A paixão segundo G.H, de C.L. Transtextualidade bíblica

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  • TNIA DIAS JORDO

    A PAIXO SEGUNDO G.H., DE CLARICE

    LISPECTOR: transtextualidade bblica

    Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG

    2007

  • 2

    TNIA DIAS JORDO

    A PAIXO SEGUNDO G.H., DE CLARICE

    LISPECTOR: transtextualidade bblica

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Letras: Estudos

    Literrios, da Universidade Federal de

    Minas Gerais, como requisito parcial

    obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    rea de Concentrao: Literatura

    Brasileira Mestrado.

    Linha de Pesquisa: Literatura, Histria e

    Memria Cultural.

    Orientadora: Dilma Castelo Branco Diniz

    FALE/UFMG.

    Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG

    2007

  • 3

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Faculdade de Letras

    Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios

    Dissertao intitulada A Paixo Segundo G.H., de Clarice Lispector: transtextualidade

    bblica, de autoria da mestranda Tnia Dias Jordo, aprovada pela banca examinadora

    constituda pelas seguintes professoras:

    Profa. Dra. Dilma Castelo Branco Diniz FALE/UFMG Orientadora

    Profa. Dra. Ndia Battella Gotlib USP

    Profa. Dra. Hayde Ribeiro Coelho FALE/UFMG

    Profa. Dra. Ana Maria Clark Peres

    Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios

    FALE/UFMG

    Belo Horizonte, 08 de maro de 2007.

  • 4

    minha doce Maria.

  • 5

    Profundamente agradeo a Deus, Fonte da Vida e da Sabedoria, porque tudo Dom

    do seu Amor.

    Sou, tambm, muitssimo grata:

    Aos meus pais, Maria e Nemes, aos meus irmos e sobrinhos, pelo carinho, estmulo,

    ajuda e pacincia incondicionais.

    minha orientadora, por fazer caminho comigo, lcida e ternamente...

    Aos amigos, curiosos incentivadores, e ao Joo Santiago, primeiro leitor do projeto do

    mestrado, que acreditou e tambm impulsionou esse sonho.

    Aos Mestres. Todos. Tantos que tanto me ensinaram.

    Aos funcionrios da FALE/ UFMG. Particularmente Rosngela, bibliotecria.

    Congregao das Filhas de Jesus, pela solidez da formao a mim oferecida.

    minha amada filha.

    Aos que ousam fazer a travessia... Em todos os tempos.

    Com toda ternura.

    Trago mis manos vacias

    Y mi corazn lleno de nombres

    Annimo

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    Resumo

    Cotejando A Paixo Segundo G.H., de Clarice Lispector, com a Bblia, a partir de um

    recorte transtextual, mostra-se que a Escritura Sagrada o hipotexto do romance e o

    grande cdigo para que se possa compreend-lo mais profundamente, e que a

    personagem G.H. vive sua Paixo como uma experincia mstica oposta Paixo do

    prprio Cristo. Se esta se d porque o Filho de Deus assume nossa humanidade,

    aquela se apresenta como o avesso da paixo bblica: G.H faz sua travessia perdendo

    a prpria humanidade. A autora apropria-se da potica e dos temas bblicos,

    camuflando-lhes os textos, rasurando-lhes o tecido.

  • 7

    Sumrio

    RESUMO ............................................................................................................... 6

    INTRODUO..................................................................................................... 8

    BBLIA: GRANDE CDIGO........................................................................... 17 Muitos diziam: Ele tem um demnio! Est delirando! Por que o escutais? ............... 18 Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me vi ................................................... 21 Teu nome como leo escorrendo ............................................................................................... 24 E a luz brilha nas trevas ..................................................................................................................... 29 No princpio era o Verbo..................................................................................................................... 34 Procuro-o e no o encontro .............................................................................................................. 39 Apareceram-lhes, ento, lnguas como de fogo........................................................................ 49 Numa terra do deserto, /num vazio solitrio e ululante ........................................................ 58

    A MSTICA DA PAIXO................................................................................. 61 E se as primcias so santas, a massa tambm o ser .......................................................... 62 Esvaziou-se a si mesmo ..................................................................................................................... 65 Quando eu gritei, tu me ouviste ..................................................................................................... 75 Um vu est sobre o seu corao .................................................................................................. 79 chegada a hora!................................................................................................................................. 83 Trazemos este tesouro em vasos de argila................................................................................. 86 Cruel como o abismo a paixo / uma fasca de Iahweh! ................................................... 92 Pois de sua plenitude /todos ns recebemos /graa por graa........................................... 96

    CONCLUSO ................................................................................................... 100

    RSUM............................................................................................................ 106

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................ 107 Da autora ............................................................................................................................................... 107 Geral ........................................................................................................................................................ 109 Dicionrios e Enciclopdias ............................................................................................................. 117

    ANEXO .............................................................................................................. 118

  • 8

    Introduo

    Traduzir uma parte

    na outra parte

    que uma questo

    de vida ou morte

    ser arte?

    Ferreira Gullar

    Muito j se produziu acerca da escritura de Clarice Lispector, e mesmo de seu romance

    de 1964, A Paixo Segundo G.H. Essa obra revela dimenses no s do modernismo

    brasileiro da dcada de 60, mas um testamento do seu carter universalista na

    criao de sua prosa original.

    O romance tem a forma livre que semelhante gnero assumiu nas ltimas dcadas. o

    relato de uma aventura interior que, exatamente por s-la, no possui momento exato

    para o incio: estou procurando, estou procurando. Estou tentando

    entender. Tentando dar a algum o que vivi e no sei a quem, mas no quero ficar

    com o que vivi.

    Essa uma obra potica, multvoca, de temtica existencial que, atravs de uma

    linguagem paradoxal e permeada de anadiploses, sustenta a experincia de

    perda/busca da identidade pessoal da narradora-personagem, enquanto incide, no

    plano da linguagem, na luta com e contra as palavras, atravs do fluxo de conscincia.

    E, aqui, o que se pretende mostrar que a Bblia funciona como hipotexto desse

    romance. Relendo A Paixo Segundo G.H. aps concluir todas as disciplinas bblicas

    do curso de teologia, pude perceber o quanto essa autora faz uso das categorias

    bblicas na construo do itinerrio interior da protagonista. Existem nessa obra

    iniludveis transposies bblicas, desde o prprio ttulo, e sobre tais ressonncias

    que se tecer este estudo.

  • 9

    No se traar, portanto, um paralelo entre vida e obra de Clarice, ainda que se

    reconhea a importncia de um trabalho assim. Alis, esse aspecto j foi sobejamente

    executado por vrios crticos e estudiosos, dentre os quais se destacam Olga de S,

    Claire Varin e, entrelaando vida, obra e Bblia, Dany Kanaan.

    A propsito, esse autor, que em sua recente tese se aproxima bastante do que aqui

    me proponho, afirma:

    A obra clariceana no de fcil assimilao, pois exige demais do leitor,

    descentrando-o constantemente, questionando-o, abalando seu sistema de

    referncia... incluindo o de leitura. Ou seja, diante de sua obra, os modelos

    tradicionais de interpretao de texto parecem falhos, como se o tempo todo

    algo ficasse de fora e fica. Clarice j havia percebido isso em relao sua

    obra e em vrias ocasies comentou o fato, como podemos conferir no trecho a

    seguir: Intil querer me classificar: eu simplesmente escapulo no deixando,

    gnero no me pega mais(Lispector, 1973, p.14).

    [...] Clarice reivindica para si, constantemente, tudo o que experiencia

    no plano literrio, atribuindo a este, por sua vez, tudo o que experiencia no

    plano biogrfico. Vida e obra em Clarice esto estreitamente ligadas.1 (Grifo

    meu).

    De fato, como a autora conhece bastante as Escrituras Sagradas, o leitor pode

    perceber o quanto ela faz uso de categorias bblicas na construo do itinerrio interior

    de G.H. atravs de recursos utilizados tanto na linguagem quanto na temtica, que

    constituem uma prtica transtextual, a transposio; no caso, como j nos referimos,

    da literatura bblica.

    to clara a intertextualidade que nossa autora estabelece com a escritura sagrada

    que pesquisando sobre a relao de Clarice com a Bblia, encontrei 567 ttulos a este

    respeito. A verdade que Clarice desses autores que fornecem teoria para a crtica

    literria, qui at mesmo pela prtica da metalinguagem, alm do veio psicanaltico,

    muito explorados em suas obras. No obstante, o nmero cai em demasia quando se

    trata de relacionar a Bblia com a obra em questo. No pude encontrar mais que oito

    estudos relacionando a Bblia com A Paixo Segundo G.H. Destes, um, de Benedito

    1 KANAAN, 2003, p. 19.

  • 10

    Nunes2, aborda dados msticos da obra da autora, no entanto no aprofunda o aspecto

    bblico presente no romance, ainda que o reconhea.

    Quem tampouco aprofunda esse aspecto no romance de 1964 so os escritores de

    origem judaica; brasileiros que parecem ter particular interesse em tratar de temas

    bblicos nas obras de Clarice, certamente pelo marcante crivo semita que percorre seus

    escritos desde uma perspectiva e escrita femininas. Quanto ao romance A Paixo

    Segundo G.H., citado para exemplificar a inter-relao das obras de Clarice com o

    judasmo ou com a literatura bblica como um todo, mas no encontrei um estudo

    especfico, nem entre esses especialistas, da obra aqui em relevo. Dentre eles, vale

    destacar o chamado primeiro filsofo judeu, grande revolucionrio do judasmo,

    Yoshua Ben Yosef e as escritoras Berta Waldman, do Centro de Cultura Judaica (So

    Paulo), Yudith Rosenbaum e Rachel Gutierrez.3

    O j citado Dany Al-Behy Kanaan4 muito recentemente publicou sua tese de doutorado

    (PUC-SP) na qual estuda as relaes entre escritura/ vida de Clarice e Bblia, e dedica

    uma seo ao romance A Paixo Segundo G.H. O autor busca responder ao dilema de

    separar ou integrar autores e obras e acaba por encontrar nos textos sagrados do

    Antigo e Novo Testamentos uma plataforma de ressonncia ecoante, em que as notas

    e harmonias da vida e da escrita se entrelaam na produo de um novo texto: o texto

    do leitor.

    Mas as grandes estudiosas de Clarice que, primeiramente, exploraram o filo bblico

    presente nessa obra da autora so Olga de S5 e Luiza Lobo. A primeira colaborou com

    Benedito Nunes quando da publicao da edio crtica de A Paixo Segundo G.H. e

    revela procedimentos da escritura de Clarice, tais como a desconstruo da linguagem

    e o ritual epifnico.6 E ela ainda mostra, em outros escritos7 seus, muito do uso que

    Clarice faz da Bblia, alm de explorar a epifania como procedimento tpico da escritura

    sagrada judaico-crist. Pretendo aprofundar tal estudo ao longo deste trabalho, alm

    de apresentar dados novos, j que a epifania um recurso de transposio de uma

    2 NUNES, 1988.

    3

    4 KANAAN, 2003.

    5 Se Olga de S no tivesse por ttulo de uma de suas obras A Travessia do Oposto, seria esse o ttulo desta

    dissertao; e, talvez, bem mais apropriado para o que aqui se demonstra, como se ver. 6 S. 1988.

