vida coletiva e dascondições democráticas para o seu estabelecimento, bem comoconhecimentos sobre os poderes numa sociedade democrática, isto é,da vida política em todos os níveis. Em outros termos, conhecimentossobre as instituições públicas democráticas e sobre as regras de liberdadee de ação, de tal forma que os cidadãos tomem consciência do papelque estas instituições cumprem e das liberdades que estão sob a suaresponsabilidade. A esse respeito, as competências jurídicas seriam“armas” nas mãos dos cidadãos para defender as suas liberdades,proteger as pessoas, contestar os abusos dos poderes, isto é, dos quedetêm uma autoridade.

Por seu lado, os conhecimentos sobre o mundo atual dizem respeitoaos conhecimentos que implicam uma dimensão histórica e uma

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dimensão cultural. Com efeito, para poder intervir no debate público epronunciar-se de maneira válida sobre as escolhas oferecidas numasociedade democrática, é necessário saber do que se fala, ou seja, terconhecimentos sobre os objetos que assim são discutidos. Tendo emconta a multiplicação dos domínios de conhecimentos teóricos epráticos, nenhuma pessoa saberia ter uma competência total, o quecoloca inquietantes problemas de escolhas em matéria de educação.Estas dificuldades são agravadas pelo aspecto provisório de um grandenúmero destes conhecimentos, o que exige flexibilidade e capacidadede acolhimento do que é novo. As capacidades de análise crítica dasociedade são aqui indispensáveis. Estes conhecimentos sobre o mundoatual, situando os problemas como, por exemplo, a disponibilizaçãopara as gerações futuras dos recursos energéticos ou alimentares, osefeitos a longo prazo de investimentos na energia nuclear, asmanipulações genéticas, etc, exigem mais do que um mero examesuperficial.

Quanto às competências de tipo processual, trata-se dos mecanismosque deverão proporcionar a capacidade de argumentação, de debate, ea capacidade reflexiva, ou seja, de reexaminar as ações e asargumentações face aos princípios e valores dos direitos do homem,de refletir sobre o sentido e os limites da ação possível, sobre os conflitosde valores e de interesses, etc.

Por fim, o conhecimento dos princípios e valores dos direitos do homem eda cidadania democrática diz respeito a princípios e valores baseados numaconstrução pautada na razão e numa concepção da pessoa humanafundada sobre a liberdade e a igual dignidade de cada um.

Quanto à categoria concernente às competências sociais o documentodo Conselho da Europa, de maneira geral, postula como fundamentalno processo de formação que o indivíduo adquira a capacidade de vivercom os outros, de cooperar, de construir e de realizar projetos coletivose assumi-los; de resolver conflitos segundo os princípios do direitodemocrático e da justiça, em que a decisão pertence a um terceirolegalmente constituído e legitimado em regras a priori estabelecidas; e

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de intervir no debate público, de argumentar e de escolher a partir dasituação concreta (Cf. AUDIGIER, 1999, p. 125-127).

Entretanto, é nas competências éticas e ligadas aos valores que, segundoo documento, uma educação para a cidadania encontra sua convergênciacom as outras duas competências – cognitivas e sociais – e adquire toda asua importância, tendo em vista a idéia de que a pessoa constrói a simesma nas suas relações com os outros de acordo com diversos valores.Na dimensão ética se manifesta a própria contradição da existênciahumana, em que o aspecto afetivo e emocional e os princípios racionaisse tensionam. Para alguns a adesão aos valores dos direitos do homem eda democracia deveria ser o resultado de uma construção fundada emprincípios racionais, sendo que para outros, não é suficiente decretar aadesão para obtê-la, visto que seria preciso considerar outros fatores,dentre eles os aspectos afetivos e emocionais, que continuariam presentesquando se trata de pensar a pessoa na sua relação com os outros e com omundo. Nas condutas e na busca permanente de respostas às suasinterrogações, tomando como parâmetro as decisões e as escolhas quefazem a partir do que consideram bom e mau, justo e injusto, virtuosoou não, os homens manifestam tanto o seu caráter, a sua maneira de ser,como as influências e as repercussões de suas ações na relação com osoutros indivíduos, ou seja, as conseqüências dos usos e dos costumes nasua existência. É a partir dessa dinâmica que podemos compreender, porexemplo, os motivos e os resultados de impulsos passionais, como oódio, o ciúme, a inveja, e até mesmo o amor nas posturas de um indivíduoou de um grupo de indivíduos. A ética não se exprimiria, portanto, apenassob a forma de um conjunto de imperativos, de preceitos, de idéias e deteorias, mas designa também as maneiras individuais e coletivas que oshomens estabelecem para viver. Nesse sentido, uma educação para a cidadaniadeveria exigir que a trabalhemos a partir desse ponto de vista, isto é, semreduzi-la a um catálogo de direitos e de obrigações, pensar, com ela, ohomem em sua plenitude (AUDIGIER, 2007, p. 23).

Uma primeira avaliação que podemos fazer, é que a polêmicaentre uma posição mais universal e outra mais intercultural, voltada àproximidade e ao respeito às diferenças, se estabelece. O documento,

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parece-me, quer encontrar um equilíbrio entre duas posições quemovimentam as discussões atinentes à ética, sobretudo a sua relaçãocom uma possível proposta pedagógica. No entanto, o equilíbrio nãoacontece, visto que na seqüência, embora haja o reconhecimento dosnumerosos valores em jogo, para os quais seria necessário um trabalhode construção e de reflexão, a educação se centraria em torno de três: aliberdade, a igualdade e a solidariedade. Seria a partir deles, tomados comouniversais, que as outras atitudes, entre elas o reconhecimento e orespeito de cada um a si mesmo e aos outros como portadores dehumanidade, a capacidade de escuta e a aceitação das diferenças e dadiversidade no sentido de favorecer que cada um se construa comosujeito humano, seriam experimentadas (Cf. AUDIGIER, 1999, p. 127).Podemos, então, refletir sobre o significado da escola nesse processo,especialmente se a compreendermos como um ambiente culturalconflituoso e complexo.

Se a escola, como espaço onde circulam indivíduos e cidadãos,formados por crenças, desejos e condutas as mais diversas, deve garantiro exercício da liberdade defendido pela sociedade, o desafio, portanto,de uma educação para a cidadania se funda em preparar os educandospara questões atuais e futuras, que eles terão que resolver, a partir dorespeito aos valores e princípios democráticos e aos direitos do homem.Deste modo, liberdade, igualdade e solidariedade não poderiam sertomados como valores universais, pois se a finalidade da escola é garantira formação de um “bom cidadão”, isto não significa que ela deva assumira tarefa de reparar as fraturas, as rupturas e os problemas sociais, mas,talvez para evitar o seu fracasso, ter em conta que o reconhecimentodo pluralismo e da diversidade é o caminho para se atingir, quem sabe,uma relativa coesão social. O documento do Conselho da Europa,tomado como parâmetro na França, embora tenha contemplado adinâmica de uma sociedade que se transforma, cujos valores se“desmancham no ar”, mantém a esperança iluminista de “um estadocosmopolita universal, como seio no qual podem se desenvolver todasas disposições originais da espécie humana” (KANT, 1986, p. 22).

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Portanto, o “ensino” da cidadania na escola é um desafio nosdias atuais, devido à complexidade em estabelecermos um equilíbrioentre a normalização e a crítica, entre princípios e conflitos.

Qual equilíbrio encontrar entre o projeto de inserção dasjovens gerações num mundo com sua cultura, seus valores esuas normas e o desenvolvimento da autonomia do sujeito,de suas capacidades, permitindo a estas gerações de participarna invenção permanente do mundo e da cultura? (AUDIGIER,1999, p. 8-9).

Se a partir do século XVI a escola, como postulava Comênius,torna-se o lugar específico e formal para a transmissão dosconhecimentos, das crenças, dos valores que as gerações precedentesjulgavam como indispensáveis para assegurar a continuidade social,ocupando o lugar da família que, por muito tempo, cumpriu esse papel,hoje essa tarefa precisa considerar que tanto no espaço físico, nametodologia, nos conteúdos, inclusive de educação ética e moral, nasavaliações, etc., não é mais possível partir e nem postular condutas evalores revestidos de transcendência e sublimidade. A exigência de umaconduta tolerante e equilibrada é o desafio que precisamos enfrentar,até mesmo para redescrevê-la, com a finalidade de aceitar as diferençase a diversidade que habitam o ambiente escolar e fora dele. Para tanto,convém ultrapassar uma concepção muitas vezes estreita de tolerância.

A tolerância não se reduz a aceitação da diferença, aceitaçãoque por vezes significa indiferença; ele exige o reconhecimentode nossos próprios limites e de considerar o outro comodepositário, como eu, de uma parte da humanidade; cadapessoa tem necessidade dos outros para se construir comosujeito humano. Esta referência aos valores é particularmenteimportante para evitar toda instrumentalização do direito(AUDIGIER, 2007, p. 23).

Em suma, o documento considera a cidadania como ancoradasobre a idéia de que “o cidadão é sempre um concidadão, uma pessoa

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que vive com os outros” (AUDIGIER, 2007, p. 17), na medida em quepertence a uma cidade, inclusive no sentido urbano, e a um Estado, nosentido de nacionalidade, resguardando-lhe o exercício pleno dosdireitos acordados. Ser cidadão seria, portanto, viver num espaçodemocrático, espaço onde as pessoas são iguais em direito e dignidade,e onde a lei é feita pelas pessoas para as pessoas. Ao cidadão, titular dedireitos e de obrigações numa sociedade democrática, deve ser garantidaa autonomia como primeiro valor, tomando o enunciado dos direitosdo homem como essencial: todos os seres humanos nascem livres e iguais emdignidade e em direitos. As dimensões econômicas, sociais e culturais seriamo complemento desse processo, visto que

[...] um mínimo de condições materiais de existência e de acessoa um certo número de bens julgados essenciais é indispensávelpara que os direitos políticos e as liberdades garantidas a cadaum não se tornem letra morta ... Nessa perspectiva, a ECD é oprojeto de educação e de formação o mais habitado de tensões,de ambivalências, até mesmo de contradições. Sua finalidadenão é nem técnica, nem profissional. Ela diz respeito à pessoae sua relação com os outros, à construção das identidadespessoais e coletivas e às condições de viver junto. Estádiretamente ligada ao indivíduo e ao social, ao particular e aouniversal, à inserção numa continuidade histórica e cultural, àinvenção e à construção de um mundo futuro, à aceitação deuma realidade pré-existente e ao desenvolvimento do espíritocrítico (AUDIGIER, 2007, p. 19).

França: educação cívica, jurídica e social

A experiência francesa nos permite refletir sobre quais oselementos, os problemas e as questões que permeiam ou deveriampermear uma educação para a cidadania. Se a escola tem a função deformar cidadãos e cidadãs responsáveis, solidários e livres, como apontao documento do Conselho da Europa, em que medida está sendo levadoem consideração, como aspecto importante, o caráter limitado,incompleto e finito da existência humana, sobretudo quando falamos

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de valores e respeito às diferenças? Se, atualmente, a diversidadecultural e valorativa se exprime cada vez mais, exigindo da escolaincorporar os alunos à sociedade plural em que vive, dando-lhe umaidéia nova da história, da geografia, da língua, da cultura, da filosofia,do homem e da sociedade e, por conseqüência, da psicologia e daética, quais os elementos constitutivos dessa temática que a tornamum assunto irreversível e norteador na atualidade da educação?Audigier considera que a primeira referência está no seu aspectopolítico, considerando o cidadão

membro de uma coletividade política, de um grupo de pessoasvivendo sobre um território e tendo o poder de definir a lei, asregras da vida coletiva, as liberdades reconhecidas a cada um,os modos de resolução dos conflitos [...] A referência àcoletividade política é, então, o núcleo duro da cidadania(AUDIGIER, 1999, p. 57).

Nesse aspecto, a cidadania está ligada à nacionalidade, aoterritório, à população, ao governo e ao Estado, bem no sentido definidopor Aristóteles, como veremos mais adiante. Segundo Audigier,podemos ainda compreender a idéia de cidadania do ponto de vistacivil, social e cultural. A cidadania civil está ligada à questão das liberdadesda pessoa: de pensamento, de informação, de comunicação, de reunião,etc, isto é, à histórica conquista dos direitos civis; a cidadania social aosdireitos econômicos e sociais, sobretudo aqueles ligados à riqueza doEstado; e a cidadania cultural ligada aos direitos culturais, como a língua,o ensino, o uso do espaço público e a religião.

Atualmente, a educação cívica, jurídica e social (ECJS) encontra-se contemplada no sistema de ensino francês, procurando garantir acompreensão, a apreensão e a apropriação das regras da vida social epolítica, os saberes relativos à instrução, às leis, aos princípios e valoresque fundam e organizam a democracia e a República, o significado dosdireitos do homem, o sentido do exercício das responsabilidadesindividuais e coletivas, os direitos e os deveres do cidadão, as regras da

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vida, o exercício do espírito crítico, o julgamento e a prática daargumentação. Para se ter uma idéia, no processo de avaliação realizadoao término do estudo colegial – o chamado Brevet –, que permitirá oeducando seguir os estudos visando à formação profissional euniversitária – o Lycée –, é exigido o dominio de noções tais como: 1)cidadania, civilidade, integração, nacionalidade, Direito, direitos dohomem e do cidadão, direitos civis, políticos e sociais, representação eEstado de direito; 2) República, democracia, legitimidade, liberdade,igualdade, laicidade, justiça, interesse geral, civismo e ética. A seguirapresentamos uma visão geral dos temas que são abordados nos colégios(11-14 anos):

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No entanto, é quando abordada do ponto de vista jurídico que acidadania adquire uma relativa consistência como experiência formativa,que não tem por finalidade, obviamente, formar juristas, como oprofessor de história e o de matemática não pretende formarhistoriadores e matemáticos, respectivamente. Embora as ciênciassociais em geral e particularmente a história, a geografia e outrosdomínios do saber sejam referências importantes nesse processo, odireito pode contribuir para uma melhor articulação entre as práticas eos conteúdos:

o direito é assim uma maneira de estabelecer relações entre oestudo dos problemas da sociedade e os valores da ação. É ummeio de iniciar [o aluno] na argumentação e na cultura do debate.Trabalhar sobre o direito evita uma derivação moralizante nomau sentido do termo, garantindo uma indispensável reflexãosobre os valores. E mais, o direito permite pôr [em discussão] adiversidade crescente dos alunos, notadamente a diversidadecultural que se traduz pela pluralidade dos valores e das normas;a referência ao direito situa esta pluralidade e os conflitoseventuais que ocorrem sob o olhar das exigências e dosprincípios democráticos (AUDIGIER, 1999, p. 75).

Ao ensino do direito seriam atribuídas três funções: 1) delimitarum espaço de liberdade, ou seja, é no interior das regras coletivasdefinidas pelo direito em cada Estado que as pessoas exercem suasliberdades e estabelecem relações mais ou menos formais com os outros,e que a sociedade considera como necessárias à sua proteção e a seudesenvolvimento; 2) satisfazer um certo número de obrigações, derespeitar as regras quando perseguimos certos objetivos e quandoqueremos estabelecer certas ações, de maneira que possamos aplicaros princípios de justiça em situações “transgressivas”; 3) definir asexigências particulares, os princípios e os procedimentos para aresolução dos conflitos, sendo que nas sociedade democráticas osprincípios são os mesmos, isto é, sempre há o apelo a um terceiro e aocontraditório, em vista de estabelecer o que se considera a verdademais próxima possível (Cf. AUDIGIER, 1999, p. 76-77).

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O direito, a lei são realizações humanas para os humanos e, nestesentido, não podem ser tomados como uma religião, um absoluto quepretende responder às questões últimas sobre o sentido da vida. Essasleis, como conjunto de regras e normas, expressam uma crença que foielaborada coletivamente pela sociedade a partir do como se organizamseus poderes, suas tradições, suas culturas, seus interesses e as relaçõesde força que a compõem. Nesse caso,

fazer do direito o fio condutor da educação à cidadaniamodifica bastante a concepção tradicional de educação cívica,fornecendo um apoio sólido permitindo, assim, considerarcom rigor as relações entre as experiências sociais e osconhecimentos, entrelaçando a dimensão pragmática e adimensão conceitual [...], [isto é], a experiência que os alunostêm do mundo, em particular da vida escolar e de suasrepresentações [...] e a construção de instrumentos para pensaro real e agir (AUDIGIER, 1999, p. 81-85).

O campo jurídico, juntamente com o político, pode ser tomado,portanto, como o elemento que atravessa e articula os outros domíniosconstitutivos de uma educação para a cidadania. Isto significa que asdimensões sociais, culturais e econômicas que revelam a vida socialseriam melhor compreendidas quando as articulamos com a dimensãopolítico-jurídica. Grosso modo, a análise e o estudo das leis e regrassociais seriam como, para utilizar a terminologia aristotélica, aatualização, a concretização daquilo que estava em potência, ou seja,dos objetivos contidos nos programas educacionais. Se a dimensãosocial ao tratar das relações entre as pessoas, entre o eu e os outros,considera a solidariedade como o valor norteador dessas atitudes; se adimensão econômica ao se referir ao mundo da produção, do consumode bens e serviços, da distribuição da riqueza, tem na igualdade o seuvalor propulsor; e se a dimensão cultural, com suas representaçõescoletivas, o imaginário e os valores partilhados, a capacidade de ler eescrever, enfim, toda a história das nossas criações artísticas, remete-nos ao exercício da liberdade, seria quando abordamos e conhecemos as

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questões ligadas ao direito e às obrigações e ao sistema político quevemos realizar não apenas a aprendizagem mas, sobretudo, a prática dacidadania, num exercício permanente das responsabilidades em todosos domínios da vida pública.

Desse ponto de vista, é a idéia de justiça, fundada nas liberdadesindividuais e coletivas, nos direitos e na organização judiciária, nosinstrumentos de recursos, nos direitos do homem, nos valores comuns,na identidade nacional, etc, que forma o eixo privilegiado para aexperiência didático-pedagógica. É com esse novo formato que, nocaso específico da França, a solidaridade, a igualdade e a liberdade,tomadas como valores universais, revestem-se de imanência e habitam,concretamente, a vida dos homens e da educação. O ensino jurídico-político seria, portanto, a tentativa de compreender como, na realidade,as instituições que organizam a vida social funcionam, garantindo aosindivíduos a construção de uma vida em comum. Em outros termos, écomo se as escolas brasileiras tivessem a oportunidade de estudar,analisar e verificar a aplicabilidade das leis que regulamentam a vida dopaís: o funcionamento das instituições, a organização do sistema penal,os direitos e os deveres dos cidadãos.2 A educação baseada nesse novoprocedimento cria as condições para

a compreensão das regras da vida democrática e seusfundamentos, o conhecimento das instituições [o poderexecutivo, legislativo e judiciário] e suas raízes históricas, areflexão sobre as condições e os meios do respeito do homeme de seus direitos no mundo de hoje (RIONDET, 1996, p. 45).

Se a cidadania, a princípio, pode ser tomada como a expressãopolítico-jurídica do universal contra os particularismos e os interessesprivados, o desafio está, portanto, em encontrar o equilíbrio e o respeito

2 Podemos nos referir à lei eleitoral, o processo de construção das leis, os códigos de defesa doconsumidor, o estatuto do idoso, o estatuto da criança e do adolescente, as responsabilidadesdos poderes executivos, a organização do sistema judiciário, etc, como conteúdos que poderiamser abordados na escola no processo de formação numa proposta de educação para a cidadania.

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às diversidades, ou seja, o que pode ser feito para se estabelecer umavida em comum reconhecendo no outro o que ele tem de universal ede particular, seja como indivíduo, sociedade, Estado ou nação. Nessesentido, a cidadania e sua experiência pedagógica poderia ser vista comouma atitude e um caminho que teria como compromisso levar emconsideração os problemas e dilemas ligados à vida coletiva em todosos domínios, com a finalidade de defender os interesses da coletividadedo qual fazemos parte, bem como os interesses de outras coletividadespróximas e distantes, sobretudo quando os direitos do homem estãoou são ameaçados (Cf. GALICHET, 1999, p. 71). Enfim, o discursojurídico, manifesto no exercício das leis democráticas, situado emcontextos e situações múltiplos, seria a materialização de uma formade viver juntos, cujo ponto de partida e o ponto de chegada seria ajustiça entre as pessoas e os indivíduos, na direção de uma consciênciasocial crítica e responsável.

