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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
FELIPE PAIVA SOARES
A POLIFONIA CONCEITUAL
A resistência na História Geral da África (Unesco)
Niterói
2014
2
A POLIFONIA CONCEITUAL
A RESISTÊNCIA NA HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA (UNESCO)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em História.
Campo de influência: História
Contemporânea II
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Bittencourt (Orientador)
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________
Prof. Dr. Alexsander Gebara
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________
Profª. Drª. Andrea Marzano
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
3
AGRADECIMENTOS
À Martha, minha mãe. Ao Victor, meu irmão. Às Margaridas, minhas avós. Por tudo e
por sempre.
Ao José, meu avô. À Mãezinha. Pela memória de vocês que permanece em nós.
À Prof.ª Dr.ª Ismênia de Lima Martins. Pelo encorajamento e convivência intelectual.
Ao Prof. Dr. Marcelo Bittencourt. Pela orientação, críticas e sugestões.
Ao Prof. Dr. Alexsander Gebara e à Profª. Drª. Andrea Marzano. Pelas críticas e
sugestões.
Ao Wendel e ao Antônio. Pela amizade, sempre fiel e fraterna.
À Núbia. Pela amizade, pelo continente que temos em comum.
4
RESUMO: Este trabalho pretende realizar uma análise do conceito da resistência na
historiografia especializada em temas da insubordinação anticolonial africana. O foco
recai sobre a História Geral da África editada pela Unesco. A obra funciona como
espaço delimitador a partir do qual se entrelaça um conjunto mais amplo de fontes. A
hipótese básica reside na ideia de o conceito da resistência não possuir, nessa
historiografia, um significado unívoco, sendo sua malha vocabular preenchida por
diversos conteúdos teóricos, políticos e ideológicos. Isto desemboca em um dissenso
epistêmico aqui designado como Polifonia Conceitual.
ABSTRACT: In this work we intend to perform an analysis of the concept of resistance
in the specialized topics in historiography of African anticolonial rebellion. The focus is
on the General History of Africa edited by Unesco. Indeed, the work functions as a
delimiter space from which intertwines a broader set of sources. Our basic hypothesis is
the fact that the concept of non-resistance, this historiography has a univocal meaning,
and its vocabulary mesh filled with different theoretical, ideological and political
content. This leads to an epistemic disagreement which we designate as conceptual
polyphony.
5
O chacal com um olho que olha para trás e outro que olha para a
frente, para o caminho a seguir. Nas suas presas, estão pedaços
do passado que ele traz para você, e quando todo esse tempo
estiver inteiramente descoberto, vai ficar claro que já era
conhecido.
Ondaatje.
O Poder da palavra é terrível. Ela nos une, e a revelação do
segredo nos destrói.
Dito esotérico.
6
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 7
CAPÍTULO I - A PÁTRIA E O DESTERRO ......................................................... 15
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15
GÊNESE DA PERSPECTIVA AFRICANA ......................................................................... 16
A PERSPECTIVA AFRICANA NA HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA......................................... 23
ULISSES RETORNADO - A ÁFRICA COMO PÁTRIA ... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.1
ABORDAGENS DA PERSPECTIVA AFRICANA ................................................................ 39
O VOCÁBULO RESISTÊNCIA NA HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA ........................................ 40
CAPÍTULO II - O CONCEITO. PARTE I: RESISTÊNCIA E EXPANSÃO
COLONIAL .............................................................................................................. 54
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 54
COLONIALISMO: UMA INSTÂNCIA TRAUMÁTICA ......................................................... 55
GÊNESE DOS ESTUDOS ACERCA DA RESISTÊNCIA ........................................................ 59
A ABORDAGEM TRADICIONALISTA ............................................................................ 60
A ABORDAGEM “MARXISTA”..................................................................................... 75
RESISTÊNCIA E TEMPORALIDADE .............................................................................. 85
CAPÍTULO III - O CONCEITO. PARTE II: RESISTÊNCIA E LIBERTAÇÃO
NACIONAL ............................................................................................................ 107
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 107
DO PROTESTO À RESISTÊNCIA ................................................................................. 108
PROTESTO, RESISTÊNCIA E TRADIÇÕES .................................................................... 123
A RESISTÊNCIA NOS ESTUDOS DE CASO .................................................................... 133
INTERLÚDIO: RESISTÊNCIA E LÓGICA HISTÓRICA ...................................................... 140
NACIONALISMO E LIBERTAÇÃO............................................................................... 143
CODA ...................................................................................................................... 156
7
INTRODUÇÃO
A nau chegou às margens do Oceano de correntes profundas/ Mas uma noite
terrível se estende sobre os mortais infelizes.
Homero, Odisseia.1
Conta a história que, em meados do século XIV, o então soberano do império do
Mali, o Mansa Muhamed, convenceu-se de que na outra borda daquela grande extensão
de água – o Oceano Atlântico - haveria terra firme a ser explorada. Assim, organizou
uma expedição que deveria chegar à outra margem. Tendo esta sucumbido, o Mansa,
inconformado, mandou preparar outra de proporções ainda maiores e foi, ele próprio, à
testa. Nada mais se soube dele e dos demais tripulantes. O mais provável é que tenha
sido engolido pelo oceano já que suas embarcações, desprovidas de velas adequadas que
lhes dessem direção, estavam fadadas a perderem-se no mar.2
Séculos mais tarde, em terra firme, Walter Benjamin escreveria que o
importante, de fato, ao historiador dialético, é trazer o vento da história para as suas
velas. As palavras são velas que, se bem içadas, podem converter-se em conceitos.3
O presente trabalho pretende realizar uma discussão teórica em torno da ideia de
resistência - tal como é definida e problematizada pelas diferentes tendências
historiográficas que abordam as ações e iniciativas anticoloniais no continente africano -
tendo como principal espaço amostral a coleção História Geral da África, editada pela
Unesco. Tal obra funcionará como contorno delimitador da análise, sem, entretanto,
restringir a investigação.
De dimensões oceânicas, a História Geral da África conta com oito volumes,
cada um com cerca de novecentas páginas. Sua travessia é, portanto, tarefa delicada.
Para não sucumbir frente à suas proporções - tal como o Mansa malinês sucumbiu ao
Atlântico - é preciso içar velas equivalentes tanto à sua extensão e profundidade quanto
à complexidade da tarefa proposta. Dessa forma, cabe, preliminarmente, apresentar o
instrumental analítico que conduzirá a investigação.
1 Homero, Odisseia, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 297.
2 Uma narrativa pormenorizada do episódio encontra-se em Alberto da Costa e Silva, A Enxada e a
Lança. A África antes dos portugueses, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011, pp. 317 – 342. 3 Walter Benjamin, Passagens, Belo Horizonte, Editora UFMG/São Paulo, Imprensa Oficial, 2006, p.
515.
8
Nossa hipótese central repousa no seguinte argumento: existe a predominância
de um dissenso epistêmico entre os diferentes autores que tratam da resistência africana.
A multiplicidade de tendências teóricas e ideológicas entre os investigadores que
compõem a obra acaba desembocando em igual diversidade conceitual no tocante à
definição da resistência. A História Geral da África mostra-se, dessa forma, como um
espaço habitado por múltiplas vozes, cada uma delas representando uma tendência na
definição da resistência africana. A isso denominaremos como polifonia conceitual.
Faremos uso, portanto, de uma noção advinda da música. Polifonia significa,
simplesmente, vozes múltiplas.
Diz-se que uma peça musical é polifônica quando possui duas ou mais linhas
melódicas - vozes ou partes - que soam simultaneamente. Formalmente a polifonia
distingue-se da monofonia, cuja melodia é acompanhada no mesmo ritmo por outras
vozes ou partes. Entretanto, na prática musical concreta e nas composições em geral,
ambas não são mutuamente excludentes. Apesar de distintas podem coabitar um mesmo
espaço sonoro.4
Assim, propõe-se que existe uma monofonia terminológica na História Geral da
África, pois resistência é um termo comum na análise da maioria dos capítulos que
compõe a obra. O que não há é um mesmo conteúdo epistemológico comum para este
termo, desembocando no fenômeno polifônico.
Isto significa dizer que, metaforicamente, a História Geral da África possui
diferentes linhas melódicas, ou melhor: vozes, que soam de forma simultânea. Posta
nestes termos musicais, esta discussão coloca-se na esteira das ideias de Koselleck,
quando propõe que o “conceito” seja, justamente, um vocábulo no qual se concentra
uma multiplicidade de significados, tendo, portanto, um caráter polissêmico.5
Todavia, afirmar que além de polissêmico o conceito de resistência é, também,
polifônico, implica em ancorar a análise no aspecto nem sempre harmonioso, e mesmo
conflitante, das definições postas em tela. Enfatizando, assim, a voz do indivíduo que se
põe a teorizar sobre o fenômeno histórico em questão: o ato de resistir ao jugo colonial.
O título deste trabalho remete, portanto, à sua principal ferramenta metodológica. O
4 Stanley Sadie, Dicionário Grove de Música, Rio de Janeiro, Zahar, 1994, p. 733. Empréstimos
transdisciplinares mais complexos da noção de polifonia já foram feitos no campo da Teoria Literária por
Bakhtin e mais recentemente a noção foi utilizada por D’assunção Barros para definir sua ideia de “devir
histórico”. Para mais consultar: Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 2010, pp.1 – 51 e José D’assunção Barros, Teoria da História, IV. Acordes
historiográficos, Petrópolis, Vozes, 2011, pp. 293, 294. 5 Reinhart Koselleck, Futuro Passado, Rio de Janeiro, Contraponto / Editora PUC, 2006, p. 109.
9
instrumental analítico em questão permite deslindar os traços fundamentais de cada voz
componente desta suíte que é a História Geral da África.
Desta feita, cabe sublinhar que nossas preocupações são, principalmente,
teórico-conceituais. Entenda-se com isso que; ao analisar a teoria de alguns autores
acerca da resistência africana realizamos uma empresa meta-teórica na qual uma teoria
reflexiva – ancorada na categoria de polifonia – analisa outra teoria. Ou, em termos
diretos, trata-se de uma “teoria da teoria”.6 Além de nos debruçarmos sobre a teoria
propriamente dita nos remeteremos, também, à historiografia, entendida aqui como a
dimensão discursiva da ciência histórica.7
Inobstante, nessa discussão não se esquece da história ela mesma, a concretude
temporal vivida, apreendida e experimentada. Dessa antessala “em que respiramos, nos
movemos e vivemos”, para usarmos a feliz expressão de Kracauer.8 Os autores aqui
analisados são menos referências historiográficas e mais personagens históricos,
testemunhas participantes. Não reduzimos, por conseguinte, a discussão somente aos
seus aspectos “retóricos” ou “discursivos”. Da antecâmara do vivido, vamos dar em
nosso salão principal: o conceito. A palavra que busca nomear a realidade vivida,
dando-lhe sentido.
Com isso queremos dizer que, em momento algum a “resistência”, ou os demais
conceitos trazidos a lume, serão vistos tão somente como “tropos de um discurso”,
ficção ou simplesmente retórica imaginativa de historiadores. Trata-se, ao contrário, da
resposta concreta de uma historiografia atuante e ciente da dimensão de um momento
inflexivo que condiz, especificamente, com o anseio de libertação do continente
africano.9
6 Jorn Rusen, Razão histórica. Teoria da história. Os fundamentos da ciência histórica. Vol. I, Brasília,
Editora UnB, 2001, p. 15. 7 J. G. A. Pocock, Pensamiento político e historia, Madrid, Akal, 2011, p. 7. 8 Siegfried Kracauer, Historia. Las últimas cosas antes de las últimas, Buenos Aires, La Cuarenta, 2010,
p. 233. 9 Estamos cientes de que não se pode definir algo a partir de sua negação, do que ele não é. No entanto, já
definimos afirmativamente o que é a polifonia e qual a natureza do nosso trabalho. Trata-se aqui somente
de uma ressalva que julgamos necessária frente aos modismos acadêmicos que se pretendem vanguarda. Para que não se confunda a nossa categoria analítica com os argumentos que pretendem reduzir o
historiador a um “artista literário” cuja análise deve ficar circunscrita à dimensão “retórica” do seu
trabalho, como pretende Hayden White, fazendo uma distinção não mediada entre a prática empírica de
pesquisa e a sua estruturação narrativa. Hayden White, Trópicos do discurso, São Paulo, Edusp, 1994, pp.
129, 130, 131. Colocamo-nos, ao contrário, ao lado de Carlo Ginzburg para quem “A redução hoje em
voga, da história à retórica não pode ser repelida sustentando-se que a relação entre uma e outra sempre
foi fraca e pouco relevante. Na minha opinião, essa redução pode e deve ser rechaçada pela avaliação [...]:
as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica, constituem o seu núcleo fundamental”. Carlo
Ginzburg, Relações de força, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 63.
10
O projeto da coleção História Geral da África iniciou-se em 1965 com o preparo
do Guia das Fontes da História da África, publicado em nove volumes até 1969.
Posteriormente, de 1969 a 1971, passou-se ao detalhamento e articulação do conjunto
da obra e à posterior definição dos autores responsáveis pelos capítulos específicos. A
publicação foi iniciada somente em 1981, com a editoração do primeiro volume.
A “resistência”, enquanto conceito, é utilizada nos volumes VII e VIII,
publicados em 1985 e 1993, respectivamente, mas tendo sido planejados e escritos entre
1960 e 1980. Esse contexto inclui uma variedade considerável de conjunturas. Nossa
análise se volta pormenorizadamente para esses tomos específicos, pois é neles que se
fazem presente tanto as tipologias de iniciativas e reações africanas anticoloniais, como
temporalidades próprias a estas.
Entre os anos de 1960 e 1970, por exemplo, ainda estavam em curso algumas
das guerras de libertação nacional, a exemplo das então colônias portuguesas – Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau. Já nos anos 1980 praticamente todas as nações africanas
encontravam-se formalmente independentes e mergulhadas em problemáticas pós-
coloniais: regimes autoritários, guerras civis, golpes de Estado. Essa diferença de
conjunturas explica, em parte, a diversidade conceitual que a ideia de resistência tomou
na História Geral da África.
Quando o conceito começou a ser correntemente utilizado, em meados dos anos
de 1960,10
havia uma necessidade premente de colocar os conflitos de libertação em
uma perspectiva mais ampla e destacada, ao mesmo tempo em que também se fazia
necessário devolver ao africano o caráter de agente da sua própria história. As escolhas
terminológicas da História Geral da África estavam, dessa forma, intimamente
relacionadas ao entorno político do momento. Em uma das atas, datada de 1977, da
reunião do comitê científico responsável pela preparação da obra são feitas referências
importantes acerca dessas escolhas terminológicas para o volume VII e VIII.
As opções conceituais refletem a tentativa de superar os clichês da historiografia
colonial e demonstrar o papel central das ações anticoloniais africanas. Ações estas
vistas em um passado recente como “sanguinárias” e “irracionais”, ou mesmo que
sequer existiam, sendo o sujeito africano caracterizado como passivo frente à iniciativa
colonial. Enfatizar a resistência mostrava-se como um caminho possível para a
superação destes estereótipos negativos.
10 Apesar de a primeira aparição, com referência à História da África que conseguimos encontrar, datar
dos anos de 1920 em Leys Norman, Kenya, Londres, The Hogarth Press, 1924.
11
Assim, lê-se na ata citada que seria conveniente, para os autores que iriam
compor os volumes, descartar, neste momento, “toda expressão que perpetue o velho
clichê da ‘passividade africana’ ou a eterna referência às ‘iniciativas europeias’e às
‘reações africanas’”.11
A partir daí – tratada enquanto iniciativa e não mais um ato-
reflexo - a resistência é estabelecida como vetor analítico, com suas tipologias e marcos
temporais próprios.
A onda de conflitos libertadores levou, em grande medida, os historiadores a
explicarem tais conflitos recorrendo ao passado. Buscava-se estabelecer laços entre um
possível primeiro momento de resistência, datado entre fins do século XIX e início do
XX, e um segundo momento datado na segunda metade do século XX, em que se fazem
presentes reivindicações nacionalistas e revolucionárias. A resistência tornou-se, assim,
a “dimensão histórica” do moderno nacionalismo pan-africano.12
Todavia, na data da publicação do volume VII a ideia de resistência havia
perdido muito de sua importância nas análises então em curso, em virtude dos diferentes
problemas de ordem política - em especial os golpes e contragolpes de Estado - que
tiveram lugar nas jovens nações africanas recém-independentes. Com efeito, em meados
dos anos de 1980 e 1990 outro consenso se firmava: o de que o conceito de resistência
mostrava-se uma categoria de fraco poder de análise.13
A própria História Geral da África aparece, dessa forma, no compasso de dois
tempos distintos: o primeiro, o dos conflitos de libertação nacional em larga escala,
associados à resistência para explicá-los; e o segundo, quando para uma parcela da
historiografia, a complexidade e a especificidade das independências nacionais eram
fatores que desqualificavam a importância conceitual da resistência.
No entanto, cabe notar: “resistência” é termo corrente no vocabulário. É
utilizado para as mais variadas coisas, nos mais diversos contextos e nas mais distintas
áreas do conhecimento. Como reconhecer nele um conceito historiográfico, isto é, uma
palavra com pretensões epistemológicas que procure estruturar o discurso científico
11 UNESCO, Septieme reunion du bureau du Comite Scientifique International pour la redaction d’une
Histoire Generale de L’Afrique, Paris, 18 – 29 de julho de 1977. Disponível em
http://unescodoc.unesco.org/images/0003/000324/032484ed.pdf. 12 Leroy Vail; Landeg White, “Forms of resistance: songs and perceptions of power in colonial
Mozambique” In Donald Crummey, (Edit.), Banditry, Rebelion and Social Protest in Africa. London,
James Currey/Heinemann: Portsmouth N.H, 1986, p. 193. 13 Idem, Ibidem, p. 194. Vail e White datam o declínio do conceito em finais da década de 1960, quando,
ao que parece levando-se em consideração a História Geral da África, mas, também, outras publicações,
ocorre o seu apogeu.
12
acerca de uma realidade? Na resposta a esta pergunta identificamos dois usos diferentes
da palavra no correr da História Geral da África; o vocabular e o conceitual.
O uso vocabular da palavra – feito sem maiores preocupações teórico-
metodológicas – é comum em toda a obra, especialmente dos volumes I ao VI. Somente
nos volumes VII e VIII notamos o uso específico de um conceito de resistência. Assim
acontece porque o conceito só se faz presente quando a situação histórica analisada é o
colonialismo. É somente no espaço colonial que há um conceito historiográfico da
resistência africana. Fora dele a palavra fica circunscrita a seu uso vocabular, sem
maiores necessidade de explicitar os motivos do seu uso. Acreditamos que seja dessa
forma porque o fato colonial ainda precisava ser expurgado na altura em que a obra é
planejada.
Não foi outro fator senão o colonialismo que criou o sentimento de vínculo
identitário profundo no continente. Mesmo a experiência da diáspora africana não
parece tão global quanto o foi o colonialismo. Na primeira é possível notar regiões
inteiras em que o tráfico atlântico de escravos não abalou significativamente a nervura
da realidade – como atesta o caso de algumas localidades da costa oriental do
continente. Ao contrário, toda a massa continental cairia diante do domínio colonial.
Desde o Cairo até a Cidade do Cabo. Das planícies pantanosas da Guiné até as
terras altas da Etiópia. Mais cedo ou mais tarde o invasor chegaria. Vista, assim, como
experiência histórica global não é de se estranhar que se faça da “resistência” uma
categoria estruturante para explicar o fato colonial, sendo a ossatura do corpo histórico.
Para se verter em conceito a resistência precisa, no entanto - além de uma
experiência concreta que lhe sirva de significante - de um alicerce epistemológico. Disto
tratará o primeiro capítulo. Neste primeiro momento, preocupamo-nos em analisar os
fundamentos teóricos básicos que tornam possível a inserção da “resistência” no
vocabulário de análise. Seja enquanto vocábulo ou enquanto conceito. Explicita-se,
assim, que o termo não se faz acompanhar, necessariamente, de um conteúdo
epistemológico, apesar de guardar sempre grande carga ideológica.
Destarte, o capítulo seguirá o seguinte roteiro: 1) Apresentação e
problematização da abordagem teórica basilar desenvolvida no volume I da HGA,
denominada perspectiva africana; 2) Realização de uma crítica historiográfica no que
concerne à abordagem centrada no sujeito africano e ao consequente uso do vocábulo
resistência suscitado nos volumes II, III, IV, V e VI.
13
Tal análise será realizada buscando-se a gênese da perspectiva africana e suas
consequências no que concerne à análise da realidade histórica concreta. A abordagem
centrada no sujeito africano inicia-se no volume II da HGA e consolida-se nos últimos
volumes da coleção. Os autores que escolheram tal procedimento precisaram, direta ou
indiretamente, definir este sujeito.
Ainda neste momento, nos debruçaremos nas definições do sujeito africano e
nos usos do vocábulo “resistência”. Apesar da ênfase étnico-racial, que acompanhou as
definições do sujeito africano se fazer presente em vários períodos abordados pela
coleção, ela passa a ser articulada, ou mesmo suplantada, pela ênfase na ação do agente
histórico. Tomando muitas vezes traços de uma “resistência” frente a um outro. Este
último geralmente representado como o estrangeiro invasor. Só quando o mesmo se
encontra com o outro é que se pode falar em resistência.
O outro opositivo em raros momentos na abordagem da HGA será um africano.
Quando há a dominação de um povo africano sobre outro ela não se reveste da carga de
imposição, violação ou mesmo colonização. Por mais que alguns autores retratem de
forma verossímil os conflitos internos e utilizem o vocábulo “resistência” em seus
textos, não o fazem de maneira a transformá-lo em categoria analítica. Não retiram dele,
por certo, nenhum discurso político. Tampouco, inserem nele algum exemplo
representativo para o presente.
Os distúrbios militares internos tendem – com exceções – a ser vistos como
processos de “absorção por osmose”. Ainda no volume I da História Geral da África,
Joseph Ki-Zerbo é taxativo ao afirmar que este fato seria atestado pelo saldo de muitas
das guerras internas se limitarem a um número pequeno de mortos e feridos. Algo em
torno de dezenas, ou mesmo inferior a isto.14
Ao invés de abordar estes conflitos no que guardam de contradição no processo
histórico a História Geral da África, por vezes, privilegia os intercâmbios positivos que
ligariam os povos africanos nos planos biológico, tecnológico, cultural, religioso e
sociopolítico. Procura-se comprovar que os empreendimentos africanos, ainda que
subsistissem em meio à guerra, possuíam “um indiscutível grau de família”. 15
Este tipo de postura, que nega ao africano o papel de ser, ele próprio, seu outro,
tem relação menos com o passado longínquo das guerras entre reinos e Estados
14 Joseph Ki-Zerbo, “Introdução Geral” In ____, (Edit.), op. cit., p. LV. 15 Idem, Ibidem, LVI.
14
africanos e mais com o moderno discurso nacionalista acompanhado pela sensibilidade
histórica pan-africana que se nota na maioria dos autores da História Geral da África.
Esse “indiscutível grau de família” entre os povos africanos - ao qual
retornaremos em vários momentos no decorrer da análise -, é, portanto, mais uma
construção histórica presente do que uma realidade pretérita. Se essa construção teve - e
tem - sua validade para o pan-africanismo contemporâneo, ao mesmo tempo pode
limitar a investigação histórica propriamente dita.
A mediação entre a pesquisa e a sensibilidade pan-africana é, por este motivo,
tensa quando se trata de abordar alguns contextos históricos específicos. Por mais
recuados no tempo que possam ser.
Representado, assim, na maior parte dos casos, por aquele que não advém do
continente, como o estrangeiro, o outro mudará de rosto até chegar a sua expressão mais
radical: o sujeito advindo do ocidente europeu colonizador. A partir deste momento
emerge, de fato, um conceito – polifônico - de resistência propriamente dito, que será
analisado nos capítulos seguintes deste trabalho.
Além de analisar o conceito e suas vozes, busca-se demonstrar que, mesmo que
seu uso não tenha demandado preocupações teórico-conceituais profundas, há, na forma
como a resistência é inserida nos diversos contextos investigados, aspectos relevantes
que remetem à definição do sujeito africano e de seu oposto identitário.
Dessa forma, será preciso decantar a linguagem, mapeando nas palavras usadas
às vezes sem pretensões conceituais seu núcleo ideológico, sobretudo no que concerne
ao termo “resistência” e sua inserção no vocabulário de análise de diferentes períodos
históricos. Passando do mais longínquo passado egípcio até o presente mais vivo dos
conflitos nacionalistas, quando a esperança estava voltada para o futuro liberto do
continente.
Nesse percurso diversas realidades serão atravessadas, diversos espaços e
momentos. O que interessa é, sobretudo, o tratamento que é dispensado na análise
desses contextos, a palavra que os nomeia. Na trajetória dessa travessia oceânica iremos
perfazer o mesmo movimento do chacal descrito por Ondaatje. Com um olho ele se
volta para trás, para o passado, e com outro para adiante, “para o caminho a seguir. Nas
suas presas, estão pedaços que ele traz para você, e quando todo o tempo estiver
inteiramente descoberto, vai ficar claro que já era conhecido”.16
16 Michael Ondaatje, O paciente inglês, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 234.
15
CAPÍTULO I
A PÁTRIA E O DESTERRO:
Pressupostos analíticos para um conceito da resistência
Acordou então Ulisses,/que dormia na sua terra pátria, embora a não reconhecesse,
pois estava fora há tanto tempo [...].
