A Persuasão - Américo de Sousa

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  • AMRICO DE SOUSA

    UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIORUNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIORUNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIORUNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIORUNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

    a persuaso

  • Srie - Estudos em Comunicao

    Direco: Antnio Fidalgo

    Design da Capa: Jorge Bacelar

    Execuo Grfica: Servios Grficos da Universidade da Beira Interior

    Tiragem: 300 exemplares

    Covilh, 2001

    Depsito Legal N 166331/01

    ISBN 972-9209-76-6

  • NDICE

    Prefcio ............................................................................. 5Introduo ......................................................................... 7

    I PARTERETRICA: DISCURSO OU DILOGO?

    1. O despertar da oratria .............................................. 112. A tcnica retrica de Aristteles ...............................17

    2.1. Os meios de persuaso ......................................172.2. As premissas de cada tipo de oratria .............19

    2.2.1. Na oratria deliberativa ...........................202.2.2. Na oratria forense ..................................212.2.3. Na oratria de exibio ...........................25

    2.3. Premissas comuns aos trs tipos de oratria ....262.3.1. Induo e deduo ...................................262.3.2. Persuaso pelo carcter ............................282.3.3. As paixes do auditrio ..........................292.3.4. O discurso: estilo e ordem .....................31

    3. A retrica clssica: retrica das figuras ....................33

    II PARTEA NOVA RETRICA

    1. Crtica do racionalismo clssico ................................392. Por uma lgica do prefervel: demonstrao

    versus ar gumentao .................................................433. A adeso como critrio da comunicao persuasiva ...50

    3.1. O duplo efeito da adeso ..................................503.2. Persuaso e convencimento:

    do auditrio particular ao auditrio universal ....52

  • 44. Estratgias de persuaso e tcnicas argumentativas ...614.1. A escolha das premissas ....................................614.2. As figuras de retrica na criao do efeito

    de presena ..........................................................674.3. Tcnicas e estruturas argumentativas .................68

    5. Amplitude da argumentao e fora dos argumentos ....806. A ordem dos argumentos no discurso ......................83

    III PARTERETRICA, PERSUASO E HIPNOSE

    1. Os usos da retrica ....................................................871.1. A revalorizao da subjectividade .....................871.2. Liberdade ou manipulao? .............................. 101

    2. Da persuaso retrica persuaso hipntica .......... 1292.1. A emoo na retrica....................................... 1292.2. Persuaso e retrica..........................................1432.3. Critrios, tipologias e mecanismos da persuaso... 1522.4. O modelo hipntico da persuaso ................... 183

    Concluso .......................................................................201

    Bibliografia .....................................................................209

  • 5PREFCIO

    Contrariamente ao que se passa nos Estados Unidos, aEuropa, e especialmente Portugal, no tem, actualmente, umatradio no campo dos estudos retricos.

    A retrica, entre ns, ou se foi confinando ao domnioda estilstica nos estudos literrios ou, muito simplesmente,se relegou ao empobrecimento do campo semntico de umtermo, retrica, que se exprime hoje mais como arma dearremesso acusatria no discurso.

    Dizer de um discurso que ele s retrico, sendo corrente,mostra bem a privao a que o termo foi submetido emtermos de contedo.

    A conotao mais corrente do termo retrica , actual-mente, a do puro vazio.

    S muito recentemente, na universidade portuguesa, secomeou a dar mais ateno problemtica especfica daretrica e os seus estudos comearam, ainda que parcamente,a aparecer.

    O presente trabalho de Amrico de Sousa que tem, tambmele, origem numa dissertao acadmica, vem dar uma notvelcontribuio para os estudos retricos entre ns.

    Colocando, desde logo, a noo de persuaso no centroda sua ateno crtica, o autor d bem o sinal da sua justificadainteno de prosseguir uma abordagem do tema recentradasobre os procedimentos de argumentao e no tanto sobrea tropologia a que uma certa retrica, no ousando o seunome, se tinha relegado sob o manto da estilstica.

    No tambm na lingustica que a sua inteno dedelimitar fronteiras ir integrar a disciplina mas antes nocampo mais vasto de um processo de comunicao.

    Comeando por uma visitao histrica s origenshelnicas da retrica enquanto teoria da argumentao, muitopertinente por ter sido a que as problemticas fundamentaisda disciplina se definiram com Plato, Aristteles e os sofistas,

  • 6o autor prossegue a sua indagao pela modernidade po-lmica que tanto nos marcou o pensar sobre estes temas.

    O renascimento dos estudos retricos em meados dosculo passado, a partir sobretudo da obra de Perelman, o que ocupa a segunda parte deste trabalho. A se operouuma restaurao a que Perelman chamou Nova Retrica,e que merece aqui uma atenta e informada anlise por partedo autor, centrada no tanto no estratgico conceito deauditrio universal mas tambm na complexidade dasmltiplas tcnicas argumentativas.

    Mas talvez na terceira e ltima parte que Amrico deSousa nos traz a sua contribuio mais pessoal e at ousadapara compreender o fenmeno persuasivo.

    Ao colocar a hipnose como tema do seu esforo com-preensivo, o autor avana em terreno incgnito mas tambmpor isso a sua dmarche merece uma ateno particular.

    Com efeito, ele chegou a depois de definir muito acer-tadamente uma problemtica posta j por Perelman: comoopera a estratgia retrica da persuaso entendida comoadeso dos espritos? Perelman tinha limitado a sua inqui-rio ao mbito dos recursos discursivos.

    Procura-se aqui ir mais longe e o caminho escolhido passa,muito pertinentemente, por A. Damsio e a sua teoria dasemoes. por essa via que o autor chega ao modelohipntico de persuaso.

    Ao leitor caber julgar uma proposta e um esforo deindagao que, pela sua inteligncia e originalidade, merecedesde j, uma atenta e interessada leitura.

    Tito Cardoso e Cunha

  • 7INTRODUO

    O estudo da persuaso pressupe uma viagem pelos ter-ritrios tericos que a sustentam: a retrica, a argumentaoe a seduo. A retrica, porque originariamente concebidacomo a faculdade de considerar para cada caso o que podeser mais convincente1; a argumentao, na medida em quevisa provocar ou aumentar a adeso de um auditrio steses que se apresentam ao seu assentimento2 e, finalmente,a seduo, porque a resposta do auditrio pode tambmnascer dos efeitos de estilo, que produzem sentimentos deprazer ou de adeso3. este contexto terico de solidriavizinhana e interdependncia funcional que Roland Barthesalarga ainda mais quando prope que a retrica deve sersempre lida no jogo estrutural das suas vizinhas (Gramtica,Lgica, Potica, Filosofia)4. O mesmo se diga de ChaimPerelman ao defender que, para bem situar e definir a retrica, igualmente necessrio precisar as suas relaes com aDialctica5. J se antev, por isso, a extrema dificuldadeque aguarda quem ouse meter ombros a uma rigorosa de-limitao de fronteiras entre os diferentes domnios tericospresentes num processo de comunicao persuasiva. Mas se,desde Aristteles, a retrica tem por objectivo produzir emalgum uma crena firme que leve anuncia da vontadee correspondente aco, ento, no mbito deste estudo, fartodo o sentido admitir uma aproximao conceptual entrea retrica e a persuaso. Alis, num momento em que a_______________________________1 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 522 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 293 - Meyer, M., Questes de retrica: linguagem, razo e seduo, Lisboa:

    Edies 70, 1998, p. 204 - Cit. in Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993,

    p. 215 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 21

  • 8A Persuaso

    evoluo histrica da retrica vem sendo analisada em funode trs importantes perodos, cronologicamente denomina-dos de Retrica Antiga, Retrica Clssica e Nova Retrica,deve notar-se que, em qualquer delas, foi a persuaso quepermaneceu como seu principal elemento distintivo, inde-pendentemente das particulares tcnicas e procedimentosdiscursivos nelas utilizados. Podemos, por isso, considerara retrica como o principal instrumento de comunicaopersuasiva, tanto mais que tendo surgido na antiguidade comotcnica de persuaso, ainda dessa forma que continua aser encarada por Perelman e pela generalidade dos autorescontemporneos. A retrica parece, pois, estar para o acto(de comunicar) assim como a persuaso est para o efeito(da comunicao).

    Como objectivo geral deste trabalho, propusemo-nosinvestigar os diferentes modos pelos quais a persuaso semanifesta no processo comunicacional, quais as estratgias,tcnicas e procedimentos mais adequados a uma comuni-cao influente (ou deliberada) e at que ponto, a retrica- enquanto instrumento de persuaso crtica - pode favorecera afirmao das subjectividades numa sociedade pluralista.A hiptese de que partimos e que intentamos confirmar nestenosso estudo, a de que a persuaso, ao promover o confrontode opinies e a afirmao de subjectividades, potencia oexerccio da prpria cidadania. Para a sua formulao muitopesou a constatao de que nos diferentes planos do nossoquotidiano, so numerosas as situaes de comunicao quetm como objectivo conseguir que uma pessoa, um auditrioou um pblico, adoptem um certo comportamento ou par-tilhem determinada opinio. E estando a persuaso assimto estreitamente ligada ao acto de convencer, ocorriaperguntar: no poder ela funcionar como alternativa aosempre possvel uso do poder ou at da violncia fsica,para se conseguir de outrem um comportamento por siinicialmente no desejado? Ser que ao traduzir-se pela

  • 9Introduo

    renncia ao uso da fora, a persuaso retrica pode con-tribuir decisivamente para assegurar uma ligao socialpartilhada em vez de autoritariamente imposta? Foi com aexpectativa de poder vir a responder a este conjunto dequestes que iniciamos a nossa pesquisa e reflexo.

    Por razes de ordem sequencial inerentes ao desenvol-vimento terico, mas tambm pela necessidade de limitara extenso do prprio trabalho, decidimos, por um lado,circunscrever o objecto de estudo persuaso discursiva epor outro, preterir a abordagem da persuaso de massas, tantomais que os efeitos exponenciais e a respectiva insero scio--poltica em que radica, justificam uma investigao maisprofunda do que aquela que lhe poderamos reservar nombito desta dissertao. Ainda assim, julgamos que algu-mas das consideraes que fazemos na parte final do tra-balho, deixam antever como o conhecimento retrico podecontribuir para uma reaco mais crtica dos seus destina-trios. Temos tambm a esperana de que tal delimitaonos tenha permitido no s aprofundar o alcance e asparticularidades que a persuaso pode imprimir aos proces-sos comunicacionais como, de algum modo, realar a suaimportncia no contexto da reflexividade contempornea.

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    I PARTE

    RETRICA: DISCURSO OU DILOGO?