No entanto, a proposição de tomar o ensino jurídico-políticocomo um meio para uma educação para a cidadania ainda está pautadanuma concepção de homem e de sociedade revestida de substancialidadee universalidade, de forma que os conflitos e a complexidade daexistência não se revelam em toda sua plenitude. Mesmo que tomemosa dimensão política e jurídica como uma possibilidade de incluir o caráterincompleto e finito e por isso singular dos valores, das leis e das regrascoletivas, temos a tendência (ou a vontade?) de estabelecermosjustificativas e conceitos universais como fundamentos para uma práticaeducativa. Se, num primeiro momento, a filosofia, sobretudo no campoético, poderia ser considerada como incapaz de descer aos problemasmais cotidianos da existência, de forma que o mundo jurídico teriarespostas mais concretas para a questão da convivência, penso quefazer a tentativa de examinar o tema da amizade pode contrabalançar aainda preponderante concepção totalizante de mundo, de homem e,por conseguinte, de educação, de maneira que os aspectos afetivos eemocionais se façam presentes, especialmente porque se trata de pensare formar pessoas na sua relação com os outros e com o mundo.

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Amizade: dimensão da vida política e cidadã

O termo amizade tem sido correntemente entendido comomanifestação de laços privilegiados e relações cordiais entre as pessoas.Com essa significação, ela aparece como um valor presente em todosos tempos e em todas as culturas, sendo saudada em prosa e verso sejana literatura, seja na filosofia, etc. Nas sociedades moderna econtemporânea, formadas por um avanço permanente da urbanizaçãoe da tecnologia, nos defrontamos com o desafio de entender quesignificado ainda pode cumprir a amizade nesse contexto, tanto doponto de vista da convivência sócio-politica bem como do debateconstitutivo do campo filosófico, com a possibilidade de algumarepercussão no campo educacional.

Quando tomamos como ponto de partida as relaçõesinterpessoais, vemos aparecer uma plêiade de palavras que podem, numprimeiro momento, ser tomadas como sinônimas: afinidade, simpatia,afeição, amor, ternura, intimidade, comunidade, benevolência etc. Essessentimentos designariam atitudes nas quais se conserva uma certareciprocidade, uma proximidade, uma semelhança, uma solidariedadee uma atração espontânea, o que implica sempre uma vivênciagratificante para as partes envolvidas, de maneira que permite aossujeitos acolher o outro enquanto outro, ligando-os naquilo que é comum.Nesse sentido, “a amizade corresponde a um laço de benevolência e deintimidade entre duas (ou várias) pessoas, não se apoiando nem sobre oparentesco nem sobre a atração sexual, nem sobre o interesse ou asconveniências sociais” (MAISONNEUVE, 2004, p. 13).

A amizade foi ao longo da história abordada das mais diversasformas: tratados, fragmentos filosóficos, máximas, poemas, romances,correspondências. Evocada e experimentada pelos homens desde osrelatos homéricos e bíblicos, penso que é em Aristóteles, especialmentenos livros 8 e 9 d’Ética a Nicômaco (1988), que ela aparece de maneiraorganizada e definida. A conclusão geral, como consta também na Política(1993), é a de que a amizade seria uma disposição que constitui a

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existência humana, seja do ponto de vista do indivíduo, seja naperspectiva da cidade (pólis), tendo a convivência com o outro, a vidaem comum, como elemento central. Na dimensão política, o legislador,tomando o território e os homens, fixa e estabelece as leis e as normas,evitando que a cidade tenha uma vida solitária, isolada, mas que selocaliza numa região e por isso deve estar aberta à convivência comoutras cidades.

A amizade parece ser o laço que une as cidades, e os legisladoresparecem concordar que ela é mais que a justiça. Eles buscam,com efeito, manter a concórdia e banir a discórdia, vendo nestaa calamidade mais temível das comunidades políticas: ora, aconcórdia é um sentimento próximo à amizade. Aliás, se oscidadãos estão unidos pela amizade não seria mais necessária ajustiça, mas mesmo havendo justiça, ainda assim, seria necessáriaa amizade. Enfim, somente a mais alta forma de justiça pareceter a mesma natureza da amizade (ARISTÓTELES, 1988, p. 31).

A unidade da cidade é obra da amizade, isto é, uma cidade é acomunidade da vida feliz, perfeita e autárcica e as relações que permitemessa vida em comum – a justiça - são obras da amizade, pois ela é aescolha refletida de viver e conviver juntos. Portanto, fonte de felicidadepara cada indivíduo e elemento de concórdia para a cidade, a amizadedeve ser entendida como uma questão ética e política. É por isso queAristóteles não se interessa pelas múltiplas formas de relações humanasa partir das afecções, mas privilegia a análise das relações objetivas epúblicas da amizade. Do ponto de vista político, descreve as diferentesamizades que constituem a cidade em seus diferentes níveis (camaradas,amante e amado, marido, esposa, filho e filha, pai e mãe, concidadãos,etc) e do ponto de vista ético, a amizade é indispensável mesmo paraum homem feliz e autárcico, possuidor de todos os outros bens. Enfim,é um bem útil ao homem visto que ele é um ser finito e limitado, dotadode necessidades múltiplas que não pode satisfazer sozinho mas somentenuma cidade, numa vida em comum, numa relação virtuosa com homenstambém virtuosos.

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A amizade como virtude

Aristóteles compreende a amizade como uma virtude, umaexperiência necessária à vida. Mesmo que tenhamos todos os bens,toda riqueza e todo o poder, ou que vivamos na pobreza ou em qualqueroutro tipo de infortúnio, não poderíamos passar sem a amizade, semesse refúgio. Os jovens teriam nela uma forma de evitar os erros dainexperiência, os velhos uma forma de socorro às enfermidades daidade e àqueles que estão na força da idade, ela inspira as belas condutas.A amizade, como um exercício, é uma caminhada que dois seres fazemjuntos, em que a ternura, a afeição e a simpatia são suas formas demanifestação. Nobre e bela, a amizade deve, então, ser louvada comoo caminho mais vantajoso que nos leva à “excelência moral”, à areté.As condições para essa experiência estão na nossa capacidade deestimar e bem querer ao outro, ou seja, num processo de benevolênciapartilhada, mútua.

Desejar o bem do outro, ser benevolente é uma atitude que,portanto, não deve ser ignorada pelos homens, pois ela conduz a nosrelacionar com as pessoas e a estabelecer uma reciprocidade dossentimentos e a manifestar ativamente essa reciprocidade. SegundoAristóteles, podemos falar em três teorias sobre a amizade, diferenciando-se somente pelo fim visado: aquela dirigida ao bem, ao agradável e aoútil. A amizade fundada na utilidade considera apenas o benefício ou oproveito que pode ser tirado, isto é, a afeição pelo outro está nas vantagensque são esperadas, tendo em vista o interesse próprio, o que denota nãouma reciprocidade, mas um amor a si próprio. A amizade agradável, porseu lado, está inspirada no prazer que o outro proporciona, tendo emvista apenas o deleite pessoal. Em ambas, a

amizade nasce somente de circunstâncias acidentais e não dequalidades essenciais do indivíduo amado. Não se ama o outropelo que ele é, mas pelo que ele pode proporcionar, oferecer. Aamizade assim construída pode ser reconhecida como frágil(ARISTÓTELES, 1988, p. 33-34).

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Por seu lado, a amizade que visa o bem, é perfeita e virtuosa,devendo ser a preferida de todos; mais rara e mais lenta para se formar,é duradoura, dado que pertence aos homens virtuosos considerar osamigos como a si mesmo e o prazer que experimentam reside nas açõesque exprimem uma natureza que visa sempre o bem do outro. Essasemelhança de natureza se funda numa relação de confiança e de umreconhecimento recíproco: os homens bons e virtuosos são agradáveise úteis uns aos outros (Cf. ARISTÓTELES, 1988, p. 34-35). Portanto, aamizade virtuosa inclui e vai além de uma amizade útil e agradável, e sediferencia do amor entre o amante e o ser amado que, muitas vezes,são seduzidos e conduzidos por coisas mutáveis, passivas e motivadaspela satisfação pessoal, como alguma coisa de excessivo, se endereçando,assim, a um único ser.3 A vida em comum é a característica mais relevanteda amizade perfeita, pois aqueles que estão em estado de fraqueza ouindigência têm necessidade de ajuda e aqueles que são ricos gostam dese sentirem rodeados de pessoas, visto que a solidão é algo que incomodae aflige. Como disposição duradoura, gostar de seu amigo é gostar doque é bom por si mesmo, o que pressupõe, portanto, uma igualdade,uma partilha da existência.

Contudo, é necessário ter em conta que há diferenças entre aspessoas, por exemplo entre os pais e os filhos, os homens revestidosde autoridade e os que a ela estão submetidos, entre o professor e oaluno, etc., o que exige que a amizade seja experimentada a partir dessadesigualdade: a afeição deve ser em função do mérito das partes.Aristóteles (1998, p. 40) considera, assim, que “a amizade será estável eequilibrada quando cada parte fizer ao outro o que lhe é devido [...] Aregra é que essa ligação deve ser proporcional às vantagens recebidas”.Nesse sentido, é preciso um cuidado permanente para que as coisassejam realizadas sempre tendo em vista uma certa ponderação; umreconhecimento das diferenças de funções, das virtudes, das razões de

3 “O amor é visto por Aristóteles como um elemento perturbador da harmonia da alma, ridículono seu desejo de reciprocidade, ocupando o amante com a satisfação das partes mais baixas desua alma, e distraindo a atenção das faculdades superiores, que encontram sua expressão naamizade como obra-prima da razão [...]. Com outras palavras, Eros é uma paixão e philia umethos” (ORTEGA, 2002, p. 37).

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gostar do outro, as diferenças de obrigações recíprocas e das vantagensesperadas pelas partes. Essa proporcionalidade – o justo meio –, é umadas condições básicas para existir uma relação de amizade, sem perderde vista o exercício de querer para os amigos o mesmo que desejo paramim; isto é, a desigualdade não seria empecilho para experimentá-la,desde que as coisas sejam compatíveis com a natureza de cada homeme colocadas num quadro de equilíbrio.

Quando uma parte dos homens prefere ser adulada ou somenteadular, querendo os homens, com isso, serem estimados, reconhecidose obterem vantagens pessoais, isso indica um caráter acidental, eventuale vicioso de se conduzir. A amizade seria, então, o meio de restabelecera igualdade e a semelhança como condição para uma vida virtuosa,constante e estável, equilibrando os vícios de excesso ou de deficiência.É nesse sentido que Aristóteles pensa como possível a amizade entre orico e o pobre, o sábio e o ignorante. Essa disposição de caráter daspessoas, ou seja, de desejar o bem a quem amamos pelo que elas são, éo que as diferencia daquelas que simplesmente amam por meio dossentimentos, visto que é ridículo quando observamos os amantespedirem para serem amados tanto quanto amam, tendência que estálonge de qualquer posição intermediária, que seria a mais apropriada anossa própria natureza.

Na concepção aristotélica, as relações entre as pessoas, entre osfamiliares e na vida política devem estar, portanto, ancoradas nosmesmos princípios: amizade e justiça. O homem como animal políticodeve viver entre amigos, deve viver numa comunidade de cidadãos e dejustos, isto é,

a natureza exige que a obrigação de ser justo cresça com aamizade: justiça e amizade existem entre as mesmas pessoas ese aplicam aos mesmos objetos. Todas as comunidades sãofragmentos da sociedade política. Os homens se reúnem emvista de algum objetivo utilitário e para se proporcionarem oque é necessário à vida. O interesse geral em vista do qual ascidades são formadas, para o qual elas subsistem, é o fim visadopelos legisladores (ARISTÓTELES, 1998, p. 44).

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Política: amizade e cidadania

As relações entre os amigos e entre os cidadãos se equivaleriamem Aristóteles, ou seja, a amizade entre os cidadãos é a coisa maisimportante para a estabilidade do Estado. A dimensão política daamizade estaria na nossa capacidade e disposição de conviver com ooutro e com os outros. Nesse caso, as espécies de governos, como amonarquia, a aristocracia e a república seriam manifestações do grau eda intensidade de nossas relações com a comunidade de amigos e decidadãos. A corrupção, a tirania, a falta de escrúpulo, a busca dasvantagens pessoais que se instauram nos governos, com o tempoproduzem as mais diversas maneiras de degenerações de um regimepolítico. Devemos cuidar para preservá-lo. O mesmo acontece naorganização familiar, em que os pais, os filhos, os irmãos, os maridos eas esposas devem, segundo Aristóteles, esforçar-se para garantir umarelação ponderada e justa em relação às funções e competências decada um.

[...] a autoridade deve ser diferente quando é exercida porpessoas diferentes [...]. Natural é a autoridade do pai sobre osfilhos, dos antigos sobre seus descendentes Ela repousa sobrea superioridade, que merece e precisa ser respeitada. A justiçase alia à amizade para proporcionar o mérito de cada um(ARISTÓTELES, 1988, p. 46-48).

Nós, contemporâneos à sociedade da Declaração dos Direitosdo Homem, temos dificuldade em aceitar que seja justificável aproposição aristotélica, contudo, relembremos que os princípiosindividualistas são estranhos à concepção grega. Em Aristóteles, a cidadenão é um teatro, um campo aberto a estratégias e a relações de força,mas um fim (telos) e um Bem, um Todo que existe por natureza e, porisso, está acima dos indivíduos; é uma totalidade que é mais que a somados indivíduos que a compõem, tendo mais valor que eles. É o indivíduoque é para a cidade e não a cidade para os indivíduos.

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De qualquer maneira a idéia que podemos sobrelevar daconcepção aristotélica, é considerar que na base da amizade está aigualdade. Quando as relações, as formas de governo são corrompidas,a justiça se enfraquece, as constituições tornam-se perversas, instaura-se a tirania, impossibilitando as afeições recíprocas e de nossubmetermos a uma lei e a uma vida em comum, aceitando um contrato.Portanto, a amizade e a cidadania se aproximam devido ao elementonecessário a sua realização, isto é, à vida em comunidade, bem no estilodas relações familiares. Experimentar a amizade é considerar apossibilidade de uma vida justa e virtuosa, fundada no compartilhar doque é agradável, no desejo de fazer bem ao outro e de se exercitar nadireção de atitudes não baseadas nos interesses individuais, fonte deconflitos permanentes, mas nos colocando como membros de umacomunidade, como pertencentes a uma coletividade.

É recorrente no pensamento aristotélico considerar a prudência(phronésis) como uma das condições para o estabelecimento dessa vidajusta e virtuosa, seja nas relações de amizade bem como nas de cidadão.No caso do sentimento de amizade, ela deve estar associada ao bom-senso, à moderação, à circunspecção e à ponderação, permitindodeliberarmos corretamente acerca do que é bom para nós e agirmos deacordo com isso. Sem essa disposição, teremos dificuldades em escolhere realizar atos que garantam a amizade. Portanto, exercitar a justa medidaé fundamental: ela restabelece entre os desiguais a igualdade,preservando o sentimento de amizade e o equilíbrio da comunidadepolítica. Exercitar bem uma vida de amizade e de cidadania funda-se,assim, numa deliberação que reflete o que é benéfico, sobre o que écerto, de forma correta e no tempo certo, enfim, a boa deliberaçãogarante alcançar o bem que dura. Em todas as situações da vida, omelhor é agir com equilíbrio.

No caso das amizades fundadas sobre o que é útil ou agradável,em que as vantagens imediatas e pessoais são as razões do agir, apossibilidade de uma vida virtuosa pode diminuir. Quando um dosamigos conduz sua vida baseada no vício, a instauração da amizade

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virtuosa e perfeita torna-se impossível, ou, por outro lado, é impedidade continuar, a não ser que haja uma real mudança. Embora o que foraconstruído no passado possa subsistir, a amizade não pode durar quandoduas pessoas tornam-se demasiado desiguais:

[..] é claro que não é necessário ter as mesmas consideraçõespor pessoas diferentes, se conformar em todas circunstânciasaos desejos de seu pai, ou mesmo oferecer a Zeus todos ossacrifícios. [...] [Mas] é justo reservar vantagens apropriadas acada um. Deve-se honrar seus pais, bem como os deuses, masnão devemos fazê-lo da mesma maneira ... A cada membro dafamília, da cidade, convém, portanto, manifestar um respeitoapropriado (ARISTÓTELES, 1998, p. 61-62).

A amizade perfeita, sentimento reservado aos homens virtuosos,pressupõe o altruísmo como característica básica, que se deriva dasrelações do indivíduo consigo mesmo: desejar o bem de si mesmo écondição para o bem do outro. “O amigo é outro si mesmo”. Agir comprudência e justiça não é apenas um fim que está posto no futuro, mastrata-se de uma condição mesma para nos tornamos prudentes e justos.Os homens perversos, viciosos, imprudentes, indolentes são marcadospor inclinações egoístas, o que os torna incapazes de amizade, e até degostarem de si mesmos:

[...] em uma palavra, eles não têm nada de amável, nada que osleve a gostar deles mesmos, se sentem estranhos com suaspróprias alegrias e aflições. Sua alma é um teatro de conflitos:uma parte sofre quando se vê forçada a se abster de algumascoisas, enquanto a outra experimenta da alegria (ARISTÓTELES,1988, p. 66).

Depois de ter definido e apresentado as condições básicas paraa experiência da amizade, Aristóteles distingue-a de outras disposiçõesconstitutivas do homem: a benevolência, a concórdia e a beneficência.Como começo da amizade ou uma amizade inativa, a benevolênciaconsiste na disposição, nem sempre experimentada, de fazer o bem

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aos outros homens: é ter simpatia por pessoas que jamais vimos; aconcórdia, também tendendo à amizade, mas distinta dela, é umsentimento afetivo que se refere a fins práticos no sentido deproporcionar vantagens ao conjunto dos cidadãos, isto é, a identidadede sentimentos que são mobilizados em vista de ações que interessamaos membros da coletividade: a concórdia supõe pontos de vistasidênticos, sentimentos compartilhados e uma ação comum; no que dizrespeito a fazer o bem (beneficência), o benfeitor gosta do outro comoo artista gosta da obra que o faz existir, cuja lembrança de uma açãonobre e do esforço é fonte de verdadeiro prazer: a obra é a atualizaçãode seu autor, a sua realização.

Nos capítulos finais do Livro IX, Aristóteles sintetiza o queconsidera como fundamental para a experiência da amizade. A amizade(philia) é um sentimento que o homem, como ser político, deve cuidar;um exercício útil e agradável que fundado na virtude nos conduz àfelicidade. A abertura ao outro é a condição plena para uma vida feliz:o amigo sendo um outro si mesmo nos proporciona uma satisfaçãocompleta. O homem feliz necessita, portanto, de amigos, pois seriaabsurdo possuir todos os bens e gozá-los solitariamente, sobretudoporque estamos destinados a viver em sociedade. Dessa forma, afelicidade é o resultado desse exercício de contemplação das condutasvirtuosas dos nossos amigos: o homem virtuoso se sentirá alegre efeliz quando convive com as belas ações e se aflige com aquelas quesão inspiradas no vício. Numa palavra, amizade e felicidade sãoexperiências que estão ligadas.

Diferentemente dos animais, que são constituídos somente pelafaculdade de sentir, o homem dispõe de algo mais: o pensamento. Sentire pensar formam a essência da vida humana, revelando não apenas anossa potência do agir, mas as nossas ações mesmas. Sentir e pensarrepresentam a consciência de uma vida boa, agradável e virtuosa: é aalegria do existir. Existir com amigos é conviver, trocar palavras epensamentos, é partilhar sentimentos. “Uma tal vida com o outro éacessível somente aos homens. Os animais sabem apenas pastar ao

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mesmo tempo e no mesmo lugar” (ARISTÓTELES, 1988, p. 76). Mas comodefinir o número de amigos? É bom ter muitos ou poucos? Mais umavez Aristóteles retoma a idéia de prudência. Como a intimidade é umacaracterística essencial da amizade, um bom número de amigos se definena justa medida em que podemos ter com eles uma vida comum, osuficiente para partilharmos os prazeres e os tormentos: querer agradara todos é finalmente não ser amigo de ninguém, a não ser numa amizadepolítica, cujas amizades entre os concidadãos comporta um grandenúmero.

Portanto, o fundamento para a experiência da amizade está emcompartilhar uma vida em comum. Viver entre amigos é uma açãopolítica. A amizade, como virtude, ou melhor, tendo em vista a vidafeliz e virtuosa, é o meio para compartilhar a prosperidade e suportaras adversidades. A presença de amigos é preciosa, seja na alegria, sejana tristeza, tornando as dores leves e toleráveis.