Homero, Odisseia.17
1.1. Introdução
1960: início de um período marcante para o continente africano, a chamada
década africana. Neste momento consolidava-se o crepúsculo dos tempos coloniais e
discutia-se a formação da Nova África: independente, descolonizada, liberta. A Nova
África não se esquecia, no entanto, da Velha África, pré-colonial. Por diversos meios e
por toda parte buscava-se redesenhar a face dos antigos “rebeldes africanos [que] em
ondas sucessivas no fedor colonial, [resistiram] sob a proteção resplandecente de tantos
escudos de pantera”.18
Na então pequena colônia francesa do Alto-Volta, Nazi Boni escrevia, neste
momento, o seu primeiro e único romance, Crépuscule des temps anciens. Boni
afirmava que a invasão do continente africano pelos europeus pôs fim “à era da África
especificamente africana”. A África só tornaria a ser ela própria se estivesse de posse de
um passado no qual se apoiar, no qual se glorificar. A existência desse passado seria
indispensável para a reedificação do continente.19
Trata-se de uma tendência retórica
que se fará sentir, de algum modo, em todo o continente. A historiografia, naturalmente,
não ficou indiferente a esta movimentação. Desse modo, os elementos teóricos
desenvolvidos na História Geral da África20
encaminham para essa “(re)africanização
da África”.
A abordagem erigida no volume I da obra tem na perspectiva africana seu
aspecto mais inovador. Com ela, Joseph Ki-Zerbo, conterrâneo de Boni, esboça uma
nova ideia de África, baseada no resgate do passado e na reedificação futura, através de
uma ótica internalista. Ver a África por dentro significava, além da busca da
autenticidade, enxergá-la como construção do amanhã, como pátria, de acordo com a
definição do filósofo alemão Ernst Bloch.
17 Homero, Odisseia, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 340. 18 Alain Badiou, A hipótese comunista, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 13. 19 Nazi Boni, Crépuscule des temps anciens, Paris, Presence Africaine, 1962, pp. 16, 19. 20 Doravante HGA.
16
1.2. Gênese da perspectiva africana
Nascido em 1922, no então Alto-Volta, Joseph Ki-Zerbo é o principal
articulador teórico da HGA. Sua contribuição mais importante encontra-se na
perspectiva africana. A apreensão do real alcance dessa abordagem só é possível se sua
gênese for compreendida. Cabe atentar, desse modo, para uma obra anterior de Ki-
Zerbo. A História da África Negra. Assim, iniciamos a partir de uma análise desta obra,
intercalando alguns dos seus principais argumentos com as ideias desenvolvidas
posteriormente na HGA.
Iniciada em 1962 e concluída em 1969, durante o Festival Pan-Africano, a
História da África Negra, cuja primeira edição data de 1972, funcionou como ensaio da
HGA. Geralmente ela é tida como a síntese mais elegante das correntes historiográficas
que então se debruçavam sobre o continente africano. Algumas dessas tendências seriam
rigorosamente reformuladas no posterior projeto da Unesco, outras, ao contrário, seriam
reforçadas. 21
Em seu preâmbulo, Ki-Zerbo anuncia que irá tratar exclusivamente da parte sul-
saariana do continente – ou, conforme expressão do próprio autor: África Negra -.22
Entretanto, admite que foi com “grande pesar” que omitiu o estudo sistemático da parte
norte. Adverte, desse modo, tratar-se “apenas de um adiamento, e, numa edição ulterior,
esta obra será uma história geral da África, englobando o sector mediterrânico, numa
unidade consagrada por tantos laços milenários”.23
O autor demonstra uma sensibilidade
histórica pan-africana que se fará sentir na obra posterior que já anuncia.
Esta forma holística de encarar o continente reside na conclusão de que não se
pode escrever a história da África em uma base puramente “tribal”. Tal ênfase seria
inadequada em razão da agenda política da África pós-independência, na medida em
que se evocava, naquele contexto, o discurso de libertação anticolonialista para
fundamentar a unidade nacional. Escapar do recorte “tribal” implicava em não querer
“fundar nações africanas, ou uma nova nação africana, [em] [...] uma visão cacofónica
ou antagónica do seu passado”. 24
Esta passagem sinaliza para dois aspectos importantes. Em primeiro lugar
remete ao fato de que essa historiografia a qual estamos tratando se colocava na função
21 V. Y. Mudimbe, A ideia de África, Luanda, Mulemba/Mangualde, Pedago, 2013, p. 48. 22 Esta expressão é a mais corrente entre os autores francófonos, como Ki-Zerbo. 23 Joseph Ki-Zerbo, História da África Negra - Vol. I, Lisboa, Europa-América, 2009, p. 7. Grifos nossos. 24 Idem, p. 31.
17
de construir legitimações históricas para o nacionalismo então efervescente em África.
Ela, a narrativa histórica, autorizava – e encorajava – o “retorno às tradições” ao mesmo
tempo em que reconhecia a exigência de um recorte político novo que estas mesmas
“tradições” não poderiam cumprir. É a escolha deste recorte que constitui segundo
aspecto relevante desta passagem de Ki-Zerbo.
Lembremos que o historiador fala em “fundar novas nações africanas” ou “uma
nova nação africana”. A contraposição entre o plural – novas – e o singular – uma – não
é gratuita. Ela remete às propostas políticas colocadas à África neste momento.
Podemos resumi-las em duas. De um lado a tendência do pan-africanismo radical que
via a África enquanto uma nação e almejava tornar isso uma realidade política concreta,
isto é um Estado institucionalizado. De outro lado, uma tendência pan-africana que
tinha na união continental algo a ser realizado por meio da articulação entre diferentes
nações independentes.
Tornaremos a este ponto em momento oportuno, por ora cabe reconhecer que é
neste debate que a obra de Ki-Zerbo se insere diretamente. Afinal, ela é escrita durante
o Festival Pan-Africano, que com base nessa ideologia da união continental, fosse em
qualquer de seus matizes, fundamentava diversas manifestações artísticas e culturais da
África.
Deve-se pensar no aparente paradoxo da recuperação histórica para a construção
das novas nações, algo comum às vertentes políticas do pan-africanismo acima
apresentadas e que permeia tanto a primeira obra de Ki-Zerbo quanto a HGA. Afinal,
por mais que afirme que as novas nações não devem ter uma base “tribal”, Ki-Zerbo, irá
instrumentalizar este mesmo passado “tribal” para legitimar a construção da África
independente. Mas as obras – tanto a HGA quanto a História da África Negra - possuem
um recorte continental. Logo, a nação é o continente? A resposta a essa pergunta
dependerá de com qual vertente pan-africana o autor se identifique. Em Ki-Zerbo, de
todo modo, a África é antes pátria que “nação”, como esperamos demonstrar adiante.
De antemão cabe atentar para o fato da recuperação seletiva do passado ser um
elemento central da narrativa histórica.
Essa recuperação fica clara quando o historiador afirma querer “desenhar em
traços autênticos a fisionomia tão pouco conhecida, tão desfigurada, da África de
ontem, fornecendo assim as bases para melhor a compreender e para uma mais decidida
18
determinação no sentido de construir a África de amanhã”.25
Além do olhar
retrospectivo observa-se outra tendência a ser desenvolvida mais tarde na HGA: o
estabelecimento de um vínculo entre o passado e o presente da África com vistas a
construir um futuro para o continente. O vínculo é feito de forma a harmonizar o
continente consigo mesmo.
Para Ki-Zerbo interessa somente aquele passado que não é radicalmente
“antagônico” ao presente, que não é “cacofônico”, para usarmos seus próprios termos. É
nessa harmonização excessiva, que por vezes oblitera as contradições internas, que
reside o maior problema de sua abordagem. O que há de positivo nela é o fato de que
para consolidação dessa tríade temporal – passado, presente, futuro - cabe demonstrar
que a África é, também, um continente histórico. Passível, portanto, de evoluções,
revoluções e estagnações em todos os campos da atuação humana – seja nas várias áreas
do conhecimento, nas formas de organizações sócio-políticas, etc.
Trata-se de descontruir os mitos em torno do continente como sendo vazio de
acontecimentos, ou, mais precisamente uma terra nullius – literalmente “terra que
pertence a ninguém” -. Termo derivado do latim que remete ao princípio legislativo-
teológico que concedia aos soberanos europeus o direito de explorar as terras
conquistadas durante o processo de expansão imperialista.26
Ki-Zerbo demonstra como esta vertente encontra sua formulação mais famosa
no século XVIII em Hegel, permanecendo presente em diversas variações até a segunda
metade do século XX.27
Essa crítica ao que se convencionou chamar de historiografia
colonial seria aprofundada por J.D. Fage na HGA.
Segundo Fage, no período que antecede a expansão colonial a África já era alvo
de visões mistificadas e preconceituosas. Cabe atentar, porém, que, de fato, durante esse
período os europeus “só conheciam a África e os africanos sob o ângulo do comércio de
escravos, num momento em que o próprio tráfico era causador de um caos social cada
vez mais grave em numerosas partes do continente”. A ação colonial, iniciada no século
XIX, só viria a reforçar e consolidar essa apreensão negativa da realidade africana por
parte dos europeus. 28
25 Idem, p. 8. 26
V. Y. Mudimbe, op. cit., p. 176. O princípio é estabelecido no século XV, mas permaneceu em novas
formas até o séc. XIX quando da colonização da África. Este tema será pormenorizado adiante. 27 Joseph Ki-Zerbo, op. cit., pp. 10, 11. 28 J.D. Fage, “A evolução da historiografia da África” In___, Joseph Ki-Zerbo, (Edit.), História Geral da
África – Vol. I, São Paulo, Cortez, 2011, pp. 1, 8.
19
Hegel foi o autor que definiu esta posição de forma mais explícita. Escreveu ele
que a África não seria um “continente histórico” não possuindo “nenhum movimento ou
mudança para mostrar”. Nada, no continente, “se desenvolve, nele nada se forma – e,
como hoje percebemos, os negros sempre foram assim”.29
Ainda que a influência direta
do filósofo alemão na elaboração da história da África tenha tido um impacto apenas
relativo, a opinião que ele expressou era representativa da ortodoxia histórica do século
XIX. Tal opinião, apesar de completamente desprovida de fundamento empírico e
expressa em uma lógica anacrônica, não deixa de ter adeptos até os dias de hoje.30
Os fatos concretos desmentem a posição colonial-eurocêntrica expressa pelo
paradigma hegeliano. Além de uma história vivida passível de movimentos evolutivos a
África também possuía diferentes tradições historiográficas. A África possuía tanto
história vivida quanto história escrita, pensada.
Antes mesmo de o próprio Hegel fundar sua filosofia da história um africano já
havia formulado um pensamento histórico que, ao contrário do exemplo do filósofo
alemão, aliava a forma teórico-abstrata das proposições com o conteúdo empírico da
pesquisa.
Tratava-se do norte-africano Ibn Khaldun, que viveu no século XII, originário da
região que hoje compreende a Tunísia. Caso Khaldun fosse “mais conhecido pelos
especialistas ocidentais, poderia legitimamente roubar de Heródoto o título de ‘pai da
história’”.31
Na África sul-saariana certas tradições historiográficas também se
desenvolveram, como atesta o exemplo etíope. A antiga Etiópia possuía uma produção
historiográfica milenar tendo em Amda Syôn um de seus grandes nomes. 32
29 G. W. F. Hegel, Filosofia da História, Brasília, Editora UnB, 1999, p. 88. 30 J.D. Fage, Idem, Ibidem. Gregory Maddox mostra duas ocorrências contemporâneas dessa perspectiva
colonial-eurocêntrica sobre a África, vindas, respectivamente, do historiador britânico Hugh Trevor-
Roper e do romancista checo Milan Kundera. O primeiro teria pronunciado que a história da África pré-
colonial consistiria, tão somente, em oscilações entre tribos bárbaras. O segundo teria afirmado que o fato
de centenas de milhares de africanos terem sucumbido diante de uma morte horrenda no período medieval
não seria algo historicamente relevante. Gregory Maddox, (Edit.), Conquest and resistance to colonialism
in Africa, New York/London, Garland, 1993, pp. VII – IX. 31 J.D. Fage, Idem, p. 3. Khaldun entendia a história como sendo “o registro da sociedade humana, ou
civilização mundial; das mudanças que acontecem na natureza dessa sociedade [...]; de revoluções e insurreições de um conjunto de pessoas contra o outro, [...] e, em geral, de todas as transformações
sofridas pela sociedade em razão de sua própria natureza”. Ibn Khaldun apud Eric Hobsbawm, Sobre
História, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 9. É consenso entre muitos estudiosos, incluindo
nomes como Hobsbawm e Ki-Zerbo, que Khaldun antecipou em séculos tanto o materialismo histórico
quanto a moderna concepção científica de história. 32 Idem, Ibidem, p. 3, 5. A Etiópia possui uma língua escrita própria, o ge’ez, na qual expressa, no correr
dos séculos, várias formas de conhecimento, seja nos campos das artes, da filosofia ou do que
modernamente se designa “ciências” em geral. Para mais consultar: V.Y. Mudimbe, “Fontes Etíopes de
conhecimento” In___, A invenção de África, Luanda, Mulemba/Mangualde, Pedago, 2013.
20
Fage afirma que a partir da segunda metade do século XX a visão colonial
começa a cair em descrédito com a história africana colocada em uma nova ótica. Esta
mudança de percepção não teria sido possível “sem o processo de libertação da África
do jugo colonial” que expôs a “postura heroica” dos africanos frente à ação
colonizadora. Conclui o autor que as “guerras de libertação em todas as colônias da
África contribuíram enormemente para esse processo já que criaram [...] a possibilidade
de retomar o contato com sua própria história e de controlar a sua organização”.33
Em oposição às tendências historiográficas coloniais apresentadas por Fage, Ki-
Zerbo, ainda em sua História da África Negra, assegura que é preciso colocar-se diante
da história da África numa perspectiva que seja, ao mesmo tempo, científica, humanista
e africana. Mencionada pela primeira vez, de forma embrionária, a necessidade de
desenvolver uma perspectiva africana, o autor rejeita a noção estreita de história que
considera somente os documentos escritos como fontes dignas de pesquisa. Afinal,
segundo este critério certas regiões da África mal estariam saindo da pré-história e
associar-se-iam, invariavelmente, a uma abordagem étnica reducionista.34
Exemplificando: se os poemas homéricos expressos em linguagem escrita
podem ser considerados fontes para a história ocidental, os cantos dos griots –
guardiões das narrativas ancestrais poeticamente formatadas – devem ser igualmente
considerados para o caso africano.
Para fundamentar sua visão Ki-Zerbo evoca Marc Bloch. Este último afirmava
ser um equívoco a ideia corrente segundo a qual o trabalho do historiador fosse
avalizado em um tipo exclusivo de fonte, 35
neste caso as de natureza escrita. A própria
ideia de “pré-história” parece, assim, ter sido superada.36
A preocupação do autor reside em demonstrar que o fato de que não possuir
escrita não deve ser encarado como um fator impeditivo para a estruturação de uma
noção de passagem do tempo. A ideia de sequencia temporal, ou de cronologia, era, ao
contrário, “essencial para a mentalidade africana, para a qual a experiência e o livro da
vida constituem os únicos documentos”.37
33 Idem, pp. 21, 22. 34 Idem, pp. 14, 17, 18. 35
Marc Bloch, Apologia da História, ou, o ofício do historiador, Rio de Janeiro, Zahar, 2002, p. 80. Para
uma listagem concisa das diferentes tipologias de fontes, ver: Julio Aróstegui, A pesquisa histórica.
Teoria e método, Bauru, EDUSC, 2006, p. 498 e segs. 36 Joseph Ki-Zerbo, op. cit., p. 18. 37 Idem, 19.
21
Mais tarde, no volume I da HGA, Jan Vansina iria sintetizar este juízo ao afirmar
que a “oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade”.
A fonte oral propícia, tal como a fonte escrita, reconstruir o arquétipo original de
determinada tradição.38
Esta reconstrução do passado africano deve, portanto, ser fruto
de uma forma apropriada de lidar com o saber histórico, revisando os métodos e
inovando as abordagens.
Esta forma de lidar com o saber histórico encontra-se vinculada tanto a uma
postura científica quanto ética – incluindo-se neste campo preocupações de ordem
político-ideológicas -. A partir desta dupla vinculação busca-se “reconstruir e explicar o
passado do homem”, trilhando o desvelamento da verdade ainda que a partir de
conjecturas ou probabilidades. 39
Se valendo de metáforas Ki-Zerbo explica que, ao invés de “líquido incolor” –
que denotaria certa ideia de imparcialidade e distanciamento da realidade vivida – a
história assemelha-se muito mais a um “rio vivo” de maneira que não cabe apenas
alinhar silogismos tendo por base descobertas factuais esparsas. Tal postura seria
ingênua e mesmo medíocre. O historiador que assim procede, continua o autor, imagina
que abraça a musa Clio, enquanto está, apenas, manipulando uma versão descarnada da
sua imagem.40
Já os historiadores, dignos deste nome, devem reconhecer que além do trabalho
propriamente técnico-científico que a disciplina compreende, o estudioso precisa
realizar escolhas subjetivas que se referem a partes essenciais do ofício: tema de
pesquisa, fontes, argumentos, estilo e público a quem é dirigido a pesquisa, por
exemplo. 41
38 Jan Vansina, “A tradição oral e sua metodologia” In____, Joseph Ki-Zerbo, (Edit.), História Geral da
África – Vol. I, op. cit., pp. 140, 143. Por este viés é a própria ideia de “sociedades ágrafas” que está em
questão, por ser tendencialmente eurocêntrica. Afinal, não se pode definir algo a partir de sua própria
negação, neste caso a falta da escrita. É mais frutífero pensar em sociedades orais, ou “civilizações da
oralidade”, como sugeriu Maurice Houis. A oralidade possui, tal como a escrita, uma lógica interna e um
contexto de produção, ambos passíveis de análise. Para mais, além do trabalho de Vansina, ver Maurice
Houis, Anthropologie linquistique de l’Afrique Noire, Paris, Presses Universitaires de France, 1971 e
Mamoussé Diagne, Critique de la raison orale. Les pratiques discursives en Afrique Noire. Paris,
Karthala, 2005. Para uma discussão mais geral consultar: Paulin J. Hountondji, “Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos” In Boaventura de Sousa Santos;
Maria Paula Meneses, (Orgs.), Epistemologias do Sul, São Paulo, Cortez, 2010, pp. 131 – 144. O conceito
de griotização da expressão narrativa – como sendo a influência da oralidade na escrita - é igualmente
válido nesse contexto. Não escreve o próprio Ki-Zerbo em um estilo que lembra um épico cantado por um
griot? Para mais sobre a noção de griotização ver Laura Cavalcante Padilha, Entre Voz e Letra. O lugar
da ancestralidade na ficção angolana do século XX, Niterói, EdUFF/Rio de Janeiro, Pallas, 2007. 39 Joseph Ki-Zerbo, op. cit., p. 34. 40 Idem, Ibidem. 41 Idem, Ibidem.
22
Da mesma forma, cabe reconhecer a “força violenta e obscura do subconsciente”
e o peso do entorno social e dos preconceitos que nele se encontram. É a partir de todas
essas variantes que o investigador procura não somente desvelar objetivamente a
veracidade ou verossimilhança histórica, mas, também, encontrar a sua verdade, íntima
e pessoal. Os melhores historiadores devem, portanto, sempre tomar partido “tanto nos
livros como na vida”.42
A militância, consciente e fundamentada, coaduna-se ao trabalho historiográfico
e, como já havia feito, o autor evoca a figura de Marc Bloch, dessa vez como exemplo:
“O grande Prof. Marc Bloch, fuzilado pelos nazis, é um bom exemplo entre muitos
outros”. Em suma, o historiador não se pode querer neutro visto que é,
simultaneamente, “testemunha do passado e testemunha do homem”.43
No que diz respeito a temas concernentes ao continente africano este princípio
significa que o “historiador da África, sem ser mercador de ódio, deve dar à opressão do
tráfico de escravos e à exploração imperialista o lugar que elas realmente ocuparam na
evolução do continente”. Assim, para Ki-Zerbo, o historiador seria “um peregrino da
realidade passada. Isto significa que deve estar bem equipado e ser portador de uma
chama que ilumine e – porque não? – dê calor também ao resultado da sua pesquisa. A
história é uma matéria viva”. 44
Servindo-se de um dialogismo temporal a metáfora de Ki-Zerbo assemelha o
historiador a um Prometeu portador de uma chama que, ao passo que ilumina a pesquisa
também ilumina a realidade vivida.45
A história torna-se simultaneamente investigação
e processo criativo. Não obstante, a criatividade está limitada a parâmetros disciplinares
estabelecidos com vistas a não incorrer na visão anacrônica do passado.
Esta postura não exclui o compromisso com a verdade histórica objetiva e esta,
por sua vez, não se desvincula do posicionamento ético, moral, político, em suma,
ideológico, do historiador. Trata-se de admitir que a história, enquanto saber científico,
42 Idem, Ibidem. 43 Idem, Ibidem, p. 35. 44 Idem, Ibidem. Grifo do original. 45 Prometeu é conhecido na mitologia grega por ter roubado o fogo dos deuses, presente na forja de
Hefesto e no carro do Sol, tendo entregado a chama aos mortais. Seu mito denota insubmissão e
subversão. Não por acaso o próprio Marx se referiu a Prometeu como o mais marcante santo entre os
santos e mártires do calendário filosófico. Karl Marx, Diferencia de la filosofia de la naturaleza en
Democrito y Epicuro, Madrid, Ayuso, 1971, p. 11. Um cognato africano próximo seria a divindade Ioruba
Ogum que, tal como o personagem grego, estaria “ao serviço da humanidade para que esta consiga a auto-
realização”. Francisco Salinas Portugal, A Máscara do Sagrado, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2001, p. 63.
23
não é a-topológica e possui um posicionamento e um lugar de consciência, observação e
participação.46
Dito isto, de qual ponto de observação deve partir o historiador, ou o estudioso
em geral, que se debruça sobre a África? A resposta, como é possível intuir após o que
já foi discutido, é: a própria África. Esta forma internalista de abordar o continente
encontrará sua versão mais acabada na HGA.
1.3. A perspectiva africana na História Geral da África
A primeira menção a uma perspectiva africana na HGA aparece já nas primeiras
páginas - durante a apresentação geral do projeto que consta no início de cada volume
da coleção – sendo escrita por Bethwell Allan Ogot.
Diz Ogot que a “História Geral da África é aqui essencialmente examinada de
seu interior. Obra erudita, ela também é, em larga medida, o fiel reflexo da maneira
através da qual os autores africanos veem sua própria civilização”. Sendo a obra
“elaborada em âmbito internacional e recorrendo a todos os dados científicos, a História
será igualmente um elemento capital para o reconhecimento do patrimônio cultural
africano, evidenciando os fatores que contribuem para a unidade do continente”. Tal
ímpeto de se “examinar os fatos de seu interior constitui o ineditismo da obra e poderá,
além das qualidades científicas, conferir-lhe um grande valor de atualidade”. Por este
viés seria possível evidenciar a “verdadeira face da África” de maneira que “a História
poderia, em uma época dominada por rivalidades econômicas e técnicas, propor uma
concepção particular dos valores humanos”. 47
Encontram-se condensadas nesta passagem as linhas mestras fundamentais
desenvolvidas anteriormente por Ki-Zerbo. Nota-se a presença da sensibilidade histórica
pan-africana, a relação entre rigor científico e compromisso ético e o estabelecimento de
um vínculo entre o passado e o futuro. O ponto mais original da obra encontra-se,
segundo Ogot, na ótica utilizada. Afinal, a África será vista do seu interior. A fim de
embasar esta perspectiva o primeiro volume da HGA é direcionado aos seus
fundamentos metodológicos.48
46 Théophile Obenga, O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista, Luanda,
Mulemba/Mangualde, Pedago, 2013, p. 74. 47 Bethwell Allan Ogot, “Apresentação do Projeto” In Joseph Ki-Zerbo, (Edit.), História Geral da África
– Vol. I. Metodologia e pré-história da África, São Paulo, Cortez, 2011, p. XXVIII. Grifos do original. 48 O volume também é dedicado à pré-história da África. Desta parte não trataremos na presente
discussão.
24
Amadurecendo o que já havia desenvolvido em sua História da África Negra,
Ki-Zerbo, agora editor do primeiro volume da HGA, começa por desenvolver sua noção
de perspectiva africana afirmando categoricamente que “A África tem uma história”.
Aceitar esta afirmativa implica soterrar, definitivamente, a ideia de espaço vazio, ou,
quando muito, habitado por “tribos indígenas” submissas ao jugo colonial. 49
Fato traumático recente o colonialismo é mencionado logo na abertura da obra,
como ponto de partida para as reflexões teórico-metodológicas. Assim, passado o
período das narrativas que falavam somente das “tribos indígenas” dominadas, era
chegada a hora “dos povos impacientes com opressão, cujos pulsos [...] [batem] no
ritmo febril das lutas pela liberdade”. Esta virada de percepção, segundo Ki-Zerbo, faz
da história da África, como de resto a de toda humanidade, a história de uma “tomada
de consciência”. 50
Dessa forma, a historia da África deveria, para Ki-Zerbo, ser reescrita, afinal,
“até o presente momento ela foi mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada. Pela
‘força das circunstâncias’, ou seja, pela ignorância e pelo interesse”. A mutilação da
história africana deve-se, para Ki-Zerbo, ao fato de a África ter ficado sob opressão
durante séculos: “esse continente presenciou gerações de viajantes, de traficantes de
escravos, de exploradores, de missionários, de procônsules, de sábios de todo o tipo,
que acabaram por fixar sua imagem no cenário da miséria, da barbárie, da
irresponsabilidade e do caos”. Essa imagem negativa foi “projetada e extrapolada ao
infinito ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quando o futuro”. 51
A história da África é expressa, assim, em termos de traumas sucedâneos: tráfico
atlântico, espoliações econômicas e, o último e mais explicitado, o colonialismo. Há,
nas entrelinhas, um traço distintivo entre a África e seu outro, o ocidente europeu.