    1. - O despertar da oratria

    Desde sempre os gregos foram inveterados amantes dapalavra, apreciando a eloquncia natural mais do que qual-quer outro povo antigo. A comprov-lo esto os brilhantesdiscursos que enchem as pginas da Ilada e as fervorosaspalavras que os comandantes militares dirigiam s suas tropasantes de entrar em combate. Os prprios soldados cadosna guerra eram logo honrados com solenes discursos f-nebres. Mas foi com o advento da democracia que esseinteresse pela eloquncia e oratria cresceu de uma maneiraexplosiva. Compreende-se porqu: o povo - onde no seincluam, nem as mulheres, nem os escravos, nem os fo-rasteiros - passou a poder reunir-se em assembleia geral paratratar e decidir de todo o tipo de questes. Assembleia geralque era ao mesmo tempo o supremo rgo legislativo,executivo e judicial. Nela se concentravam os mais altospoderes. Podia declarar a guerra ou a paz, alterar as leis,outorgar a algum as mximas honras mas tambm mand-lo para o exlio ou conden-lo morte. Tratava-se de reuniespblicas e livres, pois todos os cidados podiam assistir,participar e votar. Logicamente, os que melhor falavam eramtambm os mais influentes. Logo, quem aspirasse a ter algumainfluncia nessas assembleias, forosamente teria de possuirassinalveis dotes oratrios. Alm do mais, os conflitos entrecidados dirimiam-se perante tribunais constitudos porjurados eleitos por sorteio. Aquele que com suas palavraspersuasivas lograsse prender a ateno dos jurados econvenc-los da sua posio, sairia vencedor do pleito. Aoratria passou assim a ser fundamental, j no apenas paraaqueles que aspiravam poltica - que era a ambio oucarreira mais normal para os cidados livres daquele tempo- mas tambm para os cidados em geral que, dedicados

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    A Persuaso

    aos seus negcios e ocupaes agrcolas ou artesanais, comalguma frequncia se viam envoltos em acusaes e julga-mentos no mbito de infraces ou delitos, contratos,impostos, etc.

    Nem toda a gente, porm, era capaz de falar em pblicocom brilho e eficcia. Os menos hbeis na oratria tinhamde pedir a ajuda dos mais preparados. Da ao florescimentode uma classe profissional de especialistas na arte de bemfalar e escrever, foi um passo. Esses especialistas, oratransmitiam ensinamentos de retrica, ora representavampessoalmente os seus clientes nos pleitos ou cediam-lhesdiscursos j feitos que aqueles pronunciariam como se fossemescritos por eles prprios. Com o passar do tempo a ex-perincia oratria foi sendo reunida em mximas e preceitostendentes obteno do xito no tribunal ou na assembleia.A oratria tornava-se desse modo uma tcnica e, por meadosdo sc. V a. C., surgiam na Siclia os primeiros tratadosde retrica, atribudos a Krax e Tsias, embora confinadospraticamente oratria forense e dando especial relevo aostruques a que o advogado poderia recorrer para vencer emjuzo.

    O verdadeiro fundador da tcnica retrica, porm, foi umoutro siciliano, Grgias Leontinos que surgiu em Atenas,no ano de 427 a. C., como embaixador da sua cidade natal,e que desde logo causou a maior sensao, devido aosbrilhantes e floreados discursos com que se dirigia aosatenienses, a solicitar a sua ajuda. Muitos deles, fascinadospela sua oratria, tornaram-se seus discpulos, fazendo deGrgias o primeiro professor de retrica de que h conhe-cimento. Para Grgias, a oratria deveria excitar o auditrioat o deixar completamente persuadido. No lhe interessavauma eventual verdade objectiva, mas to somente o con-vencimento dos ouvintes. Para o efeito, o orador deveriater em conta a oportunidade do lugar e do momento, paraalm de saber adaptar-se ao carcter dos que o escutassem.Mas sobretudo, teria de usar uma linguagem brilhante e

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    potica, cheia de efeitos, figuras e ritmos. Ele foi, pode dizer--se, o introdutor de uma oratria de exibio ou de aparato,sem obedincia a qualquer finalidade poltica ou forense eorientada fundamentalmente para fazer realar o prprioorador. Neste aspecto, em nada se afastava de muitos outrossofistas do seu tempo.

    Aristteles estudou os tratados de retrica deixados porGrgias e seus seguidores, chegando mesmo a resumi-losnuma s obra em que procedeu compilao das tcnicasretricas. Considerou, porm, tais tratados pouco satisfatrios,por no irem alm do recurso aos truques legais e s maneirasmais absurdas de suscitar a compaixo dos jurados. Faltavauma apresentao sria e mais abrangente das regras e dosmtodos da retrica, especialmente, os mais tcnicos eeficazes, aqueles que se baseiam na argumentao.

    Quando Aristteles chegou a Atenas, Iscrates era o maisfamoso e influente Mestre de retrica e possua uma escolamais bem sucedida que a Academia de Plato, com a qualde resto rivalizava, na formao dos futuros homens pol-ticos da cidade. Logo por altura da fundao da sua escola,Iscrates escreveu uma obra com o muito elucidativo ttulode Contra os sofistas, na qual acusava estes ltimos deperderem o seu tempo e fazerem perder o dos demais comsubtilezas intelectuais sem qualquer relevncia para a vida,para a poltica ou para a aco. Igualmente condenava osretricos formalistas por inculcarem nos seus alunos a falsaideia de que a aplicao mecnica de um receiturio de regrasou truques pode levar ao xito. Demarcando-se do que ata tinha sido a orientao dominante dos grandes mestresda retrica, Iscrates proclama a necessidade de uma for-mao integral que, partindo de um carcter adequado, incluao estudo tanto da temtica poltica como da tcnica retricaem toda a sua dimenso. S assim se poderia formar ci-dados virtuosos e preparados para o xito poltico e social.Assinale-se que era a esta formao integral, onde a retricaassumia um papel de relevo, que Iscrates chamava de

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    A Persuaso

    Filosofia. Os demais filsofos, incluindo Plato, no pas-sariam de sofistas pouco srios.

    Contra essa concepo se pronunciou Plato, por acharque o ensino de Iscrates, para alm de frvolo e superficial,era dirigido unicamente ao xito social, ficando margemde todo o questionamento filosfico ou cientfico sobre anatureza da realidade. Estava em causa a educao superiorateniense e, segundo Plato, a hegemonia da retrica, quevisa a persuaso e no a verdade, era um perigo que urgiaatacar decididamente. No seu dilogo Grgias, podemos vercomo ele confronta a retrica e a filosofia, defendendoclaramente uma espcie de tecnocracia moral, em que osverdadeiros especialistas (os filsofos) conduzam os cida-dos quilo que o seu interesse, isto , a serem cada vezmelhores. Condena a democracia onde os polticos oradoresbajulam o povo e seguem servilmente os seus caprichos,o que s pode tornar os cidados cada vez piores. E esgrimeos seus contundentes argumentos contra a retrica, negando--lhe o carcter de uma verdadeira tcnica, por no se basearem conhecimento algum. Para ele, a retrica no passa deuma mera rotina concebida para agradar ou adular. apenasum artifcio de persuaso. No da persuaso do bom ou doverdadeiro, mas sim da persuaso de qualquer coisa. Lembraque graas retrica que o injusto se livra do castigo,quando, segundo ele, valeria mais ser castigado, pois ainjustia o maior mal da alma. Plato conclui que a retricano tem mesmo qualquer utilidade a no ser que se recorraa ela justamente para o contrrio: para que o faltoso oudelinquente seja o primeiro acusador de si mesmo e de seusfamiliares, servindo-se da retrica para esse fim, para tornarpatentes os seus delitos e se livrar desse modo do maiordos males, a injustia.

    Iscrates, por certo, no comungava de to exaltadomoralismo, pois a sua retrica estava orientada basicamentepara a defesa de qualquer postura, para ganhar os pleitos,para persuadir a assembleia. Foi, porm, o mais moralista

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    e comedido de todos os retricos, em grande parte, devidos suas reais preocupaes polticas, mas tambm por estarconvencido que o virtuoso acaba sempre por ter mais xitodo que o depravado. Por isso se insurgia, tal como Plato,contra os sofistas mais cnicos e amorais. Compreende-seassim que Plato, com o decorrer dos tempos, tenha tem-perado a veemncia das suas iniciais crticas retrica,chegando mesmo a elogiar Iscrates, embora sem reconhe-cer oratria outro mrito que no fosse o meramenteliterrio. Na sua obra Fedro viria inclusivamente a admitira possibilidade de uma retrica distinta, verdadeira e boa,que se confundiria quase com a filosofia platnica.

    Idntica mutao de pensamento parece ser de assinalara Aristteles, que depois de ter inicialmente enfrentadoIscrates para defender a supremacia das teses platnicas- cujo xito lhe valeu o convite para dirigir o primeirocurso de retrica na Academia - acabou por ir abandonandopouco a pouco as posies exacerbadamente moralistasdestas ltimas, em favor da incorporao de cada vez maiselementos da tcnica oratria. Com isso, pode dizer-se quea sua concepo final da retrica, muito precisa e realista,se situa, pelo menos, to prximo de Iscrates como dePlato.

    Aristteles insurge-se contra os retricos que o prece-deram, acusando-os de se terem contentado com o compilarde algumas receitas e um sem nmero de subterfgios ouevasivas aplicveis oratria, que visam apenas a com-paixo dos juzes. E isto, quando h outros tipos de oratriapara alm da forense, tornando-se necessrio proceder sua distino. Alm do mais, os especialistas da oratriatinham at ali passado ao lado do recurso tcnico maisimportante a que pode deitar mo o orador: a argumen-tao, em especial, o entinema. So essas lacunas queAristteles se prope suprir. Haveria que estudar as razesporque os oradores que pronunciam os seus discursos, umasvezes tm xito e outras no. Sistematizar e explicitar essas

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    A Persuaso

    razes a grande tarefa da tcnica, no caso, da tcnicaretrica.

    Ao assumir essa posio, Aristteles vai afastar-se detoda a concepo negativista da retrica, reconhecendo--lhe, finalmente, a dignidade de fundamento e de uso queat a tanto fora questionada, especialmente por Platoe seus seguidores. Agora a tcnica retrica consideradatil para todos os cidados e at para os filsofos, poisperante os auditrios populares que formam as assembleiase os tribunais, de nada servem as demonstraes pura-mente cientficas, sendo imprescindvel recorrer ret-rica, para obter o entendimento e convencer os restantesco-participantes. De contrrio, corre-se o risco de servencido e ver a verdade e a justia escamoteadas. De-finitivamente, o saber defender-se com a palavra, passoua ser uma parte essencial da educao e cultura geral grega.E Aristteles explica porqu: se vergonhoso que al-gum no possa servir-se de seu prprio corpo [para sedefender], seria absurdo que no o fosse no que respeita razo, que mais prpria do homem do que o uso docorpo1. certo que uma das maiores acusaes que Platofizera retrica tinha sido a de que esta poderia trazergraves consequncias quando algum dela se servisse parafazer o mal, mas Aristteles riposta categoricamente,lembrando que se certo que aquele que usa injusta-mente desta capacidade para expor razes poderia causargraves danos, no menos certo que isso ocorre com todosos bens, excepo da virtude, sobretudo com os maisteis, como o vigor, a sade, a riqueza ou a capacidademilitar, pois com eles tanto pode obter-se os maioresbenefcios, se usados com justia, como os maiores custos,se injustamente utilizados2._______________________________1 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 512 - Ibidem.

