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EccoS revista científica Centro Universitario Nove de Julho (UNINOVE) [email protected] ISSN (Versión impresa): 1517-1949 BRASIL 2005 Maria da Glória Marcondes Gohn A PESQUISA NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: QUESTÕES METODOLÓGICAS EccoS revista científica, julho-dezembro, año/vol. 7, número 002 Centro Universitario Nove de Julho (UNINOVE) São Paulo, Brasil pp. 253-274 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx

A Pesquisa Na Produção Do Conhecimento- Maria Da Glória Gohn

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Reflexão sobre o papel da pesquisa nas Ciências Humanas, delineia elementos básicos para a elaboração de um projeto de pesquisa e problematiza o tema da prática da pesquisa na área da educação.

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  • EccoS revista cientficaCentro Universitario Nove de Julho (UNINOVE)[email protected] ISSN (Versin impresa): 1517-1949BRASIL

    2005 Maria da Glria Marcondes Gohn

    A PESQUISA NA PRODUO DO CONHECIMENTO: QUESTES METODOLGICAS

    EccoS revista cientfica, julho-dezembro, ao/vol. 7, nmero 002 Centro Universitario Nove de Julho (UNINOVE)

    So Paulo, Brasil pp. 253-274

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina y el Caribe, Espaa y Portugal

    Universidad Autnoma del Estado de Mxico

    http://redalyc.uaemex.mx

  • Artigos

    253EccoS Revista Cientfica, So Paulo, v. 7, n. 2, p. 253-274, jul./dez. 2005.

    O artigo faz uma reflexo sobre o papel da pesquisa nas Cincias Humanas, delineia elementos bsicos para a elaborao de um projeto de pesquisa e problematiza o tema da prtica da pesquisa na rea da Educao, destacando o papel do professor/pesquisador. Seu objetivo central contribuir para a reflexo sobre o papel da pesquisa na produo de conhecimento crtico, num processo qualificado de saber, voltado para a compreenso e transformao da realidade, bem como o compromisso social dos pesquisadores com o repasse dos conhecimentos produzidos sociedade e aos sujeitos informantes da investigao.

    pAlAvrAS-ChAve: Investigao social. Metodologias e mtodos. Pesquisa educacional.

    A peSquiSA nA produo do ConheCimento:

    queSteS metodolgiCAS

    Maria da Glria Marcondes Gohn* *Ps-doutora em Sociologia New School [Estados Unidos]; Doutora em Cincias Polticas USP; Professora titular FE-Unicamp; Professora [email protected], So Paulo [Brasil]

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    1 Introduo

    Nos ltimos anos construiu-se um consenso entre os especialistas da rea da educao de que a pesquisa um elemento essencial na formao do docente. Esta formulao est presente tambm em leis a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a formao de professores da educa-o bsica, nas licenciaturas em nvel superior , que tratam a pesquisa como princpio norteador dessa formao. A idia de que a pesquisa deve ser parte integrante do trabalho do professor na sala de aula tambm vem sendo defen-dida por muitos educadores. Mas como se forma um professor-pesquisador? Qual a especificidade da pesquisa na prtica cotidiana dos professores e como ela se articula s prticas de ensino? Como as pesquisas desenvolvidas nas universidades e centros de pesquisa podem subsidiar prtica docente? Como fazer para devolver aos professores da escola bsica o conhecimento sistematizado numa pesquisa na universidade, a qual muitas vezes foi ela-borada a partir da coleta de saberes dispersos e fragmentados do cotidiano escolar daqueles professores? So questes complexas que retomaremos na terceira parte deste artigo. Para chegar l, o caminho a ser percorrido ser: inicialmente, discutir a pesquisa enquanto ato de investigao e de produo de conhecimento; em seguida, problematizar alguns requisitos bsicos na trajetria de elaborao de um projeto de pesquisa cientfico; por ltimo, ve-rificar as possibilidades da pesquisa cientfica nas escolas de educao bsica, destacando a figura do professor-pesquisador.

    2 A pesquisa e o processo de produo do conhecimento cientfico: pressupostos metodolgicos para uma abordagem crtica

    Autores ilustres e renomados como Goldman (1974) j destacaram as diferenas entre as cincias (humanas e exatas), e partimos destas diferenciaes.

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    A premissa fundamental que une os diferentes campos das cincias a de que o conhecimento uma importante ferramenta para orientar a existncia e con-duzir a humanidade na histria. Para que se leve adiante a histria, toda espcie de vida humana necessita de conhecimento. Atualmente, h vrios escritos que tratam de outros campos do conhecimento, tais como o artstico/esttico, o tec-nolgico, o sensorial/corporal, o espiritual/religioso e o saber popular contido nas tradies, folclores e ritos (SANTOS, 1991). Todos eles produzem saberes, e o saber sempre resultado de uma construo histrica realizada por sujeitos coletivos. Este artigo aborda a pesquisa no campo do conhecimento cientfi-co, aquele que envolve uma atitude investigativa a partir do uso de mtodos e procedimentos e gera aprendizagem e saber sobre a realidade. Desde logo, duas premissas devem ser explicitadas: 1) consideramos que a prpria realidade dialtica, e o pensamento cientfico, uma das modalidades de apreend-la; 2) fundamentamos este texto no mtodo dialtico,1 escolhido dentre os mtodos que, historicamente, foram elaborados para a anlise cientfica desta realidade.