Enquanto que, para o ocidente, em sua historiografia colonial-eurocêntrica,
tratava-se, durante a expansão imperialista, de ocupar e legitimar historicamente a
conquista, para a África, em sua perspectiva, trata-se, agora, de evidenciar a sucessão
problemática de eventos derivados dessa conquista e ocupação. Seguindo as noções de
Slavoj Zizek, é possível afirmar que o sujeito africano é, tal como aparece na
argumentação de Ki-Zerbo, constantemente exposto a traumas variados. Até o momento
49 Joseph Ki-Zerbo, “Introdução Geral” In ____, (Edit.), História Geral da África – Vol. I, São Paulo,
Cortez, 2011, p. XXXI. 50 Idem, p. XXXII. 51 Idem, Ibidem.
25
da escrita da HGA não era possível falar, como ainda não o é, em um sujeito pós-
traumático no continente.
Na narrativa histórica ocidental o trauma é vivido, em geral, como uma
intromissão momentânea que perturba violentamente o fluxo “normal” dos
acontecimentos – o fascismo, e sua expressão mais sombria, o nazismo, por exemplo. Já
na África – e em outras partes do que outrora se designava “terceiro mundo” – o trauma
é um estado constante e, em consequência, é historicizado e modelado em uma narrativa
que busca lhe preencher de sentido.
Pergunta-se Zizek: “o que dizer daqueles para quem o trauma é um estado de
coisas permanente, um modo de viver, como para quem vive em países destruídos pela
guerra, como o Sudão e o Congo?”. Muitos dos cidadãos desses países africanos “não
têm como se proteger da experiência traumática e, portanto, não podem nem sequer
afirmar que, muito depois do trauma, foram perseguidos por seu espectro, o que resta
não é o espectro do trauma, mas o próprio trauma”. Levando isso em conta seria “quase
um oximoro denomina-los sujeitos ‘pós-traumáticos’, já que o que torna sua situação
tão traumática é a própria persistência do trauma”.52
Mesmo levando em consideração tais fatos não se trata, para Ki-Zerbo, de
construir uma “história revanche”, que, por seu turno, “relançaria a história colonialista
como um bumerangue contra seus autores”. Ao invés disso trata-se de “mudar a
perspectiva e ressuscitar imagens esquecidas ou perdidas”. O autor parece querer buscar
nas imagens do passado um capital redentor que estaria aparentemente perdido com a
erupção do fato colonial. Sem, entretanto, transformar o passado em um “espelho de
narciso” que poderia servir de pretexto para “abstrair das tarefas da atualidade”. Em
suma, seria necessário, diz Ki-Zerbo, “retornar à ciência, a fim de que seja possível criar
em todos uma consciência autêntica. É preciso reconstruir o cenário verdadeiro. É
tempo de modificar o discurso”.53
Justificando a pertinência de seu método, Ki-Zerbo assegura que o movimento
historiográfico estabelecido na HGA deve ser encarado como um “retorno a si mesmo”
que teria valor de catarse libertadora tal como acontece no processo de “submersão em
52 Slavoj Zizek, Vivendo no fim dos tempos, São Paulo, Boitempo, 2012, pp. 200, 201. Grifo do original.
A noção de “sujeito pós-traumático” é primeiramente desenvolvida pela filósofa Catherine Malabou, Les
nouveaux blessés, Paris, Bayard, 2007. A discussão de Malabou gira em torno de uma revisão do conceito
de trauma tal como definido pela tradição psicanalítica. A articulação do argumento de Ki-Zerbo com a
psicanálise é algo bastante natural visto que o historiador cita, recorrentemente, o método psicanalítico,
que, por sua vez, demonstra conhecer de forma bastante sólida. 53 Idem, p. XXXII, XXXIII.
26
si” levado a cabo pela psicanálise, que, revelando as “bases dos entraves em nossa
personalidade, desata de uma só vez os complexos que atrelam nossa consciência às
raízes profundas do subconsciente”. Adverte, todavia, que não se trata de substituir o
mito colonial por outro, revanchista, pois a verdade histórica, considerada matriz da
consciência não alienada e autêntica, funda-se nas suas provas e fontes rigorosamente
examinadas.54
Os mitos da historiografia colonial - perceptíveis nas ideias de tribalismo
congênito, inferioridade racial e passividade histórica dos povos africanos - não devem,
assim, ser somente invertidos. Isto tão somente reforçaria essas abordagens “irracionais”
e “subjetivas” que, durante muito tempo, serviram para mascarar uma “ignorância
voluntária”. 55
Para não pender para o exotismo e tampouco para a criação de outro mito com
viés “nativista” cabe reconhecer a especificidade do contexto africano sem negar sua
diversidade interna e universalidade que ele compreende. Em linguagem filosófica o
autor afirma que, para tanto, basta “reconhecer que se o ser dos africanos é o mesmo – o
do Homo sapiens – seu ‘ser-no-mundo’ é diferente”. A partir dessa constatação novos
conceitos, instrumentos e técnicas de pesquisa podem ser criados e aperfeiçoados para
apreender a historicidade deste sujeito.56
Desse modo, para Ki-Zerbo, as concepções histórico-antropológicas mais
modernas devem ser inseridas criticamente no contexto africano e, quando necessário,
sujeitas à revisão crítica.57
Neste mesmo movimento caberia ainda, para o autor, integrar
todo o fluxo do processo histórico na noção de tempo africano.
Diz Ki-Zerbo que a forma de encarar o tempo no continente não é estranha à
“articulação do acontecimento numa sequência de fatos que originam uns aos outros por
antecedência”. O princípio da causalidade, essencial para o trabalho histórico, não é
desconhecido da noção de tempo africana. 58
Esta concepção temporal trazida pelo
historiador burquinense é, ao mesmo tempo, dinâmica e plurilinear.
54 Idem, p. XXXIII. 55 Idem, p. XXXVI. 56 Idem, p. XLVII. 57 Idem, p. XLVIII. Para o autor cumpriria, por exemplo, insistir no proveito de uma abordagem marxista
não dogmática que encarasse a história como consciência coletiva em movimento ancorado na práxis
social. Igualmente, um estruturalismo que não negasse o princípio diacrônico deveria ser aproveitado para
a análise dos mecanismos inconscientes, mas lógicos, que enquadram as ações e as mentalidades das
sociedades africanas. 58 Idem, pp. LI, LII.
27
A ideia de tempo africano é desenvolvida por Ki-Zerbo e Boubou Hama no
primeiro volume da HGA. Para eles o conceito de tempo é estruturado na África de
maneira simultaneamente mítica e social o que não impede que os africanos tenham
“consciência de serem os agentes de sua própria história”. A ênfase, nessa interpretação
da consciência histórica africana, no agente social, acabaria implicando na inspiração
democrática que “anima a concepção africana de história”.59
A consciência história,
assim abordada, pode ter duas declinações importantes: uma ligada à metodologia da
história e outra à prática política.
A ideia de agente histórico, que essa forma de encarar a historicidade africana
abarca, coaduna-se com a noção de “protagonismo consequente” – agency –que caberia
às pessoas comuns. Este conceito influenciou escolas historiográficas africanas
modernas. Como são exemplos os casos das escolas de Dar-es-Salaam, Dakar e
Idaban.60
Já a implicação política é perceptível com o apelo à democracia enquanto fator
fundamental e intrínseco ao contexto africano. Algo a ser ressuscitado, ou renovado, a
partir do passado pré-colonial, na construção da África independente. Neste caso, apesar
do apelo sincero e estrategicamente útil aos valores democráticos, Ki-Zerbo e Hama
cometem um claro anacronismo ao trata-lo como algo intrínseco ao continente. A dita
inspiração democrática africana é mais construção presente que realidade pretérita.
As sociedades africanas pré-coloniais, como argumenta Bayart, eram
“sociedades do debate”, não sendo, em absoluto, “despotismos” e muito menos
“democracias”. Ao contrário, por vezes harmonizavam interações sutis entre a
dominação e a sujeição, podendo ir de monarquias altamente centralizadas a sociedades
horizontais e segmentárias. Esta diversidade nos leva a descartar a ideia fácil de
supostos totalitarismos arcaicos, e, também, o juízo de uma suposta “inspiração
democrática” inerente ao continente.61
Finalmente, para que as pesquisas consigam dar conta da história vivida, sentida
e pensada, cabe a exigência imperativa primordial: “essa história seja enfim, vista do
seu interior, a partir do polo africano, e não medida permanentemente por padrões de
valores estrangeiros”. Através desse imperativo seria possível a “constituição de uma
59
Boubou Hama; Joseph Ki-Zerbo, “Lugar da história na sociedade africana” In Joseph Ki-Zerbo, (Edit.),
op. cit., pp. 24, 31. 60 Robert W. Slenes, “A importância da África para as Ciências Humanas”, História Social, vol. I, n. 19,
Segundo semestre de 2010, p. 22. 61 Jean-François Bayart, El Estado en África, Barcelona, Bellaterra, 2000, p. 27.
28
personalidade coletiva autônoma”. Esta opção teórica, que Ki-Zerbo denomina por
“ótica de autoexame”, não consiste na abolição artificial das “conexões históricas da
África com os outros continentes do Velho e do Novo Mundo”. A divisa reside no fato
de que “tais conexões serão analisadas em termos de intercâmbios recíprocos e de
influências multilaterais, nas quais as contribuições positivas da África para o
desenvolvimento da humanidade não deixarão de aparecer”.62
Estas passagens de Ki-Zerbo possuem uma riqueza singular. Os pontos grifados
merecem, cada um uma breve análise detalhada. Comecemos pela “ótica do autoexame”
na qual a África é vista a partir “do seu interior”.
Neste caso, trata-se da perspectiva africana. Como formulada, ela não implica
pura e simples inversão do olhar colonial, mas, ao contrário, pode implicar, também, em
sua subversão. O continente funciona como topoi, isto é, lugar referencial, de onde o
historiador manifesta seu discurso e o fundamenta. A escolha deste ponto de referência
não implica na negação dos inúmeros laços que unem a África ao restante do globo.
Para a perspectiva africana o isolamento seria tão nocivo quanto o paradigma colonial.
Outro ponto que cabe relevar é aquele referente à “constituição de uma
personalidade coletiva autônoma”. Neste caso, a personalidade coletiva é vista como
componente que confere autenticidade à África, tornando-a, nos termos próprios de Ki-
Zerbo, autônoma. Neste sentido, a autenticidade funciona como “fuga do que a
sociedade, a escola, o Estado – a história – tentaram fazer de nós”.63
A autenticidade
africana vem se rebelar contra o que o Estado colonial tentou fazer dos africanos, contra
o lugar que a historiografia colonial reservou aos africanos no seu constructo narrativo.
A aparente ambiguidade reside no fato de que ao mesmo tempo em que rechaça esse
Estado a historiografia legitima os novos Estados independentes. Justamente por eles
serem – ou deveriam ter sido – autônomos e, por isso, autênticos.
É por conta dessa contingência histórica – a formação do Estado-nacional
independente – que Ki-Zerbo fala em termos de uma personalidade coletiva. Sua
pergunta não é “quem sou eu?”, mas sim “quem somos nós?”. A resposta parece ser:
“nós somos africanos. Isso nos une. Logo, precisamos de uma perspectiva própria para
olhar a nós mesmos”. O problemático é que o “nós somos” assume traços
perigosamente a-históricos e essencialistas ao embasar o “somos” em um “grau de
família” que seria, supostamente “indiscutível”.
62 Joseph Ki-Zerbo, História Geral da África – Vol- I, op. cit., pp. LII, LIII. Grifos do original. 63 Kawame Anthony Appiah, Na casa de meu pai, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 113.
29
Ao se desvencilhar, e rechaçar, a África tal como vista pela Europa – através da
historiografia colonial – a história escrita pela perspectiva africana acaba presumindo
como dada a ideia de África. Em outras palavras, se a Nova África é a reedificação,
seletiva, das tradições da Antiga África, ela precisa incluir egípcios antigos,
imperadores axumitas e guerreiros da antiga Núbia no nós ao qual se refere Ki-Zerbo.
Isto é, eles, estes sujeitos tão diferentes entre si, precisam estar articulados com a
personalidade coletiva autônoma. Para isso não há outra saída aparente a não ser apelar
para uma metafisica de um mesmo grau de família. Por mais que núbios e egípcios, por
exemplo, tenham estado em confronto direto no passado.
Esta presunção é falsa, pois, repetindo Appiah, “A razão de a África não poder
presumir como dada uma vida cultural, política ou intelectual africana é que não existe
tal coisa”. O que existe é somente “um sem número de tradições, com suas reações
complexas – e, com igual frequência, sua falta de qualquer relação com as outras”.
Assim, “é simplesmente um erro supor que as culturas da África sejam, umas para as
outras, um livro aberto”. 64
A personalidade autônoma africana, se embasada em um suposto grau de
família, é algo contra o qual o historiador deve rebelar-se por simplesmente negar um
dos princípios mais caros à sua disciplina: a contradição.
Ao negarmos essa unidade com base em uma metafísica familiar não negamos,
no entanto, a existência de uma história africana, a necessidade de uma perspectiva
africana e tampouco a existência de um vínculo – que pode vir a desembocar em uma
unidade - historicamente construído, entre os países e povos africanos.
Só avançamos na hipótese – a ser desenvolvida de forma mais aprofunda adiante
– de que é o contexto histórico que cria a possibilidade de uma historiografia de
resistência, de uma perspectiva africana e de uma unidade – mediada - continental. Pois
o colonialismo coloca os africanos – historiadores, nesse caso – diante de um conjunto
comum de problemas. Não é, portanto, uma unidade familiar que cria essa situação
comum. Talvez Ki-Zerbo e seus consortes tenham apelado para um grau de família
indemonstrável porque partiram da premissa de ser o fato colonial algo exógeno,
devendo ser alvo de uma sublevação, portanto. Visto que os princípios determinantes
deveriam ser agora endógenos, internalistas.
64 Idem, 120.
30
Isso gera uma tensão entre o “eu” do historiador e o “nós” do africano. Essa
tensão se reflete na contradição que há entre a teoria historiográfica de Ki-Zerbo, e de
demais autores da historiografia de resistência, e a narrativa empiricamente conduzida,
porque documentada, que ele mesmo traz a lume. Lá estão bem elencadas – ainda que
por vezes de maneira pouco explícita – todas as contradições “internas” do continente
africano, em que o grau de família intrínseco faz pouco sentido. Na medida em que nos
aproximamos do tempo presente a narrativa ganha cada vez mais contornos de
homogeneidade, olhando-se para o passado para nele construir o futuro.
A atitude ética que deriva da perspectiva africana lembra o trabalho de coivara
empreendido na agricultura: limpar a terra com fogo e, das cinzas, proceder à
semeadura. Essa “coivara da história” não comporta uma atitude vingativa e, tampouco,
de autossatisfação, mas compreende um “exercício vital da memória coletiva que varre
o campo do passado para reconhecer suas próprias raízes” - nas palavras de Ki-Zerbo.65
Cabe, entretanto, não confundir este tipo de abordagem com um possível
“nativismo”. O ponto de onde parte a perspectiva africana vincula-se à postura do
pesquisador e não ao seu lugar de origem. É plenamente possível falar em estudiosos
não africanos que façam uso da perspectiva africana. Da mesma forma, pode um
pesquisador africano rejeitá-la enquanto forma de abordagem.
É claro que, no contexto em que foi escrita, a HGA pretendia dar maior espaço à
opinião dos intelectuais africanos sobre a sua própria história, algo que Muryatan
Barbosa considera como o legado fundamental da obra. Entretanto, cabe ressalvar que o
projeto contou com a participação de trezentos e cinquenta especialistas internacionais
que, em sua maioria, não eram oriundos do continente. Em igual medida, continua
Barbosa, “a organização efetiva e realização da obra deveu muito, também, à presença
ativa de intelectuais não africanos. Em especial cinco deles: M. Gléglé, J. Devisse, J.
Vansina, I. Hrbek e J. Vercoutter”.66
A vinculação do pesquisador com a perspectiva africana é, portanto teórico-
metodológica e não geográfica. Afinal, como assegura Ki-Zerbo, a “razão, soberana,
não conhece o império da geografia”.67
Cabe frisar que nem todos os autores da HGA
utilizaram a perspectiva africana em suas análises.
65
Idem, Ibidem, p. LVII. 66 Muryatan Santana Barbosa, A África por ela mesma. A perspectiva africana na História Geral da
África (UNESCO), Tese de Doutorado, São Paulo, Universidade de São Paulo – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, 2012, p. 18. 67 Joseph Ki-Zerbo, “Introdução Geral” In ____, (Edit.). op. cit., p. XXXIV.
31
Após todas as construções, e mesmo invenções, advindas de olhares exteriores
que modelaram a imagem da África a partir de interesses externos, Ki-Zerbo convoca a
historiografia a um resgate de uma visão interior que dê conta da identidade,
autenticidade e consciência do continente sem limitá-lo a padrões estrangeiros. Trata-
se, em suma, nos termos de Ki-Zerbo, de uma volta repatriadora. 68
1.4. Ulisses retornado: A África como pátria
Uma leitura atenta de toda a argumentação pregressa de Ki-Zerbo torna evidente
a presença de uma linguagem ao mesmo tempo teórico-conceitual e metafórica. O
exemplo mais acabado desse estilo encontra-se na recusa em medir a África por padrões
estrangeiros de maneira a, por meio da perspectiva africana, perfazer uma volta
repatriadora. Não há nisso mero jogo de palavras. O autor está, antes, preenchendo a
perspectiva africana com um conteúdo filosófico que, em certa medida, expressa uma
nova ideia de África.69
Como visto anteriormente o pensamento colonial, bem como a historiografia
dele decorrente, tratava o continente africano como sendo um espaço inerentemente
selvagem que precisaria ser civilizado, domesticado. Para tanto, razões de todo tipo
foram evocadas e a legislação da metrópole caminhava lado a lado com princípios
teológicos e “científicos” que buscavam legitimar a empreitada colonial.
Segundo Valentin Mudimbe, a historiografia explorava, assim, as chamadas
“leis científicas” a fim de avalizar a prática colonial, mas só se reportava a estas mesmas
“leis” quando elas pudessem ser invocadas como causas que justificassem os
parâmetros divinos, estes, por sua vez, em plena consonância com os princípios legais
do colonialismo.70
Um exemplo dessa dinâmica é o princípio legislativo-teológico de terra nullius.
Formulado no século XV ele “concedia aos príncipes cristãos o direito de espoliar
68 Idem, Ibidem, LIII. Grifos nossos. 69 Uma consulta aos originais em francês e inglês da HGA constata que os termos utilizados são
literalmente estes. Lê-se na versão em inglês que a África não deveria ser medida por “alien values”, que
nesse contexto, equivale a “valores estrangeiros”. Sendo necessária uma “volte rapatriante (a return
home)” – com a expressão francesa original e uma tradução entre aspas que também equivale à “volta
repatriadora” da tradução para o português. A mesma expressão “volte rapatriante” consta na edição
francesa bem como “valeurs étrangèrs”, corretamente traduzido para o português. Joseph Ki-Zerbo,
(Edit.), General History of Africa – Vol. I, London, Heinemman, 1981, p. 19. Joseph Ki-Zerbo, (Edit.),
Histoire Generale de L’Afrique – Vol. I, Paris, Unesco, 1980, p. 39. 70 V. Y. Mudimbe, op. cit., p. 144.
32
povos não-europeus”.71
Seu significado literal – “terra que pertence a ninguém” - retrata
a “terra” como sendo um não-lugar e, seus habitantes, consequentemente, como sendo
o “ninguém” da equação. Criava-se uma toponímia que não só constitui a reorganização
política profunda do local antigo pré-colonial, mas, também, implica numa “invenção de
um novo local e corpo cujos rumos e movimentos espelhavam uma nova economia
política”.72
Sujeito a novas formatações o princípio de terra nullius permaneceu, em novas
roupagens, durante largo período de tempo. Quase sempre mal disfarçado. Assim, era
possível ler em uma tese doutoral, escrita e publicada já na segunda metade do século
XX, que a África, antes da invasão colonial – esta encarada como “missão civilizadora”
– era “terra de ninguém, sujeita inteiramente aos caprichos e vontades dos indígenas”.73
Trata-se, tão somente, do velho mito hegeliano enunciado.
A África da terra nullius é, tal como afirmou Hegel, um lugar “além da luz da
história autoconsciente, encoberta pelo negro manto da noite”.74
A expressão mais bem
acabada desse argumento foi o conhecido romance de Joseph Conrad, Coração das
Trevas. Cujo título deve ser tomado como paradigmático.
A noção de nulidade que acompanha o princípio da terra nullius não comporta,
literalmente, a ideia de vazio populacional. A construção narrativa é ainda mais
perversa. O que subsiste nessa expressão latina, evocada de forma direta ou indireta,
mas sempre de maneira constante e persistente na cultura ocidental, não é,
necessariamente, um espaço oco, inabitado. Mas, ao contrário, remete ao fato de que
este espaço já ser, ou não, habitado é algo irrelevante, pois seus habitantes seriam,
invariavelmente, “selvagens”, que, na expressão de um dos personagens de Conrad, não
valeriam “mais que um grão de areia num Saara negro”.75
Dessa forma, ao rechaçar a mordaça dos valores estrangeiros e convocar uma
volta repatriadora, Ki-Zerbo está recusando a condição de nulidade a que o continente
africano estaria, supostamente, fadado. A terra nullius é substituída pela pátria.
Esta noção de pátria, compatível com a perspectiva africana, advém da obra do
filósofo alemão Ernst Bloch. A obra de Bloch que trazemos para a discussão, O
Princípio Esperança, perfaz uma espécie de espiral que encara o processo histórico
71 Idem, p. 176. 72
Idem, Ibidem. Grifos nossos. 73 Richard Patte, Portugal na África contemporânea, Rio de Janeiro, Editora PUC, 1961, p. 295. Grifos
nossos. 74 G. W. F. Hegel, op. cit., p. 83. 75 Joseph Conrad, O Coração das Trevas, São Paulo, Abril, 2010, p. 89.
33
como estando em aberto para iniciativas de emancipação, estando sujeito à mudanças
cíclicas, regressões e avanços, não reconhecendo, todavia, a ideia de progresso linear.
A perspectiva africana, conforme desenvolvida por Ki-Zerbo, tem como tema
uma África que está se formando no meio de um conflito ideológico entre a velha noção
de nulidade da historiografia colonial e a nova noção de lugar de retorno a ser
construído e libertado.
A pátria, segundo Bloch, é justamente o capital-utópico depositado em um
amanhã que ainda não veio e ainda não foi alcançado, mas que se constrói “na luta
dialético-materialista do novo com o velho”. 76
É em diálogo com essa noção que a
volta repatriadora pode encontrar seu sentido mais radical.
Por este viés, cabe romper com a alienação do sujeito africano para com a sua
própria história. Sem negar, com isso, as influências externas, que agiram por vezes
como “fermento acelerador” e por outras vezes como “detonador” de sua subjetividade.
Para tal, a história a ser feita é, obrigatoriamente, a “história dos povos africanos em
seu conjunto, considerada como uma totalidade” englobando toda a massa continental e
as ilhas vizinhas. Em síntese seria uma “história dos povos [...] pelo simples motivo de
que a posição territorial dos povos africanos ultrapassa em toda parte as fronteiras
herdadas da partilha colonial”. 77
A sensibilidade pan-africana é radicalizada de maneira a, sem negar a
diversidade interna, erigir uma totalidade histórica tão sólida quanto o traçado
geográfico do continente. Subverter as fronteiras e divisas coloniais significa negar a
própria condição colonial.78
A curiosidade acadêmica dá lugar ao engajamento social,
pois, segundo Ki-Zerbo, se para “os estrangeiros” a história da África corresponde a
uma mera curiosidade, seu sentido real ultrapassa essa esfera. Descortinar a história da
África seria algo necessário para a “compreensão da história universal, da qual muitas
passagens permanecerão enigmas obscuros enquanto o horizonte do continente africano
não tiver sido iluminado”.79
O mais provável é que Ki-Zerbo estivesse falando de “estrangeiros” no sentido
literal do termo. Entretanto, o tom universalista da sua argumentação abre margem para
76 Ernst Bloch, O Princípio Esperança – Vol. I, Rio de Janeiro, Contraponto/EdUERJ, 2005, p. 20. 77 Joseph Ki-Zerbo, “Introdução Geral” In____, op. cit., p. LIII, LIV. 78
Estamos cientes do fato de que toda fronteira é, por definição, uma criação artificial que não dá conta
das várias dinâmicas culturais, políticas e históricas do espaço socialmente construído. Não obstante, o
que entra em questão na argumentação é que, para o caso africano, tais fronteiras foram estabelecidas
segundo uma visão externa ao continente quando da partilha colonial. 79 Idem, p. LVI.
34
definir o “estrangeiro” como sendo aquele que não se empenha para o desvelamento do
passado africano por meio de uma perspectiva internalista, não vislumbrando, assim,
um futuro liberto para o continente. Afinal, a própria história universal só estará
inteiramente iluminada se o horizonte africano também estiver reconstruído.