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    2. - A tcnica retrica de Aristteles

    2.1. - Os meios de persuaso

    A tcnica retrica de Aristteles consiste nos principaismeios ou recursos persuasivos de que se vale o orador paraconvencer o auditrio. Esses meios de persuaso podemclassificar-se, antes de mais, em tcnicos e no-tcnicos. Osmeios de persuaso no-tcnicos so os que existem inde-pendentemente do orador: leis, tratados, testemunhos, do-cumentos, etc. Os meios de persuaso tcnicos so aquelesque o prprio orador inventa para incorporar a sua prpriaargumentao ou discurso, e que se repartem por trs grupos,tantos quantas as instncias da relao retrica: ethos, ocarcter do orador; pathos, a emoo do auditrio e logos,a argumentao. Impe-se, contudo, precisar um pouco melhorcada uma destas instncias. Em primeiro lugar, o ethos. Semdvida que o carcter do orador fundamental, pois umapessoa ntegra ganha mais facilmente a confiana do au-ditrio, despertando nele maior predisposio para serpersuadido. Mas trata-se aqui da impresso que o oradord de si mesmo, mediante o seu discurso, e no do seucarcter real ou da opinio que previamente sobre ele tmos ouvintes, pois estes dois ltimos aspectos, no so tc-nicos. Quanto ao pathos, tem de se reconhecer que a emooque o orador consiga produzir nos seus ouvintes pode serdeterminante na deciso de serem a favor ou contra a causadefendida. Se o orador suscita nos juizes sentimentos dealegria ou tristeza, amor ou dio, compaixo ou irritao,estes podero decidir num sentido ou no outro. Foi aliseste o ponto mais estudado nos anteriores tratadistas daretrica. Por ltimo, o logos, constituindo o discursoargumentativo, a parte mais importante da oratria, aquelaa que se aplicam as principais regras e princpios da tcnica

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    A Persuaso

    retrica. E os recursos argumentativos so fundamentalmen-te dois: o entinema e o exemplo3. O entinema o tipo dededuo prprio da oratria. Parece um silogismo mas no, pois s do ponto de vista formal mantm semelhanascom o silogismo cientfico ou demonstrao. A grandediferena reside nas suas premissas que, contrariamente aoque acontece no silogismo cientfico, no so nem neces-srias, nem universais, nem verdadeiras. O entinema partede premissas apenas verosmeis, que se verificam em muitoscasos e so aceites pela maioria das pessoas, particularmen-te, pela maioria dos respectivos auditrios. Quanto aoexemplo, ele o tipo de induo caracterstico da oratriae consiste em citar oportunamente um caso particular, parapersuadir o auditrio de que assim em geral.

    Aristteles concebe trs gneros de oratria: a delibe-rativa, a forense e a de exibio4. A oratria deliberativa a que tem lugar na assembleia e visa persuadir a que seadopte a poltica que o orador considera mais adequada. a mais importante, a mais prestigiada, prpria de homenspblicos e aquela para a qual preferentemente se orientavao ensino de Iscrates e Aristteles. A oratria forense, comoo seu nome indica, a utilizada perante os juzes ou juradosdo tribunal, para os persuadir a pronunciarem-se a favor oucontra o acusado. Embora til, no muito valorizada.Finalmente, a oratria de exibio, tambm chamada deepidctica, a que tem lugar na praa ou outro local similar,perante o pblico em geral, que o orador procura impres-sionar exibindo os seus dotes de oratria, normalmentefazendo o elogio de algum ou de algo, ainda que isso sejaum mero pretexto para o orador brilhar.

    Cada um destes trs gneros de oratria, possui umaespecial relao com o tempo, conforme o efeito da per-suaso se manifeste no passado, no presente ou no futuro._______________________________3 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 554 - Ibidem, p. 64

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    Na oratria deliberativa, por exemplo, est em causa o futuro,pois os membros da assembleia so chamados a deliberarsobre o modo como as coisas iro decorrer. A oratria forense,remete-nos para o passado pois os juizes ou jurados dotribunal decidem sobre actos que j decorreram. Por ltimo,na oratria de exibio (ou epidctica) o presente que seassume como dimenso temporal, pois a os ouvintes ana-lisam e julgam a habilidade que o orador manifesta no precisomomento em que usa da palavra. Evidentemente que cadaum destes trs gneros de oratria tem tambm o seuespecfico objectivo: a oratria deliberativa procura obter umacerta utilidade ou proveito, a oratria forense visa a justia,e a oratria de exibio serve ao enaltecimento do orador,ainda que custa do elogio de algum. No que respeitaaos meios de persuaso propriamente ditos, os exemplos somais adequados oratria deliberativa e os entinemas oratria forense, ainda que ambos se utilizem numa e outra.Quanto ao encarecimento ou elogio, esse mais frequentena oratria de exibio.

    2.2. - As premissas de cada tipo de oratria

    O orador far uso abundante dos entinemas que so oprincipal instrumento de persuaso de que dispe. O entinema uma inferncia ou deduo (um silogismo, segundo aterminologia aristotlica) parecido na forma com a demons-trao cientfica mas menos rigoroso, ainda que tanto oumais convincente quando usado perante um pblico menosculto. No entinema comem-se com frequncia as premis-sas, aparecendo s algumas e subentendendo-se as outras.Alm disso, as premissas no precisam de ser verdadeiras,basta que sejam verosmeis. Nem o que as premissas doentinema formulam em geral necessita cumprir-se sempre,basta que se cumpra com frequncia. A tcnica retrica deveproporcionar um amplo repertrio de premissas, verdadeirasou verosmeis, ou geralmente aceites acerca de cada tema,

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    de tal modo que a partir delas se possa construir os entinemas.Por isso Aristteles dedica os captulos IV, V, VI, VII e VIIIdo Livro I da sua Retrica apresentao de lugares outipos de premissas utilizveis em discursos deliberativos.

    2.2.1. - Na oratria deliberativa

    Os temas mais frequentes na oratria deliberativa, pe-rante a assembleia popular, so por excelncia, os temaspolticos, nomeadamente, impostos, guerra e paz, defesa,comrcio exterior e legislao e tambm sobre eles queAristteles faz uma srie de consideraes da maior utili-dade para o orador, aps o que chama a ateno para ofacto de, em ltima instncia, toda a gente decidir tendoem vista a sua prpria felicidade, coisa que o orador polticoou deliberativo no pode ignorar. A tcnica retrica deverento proporcionar ao orador premissas sobre a felicidade,que comearo pela sua prpria definio e a dos seuselementos, pois apelando felicidade que esse oradorconseguir convencer os membros da assembleia. Aristtelesd uma definio de felicidade, que pode ser facilmente aceitepor todos: Seja pois felicidade a prosperidade unida ex-celncia ou suficincia dos meios de vida, ou a vida maisagradvel, acompanhada de segurana ou plenitude depropriedades e do corpo, bem como a capacidade de ossalvaguardar e usar, pois pode dizer-se que todos coincidemem que a felicidade consiste numa ou mais destas coisas5.Mas como por vezes se apela no felicidade plena massomente a uma das suas partes, o orador deve dispor tambmde premissas sobre essas partes da felicidade que so,nomeadamente, a nobreza, a riqueza, a boa fama, as honras,a sade, a beleza, o vigor e a fora, o ter muitos e bonsamigos, a boa sorte e a excelncia ou virtude.

    _______________________________5 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 71

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    Quando o orador recomenda algumas coisas assembleia,apresenta-as como proveitosas ou convenientes, ou seja, comobens ou como permitindo a obteno de bens. Necessita,por isso, de dispor tambm de premissas sobre os bens, acomear pela sua prpria definio e classes em que se podemagrupar. Esses bens so, em primeiro lugar, a felicidade,depois, a riqueza, a amizade, a glria, a eloquncia, amemria, a perspiccia, os saberes, as tcnicas e a justia.Aristteles preocupa-se em oferecer sobre todos esses benspontos de vista que podem ser utilizados como premissas,por exemplo aquilo cujo contrrio um mal, ele mesmoum bem. Nas situaes em que todos esto de acordo emque duas propostas convm ou so boas, o que se tornanecessrio dizer qual delas convm mais ou melhor. Porisso Aristteles fornece uma bateria de critrios de com-parao que podem ser usados pelo orador para apresentarum bem como prefervel a outro.

    2.2.2. - Na oratria forense

    Na oratria forense, que tem lugar no tribunal, o temabsico saber se se cometeu ou no injustia num casodeterminado. E tambm ao orador forense a tcnica retricadeve oferecer um vasto conjunto de definies, classifica-es, critrios e dados que ele possa utilizar como premissasdos seus entinemas. Aqui a noo fundamental que est emjogo a de acto injusto, que Aristteles define como equi-valente a causar voluntariamente um dano contrrio lei6.Ou seja, para que haja injustia so necessrios trs requi-sitos: a produo de um dano, inteno de o provocar eviolao da lei. Por sua vez, o acto intencional quando praticado sem estar forado ou submetido a uma violnciaou a uma necessidade exterior. Considerando que tudo oque se faz voluntariamente ser agradvel ou dirigido aoprazer, Aristteles define este ltimo como um processo_______________________________6 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 104

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    A Persuaso

    de alma e um retorno total e sensvel sua forma naturalde ser7 e descreve os diversos tipos de prazeres tais comoprazeres naturais do corpo, prazeres da imaginao e recor-dao, prazer de se vingar, prazer de vencer, prazer da honra,prazer do amor, prazer de aprender, prazer de mandar, etc.,ao mesmo tempo que fornece as opinies geralmente aceitese utilizveis como premissas ao falar sobre se o acto foirealizado voluntariamente ou no e o que com ele poderiater querido obter o agente.

    Um outro conjunto de premissas para possveis entinemasreferem-se a quem provvel que cometa injustia e quem provvel que a sofra. Assim, diz-nos que quem podefacilmente cometer injustia so os que pensam que sairodela impunes, porque ficaro ocultos ou porque conseguiroesquivar-se do castigo graas a determinadas influncias,como acontece, por exemplo, com aqueles que so amigosdas vtimas dos seus delitos ou dos juizes, porque os amigosno se previnem contra as injustias e preferem chegar aum acordo antes de recorrer aos tribunais, enquanto que osjuizes favorecem os seus amigos, absolvendo-os ou impon-do-lhes castigos leves8. Quanto aos que considera quefacilmente podem ser vtimas de injustia, so os que notm amigos, os estrangeiros e os trabalhadores. Recordemosque o acto para ser injusto tem de ir contra a lei. Aristtelesporm distingue a lei particular, que a polis estabelece parasi prpria, da lei comum resultante da natureza humana.Dentro da lei particular distingue igualmente a escrita dano escrita (costume). Diz ainda que a equidade vai maisalm da lei escrita e que tem mais a ver com a intenodo legislador do que com o esprito da letra. Por isso apelamais a uma arbitragem que a um juzo, porque o rbitroatende ao equitativo, enquanto o juiz atende lei.