    O que torna a cincia necessria o fato de a realidade no ser transpa-rente. A aparncia e a essncia dos fenmenos no coincidem, embora uma revele elementos da outra. Portanto, o que dialtico a prpria realidade; por isso, precisamos de instrumentos que captem essa dialtica, ou seja, um mtodo de abordagem adequado prpria natureza dos fenmenos e fatos sociais, enquanto objetos de investigao.

    O mtodo cientfico o meio pelo qual se pode decifrar os fatos que no so transparentes, pois seu sentido objetivo deve ser revelado pela cin-cia. Cientfico ser o pensamento que no se contente com a forma como o acontecimento se manifesta pela situao, mas o questiona. Constri-se a partir da investigao dos fatos reais, distinguindo-se o que essencial do que acessrio. Ficar no essencial necessrio para romper com as repre-sentaes ilusrias imediatas. imprescindvel que se analisem os elementos fundamentais da problemtica, retornando pergunta formulada como ob-jeto inicial da investigao.

    1 A produo deste texto tem suas origens no fim dcada de 1970, incio dos anos 1980, perodo marcado por muitas discusses sobre a conjuntura poltica nacional e em que o mtodo dialtico marcou pre-sena nas pesquisas acadmicas (GOHN, 1984). Nessa poca, no ensino da disciplina meto-dologia cientfica, a maioria dos livros sobre o tema no Brasil, em portugus, era do tipo ma-nual, de autores consagrados no exterior (GOODE; HATT, 1969). A pesquisa era tratada como modelo nico, universal, baseada na lgica formal e em mtodos positivistas. crtica ao positivismo dos anos 1970 seguiu-se a crtica ao materialis-mo dialtico marxista nos anos 1980. Surgiram algumas novida-des no campo metodolgico nos anos 1990, com a flexibilizao do rigor no uso de um mtodo nico e vrias composies foram criadas (no passado isto era denominado de ecletismo). Criaram-se agendas de pesquisa. Por tudo isso, considera-se que, no momento atual, oportuno retomar as premissas do mtodo dialtico para a anlise do social. Vrios pesquisadores tm diag-nosticado que o conhecimento cientfico est em crise, devido ao uso de mtodos que preconi-zam o uso da racionalidade, da razo propriamente dita. Nesse contexto, assiste-se a difuso do pragmatismo utilitarista.

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    A realidade, enquanto dialtica, implica o reconhecimento da necessi-dade de sua apreenso como um todo, um todo estruturado que se desenvolve e se recria. O conhecimento dos fatos ou do conjunto dos fatos da realidade significa conhecer o lugar que eles ocupam na totalidade, o prprio real. Este real, no pensamento dialtico, visto como [...] um todo que no apenas um conjunto de relaes, fatos e processos, mas tambm a sua criao, estru-tura e gnese [...] (KOSIK, 1976, p. 42).

    Os fatos isolados so abstraes, momentos artificiosamente separados do todo, os quais, quando inseridos no todo de um determinado esquema conceptual, adquirem concreticidade. Dito de outra forma, o cotidiano pro-duz fatos que geram informaes; para que elas se transformem em dados, precisam passar pelo processo da investigao, da pesquisa propriamente dita. Os dados, correlacionados com esquemas interpretativos, transformam-se em fatos de conhecimento [...] os dados so construdos, eles pressupem sempre esquemas conceituais, que esto, pois, sempre carregados de teoria [...] (LADRIRE, 1977, p. 18). A pesquisa cientfica sempre apreenso de uma totalidade viva, em movimento, que tem uma historicidade. Portanto, os acontecimentos que se apresentam como aspectos isolados devero ser apreen-didos no processo da investigao concreta e submetidos anlise que busca sua gnese constitutiva e sua natureza.

    A viso abstrata, meramente aparente dos fenmenos, elimina as dife-renas existentes, homogeneizando-os e eliminando os conflitos e tenses que existem na realidade. No suficiente o estudo das partes e dos processos, isoladamente; ao contrrio, a forma como os problemas se apresentam na realidade assemelha-se ao conjunto de relaes organizadas que resultam das interaes dinmicas, internas e externas, e fazem com que o comportamento da parte seja diverso se, porventura, for analisado isoladamente no interior de um todo. Kosik (1976) afirma que um fenmeno social um fato histrico medida que for examinado como momento de um determinado todo que

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    no existe j pronto, acabado. Por estar em movimento, torna-se necessrio pesquisar as fontes internas de seu desenvolvimento.

    A pesquisa deve comear por uma reflexo sobre determinadas infor-maes, que se transformam em dado imediato, e ir apanhando os diversos elementos deste universo sensvel, suas vrias determinaes e significaes. O ponto de partida da anlise deve ser a busca de entendimento sobre o cenrio mais amplo daquele problema. nesse cenrio que se encontram explicaes para a dinmica das categorias fundamentais envolvidas no fenmeno em es-tudo. O desenvolvimento da anlise deve partir, portanto, de aspectos mais gerais, dos mais simples para os mais complexos.