    7 Idem, 1979 e 1993.

  • 11

    categoria experiencial bblica. No ensaio Pardia e metafsica, Olga de S comenta o

    procedimento da repetio como sendo semita, bblico. Demonstrarei como se do

    essas repeties, transposio8 da linguagem, nas obras aqui cotejadas.

    Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos brinda com A Gnese da

    Representao Feminina na Literatura Ocidental: Bblia, Cabala, Idade Mdia. Em seu

    estudo tambm menciona procedimentos bblico-semitas utilizados por Clarice em A

    Paixo Segundo G.H., todavia sua preocupao muito mais com o feminino que com

    o especificamente bblico, do ponto de vista literrio9.

    Nolasco10, em sua dissertao Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Uma

    leitura (des)construtora dos processos de criao das escrituras de Uma aprendizagem

    ou O livro dos prazeres e gua viva, traa um paralelo entre as duas obras que do

    ttulo a seu estudo e mostra como Clarice se auto-plagia. Poder-se-ia dizer que faz

    plgio tambm da Bblia? evidente que no. Mas evidente tambm que constri seu

    texto sobre o bblico, medida que desconstri o hipotexto.

    O prprio ttulo do romance suscita uma leitura bblico-teolgica j que nos remete

    Paixo de Jesus Cristo segundo os evangelistas. Como lembra Genette11, pode haver

    uma relao entre uma obra literria e seu paratexto, no caso o ttulo, geralmente

    menos explcita e mais distante que no conjunto de todo o texto. No entanto, A Paixo

    Segundo G.H. um ttulo bastante evocativo dos textos evanglicos. Da que, por

    corresponder ao que aqui se busca, quanto terminologia adotada, em se tratando da

    comparao das obras, opta-se pela categoria funcional de Genette.

    Atravs da linguagem mstica e espiritual, nota-se o interesse da autora por uma

    temtica evocativa da Bblia e a afinidade com a literatura e cultura hebraicas de

    antanho. O romance est mesmo unido Bblia como um hipertexto desta. Em algum

    momento esta derivao de ordem descritiva e intelectual, no qual um metatexto

    evoca explicitamente seu hipotexto, como se pode ver, por exemplo, quando a

    personagem infringe a interdio hebraica de tocar no imundo, no impuro e comenta

    8 GENETTE, [2003?] d o nome transposio prtica hipertextual em que h uma relao de transformao

    de regime srio. Aqui tambm h uma transformao semntica, como na pardia, mas no seria uma relao parodstica, como denominada por Olga de S (1988), por seu carter srio. 9

    10 NOLASCO, 1997.

    11 GENETTE, 1982, p.2.

  • 12

    que conhece a proibio bblica (PSGH12, pp.46-7 // Levtico, 11); quando fala do man

    do deserto (PSGH, p.67 // xodo, 16) ou se refere ao paraso, ao den (PSGH, p.63 //

    Gnesis, 2), dentre tantssimos outros exemplos. Em outros trechos simplesmente se

    pode perceber que resulta daquele texto anterior, sem se referir claramente a ele, o

    que ser largamente demonstrado ao longo desta dissertao. H, ainda, a prpria

    forma discursiva de inflexo teolgica em todo o solilquio de G.H., com o tom

    confessional de uma penitente.13

    Portanto, o recorte deste trabalho transtextual: trata-se de mostrar como a

    romancista se utiliza de categorias semitas em sua obra; como A Paixo Segundo G.H.

    dialoga com o texto bblico atravs da transposio14 e, at, do travestimento;15 tendo,

    claro!, por pressuposto, uma entrada reflexiva originada na minha experincia

    literria adquirida a partir do curso de Letras, na PUCCAMP; da exegese bblica, do

    curso de Teologia, no CES, da Companhia de Jesus (BH); e, evidentemente, da vida de

    leitora voraz e de professora de literatura ; logo, do meu ponto de vista dessa

    potica especfica.

    Por isso, segundo Genette16, j que alm das aluses textuais (G.H. invoca

    personagens bblicos, evoca passagens bblicas) ou paratextuais (o ttulo, ndice

    contratual) a obra engloba tambm a transposio, o travestimento, pode-se dizer que

    essa escritura faa parte da classe de obras que so, em si mesmas, um arquitexto

    transgenrico.

    12 Neste estudo, para citaes ser utilizada a sigla PSGH no lugar do nome da obra. A edio consultada :

    LISPECTOR, Clarice, A Paixo Segundo G.H., Ed. crtica, Benedito Nunes, coordenador. Braslia, DF: CNPq, 1988. (Coleo arquivos; v. 13). 13

    Categorias funcionais referidas segundo GENETTE, [2003 ?]. 14

    Ibidem: A respeito dessa categoria funcional afirma: Para as transformaes srias, proponho o termo neutro e extensivo da transposio ( p.7 ) de longe a mais rica em operaes tcnicas e em investimentos literrios ( p.9 ). Em oposio pardia, que pode ser pontual, a transposio, ao contrrio, pode se aplicar em obras de vastas dimenses, como Fausto ou Ulisses, cuja amplitude textual e a ambio esttica e/ou ideolgica chegam a mascarar ou apagar seu carter hipertextual, e esta produtividade mesma est ligada diversidade dos procedimentos transformacionais que ela pe em funcionamento (p.9). 15

    Ibidem: O autor prope (re)batizar de travestimento, a transformao estilstica com funo degradante, do tipo Virgile travesti; p.6 Observa que h diferenas entre pardia e travestimento de um lado, e charge e pastiche, do outro. Essa distino repousa evidentemente sobre um critrio funcional, que sempre a oposio entre satrico e no satrico; a primeira pode ser motivada por um critrio puramente formal, que a diferena entre uma transformao semntica (pardia) e uma transposio estilstica (travestimento), mas ela comporta tambm um aspecto funcional, pois inegvel que o travestimento mais satrico, ou mais agressivo, em relao a seu hipotexto que a pardia, que no o toma exatamente como objeto de um tratamento estilstico comprometedor, mas apenas como modelo ou padro para a construo de um novo texto que, uma vez produzido, no lhe diz mais respeito (p.7). Essa a terminologia utilizada ao longo deste trabalho. 16

    Idem, 1982, p. 5.

  • 13

    Quase que se poderia dizer que h uma traduo potica ou literria, aqui (ao menos

    em alguns trechos), tambm denominada recriao, transcriao ou transposio

    criativa. Tal operao consiste em, mantendo-se o perfil sensvel da mensagem,

    transcri-la noutra lngua; ou na mesma, passando, por exemplo, de uma linguagem

    arcaica a uma atual. Para isto, preciso que o signo seja traduzido no s quanto ao

    seu significado, mas quanto sua iconicidade especfica, podendo se dar, em alguns

    casos, uma adaptao, interpretao ou at exegese da obra literria. Obviamente,

    para fazer uma traduo assim, o tradutor tem que ser criativo e dominar elementos

    da criao potica, o que, certamente, no falta Clarice Lispector.

    Historicamente a traduo remonta Hermenutica, em que se intentava interpretar a

    vontade dos deuses; depois, aos textos sagrados, transpondo-os de uma lngua e

    cultura a outra (como o cdigo de Hamurab, transcriado na Tor judaica); depois,

    ainda, os prprios hebreus na primeira dispora, em Alexandria, traduziram do

    hebraico/ aramaico grande parte do Antigo Testamento para o grego. Hoje comum

    encontrar tradues de textos antigos em lnguas vernculas. D-se tambm

    comumente a apropriao de categorias, temas e mesmo trechos tomados de textos

    sagrados, muitas vezes culturalmente assimilados, em poticas modernas e ps-

    modernas, atravs de transposies criativas.

    No seria este o caso dessa inquietante obra de Clarice Lispector, objeto desta

    dissertao? Ao longo de A Paixo Segundo G.H., a autora substitui o discurso bblico

    por outro, remetendo o leitor ao texto de partida seja atravs de analogias, como a

    que se d entre a paixo humana e a paixo de Cristo, seja atravs de travestimentos,

    como naqueles que desconstri a orao Ave Maria, originariamente feita atravs de

    versculos bblicos, seja ainda pela linguagem, pela categoria semita da passagem

    que se d em um deserto , ou at pela experincia da protagonista que ascende ao

    misticismo atravs da descida s profundezas do seu inconsciente.

    Obviamente, no temos em A Paixo Segundo G.H. um exemplo de traduo da

    Bblia, o livro, ou melhor, a coleo de livros, como o prprio nome diz (j que se

    constitui de 73 livros) mais traduzida do mundo; no obstante, est claro que nesse

    romance a autora usa a Bblia transtextualmente, com muita liberdade e criatividade,

  • 14

    como se faz necessrio em se tratando de uma criao literria que toca, de perto, a

    traduo potica. Porm , certamente, em todos os sentidos, plena travessia...17

    A interlocuo entre as obras (Bblia Sagrada & A Paixo Segundo G.H.), portanto,

    parte da transposio de categorias de uma para a outra e at da transcriao de ritos

    cristos, como o caso da prpria Eucaristia. Isso se d quase sempre atravs da

    linguagem repetitiva, tipicamente bblica.

    Yudith Rosenbaum observa acerca do contexto em que aparece a primeira publicao

    de Clarice que

    Clarice mostrava que o mundo da palavra uma possibilidade infinita de

    aventura, e que antes de ser coisa narrada a narrativa forma que narra. Ao

    destacar a palavra como fora demirgica de um mundo misterioso, Clarice

    convoca um olhar crtico atento aos meandros mais sutis de um pensamento que

    vibra intensamente na linguagem. A potncia demolidora da palavra em relao

    a um universo que com ela dialetiza pe em questo o mal como fora

    tensionante desse mesmo universo.18

    Ora, desde a primeira pgina da Bblia vemos a fora da palavra que , a um s

    tempo, palavra e ao. Deus disse: Haja luz e houve luz (Gn 1,3). Portanto, o que

    Clarice inaugura com Perto do Corao Selvagem enquanto literatura brasileira

    tambm uma forma de continuidade com a tradio bblica, cuja relao palavra que

    corresponda ao se d continuamente, como marca de converso, de cura, de

    transformao, enfim. No contexto bblico, a escuta da palavra essencial. Para

    Kanaan tambm, Clarice

    reivindicar em relao ao seu texto, no uma leitura pura e simples, mas uma

    escuta, querendo marcar com isso um efeito particular, o da transformao

    gerada pela palavra, a qual se concretiza no apenas na escrita, mas sobretudo

    na fala, ou seja, na palavra dita e escutada. Num e noutro contextos, as palavras

    mantm muito um sentido de ao; a palavra faz, realiza, cria. Da a importncia

    do outro, que possa escutar essa palavra, testemunh-la, viv-la e dar provas de

    sua ao.19

    17 Etimologicamente o termo traduo remonta travessia.

    18 ROSENBAUM, 1999, p. 19.

    19 KANAAN, 2003, p. 23.

  • 15

    Esse autor aponta algumas das caractersticas de Clarice que podem remeter s

    tradies judaicas: a insistncia na temtica das origens, dos rituais de passagem, da