A amizade é uma comunidade, em que os sentimentos que temospor nós mesmos, temos por um amigo. Como desejamos a nossaprópria existência, desejamos a de um amigo e a consciência desua existência se atualiza concretamente graça a essa vida emcomum (ARISTÓTELES, 1988, p. 79-80).

Enfim, viver na companhia dos amigos nos faz crescer, corrigir-nos mutuamente e tornarmo-nos modelos uns para os outros,confirmando a máxima “dos seres virtuosos aprendemos a virtude”.

Considerações provisórias

Se a ética ou a moral ocupa um espaço importante no centro dasdiscussões atuais, é preciso observar se nesse processo está havendouma problematização de certas pretensões e de certos objetivos quetradicionalmente se colocaram como atingíveis e até desejáveis. Comodestaca Zygmunt Bauman (1997, p. 15), a visão moderna de mundoprecisa ser questionada, exigindo que os temas éticos sejam vistos e

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tratados de maneira nova. Para ele, se “o pensamento e a prática moraisda modernidade estavam animados pela crença na possibilidade de umcódigo ético não-ambivalente e não-aporético”, hoje – e, para Tugendhat(2007), em especial a partir do século XX –, o sujeito moral deveaprender a viver e a orientar as suas ações, decisões e sentimentos jánão tendo em vista certezas, mas a partir de impulsos contraditórios,cuja existência não se regularia por situações repetitivas, monótonasou previsíveis, de forma que fosse possível representá-las por regrasgerais. Estaríamos diante de valores não universalizáveis, o que exigereconhecer que todas as formas de conduta são relativas a um tempo ea um lugar, isto é, são afetadas pelos caprichos da história. Se amodernidade, como compreende Max Weber, postulava o poder darazão, do conhecimento racional, esse mesmo processo tornou omundo, como conseqüência imprevista, desencantado, sem condiçõesmais de justificar a possibilidade de um valor último determinar asituação existencial e sagital do homem. Viveríamos numa época depoliteísmo dos valores (Cf. WEBER, 1967, p. 38-39).

Portanto, o desafio está posto: como refletir a respeito de éticae moral, cidadania, direito e amizade a partir de um diagnóstico queindica a impossibilidade de justificarmos universalmente os valoresque tomamos como parâmetros para nossas condutas? Se um dosobjetivos da educação é garantir a formação ético-moral, quesignificado ainda poder ter o direito, a amizade, a justiça e a cidadania,num mundo cujo próprio ideal de humanidade é colocado em questão?Embora marcada por uma concepção substancializada, unitária eformal de homem e de sociedade, a proposta de uma educação para acidadania como consta no documento do Conselho da Europa e oprojeto de sua implantação na realidade francesa, podem ser tomadascomo tentativas, sabendo-se, no entanto, que são medidas provisóriaspara um mundo em mudança permanente. Nessa direção, poderíamosanalisar, ainda, o Programa Ética e Cidadania do Ministério da Educaçãobrasileiro, como uma derivação dos Temas Transversais contidos nosParâmetros Curriculares Nacionais.

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Pretendendo enfatizar mais o exercício da cidadania comoresultado do ensino e tomando alguns valores universais comonorteadores, o Programa afirma que

aprender a ser cidadão e cidadã é, entre outras coisas, aprendera agir com respeito, solidariedade, responsabilidade, justiça, não-violência; aprender a usar o diálogo nas mais diferentes situaçõese comprometer-se com o que acontece na vida coletiva dacomunidade e do País. Esses valores e essas atitudes precisamser aprendidos e desenvolvidos pelos estudantes e, portanto,podem e devem ser ensinados na escola (LODI, 2007, p. 1).

Para a sua implementação, dois fatores seriam fundamentais: oprimeiro considera que os princípios ou valores possam ser expressospor meio de situações reais, de forma que os estudantes osexperimentem e convivam com eles a partir de sua prática e, comoconseqüência, possam desenvolver a sua capacidade de autonomiamoral, análise e escolha de valores para si de maneira consciente e livre.Dividido em quatro grandes eixos – Ética, Convivência Democrática,Direitos Humanos e Inclusão Social –, apresenta uma proposta quepodemos interpretar como fundada, ainda, numa concepção teleológicae universalizante de homem, de sociedade e de educação. Nesse sentido,a escola é considerada como o microcosmo da sociedade, como pontode partida onde as crianças podem aprender a viver a complexidadedos dias atuais e onde os educadores podem praticar e difundir osprincípios da vida cidadã. Se, num primeiro momento, a idéia pareceinteressante, o ponto de chegada revela e se mantém ligado a umaconcepção teleológica universal e fala por si só, ao afirmar que estaria

no sonho de cada um, na utopia que nos move diante darealidade, muitas vezes adversa, mas sempre compensadoraquando se tem como ideal a construção de uma escola melhorpara todos, capaz de contribuir para o desenvolvimento donosso país e de fornecer saberes e competências que nosfacilitem o caminho na busca da felicidade e do bem-estar social[...], [na] abertura dos corações para a convivência das diferenças

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de gênero, de raça ou de etnia, ou de fundo cultural, religiosoou ideológico [...] [e] construção de valores e de uma novasociedade (LODI, 2003, p. 4).

Especificamente no módulo sobre Ética, o conteúdo, ametodologia e os objetivos seguem na mesma linha, ou seja, que nointitulado “Fórum Escolar de Ética e Cidadania” – formado porestudantes, profissionais da educação, dirigentes, pais, liderançascomunitárias, associações e assembléias de pais ou de bairros, colegiados,conselhos tutelares, etc. – sejam refletidos e discutidos os valores e os seusfundamentos, no sentido de proporcionar o desenvolvimento dos sereshumanos e suas relações com o mundo.

Democracia, justiça, solidariedade, generosidade, dignidade,cidadania, igualdade de oportunidades, respeito às diferençassão alguns dos valores almejados pela sociedade brasileira quedevem ser alvo de ações dos membros da comunidade escolarem busca de sua construção e disseminação (LODI, 2003, p. 9).

Estou de acordo que o tema é provocante e exige uma reflexãomais de fundo como, por exemplo, compreender que crenças e desejosmobilizam as pessoas hoje em dia, isto é, em que grau e intensidade osvalores e princípios universais habitam a nossa existência. O documentodo Conselho da Europa, a experiência francesa – tanto na disciplinaECJS, ou como mostrado pelos dados da pesquisa – e, no Brasil, oPrograma Ética e Cidadania, são situações que indicam o desafio parase construir uma educação para a cidadania que contemple o caráterinstável e desencantado, para usar a terminologia weberiana, de nossotempo. Para além do início de um estudo comparativo, o objetivo aquifoi o de trazer à baila a dificuldade que ainda temos em discutir e elaborarpropostas que considerem os dramas dos nossos tempos, sobretudoas questões relativas ao que estamos fazendo de nós mesmos e com os outros naatualidade, como devemos viver, que assinalam não se tratar mais de indagarquem somos nós e os outros enquanto sujeitos universais, mas enquantosujeitos ou singularidades históricas. Qual é a historicidade que nos

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atravessa e que nos constitui nas relações de amizade e de cidadão?Interpelações de base ético-moral, elas estão relacionadas à direçãoque damos à nossa própria existência e às relações que estabelecemoscom os outros indivíduos (philia) e com a cidade (pólis). Retomar algumasreflexões clássicas talvez possa nos ajudar na busca de alguma resposta.Fizemos uma tentativa com as idéias aristotélicas sobre a amizade.

A amizade e a cidadania são valores a serem adquiridos ou sãodisposições do caráter que podem ter algum sentido para nós, o quedemanda uma certa prudência e cuidado para não fornecermosrespostas rápidas e com a pretensão de serem completas e universais.Na escola, como praça pública e espaço de convivência, de respeito ede afeto, há diversas maneiras de conversarmos sobre um tema, maspodemos começar a lê-lo, pensá-lo, senti-lo e vivê-lo, ancorados numapostura ora silenciosa, reflexiva ou solitária que, fundada num olharheterogêneo e aberto, permita multiplicar as suas ressonâncias epluralizar os seus sentidos, na perspectiva de contribuir para ainstauração de uma dinâmica de investigação e de discussão didático-filosófica.4

Penso que experimentar a amizade, pode ser o caminho paravivermos como cidadãos, ou melhor, seria como morar numacomunidade que assimila e preserva as diferenças, as singularidadespessoais; em que o aprender não seja apenas um meio para o saber,mas de encontro e de recepção do múltiplo, de uma partilha que não serelaciona a nenhuma totalidade, mas que garanta a descontinuidade, adivergência, a distinção. Nessa acepção, a amizade pode dissolver,desintegrar e redescrever o comum, que apareceria como dispersão eseparação, em que cada um age diferente em relação às dinâmicas – àsvezes contingenciais e às vezes necessárias – da existência vividascoletivamente; ela pode nos fazer olhar para as mais divergentes direçõese paisagens numa viagem comum, traduzindo numa linguagem própria

4 Defino como didático e filosófico a possibilidade de experimentarmos e fazermos o exercíciode leitura, reflexão e debates e vivência de temáticas, textos e idéias da filosofia na escola, peloprofessor e pelo aluno, como recurso permanente de formação.

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os textos e os contextos que lhe são oferecidos. A escola como ágora oumicrocaos, e não microcosmo, torna-se lugar de inquietações pelasmesmas coisas, mas para ver coisas diferentes, significando, assim, viverentre amigos livres, em que o ensinar e o aprender não se reduzem aum saber já elaborado, mas que possam ser tomados como imprevisto,imprevisível e surpreendente, escapando a toda dominação exterior –abertos ao novo e ao desconhecido. Essa experiência é também aexperiência da cidadania.

A cidadania é, então, a participação ativa nos negócios da cidade(cité). É o fato de não ser simplesmente governado, mas tambémgovernar. Nesse sentido, a liberdade não consiste apenas emgozar de certos direitos, mas no fato de ser “co-partícipe nogoverno” (CANIVEZ, 1995, p. 24).

Isso implica, portanto, em uma formação que não consista apenas

numa informação ou uma instrução que permitiria ao indivíduo,enquanto governado, conhecer seus direitos e seus deveres, ese conformar com escrúpulo e inteligência. Ela deve lhe dar,além destas informações, uma educação que corresponda a seustatus de governante em potencial (CANIVEZ, 1995, p. 25-26).

Do meu ponto de vista, a experiência e o exercício da amizadepode ser um dos caminhos para a construção da cidadania: edificar acidade (pólis) é conduzir-se, é educar-se, é ser ético, a prática dos valoressendo, então, uma virtude, uma disposição do caráter, um convíviocom os outros.

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Ética na mídia impressa: um estudo de notíciaspublicadas entre 1997 e 2003

Helenice Maia *

Resumo: Este artigo mostra que a mídia impressa veicula avaliações e juízosde aprovação ou reprovação de atos e situações do cotidiano justificados pormeio de argumentos ancorados em alguma opção ética: superior (atemporais)ou polissêmica (situacionais). As reflexões que os autores fazem sobre temasda atualidade despertam o interesse dos leitores pela questão da ética econtribuem tanto para a formação de suas opiniões quanto influenciam suastomadas de decisão.

Palavras-chave: Crise ética. Ética superior. Ética polissêmica.

Ethics in the printed media: a study on news from 1997 to 2003

Abstract: This article demonstrates that the printed media divulges evaluationsand approval/disapproval judgments of everyday actions and situations thatare justified by arguments anchored on an ethical option: superior (atemporal)or polysemic (situational). The authors’ reflections on present-day topics attractreader interest to ethical issues and contribute to opinion formation andinfluence decision-making.

Key words: Ethical crisis. Superior ethics. Polissemic ethics.

* Doutora em Educação Escolar pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professorado curso de Mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá (RJ) e coordenadoraacadêmica da pós-graduação lato sensu da mesma Universidade. E-mail: [email protected].

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 205-234 2007

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Helenice Maia206

Introdução

Para resolver problemas e situações que ocorrem no cotidiano,indivíduos e grupos sociais recorrem a normas, argumentos e razõesque justificam juízos, tomadas de decisão e execução de ações, cujasconseqüências afetam todos os envolvidos. Esse comportamento édefinido como comportamento humano prático-moral e está sujeito avariações conforme a época e o contexto em que se insere. Quandocomportamentos prático-morais são tomados como objeto de reflexãoe os indivíduos e os grupos sociais passam a questioná-los, dá-se apassagem do plano da moral vivenciada para o plano teórico-moral ouético. Os problemas éticos emergem, portanto, do comportamento dosindivíduos, diferenciando-se dos problemas prático-morais, uma vezque esses últimos são solucionados recorrendo-se a normas ou regrasaplicadas a determinada ação prática. Como no campo moral osproblemas práticos e os problemas teóricos são intercambiáveis, ainvestigação de problemas éticos pode orientar condutas em situaçõesconsideradas particulares, influindo no comportamento moral-práticodos indivíduos (VÁSQUEZ, 2000).

Na mídia impressa, diversos autores têm avaliado atos esituações do cotidiano emitindo juízos de aprovação ou reprovaçãosobre eles e justificando seu julgamento através de razões e argumentosque procuram demonstrar a validade do juízo que emitem, isto é,dependendo da técnica – reportagem, entrevista, crônica, resenha,crítica – por eles escolhida para abordar um assunto, haverá sempre aexpressão de um ponto de vista da “realidade/fato” (BENETTE, 2002).Entendendo que essas reflexões podem estar despertando o interessedos leitores pela questão da ética e contribuindo tanto para a formaçãode suas opiniões quanto para suas tomadas de decisão, pretendemostrazer opiniões de diferentes autores sobre diversas questõescontemporâneas que foram publicadas em jornais e revistas veiculadosna mídia impressa na cidade do Rio de Janeiro no períodocompreendido entre 1997 e 2003.

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Ao todo, foram verificadas 1.080 notícias1 que focalizavam aárea da Educação. Desse total, selecionamos 275 notícias com o temaética, tendo como critério inicial o título nos quais palavras ou expressõespoderiam indicar que o texto abordava o tema. O que se verificou nodecorrer da seleção é que, às vezes, embora a notícia apresentasse umtítulo que sugerisse o tema, seu conteúdo não era pertinente ao escopodesse estudo. Outras vezes, verificou-se que o conteúdo era pertinente,mas o título da notícia não evidenciava o tema ética. Assim, como nãobastava selecionar a notícia por seu título, outro critério foi adotado:ler a notícia para selecioná-la ou desprezá-la de acordo com o conteúdoapresentado. Ao final, chegou-se a um total de 236 notícias, entre asquais 193 apontavam que o mundo ou o Brasil atravessa um momentode crise negativa e 43, positiva.

Ao longo das notícias analisadas, pôde-se perceber que os autoresconsideravam que não somente o Brasil, mas todo o mundo estãoatravessando um momento de crise ética. Para muitos desses autores,esse é um momento de crise negativa, uma vez que há uma inversão devalores e uma decomposição moral crescente, baseadas na desobediênciaàs regras estabelecidas, o que expõe comportamentos e atitudesincorretas dos indivíduos. A noção de ética que tais autores defendemparece ser, portanto, a de “ética superior”, que nomeia condutasconsideradas morais por este ou aquele grupo social e é estruturadapor meio de conteúdos universais.

Uma outra parte desses autores considera que estamos vivendoum período de crise positiva, pois diversos grupos sociais têmapresentado inúmeras preocupações com novos temas contemporâneos,as quais possibilitam reflexões e tomadas de posição sobre problemaslocais e planetários, que vêm surgindo a todo instante. De acordo comesses autores, as noções de ética mudam ao longo do tempo, conformenegociações e acordos estabelecidos, dependendo da história e dos

1 Usaremos o conceito notícia conforme Benette (2002, p. 21), uma vez que a notícia “dominatodo o jornal impresso diário por estar na base da estruturalidade de sua composição sistêmicae processual e porque as técnicas discursivas estão calcadas na notícia.”

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grupos sociais envolvidos, e permitem correções nos rumos do futuro.A noção de ética que defendem parece ser, então, a de ética polissêmica,porque expressa a variabilidade cultural.

Ética, Educação e Mídia

Há muito tempo vem sendo discutida a falta de qualidade ecriatividade da televisão brasileira. Carmona (2003) afirma que no Brasila televisão nasceu comercial e nossa legislação sempre permitiu que osexploradores deste serviço fossem guiados por interesses puramentecomerciais, ao deixar de lado estratégias com finalidades culturais,educativas e informativas. A autora revela que somente por volta dosanos 1970 percebeu-se que a televisão poderia ser um poderoso veículopara a educação formal num país tão grande e com inúmeras diferençasinternas. Assim, inspirada pelas idéias de Roquete Pinto, que já enxergavano rádio um grande potencial cultural e educativo, surgiu a Rede deTelevisão Educativa no Brasil. Carmona (2003) considera que, de lápara cá, muitas transformações aconteceram e, entre elas, aquelas quemais contribuíram para que a escola reconhecesse a potencialidade douso da televisão e do vídeo em sala de aula foram a reinterpretação dapalavra educativa pela própria televisão e a ampliação do termo educação.Passou-se, então, a perceber a mídia televisiva como uma forte aliadana formação e na construção do conhecimento de inúmeras pessoas,uma vez que sua base de sustentação estaria no tripé informação,conhecimento e entretenimento. No entanto, a autora enfatiza que astelevisões comerciais têm buscado apenas o lucro e a audiência a todocusto, deixando de lado a construção da cidadania e da identidade dopovo brasileiro, assim como a transmissão de valores éticos e morais.

A visão de Regina Soler, diretora do programa Disney Clubveiculado pelo Sistema Brasileiro de Televisão, parece ser oposta à deCarmona, uma vez que ela considera que existem programas televisivosque se preocupam com a formação e a educação dos telespectadores.

O Disney Club, por exemplo, utilizando uma forma que se tornouemblemática na televisão brasileira, exibe diversos desenhos animados

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e, durante intervalos de quinze minutos, coloca no ar a TV CRUJ, siglapara Comitê Revolucionário Ultrajovem, que se autoproclama porta-voz dos direitos do público infantil e tem como lema a afirmativa “soujovem, mereço respeito”. Fazendo uso de esquete, atores infanto-juvenisreivindicam direitos tais como ter sua opinião ouvida pelos pais oureceber agradecimento de um adulto após ter realizado uma tarefa ouum favor. De acordo com Regina Soler, o Disney Club não tem intençãode ser educacional, mas pretende educar informalmente através desituações vividas pelos personagens e de assuntos levantados pelaspróprias crianças que assistem ao programa. Segundo a diretora, aeducação informal parece estar efetivamente acontecendo, pois as cartase os e-mails recebidos pela produção trazem manifestações de crianças eadolescentes nas quais eles revelam que têm sido mais ouvidos pelosadultos, embora nem sempre os acordos firmados tenham se concretizado.

Parecendo discordar de Soler e concordar com Carmona, Niskier(2002) afirma que estamos vivendo um tempo em que barreiras detoda sorte vêm sendo eliminadas constantemente e, nesse sentido, amídia tem ocupado lugar de destaque, principalmente no que se referea dois aspectos: o aumento do número de navegantes na internet2 e asmudanças no universo da mídia, como, por exemplo, a oferta deinúmeros cursos virtuais. Para esse autor, no entanto, também estamosvivendo o tempo da prevalência da televisão, a qual tem se tornado,cada vez mais, um veículo barato para a estética da superficialidade. Omodo peculiar com que a televisão capta o social não tem levado emconta o que ela pode fazer pela educação, assim como a acelerada culturade imagens adotada pela mídia televisiva não pode servir de pretextopara que não sejam abordadas questões éticas, como, por exemplo,aquelas que expõem o poder e a força usados contra o ser humano e anatureza ou as que contrapõem o humano e o desumano, hojeaparentemente tão próximos.

2 O Brasil tem atualmente 4 milhões de usuários, que equivalem a 2,5% da população nacional.Desses usuários, 82% pertencem às classes sociais A e B e 53% terminaram o Ensino Médio.(Fonte: PNAD-98/IBGE).

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Cabe questionar se a mídia televisiva não tem levado em conta“questões éticas” e que questões éticas a mídia tem procurado discutir.

Tendo como tema “Mídia de todos, mídia para todos”, a IVCúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, sediada peloRio de Janeiro em abril de 2004, ampliou o debate e a troca de idéiassobre mídia de qualidade. O evento, criado na Austrália em 1995 ecoordenado mundialmente pela Summit on Media for Children Foundation,no Brasil foi organizado pela MultiRio, empresa municipal demultimeios, e pelo Mediativa, Centro Brasileiro de Mídia para Criançase Adolescentes.