    Usualmente, o ponto de partida, no incio da investigao dos fenme-nos da sociedade, dado pelo senso comum, pela prtica aparente e suas re-presentaes. No entanto, a produo do conhecimento cientfico s ocorrer pela ruptura desse senso comum, que dever ser trabalhado de forma crtica, por meio da reflexo, mediada pelo uso de categorias. A elaborao do proces-so de conhecimento inicia quando as categorias selecionadas comeam a dar pistas explicativas para formular conceitos sobre o problema selecionado. So vrias as abstraes que temos de realizar para entender o real, para chegarmos ao chamado concreto histrico pleno de significados (MARX, 1971). Trata-se, portanto, de buscar as relaes e os processos que so constitutivos dos acontecimentos que expliquem a natureza de seu movimento. No se cogita desvelar algo oculto, uma essncia escondida, porque esse procedimento seria mecnico, esttico, contemplativo. Busca-se capturar os elementos que esto constituindo aquele problema. O conhecimento envolve, pois, a decompo-sio do todo pela utilizao de um esquema referencial terico. A pesquisa deve desenvolver-se conforme as exigncias dos acontecimentos, de acordo com seu movimento, e por isso tambm que ela se torna necessria. Os acontecimentos esto em constante mudana; novo e velho esto em contnua interao. No basta pesquisar um fenmeno hoje e transpor sua anlise para os mesmos acontecimentos daqui a algum tempo. No se trata de dar expli-

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    caes finais, ou de buscar leis gerais e finalistas, determinaes fatalistas, para explicar o movimento da realidade.

    medida que a pesquisa se completa, abstrai o que essencial e o que aparente; medida que se aprofunda, capta os nexos internos da pro-blemtica, ou seja, apanha as aparncias e as trabalha. Isso tudo se realiza pela associao e dissociao dos elementos constitutivos dos fenmenos, pela agregao e desagregao de seus aspectos, avanando na clarificao dos as-pectos particulares e de suas formas de articulao ao todo. Esse processo se d pelo uso da razo, de vrias abstraes. A reflexo deve buscar a articulao e a determinao dos fatos, dos objetos, dos dados, das manifestaes etc., de tal forma que, ao final da reflexo, tenhamos delineado um conjunto que expres-se as tendncias, os significados e os movimentos do fenmeno, que expresse, enfim, o chamado movimento real concreto que d vida e confere aquela aparncia aos acontecimentos. Todos os fenmenos e acontecimentos fazem parte de uma totalidade e, por isso, constituem, em si mesmos, um todo sig-nificativo. Podem apresentar-se como caticos, mas a reflexo demorada sobre suas caractersticas e determinaes nos indicar que existe uma estrutura, uma tessitura que continuamente se cria e se recria, pois est em movimento. A diversidade se esconde diante de uma aparente homogeneidade.

    A reflexo profunda sobre os acontecimentos leva-nos aos fundamen-tos das diferenas e das contradies presentes. Nessa reflexo, de extrema importncia explicitar as relaes sociais, econmicas, polticas e culturais envolvidas, mveis bsicos do movimento interno existente nos fenmenos. Deve-se explicitar tambm as idias, os valores e as ideologias que organizam os interesses e a forma de os sujeitos e grupos sociais pesquisados se coloca-rem no mundo. Esta ltima parte importante porque pode revelar o movi-mento de resistncia ou de reorganizao dos sujeitos participantes dos fatos sociais; caracteriza que o movimento histrico no algo predeterminado, pr-moldado por estruturas j existentes na sociedade, ainda que elas sempre estejam presentes e contextualizem os fatos. H sempre liberdade de escolha

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    para os sujeitos; a realidade no uma pgina j escrita, os sujeitos as escre-vem, com suas aes, sob determinadas condies.

    Toda pesquisa deve revelar no apenas o movimento presente dos fenmenos, mas tambm como estes se reproduzem e se transformam. medida que a pesquisa avana, inicia-se o processo de conhecimento, revela-se o que h de universal no particular. O pensamento cientfico evolui dessa forma.

    Se ns quisermos chegar a um conhecimento da realidade social, ser necessrio capt-la em sua prpria produo, isto , em sua ao. Isso no significa cair no empiricismo, porque este despreza a elaborao terica e supervaloriza a observao concebida em moldes positivistas.

    A abordagem de um fenmeno como objeto de estudo na sua totalida-de e complexidade no nega a necessidade do uso de um instrumento tcnico, porm seu tipo e as condies de sua aplicao variam segundo as problem-ticas. o movimento dos fenmenos que determina os instrumentos que iro capt-los e no o inverso.

    Os dados so os elementos que nos permitem construir os fatos sociais de conhecimento, a partir de um processo de abstrao em que eles se con-frontam e se defrontam com categorias de anlise, articuladas imediatamente problemtica terica (SCHAFF, 1978). Os dados, brutos em si, no dizem nada se no forem mediatizados pelas categorias, por meio da reflexo que se articula a um corpo terico preexistente (MARCUSE, 1978).