Escreve Ki-Zerbo, que essa reconstrução póstuma de um “edifício há pouco
construído com pedras vivas” se faz importante, sobretudo, para os africanos, que vêm
nisso um “interesse carnal” e que, dessa forma, adentram no domínio da história após
“séculos ou décadas de frustração, como um exilado que descobre os contornos ao
mesmo tempo velhos e novos, porque secretamente antecipados, da almejada paisagem
da pátria”.80
O sujeito africano emerge como o Ulisses de Homero, quando depois dos vários
anos que passou fora de Ítaca, no desterro, retorna e esforça-se para reconhecer,
finalmente, o solo pátrio.81
O historiador, por seu turno, repetindo mais uma vez o gesto subversivo de
Prometeu, ilumina a trilha para que o até então desterrado enxergue melhor o caminho
na terra que há muito não pisava.82
Em uma mão ele, o historiador, carrega a chama da
história e, em outra, a da política: “É preciso que o homem de Estado africano se
interesse pela história como uma parte essencial do patrimônio nacional que deve
dirigir, ainda mais porque é pela história que ele poderá ter acesso ao conhecimento dos
outros países na ótica da unidade africana.” 83
A ótica da unidade africana é, nesse contexto, a própria perspectiva africana
aplicada ao político. Sem cair em um pragmatismo vazio essa visão defende a ideologia
pan-africana em detrimento da fragmentação continental. O que está em jogo é uma
ideia de unidade profunda do continente que deve encaminhá-lo para o desenvolvimento
solidário e integrado. Os preceitos históricos e políticos não se dissociam. Tal fato fica
patente se atentarmos pra os discursos dos políticos africanos da época.
Kwame N’Krumah, considerado o político africano mais destacado da década
africana, afirmou categoricamente que era preciso “descrever nossa história como a
história da nossa sociedade, dotada de sua própria integridade, sua história deve ser o
80 Idem, p. LVII. Grifos nossos. 81 O retorno de Ulisses é tematizado no Canto XIII da Odisseia. Ver, Homero, op. cit., pp. 334 – 348. 82 Originalmente quem ilumina o caminho de Ulisses é Palas Atenas, a guardiã do herói homérico. De
todo modo, seja qual for o elemento mítico escolhido, cabe notar que ambos os personagens – aquele que
acorda na pátria após os anos no desterro e aquele que mostra o caminho - convivem em uma mesma
“persona”. Afinal o próprio historiador em questão era um africano. Por este motivo não há aqui ideia de
“paternalismo tutelar” ou “massa popular a ser condicionada” pelo “intelectual guia”. 83 Joseph Ki-Zerbo, “Introdução Geral” In____, op. cit., p. LVII.
35
reflexo de si mesma, e o contato com os europeus só deve aparecer de um ponto de vista
da experiência dos africanos”. 84
Esta passagem poderia, sem maiores problemas, ser
atribuída ao próprio Ki-Zerbo. Assim como a passagem acerca da unidade africana de
Ki-Zerbo poderia ser atribuída a N’Krumah, tão conhecido que era por seu imperativo
categórico: “A África deve unir-se”.
Repetindo o procedimento de “coivara da história” – que semeia o futuro a partir
da queima do passado e da semeadura do presente- Ki-Zerbo afirma que “em algum
lugar sob as cinzas mortas do passado existem sempre brasas impregnadas da luz da
ressurreição”.85
O pensamento histórico, formulado, assim, em um arco temporal formado, em
uma extremidade, pela tríade passado-presente-futuro e tendo na outra ponta a ação
política concreta, procura transpor a realidade. Essa transposição não vai em direção ao
mero vazio, representado pelas antigas noções reificantes do espaço africano – o
Coração das Trevas da terra nullius – ao contrário, ela capta o novo, nesse caso a
pátria africana em construção, como algo mediado pela realidade existente posta em
movimento.86
Como consequência dessa forma de encarar o devir histórico, são as próprias
divisões demasiadamente engessadas entre o futuro e o passado que caem por terra: “o
futuro que ainda não veio a ser torna-se visível no passado”. O tempo pretérito, por sua
vez herdado, mediado e plenificado “torna-se visível no futuro”.87
Dessa forma, conclui
Ernst Bloch, “O passado compreendido isoladamente e assim registrado é uma mera
classificação de mercadoria, isto é, um factum coisificado sem consciência de seu fieri e
de seu processo contínuo”. Inversamente, “a ação verdadeira no próprio presente ocorre
unicamente na totalidade desse processo inconcluso tanto para a frente como para
trás”.88
A perspectiva africana olha para o que está por vir – a consolidação da pátria –
ao mesmo tempo em que procura conhecer o passado em sua totalidade criativa. Assim
acontece porque a perspectiva africana “não conhece nenhum outro passado a não ser o
ainda vivo, o ainda não liquidado”.89
O conceito de tradição viva, desenvolvido por
84 Kwame N’Krumah apud Jean-François Bayart, El estado en África, Barcelona, Bellaterra, 2000, p. 27. 85
Idem, Ibidem. 86 Erns Bloch, op. cit., p. 14. 87 Idem, p. 19. 88 Idem, Ibidem. 89 Idem Ibidem.
36
Amadou Hampaté Bâ na HGA, é exemplar no estabelecimento desse tipo de vínculo
temporal.
Hampaté Bâ parte de uma percepção arqueológica da passagem do tempo, em
que as diferentes camadas se relacionam influenciando-se mutuamente. Para a África,
escreve ele, “a época atual é de complexidade e de dependência. Os diferentes mundos,
as diferentes mentalidades e os diferentes períodos sobrepõem-se, interferindo uns nos
outros, às vezes se influenciando mutuamente, nem sempre se compreendendo”.90
Ao encarar a África como pátria, as próprias fronteiras temporais são
subvertidas. Passado, presente e futuro coexistem em um mesmo momento. O primeiro
como algo que resguarda um potencial redentor que sobrevive no presente que, por sua
vez, já se move em direção ao futuro.
A expressão mais radical dessa nova ideia de África aparecerá na conclusão do
primeiro volume da HGA, em um artigo com um título nada casual - Da natureza bruta
à humanidade liberada - redigido por Joseph Ki-Zerbo. A intenção do autor é clara:
explicitar os tons universalistas da perspectiva africana. Muitos dos argumentos
presentes nos capítulos anteriores – que, por sua vez, foram antecipados pela sua
História da África Negra -, são consolidados ao mesmo tempo em que acrescenta outros
princípios.
A África, escreve Ki-Zerbo, berço da espécie humana e onde emergiram as
primeiras sociedades politicamente organizadas ocupa, hoje, um papel periférico na
lógica global. O papel de vanguarda exercido pelo continente durante a pré-história foi
invertido por uma “lei” de “desenvolvimento caracterizada pela exploração e pela sua
redução ao papel de utensílio”.
A África, a “pátria do homem”, no dizer de Ki-Zerbo, precisa ser libertada e,
com isso, o próprio homem também se libertaria. Para alcançar essa libertação cabe
apreender o “sentido da história”, que não implica, no entanto, uma direção unívoca. 91
Na compreensão desse sentido a perspectiva africana não se isola dos parâmetros
universais de análise histórica.
Trata-se de desvelar o sentido da história humana tendo um referencial teórico e
espacial. Não se deve subtrair o continente africano aos princípios gerais da evolução da
espécie humana. Contudo, para Ki-Zerbo, mesmo que tais princípios fossem comuns a
90 Amadou Hampaté Bâ, “A tradição viva” In Joseph Ki-Zerbo, História Geral da África – Vol. I, op. cit.,
p. 210. 91 Joseph Ki-Zerbo, “Conclusão: Da natureza bruta à humanidade liberada” In____, (Edit.), op. cit., p.
833, 844.
37
toda humanidade, admitindo-se, portanto, que o essencial das categorias metodológicas
gerais do materialismo histórico seja universalmente aplicável”, seria necessário voltar
os olhos para o que o autor chama por “correspondências (não mecânicas) que podem
ser observadas entre as forças produtivas e as relações de produção, assim como a
passagem (não mecânica) das formas de sociedade sem classes às formas sociais de
lutas de classe”. Nesse sentido, “conviria analisar as realidades africanas no contexto,
não de retorno, mas de um recurso a Karl Marx. Se a razão é uma, a ciência consiste em
aplicá-la a cada um de seus objetos”.92
Aparece agora, com clareza, a nota que se faz sentir no acorde de ambos os
pensadores – Ki-Zerbo e Ernst Bloch – que torna possível a relação entre eles. Trata-se
da visão materialista e dialética da história.
A África só é possível como pátria se seu contínuo histórico for encarado como
algo em constante evolução em que subjaz o desequilíbrio dinâmico que pode
encaminhar para a libertação. Neste sentido a história da África ainda está por se fazer.
Recém-saído do jugo colonial o continente africano precisa tomar as rédeas do
seu destino. Negando os princípios da exploração capitalista o continente ajudaria a
transformar a lógica global que, até então, havia buscado domesticá-lo. Com esta
transformação a espécie humana começaria, finalmente, a escrever e vivenciar a sua
verdadeira história.
A pré-história deixa de ser encarada como recorte puramente cronológico e
passa a ser vista de forma teórico-metafórica, enquanto momento de um presente ainda
reificado, mas em vias de ser transformado visto que os conflitos pela libertação
nacional seriam “simultaneamente o indicador e a negação desse empreendimento de
domesticação do continente no contexto de um sistema que poderíamos chamar de
modo de subprodução africano”. Entretanto, desde “os primeiros balbucios do Homo
habilis”, seria possível notar já esse mesmo conflito pela libertação, “a mesma intenção
obstinada e irreprimível de ter acesso ao ser-mais, desvencilhando-se da alienação pela natureza
e depois pelo homem”. 93
Dessa forma, conclui Ki-Zerbo o primeiro volume da HGA: “Em suma, a
criação, a autocriação do homem, iniciada há milhares de milênios, ainda prossegue na
92 Idem, p. 850. 93 Idem, Ibidem. Grifos do original.
38
África. Em outros termos, de certa maneira a Pré-História da África ainda não
terminou”. 94
Ki-Zerbo inverte as filosofias e teologias da história que buscavam na narrativa
linear o fim da história.95
Ao contrário, usando a África como topoi do seu discurso, o
autor burquinense, na esteira de Marx, considera que é a própria história que ainda está
por se fazer, mas que se adianta no presente e se antecipa no passado enquanto capital-
redentor. Com a resolução das contradições terminaria, enfim, a pré-história da
sociedade humana.96
Ernst Bloch sintetiza essa tendência ao dizer que “o ser humano ainda existe, em
toda a parte, na pré-história, sim, tudo ainda se encontra numa condição anterior à
criação do mundo como mundo apropriado”. A verdadeira gênese, diz Bloch, “não se
situa no começo, mas no fim, e ela apenas começará a acontecer quando a sociedade e a
existência se tornarem radicais, isto é, quando se apreenderem pela raiz”. Tal só
acontecerá, para Bloch, quando o ser humano “tiver apreendido a si mesmo e ao que é
seu sem alienação, surgirá no mundo algo que brilha para todos na infância e onde
ninguém esteve ainda: a pátria”.97
Com efeito, o método evocado no primeiro volume da HGA pressupõe uma
visão internalista do continente sem, com isso, fechá-lo em si mesmo. Esta visão foi
denominada perspectiva africana. De acordo com o modo como foi formulada, ela
coaduna a postura ética com a científica e expressa uma sensibilidade pan-africana que,
quando radicalizada, transforma-se em uma visão universalista do processo histórico. A
África torna-se uma pátria, isto é, uma construção realizada no presente e posta em
prospectiva no amanhã; na libertação do continente. A partir deste movimento, emerge
da pátria um sujeito responsável pela sua construção.
94 Idem, Ibidem. 95 Entendemos por “filosofia da história” a “interpretação sistemática da história universal de acordo com
um princípio segundo o qual os acontecimentos e sucessões históricos se unificam e dirigem para um
sentido final”. A filosofia da história seria, dessa forma, nada mais do que uma derivação, ou, melhor
dizendo, uma laicização, da teologia da história iniciada na tradição hebraico-cristã e secularizada em
vários esquemas escatológicos: “Considerada nesta acepção, a filosofia da história está, no entanto, na
total dependência da teologia da história, em particular do conceito teológico da história como uma
história de realização e salvação”. Karl Lowith, O sentido da história, Lisboa, Edições 70, p. 15, 16. 96 Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 6. 97 Ernst Bloch, O Princípio Esperança - Vol. III, Rio de Janeiro, Contraponto/EdUERJ, 2006, p. 462.
39
1.5. Abordagens da perspectiva africana
Muryatan Barbosa mapeou três formas de abordagens distintas no que concerne
à perspectiva africana. São elas, respectivamente, o regionalismo, o difusionismo intra-
africano, e, por fim, a abordagem centrada no sujeito africano.
No caso do regionalismo a análise centrar-se-ia no âmbito local, considerando-se
os elementos fundamentais da história de uma região africana em particular a partir do
recorte da longa duração. Este procedimento teria como objetos temas relacionados,
comumente, ao ecossistema local-regional e aos desenvolvimentos ou adaptações
técnicas e sócio-políticas das populações africanas. Tratar-se-ia, escreve Barbosa, “de
um internalismo regionalizado”. 98
Já o difusionismo intra-africano estaria fundamentado na “difusão de elementos
e dinâmicas internas ao continente; mesmo que estes não o fossem em sua origem”. As
ideias de movimento e troca são essenciais neste tipo de abordagem que tem como
temas principais as redes econômicas, os movimentos migratórios e as influências
culturais, de povos africanos uns sobre os outros.99
Por fim, a análise através do sujeito africano se mostra como “uma explicação
histórica que visa destacar a ação política do sujeito africano, de forma mais ampla
possível”. A presença deste procedimento analítico se faz mais marcante nos períodos
em que os “fatores externos são estruturalmente dominantes.” Tal é o caso da era
colonial em África. 100
Só é possível falar em um conceito da resistência africana, tema central deste
trabalho, se ele estiver assente na abordagem realizada através do sujeito africano.
Entretanto, cabe definir quem, concretamente, é este sujeito. Da mesma forma, cabe
analisar as ocorrências do vocábulo resistência nos outros períodos históricos em que o
sujeito africano é o mote explicativo, a fim de explicitar que este termo só se torna um
conceito historiográfico na HGA quando posto no vocabulário do período colonial. Em
outros momentos da história da África ele tende a ser mais uma palavra dentre as outras,
sem maiores ambições teórico-conceituais. Apesar de ideologicamente carregada.
De todo modo, à parte suas definições disponíveis na HGA e no trabalho de
Muryatan Barbosa, consideramos o sujeito africano em seus contornos ontológicos.
98 Muryatan Santana Barbosa, op. cit., p. 49. 99 Idem, Ibidem. 100 Idem, Ibidem.
40
Entendemos que ao tentarem definir este sujeito os autores que compõem a HGA
buscaram, ainda que por diferentes caminhos, romper com a perda de uma
“autorreferência” que o discurso colonial da terra nullius havia gerado. A
contraposição, no terreno mais enfaticamente epistemológico, a esta noção realizou-se a
partir do conceito de perspectiva africana. Entretanto, não é uma questão concernente
somente ao método, ou à episteme. Trata-se, também, de uma perda ontológica: uma
terra nula para um sujeito igualmente nulo. 101
Cabe, portanto, à abordagem centrada no sujeito africano desfazer este
referencial de nulidade. Deve-se definir este sujeito para que a abordagem possa servir
de alicerce ao vocabulário de análise mais ou menos comum entre os autores da HGA e
para uma posterior reflexão teórica em torno de alguns dos termos deste vocabulário,
sendo “resistência” o principal deles.
As primeiras definições do sujeito africano aparecem já no período da história
antiga da África, que compreende o segundo volume da coleção. Frisamos que o
aspecto traumático deste sujeito – discutido em momentos anteriores desta análise e ao
qual retornaremos – ainda não é explicitado nestes períodos mais recuados do tempo.
Durante a história antiga o sujeito africano tende a ser visto, na HGA, como
realizador de um processo civilizatório que, possuindo no Egito faraônico o seu ápice,
se irradiaria por outras partes do velho mundo. As conotações subjetivamente
traumáticas desta abordagem serão mais perceptíveis na medida em que a narrativa se
aproxima do tempo presente.
1.6. O vocábulo resistência na História Geral da África
A primeira menção relevante ao termo “resistência” na HGA aparece nas
análises que dizem respeito às relações entre o Egito faraônico e a Núbia, analisadas por
Shehata Adam e J. Vercoutter. Em suas palavras: “A resistência núbia parece ter
assumido duas formas: revoltas contra a dominação egípcia no país e um êxodo mais ou
menos generalizado para o sul”.102
Os autores não procuram estabelecer tipologias
101 Colocamos a discussão nos mesmos termos de Boaventura Santos a respeito da existência de
epistemologias que excluem determinado sujeito do campo de visão da pesquisa e de outras que buscam
(re)inseri-lo. Boaventura de Sousa Santos; Maria Paula Meneses, “Introdução” In ___; ___, (Orgs.),
Epistemologias do Sul, São Paulo, Cortez, 2010, p. 17 e segs. 102 Shehata Adam; J. Vercoutter, “A importância da Núbia: um elo entre a África Central e o
Mediterrâneo” In Gamal Mokhtar (Edit.), História Geral da África – Vol. II. África Antiga, São Paulo,
Cortez, 2011 p. 231.
41
específicas para essa resistência e, tampouco, parecem ver nela algum aspecto relevante
para o presente.
Esta forma de tratar o caso núbio revela que a resistência africana, naquilo que
guarda tanto de relevante para o presente histórico quanto de carga teórico-
historiográfica, não se manifesta em um contexto intra-africano. É preciso que haja o
outro na resistência, para que ela verta-se em conceito.
Na HGA o sujeito africano, independentemente de como seja definido, só resiste,
de fato e relevantemente, frente à presença do invasor que é sempre estrangeiro em
relação ao continente. Acreditamos que este seja um traço identitário fundamental da
HGA: ao mesmo tempo em que se delineia o sujeito africano - que deve resistir - se
desenha, também, o seu oposto, aquele que viola o seu espaço. No decorrer do tempo
este invasor irá mudar de rosto e a HGA acompanhará este ritmo em seus sucessivos
volumes. Entretanto, é só quando ele, o outro, se transmuta no ocidente europeu
colonizador que o termo resistência ganhará contornos teórico-conceituais.
Há exceções que confirmam a regra. Por exemplo, a análise do período da
anexação do Egito ao império de Alexandre, o Grande, e, posteriormente, - com sua
morte e repartição das terras entre seus generais - o reinado dos Ptolomeus, não tende a
ser visto como um caso de invasão violenta.
Ao invés de focar na relação “dominação – resistência” preferiu-se, ao contrário,
tratar a África do norte como a “capital cultural do mundo mediterrânico”.103
A África
mostra-se como a principal fonte da civilização ocidental. Trata-se de um argumento
que teve na tese de Martin Bernal – Black Athena - sua expressão mais bem acabada e
influente.104
103 H. Raid, J. Devisse, “O Egito na época helenística” In Gamal Mokhtar, (Edit.), op. cit., pp. 168, 174,
180. 104 A teoria de Bernal encontra-se embasada no argumento da existência de dois modelos contraditórios
sobre as origens da civilização grega: o antigo e o ariano. O modelo antigo defendia que os primeiros
habitantes da Grécia eram pelasgos, e outras “tribos primitivas”, nas palavras de Bernal, que haviam sido
civilizados pelos egípcios e pelos fenícios. Estes últimos, por sua vez, governaram extensas regiões
gregas em tempos remotos – a chamada “era heroica” -. Já o modelo ariano surgiu somente no século
XVIII na Europa e argumentava que a civilização grega foi resultado da “mistura cultural” seguida da conquista de povos de origens indo-europeias por gregos, advindos dos primeiros povos pré-helênicos. A
partir dessa distinção Bernal propõe a substituição do modelo ariano por um modelo antigo revisto. Este
modelo seria mais verossímil e não apresentaria insuficiências explicativas ou lacunas internas em sua
argumentação, tendo sido derrubado pelo modelo ariano por motivos externos. Afinal, considerar a
Grécia como fruto da miscigenação de nativos europeus com africanos colonizadores teria sido
impensável dado o romantismo racialista imperante nos séculos XVIII e XIX na Europa. Trata-se, em
suma, de reconhecer o racismo e o chauvinismo continental europeu na historiografia do ocidente. Martin
Bernal, Black Athena. The Afroasiatic roots of Classical Civilization – Vol. II, New Brunswick, Rutgers
University Press, 1993, p. 1.
42
O primeiro invasor externo ao continente encarado como tal é, seguramente, o
romano. A invasão do império romano sobre a África é tratada de forma a dar mais
ênfase à resistência dos africanos. Os autores da HGA acerca desse tema, especialmente
no que se refere a A. Mahjoubi, ficam a um passo de fazer da palavra um conceito
historiográfico. Termos caros à semântica colonial e pan-africanista se fazem presentes
logo na abertura do texto: “colonialismo”, “pacificação”, “assimilação”, “revoltas” e,
claro, “resistência”.105
Mahjoubi não edifica tipologias da resistência africana frente à invasão romana.
Mas há, implicitamente, uma tipificação que, se não é sistemática, é bastante coerente
com a abordagem pretendida pelo autor. A tipificação do fenômeno da resistência
levada a cabo pelo historiador guarda íntimas semelhanças com as ulteriores
conceituações erigidas nos volumes VII e VIII da HGA - objeto de uma análise posterior
deste trabalho.
A análise do estudioso tunisiano longe de denotar um possível anacronismo de
sua parte - ao usar termos do moderno colonialismo europeu e da política pan-africana
para investigar a invasão romana - demonstra que a partir de uma realidade presente
mutável podem acontecer intercâmbios de interpretações e de enfoques teóricos entre
pesquisadores de temas e períodos históricos diversos entre si.106
Este processo, se bem
mediado, pode vir a ser bastante frutífero para a pesquisa histórica. Assim, Mahjoubi foi
influenciado pelas análises acerca do fenômeno colonial-imperialista no período
contemporâneo.
De todo modo, com a falência de Roma, a presença estrangeira, fosse vândala ou
bizantina, é vista, na HGA, como um “fardo” para população local. À parte essas
invasões, a “eterna África”, na expressão de P. Salama, estaria sempre presente.107
A retórica de Salama parece se embasar no já aludido “grau de família” que
existiria entre os povos da África, preconizado por Ki-Zerbo. Do mesmo modo, a
“eterna África” é mais construção presente que realidade pretérita. Na verdade, o
próprio adjetivo “eterno” tende a negar qualquer historicidade em nome de
permanências profundas o suficiente para serem a-históricas. Se há, na HGA, quem
privilegie esse caráter atemporal de uma suposta identidade eterna africana, há também,
105 A. Mahjoubi, “O período romano e pós-romano na África do Norte. Parte I. O período romano” In
Gamal Mokhtar, (Edit.), op. cit. 106 Ciro Flamarion Cardoso; Virgínia Fontes, “Impérios e Imperialismos: Apresentação”, Tempo, vol. 9,
n. 18, Niterói, EdUFF/ Rio de Janeiro, 7 Letras, 2005, p. 13. 107 P. Salama, “O período romano e pós-romano na África do Norte. Parte II. De Roma ao Islã” In Gamal
Mokhtar, (Edit.), op. cit., p. 554.
43
paradoxalmente, quem sequer se preocupe com essa identidade, vendo-a mesmo com
traços negativos.
Como argumentado anteriormente, a resistência, enquanto conceito
historiográfico, só pode emergir se possuir como premissa a perspectiva africana de um
lado e a abordagem centrada no sujeito africano de outro. Sem estas bases a palavra não
se configura como marco teórico, e, tampouco, seu uso estritamente vocabular poderá
ter conotações construtivas, na medida em que apesar de servir para retratar o africano
insubmisso à dominação estrangeira, sem os pressupostos teóricos adequados essa
insubmissão pode, ao contrário, assumir traços negativos.
As análises de Mohammed El Fasi e Ivan Hrbek são bons exemplos nesse
sentido. Para eles cabe ao africano que resiste à presença estrangeira o papel de agressor
e ao conquistador o papel de autodefesa. Segundo El Fasi, por exemplo, a expansão do
islã Magreb adentro é marcada especialmente “pela submissão e pela conversão de
numerosas ‘tribos berberes’ que haviam oposto uma resistência selvagem frente aos
exércitos árabes”.108
O tom do autor deixa claro que o que ele narra não é um processo de
insubmissão local contra uma intromissão estrangeira. O fato narrado é, ao contrário,
um processo civilizatório, que só poderia ser contraposto por uma oposição “selvagem”.
O termo utilizado para a conquista árabe é o mesmo termo que a historiografia ocidental
colonial utilizaria para legitimar sua expansão: pacificação.109
A presença dessa
semântica em uma obra que advoga a ótica internalista como método e tem na ênfase à
ação do agente histórico africano uma de suas principais abordagens é, no mínimo, um
contrassenso.
Na narrativa de El Fasi e Hrbek os elementos árabe-islâmicos e africano-
autóctones não constituem uma síntese. Ao contrário tendem a ser permanentemente
contrapostos. O sujeito africano inexiste neste procedimento porque é a própria
perspectiva africana que se faz ausente. Ou, melhor dizendo, quando existe um “sujeito
africano” ele é caracterizado como a negação de algo: o não-árabe ou o não-
muçulmano: o selvagem.