De acordo com Regina de Assis, presidente da MultiRio, alémde discutir assuntos como consumismo, violência e sexualidade, temasapontados pelos jovens nas conferências anteriores como aqueles quedeveriam ser abordados na televisão e que mereciam um debate maisamplo, um dos objetivos da Cúpula é propor soluções para fazer umamídia de qualidade. Para Assis, a mídia televisiva está esgotando asfórmulas de banalização da mediocridade, sendo necessário estimulara produção de programas em que não prevaleça a lógica da audiência eencorajar as empresas de mídia – rádio, televisão, cinema e internet – aproduzirem programação de qualidade, como, por exemplo, investirem programas que explorem a cultura local. A presidente da MultiRiotambém considera que uma atenção maior deve ser dada para o queestá disponível hoje na internet, universo virtual ainda percebido comoinexplorado e que a cada dia conquista um número expressivo decrianças e adolescentes.

No tocante às considerações de Ramal (2002) sobre a utilizaçãoda mídia por um número cada vez maior de pessoas, a autora pareceabraçar a opinião de Niskier no que se refere aos avanços do universovirtual e as de Assis acerca da exploração desse universo, emboralance questionamentos relacionados à possibilidade de a tecnologiavir a tomar o lugar do homem ao afirmar que as relações interpessoaisestão mudando e o elemento técnico está constituindo a novaidentidade humana.

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Ao ponderar, em seguida, que os ambientes tecnológicos têmpropiciado a elaboração de projetos multidisciplinares e a realização detrabalhos complementares, que integram e associam competências, alémde motivar diálogos e trocas de informação, a autora afirma que talpossibilidade se faz inexistente, pois a tecnologia tem permitido que osindivíduos revejam paradigmas e conceitos e, assim, tornem-se maishumanos. Ramal (2002) identifica o zapping3 e a hipertextualidade comoduas poderosas ferramentas que promovem a aprendizagem e produzemconhecimentos e, dessa maneira, ajudam o indivíduo a lidar com váriassituações em tempos diversos. Neste novo tempo, portanto, novosdesafios éticos e novas questões sociais devem ser colocadas, uma vezque o horizonte local é ampliado para o global, mudando-se o conceitode comunidade e criando-se uma espécie de interdependência social,deixando-se para trás as relações bipolares4 das sociedades industriais.

Considerando que a mídia exerça sua função formadora, seráque melhorar a qualidade da televisão poderá garantir telespectadoresmais e melhores formados? Será que formar indivíduos conscientes deseus direitos civis, políticos e sociais é um desafio para a mídia, sobretudoa mídia televisiva, ferramenta significativa das sociedades de informação?Que novos desafios éticos e questões sociais serão colocados pelasociedade da informação?

Lima (2003) registra que a Cúpula Mundial sobre a Sociedade daInformação, idealizada em 2001 e atualmente sob a responsabilidadeda União Internacional de Telecomunicações (UIT), preparou asconferências que foram realizadas em Genebra em 2003 e que tiveramcomo tema a construção da Sociedade da Informação. Essa expressão,segundo o autor,

[...] refere-se a um modo de desenvolvimento social e econômicoem que a aquisição, armazenamento, processamento,valorização, transmissão, distribuição e disseminação de

3 Troca rápida de um canal televisivo para outro com o uso de controle remoto.4 Ramal (2002) considera relação bipolar aquela em que poucos possuem o saber, o capital e opoder.

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informação conduza à criação de conhecimento e à satisfaçãodas necessidades dos cidadãos e das empresas, desempenhandoum papel central na atividade econômica, na criação de riqueza,na definição da qualidade de vida dos cidadãos e das suaspráticas culturais (LIMA, 2003, p. 7).

A Sociedade da Informação é percebida, portanto, como umasociedade que valoriza o fator humano no processo produtivo, aooferecer condições para que todos os cidadãos possam dela participar,superar as dificuldades iniciais causadas pelo embate travado com asnovas tecnologias da informação e se beneficiar dos conhecimentosque elas oferecem.

Ainda acerca do texto de Ramal (2002), a autora parece visualizara concretização dessa nova sociedade da informação ao acreditar nademocratização do acesso e da utilização das tecnologias de informaçãoe ao propor que todos se tornem protagonistas da navegação no mundocibernético, construindo laços entre conhecimentos e pessoas. Quantoà internet, Ramal considera que a interatividade possibilita alternativashumanizadoras para as relações interpessoais e afirma que novas ecomplexas formas de relacionamento e amizades começam a surgiratravés da interação que se estabelece entre pessoas que não se conhecempessoalmente e com quem é possível dialogar, trocar idéias esentimentos, compartilhando impressões e histórias de vida. A autoraentende que é por meio desses laços que cada um se torna maisautônomo e capaz de ser mais com o outro, o que, conseqüentemente,pode tornar o indivíduo mais seguro e feliz.

Entretanto, devemos refletir se a circulação de informaçãopromove o diálogo entre as pessoas e se o mundo virtual promove ainteração entre pessoas em processos flexíveis e dinâmicos.

Em entrevista cedida a Tognoni (2001), o filósofo Mário Cortellaparece discordar da opinião de Ramal, ao focalizar os resultados deuma pesquisa patrocinada pela MTV em 2001 e realizada com 1.890pessoas, de idade entre doze e trinta anos, que revelou costumes deuma geração que freqüentemente utiliza a mídia em busca de

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informação, através de televisão, rádio, jornais, revistas, e decomunicação e liberdade de expressão, através da internet.5 Para Cortella,embora a pesquisa indique que os jovens parecem estar buscando maisinformações, o que ela deixa também transparecer é que a tecnologiafragmentou o cotidiano com tanta rapidez que os jovens acabamsubstituindo a família e o diálogo pela tecnologia, o que pode serratificado pela alta incidência de manifestações relacionadas às sensaçõesde falta de tempo e solidão. Ainda de acordo com Cortella, a buscadesenfreada por informação, a ditadura da velocidade e o uso irrefreáveldo zapping impedem o entendimento, a reflexão e a fixação dasinformações, as quais não significam, necessariamente, conhecimento.

Concordando com Cortella no que diz respeito à disponibilidadee à velocidade das informações, Silva (2003) enfatiza que o acúmulo deinformações realmente não significa conhecimento e considera que amaioria das pessoas não tem e nem terá conhecimentos capazes depossibilitar a emissão de julgamentos sobre diversos temas que circulamna sociedade, sobretudo no âmbito das novas descobertas científicas edo desenvolvimento tecnológico. Para justificar essa afirmação, o autortraz à cena o debate mundial sobre os riscos do uso dos transgênicos.Ele informa que as plantas transgênicas vêm sendo cultivadas em largaescala há cinco anos em muitos países e consumidas por mais de doisbilhões de pessoas em todo o mundo. De acordo com Silva (2003),depois de todo esse tempo de consumo, não há evidências de prejuízosà saúde e ao meio ambiente, o que nos leva a questionar a atitude deproibir o uso de uma nova tecnologia com base apenas em suposições.O autor pondera que não há nenhum remédio que tenha risco zeropara as pessoas e nenhuma proibição se baseia na hipótese de que umremédio pode vir a desenvolver efeitos desconhecidos. Mais ainda,evidencia que o efeito estufa tem provocado alterações climáticas eproduzido inúmeras vítimas, obrigando 25 milhões de pessoas amigrarem. Silva (2003) conclui que a oposição aos transgênicos não

5 Entre os pesquisados, 99% assistem à televisão, 98% ouvem rádio, 85% lêem revistas, 80%lêem jornais, 80% vão ao cinema e 34% acessam a internet.

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tem lógica, revelando que diferentes Organizações Não-Governamentais ambientalistas, nacionais ou internacionais, dãoprioridade ao combate aos transgênicos e não às causas do efeito estufa,o que poderia ser uma tática para desviar a atenção das catástrofesclimáticas provocadas pela emissão de gás carbônico pelos países ricos.O autor conclui que aquilo que é veiculado pela mídia gera muitasdúvidas, cria confusão e prejudica a adoção de uma tecnologia quepode ser útil à humanidade.

Ética, Escola e Mídia

As sociedades mudam ao longo do tempo e, conforme explica aatual presidente do Conselho Diretor do Fundo Global para a Mulher,Jaqueline Pitanguy (2001, p. 7),

[...] o reconhecimento social de que determinados costumes,leis, atitudes e comportamentos são violentos é histórico. Asidéias de ordem e desordem, de crime e castigo são conceitosdinâmicos que se modificam ao longo do tempo, porqueexpressam processos sociais e não verdades absolutas. Existesem dúvida, em cada sociedade, uma definição dominante doque seria um comportamento criminoso. Entretanto, isto nãosignifica que a definição seja unânime. De fato, conceitosdiversos de violência podem conviver em uma mesma sociedade,lutando para se imporem de forma hegemônica, para seremtraduzidos em leis e legitimados em comportamentos.

Concordando com o posicionamento de Pitanguy no que serefere à definição dominante do que seria um comportamento criminosoe citando Jurandir Freire, Di Franco (2002a, p. 7) relembra uma frasedo psicanalista, que afirmava existir “um elo indissolúvel entre o políticoque lesa o erário, o cidadão que ultrapassa o farol vermelho e o assaltanteque mata, pois todos deixam de levar em conta a lei” para explicar quea violência está em toda parte. O terrorismo urbano, entendido comoatos de vandalismo e procedimentos criminosos que ganham novasdimensões a cada dia, deixa a sociedade ora aterrorizada, internalizando

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medos, ocupando suas mentes com o terror e ativando seu imaginário,ora fascinada e perplexa com os atos espetaculares e ousados daquelesque os praticam (KEHL, 2002; BOFF, 2003; VELHO, 2003).

O fascínio que a violência desperta nos jovens americanos temdado origem a inúmeras pesquisas nos Estados Unidos, principalmentedepois da tragédia na Columbine High School, em Littleton, Colorado, em1999.6 Em recente relatório publicado pelo Departamento de Saúdedaquele país, os resultados encontrados revelaram que algumas medidaspopulares, tais como processar jovens como adultos e fazer visitas aprisões como forma de chocar adolescentes, podem estimular atendência de alguns jovens para se envolver com o crime. O relatórioevidencia ainda que os ataques geralmente são planejados, seus autorestêm raiva da escola e acreditam que são perseguidos.

Apelidos maldosos e tornar alvo de gozação dos colegas devidoà aparência ou modo de falar podem gerar atitudes violentas, que, porsua vez, podem gerar hostilidade sistemática. Os comportamentosviolentos podem ter diversas origens e estar relacionados principalmenteà agressão, às pressões sofridas, à intimidação, à falta de entrosamentoe ao fracasso escolar, surgindo com maior incidência na adolescência(MESTEL, 2001). Nos Estados Unidos, as escolas oferecem uma políticaclara de providências contra o bullying, palavra que pode ser traduzidacomo a atitude de intimidar ou atormentar um colega, com atividadesque têm o objetivo de reforçar a importância da socialização e dorespeito mútuo. Essa iniciativa parece começar a surtir efeito, pois muitospais têm procurado orientação para lidar com filhos que evidenciamcomportamentos que podem ter sido causados pelo bullying, como quedade rendimento escolar ou resistência em ir à aula (COLAVITTI, 2001a).

No Brasil, o fascínio que a violência exerce nos jovens pode serexemplificado pelo resultado obtido em recente pesquisa realizada porum professor de uma escola pública estadual da Tijuca, bairro de classe

6 Eric Harris, 18 anos, e Dylan Klebold, 17, trancados na biblioteca da escola, fuzilaram, um aum, 12 colegas e um professor e feriram várias outras pessoas ao explodirem quatro bombas,suicidando-se em seguida.

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média localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.Abandonada em velhas caixas, uma enquete feita com alunos de 14anos, em 1963, que procurava conhecer qual personagem os meninosgostariam de representar em um filme de bangue-bangue revelou que92% dos alunos queriam ser o mocinho. Ao reaplicar a pergunta entreseus alunos, 40 anos depois, 90% queriam ser os bandidos (GÓIS, 2003).A mudança na escolha do modelo de identificação poderia ser explicadapela comoção gerada pelos bandidos por praticarem atos espetaculares,imprevistos e minuciosamente preparados, que provocam admiraçãopela audácia e sagacidade com que são executados (BOFF, 2003;CEZIMBRA, 2003a).

A violência adentra nas escolas, consideradas através dos temposcomo um lugar seguro para crianças e jovens, local do saber, da culturae da educação. O resultado obtido por meio da reaplicação da talpesquisa, o aluno que se corta com estilete em assembléia porque nãoconseguiu permissão para falar, o pai da aluna universitária que agrideo professor com socos, após obrigá-lo a mudar a nota da filha, aprofessora que obriga a aluna de dez anos a escrever cem vezes nocaderno “eu sou mais besta que a Jeane” e o estudante que esfaqueia ocolega porque se desentenderam numa reunião (KORMANN, 2001;ALBERTO JR, 2002; BALBI, 2002; DUTRA, 2002) são exemplos de atosconsiderados violentos e que aconteceram em instituições brasileirasde ensino públicas e particulares.

Parecendo concordar com Soares, que atribui o quadro atual deviolência a um somatório de diferentes fatores socioeconômicos, Zagury(1999) identifica um conjunto de fatores individuais e sociais queoportunizam a eclosão de acontecimentos como aqueles apontadosanteriormente.

Entre os fatores sociais, a psicóloga aponta o consumismoexacerbado, a competitividade, o individualismo, a má distribuição derenda, a impunidade, a corrupção, o fácil acesso às armas, o crescentedesemprego, o problema das drogas e a crise ética na atualidade comoaqueles que mais contribuem para despertar comportamentos violentos.

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Entre os fatores individuais, destaca os diferentes níveis de agressividade,a percepção positiva ou negativa dos fenômenos que ocorrem no mundocircundante e a auto-estima, que, associados aos fatores sociais, podemfornecer dados para compreender por que determinado sujeito, emuma situação qualquer, desencadeia barbárie.

Inserindo as instituições de ensino numa cultura de violênciaque incentiva o preconceito, privilegia os bens materiais em detrimentodos valores éticos e cultiva a impunidade, Zagury (1999) pondera queculpar a escola, a metodologia de ensino, os professores mal preparadose os currículos anacrônicos pelo aumento da agressividade nos alunosé buscar explicação de maneira simplista para uma situação complexa,que envolve a perda de valores como solidariedade, justiça, honestidade,honra, cooperação e respeito mútuo.

Como se vê, regras e padrões comportamentais são evocados atodo momento para tentar resgatar valores e atitudes consideradascivilizadas, aquelas determinadas e aceitas por determinado grupo social.

Educadores modernos, pais liberais e escolas alternativas quenasceram sob o princípio de “quanto menos regras melhor” têmcapitulado diante de salas de aula vazias e de outros “abusos” dos alunose retornado ao endurecimento das normas e à aplicação de punições.Escolas de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, por exemplo,voltaram a ter lista de presença obrigatória nas classes, retiraram o álcooldas festas realizadas em suas dependências e exigiram que os professoresimpusessem respeito e tivessem sua autoridade reconhecida pelosalunos, deixando de ir a bares ou participar de festas promovidas pelosdiscentes (VICÁRIA, 2002). Conforme explica Yves de La Taille, doInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, os colégios liberais,criados sob a inspiração da Escola Nova, que defendia um ensino maisprazeroso, abolia a memorização, abominava o autoritarismo eestimulava o estudante a questionar o conhecimento que recebia,deixaram de levar em conta que a relação professor-aluno énecessariamente hierárquica e que termos como disciplina e autoridadenão podem estar de fora dos regimentos escolares (OYAMA, 1999).

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Portanto, a escola não pode abrir mão de sua responsabilidade de educar,formar e manter regras de civilidade e convivência democrática e osprofessores de fornecer modelos de atitudes sérias, dignas e éticas(ZAGURY, 2002).

A atual realidade enfrentada pelos indivíduos aliada à indisciplinaescolar, considerada um dos maiores entraves ao trabalho pedagógico,cria expectativas relacionadas à ampliação da interferência das escolasna formação de valores, hábitos e atitudes dos alunos que vão além desuas possibilidades, e demanda até mesmo a implementação de “aulasde cidadania”, com a intenção de formar as futuras gerações.

No entanto, parece que as aulas de cidadania também não estãosurtindo os efeitos esperados, pois, conforme entende Sayão (2002a),para praticar uma educação democrática não basta apenas informar oque é proibido ou não, mas é preciso também explicitar, com clareza,os limites de tolerância na convivência com os alunos para que o sentidodas regras possa ser entendido. As transgressões, que fazem parte dojogo democrático, devem acontecer, sendo necessário desenvolvermecanismos que as regulem até que os alunos possam desenvolverseus próprios mecanismos reguladores. E para que os alunos possamarcar com suas responsabilidades, pondera a pedagoga, os professoresprecisam agir com coerência, estar disponíveis para refletir sobre osassuntos que são trazidos pelos alunos a qualquer momento e “não terreceio de estabelecer parâmetros com firmeza e aplicar com justiça esem moralismos, as sanções adequadas que se fizerem necessárias”(SAYÃO, 2002a, p. 59).

Ao questionar sobre incivilidade, Castro (1999a, 1999b) apresentaargumentos similares aos de Sayão enfatizando que cada sociedade éconstruída para suportar o grau de incivilidade de seus cidadãos e quenão podemos evitar discussões sobre moral e ética, sobre quem decideo que é certo ou errado e sobre autoridade e autoritarismo. Referindo-se a Robert Coles, psicanalista da Harvard Medical School e que publicouum livro intitulado The moral intelligence of children, Castro evidencia queo julgamento moral está sempre presente na cabeça dos jovens e que

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seus comportamentos anti-sociais resultam de conflitos entrecomportamentos observados no meio que os cerca. O economistaconclui que não é através de aulas de “moral e cívica”, de “vida” ou de“civismo” que os alunos aprenderão justiça, tolerância, eqüidade egenerosidade, mas sim pelo que a escola pratica. Portanto, é função daescola discutir situações conflituosas que requerem um julgamentomoral, refletir sobre suas implicações e cultivar a preocupação ética emtodas as disciplinas.

Concordando com Sayão e Castro, Cardoso (2002) enfatiza aindaque a escola precisa se repensar principalmente no que se refere àformação de valores e atitudes, pois sua tarefa é lidar com o conteúdopara, por seu intermédio, contribuir para a formação do indivíduo,conforme a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais.7 Em suaopinião,

[...] é na realização pedagógica cotidiana, com pequenos gestos,no dia a dia escolar, que a formação global do aluno se dá. [...]É no fazer cotidiano da escola que se forma o cidadão. Nãosão coisas separadas. Os instrumentos essenciais deaprendizagem (leitura, escrita, expressão oral, cálculo e resoluçãode problemas) e os conteúdos disciplinares são tão importantesquanto a aprendizagem de atitudes e valores. [...] O que seexperimenta na vida escolar será sempre referência importantepara o futuro exercício autônomo da cidadania. [...] O que aescola pode, justamente, é dar oportunidade igual aos cidadãos,distribuindo eqüitativamente a informação, garantindo quetodos os alunos aprendam. O desafio que está colocado é o depromover situações de aprendizagem que permitam a inclusãode cada um dos alunos da classe, considerando seus diferentesrepertórios e capacidades (CARDOSO, 2002, p. 7).

7 Os Parâmetros Curriculares Nacionais devem servir de auxílio para ajudar os professores noseu esforço diário de fazer com que as crianças e adolescentes dominem conhecimentos quenecessitam para se desenvolverem como cidadãos, incluindo tanto os domínios do sabertradicionalmente presentes no trabalho escolar quanto preocupações contemporâneas queincluem meio ambiente, saúde, sexualidade e questões éticas relativas à igualdade de direitos,dignidade do ser humano e solidariedade (BRASIL, 1997).

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Os argumentos de Sayão, Castro e sobretudo de Cardoso a favorde um trabalho pedagógico inovador parecem contemplar os ideaisdemocráticos de educação para todos e de garantia de aprendizagensindispensáveis à vida contemporânea, defendidos tanto pelaConferência de Jomtien8 quanto pelo Marco de Ação de Dacar,9 queevidenciam o compromisso dos países-membros da Organização dasNações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) comuma educação libertadora das cruéis condições de existência e abremum novo horizonte pedagógico ao focalizar a eqüidade, a qualidade eas competências essenciais à vida como aspectos preponderantes daspolíticas educacionais.

Entendendo que o Brasil entrou em sintonia com a meta deeducação de qualidade para todos, Jorge Werthein, representante daUnesco no Brasil, considera que as escolas brasileiras podem vir a ser“uma instância da criatividade e do desenvolvimento humano, onde oaprender a ser, a fazer, a conhecer e a viver juntos se tornem lugarcomum no cotidiano da escola” (WERTHEIN, 2002, p. 7).