    _______________________________7 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 1088 - Ibidem, p. 117

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    Por ltimo, Aristteles estabelece os meios de persuasoque considera imprescindveis nos julgamentos e que socinco: as leis, os testemunhos, os contratos, as declaraessob tortura e os juramentos. E aqui que nos aparece comoeminente tcnico retrico, colocando-se num plano amoral,capaz de atacar e defender qualquer posio e de dar a voltaa qualquer argumento, como se espera de um bom advogado.Chega ao ponto de mostrar como a prpria lei pode sermanipulada:

    (...) Falemos, portanto, em primeiro lugar, das leise de como delas se deve servir quem exorta ou dissuadee quem acusa ou defende. Pois evidente que quandoa lei escrita seja contrria ao nosso caso, h que recorrerao geral ou ao razovel como melhores elementos dejuzo, pois isso o que significa com o melhor critrio,no recorrer a todo o custo s leis escritas. E tambmque o razovel permanece sempre e nunca muda, comosucede com a lei geral (pois conforme natureza),enquanto que as leis escritas o fazem com frequncia(....) atenderemos tambm ao que o justo, no suaaparncia, o que verdadeiro e conveniente, de formaque a escrita no lei, porque no serve como a lei.E tambm que o juiz como o contrastador de moeda,que deve distinguir entre a justia adulterada e a legtima(....). Pelo contrrio, quando a lei seja favorvel ao caso,h que dizer que o com o melhor critrio no servepara julgar contra a lei, mas sim para evitar prejuzospelo desconhecimento do que a lei prescreve. E queningum escolhe o bom em absoluto, seno o que bompara ele9.Em resumo, se a lei escrita nos favorvel, h que aplic-

    -la. Se a mesma no nos favorece h que ignor-la e substitu--la pela no escrita ou pela equidade.

    No que se refere aos testemunhos, Aristteles elaboratambm algumas regras tcnicas de como proceder, quer_______________________________9 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, pp. 130-131

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    A Persuaso

    quando dispomos de testemunhas, quer quando no aspossumos. Argumentos convincentes para quem no temtestemunhos so que necessrio julgar a partir do verosmile que isto o que significa com o melhor critrio, j queo verosmil no pode enganar, ao contrrio do suborno, nempode ser afastado por falso testemunho. Ao invs, para aqueleque tem testemunhos, frente ao que no os tem, os argu-mentos sero que o verosmil no algo que possa submeter--se a juzo e que no fariam falta os testemunhos se fossesuficiente a considerao dos argumentos apresentados10.

    Quanto aos contratos, Aristteles diz que o seu empregonos discursos consiste em aumentar ou diminuir a suaimportncia, torn-los fidedignos ou suspeitos. Se nos fa-vorecem, fidedignos e vlidos, e o contrrio, se favorecema outra parte. Pois bem, fazer passar os contratos por fi-dedignos ou suspeitos em nada se diferencia do procedi-mento seguido com as testemunhas, pois os contratos somais ou menos suspeitos, segundo o sejam os seus contratan-tes ou fiadores. Se o contrato reconhecido e nos favorece,h que engrandecer a sua importncia, sobre a base de queum contrato uma norma privada e especfica, no que oscontratos constituam uma lei obrigatria, mas porque soas leis que fazem obrigatrios os contratos conformes lei,e que, em geral, a prpria lei uma espcie de contrato,de tal forma que quem desconfia de um contrato ou o rompetambm rompe com as leis11. Igualmente no caso dasconfisses realizadas sob tortura, formula regras tcnicas deproceder conforme tais confisses nos so ou no favorveis.As declaraes sobre tortura so tambm testemunhos edo a impresso de que tm credibilidade, porque h nelasuma certa necessidade acrescentada. Nem sequer difcilver os argumentos precisos no que a elas se refere e cujaimportncia devemos engrandecer, no caso de nos serem_______________________________10 - Aristteles, Retrica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 13411 - Ibidem, p. 135

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    favorveis, no sentido de que so estes os nicos testemu-nhos verdicos. No caso de nos serem contrrios e favorveis outra parte, trataremos de minimiz-los, falando em geralsobre qualquer gnero de tortura, pois no se mente menosquando algum se v coagido, seja enchendo-se de coragempara no dizer a verdade, seja recorrendo facilmente a mentiraspara terminar a tortura mais cedo12. Por aqui se v como,no que respeita persuaso, Aristteles acaba por se colocarnum plano estritamente tcnico, estudando os meios semtomar partido pelos fins. Com isso se afasta definitivamentedo exaltado moralismo platnico, compreendendo, assim, oponto de vista dos retricos profissionais, que assume agoracomo seu.

    2.2.3. - Na oratria de exibio

    Na oratria de exibio ou epidctica, recordemos, pre-tende-se acima de tudo fazer luzir o orador, embora a pretextode elogiar algum. E para tal, Aristteles recomenda, antesde mais, que se tenha em conta em que lugar e peranteque auditrio se ir pronunciar o discurso, para que se louveo que em cada lugar mais se estime ou valorize. certo,porm, que, o que sempre se elogia, costuma ser um qualquertipo de excelncia. Logo, o que o orador epidctico precisa de dispor de um repertrio de opinies admitidas ou lugaresacerca da excelncia.

    Mas o que a excelncia? Aristteles define-a como afaculdade de criar e conservar bens, mas tambm de pro-duzir muitos e grandes benefcios, de prestar numerosos eimportantes servios. Elementos ou partes da excelncia, soa justia, a valentia, a temperana, a liberalidade, a mag-nanimidade e a racionalidade. Sobre todas estas excelnciasou virtudes d Aristteles preciosas opinies e conselhos

    _______________________________12 - Aristteles, Retrica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 136

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    A Persuaso

    tcnicos. Considerando que se elogia algum pelas suasaces, e que prprio de um homem insigne actuar porvontade deliberada, recomenda que se procure mostrar queo elogiado agiu deliberadamente. mesmo convenienterealar que assim agiu muitas vezes, nem que para tal sejapreciso tomar as coincidncias e casualidades como sefizessem parte do seu propsito13.

    2.3. - Premissas comuns aos trs tipos de oratria

    2.3.1. - Induo e deduo

    Nos captulos XVIII a XXV do Livro II da Retrica,Aristteles refere os tpicos ou lugares comuns que podemser muito teis ao orador em qualquer dos trs tipos de oratriaj definidos. Para ele, os principais recursos lgicos de quese pode valer um orador para persuadir so o exemplo eo entinema, que correspondem induo e deduo,respectivamente. A induo costuma implicar uma certapassagem do particular ao geral, da parte para o todo. Porm,no exemplo, considerado como uma espcie de induoretrica, no se vai da parte para o todo, como na induopropriamente dita, nem do todo para a parte como na deduo,mas sim, de uma parte a outra parte, do semelhante parao semelhante, e tem lugar quando os dois casos pertencemao mesmo gnero, mas um mais conhecido que outro. Seriacomo dizer que Dionsio14, ao pedir uma escolta, aspira tirania, s porque antes, tambm Pisstrato pedira uma escoltacom essa inteno e depois de a obter, fez-se um tirano,alis, como sucedera com outros, quando diz Aristteles no se sabe ainda se por isso que ele pede a escolta15.

    _______________________________13 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 10114 - Dionsio, tirano de Siracusa, em 405 a.C.15 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 61

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    O exemplo ento um caso particular que o orador utilizapara apoiar a sua afirmao sobre outro caso anterior,distinto, mas do mesmo gnero, por apresentar certascaractersticas comuns. H dois tipos de exemplos: os casosrealmente sucedidos e os casos inventados. Entre os exem-plos inventados contam-se as parbolas e as fbulas. Asfbulas - diz Aristteles - so muito adequadas para osdiscursos ao povo e tm a vantagem de ser mais fcil comporfbulas do que achar exemplos de coisas semelhantes re-almente ocorridas. Contudo, os acontecimentos so maisproveitosos para a deliberao, pois a maioria das vezeso que vai ocorrer semelhante ao que j ocorreu16.

    O entinema, por sua vez, uma deduo em que aspremissas so opinies verosmeis, provveis ou geralmen-te admitidas. E depois de ter elaborado separadamente pre-missas por cada tipo de oratria, Aristteles oferece agoraoutras orientadas para temas ou tpicos comuns a todoseles. assim que agrupa opinies e critrios por tpicoscomo o possvel e o impossvel, se algo ocorreu ou irocorrer, sobre a magnitude, sobre o mais e o menos, quepodem ser muito teis em todo o tipo de situaes ora-trias. Entre as opinies geralmente admitidas, so utili-zveis como premissas de entinemas, as mximas, senten-as ou provrbios. Uma mxima uma afirmao sobretemas prticos relativos aco humana, tratados em geral.Algumas mximas so evidentes, triviais e no requeremjustificao alguma. Outras, mais ambguas, j requeremum eplogo que as explique ou justifique o que vai convert-las, por sua vez, numa espcie de entinema. Mas porquerecomenda Aristteles o uso de mximas? Porque estas,por serem comuns e divulgadas, como se todos estivessemde acordo com elas, so consideradas justas.

    _______________________________16 - Aristteles, Retrica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 197

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    2.3.2. - Persuaso pelo carcter

    Para ser um bom orador so necessrias duas coisas: saberargumentar bem e possuir perspiccia psicolgica. Por issoAristteles, para alm de analisar e sistematizar os recursosargumentativos, estuda tambm os factores psicolgicos dapersuaso, a comear pelo carcter (ethos) do orador.

    Com efeito, o poder de convico do orador sobre o seuauditrio no depende s dos factos que aduza, das pre-missas que empregue, nem da sua boa argumentao. Osargumentos no s derivam do raciocnio demonstrativo, comotambm do tico, e acreditamos em quem nos fala na basede que nos parece ser de uma determinada maneira, querdizer, no caso de parecer bom, benvolo ou ambas as coisas17.No se trata, portanto - frise-se uma vez mais - da opinioprvia que o auditrio possa ter sobre o orador, nem topouco do carcter que este realmente possui, mas sim, doque aparenta ter quando se dirige ao auditrio. isso quepode ser decisivo para inclinar o auditrio a aceitar as suaspropostas. Persuade-se pelo carcter quando o discurso sepronuncia de forma que torna aquele que fala digno de crditopois damos mais crdito e demoramos menos a faz-lo, spessoas moderadas, em qualquer tema e em geral, mas demaneira especial parecem-nos totalmente convincentes nosassuntos em que no h exactido mas sim dvida (....) eno h que considerar, como fazem alguns tratadistas dadisciplina, a moderao do falante como algo que em nadaafecta a capacidade de convencer, mas antes, que o seucomportamento possui um poder de convico que , porassim dizer, quase o mais eficaz18.