Nas suas Noites das mil e uma noites o romancista africano de expressão árabe
Naguib Mahfouz narra o drama no qual Jamsa Al Bati – personagem árabe e
108 Mohammed El Fasi, “A islamização da África do Norte” In ____; Ivan Hrbek (Edits.), História Geral
da África – Vol. III. África do século VII ao XI, São Paulo, Cortez, 2011, p. 77. Grifos nossos. 109 Ivan Hrbek, “Etapas do desenvolvimento do Islã e da sua difusão na África. Parte II. Difusão do islã na
África, ao sul do Saara” In ____; Mohammed El Fasi, (Edits.), op. cit., p.84.
44
muçulmano – se encontrava ao cometer, em circunstâncias obscuras, um assassinato.
Passando a ser perseguido por toda comunidade à qual pertencia. Sendo esta formada
homogeneamente por indivíduos com as mesmas características étnicas e religiosas;
árabes e muçulmanos.
A salvação de Al Bati advém de um gênio, Sanjam, que, vendo a desgraça em
que Jamsa caiu, lhe concede ajuda: Al Bati continuaria a viver em sua terra, mas em sua
pele e face já não estariam presentes os traços árabes. Ele se metamorfosearia em um
etíope, negro e, devido ao seu suposto país de origem um potencial não-muçulmano aos
olhos dos outros.110
O gênio Sanjam advertiu Al Bati: “É impossível alguém reconhecer você. Olhe
no primeiro espelho que encontrar”. Ao ver seu reflexo Jamsa se deparou com “a figura
de um etíope esguio, cabelo crespo e barba rala”. Em lugar de estranhar e maldizer sua
nova face, Jamsa “Não cessava de se admirar com sua aparência”.111
Para o caso dos autores em questão, Hrbek e El Fasi, o reflexo no espelho não
poderia ter outras feições que não fosse a árabe ou a islâmica.112
A síntese construída
ficcionalmente por Mahfouz: o árabe que se reconhece no etíope e vice-versa, é
impensável na perspectiva islamocentrica de El Fasi e Hrbek.113
Com efeito, há, na
HGA, um claro mal-estar no que se refere à presença árabe-islâmica na história da
África. A obra encontra-se no dilema da “lealdade dividida”.
Ao invés de Jamsa Al Bati, Hrbek e El Fasi estariam em maior consonância com
os personagens de Vidiadhar Naipaul presentes em Uma curva no rio. O romance,
passado em um lugar não nominado da África, retrata a vida de Salim, que apesar da
110 Na Etiópia a fé islâmica não teve a mesma sorte que em outras regiões da África, permanecendo a
maior parte da população em sua religião tradicional: o cristianismo. Dizemos religião tradicional, pois,
neste caso, data ainda de princípios do século IV a gênese do cristianismo etíope, durante o reinado do
imperador Ezana. Neste momento a religião cristã estaria restrita à capital, Axum, e, principalmente, aos
membros da realeza. Mesmo estes continuavam a cultuar os “antigos deuses de sua gente”, como nos
conta Alberto da Costa e Silva. De todo modo, foi a partir daí que o cristianismo passou a ser religião
oficial da Etiópia tendo sido propagado para além das fronteiras axumitas nos finais do século V ou
princípios do VI – não se sabe ao certo. Essa propagação ampla teria acontecido por obra de missionários
sírios. Os mais notáveis dentre eles teriam seus nomes cravados na tradição: Abá Meta, os Justos e os Nove Santos. Alberto da Costa e Silva, A Enxada e a Lança, op. cit., pp. 195, 201. Estamos cientes,
contudo, do fato de que por “etíope” Mahfouz queira designar o indivíduo advindo do Bilad al-sudan.
Isto é, “país dos negros” em Árabe: qualquer lugar ao sul do Saara. O que importa, para nós, é a
metamorfose do personagem em algo que ele próprio se reconhece. 111
Naguib Mahfouz, Noites das mil e uma noites, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 73. 112 Estamos cientes do fato de a cultura árabe e a fé islâmica serem ricas e diversas, não podendo ser
resumidas em um único reflexo. Nesse caso, mais precisamente, o reflexo só pode ser árabe e/ou islâmico
em qualquer das variantes dessa civilização e dessa religião. 113 Indo além, diríamos: o sentimento de alteridade é impensável em qualquer “centrismo”.
45
ascendência nacional indiana, possui, em parte, formação cultural árabe e religiosa
islâmica.
Em alguns momentos da narrativa, Salim se coloca como africano. Um mesmo
entre os locais. Mas, na maior parte do percurso ele se vê como o outro, o observador
externo que não deve lealdade alguma ao lugar. A postura esquizofrênica de Salim é o
ponto nodal do enredo. O mal-estar existencial coaduna-se com um mal-estar do
indivíduo diante de sua própria história. A este mal-estar um dos personagens chamará
por “lealdade dividida”.114
Também a HGA mostra-se com a sua lealdade dividida. De um lado a lealdade
da obra como um todo ao seu projeto de ancorar a pesquisa em uma ótica internalista.
De outro lado a lealdade de alguns autores em particular aos seus laços culturais e,
possivelmente, religiosos, profundos.
Tal como acontece na narrativa de Naipaul, a África apresentada por Hrbek e El
Fasi é um lugar a ser preenchido, um novo Coração das Trevas. Primeiro foram os
alexandrinos, seguindo-se os romanos, vândalos, bizantinos e, finalmente, os árabes.
Sendo sucedidos, posteriormente, pelos conquistadores europeus.
A África que a HGA escolheu apresentar neste momento é aquela vista pelo
olhar do outro. Uma África “não propriamente africana”, ficando a “verdadeira África
às nossas costas”, como afirmou Salim.115
Algo no mínimo paradoxal haja vista a forma
como a unidade africana foi tão apaixonadamente advogada em momentos anteriores da
obra, sobretudo por Ki-Zerbo.
De todo modo, e felizmente, após os capítulos com viés islamocentrico a HGA
retorna à sua perspectiva própria. O historiador belga Jan Vansina, afirma, concluindo o
volume editado por El Fasi e Hrbek, que mais importante do que conhecer a expansão
islâmica seria esclarecer “o que então era a religião africana”. 116
Por conseguinte, o dito “grau de família”, que seria indicativo de uma grande
confraria harmoniosa alicerçando a história vivida da África, não existe sequer no que
114 V.S. Naipaul, Uma curva no rio, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 211. 115 A diferença profunda é que em Hrbek e El Fasi, o islã, e a cultura árabe em geral, se apresentam como
força irresistível que a todos conquista. Já para Salim: “Os escravos haviam absorvido os senhores; a raça
árabe dos dominadores virtualmente desaparecera”. Ao fim e ao cabo, o islã foi, ele próprio, vencido pela
África. Idem, p. 22, 25. 116
É mostra da “lealdade dividida” da HGA o fato de a conclusão do volume ter ficado a cargo de
Vansina, adepto da perspectiva africana. Algo incomum na obra visto que geralmente os volumes são
introduzidos e concluídos pelo(s) editor(es). Neste caso, Hrbek e El Fasi, que estabeleceram uma
abordagem islamocentrica, ficaram responsáveis somente pela introdução e pelos primeiros capítulos. É
como se esse volume fosse, com o correr dos capítulos, se africanizando.
46
tange à historiografia acerca do continente. Sequer a HGA é uma confraria, havendo em
seu interior posturas antagônicas, dando, em alguns momentos, um tom ambíguo à obra
– se lida integralmente.
Insistamos neste ponto: para defender a unidade continental através da
sensibilidade pan-africana a HGA, mais precisamente Ki-Zerbo, designou os choques
entre estados africanos pretéritos como “absorção por osmose” que, ainda que
estabelecidos militarmente, dariam provas de um “indiscutível grau de família”. Essa
afirmação parece ter sua contraposição na própria obra.
O povo sosoe – por exemplo – opôs-se tenazmente à islamização e procurou
fazer-lhe frente nas áreas em que a palavra do profeta tentava trazer para sua esfera de
influência. As guerras levadas à cabo por Sumaoro Kante, líder sosoe, dão provas disso.
Kante atacou o Estado Manden – então área de influência do islã – mas encontrou uma
“obstinada resistência”, no dizer de Niane na HGA. Por fim, o Manden acabou por se
submeter ao domínio sosoe, ainda que mantendo formalmente sua independência. 117
Quem, afinal, estaria resistindo a quem? O povo sosoe, sob a liderança de Kante
“resistia” ao islã. O povo manden, em alguma medida islamizado, por sua vez, “resistia”
a Kante.118
Toda a semântica utilizada para a oposição ao outro – romanos, bizantinos,
árabes e futuramente europeus – aparece presente nas relações de poder que envolvem
somente o mesmo. Termos e expressões como “feroz adversário”, “revolta”,
“insurreição” e “conquista”, expressam relações tensas e problemáticas entre
instituições políticas adversárias.
Kante, para subjugar o Manden, não devia se sentir unido a eles por “grau de
família” algum. A mesma coisa no que diz respeito aos manden que lhe fizeram frente.
Mais uma vez há um contrassenso: o dito grau de família, tão apregoado por Ki-Zerbo
no primeiro volume da HGA, bem como a suposta absorção por osmose são,
indiretamente, desmentidos na própria HGA. Mostrando-se, pois, que se tratam muito
mais de invenção presente que de realidade pretérita. Ou, em termos mais precisos: um
anacronismo. Uma vista em fontes primárias ajuda a desconstruir de forma mais
categórica tal juízo.
117 Djdril Tamsir Niane, “O Mali e a segunda expansão manden” In ___, (Edit.), História Geral da África
– Vol. IV. África do século XII ao XVI, São Paulo, Cortez, 2011, p. 142. 118 Idem, p. 142, 143.
47
Conta, por exemplo, o cronista árabe Amir Es-S’adi em seu conhecido Tarikh
al-Sudan (História do Sudão), que o soberano do povo mossi invadiu, por volta de 1337,
a capital do Mali, Tombuctu, com grande violência. Fazendo frente, assim, ao poderoso
império malinês. O “sultão” dos mossis adentrou no império “saqueando-o,
incendiando-o, arruinando-o”, nos termos próprios de Es-S’adi. Depois de ter destruído
“tudo o que podia”, o “sultão” mossi “apreendeu toda a riqueza e retornou ao seu
país”.119
É possível admitir que sendo o povo mossi então não-islamizado – apesar de Es-
S’adi designar o líder deste povo como “sultão”-, e sendo o relator do episódio não só
um muçulmano, mas, também, um árabe, que Es-S’adi tenha exagerado na proporção da
violência mossi. Afinal, ainda que só como verniz a palavra do profeta era seguida no
Mali, o que pode ter causado empatia no autor. De todo modo, o relato comprova que,
ao menos, havia forte oposição ao império do Mali e que esta oposição não se dava de
forma fraterna e tampouco através de osmose.
Longe de argumentar de maneira retrograda e ver nesses fatos provas da
“selvagem confusão” entre “hordas de grupos terríveis” que levavam à cabo guerras em
que se percebiam “a mais inescrupulosa desumanidade e a mais repugnante brutalidade”
- como afirmou Hegel e, com ele, grande parte das narrativas coloniais -120
, é possível,
ao contrário, ver um contexto vivo, cercado de contradições e disputas pelo poder. Sem
com isso abdicar da sensibilidade pan-africana e, tampouco, da perspectiva internalista.
Portanto, o uso vocabular da “resistência” é válido e corrente no contexto intra-
africano. Mas ainda não é possível falar em um conceito propriamente dito. Pois o outro
ainda não desembarcou no continente. A HGA não tende, em geral, a ver no africano o
seu outro opositivo radical. Só na presença do outro que faça oposição ao conjunto do
continente é que o conceito de resistência pode irromper. A única experiência comum,
capaz de gerar esse vínculo identitário profundo seria o colonial-imperialismo europeu
que irá abranger toda a massa continental e as ilhas adjacentes.
119 Abderrahman Ben Abdallah Ben ‘Imran Ben ‘Amir Es-S’adi, Tarikh Es-Soudan In Documents Arabes Relatifs a L’Histoire du Soudan, Tradução de O. Houdas, Paris, Ernest Leroux/Libraire de la Société
asiatique de L’école des langues orientales vivantes, Paris, 1900, pp. 16, 17. Em francês no original :
“C’est, assure-t-on, le sultan Kankan-Mousa qui fit bâtir le minaret de la grande mosquée de Tombuctou,
et ce fut sous le règne d’un des princes de sa dynastie que le sultan du Mossi, à la tête d’une forte armée,
fit une expédition contre cete ville. Saisis d’effroi, les gens de Melli prirent la fuite etabandonnèrent
Tombuctou aux assailants. Le sultan Mossi pénétra alors dans la ville, la saccagea, l’incendia, la ruina, et
après avoir fait périr tous ceux qu’il put a et sês emparé de toutes les richesses qui’il trouva, il retourna
dans son pays”. 120 G. W. F. Hegel, op. cit., p. 83.
48
A partir da análise dos séculos XVI e XVIII começa a surgir, na HGA, o léxico
típico da era colonial, apesar de ela não ter ainda irrompido. Escreve B. Barry, por
exemplo, que o litoral do continente tornou-se o “eixo de penetração da dominação
econômica e política de uma Europa em plena expansão”. O comércio atlântico
mostrou-se um fator determinante na evolução econômica e sócio-política dos Estados
da Senegâmbia. Com o correr do século XVIII a “partilha da costa em zonas de
influência holandesa, francesa, inglesa e portuguesa coincidiu com a intensificação do
comércio negreiro, que permaneceu, ao longo do século XVIII, a pedra angular do
comércio atlântico”. 121
Os termos grifados acima indicam a presença de um fator externo que serve de
determinante para o desenvolvimento interno dessa região do continente africano.
Apesar de haver a presença desse elemento estrangeiro ele ainda não é alvo de uma ação
opositiva sistemática por parte da força interna. Com isso, “resistência” aparece, ainda,
em seu uso vocabular em relações intra-africanas.122
Cabe notar a presença marcante, já neste momento, de um léxico caro à situação
colonial. Composto por “dominação”, “partilha” de um lado e “resistência” de outro. No
entanto, uma não é diretamente relacionada com a outra no texto. Isto é, a resistência
não se mostra como consequência, única e exclusivamente, da ingerência estrangeira.
Apesar de o autor admitir que neste momento inicia-se a “grande aventura do
cercamento da África” por parte das potências europeias.123
Tal fato não implica na passividade do africano frente ao comércio transatlântico
que então se estabelecia. Albert Adu Boahen aponta sua análise na mesma direção. Ao
trabalhar com os Estados e culturas da Guiné inferior, Boahen afirma que para os akan,
os ga e os ewe, esse período de preponderância do trato atlântico foi, provavelmente,
“um dos mais revolucionários de sua história”. Um dos motivos dessa revolução foi
justamente a abertura ao comércio atlântico, primeiramente estabelecido com a Europa e
depois com as Américas.124 O contexto em que Boahen se utiliza do termo “resistência”
é bastante significativo da importância relativa do estrangeiro nos assuntos internos do
continente.
121 B. Barry, “A Senegâmbia do século XVI ao XVIII: a evolução dos Wolofes, dos Sereres e dos
Tucolores” In Bethwell Allan Ogot, (Edit.), História Geral da África. Vol. V, São Paulo, Cortez, 2011,
pp. 313, 314. Grifos nossos. 122 Idem, p. 315. 123 Idem, 229. 124 A. Boahen, “Os Estados e as culturas da costa da Guiné Inferior” In Bethwell Allan Ogot, op. cit., p.
475.
49
Com efeito, a ausência de um traço identitário profundo que favoreça o vínculo
entre povos diferentes acaba sendo sentida na ausência de um conceito analítico comum
para essas experiências plurais – como viria a acontecer posteriormente com a
experiência colonial e com o conceito de resistência enquanto mote explicativo. De todo
modo, a ingerência estrangeira – maior ou menor – era bastante relativa nesta fase pré-
colonial da história da África.
Em resumo; poder-se-ia dizer que, se para o caso do Brasil houve quem
afirmasse que nossa experiência colonial faria com que nos voltássemos para fora,125 no
caso africano foi, ao contrário, a experiência comercial feita de maneira autônoma e
soberana que colocou o continente para fora de si.126 Nesse movimento, além dos
conflitos internos o trato atlântico engendraria outro fenômeno que marcaria, de maneira
incontornável, o continente: a diáspora africana.
Nas análises acerca da diáspora africana a HGA mostra-se, em geral, voltada
para dois objetivos: 1) demonstrar como o tráfico de escravos – motor do fenômeno
diaspórico – foi “fator primordial para o advento da ordem econômica atlântica do
século XIX”,127 no dizer de J.E. Inikori; 2) Evidenciar as ações do sujeito africano fora
do continente, seja nas Américas, na Ásia ou na Europa, onde ele reinventa suas
culturas originárias absorve, também, outros elementos.
Ao buscar o primeiro objetivo a HGA põe-se na esteira da tese de Eric Williams
para quem o desenvolvimento da indústria europeia guardava íntima relação com o
comércio escravista. Este último incentivava – por diversos meios – o capitalismo
nascente.128
O estabelecimento da empresa escravista e, por consequência, do capitalismo,
engendrava – e não são poucos os autores da HGA que nos dizem – uma relação de
dependência no continente. Há uma clara influência da teoria da dependência na HGA.
125 Não seria esse o “sentido da colonização” de que fala Caio Prado Jr.? Afinal, para ele, “a colonização
dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas
sempre com o mesmo caráter que ela, destina a explorar os recursos naturais de um território virgem em
proveito do comércio europeu. É esse o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma
das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos”. Caio Prado Jr., Formação do Brasil
Contemporâneo. Colônia, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 28. A categoria de sentindo da
colonização sintetizaria a orientação da colônia, voltada para fora, isto é a exportação de produtos
primários com o estabelecimento de uma relação de dependência para com a metrópole. 126
Claro que os graus dessa autonomia e soberania variavam a depender da região específica do
continente, como demonstram os textos até o momento analisados. 127 J. E. Inikori, “A África na história do mundo: o tráfico de escravos a partir da África e a emergência
de uma ordem econômica no Atlântico” In Bethwell Allan Ogot, op. cit., p. 95. 128 Eric Williams, Capitalismo e Escravidão, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, pp. 99, 101, 107.
50
Segundo um dos mestres dessa tradição a dependência poderia ser entendida como
“uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco
as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para
assegurar a reprodução ampliada da dependência”.129
Dessa forma, escreve Inikori que, do ponto de vista internacional, o comércio
transatlântico representou um fenômeno único tanto por sua amplitude quanto por suas
consequências nas relações econômicas. Uma dessas consequências residiria no fato de
o processo de transformação capitalista na Europa Ocidental ter sido subordinado ao
sistema atlântico. Já nas áreas periféricas – respectivamente, América Latina, Antilhas e
África - desse sistema, teria ocorrido um processo de fortalecimento de estruturas de
subdesenvolvimento e dependência.130
Para Inikori é inconteste o fato de que foi a mão de obra servil africana fornecida
pelo tráfico de escravos que tornou possível a expansão do sistema atlântico em um
processo que prevaleceu o desenvolvimento desigual entre centro – Europa e América
do Norte – e periferia – América Latina, Antilhas e África. Quando, finalmente, o
sistema atlântico desmoronou, após toda a sangria que já havia proporcionado, estavam
lançadas as bases para outra empresa: o colonialismo. Para o autor, a partir de finais do
século XIX, quando o tráfico transatlântico finda, a situação colonial acabaria por
consolidar a situação de dependência e subdesenvolvimento do continente.131
A análise de Inikori não é uma narrativa factual documentada na qual os eventos
são narrados sem maiores preocupações conceituais. Ao contrário, é o tipo de
investigação que, apesar de lançar mão das fontes, está voltada para a correta nomeação
dos eventos e fatos, para sua descrição. Neste tipo de empreitada é comum que se tenha
ao menos um conceito que estruture a análise, que lhe dê sentido. Neste caso trata-se da
noção de “dependência” – e, com ela, dos termos desenvolvimento e
subdesenvolvimento.
Mesmo que a formação do sistema atlântico tenha gerado uma sangria cujas
proporções não podem ser mensuradas não há muito espaço para a “resistência” do
africano frente ao estado de coisas que então se impunha. Não há uso vocabular e
tampouco conceitual da palavra. Para que isso acontecesse seria preciso que houvesse
129 Ruy Mauro Marini, “Dialética da Dependência” In Roberta Traspadini; João Pedro Stedile, (Orgs.),
Ruy Mauro Marini. Vida e Obra, São Paulo, Expressão Popular, 2011, pp. 134, 135. 130 J. E. Inikori, op. cit., pp. 92, 95, 117. 131 Idem, 132, 133, 134.
51
ênfase no agenciamento do sujeito histórico em sua própria história, e, por
consequência, que se fizesse uso da abordagem centrada no sujeito africano.
Se assim o fosse, ao invés dos grandes quadros conceituais macroeconômicos
teríamos diante de nós a pintura da Hidra de muitas cabeças, elemento mítico no qual os
senhores do sistema atlântico viam o “símbolo antiético de desordem e resistência, uma
poderosa ameaça à construção do Estado, do Império e do capitalismo”, como nos
asseguram Peter Linebaugh e Marcus Rediker.132 A resistência, mesmo que
completamente despossuída de pretensões conceituais, pode servir para estruturar a
narrativa da formação do sistema atlântico. No entanto, para isso, o agente histórico
deve existir na análise, os personagens, eles mesmos, precisam se fazer presentes na
trama. Na HGA é na análise de J. E. Harris, que o objetivo de pôr o sujeito africano em
destaque na diáspora é colocado.
Ao se debruçar sobre um evento tão inflexivo quanto o foi a diáspora
engendrada pelo tráfico atlântico focando nos agentes históricos envolvidos é quase
inevitável que a palavra “resistência” se faça presente. Assim acontece quando Harris
afirma que os africanos na diáspora seriam exemplos a ser seguidos pelos outros
escravos. Nas suas palavras: “pelo fato de um grande número desses africanos
‘adestrados’ conhecer bem as conspirações e revoltas, eles serviam como modelo de
resistência para os escravos da América do Norte”.133
Fazendo largo uso dos números, Harris demonstra que a resistência escrava era
ascendente em relação à densidade populacional de indivíduos escravizados. Desse
modo, a “resistência negra levou [em 1740] os holandeses a firmarem um trato de
amizade com o chefe coromanta Adoe”.134 Das várias cabeças da Hidra de Rediker e
Linebaugh, Harris trata de analisar aquela de tez negra, condizente com os africanos e
seus descendentes. A “resistência” aqui talvez antes de ser “africana” ela é negra porque
criada no espaço diaspórico em que a cor funcionava como marcador social da
diferença.
Além de “resistência” notamos outro termo caro à política pan-africana.
Segundo Harris, as revoltas escravas seriam “lutas de libertação” que testemunharam o
“despertar do nacionalismo no seio da diáspora africana do Caribe e da América
132
Peter Linebaugh; Marcus Rediker, A hidra de muitas cabeças. Marinheiros, escravos, plebeus e a
história oculta do Atlântico revolucionário, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 11. 133 J. E. Harris, “A diáspora africana no Antigo e no Novo Mundo” In Bethwell Allan Ogot, op. cit., p.
142. 134 Idem, Ibidem. Grifos nossos.
52
Latina”. Tratar-se-ia, para os africanos, não somente de uma atitude vingativa ou de
esquiva, mas, principalmente, “de uma necessidade de criar zonas politicamente
autônomas, permitindo-lhes defenderem-se contra seus inimigos”.135
Mas não só de defesa e de territórios autônomos vivia a “resistência negra”.
Tomadas de poder de cunho revolucionário também tiveram vez na diáspora. Como
atesta o caso da revolução haitiana.
“Em agosto de 1791”, conta-nos Cyril James, “os escravos se revoltaram”,
levando a cabo uma luta que se estenderia por doze anos. Lograram derrotar “brancos
locais e os soldados da monarquia francesa”. Fizeram sucumbir também “uma invasão
espanhola, uma expedição britânica com algo em torno de sessenta mil homens e uma
expedição francesa de semelhantes dimensões comandada pelo cunhado de Bonaparte”.
Com a derrota da expedição de Bonaparte, em 1803, estabeleceu-se “o Estado negro do
Haiti, que permanece até os dias atuais”.136
O líder da revolta haitiana, Toussaint L’Overture é tido por Harris como um
“símbolo internacional da liberdade dos negros”. Assim, apesar da dominação colonial,
tal processo de luta pela liberdade por parte de sujeitos escravizados, “seguiu seu curso,
tratando-se provavelmente da mais importante consequência histórica da diáspora
africana”.137
Em parte da vasta produção historiográfica acerca da diáspora africana e da
escravidão nas Américas “resistência” eventualmente seria, quando não conceito
propriamente dito, ao menos categoria estruturante da narrativa.138 Tal não acontece na
HGA. O conceito que estrutura a narrativa geral acerca da diáspora e do tráfico é o de
dependência. Quando há a presença da “resistência” é sempre em seu uso vocabular de
maneira menos estruturante, ajudando a encadear os eventos, mas não necessariamente
lhes conferindo ossatura epistemológica – como no caso de Harris.
135 Idem, p. 143. 136 C. L. R. James, Os jacobinos negros, São Paulo, Boitempo, 2010, p. 15. 137 J. E. Harris, op. cit., p. 163. 138 Veja-se como exemplo o caso de Jacob Gorender. Inspirado nas categorias de análise marxistas,
Gorender erige tipologias da “resistência escrava”. Ela poderia ser, principalmente, individual ou coletiva,
prevalecendo em ambas o que chamou de “consciência oposicionista regressiva” na qual o mais
importante seria livrar-se do jugo escravista e não modificar radicalmente o sistema escravocrata. Jacob
Gorender, A escravidão reabilitada, São Paulo, Ática, 1990, pp. 121, 122. Trata-se aqui somente de um
exemplo ilustrativo, visto que não pretendemos entrar no debate acerca da resistência na historiografia da
diáspora africana.