Parecendo colocar em prática os ideais de universalização deacesso, qualidade e democratização educacional e apresentandocontrastes visíveis com as chamadas escolas convencionais, a EscolaLumiar, localizada em São Paulo, vem desenvolvendo uma inéditaexperiência pedagógica. Tornando a sala de aula um “caldeirão social”,pois metade das vagas é ocupada por alunos carentes e que não pagammensalidade, a escola tem a intenção de simular um ambiente dedesigualdade social e reproduzir variadas tensões, tendo nas “brigas” enas discussões aliados valiosos para o desenvolvimento dos alunos(VICÁRIA, 2002). Apontada como escola de pedagogia libertária, a Lumiar

8 Conferência realizada na Tailândia, no início dos anos 90, onde foi aprovada a DeclaraçãoMundial de Educação para Todos.9 Em abril de 2002, foi realizada a Semana de Educação para Todos, em Dacar, momento emque foi elaborado o Marco de Dacar, o qual reafirma que a educação é “um direito humanofundamental e constitui a chave para o desenvolvimento sustentável, assim como para assegurara paz e a estabilidade dentro de cada país e entre eles e, portanto, meio indispensável paraalcançar a participação efetiva nas sociedades e economias do século XXI afetadas pela rápidaglobalização”. Disponível em: <http://www.unesco com.br>. Acesso em: 26 mar. 2002, 11:33:21.

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investe em aulas totalmente práticas, apoiadas em exemplos reaissugeridos pelos alunos, em vez de dividir os anos em séries e adotarum currículo fixo. Atendendo inicialmente crianças entre 4 e 6 anos epretendendo estender o atendimento a jovens até 18 anos, a direçãoacredita que formará indivíduos mais felizes, porque incentivará osalunos a terem voz na reunião de professores, autonomia para decidirsobre gastos, definir regras, aprendendo a respeitá-las, e decidir sobreo rumo de seu aprendizado.

No entanto, o ensaio de democracia e liberdade que vem sendodesenvolvido na Escola Lumiar tem despertado diversos temores empessoas que acreditam que resolver problemas do cotidiano escolar na“base da conversa”, da interação, da participação e do exercício daautonomia não surte os efeitos desejados no comportamento decrianças, adolescentes e jovens. Para muitos pais, responsáveis eprofessores, a ocorrência de indisciplina nas escolas tem aumentadomuito nos últimos anos e, por esse motivo, defendem a imposição deregras rigorosas e punições severas que, incluídas nos códigos escolaresde conduta, deixariam claro para os estudantes o que eles podem ounão podem fazer (VICÁRIA, 2002).

Para muitos educadores, como a psicóloga Maria Clara Nassif eo professor Alípio Casali, os códigos de conduta das escolas, inseridosem seus regulamentos, são um instrumento fundamental norelacionamento de alunos, pais e escola, pois crianças e adolescentesestão sempre testando os limites dos adultos, sendo saudável eestimulante o recebimento e o cumprimento de ordens para que elespossam organizar informações de forma lógica. No entanto, a maioriados códigos de conduta das escolas, colocados no meio de carnês demensalidades ou nas listas de material, ainda passam ao largo de temasconsiderados polêmicos. Essa afirmação pode ser corroborada pelosresultados encontrados em recente pesquisa realizada pelo Jornal OGlobo, na qual quinze regulamentos de colégios do Rio de Janeiro e deNiterói foram analisados (BERTA, 2003). Na maioria dos regulamentosforam encontradas proibições como mascar chiclete em quaisquer

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dependências da escola, usar telefone celular em sala de aula, usar bonés,chinelos, minissaias ou objetos de valor e deixados de fora assuntoscomo namoro, uso de drogas ou porte de armas.

Os “maus modos”, conforme relata Colavitti (2001b), foramcategorizados como atitudes não-civilizadas por Doblinski e Ruiz (2001)e também não se encontram nos regulamentos, mas começam a causarcerta preocupação, o que tem levado escolas particulares de São Pauloe Porto Alegre a desenvolverem projetos sobre “bons modos” comcrianças da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental. Tais projetos enfatizamnoções de relacionamento, socialização e hábitos de higiene ao abordarassuntos como o manuseio correto de talheres, como se comportar emfestas de amigos, respeitar filas e não fazer barulho em lugares queexigem silêncio. No entanto, a inserção de projetos como esses, naopinião das psicólogas Lídia Aratangy e Ceres Alves de Araújo, daconsultora Célia Ribeiro, da educadora Tânia Zagury e do promotor daJustiça Paulo Rangel, apenas revela que os pais estão transferindo paraa escola a responsabilidade de educar e que ambos são culpados pelacrise de valores pela qual a educação está passando: os pais porquetransferem para a escola a formação moral de seus filhos e a escolaporque toma para si tal tarefa e assim acaba por negligenciar a construçãode conhecimentos necessários à formação cultural e profissional dosalunos, que é sua função.

Lídia Aratangy afirma que houve uma deturpação das teoriasmodernas de educação e que os pais foram os primeiros a abrir mãodos limites a serem impostos aos filhos (OYAMA, 1999). Ceres Alves deAraújo considera que a ausência de limites e excesso de mimos podemfazer com que a criança fique chata, agressiva e não siga as regras básicasde convivência em grupo (COLAVITTI, 2001a). Célia Ribeiro explica que,para aprender a se comportar de maneira adequada, a criança precisaser estimulada pelos pais, que devem dar o exemplo em casa e mostrara utilidade de se praticar bons modos (COLAVITTI, 2001b). Tânia Zaguryapud (LUNA, 1999) alerta que os jovens estão sendo mal orientadospelos pais e não têm consciência do direito dos outros; e Paulo Rangel

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argumenta que está havendo uma inversão de valores, uma proliferaçãode maus hábitos e uma deturpação da formação moral e que os paisperderam o pulso com seus filhos, não havendo mais respeito entreeles. Ao trazer para o campo de discussão questionamentos sobre aquem cabe o dever de educar, Rangel (2002) reforça seus argumentosao evidenciar que quem educa são os pais e não a escola, pois a formaçãomoral das crianças deve se iniciar em casa, com a família, e os pais quenão dão atenção, carinho, amor e companhia a seus filhos não podemtransferir para a escola seu próprio fracasso.

Amor e carinho, de acordo com a interpretação de Milman (2002),psicóloga que atua no Projeto Reconstruindo a Cidadania no Morrodos Macacos no Rio de Janeiro, são padrões recentemente estabelecidospara a educação de crianças e de adolescentes pelas mais diversas razões,que incluem questões criadas pela ordem econômica mundial e o espaçoocupado pela Psicologia na cultura ocidental. A psicóloga entende quea relação mistificadora que se estabelece entre autoridade educativa ecriança calcada na afetividade e na sedução ajuda a confundir cidadaniacom provas de amor e carinho quando se relacionam deveres e direitoscom sentimentos e não a compromissos éticos com a vida em sociedade,inculcando a falsa idéia de que a sociedade é regida principalmente porsentimentos e não por leis e funções sociais.

Zagury apud (LUNA, 1999), parecendo concordar com Milman,considera que padrões de amor e carinho elevados a altos patamares ealiados a orientações controvertidas, medo de errar, sentimento de culpa,perda do amor dos filhos e à superproteção dos pais têm contribuídopara que uma nova geração de jovens aja como bem entende, preocupe-se apenas com a própria felicidade e não elabore projetos de vida. Aprofessora pondera que muitos jovens de hoje têm pais que fizeramparte de uma geração que efetivou conquistas, provocou mudanças10 e

10 A “geração rebelde” dos anos 60 e 70 – “Foi nos anos 60 que nasceu um novo modo de viver,sonhar e morrer, no qual o que importava era a revolução em beneficio do homem, em nomeda liberdade. O novo homem devia estar de acordo com seus instintos. Buscava-se libertar ocorpo e a alma de conceitos artificialmente instituídos pela indústria cultural e pela comunicaçãode massa, e entrar em sintonia com seus desejos”. Disponível em: <http://geocities.yahoo.com.br/mundohippie/anos60.htm>. Acesso em: 22 mar. 2003, 17:28:30.

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quer proporcionar aos filhos a independência e a liberdade conquistadas,levando-os a ter dificuldade de estabelecer limites, atitude que, somadaàquelas apontadas anteriormente, contribui para distorcer o conceitode liberdade.11 Essa distorção poderia explicar também a dificuldadeque os pais têm em compreender que podem ter autoridade sem seremautoritários e que devem orientar os filhos com padrões decomportamento que lhes sirvam de referência.

No entanto, conforme continua analisando Zagury (2000, 2001,2002), os pais parecem não estar se percebendo como modelocomportamental para seus filhos, uma vez que difíceis dilemas, novosvalores e costumes geram insegurança e imobilidade e tornam difícileste ou aquele posicionamento diante de situações inusitadas. Mais ainda,como honestidade, integridade, solidariedade e justiça são valores queestão cada vez mais “fora de moda”, atitudes como queimar ou espancarum indivíduo por pura diversão, destruir mobiliário da escola porquehaveria aula no sábado, falsificar documentos para dirigir um carro ouentrar na boate se tornaram tão corriqueiras que passaram a serpercebidas como “normais”. Essa percepção de normalidade pode serexplicada, de acordo com Zagury (2001), pela desacreditação, isto é, ospais não acreditam no futuro da sociedade, afrouxam seus conceitos,perdem a confiança nos valores que guiavam suas ações e passam aduvidar da força de seus princípios. Assim, se os pais não acreditam,seus filhos também não acreditarão e como os jovens precisam contarcom a orientação de seus pais – que têm papel primordial na suaformação moral – para conseguir enfrentar dilemas e fazer escolhas,poderão ficar expostos à falta de esperança, “que pode levar à depressão,ao individualismo, ao consumismo exacerbado, ao suicídio, àmarginalidade e às drogas” (ZAGURY, 2001, p. 7) e proporcionarconvivência com pessoas que não vivem de acordo com modelosinspirados na retidão, na cooperação e na honra.

11 O conceito de liberdade pode ser colocado com diversos sentidos. Aqui está sendo entendidocomo capacidade de decisão do sujeito. “A decisão livre é um fazer criador, pois o homem temque decidir constantemente o seu agir e o seu modo de ser. Portanto, o homem se torna livre nadecisão” (BIRCK, 1995, p. 19).

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Tanto Tânia Zagury quanto Lídia Aratangy, Ceres Alves deAraújo, Célia Ribeiro e Paulo Rangel afirmam que a sociedade está emplena crise ética, pois mensagens antiéticas estão em todos os lugares,gerando comportamentos inadequados, influenciando atos indignos,invertendo princípios norteadores de comportamentos, induzindo ainfração de regras que são mantidas de geração para geração, cabendoà família resgatar a ética e ensinar integridade para que seus filhos possamdesenvolver a maturidade, a responsabilidade e o respeito ao outro,garantindo que valores aprendidos nunca deixem de ser respeitados.

De acordo com o julgamento de Maia (2002), os valores dafamília, baseados na confiança, segurança e previsão, foram afetadospela lógica da inovação e da mudança, provocando uma revoluçãofamiliar e fazendo com que as relações familiares mudassem bastante.Parecendo concordar com essa afirmação, a diretora de conteúdo darevista Crescer, Rosely Sayão (2002b), enfatiza que a famíliacontemporânea deixou para trás o modelo formado por pai provedor,mãe dona de casa e filhos obedientes, uma vez que novos papéis sociaisdesempenhados por homens e mulheres e costumes recentementeadquiridos promoveram a reestruturação familiar, fazendo surgir famíliaschefiadas apenas por mulheres, recompostas depois do divórcio compai, mãe e meios-irmãos, pais que assumiram o lugar de mães e casaishomossexuais com filhos biológicos, adotados ou de proveta(MODERNELL, 1998; VELLOSO; CRIVELLARO, 1998, CHIARI, 2000;BUCHALLA, 2001).

Referindo-se ao recente livro publicado por Roudinesco (2003),Cezimbra (2003) ratifica as impressões de Maia e Sayão ao registrarque o modelo patriarcal monogâmico analisado por Freud sobreviveudurante boa parte do século passado, mas foi desconstruído, e que asfamílias contemporâneas estão estruturadas sobre novas bases,proporcionadas, entre outros fatores, pela entrada maciça das mulheresno mercado de trabalho, pela perda de autoridade patriarcal e pelasrelações familiares mais democráticas.

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Para explicar as transformações, ocorridas ao longo das últimasdécadas, tanto da família quanto das idéias a respeito da educação dosfilhos, Granato (1999) inicia suas considerações focalizando a geraçãoque viveu até a metade do século XX, a qual percebia a criança comoum selvagem a ser civilizado e utilizava uma mistura de desafios ecastigos com ausência de afetos para educá-la.

A geração hippie dos anos 60 e 70 difundiu o amor como a únicafórmula possível para que uma criança pudesse crescer feliz eemocionalmente estável e para isso era necessário deixá-la exercitarsuas próprias emoções, limites e potencialidades. Nessa época, aliberdade tomou lugar das surras e palmatórias e as escolas alternativasaboliram freqüências, notas, provas e regras de conduta, pois esse era ocaminho para se formarem adultos criativos, curiosos, críticos, maishabilitados a tomar decisões e mais tolerantes com as idéias alheias.

A geração dos anos 80 passou a pensar e a questionar aimportância da família, dos valores e a quebra de modelos familiaresimplantados nos últimos anos, tentando encontrar um novo caminhopara educar os filhos.

A geração dos anos 90 e que atravessou o início do novo séculotenta buscar o equilíbrio entre a autoridade opressiva e a liberdadeexcessiva, pretendendo ser parcimoniosa nas repressões e negociarlimites de ambos os lados, acreditando ser através das pequenasnegociações diárias que as crianças e adolescentes constroem valoresmorais. No entanto, conforme aponta a psicanalista Ruth Goldemberg,a combinação liberdade e criatividade com controle e estabelecimentode regras é difícil de ser estabelecida, embora seja essencial para odesenvolvimento humano, cabendo à família discutir limites e puniçõesque preservem o vínculo afetivo e o respeito mútuo, pois é no cotidianofamiliar que crianças e adolescentes desenvolvem seus valores e suasopiniões (CEZIMBRA, 2001b).

Ainda conforme as explicações de Robert Coles relacionadas àconstrução da inteligência moral das crianças, agora apresentadas porCezimbra (2001a), a integridade ética do adulto começa a ser construída

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na família, sendo os pais os “mestres da ética” e as referências moraisna formação dos filhos e estes uma testemunha atenta da moralidadedos adultos ou de sua ausência, pois é neles que as crianças e adolescentesbuscam sugestões de comportamentos. Assim, conforme registra Sayão(2002b), não importa a estrutura familiar e sim a maneira como osadultos educam seus filhos.

De acordo com as pesquisas desenvolvidas por Roudinesco(2003) sobre a família do futuro, constituir família estável ainda é umdesejo expressado por homens, mulheres e crianças, independentementeda idade, orientação sexual e condição social, embora as famílias sejamreinventadas no cotidiano e as expectativas relacionadas à desordemfamiliar e a perdas de vínculos afetivos proporcionadas pelo mundoglobalizado sejam pessimistas, uma vez que a globalização provoca,sobretudo, um individualismo hedonista.

No entanto, o processo da globalização não é recente e temprovocado severas críticas sobre as relações sociais que desencadeou eos valores morais que colocou em crise. Salles (2001) afirma, porexemplo, que o conceito de globalização surgiu nas décadas de setentae oitenta, precedido pela fase de internacionalização, caracterizada pelacompetitividade, atingiu diversas áreas, tais como a da comunicação,com inovações que encurtaram distâncias; a da tecnologia, com odesenvolvimento de métodos mais produtivos; e a da economia, com aintrodução de modificações no sistema financeiro, e afetousubstancialmente o comportamento humano, ao deixar de lado aimportância de critérios morais e o controle de princípios morais. Salles(2002b, 2003) acredita que não está havendo mais certeza absoluta nasquestões morais, o que faz emergir uma profunda e crescentedecomposição moral que está destruindo o caráter dos indivíduos,anestesiando sua consciência moral e gerando comportamentos eatitudes incorretas e, para que esse quadro possa ser alterado, seránecessário incluir valores éticos nos rumos da humanidade para queum mundo mais unido e solidário possa surgir, promovendo a paz e aharmonia entre os povos.

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Também identificando o nascimento do mundo globalizado como processo da internacionalização, Oliveira (2001a) considera que aglobalização foi delineada nos primeiros anos das Nações Unidas12 eos anos noventa se debruçaram sobre temas não apenas de interesseglobal, mas também diretamente ligados ao cotidiano das diferentespopulações, tais como qualidade de vida, projetos políticos queconsideravam as gerações vindouras, direitos reprodutivos, a hierarquiados gêneros, a universalidade dos direitos humanos e a cidadaniaplanetária. O processo da globalização previa um futuro comum,políticas de inclusão e direitos para todos, esboçando uma vida e umsentimento globalizados. No entanto, Oliveira (2001a) identifica umindiscutível mal-estar na implementação desse processo e entende quehouve uma inversão do conceito de globalização, fixado unicamentena unidade de mercados e na extensão da comunicação, a qual gerouconvivência global delicada, desemprego, insegurança social, tecnologiasque desqualificam os debilitados por uma educação deficitária,consumismo exacerbado e toda a sorte de exclusões, cada dia maisagressivas. Na opinião de Oliveira (2001a), para que essa catástrofeglobal e pessoal possa se modificar, será necessário elaborar regras departicipação, democracia e responsabilidade, além de criar espaços dediálogo para que seja feita justiça social e para que a miséria da maiorianão seja agravada em favor de uma minoria privilegiada.

Imensas e inéditas quantidades de gente, de consumo, delongevidade, de destruição e de informação, de acordo com a visão deBonder (2002), é o que a globalização vem trazendo para os diferentesgrupos sociais, ao valorizar o ter e dificultar a identificação e qualificaçãodo que é maléfico, injusto ou proibido e propiciar manobras protelatóriase atitudes de má-fé que adiam decisões éticas e semeiam a impunidade.

12 A Organização das Nações Unidas nasceu oficialmente em 24 de outubro de 1945, data emque a sua Carta foi ratificada pela maioria dos 51 Estados Membros fundadores. O objetivo daONU é unir todas as nações do mundo em prol da paz e do desenvolvimento, com base nosprincípios de justiça, dignidade humana e bem-estar de todos. Dá aos países a oportunidade detomar em consideração a interdependência mundial e os interesses nacionais na busca de soluçõespara os problemas internacionais. Atualmente a Organização das Nações Unidas é compostapor 191 Estados Membros. Disponível em: <http://www.onuportugal.pt/onu.html>. Acessoem: 2 abr. 2003, 09:26:13.

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Esse autor acredita que os indivíduos da era da globalização sãoincapazes de gerenciar suas vidas e seus recursos por parâmetros dequalidade, restringindo a ética e a moral ao território das quantidades,no qual adjetivos, critérios e estratégias são substituídos por números,proporções e estatísticas. Assim, para que a rota do processo daglobalização fosse corrigida, seria necessário freá-la e retomar seuobjetivo primordial: a inclusão de todos os indivíduos na sociedadeplanetária. No entanto, de acordo com o jornalista Luciano Trigo (2001),a globalização é um processo irreversível e os milhões de excluídos queexistem no planeta não foram produzidos por ela. Na sua opinião,todos os indivíduos estão dentro do processo da globalização, queincentivou diversas mudanças, e sofrem seus efeitos diretos, pois ela éuma realidade, o último estágio do desenvolvimento do capital mundialintegrado.

Concluindo

Entre 236 notícias, 193 apontavam que o mundo ou o Brasilatravessa um momento de crise negativa e as restantes, positiva. Para amaioria dos autores, novas visões de mundo, costumes e valoresprovocaram a identificação de uma grande depressão relacionada à perdade valores morais, de balizas éticas e de certezas cristalizadas quejustificam o despertar da consciência, a recuperação da ética, umaprofunda drenagem moral, uma engenharia de valores (PACITTI, 2001;DI FRANCO, 2002b).