    Para despertar a confiana nos ouvintes, o orador precisaque estes lhe reconheam trs qualidades: racionalidade,excelncia e benevolncia. Porque se o orador no racional

    _______________________________17 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 9418 - Ibidem, pp. 53-54

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    na sua maneira de pensar, ento ser incapaz de descobriras melhores solues. J um orador racional mas semescrpulos, pode encontrar a soluo ptima mas ou noa comunica ou tenta enganar, propondo gato por lebre. Snum homem insigne, a um tempo racional, excelente ebondoso, se pode confiar. Logo, o orador deve dar a impressode que possui um tal carcter, se pretende persuadir, poiso seu xito no depende s do que disser mas tambm daimagem que de si prprio projectar no auditrio.

    Sendo importante que o orador saiba dar a impressode possuir um carcter digno de confiana, igualmentenecessrio que conhea o carcter dos seus ouvintes e a elesaiba adaptar-se. Por isso Aristteles nos captulos XII a XVIIdo Livro II da Retrica procede anlise e classificaodo carcter em relao com a idade e a fortuna. No querespeita idade, distingue trs classes: os jovens, os adultose os velhos. Os jovens so apaixonados, prdigos, valentese volveis. Os velhos, so calculistas, avarentos, covardese estveis. S os adultos maduros adoptam uma atitudeintermdia e sensata. Falando em termos gerais, o homemmaduro possui as qualidades proveitosas que esto distribu-das entre a juventude e a velhice, ficando num termo mdioe ajustado, pois que uma e outra ou se excedem ou ficamaqum do necessrio19. Em relao fortuna, Aristtelesconsidera os factores de nobreza, riqueza, poder e boa sorte.Assim, os nobres tendero a ser ambiciosos e depreciativos,os ricos sero insensatos e insolentes, e os poderosos pare-cero como ricos, mas ainda mais ambiciosos e viris.

    2.3.3. - As paixes do auditrio

    O orador de xito no pode contudo limitar-se ao co-nhecimento passivo do carcter dos seus ouvintes. Temtambm que influenciar activamente o seu estado de nimo,_______________________________19 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 185

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    provocando-lhes as emoes ou paixes (pathos) que maisconvenham causa, pois este despertar das paixes ade-quadas no auditrio um dos mais importantes recursos depersuaso. que, como j ficou dito a propsito dos juradose juzes, segundo a emoo que experimentem num dadomomento, os ouvintes estaro predispostos a decidir numsentido ou no seu oposto. Nos captulos II a XI do LivroII da Retrica, Aristteles estuda as paixes dos ouvintese fornece ao orador lugares, opinies, informaes e critriosque o ajudaro a provocar essas paixes quando isso fordo seu interesse. F-lo agrupando as paixes em pares decontrrios, como por exemplo a ira e a calma, o amor eo dio, etc. De cada paixo d uma definio, considerandoalm disso, a disposio mental em que surgem, as pessoassobre quem recaem e os objectos ou circunstncias que asprovocam. Por exemplo, em relao ao amor, define-o comoo querer para algum o que se considera bom, no seuinteresse, e no no nosso, e estar disposto a lev-lo a efeito,na medida das nossas foras20. Daqui deriva a sua con-cepo de amizade pois que para ele amigo o que amae correspondido no seu amor21. Mas apesar da profun-didade com que analisa cada uma das paixes, a sua fi-nalidade sempre eminentemente tcnica: Portanto, evidente que possvel provar que tais pessoas so amigosou inimigos; se no o so, dar a impresso de que so ese se presume que o sejam, refut-los, e se discutem porira ou inimizade, lev-los para o terreno que se prefira22.Com isto Aristteles leva a cabo, de certo modo, o programaque Plato traara na sua obra Fedro para uma possvel tcnicaretrica genuna e onde punha como condio o conheci-mento dos diversos tipos de emoo e de carcter, a fimde que fosse possvel actuar tambm sobre cada carcterdespertando nele a emoo adequada._______________________________20 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 15221 - Ibidem22 - Ibidem, p. 156

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    2.3.4. - O discurso: estilo e ordem

    Os captulos I a XII do Livro III da Retrica tratam daelocuo, a que Aristteles chamava a expresso em pa-lavras do pensamento. Na prosa cientfica essa expresso directa, sem adornos, como convm aos que tm espritoaberto e buscam a verdade. Mas no costumam ser assimos ouvintes da oratria, pois trata-se maioritariamente de gentevulgar e sem grande preparao intelectual. Aristtelesreconhece que o justo seria no debater mais que os purosfactos, de sorte que tudo o que excede a demonstrao suprfluo. Contudo, [tal excesso] tem muita importncia,devido s insuficincias do ouvinte23.

    A intensidade e o tom da voz que emprega, o ritmo qued ao seu discurso e a gesticulao com que o acompanha,configuram aquilo a que se pode chamar a actuao do orador,que neste aspecto, como um actor de teatro. Ser neces-srio cuidar da expresso j que no suficiente quesaibamos o que devemos dizer, foroso tambm saber comodevemos dizer, pois isso contribui em muito para que odiscurso parea possuir uma determinada qualidade24. Porisso a tcnica retrica deve abranger a actuao do orador.

    Quanto ao discurso retrico propriamente dito, pode dizer--se que, ao contrrio da prosa cientfica, ele tem pretensesliterrias, pois brilhar, surpreender e at divertir, podecontribuir decisivamente para persuadir o auditrio. Mas isso,segundo Aristteles, no deve confundir-se com o recursoa um estilo potico, pesado, como o de Grgias, j que ouso de um estilo sereno, claro e natural o mais adequadoquando se pretende ser convincente. Por isso no convmque se note a elaborao nem dar a impresso de que sefala de modo artificial mas sim natural (este ltimo opersuasivo, pois os ouvintes predispem-se para contrariar,_______________________________23 - Aristteles, Retrica, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 239x24 - Ibidem, p. 237

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    quando ficam com a ideia de que se est a met-los numaarmadilha, tal como acontece com os vinhos misturados)25.O recurso literrio mais importante da oratria a metfora.Mas preciso saber encontrar metforas adequadas, nemmuito obscuras nem triviais. Por outro lado, o discurso,embora sem cair no verso, no pode renunciar ao ritmo.E Aristteles explica porqu: a forma que carece de ritmo indefinida e deve ser definida, ainda que no seja em verso,j que o indefinido desagradvel e difcil de entender26.Aristteles critica o estilo pomposo, potico e artificial, oabuso de palavras complicadas, de eptetos desnecessriose de metforas obscuras. O discurso deve ser claro, ade-quado, escorreito e ser pronunciado de forma eficaz. De-fende igualmente que, embora o estilo escrito costume sermais exacto e o falado mais teatral, mais apropriado interpretao, o orador tcnico dever dominar os recursosde ambos.

    Nos captulos XIII a XIX do Livro III, Aristteles abordaa ordem do discurso e define que as suas partes essenciaisso a exposio do tema e a argumentao persuasiva datese do orador. Diz, alm disso, que costuma juntar-se noincio do discurso um prembulo que equivale ao prlogodo poema e ao preldio da composio musical e no final,um eplogo. A funo principal do prembulo a de exporqual o fim a que se dirige o discurso, de modo a queo ouvinte possa seguir melhor o fio do mesmo. No eplogo,pelo contrrio, refresca-se a memria do ouvinte sobre oque (supostamente) foi provado. E isto, no s porque natural que depois de se ter demonstrado que algum sinceroe o seu contrrio, um mentiroso, por meio deste recursose elogie, se censure e finalize27, mas tambm porque a

    _______________________________25 - Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 24226 - Ibidem, p. 26327 - Ibidem, p. 314

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    recapitulao dos pontos essenciais em que se baseou aargumentao ir facilitar a formao de uma opinio finalsobre o seu grau de acerto ou eficcia.

    Como j ficou dito, a Retrica de Aristteles ter cons-titudo, em parte, a realizao do programa platnico ex-posto em Fedro de uma verdadeira tcnica retrica. S queenquanto levava a cabo essa tarefa, Aristteles foi-se afas-tando das posies moralistas de Plato, ao mesmo tempoque se aproximava cada vez mais da concepo tcnica neutraldos oradores e Mestres da altura, sobretudo, de Iscrates.

    3. - A retrica clssica: retrica das figuras

    Durante a Idade Mdia, a retrica foi apenas utilizadacomo meio para o estudo de textos, menosprezando-se oseu uso prtico. Nessa medida, foi alis da maior impor-tncia na constituio do discurso literrio durante orenascimento e o barroco, assim como influenciou os planosde estudos das humanidades e marcou particularmente aoratria sagrada. Chaim Perelman interroga-se sobre as razesque tero levado a que a retrica dita clssica, que se ops retrica dita antiga, tenha sido reduzida a uma retricadas figuras, consagrando-se a classificao das diversasmaneiras com que se podia ornamentar o estilo28. E aprincipal explicao sobre o modo como ter ocorrido essatransformao, vai encontr-la num artigo que Grard Genetteescreveu na revista Communications, denominado Larhtorique restreinte:

    Aparentemente desde o incio da Idade Mdia quecomea a desfazer-se o equilbrio prprio da retrica antiga,que as obras de Aristteles e, melhor ainda, de Quintiliano,testemunham: o equilbrio entre os gneros (deliberativo,judicirio, epidctico), em primeiro lugar, porque a mortedas instituies republicanas, na qual j Tcito via uma das

    _______________________________28 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 16

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    A Persuaso

    causas do declnio da eloquncia, conduz ao desapareci-mento do gnero deliberativo, e tambm, ao que parece,do epidctico, ligado s grandes circunstncias da vida cvica:Martianus Capella, depois Isidoro de Sevilha, tomaram notadestas defeces, rhetorica est bene dicendi scientia incivilibus quaestionibus; o equilbrio entre as partes(inventio, dispositio, elocutio), em segundo lugar, porquea retrica do trivium, esmagada entre gramtica e dialctica,rapidamente se v confinada ao estudo da elocutio, dosornamentos do discurso, colores rhetorici. A poca clssica,particularmente em Frana, e mais particularmente aindano sculo XVIII, herda esta situao, acentuando-a aoprivilegiar incessantemente nos seus exemplos o corpusliterrio (e especialmente potico) relativamente oratria:Homero e Virglio (e em breve Racine) suplantamDemstenes e Ccero; a retrica tende a tornar-se, noessencial, um estudo da lexis potica29.