    busca, dos desencontros, da revelao de uma verdade, de uma espera constante, do

    destino. De fato, tudo isso facilmente comprovvel em seus escritos e haver forte

    incidncia de algumas dessas caractersticas em A Paixo Segundo G.H. Segundo ele,

    pouco se tem enfatizado as marcas crists na obra de Clarice, como uma espcie de

    receio de contrariar sua origem reconhecidamente judaica. Apontam-se certas

    referncias a Cristo, a cenas que lembram a tradio crist, mas no se aprofunda

    essa investigao20. Como se enfatizar essas marcas significasse atribuir a Clarice

    uma religiosidade ou uma origem crist. No entanto, o fato que

    Clarice faz referncias tanto tradio judaica como crist em sua obra. No

    privilegia uma em relao outra. Serve-se das imagens que uma e outra

    podem fornecer no sentido de captar a realidade que tanto luta por descrever,

    expressar em palavras. Ela sempre perseguiu o indizvel; o que haveria de mais

    indizvel do que a experincia mstica? Sempre buscou a palavra como forma de

    expresso; onde a palavra alcana sua maior expresso seno na tradio bblica

    judaico-crist? S para lembrar uma clebre frase que abre o Evangelho segundo

    So Joo: No princpio era o Verbo... Pois justamente o verbo que Clarice

    persegue como forma de acercar-se do Verbo, origem de tudo...21

    E Olga Borelli, em A difcil definio, menciona que ela sempre vivia num atualismo

    mstico. Deus era a sua mais ntima possibilidade.22 Olga esteve muito prxima a

    Clarice em seus ltimos anos, foi sua secretria, depois de Clarice ter tido a mo

    queimada em um incndio em sua casa. Inclusive esteve com ela, quando da sua

    morte, lhe dando a mo23. Pelo conhecimento que dela tive notei que sua ao na

    vida sempre correspondia a uma busca. Em suas conversas sempre surgia o

    questionamento do sentido da vida, Deus, morte, matria, esprito.24

    Portanto, a partir de tudo o que j se disse, parece claro que o referencial das

    tradies bblicas judaica e crist permeia a obra de Clarice Lispector e que a

    metodologia aqui utilizada ser traar um paralelo entre alguns temas e procedimentos

    20 Ibidem, p. 23.

    21Ibidem, p. 21. 22

    BORELLI, 1988, p. XXIII. 23

    G.H. pede ao leitor que lhe d a mo para que ela possa suportar o relato. Olga, que esteve com Clarice em seus ltimos instantes, testemunha que a escritora tambm lhe pediu a mo para suportar a travessia final. 24

    Ibidem, p. XXIII.

  • 16

    bblicos a misso; a viso (proftica); o deserto, como lugar de passagem,

    encontro, transformao; a epifania (estado de graa); o pecado; a comunho; a

    paixo e a obra em questo, partindo das contradies da escrita de Clarice,

    culminando na paixo de G.H. Isso se far atravs da anlise detalhada da estrutura

    circular de A Paixo Segundo G.H., da linguagem utilizada, da sondagem introspectiva

    que chega s vias da experincia mstica, tendo por pressuposto bsico a Literatura

    Bblica.

    Em um primeiro captulo, os temas e procedimentos bblicos acima citados, sero

    tratados enquanto demonstrao da utilizao da Literatura Bblica pela autora

    (privilegiando a matriz potica), j que a Bblia uma literatura fundamental e

    fundante da literatura do Ocidente e acabou por tornar-se um verdadeiro cdigo25 do

    ler e do escrever de todos os povos de razes judaico-crists.

    No segundo captulo, os mesmos temas sero desdobrados na perspectiva mstica da

    paixo, na qual se privilegiar a experincia dos opostos vivida por G.H. Ser & No-ser

    (identidade e misso). Imanncia & Transcendncia. Paixo (paradoxal em si).

    Utiliza-se, nesse intento, como referencial terico-crtico, tanto obras de carter

    literrio quanto de exegese bblica. Todas as obras da autora assim como todos os

    livros da Bblia26 so, de alguma forma, passveis de serem citados nesse cotejamento.

    Quanto terminologia adotada, como j se disse, em se tratando da comparao das

    obras, opta-se pela categoria funcional de Genette.

    Captulo I

    25 A expresso de W. BLAKE. cf. p. 19 desta dissertao.

    26 Para o leitor no habituado s citaes dos livros bblicos, assim como para as abreviaturas das obras de

    Clarice Lispector, h um anexo s pginas 164-8, desta dissertao.

  • 17

    Bblia: grande cdigo

    Ah, mas ao mesmo tempo como posso desejar que meu corao veja? se meu

    corpo to fraco que no posso encarar o sol sem que meus olhos fisicamente chorem como

    poderia eu impedir que meu corao resplandecesse em

    lgrimas fisicamente orgnicas se em nudez eu sentisse a identidade: o Deus?

    Meu corao que se cobriu com mil mantos.

    PSGH, 65

    A Paixo Segundo G.H escrita como transtextualidade bblica. No parece incomum

    que uma brasileira de origem judaica tea sua escritura a partir do dado literrio-

    religioso. Como afirma Guinsburg27 esse um povo que j se distinguia por tender a

    fazer da religio o principal centro de sua vivncia coletiva desde o sculo II antes de

    Cristo, e a religio segue sendo o principal eixo do tradicionalismo judaico. Ora, a

    forma de entretecer sua escritura demonstra uma faceta da afinidade ontolgica que

    Clarice Lispector tem com a cultura judaica, na perspectiva bblica: [...] eu estava

    nadando lenta no meu mais antigo caldo de cultura, o suor era planctum e pneuma e

    pablum vitae, eu estava sendo, eu estava sendo (PSGH, 106).

    como diz Borges: Parece obvio, para los judos, que las palabras tienen poder28 e,

    noutro momento, afirmando sobre si prprio: [...] esas pginas no me pueden salvar,

    quiz porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la

    tradicin.29 da tradio comum em nossa memria cultural que a autora lana

    mo na construo de sua escritura.

    J segundo Haroldo de Campos30, retomando W. Blake, a Bblia o grande cdigo do

    modo de ler moderno (e, claro!, por conseguinte, de escrever. Clarice Lispector que o

    27 Citado por CAMPOS, 1991, p. 239.

    28 BORGES, 2001, p.102.

    29 Idem, 2000, p.168.

    30 CAMPOS, 1991, p.18.

  • 18

    diga). Na perspectiva cultural judaico-crist em que vivemos imersos, isso

    extremamente coerente.

    Esta leitura forosa (e foradamente) sincrnico-retrospectiva , ademais, uma

    das marcas inafastveis do modo de ler moderno, pelo qual o bablico Borges,

    como frisa E.R. Monegal em Uma Potica da Leitura, no deixa de ser um dos

    grandes responsveis. Leitura como produo simbitica de novos textos, como

    intertextualidade e palimpsesto. Sobretudo, no caso, se tivermos presente a

    hiptese do poeta visionrio William Blake, segundo a qual a Bblia o

    Grande Cdigo da arte (da literatura) ocidental, hiptese endossada e

    elaborada criticamente por Northrop Frye. Enquanto cdigo, portanto seria

    lcito acrescentar , constantemente suscetvel de recodificao e

    reinterpretao pelos operadores literrios situados no presente de criao.

    (Grifo meu).

    Suscetvel, tambm, como aqui se pode verificar, de diversos nveis de transposies.

    A prpria Clarice Lispector31 afirmava, referindo-se a sua escrita: desde Moiss se

    sabe que a palavra divina. E sua narradora, que se esconde sob as iniciais G.H.,

    experimenta isso, porque precisa contar o que viu. Em verdade, bem que se poderia

    afirmar sobre A Paixo Segundo G.H. o mesmo que H. Meschonnic diz de Qohlet32,

    em Campos: Este livro construdo por suas obsesses. Exemplos, provrbios, tudo

    ritmado pelo movimento de ressaca, pela repetio dos termos, cuja visada no o

    pessimismo, mas a lucidez, no o abstrato, mas o concreto.

    Muitos diziam: Ele tem um demnio! Est delirando! Por que o escutais? 33

    Tema constante na obra de Clarice Lispector, aqui tambm, em A Paixo Segundo

    G.H., a autoconscincia fonte de angstia e parte de um fato aparentemente

    corriqueiro: surpresas sucessivas susto, medo desencadeiam a experincia de

    G.H. quando se prepara para limpar o quarto da empregada que se despedira e o

    encontra em uma ordem calma e vazia, um aposento todo limpo e vibrante como

    31 LISPECTOR, 1977, p. 95.

    32 Colet, narrador do Eclesiastes. CAMPOS, 1991, p. 23.

    33 Jo 10,20. (Todos os livros bblicos sero abreviados, conforme se faz usualmente em qualquer citao

    bblica. Cf. ANEXO). No contexto bblico, uma pessoa louca ou epiltica era considerada possessa por um demnio. o caso desta afirmao sobre Jesus Ele tem um demnio! Est delirando! considerado louco devido a seus ensinamentos.

  • 19

    num hospital de loucos onde se retiram os objetos perigosos, em reverberante luz:

    um quarto-minarete (PSGH, 27); e v um mural a carvo com um homem, uma

    mulher e um co nus. E antes de entender meu corao embranqueceu [...] (PSGH,

    31), novo susto ao se defrontar com uma barata saindo do guarda-roupa: o grito

    ficara me batendo no peito (PSGH, 32). Esse passa a ser o instante de aquisio de

    conscincia da prpria existncia, e, assim, assume sua condio humana de intensa

    solido. Opta, ento, por prosseguir seu caminho que, da mesma forma como comea,

    termina, ou melhor, continua, numa circularidade marcada por seis travesses no

    incio e no fim da narrativa. Sinal de incompletude, j que o sete, para os hebreus,

    simboliza a totalidade humana e mesmo a perfeio divina?

    O pressuposto para esse questionamento o uso atento, consciente, que Clarice faz da

    numerologia; o que tambm nos transporta cabala34 hebraica. O nmero sete

    particularmente incisivo em gua Viva35; j em A Hora da Estrela, seu stimo

    romance, o Autor nos diz: A histria determino com falso livre arbtrio vai ter

    uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, claro (HE, 17).

    Neste contexto, no se pode deixar de sublinhar tambm a repetio do termo

    esprito no excerto abaixo.

    Poderia contar todos os fatos, mas do que sentira no poderia falar: h mais

    sentimentos que palavras. Ao que se sente no h modo de dizer. Pode-se

    misteriosamente aludi-los.

    Repetindo muito uma palavra ela perde o significado e vira coisa oca e

    retumbante e ganha o prprio e enigmtico corpo duro.

    Esprito esprito esprito esprito esprito esprito esprito36. Afinal que esprito?

    o que sinto dentro de no-mim?