A análise retórica das notícias publicadas permitiu verificar quea noção de ética que os autores defendem parece ser a de “éticasuperior”, que nomeia condutas consideradas morais por este ou aquelegrupo social e é estruturada por meio de conteúdos universais. Osautores das notícias elaboravam alguma representação de sociedadeideal que deve controlar a real, pois as notícias apresentavam diferentes“visões de mundo” que estabeleciam o que é “verdadeiro” e “falso” oucomo o mundo é e como deveria ser. A metáfora da sociedade como

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se fosse um corpo orgânico foi identificada nas notícias selecionadas ea crise ética como suposta desarmonia do corpo. Tal crise é, portanto,sintoma de uma doença no corpo social e que decorre da ruptura noreal, por ações as mais diversas, mas que parecem ter origem nas ciênciase nas técnicas, assim como na pobreza, na miséria e na exclusão.

Elencando mudanças na família, na redefinição dos papéis sociaisde homens e mulheres, o crescimento da violência urbana, a desigualdadesocial, o esgarçamento dos laços sociais fundadores do trabalho, dafamília e da comunidade como alguns dos fatores causadores da angústiaque experimentamos por não sabermos as razões de tais mudanças,Oliveira (2001b) observa que chegamos a uma encruzilhada, na qual,de um lado, encontra-se um apagão individual e coletivo e, do outro, aperspectiva de construção de si mesmo e das relações com os outros.

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A des-razão como possibilidade criativa nadesconstrução da realidade

Elenise Cristina Pires de Andrade *Renato Beluche **

Resumo: Esse texto apresenta-se como uma retomada de um trabalhorealizado com onze professores/as de filosofia da rede pública paulista emum workshop que teve a intenção de provocar, revirar, cavoucar as normalidadesque nos são apresentadas como um regime de verdades, de valores morais, deética. Tanto com o trabalho que desenvolvemos com os/as professores quantoneste texto, buscamos muito mais estranhar que explicar. Para essa viagem,escolhemos como companheiros Nietzsche e Foucault para discutir o papelda razão na produção da realidade e de seu conhecimento assim como aracionalidade que acompanha o “saber ver” que parece expulsar as diferençase singularidades caóticas do mundo. Trazemos, então, acompanhadas de doisfilmes, O Hotel de um milhão de dólares e Adeus, Lênin!, possibilidades quediscutimos com os/as professores/as na intenção de abrir ao ensino de filosofiaa produção de um conhecimento que não visaria explicações conceituais, masque se proporia a transformar a vida em jogo, como faz a arte.

Palavras-chave: Ensino de filosofia. Formação de professores. Educação.

* Doutora em Educação pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do Laboratóriode Recursos Audiovisuais (Olho)/ Faculdade de Educação da UNICAMP. Professora ecoordenadora do curso de Pedagogia das Faculdades Network, Nova Odessa, SP. E-mail:nisebara@uol com.br** Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar.) Pesquisadordo Núcleo de Infoeducação – USP. Membro do Grupo de Pesquisa “Corpo, Identidade Sociale Estética da Existência” (UFSCar). E-mail: [email protected] - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 235-254 2007

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The sense-less as creative possibility in reality deconstruction

Abstract: This text is presented as a retaken of a workshop done with elevenPhilosophy teachers of São Paulo Public Net Education, in order to provokeand question normalities that are presented as a regimen of truths, moral andethics values. We’ll try in this paper, as well as in the workshop, not to explainbut to odd. In this trip, we are followed by Nietzsche and Foucault to discussthe reason role in the production of the reality and its knowledge; the rationalitythat makes “knowing how to see” and seems banish the differences and chaoticsingularities from the world. In order to create this strangeness, we chose twomovies – “The Million Dollar Hotel” and “Good bye, Lênin!” – to discusswith teachers and prepare the Philosophy Education to produce a knowledgethat would not aim at conceptual explanations but that considers to transformthe life into game, like art does.

Key words: Philosophy teaching. Teacher’s formation. Education.

Uma aproximação introdutória

Esse texto apresenta-se como uma retomada das idéias,conhecimentos, lembranças, momentos de sala de aula entre tantas outrasparagens que visitamos juntamente com professores/as de filosofia1 dasEscolas de Tempo Integral2 da rede pública paulista em um workshop de24 horas ocorrido entre os dias 10 a 12 de julho de 2006.

Nosso objetivo foi propiciar uma reflexão sobre as possibilidadese impossibilidades de construir e caminhar por uma forma deconhecimento menos disciplinar e que não estivesse tão atrelada àsnossas tradicionais experiências no campo da produção de

1 Na educação pública paulista o ensino de Filosofia é obrigatório no ensino médio e, no ensinofundamental, a partir de 2006, os/as alunos/as de 5ª a 8ª séries. No Ciclo I, o campo da Filosofiaque deve ser priorizado é a Ética, por ser o campo de maior proximidade com o estudante,além de estimular a referência à formação de atitudes que contemplem a diversidade, o diálogoe o respeito mútuo. Note-se que devemos enfatizar a adoção de uma prática reflexiva que leveà descoberta e a reafirmação desses valores, proporcionando a autonomia de um sujeito ético enão a simples repetição de normas e regras. (Fonte: Projeto da Escola de Tempo Integral,Oficina de Filosofia. Disponível em: <http://cenp.edunet.sp.gov.br/index.htm>. Acesso em:em 2 ago. 2006)2 Programa iniciado em 2006 e que tem como um dos objetivos a permanência dos/as estudantesde 5ª a 8ª séries nas escolas públicas por tempo integral. Algumas escolas, apenas, foram escolhidaspara desenvolvimento deste projeto. A Diretoria de Ensino de Limeira possui 6 escolas nestenovo regime de trabalho. Para maiores informações, consultar o site: <http://tempointegral.edunet.sp.gov.br/>.

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conhecimento científico que consideram o pensamento racional e lógicocomo a base do conhecimento de modo geral. Buscamos, nesse sentido,realizar uma crítica aos manuais tradicionais de filosofia para o EnsinoFundamental e Médio, elencando dentro da própria filosofia, autoresque criticaram as bases da construção do pensamento Ocidental.

Para realizarmos esta tarefa, utilizamos principalmente Nietzschee alguns pensadores da segunda metade do século XX, como Foucaulte Deleuze. Nosso intuito não é fazer um panorama da construção dopensamento Ocidental, mas problematizar algumas questões que seencontram na base de nossa forma racional e lógica de pensar o mundo,buscando, desse modo, demonstrar quais mecanismos foram utilizadosna construção da Verdade como forma de pensar hegemônica.

Com base nesse movimento realizaremos algumas reflexõessobre a suposta linearidade entre imagem, visão, verdade e aparência,analisando as questões éticas, estéticas e políticas que estariamimbricadas nas construções imagéticas e nas relações que produzimose inventamos. Questões de extrema importância em nossos tempos decultura midiatizada, na qual a visão se configura como o sentido maisimportante e que, geralmente, torna-se (a imagem) o símbolo de umaprova irrefutável. Como se a imagem, e mais ainda, sugeriríamos, comose a nossa própria forma de ver não fosse histórica, social eculturalmente construída e inventada.

Por fim, refletiremos como alguns artefatos culturais, emespecial as obras cinematográficas O Hotel de um milhão de dólares, deWin Wenders (2000) e Adeus, Lênin!, de Wolf Ganger Becker (2003)podem nos auxiliar na reflexão sobre as noções de razão, verdade,imagem e realidade. Juntamente aos filmes procuramos analisar acomplexa engrenagem da (des)construção das duas narrativas,aparentemente distantes, mas que trazem uma problemática próxima:os limites entre a verdade e a aparência ou entre a ordem e o caos naprodução de conhecimento do mundo.

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Por entre desvios e desvãos: estranhando a normalidade

Segundo Nietzsche, antes de Sócrates, a vida e o pensamentogrego eram experimentados em uma harmonia, ou melhor, como umaunidade. Essa unidade foi conseguida ao se equilibrar duas tendênciasdistintas, a saber: os impulsos dionisíacos (feio, repugnante, excesso,descontrole, vinho) e os impulsos apolíneos (beleza, temperança, luz,ordem, equilíbrio). Para suportar o caos dos impulsos dionisíacos, ouseja, o mundo entendido como desmesura, os gregos criaram os mitostrágicos (visão trágica do mundo na qual os impulsos para a vida e aordem eram fundamentais). Haveria, portanto, entre os gregos umaunidade expressa através da tragédia, entre os impulsos apolíneo e odionisíaco. Nesse contexto, a arte, principalmente o teatro, possuía afunção essencial de promover essa união entre esses impulsos.

Segundo Alves (2005, p. 53-54), em Crítica e Genealogia: a recepçãode Nietzsche na obra de Foucault, o pessimismo trágico (visão dionisíaca)moldava a visão de mundo dos gregos pré-clássicos que encaravam aexistência como um caos sem sentido: “[...] Diz a sabedoria de Sileno –figura mitológica, meio homem, meio animal que seria preceptor deDionísio – que a melhor coisa para o homem seria não ter nascido,mas uma vez tendo nascido, a segunda melhor coisa é morrer o maisrápido possível”. E para suportar essa visão pessimista os gregos criaramos mitos trágicos nos quais o impulso apolíneo para a beleza, para avida e a ordem compensavam o pessimismo trágico. Continuando aacompanhar o filósofo, a beleza da arte ou o impulso apolíneo para abeleza, redime a vida ao converter a hybrys (desmedida, horror,pessimismo) em possibilidade de conviver. Essa conversão poderia serentendida como a origem do teatro grego com suas tragédias e comédias,com suas peças onde a redenção da arte ocorre através da sua própriabeleza incorporando “[...] o sublime, enquanto domesticação artísticado horrível, e o cômico enquanto descarga artística da náusea doabsurdo” (p. 54).

Ainda em companhia de Alves, apolíneo e dionisíaco não sãoapenas princípios estéticos, mas também arquétipos da natureza, sempre

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em luta, com momentos provisórios de conciliação. Para o autor, portrás do palco a tragédia mostra o conhecimento como unidade e discorreque a fragmentação ou a individuação é a causa primeira do mal. Para osgregos, a arte figura como a alegre esperança do rompimento daindividuação e o restabelecimento da unidade. Nesse sentido, a tragédiase configurava mais como um rito religioso que uma simples representaçãoteatral no sentido moderno do termo (ALVES, 2005, p. 55-56).

A unidade alcançada pela visão trágica do mundo (equilíbrio entreos impulsos apolíneo e dionisíaco) foi rompida na Grécia clássica, sendoSócrates a figura paradigmática. Onde todos viam a ascensão da culturagrega, Nietzsche vai diagnosticar o início de sua decadência, umadegeneração introduzida por Sócrates quando este estabeleceu adistinção entre dois mundos: um real e um aparente, como no famosomito da caverna de Platão, no qual há a nítida distinção entre verdade ementira, essência e aparência, razão e paixão.

[...] Sócrates “inventou” a metafísica, diz Nietzsche, fazendoda vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nomede valores “superiores” como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, oBem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntárioe sutilmente “submisso”, inaugurando a época da razão e dohomem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda atradição da época da tragédia (FEREZ; CHAUÍ, 1999, p. 9).

Essa degeneração da cultura iniciada com o filósofo gregoacentua-se, na proposta de Nietzsche, com o advento do cristianismo(crença na verdade e em um único deus) e, mais tarde, com as teoriaspositivistas e a crença nas ciências, ou seja, na racionalidade e no métodocientífico que descartam o subjetivo e as paixões como formas possíveisde compreensão do mundo. Na acepção positivista tudo o que não éracional e objetivo foi encarado como um empecilho para a obtençãoda Verdade.

As críticas à possibilidade da razão em conhecer o mundocomeçaram a ser esboçadas por Kant, que buscou investigar os limitesdo conhecimento racional do mundo. Podemos considerar que essa

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análise do filósofo alemão esboça uma tentativa “tímida” de crítica darazão no sentido de que buscava analisar até onde ela poderia chegarcomo forma de conhecimento, ou seja, quais seriam seus possíveis eprováveis limites. Com Nietzsche, a subversão é total. O que lhepreocupa não são os limites da razão como forma de conhecimento,mas sim de que modo a razão foi construída como a única forma depossibilidade de conhecimento. Nietzsche nos questiona: quais os jogosde poder estariam envolvidos nessa consolidação?

A crítica à razão e à ciência é tão forte em Nietzsche que noinício de Além do bem e do mal ele pergunta

[...] certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência,a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? E mais àfrente, [...] reconhecer a inverdade como condição de vida: istosignifica, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituaissentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo secoloca, apenas por isso, além do bem e do mal (NIETZSCHE,2002, p. 09 e 12, respectivamente).

Para o autor a arte seria a única forma de conhecimento que nãonegaria a vida ao não separar verdade e aparência. A vida só se justificariacomo fenômeno estético, pois a arte redime e possibilita a experiênciatrágica do fim da individuação (ALVES, 2005, p. 59-60).

Nessa crítica à racionalidade e à ciência, Nietzsche desempenhouum papel fundamental para o pensamento da segunda metade do séculoXX, provocando abalos sísmicos nas “placas tectônicas” quefundamentam a organização e legitimação da cultura e políticaOcidentais. Desta forma, ao trabalharmos com Nietzsche parece-nosinevitável discutir a “monstruosidade” atrelada ao seu nome. Quem éNietzsche? Gilman (2005) responde: “Ele é o homem louco cuja obras,caso você as leia, podem enlouquecê-lo”. É a quinta-essência do outsider.É a insanidade infecciosa. Visão preponderante do fin de sciécle até Lukács,mas que de uma forma ou outra, permanece atuante.

Alves (2005, p. 78-81), ressalta que a loucura de Nietzsche nãoseria um acontecimento fortuito, um acidente, mas parte integrante de

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sua obra. Neste sentido o enlouquecimento apresenta-se como umamorte simbólica. Essa morte é o emblema de uma nova cultura, deuma nova ordem de valores. Enquanto a vida consciente e racionallimita, fixa regras, a morte de deus (morte do “Eu”, segundo Deleuze)conduziria à livre experimentação dos modos de existência,transformando a vida em jogo, como faz a arte.

A tradição iniciada pelo filósofo alemão e, depois, revigoradapor diversos autores da segunda metade do século XX – como MichelFoucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze – poderia ser classificadacomo um “pensamento experimental”, posto pretender transformar opensamento em uma estrutura ininterrupta de auto-superação etransgressão, além de ter uma forte ligação com a experiência estéticadas vanguardas da arte.

Foucault, por exemplo, critica a racionalidade ocidental através doseu “outro”, do não racional, das experiências limite, ou seja, através dadesrazão: a prostituta, o homossexual, o delinqüente e a figura símboloque guarda um parentesco com todas essas outras, o louco.3 Continuandocom o filósofo francês, a razão constrói negativamente sua identidadeatravés da exclusão do seu “outro”, da desrazão. Neste sentido o autorvai construir não a história dessa loucura, posto que a mesma foi silenciadaa partir da época clássica, mas a arqueologia desse silêncio.4

A sua intenção seria, então, propor uma reflexão dos limites nãocomo fronteira do conhecimento (como fez Kant), mas comotransgressão dos valores e dos hábitos. Tanto para Nietzsche quantopara Foucault, o conhecimento atua simplificando, portanto, falseandoa realidade. Todo o conceito assume-se como a igualação do não-igual,desconsideração do singular, do diferente. As categorias lógicas nãoexpressam o mundo, mas o desejo da ordem (ALVES, 2005, p. 29).

Seguindo essas questões, decidimos fazer uma releitura dosmanuais tradicionais de ensino de filosofia que concebem a prática

3 O louco, a partir da modernidade, encarna de forma simbólica toda carga negativa do desvio,tornando-se sua figura símbolo, ou seja, todo o comportamento encarado como não racionalserá considerado uma forma de loucura (cf. FOUCAULT, 2000).4 Para o autor a loucura foi silenciada desde a época clássica. Para maiores detalhes desse processoconsultar: História da Loucura na Idade Clássica. Foucault (2000).

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pedagógica como um ensino da lógica e da razão. Segundo GuaciraLopes Louro (2001, p. 551) em Teoria Queer: uma política pós-identitáriapara a educação a ignorância é um efeito e não uma ausência deconhecimento, enquanto que a lógica e a razão seriam o caminho porexcelência para se chegar à Verdade:

[...] a ignorância não é “neutra”, nem é um “estado original”,mas, em vez disso, [...] ela “é um efeito – não uma ausência deconhecimento”. [...] A ignorância pode ser compreendida comosendo produzida por um tipo particular de conhecimento ouproduzida por um modo de conhecer.

Ao analisar os mecanismos e táticas envolvidos na construçãoda verdade Foucault aponta que,

[...] cada sociedade tem seu regime de verdade; sua ‘políticageral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe efaz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instânciasque permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsoso estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funcionacomo verdadeiro (FOUCAULT, 2000b, p. 14).

Diferentemente das tradicionais teorias do conhecimento queacreditam em uma relação de afinidade e adequação com o mundo aser conhecido, Nietzsche entende o conhecimento como disputa. Parao filosofo, atrás do conhecimento existem lutas e não natureza. O quefaz a verdade existir não é a decifração dos véus que ocultam suaverdadeira face, mas um conjunto de procedimentos metodológicos einstitucionais que determinam a produção dessa verdade.

Esgueirando-se pelas margens: expulsando a normalidade da visão

Acompanhando as desestabilizações propostas por Nietzsche eFoucault, pretendemos irromper com diferenças e singularidades queparecem expulsas dos olhares humanos na Verdade concreta e real doconhecimento do mundo, daí nossa proposta neste texto de questionar,

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estranhar as supostas normalidades com que pensamos conviver nacontemporaneidade do século XXI, entre elas a questão do “aprendera ver”. Quantas questões éticas, estéticas, políticas poderíamos puxar edesligar, esquecer e lembrar ao nos deslocarmos das normalidades?

Arte de saber ver en las bellas artes del diseño é o interessantíssimotítulo da obra de Francesco Milizia (1987), arquiteto que se preocupouem orientar cuidadosamente os olhos e os olhares dos “não entendidos”através dos complexos caminhos do saber ver. Ouçamos, ainda sobreessa arte, Carlos Miranda (2001)

A expressão “Educação do Olho”, portanto, pretende chamara atenção para as mudanças das formas de visibilidade do realque o olhar dos aparelhos provoca. Aprendemos (e, portanto,fomos educados) a pensar o olho como um órgão, como umaparelho. Tal percepção do olho legitima os aparelhostecnológicos como extensão, aprimoramento, correção eampliação do nosso sistema visual.

Figura 1 Figura 2

Vejamos por alguns instantes essas imagens e perguntemo-las:“O que querem apresentar-nos?” As duas seriam apresentações dealguma realidade? Se sim, qual concretude estariam nosdisponibilizando? Talvez os números que a margeiem 48º51’29.52’’ N;2º17’36.88’’ E pudessem nos orientar quanto à sua localização, poisindicam as latitudes e longitudes. Mas será que esse conhecimentogarante a concretude do que estamos a ver?

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Desloquemo-nos e proponhamos duvidar e estranhar alinearidade olhar-realidade. Na primeira foto temos uma imagem daTorre Eiffel obtida com o software Google Earth. A segunda tambémfoi obtida com esse mesmo software, só que ao invés da altura de 2581pés (cerca de 787 m) marca a altura de 390 pés (aproximadamente 119m). A diferença estaria somente na altitude com a qual a fotografia foiobtida? Atentem.

Provavelmente vocês perceberão que a imagem à direita (do/aleitor/a) não apresenta a Torre parisiense. Mas como? A diferença dealtitude metamorfoseia a paisagem? O que ocorre é que tal fotografia éresultado de uma movimentação proporcionada pelo próprio programa,não havendo “na realidade” diminuição da altitude de um/a suposto/a fotógrafo/a, mas um achatamento do cenário, deixando-o “plano”.

Desta forma, não existe concretamente a visão da torre Eiffelna segunda imagem, e, no entanto, estamos a ver uma paisagem pormeio de ferramentas que o ser humano inventou e produziu com ointuito de ver mais longe, mais perto, com maior nitidez. Não seriauma imagem concreta? Tal fotografia conseguiria apreender “arealidade”, ou ainda, o conhecimento acerca da Torre Eiffel?

As imagens (de)compõem a memória em um tempo/espaçoparticular, específico, recheado de aspectos morais, culturais, religiosos,científicos, estéticos, políticos. Tais caracterizações tornam-se ainda maisintensas ao considerarmos que, nesses tempos em que os imagináriose as realidades se confundem e se embaçam, como apostar “somente”no que é concreto se as pessoas, em sua grande maioria, não sereconhecem como habitantes de um espaço geográfico concreto, masse expandem por/entre vídeo-games e ambientes da internet como oSecond life e tantos chats e sites?