    Genette, no mesmo artigo, vai mais longe ainda, quandoidentifica a histria da retrica com a restrio do seu prpriombito:

    O ano de 1969-70 viu aparecer quase simultaneamentetrs textos de amplitude desigual, mas cujos ttulos con-vergem de maneira bem sintomtica: trata-se da Rhtoriquegnrale do grupo de Lige, cujo ttulo inicial era Rhtoriquegnralise; do artigo de Michel Deguy Pour une thoriede la figure gnralise; e do de Jacques Sojcher, Lamtaphore gnralise: retrica-figura-metfora: sob a capadenegativa, ou compensatria, duma generalizao pseudo-einsteniana, eis traado nas suas principais etapas o per-curso (aproximativamente) histrico de uma disciplina que,no decurso dos sculos, no deixou de ver encolher, comopele de chagrm, o campo da sua competncia, ou pelo

    _______________________________29 - Cit. in Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993,

    p. 17

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    menos da sua aco. A Retrica de Aristteles no sepretendia geral (e ainda menos generalizada): ela era-o, e de tal modo o era na amplitude da sua inteno, queuma teoria das figuras ainda a no merecia qualquer menoparticular; algumas pginas apenas sobre a comparao ea metfora, num livro (em trs) consagrado ao estilo e composio, territrio exguo, canto afastado, perdido naimensido de um Imprio. Hoje, intitulamos retrica geralo que de facto um tratado das figuras. E se temos tantopara generalizar, evidentemente por termos restringidodemasiado: de Corax aos nossos dias, a histria da retrica a de uma restrio generalizada30.

    Paul Ricoeur, na sua obra sobre a metfora, veio cla-rificar ainda mais esta restrio de que j nos fala Genette,ao lembrar que a retrica de Aristteles cobre trs campos:uma teoria da argumentao que constitui o seu eixo prin-cipal e que fornece ao mesmo tempo o n da sua articulaocom a lgica demonstrativa e com a filosofia (esta teoriada argumentao cobre, por si s, dois teros do tratado),uma teoria da elocuo e uma teoria da composio dodiscurso. Aquilo que os ltimos tratados de retrica nosoferecem , na feliz expresso de G. Genette, uma retricarestrita, restringida em primeiro lugar teoria da elocuo,depois teoria dos tropos (....) Uma das causas da morteda retrica reside a: ao reduzir-se, assim, (...) a retricatornou-se uma disciplina errtica e ftil. A retrica morreuquando o gosto de classificar as figuras suplantou inteira-mente o sentido filosfico que animava o vasto imprioretrico, mantinha unidas as suas partes e ligava o todo aoorganon e filosofia primeira31.

    Sobre as figuras, no entanto, necessrio proceder a umaimportante distino. Como diz Ricouer, ao lado da retrica

    _______________________________30 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 1731 - Ibidem, p. 18

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    A Persuaso

    fundada na trade retrica-prova-persuaso, Aristteles ela-borou tambm uma potica que no tcnica de aco massim tcnica de criao e que corresponde trade poisis-mimsis-catharsis. Ora, ao referir-se metfora nos doistratados, Aristteles mostra-nos que a mesma figura pertenceaos dois domnios, exercendo no s uma aco retrica,como desempenhando tambm um papel na criao potica. por isso que Chaim Perelman estabelece uma diferenantida entre figuras de retrica e figuras de estilo, quandoafirma: Consideramos uma figura como argumentativa seo seu emprego, implicando uma mudana de perspectiva,parece normal em relao nova situao sugerida. Se, pelocontrrio, o discurso no implica a adeso do auditor a estaforma argumentativa, a figura ser entendida como orna-mento, como figura de estilo. Ela poder suscitar admirao,mas no plano esttico, ou como testemunho da originalidadedo orador32. indispensvel, por isso, examinar as figurasdentro do contexto em que surgem. De outro modo, escapa--nos o seu papel dinmico e todas se tornaro figuras deestilo. Se no esto integradas numa retrica concebida comoa arte de persuadir e de convencer, deixam de ser figurasde retrica e tornam-se ornamentos respeitantes apenas forma do discurso33.

    Perelman fixa a instaurao da retrica clssica no sc.XVI, quando Pedro Ramo define a gramtica como a artede bem falar (falar correctamente), a dialctica como a artede bem raciocinar e a retrica como a arte de bem dizer(fazer um uso eloquente e ornamentado da linguagem). Note--se a amplitude com que a dialctica surge nesta classifi-cao, abrangendo tanto o estudo das inferncias vlidas comoa arte de encontrar e julgar os argumentos. Com estaampliao da dialctica, naturalmente, a retrica de Aristtelesteria que ficar privada das suas duas partes essenciais, a_______________________________32 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 1933 - Ibidem

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    Retrica: Discurso ou Dilogo?

    inveno e a disposio, restando-lhe apenas a elocuo,traduzida pelo estudo das formas de linguagem ornamen-tada. E na sequncia desta classificao de Pedro Ramo,que o seu amigo Omer Talon, publica em 1572, na Colnia,a primeira retrica sistematicamente limitada ao estudo dasfiguras, sob o entendimento de que a figura uma expres-so pela qual o desenvolvimento do discurso difere do rectoe simples hbito34. aqui que Perelman estabelece onascimento da retrica clssica, uma retrica das figuras que,por degenerescncia, iria conduzir progressivamente morteda prpria retrica.

    No mesmo sentido vai Philippe Breton quando se inter-roga sobre as razes porque a partir do sc. XIX, a retrica,como matria de ensino, desapareceu dos programas esco-lares e universitrios em Frana. Tambm ele pensa que odefinhamento da retrica comeou muito antes do sc. XIX,fundando essa sua posio, nomeadamente, no pensamentode Roland Barthes: este descrdito trazido pela promoode um valor novo, a evidncia (dos factos, das ideias, dossentimentos) que se basta a si mesma e passa sem a lin-guagem (ou cr poder passar), ou pelo menos, finge j seservir dela apenas como de um instrumento, de uma mediao,de uma expresso. Esta evidncia toma, a partir do sc.XVI, trs direces: uma evidncia pessoal (no protestan-tismo), uma evidncia racional (no cartesianismo), umaevidncia sensvel (no empirismo)35. E justamente nocartesianismo e na sua rejeio do verosmil que se develocalizar a grande dificuldade da retrica em manter um lugarcentral nos sistemas de pensamento moderno. Em traosgerais, pode dizer-se que este foi um perodo de confron-tao entre a cultura da evidncia e a cultura da argumen-

    _______________________________34 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 2335 - Breton, P., A argumentao na comunicao, Lisboa: Publicaes

    D. Quixote, 1998, p. 16

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    A Persuaso

    tao, com esta ltima a ficar para trs, alvo de um des-crdito que afinal, no lhe diz respeito, na medida em quetal descrdito se relacionava apenas com o aspecto estticodo discurso. Como sublinha Breton, foi preciso esperar ataos anos 60 para renascer o interesse da retrica, precisa-mente numa poca em que se comea a tomar conscinciada importncia e do poder das tcnicas de influncia e depersuaso aperfeioadas ao longo de todo o sculo e emque a publicidade comea a invadir com fora a paisagemsocial e cultural36.

    _______________________________36 - Breton, P., A argumentao na comunicao, Lisboa: Publicaes

    D. Quixote, 1998, p. 17

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    II PARTE

    A NOVA RETRICA

    1. - Crtica do racionalismo clssico

    O renascimento do interesse pela retrica muito deve chamada Escola de Bruxelas1, onde - no obstante asdiferentes perspectivas de anlise - trs dos seus maioresrepresentantes, Duprel, Perelman e Meyer, convergiam numponto fundamental: a crtica ao racionalismo clssico. justamente a partir dessa ruptura com uma razo necessria,evidente e universal que Perelman vai elaborar a filosofiado razovel com que, epistemolgica e eticamente, recobrea sua nova retrica, propondo um novo conceito deracionalidade extensivo ao raciocnio prtico, mais compa-tvel com a vivncia pluralista e a liberdade humana do queo consentiria a respectiva noo cartesiana de conhecimento.Sabe-se, com efeito, como ao fazer da evidncia o supremocritrio da razo, Descartes no quis considerar comoracionais seno as demonstraes que a partir de ideias clarase distintas, propagariam, com a ajuda de provas apodcticas,a evidncia dos axiomas a todos os teoremas2. O que surgisseao esprito do homem como evidente, seria necessariamenteverdadeiro e imediatamente reconhecvel como tal. Porprincpio e por mtodo, no se deveria conceder qualquercrena quando se trate de cincia, da qual, afirma Descartes,cumpre eliminar a menor dvida. , de resto, nesta linhade pensamento que surge a sua conhecida tese de que acada vez que sobre o mesmo assunto dois cientistas tenhamum parecer diferente certo que um dos dois est enga-

    _______________________________1 - Cf. Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edies ASA,

    1993, p. 142 - Perelman, C., De lvidence en mtaphysique, in Le Champ de

    Largumentation, Presses Universitaires de Bruxelles, 1970, p. 236

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    A Persuaso

    nado; e at nenhum deles, parece, possuiu a cincia, pois,se as razes de um fossem certas e evidentes, ele poderiaexp-las ao outro de uma tal maneira que acabaria porconvenc-lo por sua vez3. Mas, como sublinha Perelman,a questo no reside no mtodo cartesiano em si mesmo,mas sim, no desmesurado mbito da sua aplicao, querelembremos, seria o de todas as coisas que podem cairno conhecimento dos homens4. que Descartes to poucoquis limitar as suas regras ao discurso matemtico, antesse props fundar uma filosofia verdadeiramente racional e a, como acentua Perelman, que ele d ...um passoaventureiro, que o conduz a uma filosofia contestvel, quandose lembra de misturar uma imaginao propriamente filo-sfica com as suas anlises matemticas, transformando asregras inspiradas pelos gemetras em regras universalmentevlidas5.

    A sua filosofia teria, assim, como finalidade, a descobertada verdade, e como fundamento, a evidncia. Seria umafilosofia inteiramente nova, uma verdadeira cincia queprogrediria de evidncia em evidncia. Apenas enquanto nose alcanasse por este mtodo o conhecimento da verdadeseria necessrio deitar mo a uma moral provisria cujanecessidade Descartes justifica do seguinte modo: para noficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razo meobrigasse a s-lo nos meus juzos, e, para no deixar deviver, desde ento, o mais felizmente possvel, formei paramim prprio uma moral provisria constituda somente portrs ou quatro mximas....6.

    H aqui, como bem observa Rui Grcio, uma ntidadistino entre os domnios da teoria e da prtica e o implcito_______________________________3 - Descartes, Oeuvres, ed. de la Pliade, Paris, 1952, p. 40 cit in

    Perelman, C., Retricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2114 - Descartes, R., Discurso do Mtodo, Porto: Porto Editora, 1988, p. 735 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 1636 - Descartes, R., Discurso do Mtodo, Porto: Porto Editora, 1988, p. 78

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    A Nova Retrica

    reconhecimento das dificuldades que o recurso epochsempre coloca quando se trate de articular a razo com aaco. que se teoricamente, possvel permanecer-seirresoluto, sendo mesmo, como Descartes pensa, indispen-svel esse momento de purificadora suspenso para que oesprito se purgue de todo o tipo de preconceitos e paraque as opinies possam ser ajustadas ao nvel da razo,j no domnio da aco o mesmo no se passa, pois estamossempre, irremediavelmente in media res, incontornavelmenteinseridos em contextos e situaes, apegados a valores,convices e normas ou, para o dizer abreviadamente,indissociavelmente ligados a uma ordem prvia determinantedas possibilidades de sentido para a nossa aco7. Daquidecorre o diferente estatuto que o cartesianismo confere atodo o conhecimento anterior. No plano terico, tudo o que prvio surge como no confivel, como potencial fontede erro e obstculo clareza e distino de uma razo quese cr portadora de uma garantia divina e que por isso mesmocontm em si prpria o critrio para distinguir o verdadeirodo falso. No plano prtico, porm, o prvio impe-se comoindispensvel sob pena de se ficar condenado a uma totalarbitrariedade. o que Descartes reconhece quando depoisde ter formulado os seus preceitos morais provisrios, atribuia estes um fundamento que no vai alm da utilidadeinstrumental de que se revestem: as trs mximas prece-dentes [as regras da sua moral provisria] outro fundamentono tinham seno o propsito de continuar a instruir-me....8.