    34 Ainda que no seja o assunto desta dissertao, no h como no mencionar de passagem a cabala em que

    ngela Pralini diz ter entrado. Seria interessante que se fizesse um estudo pormenorizado sobre numerologia nas obras de Clarice. Sete flegos de gato. O nmero sete acompanhava-a, era o seu segredo, a sua fora. [...] as sete letras de Pralini davam-lhe fora. As seis letras de ngela tornavam-na annima (OEN, 38,42, grifos meus). Poder-se-ia pressupor, assim, que os seis travesses que limitam a narrativa de G.H. tenham a mesma funo de suas iniciais, pois: torn-la annima? Ou tambm reforariam, junto ao anonimato das iniciais, que a personagem a mulher de todas as mulheres, cada ser humano, cada um do Gnero Humano? 35

    Todas as obras de Clarice Lispector, assim como os livros bblicos, esto abreviadas nas citaes. Se necessrio, consultar as abreviaes ANEXO. 36Para NUNES (1988, 137-8), a romancista, pela repetio, vai desgastando a palavra, desescrevendo o texto, conseguindo um efeito mgico de refluxo da linguagem. Ora, isso que faz com que se alcance o silncio, o indizvel segundo a prpria Clarice.

  • 20

    Mais. uma palavra morfologicamente faiscante e audaciosa, como os vos de

    pssaros. Esprito: e levantou vo.

    s vezes a palavra repetida torna-se o bagao seco de si mesma e no refulge

    mais nem como som. (EPR, 77)37

    No Cristianismo, o Esprito de Deus simbolizado por um pssaro, uma pomba, e sete

    so os seus dons. Impossvel no fazer analogia dessa aproximao potica, fluda,

    que Clarice faz entre esprito e pssaro, e o desejo de elevao a Deus prprio da

    espiritualidade judaico-crist. Mesmo que no excerto ela queira negar isso pelo

    desgaste provocado pela repetio.

    E para construir o itinerrio interior de G.H. a ficcionista tambm faz uso de algumas

    categorias bblicas atravs de uma linguagem contraditria38, repetitiva. O que

    sustenta a experincia de perda/busca da identidade pessoal da personagem. H uma

    pedra/osso no meio do caminho. Poder-se-ia dizer, como Miller, essa repetio

    insistente tende, em seguida, a se repetir no aparelho psquico39, o que justificaria,

    aqui, portanto, abordar essa temtica na perspectiva da psicanlise, partindo das

    interdies, vises, culpas experimentadas pela protagonista:

    ... a viso de uma carne infinita a viso dos loucos, mas se eu cortar a carne

    em pedaos e distribui-los pelos dias e pelas fomes [...] ser de novo a vida

    humanizada (PSGH, 11. Grifo meu.)

    Eu vi. Sei que vi porque no dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi

    porque no entendo. Sei que vi porque para nada serve o que vi. Escuta, vou

    ter que falar porque no sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: no quero o

    que vi. O que vi arrebenta a minha vida diria. Desculpa eu te dar isso, eu bem

    queria ter visto coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha intil viso,

    e de meu pecado intil (PSGH, 13. Grifos meus).

    37 BORELLI, 1981, p.77. Trata-se de Esboo para um possvel retrato. Essa obra tambm est abreviada por

    se tratar de uma coletnea de fragmentos de textos da prpria Clarice. 38

    A linguagem contraditria em PSGH est analisada s pginas 86 90 desta dissertao. 39

    MILLER. 1998, p.28.

  • 21

    ...viver a vida em vez de viver a prpria vida proibido (PSGH, 92. Grifos

    meus.)

    evidente que muitos outros exemplos poderiam ser tomados, no romance, para

    demonstrar o que acima se disse. No obstante, a necessidade de se fazer um recorte

    faz com que se eleja por objeto de estudo, aqui, no a psicanlise, ainda que seja um

    campo privilegiado para se ler Clarice, mas a interlocuo desse romance com a Bblia,

    privilegiando, neste contexto, a perspectiva potica.

    Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me vi 40

    A narrativa se constri como numa viso, tal qual se pode ler a partir das experincias

    profticas no Antigo Testamento, e do Apocalipse, no Novo Testamento, com breves

    intervalos, como a seguir, em que a temtica remonta ao Pentateuco41 (Tor):

    EU FIZERA o ato proibido de tocar no que imundo.

    E to imunda estava eu, naquele meu sbito conhecimento indireto de mim, que

    abri a boca para pedir socorro. Eles dizem tudo, a Bblia, eles dizem tudo

    mas se eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamaro de

    enlouquecida. Pessoas iguais a mim haviam dito, no entanto entend-las seria a

    minha derrocada. [...] (PSGH, 47. Grifo meu.)

    H um liame entre a profecia e a loucura? Talvez se pudesse estabelecer a linha

    divisria pelo fato do profeta falar em nome de Deus e suas profecias se realizarem.

    Tendo que selecionar alguns trechos do romance que demonstrem o aspecto

    visionrio, imagem potica e proftica, esbarra-se na dificuldade de no repetir grande

    parte da obra, j que a prpria protagonista afirma: No, em tudo isso eu no

    estivera enlouquecida ou fora de mim. Tratava-se apenas de uma meditao visual.

    (PSGH, 73. Grifo meu). Trata-se da viso que tivera ao meio dia...

    40 Ap 1,12.

    41 No excerto a narradora se refere aos livros bblicos Levtico e Deuteronmio, com citao explcita.

    frente essa interdio ser retomada.

  • 22

    Estou mais cega do que antes. Vi, vi sim. Vi, e me assustei com a verdade

    bruta... (PSGH, 15)

    Como direi agora que j ento eu comeara a ver o que s seria evidente

    depois? sem saber, eu j estava na ante-sala do quarto. J comeava a ver, e

    no sabia; vi desde que nasci e no sabia, no sabia.

    Eu via o que aquilo dizia: aquilo no dizia nada.

    Eu estava vendo o que s teria sentido mais tarde. (PSGH, 24)

    No desmoronamento, toneladas caram sobre toneladas. E quando eu, G.H. at

    nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava no sobre escombros

    pois at os escombros j haviam sido deglutidos pelas areias estava numa

    plancie tranqila, quilmetros e quilmetros abaixo do que fora uma grande

    cidade. As coisas haviam voltado a ser o que eram. [...] comeo dos tempos.

    (PSGH, 45)

    Enfim, um trecho de um captulo42 da obra, importante nesse aspecto, que parte da

    viso real do Rio de Janeiro desde a perspectiva da janela daquele quarto de

    empregada, e se amplia, virtualmente, por paisagens bblicas/ tempo bblico:

    Eu procurava uma amplido.

    Daquele quarto escavado na rocha de um edifcio, da janela do meu minarete,

    eu vi a perder-se de vista a enorme extenso de telhados e telhados

    tranqilamente escaldando ao sol. Os edifcios de apartamentos como aldeias

    acocoradas. Em tamanho superava a Espanha.

    Alm das gargantas rochosas, entre os cimentos dos edifcios, vi a favela sobre o

    morro e vi uma cabra lentamente subindo pelo morro. Mais alm estendiam-se

    os planaltos da sia Menor. Dali eu contemplava o imprio do presente. Aquele

    era o estreito de Dardanelos. Mais alm as escabrosas cristas. Tua majestosa

    monotonia. Ao sol a tua largueza imperial.

    E mais alm, j o comeo das areias. O deserto nu e ardente. Quando casse a

    escurido, o frio consumiria o deserto, e nele se tremeria como nas noites do

    42 A denominao captulo ser usada para distinguir as diferentes partes da obra, trinta e trs fragmentos

    ligados uns aos outros por alguma frase repetida, conforme se ver adiante, no entanto esses fragmentos no possuem ttulos nem so numerados.

  • 23

    deserto. Mais ao longe, o lago salgado e azul cintilava. Para aquele lado, ento

    devia ser a regio dos grandes lagos salgados.

    Sob as ondas trmulas do mormao, a monotonia. Atravs das outras janelas

    dos apartamentos e nos terraos de cimento, eu via um vaivm de sombras e

    pessoas, como nos primeiros mercados assrios. Estes lutavam pela posse da

    sia Menor.

    Eu havia desencavado talvez o futuro ou chegara a antigas profundidades to

    longinquamente vindouras que minhas mos que as haviam desencavado no

    poderiam suportar. Ali estava eu de p, como uma criana vestida de frade,

    criana sonolenta. Mas criana inquisidora. Do alto deste edifcio, o presente

    contempla o presente. O mesmo que no segundo milnio antes de Cristo. [...]

    E porque eu mesma estava to certa de que terminaria morrendo de inanio

    sob a pedra desabada que me prendia pelos membros ento vi como quem

    nunca vai contar. Vi, com a falta de compromisso de quem no vai contar nem a

    si mesmo. Via, como quem jamais precisar entender o que viu. [...] (PSGH, 69-

    70)

    Muitas so as referncias bblicas espao-temporais presentes no excerto acima, ainda

    que os acontecimentos reais estejam claramente situados num quarto de empregada

    de uma cobertura, no dcimo terceiro andar de um edifcio do Rio, e se dem durante

    algumas horas (da manh e tarde) do dia anterior narrativa. Entretanto, ela tem

    essa viso apocalptica da janela do [seu] minarete por volta do meio-dia, e, o qu

    v?

    Aldeias acocoradas, gargantas rochosas, cabras pelos morros, planaltos da sia

    Menor, deserto, lago salgado e azul, mercadores assrios... Num tempo to

    presente quanto no segundo milnio antes de Cristo tempo em que comea a

    formao do povo hebreu, j que por volta de 1850 a.C. Abrao chega a Cana (Gn

    12) quantas e quantas aluses s civilizaes (bblicas) antigas... Mesopotmia,

    Egito (reis, esfinges e lees).

    E a todo instante a narradora se expressa em termos apocalpticos: olhei ento a

    barata. E vi: era um bicho sem beleza para as outras espcies. E ao v-lo, eis que o

    antigo medo pequeno voltou s por um instante (grifos meus). Vai e volta

  • 24

    percorrendo, em sua viso infinita, cenrios bblicos: Olhando-a, eu via a vastido do

    deserto da Lbia, nas proximidades de Elschele. [...] eu j era capaz de ver ao longe

    Damasco, a cidade mais velha da terra (PSGH, 73). Vejo uma noite na Galilia. A

    noite na Galilia como se no escuro o tamanho do deserto andasse (PSGH, 74). E

    migra, freqentemente, do deserto ao dilvio, de um a outro oposto: E ento vai

    acontecer numa rocha nua e seca do deserto da Lbia , vai acontecer o amor de

    duas baratas.[...] Sobre a rocha, cujo dilvio43 h milnios j secou, duas baratas

    secas(PSGH, 74).

    Assim, com metforas apocalpticas se sucedendo: terremoto: no desmoronamento,

    toneladas caam sobre toneladas (PSGH, 45) e dilvio: e depois, como aps um

    dilvio, sobrenadavam um armrio, uma pessoa, uma janela solta, trs maletas. E isso

    me parecia o inferno, essa destruio de camadas e camadas arqueolgicas humanas

    (PSGH, 46), G.H. vai perfazendo seu itinerrio como quem cai em um abismo; at que

    ela, que atinge o atonal, o neutro, entende: botando na boca a massa da barata, eu

    no estava me despojando como os santos se despojam, mas estava de novo

    querendo o acrscimo (PSGH, 109).

    Tal qual acontece no relato de G. H., nas narrativas bblicas comum que vises

    profticas partam do cotidiano e sejam por ele metaforizadas. Jeremias (1,13-14) v

    uma panela fervendo, smbolo do que se concretizar no captulo 4, versculos 5-22,

    seguido de nova viso (Jer 4, 23-31), em que vislumbrar a destruio do pas.