53
O que faltaria a uma experiência incontornável como a escravidão merecer um
tratamento sistemático-conceitual da sua “resistência” na HGA? Faltaria a experiência
colonial adicionada à sua equação.
54
CAPÍTULO II
O CONCEITO - PARTE I
Resistência e expansão colonial
O mundo se despedaça; nada mais o sustenta;
A simples anarquia se desata no mundo.
W. B. Yets, O segundo advento.139
2.1. Introdução
Não foi o mero acaso que levou Chinua Achebe a usar dos versos de Yets para
abrir sua obra mais famosa, O mundo se despedaça. Em comum, ambos têm a relação
com o imperialismo britânico. Yets, na Irlanda, Achebe, na Nigéria, sentiram o peso da
intromissão estrangeira. Uma invasão que faz o mundo se despedaçar. No entanto,
aquilo que na poética de Yets ganha contornos fascistas e mistificadores, na prosa de
Achebe receberá um tratamento mais crítico, pendendo menos para os nativismos
essencialistas e para a idealização do passado pré-colonial. 140
O mundo despedaçado que Achebe apresenta é a história de Okonkwo, um
notável guerreiro da aldeia Ibo de Umuófia. Quando irrompe a invasão colonial,
Okonkwo recusa-se a render-se aos recém-chegados. Insubmisso, faz de tudo para
manter a ordem das coisas que o invasor veio abalar. Ou, melhor dizendo, subverter
radicalmente.
Sobre o volume VII da HGA pode-se dizer que os personagens guardam, muitas
vezes, um pouco de Okonkwo dentro de si. Para o período da expansão colonial, a ser
retratado neste momento pela obra, o conceito de resistência será utilizado, sobretudo,
para denotar essa força reativa que preza pela manutenção do mundo tal como era
conhecido antes da investida colonial.
O conceito de resistência é dirigido, dessa forma, contra um determinado
fenômeno: o colonialismo. Tendo isto em mente, antes de empreender a análise
propriamente dita deste volume da HGA cabe uma definição preliminar do fenômeno
colonial, naquilo que se refere às preocupações deste trabalho.
139
W. B. Yets apud Chinua Achebe, O mundo se despedaça, São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p.
19. 140 Para Said Yets seria um exemplo exacerbado do nativismo. Fenômeno que floresceu em outros lugares
e cujo melhor exemplo, para o caso africano, seria a negritude. Edward W. Said, Cultura e Imperialismo,
São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 355.
55
2.2. Colonialismo: uma instância traumática
Conforme argumentado anteriormente,141
na narrativa da HGA a África é
apresentada, por vezes, como um personagem exposto a traumas variados que se
sucedem no tempo. Invasões estrangeiras – helênicos e árabes, antes do ocidente
europeu -; espoliações econômicas; subalternidade na formação da economia-mundo
capitalista; a sangria da escravidão atlântica e, finalmente, o colonialismo. O sujeito
africano que emerge da HGA no seu volume VII é, portanto, um sujeito ainda afetado
pela persistência de um desses traumas. Neste caso, o fato colonial.
No terreno da Psicologia, trata-se de um trauma social. Este tipo de trauma foi
diagnosticado primeiramente em casos de sobreviventes da primeira guerra mundial e,
posteriormente, em outros tipos de eventos marcadamente violentos. Importante
ressaltar que nestas circunstâncias, o trauma é desencadeado por um perigo externo. 142
A temporalidade subjacente ao trauma, segundo Rudge, implica uma
determinação do presente sobre o passado. O passado é visto a partir da instância
traumática que se faz no presente. O que ocorre, ao fim, é um diálogo contínuo entre o
tempo passado e o presente. Não havendo, portanto, linearidade nesse processo. 143
É possível que esta argumentação seja atribuída à estruturação de narrativas
históricas coletivas. Não se trata aqui de pôr a questão em termos obscurantistas de um
possível “arquétipo colonial” a-histórico que se teria sedimentado em algum tipo de
“inconsciente coletivo africano”. Ao contrário, a experiência traumática é o fundamento
de um laço social circunscrito em uma realidade histórica delimitada.144
O grande diferencial dessa experiência traumática, em relação às outras
apresentadas na HGA, reside no fato de ela ainda não ter passado. O sujeito africano, a
depender de sua localização específica na realidade, estará, ainda, exposto a este trauma.
Não é possível falar, aqui, de um sujeito pós-traumático.145
141 Ver capítulo I. 142 Ana Maria Rudge, “Trauma e temporalidade”, Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, Dezembro, 2003, p. 105-108. 143 Idem, Ibidem. 144 Idem, p. 111. 145 Com essa afirmação entramos em uma questão fulcral sugerida por Frederick Cooper. Qual seja, “o
quanto o mundo ‘pós-colonial’ é ‘pós’”. Nessa esteira, nos perguntamos: sendo o colonialismo encarado
enquanto trauma, até que ponto o sujeito africano é pós-traumático. Isto é, hoje ele seria tão somente
perseguido por resíduos do evento traumático ou, ao contrário, ainda estaria sujeito a situações que em
tudo se assemelham e remetem a este mesmo trauma? A problemática reside em diferenciar a falência
formal do colonialismo da persistência concreta de seus elementos formadores na realidade africana. A
particularidade concreta de cada esfera dessa realidade é que deve fornecer a resposta a esta questão que,
tão somente, apresentamos. Frederick Cooper, “Conflito e conexão: repensando a história colonial da
África”, Anos 90, Gráfica UFRGS, Porto Alegre, Vol. 15, n. 27, p. 63, nota 38.
56
Com essa argumentação dialogamos com Achille Mbembe no que se refere à
África contemporânea. Em seus estudos acerca da África independente Mbembe ainda
se faz valer do termo “indígena” para nomear os africanos. Assim acontece, pois, em
sua ótica, “a condição do negro nos regimes independentes não se afastou
suficientemente, em termos ‘qualitativos’, da condição da época colonial para que se
justifique retirar-lhe esta ‘designação’ [de indígena]”. Continuando o africano a ser,
portanto, um “não-sujeito”, tal como acontecia na época colonial.146
O que liga os autores da HGA aos personagens históricos por eles retratados é a
mesma experiência traumática. Em resumo: é o colonialismo – e as respostas dadas a
ele, assombreadas agora pelo conceito de resistência - que constrói a ideia de África.
Parafraseando Adonis, é possível dizer que o continente africano cedo se feriu, cedo
soube que essas feridas o criaram.147
A história nascida e reescrita a partir dessa ferida é vista enquanto narração ou
descrição de cicatrizes, visões potencialmente revistas do passado que podem tender
para um futuro pós-colonial, experiências urgentemente reinterpretáveis. Nesse tipo de
narração ou descrição o nativo, agora no papel historiador, que outrora silenciava “fala e
age em território tomado do colonizador, como parte de um movimento geral de
resistência”. 148
Ao estudar e se engajar nesse movimento geral de resistência, colocando-se em
seu favor, a historiografia faz emergir uma decorrência interpretativa importante: a de
ver a história de uma comunidade, neste caso todo o continente africano, como um todo
coerente e integral.149
Esta declinação é, seguramente, problemática por encaminhar
para uma homogeneização da experiência continental. O objetivo parece ser o de
devolver o continente a ele mesmo, o custo dessa operação, da forma como é feita, no
entanto, é alto: matizar com um mesmo tom vivências historicamente distintas.
Em resumo: pode-se dizer que a partir da consciência da ferida sofrida pelo fato
colonial são construídas formas de responder ao evento traumático. Disto advém o
tratamento da resistência enquanto fenômeno global que abarca todo o continente. Ela, a
resistência, torna-se a categoria estruturante dos trabalhos. Dotada, portanto, de
conteúdo epistemológico. Um conceito historiográfico propriamente dito, já não se
encontrando restrita a um uso estritamente vocabular.
146 Achille Mbembe, África insubmissa, Mangualde, Pedago, 2013, p. 15, nota 2. 147 Adonis [Ali Ahmad Said Esber], Poemas, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 180. 148 Edward Said, Cultura e Imperialismo, op. cit., pp. 337, 338. 149 Idem, Ibidem.
57
Demonstrada essa instância ontológica do trauma colonial, que abarca tanto os
historiadores quanto seus personagens, cabe uma breve digressão acerca de sua
dimensão epistêmica.
“Resistência” é, como já afirmado, a categoria que estrutura uma série de
trabalhos acerca do continente africano no período colonial, dentre tais trabalhos a HGA
merece, certamente, destaque. Fazer deste conceito e desta historiografia objetos de
investigação histórica remete ao fato enunciado por Castoriadis que tem por assente que
as categorias em função das quais a história é pensada são, elas próprias, produtos reais
do desenvolvimento histórico, de maneira que o mundo histórico se desenvolve
enquanto desdobramento de um universo de significações.150
Com o pós-segunda guerra novos paradigmas historiográficos, no que tange à
historiografia acerca da África, encontram condições objetivas para serem semeados.
Nas décadas posteriores a 1945 as políticas raciais giraram em uma nova direção de
maneira decisiva tanto nas colônias europeias em África, quanto nos Estados Unidos.
Assome-se a isto as lutas de libertação que tinham vez tanto em África – Argélia e
Quênia, por exemplo – quanto alhures - a exemplo da então Indochina.151
Nesse contexto, novos métodos passam a ser evocados para trazer o passado do
continente africano à luz. Sobretudo no que respeita o uso de fontes arqueológicas e da
tradição oral. A ampliação de métodos empregados pelos historiadores africanos – ou
não-africanos que tomaram parte nesse movimento – teve relevo não só nas sociedades
orais, mas também no estudo das classes subalternas das sociedades com um índice
considerável de alfabetização. Foram trazidos à tona, com isso, atos de resistência à
dominação colonial.152
A mudança de paradigmas metodológicos não é, no entanto, o resultado
inevitável de um progresso impessoal da ciência histórica. Ao contrário, como aponta
Feierman, os giros conceituais estão sempre plasmados em seu tempo e circunstância.153
A ênfase que a historiografia dá ao conceito de resistência é, por conseguinte, indicativa
do próprio momento histórico de produção intelectual.
O conceito vem atribuir nova significação a eventos outrora vistos de forma
negativa pela historiografia colonial. Em última instância, trata-se de buscar elementos
150 Cornelius Castoriadis, A instituição imaginária da sociedade, São Paulo, Paz e Terra, 1982, p. 24. 151
Steven Feierman, “African histories and the dissolution of world history” In R. H. Bates; V.Y.
Mudimbe; J. O’Barr (Edits.). Africa and the disciplines. The contributions of research in Africa to the
Social Sciences and Humanities, Chicago, University of Chicago Press, 1993, p. 184. 152 Idem, Ibidem. 153 Idem, p. 167.
58
próprios para tratar a história da África, colocar a questão em seus termos próprios,
pensando na realidade africana.
As categorias de análise históricas foram, normalmente, pensadas para a
realidade ocidental e, mais precisamente, europeia.154
De acordo com Feierman –
pondo-se na esteira de Mudimbe - a análise histórica, cativa de conceitos eurocentrados,
fica dependente do contraste entre, de um lado, o normal e do outro o patológico. A
Europa, a partir da historiografia colonial, teria logrado definir o normal, isto é, ela
mesma. O não-Europeu aparece obviamente distorcido, como anormal, primitivo, em
suma, patológico.155
O binômio historiográfico entre o normal e o patológico deve ser
entendido, portanto, dentro da lógica colonial.
Repetindo Canetti, cabe dizer que “Para dominar uma criatura humana, basta
classifica-la historicamente”.156
Se a ação colonial efetiva buscava – por meios sociais,
econômicos, culturais ou propriamente militares - dominar o continente africano, a
historiografia acompanhava este movimento enjaulando-o na gaiola do primitivo, ou,
nos termos de Feierman e Mudimbe, do patológico. Reforçando a situação traumática
que se desenrolava.157
Os melhores trabalhos acerca da resistência, feitos em contraposição à
historiografia colonial, exploraram as principais tensões das sociedades africanas antes
da consumação da conquista europeia, procurando demonstrar o curso da resistência
africana à dominação colonial-imperialista. A história da dominação colonial encontra-
se dividida entre as histórias feitas a partir da ótica colonial e aquelas que procuraram
escapar e mesmo se contrapor a esta ótica.158
Contraposição esta que inúmeras vezes se
fez através de um engajamento direto, buscando contribuir para o fim do trauma
colonial.
A insistência por parte de certa historiografia pregressa em não reconhecer nas
sociedades africanas tanto uma historicidade como uma política que lhes são próprias
154 Um exemplo sucinto pode ser ilustrado pelo conceito de “classe” que, pensado na e para a Europa pós-
revolução industrial, encontraria ressonância e ressignificações nos mais variados contextos. Feierman
resume bem a situação de maneira mais geral ao afirmar que “Muitas categorias que usamos para
entender a experiência universal originaram-se na experiência particular do centro do mundo capitalista”.
Steven Feierman, op. cit., p. 184. 155 Steven Feierman, op. cit., p. 179. 156 Elias Canetti, Auto de fé, São Paulo, Cosac Naify, 2011, p. 163. 157 Para mais referências acerca da historiografia colonial ver o capítulo I deste trabalho. 158 Idem, Ibidem.
59
tem a ver com a conquista da África pelo Ocidente. O trauma colonial além de ser
vivido era também modelado em narrativas que procuravam legitimá-lo.159
Pensar categorias e métodos próprios para a realidade africana era, em última
análise, a tentativa de cortar a malha epistemológica que recobria a realidade colonial. O
conceito da resistência seria a lâmina utilizada nesta operação. Se com suas azagaias em
riste milhares de africanos trespassaram os corpos de europeus invasores, com o
conceito de resistência a historiografia pretendia rasgar definitivamente o corpus autoral
da historiografia colonial.
2.3. Gênese dos estudos acerca da resistência
Surgidos como resposta historiográfica e militante ao trauma colonial os estudos
acerca da resistência africana não chegaram a ficar reunidos, num primeiro momento,
em uma mesma “escola” ou mesmo um corpo autoral mais ou menos próximo. Tal não
impede o mapeamento retrospectivo de alguns dos principais pontos de referência da
origem do conceito no que tange o caso africano.
Já em 1924 Leys Norman empreende um interessante estudo acerca da situação
colonial, centrando-se no Quênia. Não se pode dizer que, em sua obra, Norman realizou
um estudo sistemático acerca da resistência africana. Contudo, isso não se configura
como um impeditivo para pôr em relevo sua argumentação.
Segundo ele, haveria uma íntima relação entre a resistência e a modificação do
modo de vida tradicional frente ao avanço do poder colonial, visto que este trazia
consigo profundas consequências sociais, das quais destaca especialmente o trabalho
assalariado. Escreve Norman que os levantes deveram-se, essencialmente, à descoberta
por parte dos africanos de que a ocupação colonial envolvia a inevitável perda da
“independência tribal”. Somada a essa perda de soberania vinham a tributação e o
trabalho compulsório como sinais comprobatórios de um novo estado de coisas.160
Norman assegura que no momento em que escreve seu trabalho os levantes
anticoloniais são menos comuns em relação à primeira fase da ocupação europeia, mas
isso não seria devido a uma placidez dos povos subjugados, que teriam passado a
reconhecer na colonização grande benefício. Ao contrário, a ausência dos levantes seria
causada pelo esgotamento das perspectivas após as numerosas derrotas militares
sofridas. Devidas, sobretudo, à falta de aparato militar que pudesse fazer frente ao
159 Jean François Bayart, El Estado en África, op. cit., p. 22. 160 Leys Norman, Kenya, London, The Hogarth Press, 1926, p. 341. Primeira edição de 1924.
60
invasor. Norman fala de lanceiros que tombavam baleados em sequência sem conseguir
infligir uma única baixa às forças coloniais.161
Décadas mais tarde, em 1956, Thomas Hodgkin publica um trabalho
significativo – Nationalism in Colonial Africa. Nele, o autor faz uma análise do
fenômeno do nacionalismo na África colonial. A oposição anticolonial não chega a ser
recorrentemente nomeada pelo termo “resistência”. Mas Hodgkin erige uma tipologia
da insubmissão, na qual inclui: agitações constitucionais, apelos diplomáticos, boicotes,
tumultos, desobediência civil e, por fim, “terrorismo” e revolta armada.162
Seria errôneo concluir que há, em Hodgkin, completa ausência de um conceito
devido à falta de uma palavra específica ao vocabulário de análise. O conceito está
relacionado à sua prática: a insubmissão ao jugo colonial. A palavra utilizada para
nomeá-la dependerá da voz que o enuncia. Ficando o conceito sujeito, portanto, ao seu
caráter polifônico. Ademais, como argumenta Donald Crummey, há uma estrutura
conceitual subjacente que reside, basicamente, na ênfase na substituição do regime
colonial/estrangeiro pelo autóctone/africano.163
Em que pese a importância desses trabalhos pioneiros o giro qualitativo acontece
em meados dos anos de 1960. Neste momento a palavra “resistência” irá se tornar um
termo de maior consenso para exprimir a estrutura conceitual em questão. Delineia-se,
também, um corpo autoral mais fixo e inter-relacionado. Dos inúmeros escritos dessa
geração destacamos os textos seminais de Basil Davidson e Terence Ranger.
Em artigo publicado em 1968, Davidson lança um clamor para que se atente
para o papel central da resistência na história da África. O autor argumenta que essa
resistência viria de “longa data”, constituindo-se em “tradições” que possuiriam formas
e características diferentes. Além dessa diversidade o fenômeno teria sido incessante.164
A argumentação de Davidson se desenvolve em dois sentidos. De um lado ele
insiste na importância metodológica do conceito para o correto entendimento dos
fenômenos mais recentes que então se desenrolavam em solo africano. Neste caso, as
lutas pelas independências nacionais. A história africana ofereceria “tipologias de
iniciativas e reações” que, se corretamente mapeadas, poderiam corrigir métodos e
161 Idem, Ibidem, p. 342. 162 Thomas Hodgkin, Nationalism in Colonial Africa, New York University Press, 1956, p. 11. 163
Donald Crummey, “Introduction: The great beast” In ___, (Edit.), Banditry, rebellion and Social
Protest in Africa, London, James Currey/Portsmouth, Heinemann, 1986, p. 11. 164 Basil Davidson, “African resistance and rebellion against the imposition of colonial rule” In Terence
Ranger, (Edit.), Emerging themes in African History, Nairobi, East African Publishing House, 1968, pp.
177.
61
discursos advindos da retórica da historiografia colonial.165
De outro lado, estudos
baseados no conceito de resistência provariam que esta atuou – e ainda atuaria - como
estimulante no desenvolvimento dos povos africanos.166
A questão é, portanto, desde o seu início, tanto historiográfica quanto política.
Por este motivo, não foi o acaso que providenciou que o prefácio da coletânea em que
Davidson lança seu apelo para o estudo da resistência tenha sido redigido pelo então
chefe de Estado da Tanzânia, Julius Nyerere. Sendo este, à época, um grande expoente
das teorizações ideológicas anticoloniais, gozando de notável prestígio internacional.
Um tratamento mais propriamente sistemático para a questão veio pouco depois,
ainda na década de 1960, com a primeira publicação do longo artigo de Terence Ranger
– Primary Resistance and Modern Mass Nationalism. Nesse estudo, Ranger resgata os
trabalhos de Norman e Hodgkin, ao mesmo tempo em que se põe a dialogar com
Davidson. O autor lança mão das categorias que se fariam usuais a partir de então. Para
Ranger, haveria duas tipologias básicas para a resistência e, a partir delas, ele traça seu
conceito. Seriam estas as “resistências primárias” e “secundárias”.
De um lado, a “resistência primária” diria respeito àquelas iniciativas e reações
desenvolvidas durante a expansão colonial. De outro lado, o “moderno nacionalismo de
massas” – ou “resistência secundária” – corresponderia às reações desenvolvidas
principalmente no pós-segunda guerra.167
Segundo Ranger, os ditos movimentos primários de resistência formaram o
ambiente em que, posteriormente, a política anticolonial se desenvolveu. A resistência
teria tido profundos efeitos, também, sobre a política e as atitudes dos colonizadores.
Neste sentido, teria havido uma “interação complexa” entre as manifestações primárias
e secundárias, que, muitas vezes, se sobrepuseram uma à outra. A “resistência primária”
semeou projetos que seriam desenvolvidos futuramente, servindo de inspiração para o
“moderno nacionalismo de massas”.168
Em uma palavra: trata-se de demonstrar o
“sentido da resistência”. De onde surge e para onde ela caminha.
A tese de Ranger alcançou tamanho prestígio que escapou ao círculo
especializado de estudos africanos. Figuras de renome, como Edward Said, avalizaram a
165 Basil Davidson, Angola no centro do furacão, Lisboa, Delfon, 1974, p. 62. 166 Basil Davidson, “African resistance and rebellion against the imposition of colonial rule”, op. cit. p.
178. 167 Terence Ranger, “Connections between ‘Primary Resistance’ Movements and Modern Mass
Nationalism in East and Central Africa, Parts I & II” In Gregory Maddox, (Edit.), Conquest and
resistance to colonialism in Africa, New York/London, 1993, pp. 1- 30. 168 Idem, 19.
62
interpretação de Ranger. Para o intelectual palestino, Ranger havia logrado demonstrar a
coerência e continuidade da “luta moral e intelectual [...] da resistência nacionalista ao
imperialismo”. Tal resistência, portanto, “prosseguiu por décadas, tornando-se parte
orgânica da experiência imperial”.169
Esta ideia continuísta norteou, desde então, os estudos acerca da resistência
africana. Foi esta geração, formada por Davidson e Ranger, a fundadora deste
paradigma conceitual linear. Da mesma forma, foi ela que formou o núcleo fundamental
da HGA. Entretanto, o fato de advirem, em sua maioria, de uma mesma geração, não
implica que os autores tenham preenchido o tecido conceitual da resistência com um
mesmo conteúdo.
O conceito de resistência é opositivo. Ele só funciona através da oposição entre
um outro e um mesmo. É ponto central que o outro da equação mostra-se, agora, no
volume VII da HGA, expressamente determinado e comum em todas as análises: o
ocidente europeu.
À parte este consenso, haverá duas formas distintas de tratar o conceito. À falta
de melhores termos designaremos uma abordagem como “tradicionalista” e, a outra,
como “marxista”. Longe de serem gavetas teóricas intransponíveis há sempre um
intermédio entre ambas as abordagens, não sendo uma indiferente à outra e, tampouco,
mutuamente excludentes. 170
2.4. A abordagem tradicionalista
De maneira sucinta é possível dizer que a dita abordagem tradicionalista é
aquela que faz da resistência um fenômeno intrinsicamente ligado à tradição. O conceito
se alimenta do passado pré-colonial tirando daí sua ossatura. Talvez por este motivo a
estrutura epistemológica e explicativa seja bastante simples, sendo neste tipo de
abordagem que a oposição entre colonizado e colonizador ganhe seus contornos mais
diretos.
De acordo com Mohamadou Kane, os historiadores próximos a essa corrente
parecem assumir a postura – ancorada em vertentes do nacionalismo pan-africano – que
169 Edward Said, Cultura e Imperialismo, op. cit., p. 312. 170
Originalmente é Valentin Mudimbe quem divide a historiografia nesses dois termos. Tratam-se aqui de
termos gerais utilizados para fins de coesão explicativa. Alguns autores não estão, necessariamente,
inseridos na escola historiográfica marxista, apesar de utilizarem quadros conceituais próximos. Por este
motivo utilizamos a palavra entre aspas. V.Y. Mudimbe, A invenção de África, Mangualde,
Pedago/Luanda, Mulemba, 2013, p. 127.
63
a “África tradicional era um mundo coerente, dinâmico, em que a intrusão da Europa
como que bloqueou o funcionamento e de seguida provocou o declínio”.171
Quase que de maneira unívoca as críticas a esta forma de tratar a resistência
apontam sempre para a homogeneização do espaço africano, que tende a ser visto como
um todo homogeneizado, só dissolvido pela intromissão estrangeira. À esta corrente
pode-se designar, para usar os termos de Alencastro, como uma “interpretação militante
de autores politicamente corretos, os quais imaginam que os africanos sempre se
mantiveram unidos num só bloco contra os invasores brancos”.172
No que tange à HGA
esta tendência é seguida à larga pelos autores e tem no próprio editor do volume VII,
Albert Adu Boahen, o seu principal expoente.
Boahen apresenta a resistência através da questão chave: “Qual foi a atitude dos
africanos perante a irrupção do colonialismo, que traz consigo tão fundamental mutação
na natureza das relações existentes entre eles e os europeus nos três últimos séculos?”.
A resposta a esta pergunta, afirma Boahen, seria “clara e inequívoca”, pois “na sua
esmagadora maioria, autoridades e dirigentes africanos foram profundamente hostis a
essa mudança e declararam-se decididos a manter o status quo e, sobretudo, a assegurar
sua soberania e independência”. A esta independência e soberania nenhum destes
dirigentes “estava disposto a transigir, por menos que fosse”.173
São traçadas, assim, as linhas mestras que, segundo Boahen, caracterizariam a
resistência: a manutenção do modo de vida tradicional frente à emergência do
colonialismo e a oposição às mudanças sociais e culturais que ele implicava,
ressaltando-se o papel das elites tradicionais como defensoras do status quo a ser
preservado. Com efeito, a ênfase dessa abordagem recai sobre as autoridades
tradicionais. São elas o sujeito da história, a elas cabe o protagonismo da iniciativa
anticolonial.