    As crticas ao empiricismo e ao saber tcnico descomprometido so pas-sos necessrios, mas preciso tambm avanar mais, pois precisamos refletir sobre os instrumentos de pesquisa disponveis.

    Em suma, necessrio constituir uma prtica de investigao que resul-te numa prtica efetiva de produo de conhecimentos. Na formao de pes-quisadores em cincias humanas, deve-se desenvolver estratgias de pesquisa a partir de trs elementos bsicos: um quadro terico, um quadro epistemol-gico e um quadro tcnico.

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    3 Projeto de pesquisa: consideraes metodolgicas

    Conforme enumeraes a seguir.

    3.1 A problematizao de um tema e a formulao do problema

    No se deve confundir um projeto de investigao dotado de carter cientfico, cuja meta principal a produo de um conhecimento, e que dever ser embasado por metodologias do campo da produo do saber com o projeto de interveno voltado para a implementao de dire-trizes determinadas, ou uma poltica, aplicadas em circunstncias e gru-pos especficos. Este texto se refere ao projeto de investigao cientfica, construdo a partir de procedimentos que buscam o conhecimento. A atitude investigativa permanente, metdica e rigorosa deve ser o norte e o diferencial desse tipo de pesquisa.

    Um projeto deve ter ttulo bem claro que expresse precisamente o que se prope investigar ou analisar. O ttulo de um projeto enuncia um tema e circunscreve-o no universo de uma determinada temtica. Para isso, deve contemplar recortes e no generalidades. Na educao, por exemplo, os recortes temticos podem focar a rea da formao, do ensino/aprendizagem, da produo do conhecimento propriamente dito, da gesto e planejamento, da histria, psicologia, sociologia, eco-logia, linguagem etc. Note-se que todas as reas so temticas, recortes de um tema mais geral, a educao.

    Uma vez definido um tema, deve-se problematiz-lo. Deve-se indagar sobre o que j foi pesquisado a respeito daquele tema, quem o pesqui-sou, que questes foram abordadas, qual a perspectiva terica adotada, quais questes ainda no foram tratadas a seu respeito etc. No existe

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    processo espontneo de produo de conhecimento. preciso dominar os conhecimentos produzidos em determinada rea para, por meio da investigao, problematiz-los. O conhecimento produzido no gera-do a partir do zero. S se pode construir conhecimento novo quando se domina o velho.

    Um projeto cientfico deve partir de um problema, sem o qual no h justificativa para investigao, que deve ser apresentado, geralmente, sob a forma de uma indagao em torno de um determinado objeto de investigao situado num campo preciso (social, econmico, poltico, cultural, tico, territorial etc.). A pergunta no pode ser vista como algo mecnico, preocupada apenas em obter uma resposta, numa re-lao causa/efeito. Por ela ser fruto de uma problematizao, deve estimular o pesquisador a estruturar um conjunto de procedimentos que lhe possibilite compreender e explicar o problema (BOOTH; COLOMB; WILLIANS, 2000). A pesquisa dever investigar, pro-duzir um conhecimento sobre esse objeto e captar seus elementos e movimento interno e com o exterior, onde se localiza, buscando suas relaes e articulaes.

    Ao focalizar um objeto de pesquisa, o pesquisador estabelece uma di-nmica de interao com esse objeto, fazendo perguntas e buscando, nas respostas, as explicaes. Com isso, transforma-o em sujeito da investigao.

    Ao fazer perguntas ao objeto, o pesquisador inicia o processo de dese-nho de suas fontes. Pesquisar trabalhar sobre e a partir de fontes. Elas indicam os lugares e os sujeitos que detm as informaes, e onde os dados sero coletados. As fontes orientam a escolha dos instrumentos para coleta, sistematizao e registro dos dados (LAVILLE; DIONNE, 1999; BLANCHET; GOTMAN, 2001; SEVERINO, 1993).

    A partir do problema, delineiam-se os objetivos da investigao.

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    3.2 Justificativa e relevncia

    Deve-se justificar a escolha de um dado tema como um problema rele-vante para a pesquisa tomando como referncia o outro, a saber: a sociedade, a universidade, o Estado, ou outro territrio de pertencimento daquele pro-blema, e os sujeitos que se articulam com sua temtica. Deve-se destacar sua importncia para um conjunto maior (da populao, de um grupo social, de um setor da economia etc.). A relevncia de um estudo dada pelo outro ou pelo objeto num determinado contexto social; por isso, o contexto gerador do problema ou localizador dos fatos que o norteiam de suma importncia.