    Teu nome como leo escorrendo 44

    Ora, a viso aqui entendida como imagem potica est entretecida em recursos

    retricos, tais como a repetio e a dissonncia. Alis, Haroldo de Campos45 ao referir-

    se s contribuies de Meschonnic afirma que esse poeta francs julga no-pertinente

    quanto aos textos bblicos a distino convencional entre poesia e prosa, para tanto,

    comenta que o ensasta enfatiza o aspecto ritmopico, rtmico-prosdico, do original

    hebraico, uma pontuao do flego. Segundo opina, a estrutura rtmica j portadora

    de sentido. Isso se d largamente na escritura clariceana como alis j tem sido

    43 Nova aluso s origens: Gn 6-9.

    44 Ct 1,3.

    45 CAMPOS, 1991, p. 26.

  • 25

    apontado pela crtica desde o estranhamento com sua sintaxe inusitada at a

    constatao relativa poeticidade da sua prosa. ainda o mesmo Haroldo de

    Campos46 que, em seu espetacular ensaio introdutrio ao poema sapiencial: Qohlet/

    O-que-sabe, transcriado por ele, nos diz:

    Para enfrentar a dificuldade apontada por N. Frye na traduo bblica o

    contraste no texto entre o tom oracular (autoritrio-repetivo) e o mais imediato

    e familiar (registros partilhados entre a voz de Deus e a voz do homem),

    temos j, em nossa lngua, na prtica literria moderna, um fundo retrico

    preconstitudo, graas a escritores como Guimares Rosa (Grande Serto) e Joo

    Cabral (Autos), como tambm a certo estrato da dico drummondiana.

    Abeberaram-se, todos, na tradio (memria oral do povo) e na inovao

    paralela; na surpresa consentida de efeitos sonoros, lexicais e morfo-

    sintticos, freqentes vezes resgatados por revitalizao ao arcano das falas

    populares; ao mesmo tempo remotos e saborosamente vivos, atualssimos,

    portanto.

    Certamente sem visar preservar o registro da oralidade, mas, com muita propriedade

    esculpindo uma surpresa consentida de efeitos sonoros, lexicais e morfo-sintticos

    no seria o caso de incluirmos Clarice Lispector entre esses inovadores do

    Modernismo? Se no, ao menos que se ressalte que a extrema flexibilidade da forma

    expressiva da literatura bblica (grupos condensos de palavras regidos por variaes

    paralelsticas semntico-sintticas; ritmo de aparncia livre), como o diz B.

    Hrushovski47, transborda em sua obra.

    O grito ficara me batendo dentro do peito (PSGH, 32).

    Nenhum rudo e no entanto eu bem sentia uma ressonncia enftica, que era a

    do silncio roando o silncio (PSGH, 33).

    Mas se souberem, assustam-se, ns que guardamos o grito em segredo

    inviolvel (PSGH, 41).

    Minha tenso de sbito quebrou-se como um rudo que se interrompe.

    E o primeiro verdadeiro silncio comeou a soprar.

    46 CAMPOS, 1991, p. 34-5.

    47 Ibidem, p. 28.

  • 26

    [...] Enfim o corpo, embebido de silncio, se apaziguava (PSGH, 42).

    [...] e meus lbios secos recuaram at os dentes.

    [...] a vida me havia acontecido de dia (PSGH, 51).

    Dentro do mesmo filo de expresses saborosas, vale ressaltar a beleza da frase

    seguinte que, na edio que utilizo, falta a ltima vrgula: Nem mesmo o medo mais,

    nem mesmo o susto mais. Entretanto, noutras edies a expresso aparece sempre

    conforme grafada abaixo, o que modifica por completo o perodo e d-lhe outra carga

    de poeticidade, certamente mais prxima potica de Clarice.

    Nem mesmo o medo mais, nem mesmo o susto, mais (PSGH, 69).

    Sigo com outras expresses ontolgicas de A Paixo Segundo G.H., das muitssimas

    que poderia selecionar, mantendo, ainda, a ordem em que aparecem no texto:

    Os edifcios de apartamentos como aldeias acocoradas (PSGH, 69).

    Pois a barata me olhava com sua carapaa de escaravelho, com seu corpo

    rebentado que todo feito de canos e de antenas e de mole cimento e aquilo

    era inegavelmente uma verdade anterior a nossas palavras... (PSGH, 77).

    De madrugada estarei de p ao lado do ginete mudo, com os primeiros sinos de

    uma Igreja escorrendo pelo regato, com o resto das flautas ainda escorrendo

    dos cabelos (PSGH, 83).

    Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de

    meu amor eterno, e eu no sabia. Eu tinha por ti o tdio que sinto nos feriados.

    O que era? era como a gua escorrendo numa fonte de pedra, e os anos

    demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio dgua correndo, e

    a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado,

    e o silncio no vo dos mosquitos. E o presente disponvel. E minha libertao

    lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que no pede e no precisa

    (PSGH, 100).

    As asas das coisas estavam abertas, ia fazer calor de tarde, j se sentia pelo

    suor fresco daquelas coisas que haviam passado a noite morna, como num

    hospital em que os doentes ainda amanhecem vivos (PSGH, 100).

  • 27

    Passei pelo roer a terra e pelo comer o cho. [...] (PSGH, 100)

    Meu mundo hoje est cru[...] quero a raiz grossa e preta dos astros (PSGH,

    101).

    ... fechei os olhos com a fora de quem tranca os dentes... (PSGH, 105).

    Sua linguagem, rica em recursos expressivos, envolve tanto o plano prosdico quanto

    o nvel da repetio dos sons, aliteraes, paronomsias. E no raro que se depare

    com alguma adjetivao estranha: E estremeci de extremo gozo como se enfim eu

    estivesse atentando grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente

    doce. [...] Eu me embriagava pela primeira vez de um dio to lmpido como de uma

    fonte. (PSGH, 35).

    No entanto, muitssimo mais freqentes so as frases em que o ritmo

    essencialmente musical; nossas mos que so grossas e cheias de palavras (PSGH,

    101), em que h uma explorao ntida do poder sugestivo da consoante /s/. Ou

    eram nervos seccionados que tivessem secado suas extremidades em arame (PSGH,

    29. Grifos meus). Em que, alm da aliterao do som /s/, se tem essa moldura

    original: eram/arame. J em A vida se vingava de mim, e a vingana consistia apenas

    em voltar, nada mais. [...] Os possessos, eles no so possudos pelo que vem, mas

    pelo que volta. s vezes a vida volta (PSGH, 46) temos outros dois sons muito

    queridos nessa obra /v/ e /p/. Bem menos freqentes so os encontros consonantais e

    dgrafos que se interpolam como em: e que se tornou uma criana-semente que no

    se quebra com os dentes (PSGH, 101).

    J o oxmoro construdo em dualidades e antteses, sutura da linguagem e do

    pensamento, como quer SantAnna48, transbordam do texto com frases, s vezes,

    lgica e gramaticalmente catastrficas, porque subvertem o solo lingstico

    tradicional. Por exemplo:

    Era finalmente agora. (PSGH, 53)

    Assim se morre sem se saber para onde. (PSGH, 53)

    Eu quero o que eu te amo. (PSGH, 89)

    48 SANTANNA, 1988, p. 253-5.

  • 28

    De fato, SantAnna nota o acentuado uso de oxmoros na obra. Mais: chega a constatar

    que a prpria histria se constri a partir de uma desconstruo. O romance (ou

    novela) se estrutura a partir da catstrofe. uma obra de linguagem que se efetiva a

    partir da negao da linguagem convencional.[...] O crtico observa que nos trs

    nveis de uma anlise estrutural: narrao, personagens e lingua(gem), ocorre o

    oxmoro.

    Mas note-se, a partir da literatura bblica, que o prprio Cristianismo nasce da f na

    Ressurreio de Cristo, aps sua Paixo. Tal paradoxo: derrota que se faz vitria,

    morte que germina/culmina ressurreio a raiz no s da f crist, como da

    construo mesma de toda a experincia narrada no Novo Testamento.

    Romance-parbola em que o alegrico e o expressionstico se interpenetram49, s

    possvel linguagem manter-se nesse discurso extremo que o paradoxo. O paradoxo

    um metalogismo da mesma forma que as repeties, cuja anlise faremos a seguir.

    atravs dos enunciados paradoxais que Clarice Lispector diferencia poeticamente sua

    prosa e so eles que tentam interpretar a experincia de G.H.: Eu estava vendo o que

    s teria sentido mais tarde quer dizer, s mais tarde teria uma profunda falta de

    sentido.

    A respeito dos opostos que formam oxmoros, dos muitssimos de A Paixo Segundo

    G.H., retomo alguns abaixo:

    Viver no vivvel. (PSGH, 15)

    Minha rouquido de muda j era rouquido. (PSGH, 61)

    No me deixes tomar essa deciso j tomada. (PSGH, 63)

    Medo da minha falta de medo. (PSGH, 64)

    Eu agora era pior do que eu mesma. (PSGH, 83)

    O opaco me reverberava os olhos. (PSGH, 88)

    Eu sempre havia tido uma espcie de amor para o tdio. E um contnuo dio

    dele. (PSGH, 91).

    Se eu tivesse precisado tanto de mim para formar minha vida, eu j teria tido a

    vida. (PSGH, 92)

    Foi sempre a minha vida errada que me anunciou para a certa. (PSGH, 98)

    49 NUNES, 1989, p. 143.

  • 29

    Assim, surgem efeitos poticos tambm da forma surpreendente como novos sentidos

    so agregados s palavras: Trata-se exatamente de agora [...] at as bordas do copo

    verde. O tempo freme como um balo parado. O ar fertilizado e arfante. (PSGH, 53).

    [...] sentada, eu estava consistindo. Sentada, consistindo, eu estava sabendo que se

    no chamasse as coisas de salgadas ou doces, de tristes ou alegres ou dolorosas ou

    mesmo com entretons de maior sutileza [...] (PSGH, 56). Aqui, vale notar que alm

    do inusitado uso do verbo consistir tambm evidente, no excerto, a repetio.

    Esta matriz potica, a repetio, largamente usada nos livros sapienciais bblicos (em

    quase todos os Salmos, no Cntico dos Cnticos, no Eclesiastes, nos Provrbios...) e

    mesmo no Novo Testamento. Exemplo tpico so as bem-aventuranas em Mt 5,3-12 e

    Lc 6,20-23. Transcrevo, abaixo, as maldies, tambm em Lucas, captulo 6:

    [...] ai de vocs, os ricos, porque j tm a sua consolao! Ai de vocs, que

    agora tm fartura, porque vo passar fome! Ai de vocs, que agora riem,

    porque vo ficar aflitos e vo chorar! Ai de vocs, se todos os elogiam,

    porque era assim que antepassados deles tratavam os falsos profetas. (Grifos

    meus).