Como indício desta afirmação note-se que Boahen está se referindo em sua
argumentação precisamente às autoridades e dirigentes africanos e ao seu ímpeto em
preservar a soberania, em manter as vigas da tradição que imprimem sustentação ao
mundo para que ele não se despedace. Para avalizar este modelo conceitual-
171
Mohamadou Kane apud Axelle Kabou, E se a África recusasse o desenvolvimento?, Mangualde,
Pedago/Luanda, Mulemba, 2013, p. 22. 172 Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p. 97. 173 Albert Adu Boahen, “A África diante do desafio colonial” In Albert Adu Boahen, (Edit.), História
Geral da África. Vol. VII. África sob o domínio colonial, São Paulo, Cortez, 2011, pp. 3, 4. Grifos nossos.
64
argumentativo, Boahen faz emergir em seu texto as vozes de diversos monarcas
africanos. Homens de linhagem e distinção.
Dentre estas vozes ouve-se a de Prempeh I, o Asantehene dos Ashanti; a de Lat-
Dior, o Damel de Cayor e, por fim, a de Menelik II, o Negus etíope. Nas palavras deste
último: “Os inimigos vêm agora se apoderar de nosso país e mudar nossa religião [...].
Com a ajuda de Deus, não lhes entregarei meu país [...]. Hoje, que os fortes me
emprestem sua força e os fracos me ajudem com suas orações”. 174
Declarações como
estas teriam sido, segundo Boahen, as “respostas textuais dos homens que tiveram de
fazer frente ao colonialismo: elas mostram, incontestavelmente, sua determinação em
opor-se aos europeus e em defender sua soberania, sua religião e seu modo de vida
tradicional”. 175
A identificação da resistência africana com os líderes tradicionais é clara tanto
na passagem do próprio Menelik II como no julgamento histórico de Boahen. A palavra
de ordem do imperador etíope é extremamente personalista, se dirigindo no singular
contra os inimigos vindos da Europa: “não entregarei meu país”. Algo natural em se
tratando de um monarca. No entanto, da mesma forma, Boahen também personaliza a
resistência, afinal são “as respostas textuais dos homens” que fizeram frente ao
colonialismo. É aceito com isso, em tom pouco crítico e problematizador, o discurso
legitimador da elite pré-colonial.
Evidentemente, nada há de mais natural no ato de um soberano legitimar o seu
poder através da tradição, da linhagem, frente a invasores estrangeiros. A historiografia
acompanhar esta faina é que se mostra problemático. Disto fica subentendido que o
status quo, para usarmos o termo caro a Boahen, era de fato um todo coerente, integral e
mesmo harmonioso. Solapado unicamente pela invasão estrangeira.
O leitor tem diante dos olhos o último suspiro de reinos e impérios que, como
castelos de cartas desmoronam “sob as mãos de bárbaros predadores, cruéis, vândalos,
primitivos”. 176
O binômio entre o normal e o patológico é, com isto, invertido, mas
reforçado. O patos, o elemento patológico, é agora, no entanto, representado pela
própria Europa colonizadora. O constructo historiográfico advindo dessa operação é
tanto teoricamente pobre quanto simplista.
174 Apud Idem, p. 5. Grifos nossos. 175 Idem, Ibidem. 176 Elias Canetti, op. cit., p. 224.
65
Afinal, o status quo pré-colonial incluía, dentre outros elementos, o tráfico
transatlântico – e também índico e transaariano - de indivíduos escravizados. Nesse
tráfico muitas dessas elites agora heroicizadas tomaram parte, lucrando com o comércio
de gente. Com isso não estamos denunciando esses indivíduos que tomaram parte no
tráfico – algo que de resto seria um anacronismo - mas apenas sinalizando que ele é um
fator indicativo de contradição, demonstrando que a África pré-colonial não era um todo
integral e que, ao invés de heróis esses indivíduos também foram, para muitos de seus
coetâneos, vilões.
Cabe observar que além de personalista o tom é, também, claramente masculino.
A resistência, encarada como conflito direto de duas forças, encarna-se na imagem do
líder, o herói. As figuras pessoais dos líderes são tratadas como espécie de aglutinadoras
das iniciativas anticoloniais. Parafraseando Chinua Achebe não seria incorreto dizer que
as histórias contidas na HGA, que enveredam pela abordagem tradicionalista, são quase
sempre “histórias masculinas de violência e sangue”. 177
Entretanto, é verdade que há passagens que destoam um pouco dessa tônica
pessoal e masculina da resistência. O próprio Boahen, conjuntamente com M’Baye
Gueye, ao tratar da resistência no reino do Daomé, salientam, ainda que de forma
diminuta, o papel feminino nas iniciativas anticoloniais.
Os autores relatam que o então rei do Daomé, Behanzin, decidiu recorrer à
estratégia de confronto para “defender a soberania e independência do seu reino”, então
mobilizou suas tropas, que eram formadas pelas “Amazonas, guerreiras muito
temidas”.178
De fato, a guarnição das Amazonas era a ponta de lança da armada do
Daomé.179
Apesar de tudo, ainda persiste a ênfase nos tons pessoais e no caráter másculo da
resistência. As Amazonas do Daomé só são referenciadas, mesmo en passant, por
assumirem uma prática que, em toda abordagem tradicionalista presente na HGA, é
predominantemente masculina. Talvez não haja exagero em afirmar que elas próprias
são representadas em termos masculinos. A ênfase também recai na figura pessoal de
Behazin e em sua ação para defender o seu reino da invasão europeia.
177
Chinua Achebe, O mundo se despedaça, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 72. 178 M’Baye Gueye; Albert Adu Boahen, “Iniciativas e resistência africanas na África ocidental, 1880 –
1914” In Albert Adu Boahen (Edit.), op. cit., p. 143. 179 Para mais informações sobre as guerreiras do Daomé ver Stanley B. Alpern. Amazons of Black Sparta.
The woman warrios of Dahomey, New York, New York University Press, 1998.
66
Uma postura de tipo tradicionalista, da qual o argumento de Boahen é o exemplo
mais bem acabado, acaba abrindo margem para críticas mordazes ao conceito da
resistência. Sherry Ortner, por exemplo, critica o conceito de resistência por ser,
segundo ela, superficial. Em sua leitura, todas as contradições da comunidade
colonizada são abafadas para que a resistência possa se firmar como elemento central da
malha social.180
O mundo coerente e homogêneo do status quo, impede, seguramente, um olhar
mais aprofundado acerca das contradições internas da sociedade pré-colonial e, com
isso, da própria resistência que ela ofereceu aos invasores. Algo contraditório visto que,
em volume anterior da HGA, é o próprio Boahen a mostrar, com brilhantismo, as
contradições internas das sociedades africanas. Mas a coisa muda de figura quando o
inimigo além de ser estrangeiro passa a ser o mesmo. Algo só possível no sistema
colonial.
Assim, por detrás de cada estremecimento político que faz o mundo africano se
despedaçar estaria a “malvada mão do ‘imperialismo’”, para usar aqui os termos
irônicos de Bayart.181
A perspectiva internalista tão cara à HGA é, contraditoriamente,
esquecida. Afinal, os mecanismos internos das sociedades africanas – as contradições
imanentes do dito status quo que precipitaram, co-participaram, ou rechaçaram a
conquista colonial – são obliteradas em nome de uma suposta reação em cadeia das
elites políticas pré-coloniais.
O apego às elites tradicionais faz com que o historiador se converta em uma
espécie de Julien Sorel, acalentando em seu coração a imagem não de Napoleão, como
no caso do protagonista d’O Vermelho e o Negro, mas sim dos soberanos da África pré-
colonial. Assim como no romance de Stendhal, enquanto estivesse apoiado na sombra
do grande homem, nosso historiador guardaria a esperança de redenção, por maiores
que fossem os reveses a que viesse sofrer. Ou, para citar outro enredo igualmente
ilustrativo: “Enquanto a História o acudisse ninguém poderia assassiná-lo”.182
No texto de Boahen é possível ver os reinos e Estados africanos “encaminhando-
se a uma forma de modernidade que manteria a soberania”, estando, também,
seletivamente engajados “com o comércio, a religião e a educação europeias”.
180
Sherry B. Ortner, “Resistance: Some Theoretical Problems in Anthropological History and Historical
Anthropology” In Terrence J. McDonald (Edit.), The historic turn in the human sciences, Michigan,
Michigan University Press, 1996. 181 Jean-François Bayart, op. cit., p. 27. 182 Elias Canetti, op. cit., p. 224.
67
Contraditoriamente, a concepção de Boahen concede muito poder à modernidade
ocidental que ele próprio busca criticar e mesmo rechaçar – de forma seletiva – através
da ênfase no status quo da tradição. Mais precisamente, a ênfase de Boahen “na força
do Estado como sinal de progresso político e unidade para o avanço social” o leva a
falhar “em tratar de contradições originadas de estruturas sociais específicas ao contexto
africano”. 183
A questão de fundo essencial reside na ideia de violação de um continente até
então supostamente encerrado em si mesmo e obrigado a entrar, de súbito, em uma
história exógena. Nesta violação muitos, dentre os quais Johnston, Hobson e Lênin,
viram os africanos como “vítimas de manipulações exteriores”.184
A historiografia de
resistência, considerando a mesma violação do continente inverte o vetor da análise.
Longe de serem vítimas passivas, os africanos foram resistentes a uma ameaça externa
comum.
Em resumo: têm-se, de fato, um constructo narrativo bastante seletivo, pois a
abordagem tradicionalista da resistência, como já dito acima, falha em tratar das
contradições internas próprias às estruturas sociais específicas do próprio contexto
africano. Dentre as quais a mais saliente é a escravidão.
Atente-se para uma contradição que a própria HGA não deixa esquecer.
Conforme explicitado no volume VI da obra, havia uma relação de dependência
econômica da África para com a Europa. Agora, no volume VII trata-se, inversamente,
de pôr em relevo a independência política. Disto depreende-se que se havia, por um
lado, o ímpeto de manter-se politicamente independente, havia, em contrapartida, a
dependência econômica dos Estados africanos – sobretudo no que concerne às nações
da costa ocidental do continente -, presos que estavam ao papel que lhes era dado na
economia-mundo de então: o de fornecedores de gente, de pessoas escravizadas.
Contradição patente, afinal, não se pode desprezar o fato de que os principais
opositores ao avanço imperial europeu na África Ocidental tenham sido, nas palavras de
Alberto da Costa e Silva, “irredutíveis em sua determinação de produzir e vender
escravos”.185
Disso deriva a consequência de que, cerrados na contradição entre a
dependência econômica de um lado e a busca da manutenção da autonomia política de
outro, as figuras pessoais de muitos dos monarcas africanos enumerados por Boahen
183 Frederick Cooper, “Conflito e Conexão”, op. cit., p. 27. 184 Jean-François Bayart, op. cit., p. 24. 185 Alberto da Costa e Silva, Um rio chamado Atlântico, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011, p. 130.
68
acabam tendo escarificadas em suas feições as marcas da tragédia e da amargura, mais
uma vez nas palavras de Alberto da Costa e Silva.186
Tragédia esta que vem quase
sempre acompanhada de uma carga de imponência heroica. Heroísmo fracassado,
decerto.
Como exemplo, cabe lembrar a figura de Samori Touré – um dos personagens
preferidos dos “tradicionalistas”. A carga de imponência heroica da sua figura é
perceptível na imagem reproduzida abaixo. Enquanto o Almamy aparece em primeiro
plano, sendo acompanhado pelos olhares respeitosos dos transeuntes, o representante da
autoridade colonial francesa aparece em segundo plano, de maneira quase
imperceptível. No entanto, mesmo tímida a autoridade colonial se mostra presente, o
que faz lembrar que o Almamy já não cavalga em seu reino, mas no cativeiro.
Fato notável, a gravura foi publicada em um dos mais notórios jornais franceses
do período, L’Illustration. A imagem do soberano da África Ocidental era imponente
até mesmo para o público que lhe devia fazer frente, ou, ao menos, vê-lo com certo
exotismo. Ao contrário, a imagem nada tem de exótica, transparecendo nela muito mais
o tom de respeito, próprio a um soberano, mesmo que destronado. Disso depreende-se
que independente do lado da trincheira em que se coloque – do lado colonial ou
anticolonial – permanece uma visão dicotômica da realidade vivida.
Samori Touré, o Almamy do império Malinquê.187
186 Idem, Ibidem. 187 G. Amato, “Samori em Beyla, depois da captura”, Reproduzido em Joseph Ki-Zerbo, História da
África negra. Vol. II, op. cit., p. II.
69
Em suma, a figura de Samori Touré, bem como a dos outros líderes do passado
insubmisso, fornecia um valioso substrato simbólico a ser, de alguma forma, inserido na
narrativa historiográfica que lhes preenchia de sentido. Por sua vez, este sentido
acompanhava o discurso nacionalista africano das décadas de 1960 e 1980. Assim, é
possível ver o Almamy “totalmente solitário, enxotado da época para a qual fora criado e
encalhado em outra, na qual sempre permaneceria um estranho”.188
Afinal, eles, os
heróis de destino trágico da oposição africana, não pertencem ao tempo do nacionalismo
pan-africano. A abordagem tradicionalista da resistência vem corroborar esse tom
anacrônico e homogeneizador.
Desse modo, retornando à abordagem tradicionalista propriamente dita, tem-se
que, em linhas gerais, a tradição africana é tratada como oposta à modernização
europeia pós-revolução industrial e, portanto, resistente a ela. O modelo de Boahen
encontra-se alicerçado na contraposição entre a modernidade invasora e a tradição
resistente. A resistência funciona como o elemento principal de um discurso
funcionalista à escala sistêmica continental.
Subsiste nessa narrativa a visão dicotômica característica da própria ideologia
colonial, gerada pela oposição do “colonizador civilizado e do colonizado primitivo”,
ou, em outros termos já utilizados “o normal e o patológico”. Assim, adverte Cooper:
“O risco de explorar o binário colonial está na sua redução, seja através de novas
variações dicotômicas (o moderno versus o tradicional), seja pela inversão (o
imperialista destruidor versus a tolerante comunidade de vítimas)”. 189
A comunidade de
vítimas, no entanto, nem sempre se faz tolerante, no que tange à abordagem
tradicionalista. Havendo a presença das elites tradicionais que asseguram a oposição ao
fato colonial, servindo de fundamento para a conceituação da resistência.
Não será sempre, no entanto, que o conceito de resistência ficará cativo das
elites, cabendo a elas o papel do protagonismo consequente. A tradição que alimenta a
resistência ganha, outras vezes, contornos coletivos que dilui o papel das elites
tradicionais, não deixando a narrativa tão personalista.
Em sua tentativa de definir o que foi a oposição ao colonialismo Elisha Atieno,
por exemplo, vai empregar um novo termo: Siasa. Palavra advinda da semântica
tradicional – por assim dizer - kiswahili, siasa significa, segundo Atieno,
188 Elias Canetti, op. cit., p. 162. 189 Frederick Cooper, op. cit, pp. 22, 23.
70
simultaneamente oposição, reivindicação, agitação e ação militante. O vocábulo
compreende, dessa forma, as ações desenvolvidas tanto por grupos organizados como
iniciativas espontâneas e individuais.190
Atieno propõe siasa como um conceito que
vem conjugar a resistência enquanto fenômeno global e suas expressões mais
organizadas e bem delineadas do ponto de vista ideológico com aquelas experiências de
caráter mais local e pouco organizado.
Nesse contexto, insere-se desde a manifestação política autorizada pela própria
metrópole até os “comícios provocadores sobre as colinas e os treinamentos bélicos nas
florestas”, de maneira que, a siasa representaria uma consciência coletiva dos
malefícios do colonialismo em dado lugar e momento. O termo abrangeria
simultaneamente a consciência de clãs, de nacionalidades e de classes sociais.
Conclui Atieno que as atividades políticas anticoloniais estavam embasadas,
portanto, em uma “consciência de grupo concreta”, sendo, desse modo “atividades de
massa”. Por mais que cada movimento possuísse um chefe este não é visto por Atieno
como o sujeito que protagoniza a insubordinação. Ao contrário, o sujeito de sua análise
é coletivo, afinal “eram as massas que o formavam [o movimento], sendo os dirigentes
apenas a vanguarda. E, de acordo com o nível e o terreno de intervenção escolhidos,
algumas dessas atividades foram mais tarde classificadas como manifestações de
nacionalismo”.191
A noção de siasa tem o mérito de usar uma terminologia original para o estudo
da reação anticolonial, empregando uma semântica própria para a questão. Semântica
esta advinda da própria prática da resistência, sendo, por isso, sua utilização restrita às
áreas de povoação kiswahili, não tendo, inicialmente, maior abrangência teórica neste
termo. O que se ganha em coesão se perde em generalização, em ambição conceitual
globalizante.
Isso nos remete ao fato de que para o desenvolvimento da ideia de resistência
enquanto aporte conceitual foi preciso torná-la um fenômeno africano global. Passava-
se a encarar a resistência enquanto um fenômeno que não precisaria de confirmação, lhe
dando um tom próximo ao axiomático.
Entretanto, por esse viés a experiência concreta pode ficar refém de um modelo
teórico fixo, o que acabaria ferindo o próprio estatuto epistêmico do conhecimento
190 Elisha Stephen Atieno, “Política e nacionalismo na África oriental, 1919 – 1935” In Albert Adu
Boahen, (Edit.), op. cit., p. 757. 191 Idem, Ibidem, p. 759.
71
histórico, qual seja, segundo Gadamer; que este conhecimento não é constituído pelos
“fatos extraídos da experiência e posteriormente incluídos em uma referência
axiomática”, mas antes seu próprio alicerce é a historicidade interna da própria
experiência.192
Os conceitos históricos, por isso, devem declinar da experiência histórica
e não o contrário.
Dessa forma, transformar a resistência - algo que de fato perfez uma
historicidade interna de determinada experiência - em um axioma seria desastroso, pois
retiraria sua originalidade e validade teórica.
Na HGA, Terence Ranger generaliza o fenômeno da resistência na tentativa de
torná-la um conceito global. Para Ranger “praticamente todos os tipos de sociedade
africana resistiram, e a resistência manifestou-se em quase todas as regiões de
penetração europeia”. Seu tom é categórico o suficiente para sugerir que se deve
“aceitar isso como um fato que não mais precisa de demonstração”, sendo necessário
tão somente “passar da classificação para a interpretação; em vez de nos restringirmos à
tarefa de provar que houve resistência, cabe-nos determinar e explicar os diversos graus
de intensidade em que ela ocorreu”. 193
Caindo em um tom quase axiomático, Ranger pretende generalizar a ideia de
resistência, tornando seu conceito global. Algo natural, tendo em vista a centralidade
teórica que o conceito adquire neste momento.
Dessa forma, no argumento de Ranger do volume VII da HGA a resistência,
enquanto fenômeno generalizante, e as rebeliões localizadas, ocorridas entre finais do
século XIX e as três primeiras décadas do XX, são tratadas enquanto categorias
analíticas distintas, ao menos no plano teórico. Todavia, nos capítulos que vieram a
público, ambas são muitas vezes tratadas como sinônimas, sendo que as rebeliões
localizadas são apresentadas como subproduto do fenômeno global e irrestrito da
resistência.
Tal ocorre, por exemplo, na categorização proposta por Allen Isaacman e Jan
Vansina. Segundo eles, a resistência poderia variar entre: 1) oposição ou confronto na
tentativa de manter a soberania das sociedades autóctones; 2) resistência localizada na
192 Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método. Vol. I, Petrópolis, Vozes, 2007, p. 300. 193 Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistência africanas em face da partilha e da conquista” In Albert
Adu Boahen. (Edit.), op. cit, p. 54. Grifos nossos.
72
tentativa de atenuar abusos específicos do regime colonial; 3) rebeliões destinadas à
destruição do sistema estrangeiro que havia gerado tais abusos.194
A tipologia proposta por Isaacman e Vansina, indo mais além que a
generalização empreendida por Ranger, faz crer, corretamente, que as trajetórias de
resistência são diversas e multilineares, tornando problemático empreendimentos
teóricos que visem homogeneizar fenômenos diferentes, fazendo-os orbitar ao redor de
linhas mestras globais.
Na verdade isso perpassa uma questão de fundo que deve ser considerada: ao
teorizar sobre a resistência estamos tratando de uma práxis que antecede à teoria. O ato
de resistir precede qualquer teorização abstrata sobre a própria resistência.
Parafraseando Slavoj Zizek: se há uma teoria da resistência ela é “em seu aspecto mais
radical a teoria de uma prática fracassada”.195
Por este motivo, esquemas são sempre
problemáticos por tangenciarem uma coisificação dessa práxis.
Cabe, nesse ponto, repetir Thompson, e afirmar que “a teoria” não pertence
apenas à esfera dela mesma. Todo conceito “surge de engajamentos empíricos e por
mais abstratos que sejam os procedimentos de sua auto-interrogação, esta deve ser
remetida a um compromisso com as propriedades determinadas das evidências”. 196
Dito isto, talvez o leitor se pergunte: se o que deverá determinar a definição da
resistência são as evidências, qual necessidade de um conceito da resistência? Se ela
acontece primeiro no campo da práxis, qual a necessidade de teorizar sobre ela? E, se
fossemos ainda mais longe: qual a necessidade desse próprio trabalho? Poderíamos,
simplesmente, reconduzi-la até seu lugar de vocábulo, findando o problema e pondo
termo à análise. Mas temos motivos para acreditar que essa solução seria insatisfatória.
Ao problematizar teoricamente acerca do conceito estamos, dentre outras coisas,
demonstrando que seu uso não é gratuito e sua carga ideológica é profunda. É uma
palavra em disputa no terreno não só epistemológico como também no político. Tais
disputas são não apenas reflexos de tensões sociais, mas participam efetivamente dessas
tensões. Brevemente: a forma como o pesquisador escolhe para nomear seu objeto ou o
sujeito de sua análise tanto pode revelar quanto obliterar muita coisa.197
194 Allen Isaacman; Jan Vansina, “Iniciativas e resistências africanas na África central, 1880 – 1914” In
Albert Adu Boahen, (Edit.), op. cit, p. 192. 195
Slavoj Žižek, Em defesa das causas perdidas, São Paulo, Boitempo, 2009, p. 21. 196 E. P. Thompson, A miséria da teoria, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 54. 197 Isto é verdade para qualquer pesquisa, para qualquer nomeação. Ao que este trabalho não é, e não
poderia ser, uma exceção. A forma como escolhemos abordar a HGA, por exemplo, através de um mote
polifônico, tanto revela algumas coisas quanto, também oblitera e suprime outras.
73
Acreditamos, assim como Ebrahim Moosa, que a teoria expressa através de um
conceito estruturante é necessária por várias razões. Uma das razões mais óbvias, diz
Moosa, para a existência de um conceito teoricamente formatado, consiste na
necessidade de imprimir coerência intelectual e inteligibilidade social àquilo que se
desenrola no campo da práxis.198
Um conceito da resistência tem a capacidade de
acentuar os princípios lógicos subjacentes às práticas sociais desenvolvidas pelos
africanos com o intento de se opor ao colonialismo.
Igualmente, a generalidade e pluralidade de ideias e práticas representadas por
um mesmo conceito favorecem sua transmissão e diálogo de um contexto para o
outro.199
O que torna possível a comparação entre experiências de resistência que não se
encontraram na história vivida, mas podem, e devem, se encontrar na história pensada e
escrita.
Assim, podemos pôr um guerreiro daomeano a dialogar, não necessariamente de
forma harmoniosa, com um berbere ou um etíope. Eles nunca teriam dialogado em vida,
o espaço e a língua os impediriam. Da mesma forma, podemos pôr líderes da resistência
nacionalista em diálogo, por mais que estejam localizados em extremos opostos do
continente e por mais que haja uma diferença geracional e cultural entre eles.200
Fatores
estes que, em vida, impediram o encontro bem como um possível aperto de mão cordial
e fraterno ou uma troca de insultos nada amigável. Isto é, para assumir a resistência
enquanto conceito não é preciso pressupor “grau de família” algum.
Essa instância do dialogismo espaço-temporal nos leva a considerar que a prática
a que o conceito se refere não é estática. Ao contrário, ela envolve determinada ação e
por isso só pode ser corretamente apreendida enquanto processo. A resistência é antes
de tudo um processo, multilinear e heterogêneo em suas formas e em seus conteúdos.
Qualquer tentativa de homogeneização conceitual que se faça não consegue dar conta
dessa dinâmica processual. Ela, a resistência, imprime coerência ao contexto colonial,
mas não deve, em absoluto, ser fator de homogeneização.
Encarar a história, e os conceitos a ela subjacentes, como processo acarreta não
só a noção de causa, mas, também, “de contradição, de mediação e da organização (por
198
Ebrahim Moosa, “Transitions in the ‘Progress’ of Civilization: Theorizing History, Practice and
Tradition” In Omid Safi (Edit.), Voices of Islam. Voices of change, Londres, Praeger, 2007, p. 128. 199 Idem. Ibidem. 200 Um exercício deste tipo foi realizado no capítulo III. Colocamos a dialogar o líder egípcio Gamal
Abdel Nasser, com o sul-africano Nelson Mandela.
74
vezes estruturação sistemática) da vida social econômica e intelectual”.201
Ao invés de
ser fator de homogeneização a resistência, porque processo, deve pôr em evidência
justamente a contradição intrínseca aos contextos específicos em que ela tem vez.