    Deve-se ponderar, no projeto, sobre a apropriao do conhecimento ge-rado. Aqui se pe um grande desafio: disseminar essas informaes e repassar seus resultados. Os contedos devem ser repassados para aqueles que foram sujeitos da investigao. Nessa esteira, o projeto de pesquisa precisa prever um caminho pedaggico de devoluo dos resultados, pois a relevncia de um tema no estar completa se esse item no for contemplado. O conhecimento deve ser disponibilizado de forma universal e no se restringir a grupos da comunidade acadmica. No limite, o objetivo geral de uma pesquisa deve ser o de trazer luz os mecanismos e instrumentos necessrios para que se possa vencer os obstculos da vida cotidiana e fazer a humanidade caminhar na direo da justia social, da igualdade, da cidadania, da sade e felicidade de todos. O projeto deve explicitar e explicar como est ocorrendo o movimento do fenmeno estudado e indicar suas possveis trajetrias, segundo as relaes que os constituem naquele momento.

    3.3 O quadro referencial terico

    O carter crtico de uma pesquisa dado pelo mtodo utilizado, do ponto de vista do paradigma referencial terico que o alicera.2 Mtodo o caminho, o processo e o instrumento que possibilitam direcionar a busca do

    2 Paradigma o conjunto maior de articulao entre teoria, con-ceitos, categorias, pressupostos. Um paradigma d forma ao referencial terico do autor de um texto (KUHN, 1978).

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    saber. No h um mtodo de abrangncia universal. Ele uma mediao na relao sujeito/investigador-objeto de estudo. O mtodo algo necessrio, pois sem ele no se faz pesquisa embora se tenham produzido discursos e textos contra o mtodo, ele que d as diretrizes gerais.

    Metodologia a doutrina e a teoria do mtodo. Ela explicita os pres-supostos e os caminhos do mtodo e estabelece a forma de organizao do conhecimento construdo a partir de um determinado mtodo.

    Fogem do escopo deste artigo a discusso e apresentao dos principais mtodos de pesquisa nas cincias humanas. Convm lembrar que h vrias formas e denominaes na classificao desses mtodos, tais como dialticos, positivistas/funcionalistas, estruturalistas, fenomenolgicos, interativos, idea-listas, culturalistas e pragmatismos. Ver, entre outros, Outhwaite e Bottomore (1996), Bottomore e Nisbet (1978), Giddens (1972). Alguns autores recor-rem filosofia para classific-los, segundo as razes que os fundamentam: dia-ltica, dialgica, contemplativa, hermenutica, comunicativa, ps-moderna, histrica etc. (HHNE, 1994).

    Em sntese, o quadro referencial terico deve apresentar as linhas gerais que orientam a pesquisa em termos de teorias, conceitos, categorias e noes metodolgicas. A citao de outros autores que j pesquisaram o tema e os conceitos bsicos que utilizaram aparecem num quadro referencial terico, pois cada teoria e seus conceitos tm matrizes paradigmticas filiadas a al-gumas tradies analticas. Um breve retrato do estado da arte dos estudos sobre o tema referenciais paradigmticos e categorias utilizadas item a ser trabalhado no quadro terico. Um bom quadro referencial terico aquele que permite desenvolver um percurso que seja o fio condutor da pesquisa, ele sugere e lana luzes sobre as explicaes. Um problema de investigao s se explica se estiver relacionado ao referencial terico que o gerou.

    Segundo Queirz (2005), o quadro referencial terico de um projeto pode ser elaborado a partir de trs perspectivas: adoo de uma dada teoria, concepo de determinado autor e explicitao de alguns conceitos e catego-

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    rias bsicas que configuram determinada orientao terica. Queiroz lembra que a teoria surge no processo de conhecimento sempre como um recorte, um retrato parcial da realidade. Uma vez elaborada (ou adotada), serve para indi-car lacunas e gerar novos problemas de pesquisa. O quadro terico tem sido sistematizado por alguns autores em um conjunto de princpios, categorias e conceitos. (SEVERINO, 1993).

    Noes, categorias, conceitos e hipteses, enquanto elementos bsicos de uma teoria, so instrumentos de reflexo, de mediao, na prtica inves-tigativa, entre o pensamento e a ao no trabalho de campo (CASTELLS; IPOLA, 1973). A teoria faz parte de um raciocnio e se apresenta como con-junto lgico, com supostos e pressupostos. Ela ser o instrumento bsico para a formulao das perguntas a um problema, na construo do objeto a ser investigado. O pensamento capta e organiza o real em categorias, cdigos e definies.

    As categorias so os elementos do sistema que serve de estrutura ao co-nhecimento cientfico. Elas orientam o pensamento no sentido da procura de soluo de novos problemas cientficos e auxiliam na organizao do campo da pesquisa. Na dialtica, as categorias constituem o instrumento bsico de produo de conhecimentos. Elas exprimem o modo de ser, no so criaes arbitrrias do pensamento. Podem apresentar-se como elementos abstratos complementares, tais como tempo/espao; forma/contedo; quantidade/qualidade. Podem ser tambm ferramentas determinadas pela temtica, como professor/aluno; sociedade civil/sociedade poltica; povo/governo; escola/comunidade ou, ainda, bases de conceitos operacionais articulados (no mais em duplas), tais como classe, estado, trabalho, ideologia e participao.