A visão – o sentido da distância – é eleita como fundamentalpara a produção de sensações e conhecimentos sobre o mundo,validando-se histórico-culturalmente como o preferido dasmetodologias de ensino das disciplinas escolares. Os sentidos “daproximidade” – o tato e o paladar – ficaram renegados a um segundo,

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terceiro, quarto planos, pois além de serem impossíveis de seremsentidos sem a aproximação dos corpos, são praticamenteincontroláveis. Provavelmente não conseguiremos encontrar um “sabercheirar”, “saber sentir o gosto” como temos o “saber ver”. Cremosque a preciosa precisão da visão humana busca ainda, orientar e controlara produção moral, política e ideológica das realidades do mundo e dasverdades da realidade.

É importante ver o cinema e a televisão como artes morais.Apesar de mostrarem imagens consideradas viciosas, imorais,violentas, purificam-nas na medida em que somente reproduzemos sentidos da visão e da audição, os sentidos puros da mitologiafilosófica cristã, platônica e outras filosofias morais, comotambém a ciência, quando se mostra em imagens. Os sentidosimpuros da sensualidade – o tato, paladar, olfato – condenadosdada a sua pertinência corporal pecaminosa são separados daimagem e deixados para a imaginação e a psique do espectador(ALMEIDA, 1999, p. 16).

Existiriam imagens absolutas que apresentassem/abordassem/significassem a realidade? Supondo que algumas imagens consigam talproeza, existiria uma linearidade de causa-efeito entre a visão e aorganização da produção do conhecimento? Se essa relação parece terse estabelecido como “natural”, não estaria a “arte de saber ver”intrínseca porque essencialmente atrelada a essa produção?

Através do tempo, os homens quiseram acreditar nas imagensque eles criaram mais do que naquilo que representavam. Arazão é simples. O real transcende todas as nossasrepresentações mentais ou materiais, e ter ao alcance da mão esob os sentidos algo sobre o qual podermos dizer que é umtodo absoluto e absolutamente conhecido ameniza nossaangústia fundamental sobre o que somos e sobre nosso destino(CADOZ, 1997, p. 99).

Existindo ou não a concretude da imagem ou do conceito queela pretende apresentar, o que queremos propor é que a estética de

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qualquer imagem e de qualquer realidade é sempre uma escolha política,moral, ética, ideológica e, se estamos a falar de escolha, há obviamenteo que foi deixado de lado, o que foi preterido. Caminhando por essaspossibilidades de entendimento das imagens do/no mundo, temos umaforte ressonância no processo de produção do conhecimento científico,que “ganha” uma fortíssima aliada para o resgate e apreensãoverdadeiros do mundo – a imagem fotográfica e, mais tarde, os filmescinematográficos e os documentários – descendentes diretos do aparatoda perspectiva, inventado por Da Vinci. Assim, a partir do século XVIa realidade pôde, então, ser concreta e exata, porque matematicamente,aprisionada pela/na perspectiva.

Figura 3 - Human Hand. Fonte: David Roberts.

Aproximemo-nos dessas Mãos humanas, como Wunder et al.(2006) deslizaram pela imagem, insistentemente chamada de fotografia,ganhadora da categoria “Fotógrafo Amador” da edição de 2000 doprêmio “Visões da Ciência”:5

Então, o que é uma Visão da Ciência? Para o júri deste prêmio,uma Visão da Ciência é uma imagem chamativa que dê uma

5 VISIONS OF SCIENCE, disponível em <http://www.visions-of-science.co.uk/>. Acessoem: 6 abr. 2006.

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nova percepção6 do mundo da ciência e do funcionamentoda natureza. Ela pode mostrar algo nunca visto antes, podeexplicar um fenômeno científico, pode ilustrar um dadocientífico ou pode ser, simplesmente, uma imagem que mostrea beleza da ciência.

Prestemos atenção na criativa combinação de imagens resultantesde Raio-X e de Satélite, ambas técnicas largamente utilizadas para“melhor ver” - um osso quebrado, um fragmento de mata regenerando,supostas fábricas de armas nucleares. Wunder et al. (2006) ressaltamque as imagens resultantes dessas técnicas são geralmente analisadascomo iguais ao mundo real e não uma representação, um espelhamento.Assim, tanto os equipamentos de Raio-X quanto as fotografias efetuadaspelas câmeras dos Satélites configurar-se-iam como ferramentas criadase constantemente refeitas e repensadas para possibilitar a captação deum real, cada vez mais próximo, mas sempre diferente (WUNDER et al.,2006). Apostamos, por isso, em fluxos de descontrole nessa“desassunção” das normalidades que as imagens nos apresentam.Perambular pelas impressões, memórias, sensações, sentidos outrosquando nos encontramos com as imagens principalmente no ambienteeducacional.

Em não existindo, não sendo real, a fotografia permite-nospensá-la como invenção. Inventada a partir de formas de seproduzir conhecimento na ciência: por meio de técnicas, deferramentas (como nos indica a legenda escolhida pelofotógrafo) para se ver o mundo. Conhecimentos que vão seinventando nesse ver o mundo?O ser humano – ao colocar nos olhares, na visão – afundamentação mais concreta desse conhecimento, inventa avisão assim como a própria ciência.E inventa, também, visões da ciência (WUNDER et al., 2006).

6 Traduzimos “new insight” como “nova percepção”, entretanto vale ressaltar que no inglês apalavra insight está ligada à capacidade de perceber “a natureza escondida das coisas“ (dicionárioWebster´s).

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Por isso ao tentar fixar, delimitar, conceituar, apreender arealidade por meio de imagens – palavras, pinturas, fotografias, filmes,softwares, fórmulas – possibilitamos a nós mesmos, e não à realidadeem si, um certo controle deste excesso. Por que a admissão de tantasrealidades quantos mundos (in)visíveis não poderia ser extremamentecriativa, um rompante de arte? Seria possível falar em razão e desrazãonesse excesso criativo e caótico? Voltemos a pensar na loucura silenciada,não seria ela excesso ao invés de falta de sentido?

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger docaos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que umpensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, quedesaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimentoou precipitadas em outras, que também não dominamos. Sãovariabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem.[...] Perdemos sem cessar nossas idéias. É por isso que queremostanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente quenossas idéias se encadeiem segundo um mínimo de regrasconstantes, e a associação de idéias jamais teve outro sentido:fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contigüidade,causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordemnas idéias, passar de uma a outra segundo uma ordem do espaçoe do tempo, impedindo nossa “fantasia” (o delírio, a loucura)de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalosalados e dragões de fogo (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 259).

Excesso de mundo no mundo, sem a necessidade (ou seriaimprescindibilidade?) de garantir antecipadamente os limites entrecerto/errado, razão/desrazão, visível/invisível, conhecimento/ignorância.

Hotel, Lênin, despedidas e saltos

Para finalizar, analisaremos como alguns artefatos culturais, emespecial as obras cinematográficas O Hotel de Um Milhão de Dólares deWim Wenders e Adeus, Lênin! de Wolf Ganger Becker, trabalharamcom as temáticas de razão-des-razão e verdade-aparência que viemos

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desenvolvendo. A nossa escolha recaiu sobre tais produções devido àdescontinuidade que as experiências dos olhares dos/as personagensproporcionam, possibilitando leituras em potências de mudanças, a recusada linearidade como imprescindível para o entendimento dos fatos/fenômenos/pensamentos acerca do mundo na própria dinâmica deprodução de mundo. A des-razão dos/as personagens como possibilidadecriativa na desconstrução de uma realidade verdadeira e única.

Falemos um pouco de Tom-Tom (Jeremy Davies) e sua históriaem O Hotel de Um Milhão de Dólares acompanhados de Michel Foucault.Pensemos: se Foucault realiza a crítica da razão através do seu “Outro”,ou seja, a crítica da razão através da desrazão, Wim Wenders, nessaprodução cinematográfica, de maneira análoga, utiliza uma série deseres “freaks” ou “anormais” para construir sua crítica ao nossomodelo de razão. A velhice, a prostituta, o drogado, o “deficientemental”, o negro, todos marginalizados e desviados de uma supostanormalidade nos são apresentados por Wenders de forma fabulosa.Até mesmo o detetive Skinner (Mel Gibson), contratado para solucionaro caso do suposto assassinato de Izzy (Tim Roth), filho de umimportante industrial judeu que atua no ramo das telecomunicações,quando criança era um dos maiores “freaks” de sua comunidade.

Interessante que Skinner, com seu sugestivo nome, parece apostarna anormalidade dos habitantes do Hotel, mesmo tendo passado suainfância como atração circense, pois tinha um terceiro braço nas costas.Em um dos momentos do filme o detetive argumenta que o problemade Best (Donal Logue) (parceiro que, como o nome sugere, buscarealizar tudo da melhor forma possível, sempre de acordo com a lei)foi ter crescido em meio a pessoas normais possuindo, por isso, umavisão “errada” do mundo.

A condição anormal dos protagonistas do hotel é evidenciadapor Eloise (Milla Jovovich), a prostituta e o grande amor de Tom-Tom.Ao ser avisada por ele que o cigarro pode causar câncer e por isso seriamelhor ela parar de fumar, ela responde: “Não posso morrer. Souficção”. Lembramo-nos de Butler (2002) em Cuerpos que importan, quando

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a autora comenta que as experiências identitárias estão no limite dainteligibilidade e não adquirem materialidade, ou seja, não são inteligíveis,são corpos que não importam. Assim como a garota, Wenders nosapresenta uma reunião de corpos que não importam.

Se Eloise evidencia a condição anormal dos protagonistas, oJudeu, que busca não descobrir o que de fato aconteceu com seufilho, mas criar uma versão cômoda dos “fatos”, pode ser entendidocomo a própria razão e todas as suas artimanhas para construir asuposta Verdade ou Realidade de modo pretensamente neutro. OJudeu (razão) jamais poderia aceitar que seu filho Izzy desprezasse odinheiro e o seu status social suicidando-se e subvertendo a normageral da vida Ocidental.

Reportando-nos às normas e ocidentalidade, falemos um poucosobre Adeus, Lênin!, que nos permitiu discutir as problemáticas davisibilidade, da memória, das turbulências causadas pela queda do muroem Berlim e a invasão do modo capitalista de vida na antiga Berlimsocialista. Christine (Katrin Sab), mãe de Alex (Daniel Brühl) e Ariane(Maria Simon), entra em coma momentos antes da queda do muro eretoma a consciência oito meses depois sem saber o que havia ocorridocom a Alemanha. Seus filhos, para impedir que Christine sofra umoutro (e fatal) ataque cardíaco pelo choque das notícias sobre a quedado muro, produzem uma Alemanha outra.

“Tudo o que eu tinha que fazer era aguçar a vontade de Denis(Florian Lukas) em ser diretor de televisão,” fala Alex para si próprio,na intenção de produzir um mundo inexistente para sua mãe quandoela começa a insistir em ver TV. Retomando o que já discutimos acercado estranhamento da linearidade visão-concretude da realidade, omundo fabricado por Alex necessita, cada vez mais, da participação deoutras pessoas que compactuem com sua atuação, pois somente assimsua verdade poderia ser compartilhada racionalmente.

Pensemos, no entanto, se cotidianamente não passamos pelamesma fabricação de mundo, de memória, de uma estética de realidade.

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[...] Os signos e as imagens em movimento na transmissãotelevisiva não têm somente a ambição de estabelecer umacomunicação com os espectadores, mas, mais que isso, simularum contato real e uma presença nos locais mesmos em queesses espectadores estão (ALMEIDA, 2005, p. 51).

Concordando com Milton de Almeida, em nosso ponto de vista,Alex embaça os limites da realidade “real” e a que ele produz como realpara sua mãe e nos auxilia a pensar na sociedade imagética na qualvivemos e a ditadura do “saber ver”.

Tom-Tom e Alex nos acompanharam em suas peripécias pelasmargens do que poderíamos propor como centro dacontemporaneidade com “freaks” e socialistas, anormais num mundoque prima pela racionalidade e pelo consumo desenfreado – razão econsumo como tecnologias de controle lembrando-nos de Foucault.Anormalidade que pode ser assumida como contrapoder, linha de fugae de resistência como nos sugere Deleuze (2006, p. 218). “[...] Acreditarno mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmopequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos”.

Talvez a provocação de Tom-Tom pela caoticidade da desrazãoou de Alex na sua tentativa de organização e explicação para osdescontroles do consumismo e capitalismo possam nos indicarpossibilidades de resistências, estranhamentos criativos a produzir novasrotas, novos atalhos, novos pensamentos. Novos mundos, talvez.

Nossos/as companheiros/as professores/as

Intenções, vontades, medos, risos, conversas, histórias,experiências ricas e enriquecedoras que nos transpassaram durante operíodo do encontro e ainda reverberam em memórias, idéias, discussõese reflexões – como esse texto. Buscamos, no passar desses dias, refletirsobre as possibilidades e impossibilidades de recorrer a uma forma deconhecimento não disciplinar, ou melhor, o menos disciplinar possível,

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até mesmo porque uma das expectativas do Programa Escola de TempoIntegral seria o de não reproduzir as formas tradicionais de conteúdo econhecimento. No entanto, questões surgem: seria possível tratar deforma não disciplinar algo que conseguiu se estruturar na modernidadejustamente por ser disciplinar?

Não sabemos a(s) resposta(s), se é que existe(m), para essaquestão. Mas acreditamos que problematizar o conhecimento (deixandode considerar a “ignorância” como sua ausência para entendê-la comoum efeito de poder, que suprime as outras possibilidades deconhecimento em nome de uma suposta Verdade objetiva e única) sejaum primeiro passo no desmonte das tradicionais teorias epistemológicase pedagógicas que entendem a construção do saber como algoharmonioso em uma relação de afinidade entre o sujeito cognoscente eo objeto cognoscível.

Nesse sentido, buscamos durante os encontros, discutir as(im)possibilidades da desrazão como forma de conhecimento. Umconhecimento trágico que não nega a vida, não separa verdade eaparência, que redime, que busca o fim da individuação, em suma, umconhecimento que transforma a vida em jogo, como faz a arte.

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253A des-razão como possibilidade criativa na desconstrução da realidade

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Elenise Cristina Pires de Andrade e Renato Beluche254

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RESENHAS

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O potencial do estudo de caso etnográfico para aspesquisas educacionais

ANDRÉ, Marli E. D. Afonso de. Estudo de caso em pesquisa eavaliação educacional. Brasília: Líber Livro, 2005.

Benedito G. Eugenio *

No processo de pesquisa, principalmente para aqueles que iniciamnessa prática, a definição da abordagem metodológica é sempre ummomento muito difícil. Geralmente no curso de graduação, etapa deiniciação à pesquisa, os estudantes costumam ver técnicas de coleta dedados e acabam por não conseguir compreender qual metodologiaempregar para coletar os dados para a escrita do trabalho de conclusãode curso.

É perceptível o recurso à abordagem qualitativa da pesquisa nostrabalhos na área de educação. Visando contribuir com as investigaçõesnas ciências humanas, André, já conhecida no campo educacional porsua contribuição, quer individualmente, ou em conjunto com Ludke(como na obra já clássica Pesquisa em educação: abordagensqualitativas), para as nossas práticas e reflexões sobre pesquisa eavaliação, aborda no livro aqui resenhado o estudo de caso,especificamente o do tipo etnográfico.

Estruturado em cinco capítulos, o livro fornece informaçõesvaliosas para os investigadores das questões do campo da educação.Inicialmente é realizada uma conceituação desse tipo de estudo.Segundo a autora, na sociologia e antropologia o estudo de casoremonta ao final do século XIX e início do XX. Com relação àeducação, sua origem situa-se nas décadas de 1960/70, mas com umsentido muito estrito: estudo descritivo de uma determinada unidade

* Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected] - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 257-259 2007

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Benedito G. Eugenio258

que acabou por constituir-se como “estudos pontuais, que tomamporções reduzidas da realidade e se limitam a retratar superficialmenteessa realidade” (p. 14).

O primeiro capítulo prossegue com a autora definindo o quevem a ser as características e os tipos de estudos de caso. Feito isto, éabordado, então, o estudo de caso etnográfico no capítulo seguinte.André chama a atenção dos investigadores para o fato de que nemtodo estudo de caso se inclui dentro da perspectiva etnográfica, comoos estudos históricos e os relatos autobiográficos, por exemplo. Umestudo de caso etnográfico, no caso da educação, preocupa-se com oprocesso educativo e, devido às diferenças de enfoque com relação àantropologia, não cumpre alguns requisitos da etnografia praticada poresta última área do conhecimento.

O terceiro capítulo dedica-se às vantagens do estudo de caso eas características do investigador que se propõe a efetivar uma pesquisacom tal perspectiva. A autora chama a atenção para alguns aspectosque considero essenciais no processo de desenvolvimento do trabalho:a escolha da forma de pesquisa depende da natureza do problema ainvestigar; o estudo de caso fornece uma visão profunda, ampla eintegrada de uma unidade social complexa; retrata situações da vidareal; e tem uma grande capacidade heurística. André aponta tambémos limites do estudo de caso e destaca, dentre outras características dopesquisador, a habilidade de expressão escrita, fator essencial para aanálise dos dados coletados.

No capítulo seguinte são apresentadas linhas gerais para acondução prática do estudo de caso, quais sejam: a fase exploratória, afase de coleta de dados e a de análise sistemática dos dados. Cada umadelas é discutida e são destacados elementos que as caracterizam,entremeados com exemplos de pesquisas realizadas pela autora.

Finalmente, no último capítulo são discutidas questõesrelacionadas à validade, fidedignidade e generalização nos estudos decaso, e a autora chama a atenção para as críticas que podem ser feitasao estudo de caso no que tange aos dois primeiros elementos apontados

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259O potencial do estudo de caso etnográfico para as pesquisas educacionais

anteriormente, lembrando que “nesse tipo de pesquisa os conceitos devalidade e fidedignidade não são tratados do mesmo modo que nosesquemas mais conservadores de pesquisa” (p. 60). Cabe ao leitor, diantedas informações do contexto estudado, julgar acerca da possibilidadede transferir os dados de um caso particular para outro contexto, motivopelo qual o pesquisador precisa apresentar os pormenores ou umadescrição densa da realidade investigada.

Valendo-se de uma linguagem clara, permeada por exemplospráticos de pesquisas realizadas pela autora, o livro aqui resenhadocontribui de forma substancial para os investigadores da áreaeducacional. Alunos de graduação e pós-graduação, além de docentesdo ensino superior, finalmente têm acesso a uma obra que explicita deforma acessível um conjunto de considerações sobre o estudo de casoem educação, com ênfase no estudo de caso etnográfico, motivo peloqual o livro deve ser lido, debatido, discutido e, principalmente, utilizado.

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Reflexões sobre o ensino de ortografia nas séries iniciais

MORAIS, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo:Ática, 2002.

Benedito G. Eugênio *

O ensino de ortografia na escola de ensino fundamental vemsendo alvo de uma série de críticas há certo tempo. Geralmente osdocentes vêem-se diante de uma questão complicada: como ensinarortografia e como avaliar as dificuldades ortográficas? É a essa discussãoque se propõe Artur G. Morais, em seu relevante livro Ortografia:ensinar e aprender. Nele são apresentadas discussões equestionamentos sobre o ensino-aprendizagem de ortografia.

A obra está estruturada em oito capítulos, subdivididos em duaspartes. A primeira parte, intitulada Aprender ortografia, está dividida emtrês capítulos, todos articulados.

No primeiro capítulo, o autor esclarece que sua proposta não éuma “volta ao tradicional”, mas a de um ensino sistematizado, quesupere a preocupação excessiva e negligente ao avaliar o conhecimentodo aluno, investindo mais no ensinar a ortografia que é uma convençãosocial, cuja finalidade é ajudar a comunicação escrita. Critica uma posturaespontaneísta em relação ao ensino-aprendizagem da ortografia e alertapara as conseqüências de tal postura.

O capítulo seguinte examina como está organizada a normaortográfica de nossa língua e traz uma série de exemplos valiosos sobreas regularidades e irregularidades ocorridas no português. Mostra oque é relevante compreender e o que é necessário memorizar.

O terceiro capítulo apresenta várias questões que os adultos sefazem quando pensam como a criança aprende. Para tratar tais questões,o autor resume os principais resultados obtidos nas pesquisas que tem

* Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected] - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 260-262 2007

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261Reflexões sobre o ensino de ortografia nas séries iniciais

realizado com crianças brasileiras e espanholas, ou seja, investigaçõesque abordam a aprendizagem ortográfica e o seu rendimento feito pelosalunos em diferentes séries e níveis culturais e a relação com o nível deelaboração dos conhecimentos infantis sobre a norma. Assim, apontacomo o aprendizado é um processo complexo e ativo, cujo resultadoimplica vários fatores internos e externos, inclusive como a criançavivencia o ensino-aprendizagem da ortografia na escola.