    E um dos muitos trechos permeados de repeties do romance em estudo:

    Eu vi. Sei que vi porque no dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi

    porque no entendo. Sei que vi porque para nada serve o que vi. (PSGH,

    13. Grifos meus).

    E a luz brilha nas trevas50

    SantAnna51 sublinha que os dois dgitos (a mulher e a barata) tm uma relao de

    complementaridade binria. So a semente de uma srie de desdobramentos, de

    bifurcaes, de dualidades pelas quais caminha toda a narrativa. Ora, essa uma

    forma semita de expresso muitssimo comum na Bblia. Dualidades perpassam os

    evangelhos, por exemplo. Se se tomar somente o primeiro deles, o Evangelho segundo

    50 Jo 1,5.

    51 SANTANNA, 1988, 251.

  • 30

    Mateus, e sem referncias aos textos laterais e paralelos, em uma demonstrao

    parcial, teremos:

    Bem/mal: Mt 7,15-20.

    Entrar/sair: Mt 10,11-14.

    Encoberto/descoberto; trevas/luz; segredo/anncio: Mt 10, 26-27.

    Festa (casamento)/enterro; penitncia/condescendncia: Mt 11,17-19.

    Sbios/simples: Mt 11,25-26.

    Sujeio/suavidade; pesado/leve: Mt 11, 30.

    Boa semente/m semente: Mt 13,24-30 (parbola do joio); 36-43 (explicao da

    parbola).

    Esconder/achar; vender/comprar: Mt 13,44-46 (parbola do tesouro e da prola).

    Puro/impuro: Mt 15, 10-20.

    Filhos/ces (judeus/gentios): Mt 15,26.

    Maior/menor: Mt 18,1-4.

    Chefe/servo; primeiro/ltimo: Mt 20,25-28.

    Dizer/fazer: Mt 21, 28-32 (parbola dos dois filhos).

    Palavra/ao; humilhar/exaltar: Mt 23,1-12 (Hipocrisia e vaidade dos escribas e

    fariseus).

    Salvao/perdio: Mt 25,31-46 (O ltimo julgamento).

    Vigiar/repousar; prontido/fraqueza: Mt 26,36-46.

    Amizade/traio: Mt 26, 47-56.

    bom considerar, dentro do contexto do pensamento tpico do judasmo, que Mateus,

    o publicano, pertencente ao colgio dos doze apstolos, redigiu seu evangelho na

    Palestina, em lngua hebraica (aramaico), ao contrrio dos demais sinticos (segundo e

    terceiro evangelhos) cuja lngua original o grego. Esse dualismo expresso por meio

    de antinomias comum tambm a Joo, autor do quarto evangelho.

    Ainda que j esteja sobejamente exemplificado ser este um modo de pensar comum a

    autores bblicos, outra citao ser transcrita abaixo, retirada do mesmo primeiro

    evangelho. Foi escolhida porque a mesma dualidade aqui presente aparece e,

    inclusive, perpassa, indiretamente, o romance em questo.

    Perder/achar: Mt 10,39:

  • 31

    Aquele que acha a sua vida, vai perd-la, mas quem perde a sua vida por causa

    de mim, vai ach-la.

    Importa ainda notar o hebrasmo do texto evanglico que para ressaltar a necessidade

    do desapego incondicional fala de dio em oposio entrega generosa, amor total.

    Em Lucas, temos:

    Se algum vem a mim e no odeia seu prprio pai e me, mulher, filhos,

    irmos, irms e at a prpria vida, no pode ser meu discpulo (Lc 14, 26).

    Tambm A Paixo Segundo G.H. alicerada sobre oposies que se constrem a

    partir das decises que so tomadas passo a passo pela protagonista. Considerando,

    para citar como exemplo, somente o primeiro captulo do texto que na verdade j

    trata da temtica que ser abordada em toda a obra52 temos:

    Coragem/covardia: pp. 9-10:

    Nesta minha covardia a covardia o que de mais novo j me aconteceu, a

    minha maior aventura, essa minha covardia um campo to amplo que s a

    coragem me leva a aceit-la na minha nova covardia, que como acordar de

    manh na casa de um estrangeiro, no sei se terei coragem de simplesmente ir.

    Perder-se/encontrar-se; ganhar/perder53: pp. 10. 12. 15:

    difcil perder-se. to difcil que provavelmente arrumarei depressa um modo

    de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. At

    agora achar-me era j ter uma idia de pessoa e nela me engastar [...].

    No entanto na infncia as descobertas tero sido como num laboratrio onde se

    acha o que se achar? [...] Mas como adulto terei a coragem infantil de me

    perder? perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for

    achando.

    52 Tambm esse um procedimento recorrente nos livros bblicos. O Prlogo de Joo (Jo 1, 1-18), por

    exemplo, j trata de todos os temas desenvolvidos em seu Evangelho. 53

    A esse propsito, considerar o logion paradoxal sobre as etapas presente e futuro da vida humana: Jo 12, 25: Quem ama sua vida a perde/ e quem odeia sua vida neste mundo/ guarda-la- para a vida eterna.

  • 32

    Todo momento de achar um perderse a si prprio.

    Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei.

    Priso/liberdade: pp.10-11:

    A idia que eu fazia de pessoa vinha da minha terceira perna, daquela que me

    plantava no cho. [...] As duas pernas que andam, sem mais a terceira que

    prende. E eu quero ser presa. No sei o que fazer da aterradora liberdade que

    pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? ou havia, e

    havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?

    Entrada/sada54: p. 10:

    [...]por segurana chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de

    sada. Por que no tenho coragem de simplesmente achar um meio de entrada?

    Oh, sei que entrei sim. Mas assustei-me porque no sei para onde d essa

    entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o

    qu.

    Forma/caos forma/nada: p. 11:

    Mas que tambm no sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma

    forma, nada existe. [...] Uma forma contorna o caos, uma forma d construo

    substncia amorfa[...].

    Devo ficar com a viso toda [...] ou dou uma forma ao nada.

    Vida/morte: p. 12:

    [...] por um timo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez

    manusear o proibido tecido da vida. proibido dizer o nome da vida. E eu quase

    o disse. Quase no me pude desembaraar de seu tecido, o que seria a

    destruio dentro de mim de minha poca.

    Mt 16, 25: Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perd-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontr-la. Tema presente tambm em Mc e Lc, reiteradamente.

  • 33

    Compreender/no compreender: p. 12:

    Toda compreenso sbita finalmente a revelao de uma aguda

    incompreenso. [...] Talvez me tenha acontecido uma compreenso to total

    quanto uma ignorncia. [...] Qualquer entender meu nunca estar altura dessa

    compreenso [...].

    Encontro/desencontro: p.13:

    [...] eu que sempre pensara que encontrar seria frtil e mido como vales

    fluviais. No contava que fosse esse grande desencontro.

    Carncia/amor: p. 14:

    Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive veio no entanto me deixar

    carente como uma criana que anda sozinha pela terra. To carente que s o

    amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular[...].

    De Perto do Corao Selvagem a Um Sopro de Vida, encontra-se esse aspecto

    relacional dos contrrios em que se fundamenta A Paixo Segundo G.H. Alm disso, se

    se pode observar em Clarice a sacralizao da palavra a vastido dentro do quarto

    pequeno aumentara, o mudo oratrio alargava-o em vibrao at a rachadura do teto.

    O oratrio no era prece: no pedia nada. As paixes em forma de oratrio (PSGH,

    54) h, ainda, que se salientar que a linguagem de contedo religioso e mstico

    mantm uma estrutura hiertica, como j lembrara SantAnna, recordando sobretudo a

    sua conotao com aquilo que de hiertico tem o hieroglifo enquanto escrita sagrada

    dos sacerdotes, em oposio escrita demtica, mais popular e profana. De fato,

    hieroglifo uma palavra repetidas vezes utilizada no texto.

    Essa uma linguagem-sujeito, divinizada pelo ritual que desenvolve. No uma

    linguagem-objeto, puro contedo transparecendo banalidades. Nisto, uma

    linguagem-ritual. Da o seu carter circular, fechado e a composio em tom de

    oratrio termo que reaparece aqui e ali dando ainda mais solenidade

    epifania. Como um oratrio com seus contrapontos e fugas, com diversos temas

    se desenvolvendo num rodzio ascensional e espiralado, lembra as volutas das

    54 NUNES, na edio crtica, 1988, observa em nota: Entrada/sada so topoi msticos. Os sentimentos que

    prevalecem so medo e susto.

  • 34

    catedrais barrocas em direo ao infinito. Catedrais que renem o grotesco e o

    sublime numa s dialtica e oxmoro. E, no entanto, tudo decorre de algo

    minsculo que se passa num quarto de um apartamento entre uma mulher e

    uma barata. 55

    No princpio era o Verbo56

    E, dentro do vis proposto por Lus Costa Lima de que esse romance seria uma via

    mstica ao revs57, mais ainda, considerando como veremos adiante, na abordagem

    de Claire Varin a paixo de G.H., representante do Gnero Humano, em oposio

    vivida pelo Filho de Deus, transcrevo, abaixo, um trecho da orao de Jesus logo antes

    de sua paixo, segundo Joo (17,11d-12c.21bc.22-23.).

    Pai santo,

    guarda-os em teu nome

    que me deste,

    para que sejam um como ns.

    Quando eu estava com eles,

    eu os guardava em teu nome

    que me deste;

    [...]

    Como tu, Pai, ests em mim e eu em ti,

    que eles estejam em ns.

    [...]

    Eu lhes dei a glria que me deste

    para que sejam um, como ns somos um:

    Eu neles e tu em mim,

    para que sejam perfeitos na unidade

    e para que o mundo reconhea que me enviaste

    e os amaste como amaste a mim.

    No foram destacados os termos repetidos porque isso seria grifar quase todo o texto,

    dificultando a sua leitura. O mesmo vale para o texto a seguir, um dos muitos do

    55 SANTANNA, 1988, 250

    56 Jo 1,1.

    57 LIMA, 1969, pp. 98-124.

  • 35

    romance em estudo que, como se ver, alm do uso repetido de vocbulos, tambm

    se mostra como o avesso do texto anterior:

    Meu Deus, d-me o que fizeste. Ou j me deste? e sou eu que no posso dar o

    passo que me dar o que j fizeste? O que fizeste sou eu? e no consigo dar o

    passo para mim, mim que s Coisa e Tu. D-me o que s em mim. D-me o que

    s nos outros, Tu s o ele, eu sei, eu sei porque quando toco eu vejo o ele. Mas

    o ele, o homem, cuida do que lhe deste e envolve-se num invlucro feito

    especialmente para eu tocar e ver. E eu quero mais do que o invlucro que

    tambm amo. Eu quero o que eu Te amo. (PSGH, 89).

    A repetio, aliada transposio de certas expresses bblicas, constitui, no texto, a

    raiz principal de onde emana a seiva retrica. Imitao que me deu a chance de usar

    um tom montono que me satisfaz muito: a repetio me agradvel, e repetio

    acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena enjoada diz

    alguma coisa, declara Clarice58. O emprego reiterado dos mesmos termos e das

    mesmas frases, apresenta-se sob determinadas formas caractersticas dotadas de

    valor rtmico, desempenhando sempre funo expressiva. Na literatura bblica,

    sobejam exemplos desse procedimento to recorrente tambm na obra de Clarice.