    Cada poca histrica engendra suas categorias e tambm suas formas de apreenso e sistematizao pelo pensamento. Para a decomposio do objeto de estudo, as categorias servem de mediaes. O sujeito que investiga agente dessas mediaes. Ele faz contnuas perguntas; novas categorias so continu-amente recriadas. O processo de conhecimento vai explicit-las, articulando-

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    as ao movimento do pensamento, indo das mais gerais s mais simples, que captam a singularidade dos fenmenos, possibilitando, assim, a explicitao dos conflitos e contradies presentes. (GORTARI, 1972).

    Conceitos so ferramentas para decompor o todo, para que se pos-sa reproduzir a estrutura de um fenmeno e, portanto, compreend-lo. Essa decomposio do todo elemento constitutivo do conhecimento. Os conceitos, elementos bsicos de abstrao, resultam de um movimento da razo, por meio do qual o pensamento transforma o todo catico das repre-sentaes no todo transparente dos conceitos. Eles so unidades mnimas de uma teoria.

    4 Consideraes sobre a pesquisa na rea da Educao

    Nosso ponto de partida : no podemos esquecer de que o ato de in-vestigao , em si mesmo, um ato pedaggico. O referencial terico de uma pesquisa um guia, uma diretriz que no pode ser vista como produto pr-fabricado que retiramos da prateleira para ser utilizado. O referencial tem que ser interpelado, continuamente, pelos dados que vo sendo coletados. Portanto, falar sobre a pesquisa na rea da educao significa reconhecer, an-tes de tudo, que a pesquisa um ato pedaggico de aprendizagem que ocorre na relao entre os sujeitos envolvidos. A pesquisa tambm geradora de contedos que expressam saberes e conhecimentos. A pesquisa envolve, por-tanto, aprendizagens e saberes tanto na forma (com suas prticas) quanto no contedo (teorias e explicaes elaboradas).

    Pontuaremos a seguir algumas possibilidades para a pesquisa na rea da educao, tomando a escola bsica como referncia, de forma que as elabora-es terico-metodolgicas desenvolvidas anteriormente neste texto possam ganhar alguma concretude. Sabemos do risco de ficar no plano de norma-tizaes, contrapondo certos modelos de pesquisa a partir de imperativos:

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    deve ser, necessrio, podemos ter etc. Mesmo assim, vamos tentar expor os argumentos em outras direes.

    As indagaes iniciais so: possvel desenvolver a pesquisa cientfica, segundo o mtodo dialtico, nas escolas ou com as escolas? Que fundamentos metodolgicos contemplam as atuais propostas de pesquisa destinadas a for-mar o professor-pesquisador?

    Quando falamos da pesquisa na educao podemos ter em mente dois cenrios:

    Primeiro: a pesquisa ocorre no interior da escola: de um lado, temos o professor dedicando algumas horas dirias de seu trabalho para fazer uma pesquisa com o intuito de preparar melhor uma aula, ou de se integrar num trabalho coletivo da escola visando a refletir sobre sua prtica e sobre a realidade escolar; de outro, temos os alunos sain-do da atitude de ouvintes receptores de aulas expositivas, tornando-se agentes do processo, trabalhando em grupo, pesquisando um tema. Professores e alunos esto procurando, buscando numa atitude seme-lhante quela que deu origem ao conhecimento cientfico a partir do sculo XVII na Europa, quando surgiu o termo pesquisa como sin-nimo de busca.3

    Segundo: focaliza a pesquisa na escola, do exterior para o seu inte-rior, via pesquisadores acadmicos, com interesses no desenvolvimen-to de seus laboratrios e grupos de pesquisa, trabalhando com grupos especficos de professores da escola bsica, ou projetos elaborados nas estruturas das prprias redes de ensino, implantados como diretrizes de ao s escolas. No cenrio externo, tem-se dado muita nfase metodologia da pesquisa-ao e pesquisa colaborativa, como mode-los ideais para desenvolver a pesquisa nas escolas (STENHOUSE et al. apud NUNES; RAMALHO, 2005). Nos dois cenrios, a justificativa para a pesquisa na vida cotidiana de trabalho dos professores apresenta

    3 Foi a partir de buscas que o processo de conhecimento foi deixando de ser contemplativo, tendo por base a curiosidade do ser humano de entender a natureza por meio de aes sistemticas. A prpria cincia moderna se estabeleceu neste processo. Na poca, j havia a conscincia da necessidade da busca para que o conheci-mento fosse sistemtico, til, cooperativo. Houve, progres-sivamente, um deslocamento da simples curiosidade dos humanistas para uma atitude investigativa, de pesquisa, por parte dos homens de saber, os cidados da Repblica das Letras, ou os filsofos ilumi-nistas. Eles trabalhavam nas academias, laboratrios, museus e em outros espaos alternativos, porque a maioria das univer-sidades, desde a Idade Mdia e em parte do Renascentismo, opunha-se pesquisa cientfica, uma vez que sua finalidade era transmitir um saber j existente (BURKE, 2003). A experincia laboratorial e o empirismo criaram a pesquisa cientfica e deram as bases s concepes de progresso, inovaes e indus-trialismo. O positivismo herdou esses ideais e tentou aplicar os mesmos procedimentos de an-lise da realidade fsica, material, ou biolgica, para entender a sociedade e o comportamento humano; tratou fatos sociais como coisas, no foi alm de sua aparncia, mas gerou metodolo-gias que at hoje so utilizadas para descrever o cotidiano.