A segunda parte, intitulada Ensinar ortografia, encontra-se divididaem cinco capítulos e, nela, Morais preocupa-se em discutir o trabalhocotidiano dos docentes em sala de aula.

No capítulo quatro, são analisadas criticamente as práticas usuaisno ensino de ortografia. Segundo Morais, as escolas não têm metasque promovam os avanços nos conhecimentos ortográficos, uma vezque fazem da ortografia mais um objeto de avaliação que de ensino.

O autor chama a atenção para as atividades pobres propostas pelasescolas, como exercícios com alternativas prontas, horários reservadospara trabalhar ortografia limitando-se apenas às cópias, aos ditados, treinosortográficos, recitação ou memorização de regras, uso de livros didáticostotalmente tradicionais que servem tão somente para produzir alunospassivos, que reproduzem modelos prontos como esponjas prontas parareceberem informações sem refletirem sobre as mesmas.

O quinto capítulo define princípios norteadores para o ensinode ortografia. Num primeiro momento apresenta os princípios geraisrelacionados ao ensino-aprendizagem e nos atenta para a introduçãode bons textos em sala de aula, uma vez que os mesmos tornam-seimprescindíveis para a reflexão e construção de outros textos. Deixaclaro que é necessário o professor planejar e definir metas sobre acapacidade dos alunos escreverem segundo as normas e apresentaquestionamentos e respostas para indagações como quando começar aensinar ortografia, quais metas estabelecer para cada turma e série, comoseqüenciar o ensino de ortografia.

Num segundo momento deste mesmo capitulo o autor alertapara o fato de que a reflexão sobre a ortografia não pode ficar restrita

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Benedito G. Eugênio262

só aos momentos de atividades sobre a mesma. Sugere que oseducandos sejam estimulados a criarem seus próprios textos sem exigirdestes conhecimentos de gramática normativa e que o docente promovadebates e discussões para que os discentes reelaborem seusconhecimentos, registrando em sala de aula suas novas descobertas,além dos trabalhos em grupo e que leve em consideração a diversidadecognitiva dos alunos.

No capítulo seis, Morais apresenta-nos três modalidades paradesenvolver a reflexão sobre a ortografia, quais sejam: o ditado interativo,em que se trabalha com textos já conhecidos pelos alunos; a releituracom focalização, cujo foco é a grafia das palavras e a reescrita oucorreção, em que o objetivo é promover a discussão e reflexão sobreos erros cometidos.

No capítulo seguinte, o autor discute atividades de reflexão sobreas palavras, visando ao tratamento didático das dificuldades ortográficas.

Finalmente, no último capitulo, o autor apresenta consideraçõesacerca do uso do dicionário, incentivando o professor a usá-lo desde asséries iniciais como recurso para desenvolver a autonomia dos alunos etambém do professor no trato com a escrita da língua.

A leitura do livro é de extrema importância para docentes eestudantes de cursos de formação de professores. Ao tratar a ortografiacomo uma convenção social que deve ser ensinada e aprendida, ArturMorais nos mostra o papel exercido pelo docente no trato desse assuntoem sala de aula. Valendo-se de uma linguagem clara e acessível, o autorapresenta questionamentos e sugestões sobre como trabalhar aortografia com os estudantes das séries iniciais do ensino fundamentalnum enfoque construtivista.

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Reflexões sobre a sexualidade e a infância

CAMARGO, Ana Maria Faccioli; RIBEIRO, Claudia. Sexualidade(s)e infância(s): a sexualidade como um tema transversal. São Paulo:Moderna; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1999.

Dilma do Carmo Brito, Gilnúbia Rosa Mendes da Silva, Maria de LourdesBrito de Souza e Rosangela Rodrigues da Silva *

O livro de Ana Maria Faccioli Camargo e Claúdia Ribeiroapresenta uma reflexão acerca de questões que envolvem a sexualidade,presentes nas discussões no interior da sala de aula e no cotidiano dascrianças. As autoras abordam a sexualidade como um tema transversal,ligando-o a conceitos como os de vergonha, pudor, pecado, buscandoevidenciar o sentido de tabu que essa temática traz no seu bojo nodecorrer da história da humanidade. Apresentam também relatos depráticas dentro e fora do espaço escolar em que as crianças exteriorizamsuas curiosidades e dúvidas acerca do tema, cabendo aos professores,em parceria com as famílias, mediar e proporcionar atividades quepermitam a construção de conceitos pelas próprias crianças, evitandoassim conceitos e explicações errôneas e fantasiosas sobre a sexualidade.

Na tentativa de entender como o conceito de infância esexualidade foi sendo construído ao longo da história, Camargo eRibeiro lançam mão de obras de autores como Ariès, Foucault, Rousseaue Freud, que apresentam estudos acerca da temática em diferentescontextos e tempos históricos. Segundo as autoras, a criança, por muitotempo, foi considerada um adulto em miniatura, sem vontades próprias,não sendo respeitada física nem emocionalmente. Em alguns casos,seu destino mesmo era decidido pelo pai já em seu momento denascimento. Também os vários discursos produzidos sobre asexualidade (religioso, médico, psiquátrico, psicológico) acabaram por

* Graduandas do curso de Licenciatura Plena em Educação Infantil e Séries Iniciais do EnsinoFundamental (UESB). Professoras da Rede Municipal de Vitória da Conquista.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano V n. 8 p. 263-266 2007

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contribuir para que esta fosse vista e considerada como algopecaminoso, sujo, vergonhoso, portanto, passível de repressão e controle.

A partir do século XIX iniciam-se discussões acerca dasexualidade infantil, que naquele contexto era considerada como umamanifestação patológica e lastimável. Com base nos estudos de Freud,foi possível perceber que a sexualidade e o prazer se manifestam comoalgo normal do ser humano e estão presentes neste desde o nascimento,nas diferentes fases do seu desenvolvimento psicossexual.

As autoras consideram em seu trabalho, com base em Foucault,que falar sobre sexualidade implica uma relação de poder de quem falasobre o sujeito para quem se fala. São através dessas relações de poderque se estabelecem verdades e se constituem os sujeitos, e entender adinâmica dessa constituição de sujeitos sociais sexuados é um grandedesafio para a educação.

Para as autoras, abordar as questões sexuais na escola é algopolêmico, porém indispensável, visto os altos índices de gravidez naadolescência, iniciação precoce na atividade sexual, a influência da mídiacom informações deturpadas e normatizadoras da conduta sexual e aproliferação das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e AIDS.A escola é então entendida como o espaço favorável paraquestionamentos e discussões acerca dessa problemática, bem comoda sistematização das informações concernentes a ela. Nesse sentido, aOrientação Sexual passa a ser incluída nos currículos escolares comotema transversal, legitimado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais(PCNs), e sua abordagem implica considerar as questões sociais, éticase morais dos sujeitos envolvidos nessas discussões que ainda são tratadascom medo, submissão, tabu, mito, vergonha e resistência.

Vale ressaltar que Camargo e Ribeiro usam o termo EducaçãoSexual e não Orientação Sexual, como sugerem os PCNs. Para asautoras, educação sexual é um processo que perpassa por toda a vidada criança e está latente no espaço escolar, motivo pelo qual deve serabordada em todas as disciplinas curriculares no caso das crianças queencontram-se no inicio da escolarização. É importante frisar que o

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265Sexualidade(s) e infância(s): a sexualidade como um tema transversal

trabalho com a educação sexual está carregado consciente einconscientemente de valores, afetos, condutas e da maneira singulardo professor conceber e vivenciar a própria sexualidade. Reside aí aimportância das educadoras saberem lidar com a sua sexualidade, fatorque reflete na construção de relação de confiança e autonomia com oseducandos. Essa relação autônoma e de confiança possibilita às criançasdimensionar as suas relações inter/intrapessoais, bem como a relaçãocom a sua própria sexualidade.

No intuito de mostrar a relevância do trabalho sobre sexualidadecom crianças desde as mais tenras idades, as autoras apresentam otrabalho de pesquisa realizado a partir das experiências vivenciadas poreducadoras, através de relatos de escolas públicas que atendem criançasda Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. De acordocom os relatos das educadoras, Camargo e Ribeiro tentaram entendercomo o trabalho educativo nessas séries iniciais permite ou não que acriança vá se percebendo e se constituindo como ser sexuado de formaque a sensibilidade, a curiosidade e a criatividade das crianças sejampreservadas, sem reproduzir ou padronizar conceitos enraizados sobresexualidade.

Percebe-se, com os relatos das professoras apresentados pelasautoras, a necessidade de se trabalhar a sexualidade com as crianças apartir da parceria com a família, aproveitando as situações suscitadasem sala de aula que envolvam a temática. Essas situações se manifestampor meio da curiosidade natural das crianças, nas brincadeiras e jogos,na exposição e desenho dos órgãos genitais. Nesse sentido, a intervençãodo professor é extremamente importante para que esses momentosdirecionem e possibilitem a construção significativa e criativa doconhecimento acerca da sexualidade. Os trabalhos realizados pelaseducadoras pesquisadas envolvem projetos pedagógicos sobresexualidade e somente uma das 12 professoras pesquisadas demonstraa partir do seu relato não estar preparada para lidar com essas questõesem sala de aula.

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Unindo teoria e pesquisa, aliada a uma linguagem simples, asautoras fazem uma ampla discussão sobre educação sexual nas escolas,bem como as relações entre crianças e educadoras, ao problematizaremas relações entre sexualidade e infância. Evidenciam também anecessidade dos docentes trabalharem com questões relacionadas àsexualidade desde a Educação Infantil despidos de pudor, mitos e tabus.O livro é um suporte teórico para a prática educativa e um convite paraa inclusão da educação sexual no cotidiano escolar, ao apresentar aspossibilidades de desmistificar as “verdades” sobre sexualidade,cristalizadas ao longo da nossa história, constituindo-se em leituraimprescindível para estudantes dos cursos de licenciatura e docentesda educação básica.

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Nominata de pareceristas Profa. Dra. Adriana Marcondes Machado (USP)Profa. Dra Ana Lúcia Goulart (UNICAMP)Prof. Dr. Denis Coitinho Silveira (UFPel)Profa. Dra. Eliane G. Saravali (UNESP)Profa. Dra. Eugênia Dantas (UFRN)Profa. Dra. Helenice Maia (UNESA - RJ)Prof. Dr. José Carlos Araújo (UNITRI)Prof. Dr. José Carlos Libâneo (UCG)Prof. Ms. José Luis Caetano (UESB)Prof. Ms. Leonardo Maia (UESB)Profa. Dra. Maria Helena Fávero (UnB)Profa. Dra. Maria Isabel Leite (UDESC)Profa. Dra. Maria Iza Pinto de Amorim Leite (UESB)Profa. Dra. Maria Luiza Camargos Torres (UNIVALE)Profa. Dra. Marisa Mellilo Meira (UNESP)Profa. Dra. Patrícia Dias Prado (UNICAMP)Prof. Dr. Paulo de Tarso Gomes (UNISAL - SP)Prof. Dr. Renato José de Oliveira (UFRJ)Profa. Dra. Silvia Ros (UFSC)Prof. Dr. Yves de La Taille (USP)Profa. Ms. Zamara Araújo dos Santos (UESB)

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Periódicos permutados

Cadernos de Educação (UFPel/Pelotas-RS)Análogos (PUC-RJ)Análise & Síntese (Faculdade São Bento/Salvador-BA)Educação em Revista (UFMG/B. Horizonte-MG)Revista Comunicações (UNIMEP/Piracicaba-SP)Ethica – Cadernos Acadêmicos (UGF/Rio de Janeiro-RJ)Ícone Educação (UNITRI/Uberlândia-MG)Proposições (UNICAMP/Campinas-SP)Hispeci & Lema (FAFIBE/Bebedouro-SP)BIOETHIKOS (Centro Universitário São Camilo/São Paulo-SP)Práxis Educativa (UEPG/Ponta Grossa-PR)Revista Educação (PUC/Porto Alegre-RS)EccoS – Revista Científica (UNINOVE/São Paulo-SP)Educação em Questão (UFRN/Natal-RN)BOLEMA – Boletim de Educação Matemática (UNESP/Rio Claro-SP)Educação e Pesquisa (USP/São Paulo-SP)Dialogia (UNINOVE/São Paulo-SP)Educere – Revista da Educação (UNIPAR/Umuarama-PR)Revista de Educação Pública (UFMT/Cuiabá-MT)Revista Diálogo Educacional (PUC/Curitiba-PR)Ciência & Educação (UNESP/Bauru-SP)Comunicação & Educação (USP/São Paulo-SP)SIGNOS (UNIVATES/Lajeado-RS)Estudos em Avaliação Educacional (Fundação Carlos Chagas/São Paulo-SP)Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais (UFSJ/São João del-Rei-MG)Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas/São Paulo-SP)Estudos de Psicologia (PUC/Campinas-SP)Revista Brasileira de História da Educação (USP/São Paulo-SP)Caderno Catarinense de Ensino de Física (UFSC/Florianópolis-SC)

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Normas para publicação de trabalhos

O APRENDER é uma publicação que pretende divulgar trabalhossobre o processo educacional em suas variáveis filosóficas e psicológicas oucontribuições de outras áreas do saber.

Por abranger diversas áreas de conhecimento, esta revista define algunsenfoques temáticos para melhor orientar o conteúdo dos trabalhos candidatosà publicação.

Filosofia da Educação:• A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições

se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento.• A Filosofia e a instituição escolar.• Abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas.• Diferentes conceitos e concepções de educação.• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com a

idéia de formação e os processos educacionais.• Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e a

aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outrasabordagens.

• Teorias da Pesquisa em Educação.• Educação e Política: o caráter formador e transformador da educação

em seus aspectos político e filosófico.• O papel da Filosofia nas transformações da educação contemporânea.• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos.

Psicologia da Educação:• A aprendizagem como problema psicológico: como e em que condições

se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento.• Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo das

necessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem,educação especial, preparo e formação de professores, entre outrospontos de vista.

• As escolas psicológicas e sua relação com os processos educacionais.• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos psicopedagógicos.• Psicanálise e Educação.• Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processo ensino-

aprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interação professor-aluno,cultura escolar, atuação do psicólogo na escola, entre outros pontos.

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• Psicologia do Desenvolvimento e Educação: aspectos psicomotores,afetivos, cognitivos, lingüísticos, sociais, culturais e familiares.

• Relações humanas na escola.• Sociedade e Educação: fatores psicossociais e de formação do sujeito.• Trabalho e Educação.

Obs.: Somente são aceitos trabalhos que se enquadram em um ou mais dosenfoques temáticos citados.

Envio dos TrabalhosSão recebidos para publicação artigos, ensaios, debates, resenhas,

traduções, entrevistas, relatos de caso, etc. Os textos enviados para análisedevem ser escritos em português, espanhol, inglês ou francês.

Os trabalhos candidatos à publicação devem ser enviados por e-mail,com o texto anexo, para os seguintes endereços eletrônicos:[email protected] e [email protected]; ou pelo correio, com umacópia impressa e uma cópia em disquete, para o endereço abaixo:

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoEstrada do Bem-Querer, km 4.45083-900 – Vitória da Conquista – BahiaTanto no envio por endereço eletrônico como pelo correio, os trabalhos

devem ser acompanhados de uma folha à parte, em que constem os seguintesdados de identificação:

• Título, resumo e palavras-chave no idioma do texto.• Nome completo do(a)(s) autor(a)(es).• Maior titulação (com indicação da área de conhecimento e nome da

instituição).• Instituição de origem e função que está exercendo.• Endereço eletrônico e telefone.

Formato dos Trabalhos1. Os trabalhos devem ser digitados em Word for Windows e apresentados

segundo as especificações a seguir: Artigos – 20 páginas, não incluídas as referências bibliográficas; Resenhas – cinco páginas; Entrevistas e debates – dez páginas; Traduções – 20 páginas.

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3. A configuração do texto deve ser conforme as seguintes especificações: papel tamanho A4 (21 X 29,7), margens superior, inferior e laterais de 2

centímetros, espaçamento entre as linhas de 1,5 centímetro e alinhamentojustificado.

4. O título do trabalho deve ser em fonte Times New Roman, tamanho 12,negrito e caixa alta, centralizado no alto da página inicial.

5. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deve vir o nome do(s) autor(es)em fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhado à direita dapágina, seguido de asterisco, e, em nota de rodapé, deve-se indicar amaior titulação (com a área de conhecimento e a instituição na qual foiobtida), a instituição a que o(s) autor(es) se encontra(m) vinculado(s) eendereço eletrônico.

6. Para artigo, dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es), deve viro Resumo, no idioma da redação, acompanhado das palavras-chave(máximo de cinco). O título, o resumo e as palavras-chave precisamser traduzidos para o inglês (Abstract e Key Words) ou francês (Résumé eMots-clés).

7. O Resumo (bem como o respectivo Abstract ou Résumé ) deve ter nomínimo 40 palavras e no máximo 100 palavras e ser redigido em um sóparágrafo.

8. Subtítulos devem vir em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito,somente com as primeiras letras maiúsculas e alinhados à esquerda dapágina (não devem ser numerados).

9. As citações e referências bibliográficas devem seguir as normas daAssociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

10. Figuras e fotos, se houver, devem vir no corpo do texto, no local desejadopelo autor, em preto e branco.

11. Gráficos, se houver, devem ser apresentados no final do trabalho, empreto e branco, de maneira legível e com indicações e/ou legendas porextenso.

Avaliação dos trabalhosOs trabalhos candidatos à publicação são avaliados quanto a sua

qualidade e originalidade, por especialistas do assunto abordado. A escolhados pareceristas é feita, preferencialmente, entre os membros que compõemo Conselho Editorial da revista.

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RevisãoOs trabalhos aceitos para publicação serão submetidos à revisão de

linguagem. O APRENDER reserva-se o direito de realizar alterações sugeridaspela revisão que não impliquem alterações no conteúdo. Os casos especiaisserão comunicados ao(s) autor(es), para sua avaliação.

Direitos autoraisO APRENDER detém os direitos autorais dos trabalhos publicados,

que não poderão ser reproduzidos sem autorização expressa dos editores.

ResponsabilidadeO conteúdo expresso nos textos publicados é de responsabilidade

exclusiva de seus autores.

Exemplares do autorCada autor terá direito a três exemplares do número correspondente à

publicação do seu texto.

Aquisição de exemplares• Catálogo on line: www.uesb.br/editora• E-mails: [email protected], [email protected] e [email protected]

PermutasAceitam-se permutas com periódicos nacionais e estrangeiros,

preferencialmente nas áreas de Educação, Filosofia e Psicologia.Os contatos para esse fim podem ser feitos por meio dos endereços

eletrônicos: [email protected] e [email protected].

APRENDER - CADERNO DE FILOSOFIA E PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃOUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)

Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)Estrada do Bem-Querer, km 4

45083-900 - Vitória da Conquista – Bahia

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EQUIPE TÉCNICA

COORDENAÇÃO EDITORIAL E NORMALIZAÇÃO TÉCNICA

Jacinto Braz David Filho

CAPA

Luiz Evandro de Souza RibeiroDRT - 2535

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E ACOMPANHAMENTO GRÁFICO

Ana Cristina Novais MenezesDRT - 1613

REVISÃO DE LINGUAGEM (TEXTOS EM PORTUGUÊS)LEONARDO MAIA

- Apresentação- Pesquisa e teoria sobre habilidades numéricas- Estudo sobre a aplicação da prova piagetiana de escoamento do líquido para avaliaçãoda noção temporal- A pesquisa na escola com crianças pequenas: desafios e possibilidades- Elementos de Filosofia da Educação a partir da Teoria da Modificabilidade CognitivaEstrutural de Feuerstein- Ética e Educação: reflexões sobre amizade e cidadania- Resenhas (todas)

LUCIANA MOREIRA PIRES FLÔRES

- Epicuro e os tetrapharmakon- Ética na mídia impressa: um estudo de notícias publicadas entre 1997 e 2003

MARIA DALVA ROSA SILVA

- Entre os legados de uma compreensão do Ser às contribuições da PsicologiaEducacional para formação do Ser- Implicações psicológicas da avaliação escolar- A interdisciplinaridade e as novas formas de organização do conhecimento- Aproximações entre a Psicologia de Vygotsky e a Filosofia para Crianças de Lipman:questões sobre aprendizagem e desenvolvimento- A des-razão como possibilidade criativa na desconstrução da realidade

Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m²Em janeiro de 2008

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