    Clssico, nesse sentido, o prlogo de Joo: No princpio era o Verbo [...] tudo foi

    feito por meio dele [...] que retoma tema e termos das primeiras palavras da Bblia:

    No princpio Deus criou [...]. A propsito de A Paixo Segundo G.H., a prpria

    narradora traz essa marca, a cpia, em seu relato, como antes em sua vida de

    escultora: Ah, ser mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma

    reproduo que uma expresso. Cada vez preciso menos me exprimir. Tambm isso

    perdi? No, mesmo quando eu fazia esculturas eu j tentava apenas reproduzir

    (PSGH, 15). G.H. afirma viver entre aspas, citar o mundo. Sua casa uma rplica:

    Tudo aqui se refere na verdade a uma vida que se fosse real no me serviria. O

    que decalca ela, ento? Real, eu no a entenderia, mas gosto da duplicata e a

    entendo. A cpia sempre bonita. [...] sempre pareci preferir a pardia,

    ela me servia[...] decalcar uma vida provavelmente me dava segurana

    exatamente por essa vida no ser minha [...] (PSGH, 21. Grifos meus).

    58 LISPECTOR, em Fundo de Gaveta (saiu na mesma ocasio que PSGH), 1964, p. 293.

  • 36

    que essa escultora amadora pretendia arrumar seu apartamento: Ordenando as

    coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo e, como o Criador que no s com a voz

    mas tambm com argila fez sua criao e descansou no stimo dia, tambm ela

    pretende descansar na stima hora como no stimo dia (PSGH, 23).

    E h a recusa do paraso informe. A escultora necessita da forma: Essa coisa corajosa

    que ser entregar-me, e que como dar a mo mo mal-assombrada do Deus, e

    entrar por essa coisa sem forma que um paraso. Um paraso que no quero! (PSGH

    13).

    E a narradora, que sempre preferiu a pardia, traveste o texto bblico: Entrai pela

    porta estreita, porque larga a porta e espaoso o caminho que conduz perdio. E

    muitos so os que entram por ele. Estreita, porm, a porta e apertado o caminho

    que conduz Vida. E poucos so os que o encontram (Mt 7, 13-14). Na voz da

    personagem: A entrada para este quarto s tinha uma passagem, a estreita: pela

    barata (PSGH, p. 39). A barata o travestimento da figura do Bom Pastor, que o

    caminho para a Vida: Eu sou a porta. Se algum entrar por mim ser salvo; entrar e

    sair e encontrar pastagem (Jo 10, 9).

    Em sua busca da forma narrativa, em seus travestimentos bblicos, a narradora que

    decalca para ter segurana tambm faz aluses ao profeta Isaas quando, ao iniciar

    sua narrao, diz: Soube o que no pude entender, minha boca ficou selada, e s me

    restaram os fragmentos incompreensveis de um ritual (PSGH, 12). Ora, Isaas tem

    uma viso que o deixa cheio de pavor: 6,5: Ai de mim, estou perdido! tal qual o

    sentimento que G.H. descreve sobre si no primeiro captulo da obra, ao rememorar sua

    viso , em seguida, como G.H. que tem a boca selada59, o profeta tem os lbios

    tocados por uma brasa (6,6), assim, purificado, poder proclamar a Palavra de Deus;

    alis como Jeremias (1,9) e mesmo Ezequiel (3,1-3).

    J o profeta Jeremias expressa toda a dor de experimentar-se convocado para a

    misso. Sente a violncia sedutora do Senhor: Jer 15,10-21; 20,7-18: Tu me

    seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir;/ Tu te tornaste forte demais para mim, tu

    59 Ainda que selar se refira a fechar hermeticamente, carrega tambm a conotao de trazer o selo de

    algum. o que ocorre com o profeta, que tendo sua boca tocada pela brasa, passa a falar em nome de Deus. Claro que aqui tambm se poderia seguir na anlise do reverso do texto bblico que Clarice faz. Neste caso,

  • 37

    me dominaste. Por sua vez, G.H., conhecedora da experincia dos chamados, observa

    que quando Deus escolhe algum porque precisa especialmente dele, violenta-o, e ns

    tambm podemos violentar Deus (PSGH, 97). Talvez ressoe aqui tambm o texto de

    Mt 11,12: [...] o Reino dos cus sofre violncia dos que querem entrar e violentos se

    apoderam dele. Que, em G.H., ecoar: Tenho que me violentar para precisar mais

    (PSGH, 97).

    Vale notar ainda a transposio de Mt 5,3: Bem-aventurados os pobres em esprito,

    porque deles o Reino dos Cus, enquanto, em Clarice: A revelao do amor uma

    revelao de carncia bem-aventurados os pobres de esprito porque deles o

    dilacerante reino da vida (PSGH, 97 ); a aluso ao declogo (Ex 20,12): falta (sic),

    por exemplo, pai e me; ainda no tive a coragem de honr-los (PSGH, 103) e a

    citao literal de uma das frases de Jesus (Lc 23,31), a caminho do Calvrio: Ele

    dissera: Se fizeram isto com o ramo verde, o que faro com os secos (PSGH, 84).

    Porm, dentre as transposies mais expressivas, ainda que aparea fragmentada ao

    longo do texto, est a orao Ave Maria. Constituda de duas partes, a primeira

    uma juno de dois versculos bblicos, saudao do anjo Gabriel: Alegra-te (ave),

    [Maria,] cheia de graa, o Senhor est contigo (Lc 1,28) acrescido da exclamao de

    Isabel: Bendita s tu entre as mulheres e bendito o fruto de teu ventre! (Lc 1, 42).

    A segunda parte uma splica dos fiis: Santa Maria, me de Deus, rogai60 por ns

    pecadores agora e na hora de nossa morte. Amm! Como comum aos cristos que

    rezam a Ave Maria dirigirem-se me de Jesus com a expresso minha me,

    tambm ela ser retomada aqui como um travestimento.

    Santa Maria, me de Deus, ofereo-vos a minha vida em troca de no

    ser verdade aquele momento de ontem (PSGH, 50).

    [...] e eu tambm sabia que na hora de minha morte eu tambm no

    seria traduzvel por palavra (PSGH, 51).

    Reza por mim, minha me, pois no transcender um sacrifcio (PSGH,

    54).

    poder-se-ia partir da oposio: G.H. tem a boca fechada (selada, impossibilitada de falar) e Isaas a boca aberta (selada pela brasa para falar em nome de Deus). 60

    Em portugus, em toda a orao usa-se o plural: vs.

  • 38

    O que sai da barata : hoje, bendito o fruto de teu ventre (PSGH,

    55).

    [...] porque, minha me, eu me habituei [...] (PSGH, 55).

    Me: matei uma vida, e no h braos que me recebam agora e na

    hora do nosso deserto, amm. Me, tudo agora tornou-se de ouro duro.

    Interrompi uma coisa organizada, me, e isso pior que matar, isso me fez

    entrar por uma brecha [...] estou com medo de minha rouquido, me.

    A barata de verdade, me.

    Me, eu s fiz querer matar, mas olha o que quebrei: quebrei um

    invlucro! [...]De dentro do invlucro est saindo um corao grosso e branco e

    vivo como pus, me, bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta

    tua minha morte, barata e jia (PSGH 61. Grifos meus).

    Dignos de serem dados como exemplos tambm, neste contexto, so os

    travestimentos relativos ao Reino de Deus. Tomar-se- aqui somente os que se

    referem, claramente, resposta dada a Pilatos por Jesus, em sua paixo: O meu

    reino no deste mundo (Jo 18, 36):

    Ento pela porta da danao eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu

    entendia que meu reino deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do

    inferno em mim (PSGH, 77).

    Porque como se eu estivesse me dando a notcia de que o reino dos

    cus j (PSGH, 95).

    E eu no quero o reino dos cus, eu no o quero, s agento a sua

    promessa. [...] Mas o Deus hoje e seu reino j comeou (PSGH, 95).

    E seu reino, meu amor, tambm deste mundo (PSGH, 95).

    Meu reino deste mundo... e meu reino no era apenas humano.

    Eu sabia. Mas saber disso espalharia a vida-morte, e um filho no meu ventre

    estaria ameaado de ser comido pela prpria vida-morte, e sem que uma

    palavra crist tivesse sentido... Mas que h tantos filhos no ventre que parece

    uma prece (PSGH, 80. Grifos meus).

  • 39

    Essa tcnica discursiva, que percorre todo o livro, vai alm da simples transposio de

    textos bblicos. Chega ao limite, aps o momento ritual da preparao para que se

    coma a barata. Por analogia, associa-se logo o gosto quase nulo da massa branca da

    barata hstia. a prpria narradora quem o diz: Ah, as tentativas de experimentar

    a hstia. (PSGH, 157).

    Olga de S61, comenta essa analogia: Um fenmeno mstico. O cristo assimilado

    pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele Deus, como disse, e como cr o

    cristianismo, transcende o homem. Portanto, pela Eucaristia, manducao da hstia,

    o cristo alado comunho com Deus. Com G.H. d-se o mesmo efeito de

    transformao, s que s avessas. A manducao da barata, prottipo da matria-

    prima do mundo, produz a reduo da personalidade de G.H. ao nvel da pura

    matria viva. Assim G.H. se despersonaliza, se perde como pessoa, para alcanar-se

    como ser e encontrar sua identidade ao nvel do puramente vivo.

    Procuro-o e no o encontro62

    Essa experincia de limites, deseroizao, despersonalizao, parte de uma busca para

    chegar ao nada. S assim se pode conhecer a condio humana; indo ao extremo. Em

    sua anlise do Eclesiastes (Colet) Haroldo de Campos j notara:

    J a exegese rabnica, reportada no KOH63 (Ibn Ezra, Sforno, Metzudas David),

    acentuava que, no experimento salomnico, no havia uma entrega

    indiscriminada ao prazer e ao desvario, mas uma busca, sob o controle da

    sabedoria, para o melhor conhecimento da condio humana. Segundo

    entendo, trata-se efetivamente de um exerccio de lucidez, no meramente

    especulativo, nem simplesmente irnico. Uma experincia de limites, atravs

    da prova do prazer e at da desrazo, muito diferentes da ascese e da

    abstinncia crists. Lembro-me, para dar um exemplo atual, do caso de Walter

    61 S, 1988, p. 217

    62 Ct 5,6. O tema da busca no Cntico dos Cnticos, alis num ambiente de idlio pastoril, lembra Jac e

    Raquel (Gn 29,1-12 ). Essa procura se repete em todo o Cntico: 1,7; 3,1-4; 5,2-8; 6,1 como um refro redacional. 63

    Haroldo de Campos usa essa abreviatura para Eclesiastes. Ele que intitula sua transcriao do texto bblico como Qohlet/ O-que-sabe, em vez do usual Colet, aqui, certamente por se reportar a rabinos de lngua inglesa, abrevia Koheles (KOH).

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    Benjamin, submetendo-se deliberadamente aos efeitos do haxixe, para vivenci-

    los e descrev-los64 (Grifos meus).

    evidente que a experincia de G.H. vivida no quarto-minarete no se d, a princpio,

    como busca para o melhor conhecimento da condio humana, ainda que ela chegue a

    isso65; mas a paixo de narrar o que viveu, a paixo do dia seguinte (segunda paixo)

    sim, nasce de uma procura; alis, assim que ela inicia seu relato:

    estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. [...] (PSGH, 9).