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    argumentos semelhantes: transform-los em agentes de mudanas, me-lhorar suas prticas, adotar um novo agir profissional, construir novas atitudes que levem a novas identidades profissionais etc.

    Algumas questes no ficam claras nas propostas do professor-pesquisador: como formar estas novas posturas identitrias num cotidiano com horrios sempre reduzidos? Como ser a nova diviso de trabalho destes docentes? Ter sido feita a formao para a pesquisa no processo de gradu-ao desses professores? No so os curricula das faculdades (de Educao e outras reas) que deveriam mudar e cuidar da formao do professor e do pesquisador simultaneamente? Cursos rpidos, treinamentos, capacitaes e reciclagens formam um professor-pesquisador? Esto resultando em mudan-as? Qual a escala desses trabalhos e qual a possibilidade de sair do quadro de grupo experimental?

    Entretanto, as questes cruciais so outras: qual o tipo de pesquisa que se est praticando? Ser a pesquisa cientfica? Que mtodos do suporte a essas pesquisas? Ser que no se trata de novas estratgias de integrao, na medida em que no se ocupam da formao dos professores com vistas produo do conhecimento cientfico, mas se tratam de melhorar a competncia e a eficincia de desempenho dos professores? Minha opinio que usualmente as propostas se referem pesquisa de interveno, e no propriamente a pes-quisas cientficas. Seu objetivo mudar ou alterar comportamentos, hbitos e atitudes, introduzindo procedimentos nas formas de atuar no cotidiano, dentro de uma realidade aparente, tensa e conflituosa, que nunca desvelada, investigada de fato.

    Quando falamos da ausncia da pesquisa cientfica, e acreditamos que ela seja possvel dentro do universo de trabalho dos profissionais de uma esco-la, no significa dizer que tencionamos alterar o objetivo principal da escola que o da formao plena dos cidados por meio do exerccio prtico/terico do ensino e aprendizagem de saberes. No objetivamos transformar as escolas

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    em centros laboratoriais de pesquisa acadmica. Longe disso! As pesquisas no so neutras. Acreditamos, sim, na possibilidade de prticas fundamentadas no exerccio do pensamento crtico que levem a um outro tipo de formao de professores e dos alunos. Prticas reflexivas que levem os sujeitos a interpretar a realidade em que atuam, articulando idias e aes que possam produzir transformaes qualitativas do cotidiano vivido.

    Para a sala de aula transformar-se em territrio educativo, investigati-vo e produtor de saberes, deve-se mudar radicalmente algumas concepes e prticas que imperam:

    Primeiro, novas culturas so necessrias na dinmica cotidiana da escola para que a pesquisa se incorpore ao cotidiano escolar como produtora de saberes e a escola seja vista como espao civilizatrio, de formao, com acesso a conhecimentos historicamente acumulados, que permi-tam desenvolver potencialidades humanas no campo das artes, expres-so do pensamento, criatividade e liberdade. Professores e alunos de-vem aprender a fazer uma leitura crtica do mundo (FREIRE, 1985), entender, minimamente, o contexto histrico que vivenciam, sua hist-ria local, para saberem projetar essa compreenso num todo maior, na histria de seu tempo, mas tambm na histria do pas e do mundo, de forma crtica. A escola, vista pelos futuros ingressantes no mercado de trabalho como mera ferramenta para formar habilidades e competn-cias, no poder desenvolver outro tipo de pesquisa que a mecanicista, positivista, experimental da aparncia das coisas , ou a baseada no pragmatismo utilitarista, que usa procedimentos experimentais e v a cincia como a administrao inteligente da experincia.

    Segundo, o professor-pesquisador no pode ser um instrutor-transmissor de informaes; deve-se superar a viso do professor como mero instru-tor ou tcnico e entend-lo como incentivador, orientador dos alunos, um motivador para o exerccio permanente da dvida, do debate, do

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    dilogo, da elaborao da crtica. Vo nesse sentido as aes de motivar os alunos para a escolha de um tema; ir biblioteca da escola e do bairro ou regio; praticar a leitura coletivamente; organizar um roteiro de trabalho sobre determinado tema; debater como abord-lo, locali-zando suas referncias segundo o grau e nvel de compreenso do cole-tivo; exercitar a escrita por meio da produo de pequenos textos que registrem os percursos e as concluses dos dilogos e buscas. Assim, os alunos podero romper com a passividade da escuta e aprender de fato. Os professores precisam ser instigados ao ato de ler comum o comentrio de que os livros das bibliotecas escolares no so lidos pelos professores. Os acervos das bibliotecas devem ser ampliados, em nme-ro e abrangncia temtica, mas, sobretudo, utilizados. Os professores tambm precisam ter o hbito regular de escrever. O computador tem de estar presente, no apenas para ser usado como mquina de digita-o; a formao de professores deve abranger tambm o domnio dos equipamentos tecnolgicos, eles devem aprender a localizar e selecionar informaes na internet. Estes so atos investigativos, de pesquisa, que podem ressignificar a cultura vigente na escola na direo de prticas emancipatrias e formar professores e alunos investigadores. O currcu-lo escolar e a formao dos docentes tm de ser revistos.