    Ficam assim evidenciadas as duas principais aporias dateoria do conhecimento cartesiana, por um lado, o carcterassocial e an-histrico do saber e por outro, a ntida se-parao entre teoria e prtica, aporias que iro ser, de resto,o principal alvo da vigorosa crtica de Perelman. Com efeito,

    _______________________________7 - Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edies ASA, 1993,

    p. 188 - Descartes, R., Discurso do Mtodo, Porto: Porto Editora, 1988, p. 82

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    A Persuaso

    no dizer do pai da nova retrica, Descartes elaborou umateoria do conhecimento no humano, mas divino, de umesprito nico e perfeito, sem iniciao e sem formao, semeducao e sem tradio. E deste ponto de vista, a histriado conhecimento seria unicamente a dos seus crescimentose nunca a das suas modificaes sucessivas, pois se, parachegar ao conhecimento, mister libertar-se dos preconcei-tos pessoais e dos erros, estes no deixam nenhum vestgiono saber enfim purificado9. Por outro lado, a separao clarae absoluta entre a teoria e a prtica, faz com que, quandose trate, no da contemplao da verdade mas do uso davida, na qual a urgncia da aco exige decises rpidas,o mtodo cartesiano no nos sirva para nada.

    Mas Perelman no poderia estar em maior oposio tese cartesiana. Rejeitando a possibilidade de acedermos aoabsoluto, vai condicionar a qualificao de conhecimento dimenso probatria do saber afirmado: enquanto a intuioevidente, nico fundamento de todo o conhecimento, numDescartes ou num Locke, no tem a menor necessidade deprova e no susceptvel de demonstrao alguma, qua-lificamos de conhecimento uma opinio posta prova, queconseguiu resistir s crticas e objeces e da qual se esperacom confiana, mas sem uma certeza absoluta, que resistiraos exames futuros. No cremos na existncia de um critrioabsoluto, que seja o fiador de sua prpria infalibilidade;cremos, em contrapartida, em intuies e em convices,s quais concedemos nossa confiana, at prova em con-trrio10. J se antev o relevo que a prova vai ter na suaconcepo de saber e, em especial, na recuperao do mundodas opinies para a esfera da racionalidade, uma racionalidadeassim alargada, que no se confinando mais aos estreitoslimites da verdade ou certeza absoluta, opera igualmente e_______________________________9 - Perelman, C., Retricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 15910 - Ibidem, p. 160

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    A Nova Retrica

    com no menor eficcia nos domnios da razoabilidade ondeo critrio qualificador do racional ser o acordo ou consensoe j no a evidncia cartesiana. Para isso, necessrio afastardo esprito qualquer ideia de uma razo impessoal e ab-soluta. E o que Perelman faz, quando rejeita a identificaodo racional com o necessrio, e do no-necessrio com oirracional, no reconhecimento de que h entre esses doisextremos absolutos todo um imenso campo em que a nossaactividade racional se exerce enquanto instncia darazoabilidade. Analisando sobretudo as caractersticas doraciocnio prtico, ele prope-se mostrar como a razo aptaa lidar tambm com valores, a ordenar as nossas prefernciasou convices, logo, a determinar, com razoabilidade, asnossas decises. Esse o campo da argumentao que eleidentifica com a retrica e por cuja reabilitao e renovaose bate ao fundar a sua teoria da argumentao numa fi-losofia do razovel. Desse modo, a razo humaniza-se e ganhaum novo rosto: a racionalidade argumentativa.

    2. - Por uma lgica do prefervel: demonstrao versusargumentao

    Sabe-se como Perelman foi conduzido retrica. Inici-almente interessado na investigao de uma hipottica lgicade juzos de valor que permitisse demonstrar que uma certaaco seria prefervel a outra, acabou por retirar desse estudoduas inesperadas concluses: primeiro, que no existia, afinal,uma lgica especfica dos juzos de valor e, segundo, queaquilo que procurava tinha sido desenvolvido numa dis-ciplina muito antiga, actualmente esquecida e menosprezada,a saber, a retrica, a antiga arte de persuadir e de conven-cer11. Confessa, alis, que foi da leitura e estudo da retricade Aristteles e de toda a tradio greco-latina da retrica_______________________________11 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 15

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    A Persuaso

    e dos Tpicos, que lhe surgiu a surpreendente revelao deque nos domnios em que se trata de estabelecer aquiloque prefervel, o que aceitvel e razovel, os raciocniosno so nem dedues formalmente correctas nem induesdo particular para o geral, mas argumentaes de toda aespcie, visando ganhar a adeso dos espritos s teses quese apresentam ao seu assentimento12. Da que parta igual-mente da distino aristotlica entre duas espcies de ra-ciocnio - os raciocnios analticos e os raciocnios dialcticos- para evidenciar a estreita conexo destes ltimos (osdialcticos) com a argumentao. Percebe-se que Perelmanquer deixar bem clara a diferena entre estas duas espciesde raciocnio, porque, alm do mais, a anlise dessa dife-rena serve na perfeio para ilustrar a indispensabilidadeda retrica. Para o efeito socorre-se dos Analticos ondeAristteles estuda formas de inferncia vlida, especialmenteo silogismo, que permitem inferir uma concluso de formanecessria, sublinhando o facto de a inferncia ser vlidaindependentemente da verdade ou da falsidade das premis-sas, ao contrrio da concluso que s ser verdadeira se aspremissas forem verdadeiras. Assim, a afirmao se todosos A so B e se todos os B so C, da resulta necessariamenteque todos os A so C, traduz uma inferncia que pu-ramente formal por duas razes: vlida seja qual for ocontedo dos termos A, B e C (na condio de que cadaletra seja substituda pelo mesmo valor sempre que ela seapresente), e estabelece uma relao entre a verdade daspremissas e a da concluso. Naturalmente que se a verdade uma propriedade das proposies, independentemente daopinio dos homens, o raciocnio analtico s pode serdemonstrativo e impessoal. Esse no , porm, o caso doraciocnio dialctico, que Aristteles define como sendo aqueleem que as premissas se constituem de opinies geralmente

    _______________________________12 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 15

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    A Nova Retrica

    aceites, por todos, pela maioria ou pelos mais esclarecidos(o verosmil ser ento aquilo que for geralmente aceite,cabendo aqui referir, no entanto, que, para Perelman aexpresso geralmente aceite no deve ser confundida comuma probabilidade calculvel, por ser portadora de um aspectoqualitativo que a aproxima mais do termo razovel do quedo termo provvel). Mas se o raciocnio dialctico partedo que aceite, com o fim de fazer admitir outras tesesque so ou podem ser controversas, porque tem o propsitode persuadir ou convencer, de ser apreciado pela sua acosobre outro esprito, numa palavra, porque no impes-soal, como o raciocnio analtico. Pode ento fazer-se adistino entre os raciocnios analticos e os raciocniosdialcticos com base no facto dos primeiros incidirem sobrea verdade e os segundos sobre a opinio. que, como dizPerelman, seria ...to ridculo contentarmo-nos com argu-mentaes razoveis por parte de um matemtico como exigirprovas cientficas a um orador13.

    Constata-se assim uma ntida preocupao de revalorizaros raciocnios dialcticos, sem contudo pr em causa aoperatividade dos raciocnios analticos. O que Perelmamdenuncia a suposta purificao feita pela lgica moder-na, especialmente depois de Kant e dos lgicos matemticosterem identificado a lgica, no com a dialctica, mas coma lgica formal, acolhendo os raciocnios analticos, enquan-to os raciocnios dialcticos eram pura e simplesmenteconsiderados como estranhos lgica. Essa denncia assentabasicamente na constatao de que se a lgica formal e asmatemticas se prestam a operaes e ao clculo, tambminegvel que continuamos a raciocinar mesmo quando nocalculamos, no decorrer de uma deliberao ntima ou deuma discusso pblica, ou seja, quando apresentamos ar-gumentos a favor ou contra uma tese ou ainda quandocriticamos ou refutamos uma crtica. Em todos estes casos,_______________________________13 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 22

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    A Persuaso

    no se demonstra (como nas matemticas), argumenta-se.Da que Perelman conclua: pois normal, se se concebea lgica como estudo do raciocnio sob todas as formas,completar a teoria da demonstrao, desenvolvida pela lgicaformal, com uma teoria da argumentao, estudando osraciocnios dialcticos de Aristteles14.

    No mbito da nova retrica, porm, o estudo da argu-mentao, visando a aceitao ou a rejeio duma tese emdebate, bem como as condies da sua apresentao, nose limita recuperao e revalorizao da retrica deAristteles. Comprova-o, desde logo, o facto de Perelmanassumir um diferente posicionamento quanto relao entrea retrica e a dialctica. Recordemos que nos seus Tpicos,Aristteles concebe a retrica como oposta dialctica,chegando a consider-la mesmo como o reverso desta ltima.Essa oposio, contudo, fortemente tributria da distinoque o velho filsofo fazia entre uma e outra: a dialcticacomo estudo dos argumentos utilizados numa controvrsiaou discusso com um nico interlocutor, e a retrica, comodizendo respeito s tcnicas do orador dirigindo-se a umaturba reunida na praa pblica, a qual no possui nenhumsaber especializado e que incapaz de seguir um raciocnioum pouco mais elaborado15. Mas a nova retrica vem rompertotalmente com essa distino, na medida em que passa adizer respeito aos discursos dirigidos a todas as espciesde auditrios, quer se trate de reunies pblicas, de um grupofechado, de um nico indivduo ou at, de ns mesmos(deliberao ntima). Essa , alis, uma das novidades danova retrica em que Perelman pe mais nfase e para aqual apresenta a seguinte justificao: Considerando queo seu objecto o estudo do discurso no-demonstrativo, aanlise dos raciocnios que no se limitam a infernciasformalmente correctas, a clculos mais ou menos mecaniza-