    Comear e terminar! seu romance com seis travesses, construi-lo

    circularmente66, incitam a curiosidade do leitor. Essa circularidade ser ressaltada pelo

    fato de iniciar um captulo sempre com a mesma frase com que termina o anterior.

    Esse procedimento tambm bblico. Trata-se da incluso, isto , repetir a mesma

    idia no princpio e fim de um texto para mostrar que se trata de um conjunto e ainda

    para ajudar a assimilao daquele contedo. Em toda a obra nota-se essas incluses

    na qual uma palavra retomada iniciando a frase seguinte, uma frase retomada

    iniciando o pargrafo seguinte:

    E porque no tenho uma palavra a dizer.

    No tenho uma palavra a dizer. Por que no me calo ento? [...] (PSGH, 14).

    Tais anadiploses so, pois, facilmente observveis no conjunto de toda a obra.

    Sobretudo pelo fato da ltima frase de um captulo ser repetida no comeo do seguinte

    e mesmo, dentro da espiral narrativa, do primeiro captulo ser encadeado ao ltimo

    por seis travesses, numa estrutura nitidamente cclica:

    Pg. 9 Princpio: estou procurando, estou procurando.

    Pg.16 Fim: que um mundo todo vivo tem a fora de um Inferno.

    Pg.17 Princpio: QUE um mundo todo vivo tem a fora de um Inferno.

    64 CAMPOS, 1991, p. 116-7.

    65 No penltimo captulo a narradora analisa seu processo de deseroizao e, pgina 112, conclui qual , em

    sua experincia a CONDIO HUMANA. 66

    Talvez se possa relacionar esse inusitado uso dos travesses ao seguinte trecho de gua Viva: Minha pequena cabea to limitada estala ao pensar em alguma coisa que no comea e no termina porque assim o eterno. [...] Mas a cabea tambm estala ao imaginar o contrrio: alguma coisa que tivesse comeado pois onde comearia? E que terminasse mas o que viria depois de terminar? [...] Mas bem sei o que quero

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    Pg. 22 Fim: S eu saberei se foi a falha necessria.

    Pg.23 Princpio: S EU saberei se foi a falha necessria.

    Pg. 25 Fim: Depois dirigi-me a corredor escuro que se segue rea.

    Pg. 26 Princpio: DEPOIS dirigi-me a corredor escuro que se segue rea.

    Pg. 31 Fim: Ento, antes de entender, meu corao embranqueceu como cabelos

    embranquecem.

    Pg.32 Princpio: ENTO, antes de entender, meu corao embranqueceu como

    cabelos embranquecem.

    Pg. 34 Fim: Foi ento que a barata comeou a emergir do fundo.

    Pg. 35 Princpio: FOI ENTO que a barata comeou a emergir do fundo.

    Pg. 37 Fim: Cada olho reproduzia a barata inteira.

    Pg. 38 Princpio: CADA olho reproduzia a barata inteira.

    Pg. 40 Fim: Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e mido.

    Pg. 41 Princpio: EU CHEGARA ao nada, e o nada era vivo e mido.

    Pg. 43 Fim: Perdo um atributo da matria viva.

    Pg. 44 Princpio: PERDO um atributo da matria viva.

    Pg. 46 Fim: Eu fizera o ato proibido de tocar no que imundo.

    Pg. 47 Princpio: EU FIZERA o ato proibido de tocar no que imundo.

    Pg.49 Fim: Ento, de novo, mais um milmetro grosso de matria branca

    espremeu-se para fora.

    Pg.50 Princpio: ENTO, de novo, mais um milmetro grosso de matria branca

    espremeu-se para fora.

    Pg. 52 Fim: Finalmente, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.

    Pg. 53 Princpio: FINALMENTE, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.

    aqui: quero o inconcluso. (p. 35) Quanto reflexo sobre o ETERNO, vale ainda ressaltar ser este um dos

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    Pg. 55 Fim: Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.

    Pg. 56 Princpio: POIS o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.

    Pg. 58 Fim: Neutro artesanato da vida.

    Pg. 59 Princpio: NEUTRO artesanato da vida.

    Pg. 61 Fim: Nem mesmo o medo mais, nem mesmo o susto, mais.

    Pg. 62 Princpio: NEM MESMO o medo mais, nem mesmo o susto, mais.

    Pg. 63 Fim: D-me a tua mo:

    Pg. 64 Princpio: D-ME a tua mo:

    Pg. 65 Fim: A vida pr-humana divina de uma atualidade que queima.

    Pg. 66 Princpio: A VIDA pr-humana divina de uma atualidade que queima.

    Pg. 68 Fim: Eu procurava uma amplido.

    Pg. 69 Princpio: EU PROCURAVA uma amplido.

    Pg. 72 Fim: Voltei-me de chofre para o interior do quarto que, na sua ardncia,

    pelo menos no era povoado.

    Pg. 73 Princpio: VOLTEI-me de chofre para o interior do quarto que, na sua ardncia,

    pelo menos no era povoado.

    Pg. 75 Fim: Mas h alguma coisa que preciso ser dita, preciso ser dita.

    Pg. 76 Princpio: MAS H alguma coisa que preciso ser dita, preciso ser dita.

    Pg. 77 Fim: Pois em mim mesma eu vi como o inferno.

    Pg. 79 Princpio: POIS EM mim mesma eu vi como o inferno.

    Pg. 81 Fim: O inferno o meu mximo.

    Pg. 82 Princpio: O INFERNO o meu mximo.

    Pg. 83 Fim: Eu estava comendo a mim mesma, que tambm sou matria viva do

    sabath.

    atributos, em destaque no judasmo, do inominvel Deus.

  • 43

    Pg. 84 Princpio: EU ESTAVA comendo a mim mesma, que tambm sou matria viva

    do sabath.

    Pg. 87 Fim: Ela sentiria falta do que deveria ser seu.

    Pg. 88 Princpio: ELA sentiria falta do que deveria ser seu.

    Pg. 90 Fim: Porque a coisa nua to tediosa.

    Pg. 91 Princpio: PORQUE a coisa nua to tediosa.

    Pg. 92 Fim: No devo ter medo de ver a humanizao por dentro.

    Pg. 93 Princpio: NO devo ter medo de ver a humanizao por dentro.

    Pg. 95 Fim: Aumentar infinitamente o pedido que nasce da carncia.

    Pg. 96 Princpio: AUMENTAR infinitamente o pedido que nasce da carncia.

    Pg. 98 Fim: O gosto do vivo.

    Pg. 99 Princpio: O GOSTO do vivo.

    Pg.101 Fim: Nossas mos que so grossas e cheias de palavras.

    Pg.102 Princpio: NOSSAS mos que so grossas e cheias de palavras.

    Pg.104 Fim: que no contei tudo.

    Pg.105 Princpio: QUE no contei tudo.

    Pg.107 Fim: O divino para mim o real.

    Pg.108 Princpio: O DIVINO para mim o real.

    Pg.109 Fim: Falta apenas o golpe da graa que se chama paixo.

    Pg.110 Princpio: FALTA apenas o golpe da graa que se chama paixo.

    Pg.113 Fim: A desistncia uma revelao.

    Pg.114 Princpio: A DESISTNCIA uma revelao.

    Pg.115 Fim: E ento adoro.

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    Pode-se dizer que os captulos de G.H. so elos de uma corrente narrativa.67

    Tambm Olga de S68 observara que se parece ao paralelismo bblico esse

    encadeamento dos captulos. Notou que Clarice faz uso desse procedimento potico de

    que impregnado o texto bblico e, ainda, que so trinta e trs captulos ou

    fragmentos, o que refora o carter mstico do texto, pois tradicionalmente se diz que

    Jesus Cristo viveu trinta e trs anos69. a mesma Olga quem diz:

    A leitura contnua da obra de Clarice Lispector leva o leitor, envolvido pela

    singularidade de sua escritura, a uma concluso desconcertante: a repetio

    reiterada e o paradoxo, recursos permanentes de seu estilo, constituem tambm

    armao estrutural de sua fico, a menos como romancista.70

    De fato, em Pardia e Metafsica71, a ensasta comenta a linguagem de Clarice ao

    longo do romance mostrando que o paralelismo , primariamente, uma figura de

    repetio. J sobre o paradoxo, este recurso retrico que diz respeito questo da

    credibilidade dos discursos, inclinando os textos bblicos para o sentido pardico, causa

    um efeito de perplexidade e estranhamento, que tanto a pardia quanto o paradoxo

    veiculam. Portanto, Clarice submeteria a linguagem a um processo de corroso e

    negao contnua seja pela pardia, neste trabalho denominada travestimento, por

    no ter o carter de burla, seja pelo paradoxo ou ainda pela repetio desgastante.

    Conforme j enunciado acima, a incluso, procedimento que encadeia A Paixo

    Segundo G.H., tpico da literatura bblica e pode ser comprovvel, por exemplo, tanto

    no terceiro Evangelho quanto nos Atos dos Apstolos, escritos de Lucas. Aqui no se

    trata de frases que se repetem para unir captulos, mas de encadeamentos dentro de

    determinadas molduras que favorecem a memorizao dos textos medida em que se

    estruturam, em que estabelecem sua coeso interna.

    Tpico para que se reconhea esse processo o chamado Evangelho da Infncia, no

    qual so postas em paralelo as figuras de Joo Batista e Jesus e todas as demais

    personagens envolvidas no nascimento de ambos: Lucas 1,5 2,52:

    67 SANTANNA, 1988, p.238.

    68 S, 1988, 220.

    69 No mundo literrio de Clarice Lispector, to permeado de nmeros, interessante notar que construiu sua

    obra tambm em 33 anos. 70

    S, 1988, 214. 71

    Ibidem, p. 220.

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    Joo Batista

    1,13: Disse-lhe, porm, o Anjo: No temas,

    Zacarias, [...] Isabel, tua mulher, vai te dar

    um filho, ao qual pors o nome de Joo.

    1,15: Pois ele ser grande diante do Senhor

    [...].

    1,18: Zacarias perguntou ao Anjo: De que

    modo saberei disso? [...]

    [resposta do Anjo: 1,19-20

    concluso de Isabel: 1,25]

    1,57: Quanto a Isabel, completou-se o tempo

    para o parto, e ela deu luz um filho.

    1,58: [vizinhos e parentes se alegraram]

    1,59-60: No oitavo dia, foram circuncidar o

    menino. [...] ele vai se chamar Joo.

    [pea potica, cntico de Zacarias: 1,67-79]

    1,80: O menino crescia e se fortalecia em

    esprito. E habitava nos desertos [...]

    Jesus

    1,30-31: O Anjo, porm, acrescentou: No

    temas, Maria! [...] Eis que concebers no teu

    seio e dars luz um filho, e tu o chamars

    com o nome de Jesus.

    1,32: Ele ser grande, ser chamado Filho do

    Altssimo [...].

    1, 34: Maria, porm, disse ao Anjo: Como

    que vai ser isso, [...]?

    [resposta do Anjo: 1,35-7

    concluso de Maria: 1,38]

    2,6: [...] compl