    Nas pesquisas acadmicas sobre o cotidiano da escola, raro encontrar-mos exemplos que superem a descrio de sua aparncia, que expliquem, de forma crtica e abrangente, o pesquisado.

    A quem servem estas pesquisas? Certamente que os pesquisadores que delas participam desenvolvem uma sensibilizao pelos problemas e apren-dem a dura realidade das condies do cotidiano. Mas e a escola propriamente dita? Continua na mesma situao e no mesmo ritmo? Parece que sim, infeliz-mente. Seu cotidiano segue ditado pelas normas, regras, horrios, disciplinas, calendrios, requisies burocrticas etc. Cada novo administrador pblico

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    formula um novo projeto para a educao, usualmente empregado como slo-gan para demarcar diferenas nas posturas polticas. sempre um contnuo recomear que desgasta e corri as esperanas dos professores.

    A velha questo retorna: o que fazer? O estudo do cotidiano impor-tante, sua descoberta possibilitou jogar luz sobre processos que antigas an-lises exclusivamente macroestruturais no captavam como as singularidades e subjetividades e as culturas locais. Mas no cotidiano podemos encontrar tambm todos os elementos da estrutura mais geral que condicionam e apri-sionam a escola, especialmente a pblica, numa ciranda de problemas. Basta olharmos para os efeitos das reformas neoliberais dos ltimos dez anos na ges-to da escola, na carreira dos seus docentes, nos programas e projetos sempre apresentados como voltados para a melhoria da qualidade do ensino etc., ou para a reproduo cotidiana dos problemas maiores da sociedade, como a vio-lncia ou as drogas. Portanto, o cotidiano deve ser o ponto de partida de uma pesquisa dialtica nas escolas. No basta, porm, registrar as representaes dos sujeitos, elas podem expressar formas de ver e pensar, mas o pesquisador tem que ir alm delas. necessrio localizar as falas e as representaes no universo de valores daquelas personagens; buscar explicar as matrizes que or-ganizam esses valores, os interesses que os condicionam, as estruturas econ-micas e culturais que propiciam aquelas representaes; quais negam e quais reafirmam a condio socioeconmica e cultural daquelas personagens; quais as culturas de resistncia existentes, quais os jogos de linguagens e que tipo de comunicao elas estruturam. preciso recordar-se de Benjamin (1993) que nos alerta sobre outras formas de integrao dos grupos nas instituies. No existem apenas os imperativos funcionais de controle.

    Em suma, fazer uma pesquisa, segundo o mtodo dialtico, pressupe desenvolver um pensamento crtico (no sentido de no aceitar a primeira ex-plicao, mas question-la, buscar super-la), historicizar a escola e seus pro-blemas, localiz-la em seu territrio, buscar seus laos de origem e pertenci-mentos, resgatar a cultura de seus membros e do local, recuperar a histria de

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    vida dos sujeitos (BERTAUX, 2005), indagar sobre os projetos implementa-dos pelas estruturas superiores, captar as nfases das polticas que esto sendo desenvolvidas etc.

    A pesquisas cientficas desenvolvidas na universidade tm de retornar s escolas como instrumentos que contemplem uma interpretao daquela reali-dade, que possibilitem vislumbrar mudanas, que faam diagnsticos dos pro-blemas a partir da anlise da trama de relaes que os configuram. S assim as pesquisas podero ser ferramentas que promovam alteraes qualitativas, que contribuam para a melhoria da escola e das relaes que l se desenvolvem. Na escola, a pesquisa deve ser vista como princpio cientfico e educativo, parte integrante de um processo emancipatrio, o qual, nos dizeres de Demo (1999, p. 42), aquele que [...] constri o sujeito histrico auto-suficiente, crtico e auto-crtico, participante, capaz de reagir contra a situao de objeto e de no cultivar os outros como objeto [...].

    Nas prticas escolares j estabelecidas, ou impostas pelos contnuos pa-cotes de reformas, h que distinguir as culturas organizacionais existentes, que possibilitam a introduo de inovaes substantivas, supostamente elaboradas a partir de pesquisas crticas, daquelas culturas que so resistentes s mudan-as, porque conservadoras ou vinculadas a interesses de grupos especficos. H tambm que se cuidar da forma de linguagem para o retorno da pesquisa escola, para que no se criem barreiras a essa comunicao.

    the reSeArCh in the knowledge produCtion: methodologiCAl queStionS

    This paper makes a reflection on the research role in Human Sciences, outlines some basic elements for the elaboration of a research project and

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    key wordS: Educational research. Methodologies and methods. Social investigation.

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    recebido em: 3 out. 2005 / aprovado em: 21 dez. 2005.

    Para referenciar este textoGOHN, M. da G. M. A pesquisa na produo do conhecimento: questes metodolgicas. EccoS Revista Cientfica, So Paulo, v. 7, n. 2, p. 253-274, jul./dez. 2005.