    _______________________________14 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 2415 - Ibidem

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    A Nova Retrica

    dos, a teoria da argumentao concebida como uma novaretrica (ou uma nova dialctica) cobre todo o campodiscursivo que visa convencer ou persuadir, seja qual foro auditrio a que se dirige e a matria a que se refere16.Quando muito, Perelman admite que se possa completar oestudo geral da argumentao com metodologiasespecializadas em funo do tipo de auditrio e o gneroda disciplina, o que levaria elaborao, por exemplo, deuma lgica jurdica ou de uma lgica filosfica, as quaismais no seriam do que aplicaes particulares da novaretrica ao direito e filosofia. Nesta afirmao poderemossurpreender uma outra inovao no seu pensamento retrico,pois dela decorre, como ele prprio assume, uma subordi-nao da filosofia retrica, ao menos, no momento emque se trate de verificar se as teses da primeira merecemou no ser acolhidas. A questo esta: ou se admite quese pode fundar teses filosficas com base no critrio daevidncia e, nesse caso, a filosofia bastar-se- a si prpria,no s quanto sua elaborao mas tambm no tocante sua demonstrao, ou no se admite que se possa fundarteses filosficas sobre intuies evidentes e ser precisorecorrer a tcnicas argumentativas para as fazer prevalecer.Como j vimos, Perelman toma partido por esta segundahiptese, o que o leva a considerar a nova retrica comoum instrumento indispensvel filosofia, na convico deque todos os que crem na existncia de escolhas razoveis,precedidas por uma deliberao ou por discusses, nas quaisas diferentes solues so confrontadas umas com as outras,no podero dispensar, se desejam adquirir uma conscinciaclara dos mtodos intelectuais utilizados, uma teoria daargumentao tal como a nova retrica a apresenta17.Vislumbram-se aqui os primeiros alicerces fundacionaisdaquilo a que, numa das suas obras, vir a chamar O imprio

    _______________________________16 - Perelman, C., O imprio retrico. Porto: Edies ASA, 1993, p. 2417 - Ibidem, p. 27

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    retrico e que se tornam ainda mais visveis quando afirmaque a nova retrica no se limitar, alis, ao domnio prtico,mas estar no mago dos problemas tericos para aqueleque tem conscincia do papel que a escolha de definies,de modelos e de analogias, e, de forma mais geral, aelaborao duma linguagem adequada, adaptada ao campodas nossas investigaes, desempenham nas nossas teorias18.

    Torna-se pois imperioso distinguir entre demonstrao eargumentao, o que Perelman faz com assinalvel clareza,comeando por salientar que, em princpio, a demonstrao desprovida de ambiguidade (ou, pelo menos, assim entendida) enquanto a argumentao, decorre no seio de umalngua natural, cuja ambiguidade no pode ser previamenteexcluda. Alm disso, a demonstrao - que se processa emconformidade com regras explicitadas em sistemas forma-lizados - parte de axiomas e princpios cujo estatuto distintodo que se observa na argumentao. Enquanto numa de-monstrao matemtica, tais axiomas no esto em discus-so, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipteses,e por isso mesmo no dependem tambm de qualqueraceitao do auditrio, na argumentao, a discutibilidadeest sempre presente, j que o seu fim no deduzirconsequncias de certas premissas mas provocar ou aumen-tar a adeso de um auditrio s teses que se apresentamao seu assentimento19. Pode ento dizer-se que, no quadrodo pensamento perelmaniano, a diferena entre demonstra-o e argumentao surge umbilicalmente ligada ao modocomo nele se distingue a lgica tradicional da retrica. Nosurpreende, por isso, que a prpria noo de prova tenhaque ser significativamente mais lata do que na lgica tra-dicional e nas concepes clssicas de prova, pois a neces-sidade e a evidncia no se coadunam com a natureza daargumentao e da deliberao. Nem se delibera quando a

    _______________________________18 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 2719 - Ibidem, p. 29

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    A Nova Retrica

    soluo necessria, nem se argumenta contra a evidncia.Da que Perelman venha dizer-nos que ao lado da provapara a lgica tradicional, dedutiva ou indutiva, impe-seconsiderar tambm outro tipo de argumentos, os dialcticosou retricos. Este alargamento da noo de prova, mostra--se, alis, em perfeita harmonia com o j referido alarga-mento da prpria noo de razo. Organizada por um conjuntode processos que tendem a enfatizar a plausibilidade da teseque se defende, a prova retrica manifesta-se pela fora domelhor argumento, que se mostrar mais forte ou mais fraco,mais ou menos pertinente ou mais ou menos convincente,mas que, pela sua natureza, afasta, partida, qualquerpossibilidade de poder ser justificado como correcto ouincorrecto. Alm disso, o acto de provar fica assimindissociavelmente ligado a uma dimenso referencial queimplica a considerao das condies concretas do uso dalinguagem natural e da ambiguidade sempre presente nasnoes vagas e confusas que integram aquela. Do que setrata agora de realizar uma prova nas e para as situaesconcretas em que se elabora e face s quais se apresentacomo justificao razovel de uma opo, pois, como dizPerelman, a possibilidade de conferir a uma mesma ex-presso sentidos mltiplos, por vezes inteiramente novos,de recorrer a metforas, a interpretaes controversas, estligada s condies de emprego da linguagem natural. Ofacto desta recorrer frequentemente a noes confusas, quedo lugar a interpretaes mltiplas, a definies variadas,obriga-nos muito frequentemente a efectuar escolhas, deci-ses, no necessariamente coincidentes. Donde a obrigao,bem frequente, de justificar esta escolha, de motivar estasdecises20. Rui Grcio assinala aqui uma deslocao fun-damental na noo de prova, no sentido da suadesdogmatizao, sem que, contudo, se tenha de cair no

    _______________________________20 - Perelman, C., cit. in Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto:

    Edies ASA, 1993, p. 79

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    A Persuaso

    cepticismo radical. O que se passa que as exigncias derigor e certeza deixam de se cingir polaridade certezaabsoluta-dvida absoluta, passando a ser apreciadas luzde uma lgica do prefervel (ou informal) que j no visaa verdade abstracta, categrica ou hipottica, mas to so-mente o consenso e a adeso. Abre-se assim espao a umlivre confronto de opinies e argumentos, que permitedimensionar criticamente o acto de provar, ajustando-o spossibilidades e limites da condio humana (ligao como passado, historicidade, impossibilidade de uma linguagempura ou de um grau zero do pensamento) e mostrar quea prpria exigncia de provar s tem verdadeiramente umsentido humano quando nela se vem implicadas a nossaresponsabilidade e a nossa liberdade21. que se o raciocnioterico, onde a concluso decorre das premissas de uma formaimpessoal, permite elaborar uma lgica da demonstraopuramente formal, de aplicao necessria, o raciocnioprtico, pelo contrrio, ao recorrer a tcnicas de argumen-tao, implica sempre um determinado poder de deciso,ou seja, a liberdade de quem julga a tese, para a ela aderirou no. O fim do raciocnio prtico no j o de demonstrara verdade, mas sim, mostrar em cada caso concreto, quea deciso no arbitrria, ilegal, imoral ou inoportuna, numapalavra, persuadir que ela motivada pelas razes indicadas.

    3. - A adeso como critrio da comunicao persuasiva

    3.1. - O duplo efeito da adeso

    Que a retrica visa persuadir e que a adeso , simul-taneamente, o fim e o critrio da comunicao persuasiva, ponto assente. Mas qual a natureza e extenso dessa adeso?Quando se pode afirmar que h ou no adeso? Bastar para

    _______________________________21 - Grcio, R., Racionalidade argumentativa, Porto: Edies ASA, 1993,

    p. 80

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    A Nova Retrica

    tanto que o interlocutor ou o auditrio passem a comungarda mesma ideia que o orador? Poder-se- falar de adesopassiva e adeso activa? Mais: ser possvel estabeleceralguma distino entre adeso e convencimento? SantoAgostinho vem ao encontro deste conjunto de questes quandoconsidera que o auditrio s ser verdadeiramente persu-adido se conduzido pelas vossas promessas e aterrorizadopelas vossas ameaas, se rejeita o que condenais e abraao que recomendais; se ele se lamenta diante do que apresentaiscomo lamentvel e se rejubila com o que apresentais comorejubilante; se se apieda diante daqueles que apresentais comodignos de piedade e se afasta daqueles que apresentais comohomens a temer e a evitar22. Dele nos diz Perelman que,falando aos fiis para que acabassem com as guerras in-testinas, no se contentou com os aplausos e falou at quevertessem lgrimas, testemunhando assim, que estavampreparados para mudar de atitude. Evidentemente que nopodemos, hoje em dia, aceitar integralmente as ideias re-tricas de Santo Agostinho, nomeadamente quando nos falade verdades prticas e preconiza o aterrorizar do auditrio.O que interessa aqui destacar a sua visvel preocupaopor aquilo a que podemos chamar de adeso activa, ouseja, a ideia de que em muitos casos, ao orador no bastarlevar o auditrio a concordar com a sua tese - o que emsi mesmo se traduziria pelo mero assentimento ou disposiode a aceitar - antes ter de se certificar que a adeso obtidaconfigura tambm a aco ou a predisposio de a realizar.Ora a nova retrica contempla igualmente esse duplo efeitoda adeso, j que (...) a argumentao no tem unicamentecomo finalidade a adeso puramente intelectual. Ela visa,muito frequentemente, incitar aco ou, pelo menos, criaruma disposio para a aco. essencial que a disposioassim criada seja suficientemente forte para superar os

    _______________________________22 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 32

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    A Persuaso

    eventuais obstculos23. Um discurso argumentativo ser entoeficaz se obtiver xito num dos dois objectivos possveis:ou conseguir do auditrio um efeito puramente intelectual,ou seja, uma disposio para admitir a plausibilidade de umatese (quando a tal se limite a inteno do orador), ou provocaruma aco a realizar imediata ou posteriormente. Logo, combase no critrio da tendncia para a aco, poderemosconfigurar o primeiro dos efeitos como adeso passiva eo segundo, como adeso activa. Num e noutro caso, porm,sempre est em causa a competncia argumentativa do orador,os metdos e as tcnicas retricas a que recorre e, de ummodo muito especial, o tipo de auditrio sobre o qual queragir.

    3.2. - Persuaso e convencimento: do auditrio parti-cular ao auditrio universal

    Segundo Perelman, justamente pela anlise dos diver-sos tipos de auditrio possveis que poderemos tomar posioquanto distino clssica entre convencimento e persuaso,no mbito da qual se concebem os meios de convencer comoracionais, logo, dirigidos ao entendimento, e os meios depersuaso como irracionais, actuando directamente sobre avontade. A persuaso seria pois a consequncia natural deuma aco sobre a vontade (irracional) e o convencimento,o resultado ou efeito do acto de convencer (racional). Masse, como sugere Perelman, analisarmos a questo pela pticados diversos meios de obter a adeso das mentes, forososer constatar que esta ltima normalmente conseguidapor uma diversidade de procedimentos de prova que nopodem reduzir-se nem aos meios utilizados em lgica formalnem simples sugesto24. o caso da educao, dos juzos

    _______________________________23 - Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 3124 - Perelman, C., Retricas, S. Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 63

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    A Nova Retrica

    de valor, das normas e de muitos outros domnios onde sejulga impossvel recorrer apenas aos meios de prova pu-ramente racionais. Alm disso, afigura-se igualmente muitoproblemtica a possibilidade de determinar partida quaisos meios de prova convincentes e aquel