A abordagem tradicionalista por estar quase sempre preocupada em defender o
mundo que se despedaçou, não acolhe bem a dinâmica processual do fenômeno da
resistência, pois são os próprios termos em que a questão é colocada que a impede. O
termo “tradição” é, nesse contexto, tanto vago quanto impreciso. O mesmo pode-se
dizer do seu duplo opositivo, a “modernidade”. Colocados em oposição tornam-se
pontos fixos que engessam a dinâmica processual do objeto posto em análise. Além
disso, em termos etimológicos não há o que justifique a oposição estática e binária entre
tradição e modernidade.
O termo “tradição”, advindo do traditio latino, significa descontinuidade através
de uma continuidade dinâmica. É somente com a doxa colonial do século XIX e
princípios do XX que se inventa o conceito estático de tradição. Dentre outras coisas,
para descrever os ditos “povos primitivos” e diferenciá-los do mundo novo criado pela
“modernidade” ocidental.202
De forma mais direta: é possível afirmar, com Bayart, que: a noção de tradição
foi inventada pelos colonizadores e, também, grupos sociais autóctones que esperavam
ter com ela algum proveito. O termo “tradição” vinha lastrear uma suposta unidade
intrínseca entre as culturas africanas, tidas como “culturas étnicas” para, assim, melhor
subjuga-las, subordina-las, folcloriza-las e coisifica-las. Desse modo, a palavra
“tradição” denota tão só o esforço do invasor estrangeiro em “confiscar a mudança
social e a modernidade” antes que estas mesmas modernidade e mudança social
convertam-se, eventualmente, em utopia crítica e mobilizadora da resistência.203
A abordagem tradicionalista acaba, portanto, aceitando e reforçando a lógica
discursiva colonial. A diferença reside no fato de, se esta última homogeneizava o
continente para subjugá-lo, a primeira o faz para torná-lo um todo monoliticamente
insubmisso à empreitada colonial. O que escapa à abordagem tradicionalista – bem
como às demais, como esperamos demonstrar – é o fato de a resistência possuir uma
plasticidade operacional, cultural e social que contradiz radicalmente as categorias
dicotômicas de “tradição” e “modernidade”, dada a sua natureza processual.
201 Idem, p. 53. 202 V. Y. Mudimbe, A invenção de África, op. cit., p. 234. 203 Jean-François Bayart, op. cit., p. 33.
75
2.5. A abordagem “marxista”
Outras tentativas de romper a lógica discursiva do colonialismo se farão
presentes na HGA. Assim, o tema até então apresentado como a partilha europeia da
África sofre uma mudança de enfoque, desembocando no que Godfrey N. Uzoigwe
chamará de Teoria da dimensão africana. Basicamente a ideia de Uzoigwe é que, além
dos fatores externos, foi especialmente a resistência que precipitou a ação colonial
efetiva.
Sua tese rejeita o juízo “de que a partilha e a conquista eram inevitáveis para a
África, como dado inscrito na sua história”. Inversamente, considera a dominação
colonial como “consequência lógica de um processo de devoração [sic] da África pela
Europa, iniciado bem antes do século XIX”, admitindo-se que “foram motivos de ordem
essencialmente econômica que animaram os europeus e que a resistência africana à
invasão crescente da Europa precipitou a conquista militar efetiva”.204
A ambição é
explicar a invasão estrangeira a partir de causas internas, tentando fugir de explicações
eurocentradas.
Se enquanto fator interno a dita Teoria da dimensão africana considera
especialmente a resistência, como fator externo privilegia o avanço do sistema
capitalista dentro do continente. Uma análise que considere o capitalismo enquanto fator
desencadeante da resistência acaba não prescindindo de um diálogo com a tradição
historiográfica marxista.
Dessa forma, faltando melhor termo classificatório nos debruçaremos agora na
dita abordagem “marxista”. Deve-se ter em mente as aspas, visto que nem todos os
autores se colocam expressamente nessa tradição historiográfica. O que os une é, de
todo modo, o uso de noções e categorias advindas da historiografia marxista ou que lhe
são próximas. A ênfase na definição da resistência agora recai nas lutas de classe e no já
aludido capitalismo.
O capitalismo é visto por essa tendência, ao correr da HGA, como um fator
essencial para o entendimento do desencadear das iniciativas anticoloniais africanas. Tal
acontece, pois são nas relações de produção e reprodução do sistema capitalista que
tanto o imperialismo como o colonialismo convergem enquanto ideologias e formas de
organização socioeconômicas que suscitam reações contrárias dos africanos.
204 Godfrey N. Uzoigwe. “Partilha europeia e conquista da África: apanhado geral”. In Albert Adu
Boahen. (Edit.), op cit, p. 31. Grifos nossos.
76
Trata-se de uma característica comum que a HGA compartilha com toda a
geração de estudos africanos do período – entre 1960 e 1980 -. Houve mesmo quem
afirmasse que o que esteve de fato em causa foi a tentativa direta ou indireta de
implantação de um modo de produção tipicamente capitalista nas colônias africanas.205
Essa postura talvez diga respeito mais ao contexto de produção dessa historiografia do
que ao pano de fundo colonial propriamente dito.
O contexto de Guerra Fria ajudava a criar uma visão dicotômica entre o
capitalismo ocidental e outras realidades sociais alternativas. Além disso, estes autores
estavam vinculados às vertentes do nacionalismo revolucionário pan-africano, ou de
forma mais abrangente, eram próximos a certas correntes do pensamento anticolonial.
Correntes estas que, por sua vez, partilhavam uma série de preceitos advindos de
ideologias socialistas, bem como lançavam mão de categorias de análise herdadas do
marxismo.206
Para exemplificar foquemos por ora em uma rápida leitura de três obras-irmãs
do pensamento anticolonial. Respectivamente, o Discurso sobre o colonialismo, de
Aimé Césaire; o Retrato do colonizado, precedido de retrato do colonizador, de Albert
Memmi e, finalmente, Os condenados da terra, de Frantz Fanon.
Em seu prefácio ao Discurso de Césaire, o intelectual angolano Mário de
Andrade resume esta obra do poeta antilhano como a descrição crítica de um
“empreendimento etnocidário” levado a cabo pela “Europa capitalista”. Este
empreendimento, naturalmente, é a colonização.207
De fato, o julgamento de Andrade
faz justiça ao conteúdo da obra. Césaire afirma, categoricamente, que o “regime
burguês” da Europa ocidental havia criado dois problemas que ele mesmo seria incapaz
de resolver: um problema seria a questão do proletariado, o outro a questão colonial.208
A resposta à segunda questão se daria, nas palavras de Césaire, através da
“admirável resistência dos povos coloniais”. Essa resistência, por seu turno, se
articularia com o processo revolucionário global que substituiria “a estreita tirania duma
burguesia desumanizada pela preponderância da única classe que tem ainda missão
205 Como fez José Capela para o caso das colônias africanas portuguesas. Para mais ver José Capela, O
imposto de palhota e a introdução do modo de produção capitalista nas colónias, Porto, Afrontamento,
1977, p. 5. 206
Retornaremos ao pan-africanismo de forma mais detalhada no próximo capítulo. Por ora, nos
deteremos às ideologias anticoloniais mais abrangentes. 207 Mário de Andrade, “Prefácio” In Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, Lisboa, Sá da Costa,
1977. 208 Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo, Lisboa, Sá da Costa, 1977, p. 13.
77
universal, porque na sua carne sofre de todos os males da história, de todos os males
universais: o proletariado”.209
O tunisiano Albert Memmi enveredou por um caminho parecido. No entanto,
diferentemente de Césaire, Memmi preza pela articulação entre o fenómeno colonial e o
capitalismo, não fazendo, necessariamente uma identificação direta. Em suas palavras:
“A descoberta marxista da importância da economia em toda a relação opressiva não
está em causa. Essa relação apresenta outros traços, que creio ter descoberto na relação
colonial”. A burguesia desenharia uma imagem do proletário, o colonizador, por seu
turno, “impõe uma imagem do colonizado”. .210
Todavia, à parte essa relação entre a burguesia e o colonizador, a relação de
opressão, no capitalismo, se daria – para Memmi - através da oposição de classe. Já no
fato colonial ter-se-ia uma relação de contraposição povo a povo. Como meio de livrar-
se das amarras do colonialismo, o colonizado adotaria a libertação nacional e étnica, da
qual o colonizador só pode ser excluído, 211
dado o seu caráter de outro opositivo.
Sobre a obra de Frantz Fanon e sua articulação com categorias marxistas é
possível mapear não só a identificação direta ou indireta entre capitalismo e
colonização, burguesia e colonizador, proletário e colonizado, tal como acontece na
obra de Memmi e Césaire. Mas, também, há um diálogo profundo com categorias mais
complexas que remetem à teoria da reificação de Lukács.
Edward Said levanta a hipótese de que, “durante a redação do livro [Os
condenados da terra], Fanon leu História e consciência de classe, de Lukács, que
acabava de ser publicado em paris, em tradução francesa”. Nesta obra, o pensador
húngaro demonstraria os efeitos do capitalismo. Que seriam, principalmente, “a
fragmentação e a reificação: em tal sistema, todo ser humano torna-se objeto ou
mercadoria”.212
Nas palavras do próprio Lukács o fenômeno da reificação que acontece no
interior do sistema capitalista compreende o processo do “tornar-se mercadoria”,
enfrentado pelo próprio homem. Ocorrendo, assim, uma “auto-objetivação que revela
com vigor extremo o caráter desumanizado e desumanizante da relação mercantil”. 213
209 Idem, p. 69. 210
Albert Memmi, Retrato do colonizado. Precedido de retrato do colonizador, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2007, pp. 17, 117. 211 Idem, Ibidem. 212 Edward Said, op. cit., p. 415. 213 Georg Lukács, História e Consciência de Classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 209.
78
Levando isto em consideração, tem-se que, para Fanon, tratava-se de romper o
ciclo reificante engendrado pela situação colonial através de uma ação anticolonial
violenta em que a desumanização é rompida e a “coisa colonizada se converte em
homem e no processo mesmo pelo qual se liberta”. Nesse processo libertador, o
colonizado “decide pôr término na história da colonização, a história da pilhagem, para
fazer existir a história da nação, a história da descolonização”. 214
Nesse processo de reescrita da história, ou, melhor dizendo, de início de uma
nova história, se insere a abordagem marxista da história da África colonial tendo por
núcleo conceitual estruturante a resistência. Naturalmente, seria um simplismo
apressado supor que houve influência direta das obras de Césaire, Memmi ou Fanon, no
conjunto de historiadores que tratam a resistência através do viés “marxista”.215
Ressalta-se aqui, tão somente, que essa tríade fazia parte da atmosfera intelectual
na qual os autores da HGA respiravam. Seria de se estranhar se não inalassem um pouco
desse ar e, com ele, ventilassem nas suas argumentações. É através do vínculo a este
pano-de-fundo ideológico mais amplo que a inserção, e mesmo identificação, de
categorias marxistas com a situação colonial ganha seu pleno sentido.
Levando em conta esse contexto de produção historiográfica Jon Abbink e Klass
van Walraven afirmaram, acertadamente, que nesse momento considerava-se resistência
qualquer coisa que, de alguma forma, teria ajudado a frustrar as ações do capitalismo.
Fossem as fugas do trabalho, o não pagamento de impostos ou o banditismo social.216
Nessa leitura, a resistência é vista especialmente enquanto reação às
consequências do capitalismo em África. Todo o choque entre africanos e europeus
seria consequência, em última análise, da implantação desse modo de produção e das
suas decorrências como o trabalho forçado, as migrações laborais e os impostos.217
O capitalismo é, dessa forma, tratado como elemento externo que perturba o
estado de coisas anterior. No entanto, cabe observar que para além do Mundo do
Trabalho existiam redes de solidariedade e de poder extra-capitalistas que em muitos
momentos “aproveitaram” o estabelecimento do trabalho assalariado. Como
214 Frantz Fanon, “Les damnés de la terre” In ___, Oeuvres, Paris, La Découverte, 2011, pp. 452, 463. 215 Para uma afirmação desse tipo seria necessário um estudo específico acerca de cada autor que compõe
a obra. Algo que não pretendemos visto que trabalhamos aqui, justamente, com o conjunto das vozes que
habitam a HGA. 216
Jon Abbink; Klass van Walraven, “Repensar la resistencia en la historia de África” In __; __; Mirjam
de Brujin, (Edit.), A proposito de resistir, Barcelona, Oozebap, 2008, pp. 17, 18. 217 Reside, nesse ponto, a importância de não perder de vista a “gênese do conceito”, que empreendemos
acima, visto que esta característica já se encontra presente em Leys Norman quando prioriza as reações ao
trabalho assalariado na África.
79
demonstram Copans, Morice e Agier, houve uma erupção permanente das relações
sociais “tradicionais” no seio do capital.218
Ainda segundo estes autores, havia uma inventividade por parte do nascente
operariado africano que consistia em descobrir possibilidades dentro do novo arranjo
social que o capitalismo colonial implicava. Essa inventividade permitia reintroduzir o
ambiente nativo e, assim, frustrar a finalidade da relação salarial de controlar tudo ao
seu redor. Em suma: o capitalismo, em lugar de minar, fortaleceu – em casos
específicos - a lógica aldeã, podendo-se mesmo falar, em uma “simbiose entre os
poderes tradicionais e o capital”.219
Ademais, não se pode afirmar que a tendência “marxista” padeça
necessariamente do germe do reducionismo econômico. Exemplo disso é o fato de
Isaacman e Vansina ressaltarem a questão étnica no fenômeno da resistência. Segundo
os autores – inseridos na abordagem “marxista”, sobretudo no que tange ao caso de
Isaacman -, “havia diferenças quanto ao grau de provincianismo e particularismo
étnico” nas iniciativas de oposições anticoloniais. Algumas sociedades “enfrentaram o
invasor sem se dar ao trabalho de procurar alianças mais amplas”. Tais sociedades
estariam sujeitas, nas palavras dos autores, a um “particularismo miópe”.220
Em contrapartida, outros grupos sociais africanos fizeram alianças anticoloniais
multiétinicas amplas, como forma de compensar a insuficiência de seu poderio militar.
Desse modo, a “enxtensão dos movimentos de resistência era altamente proporcional ao
grau de particularsmo étnico das populações africanas”. As alianças amplas conseguiam
“alinhar exércitos importantes, bem equipados, e, de modo geral, opor uma resistência
mais prolongada ao inimigo”.221
Tendo fracassado essas iniciativas, o fato colonial, enfim, se consolida, levando
consigo o modo de produção capitalista. Segundo os autores, “Ao contrário da
resistência pré-colonial, cujo o objetivo fundamental era a preservação da
independência”, a resistência que os camponeses e operários contrapuseram ao
colonialismo em princípios do século XX “decorria diretamente dos esforços
218
Michel Agier; Jean Copans; Alain Morice, “Le monde du travail africain: pluriels et ammbiquités” In
___; ___; ___; (Edit.), Classes ouvrières d’Afrique noire, Paris, Karthala/Ostom, 1987, p. 10 219 Idem, pp. 11, 12, 13. 220 Idem, p. 198. 221 Idem, pp. 200, 201.
80
desenvolvidos pelos regimes coloniais para reforçar sua hegemonia e impor relações
capitalistas, a fim de explorar os recursos humanos e naturais da África central.222
São nomeados os dois personagens principais da abordagem “marxista”:
camponeses e operários. A elite do status quo pré-colonial, os soberanos, reis,
imperadores, tendem a ter seu espaço reduzido em virtude da ênfase em coletividades
que encabeçaram a oposição anticolonial.
Com isso, o historiador perde as características que o transformavam em um
Julien Sorel, cativo do espectro nostálgico do grande homem que encarnaria o espírito
do tempo. Agora ele, o historiador, lembra mais Tólstoi que Sthendal. O grande homem
da história é subsumido na coletividade, como o Napoleão de Guerra e Paz. O
historiador escolhe representar cada soldado de um mesmo relógio da história – na
poética expressão de Tólstoi.223
Desde que esse relógio aponte para a transformação,
completa ou parcial, do sistema colonial, através da resistência.
Igualmente, colonialismo e capitalismo são vistos como parte de um mesmo
sistema. Nas palavras dos autores: os africanos foram “sobrecarregados com ônus
econômicos e sociais esmagadores” advindos do “sistema colonial capitalista”.224
Os abusos criados pelo sistema colonial capitalista geraram, “Protestos dos
operários e camponeses. Evidentemente, o que se reclamava era mais a correção de
algumas situações intoleráveis do que a supressão do sistema repressivo que as
provocava”. O caráter esporádico dessas manifestações teria feito com que “boa parte
dessa oposição local fosse ignorada tanto por seus contemporâneos como pelos
historiadores”. Inobstante a isto, concluem os autores, “a ‘resistência cotidiana’, a
insubmissão, o ‘banditismo social’ e as insurreições caponesas constituíram importante
capítulo dos anais anticolonialistas da África”.225
Essa passagem do texto de Isaacman e Vansina é duplamente interessante. Em
primeiro lugar devem-se destacar as tipologias que se perfilam na argumentação dos
autores. Todas elas mostram-se plenamente articuladas com os dados empíricos
apresentados. Assim, não são termos abstratos matizados em um vocabulário teoricista
mais ou menos obscuro. Resistência cotidiana, insurreições camponesas e banditismo
social aparecem bem documentados, articulando-se, dessa forma, o conceito global com
222 Idem, p. 203. 223 Liev Tólstoi, Guerra e Paz, São Paulo, Cosac Naify, 2012. 224 Idem, p. 204. 225 Idem, Ibidem. Grifos nossos.
81
expressões concretas da experiência histórica. Em segundo lugar, se faz interessante por
demonstrar a tensão existente entre as abordagens, a tradicionalista e a “marxista”.
Como dito anteriormente, as abordagens em questão não são, necessariamente,
autoexcludentes. A depender do autor e do tema posto em análise elas convivem sem
maiores problemas em uma mesma narrativa ou descrição. No entanto, também a
depender da forma como se queira descrever uma expressão específica da resistência,
não se pode falar em uma intersecção possível entre ambas.
Por exemplo, quando Vansina e Isaacnam citam o banditismo social enquanto
uma tipologia para o fenômeno da resistência há uma advertência do editor do volume,
Albert Adu Boahen – expoente maior da abordagem tradicionalista.
Em nota, o editor escreve que a “expressão [banditismo social] é mantida por
insistência dos autores. O diretor do volume teria preferido ‘ação de pequenos grupos
armados’”. 226
Boahen não explicita nessa nota por que motivo rejeita a noção de
banditismo social para identificar alguns tipos de resistências. No entanto, mesmo na
falta dessa explicação há aqui um indício de um embate que deve ser considerado.
A noção de banditismo social advém da obra do historiador britânico Eric
Hobsbawm. É utilizada como meio de descrever as “formas ‘primitivas’ ou ‘arcaicas’
de agitação social”. No modelo de Hobsbawm o capitalismo é destacado enquanto
elemento externo a ser combatido. 227
Algo que em tudo faz lembrar a narrativa
construída pela abordagem “marxista” da resistência.
Escreve Hobsbawm que em relação aos bandidos sociais e outros rebeldes
primitivos, “o capitalismo lhes vem de fora, insidiosamente, pela operação de forças
econômicas que não compreendem e que não podem controlar, ou então
despudoradamente, pela conquista”. Os bandidos sociais não cresceram, assim, “dentro
da sociedade moderna: foram jogados nela”. O problema fundamental é como se dá a
adaptação desses movimentos “arcaicos” postos, intempestivamente, no seio da
“modernidade”.228
Tanto o banditismo social quanto a rebeldia primitiva – fenômeno mais geral do
qual o primeiro é parte constituinte – são noções relevantes por atribuirem importância
histórica a movimentos vistos até então como marginais ou sem importância.229
Esse
ponto positivo foi assimilado pela abordagem “marxista” da historiografia de resistência
226 Idem, Ibidem, nota 33. 227 Eric Hobsbawm, Rebeldes Primitivos, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 13. 228 Idem, Ibidem. 229 Idem, 11.
82
africana. Por outro lado, há uma subestimação desses movimentos, ditos arcaicos, a
partir do momento em que Hobsbawm afirma que são formados por “pessoas pré-
políticas, que ainda não encontraram, ou somente começaram a encontrar, uma
linguagem específica para expressar suas aspirações sobre o mundo”.230
Trata-se, neste último caso, de uma abstração teórica eurocentrada. Parece
possível falar, sim, em política – sem o “pré” - nestes movimentos e, também, na
existência de uma linguagem específica para expressá-la.231
A noção de siasa discutida
anteriormente aponta nessa direção.
Essa contraposição entre o arcaico e o moderno – que leva a um tom teleológico
em que o banditismo social é etapa anterior a ser, necessariamente, vencida – é, decerto,
o principal ponto de desequilíbrio da tese de Hobsbawm. Algo assimilado, também, pela
abordagem “marxista” da resistência africana. Em lugar dessa oposição, talvez seja mais
proveitoso pensar em termos de uma “univocidade do moderno e do arcaico” no que se
refere à resistência,232
visto que independente da etiqueta que se coloque na resistência
ela será sempre direcionada a um fato único: o colonialismo.
Talvez Boahen rejeite a noção de banditismo social por jugá-la pejorativa. Caso
tenha sido este o caso tratar-se-ia de uma objeção injustificável tendo em vista que por
mais que Hobsbawm contraponha o “arcaico” com o “moderno” não o faz de forma a
desmerecer o primeiro em relação ao segundo. O mesmo pode-se dizer do uso da
palavra “bandido”.
Há, segundo o historiador britânico, dois extremos. De um lado existiria “o
criminoso clássico que mata por vingança e sangue, [...] e que não era um bandoleiro
social combatendo os ricos para ajudar os pobres”. No outro lado encontrar-se-ia “o
230 Idem, p. 12 231 Mais atualmente, James Scott realiza uma crítica convincente neste sentido. Em suas palavras:
“Tradicionalmente, se tem interpretado a ação das multidões como resultado da relativa incapacidade das
classes baixas para manter um movimento político coerente de qualquer tipo – uma lamentável
consequência da volubilidade de seu materialismo e paixões. Se espera que, com o tempo, essas formas
primitivas de comportamento de classe sejam substituídas por movimentos permanentes e mais
ambiciosos, com uma chefia (quiçá de um partido de vanguarda) que tenha como objetivo mudanças
políticas fundamentais. Não obstante, se uma leitura muito mais tática for adequada, o fato de as multidões escolherem atuar de maneira fugaz e direta não será de nenhuma maneira o sinal de um defeito
ou incapacidade para praticar modos mais avançados de ação política”. James C. Scott, Los dominados y
el arte de la resistência, México D.F., Era, p. 182. 232 Colocamos a questão nos termos de Theodor Adorno. Em carta dirigida a Walter Benjamin o pensador
alemão escreveu que havia chegado a uma conclusão espantosa no que diz respeito à “univocidade do
moderno e do arcaico. E isso a partir da outra ponta do espectro: a partir do próprio arcaico. Ocorreu-me
que, assim como o moderno é o mais antigo, o arcaico também é uma função do novo: primeiro ele é
produzido como arcaico, e nesse sentido ele é dialético e não ‘pré-histórico’, antes o exato contrário”.
Theodor W. Adorno, Correspondência. 1928-1940. Adorno-Benjamin, São Paulo, Unesp, p. 93.
83
clássico Robin Hood, que era e é essencialmente um camponês revoltado contra os
latifundiários”. Somente este último merece a alcunha de bandido social.233
De todo modo, estas são somente conjecturas. Não sabemos o motivo específico
que leva Boahen a rejeitar a noção tão cara a Isaacman e outros adeptos da abordagem
“marxista”. A falta dessa informação não oblitera o fato essencial: a discordância dos
termos adequados para se tratar a resistência.
O dissênso epistemológico, muitas vezes latente, se mostra aqui explícito.
Também se depreende dessa passagem que o “marxismo” dessa abordagem reside tanto
na sua ideologia subjacente – em diálogo com a atmosfera anticolonial -, quanto na
metodologia utilizada, a partir do momento em que incorpora noções caras à mais
sofisticada historiografia marxista que dispensa aspas. Outras noções caras à
historiografia marxista também se fazem notar se os termos em que os autores colocam
a discussão forem adequadamente decantados.
No volume VII da HGA Martin Kaniki, por exemplo, escreve que os agricultores
africanos eventualmente organizavam-se para defender interesses comuns. A principal
tática destes camponeses residiria na retenção da produção, recusando-se a entregar o
produto ao mercado.234
Trata-se de uma argumentação bastante comum que teve no
trabalho de Isaacman o seu ponto de partida, quando este considerou, em publicação
anterior à HGA, a retenção da produção de algodão dos camponeses moçambicanos
como um ato de resistência. 235
A classificação da retenção da colheita enquanto ato de resistência pode ser
vista, seguramente, como uma influência do conceito de economia moral, advindo da
obra de Edward Thompson. Esta noção compreende a ideia de que o mercado de cerais
ingleses do século XVIII era regulado, também, pela ação das classes subalternas que
viam a nova economia, assente em noções de livre mercado e autoregulação, como
estando fora dos preceitos morais de interesse coletivo. Longe de ser uma reação sempre
tradicional contra as inovações, a economia moral se regeneraria continuamente
enquanto “crítica anticapitalista, como movimento de resistência”.236
233 Idem, Ibidem, p. 14. 234 Martin H. U. Kaniki, “A economia colonial: as antigas zonas britânicas” In Albert Adu Boahen.
(Edit.), op. cit., p. 469. 235 Allen Isaacman, “Cotton is the Mother of Poverty: Peasant resistance to forced cotton production in
Mozambique, 1938-1961”, International Journal of African Historical Studies, 1980, p. 614. 236 Edward Palmer Thompson, Costumes em comum, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, pp. 258,
259. Thompson adverte, no entanto, que assim encarada a economia moral perde em foco o que ganha em
amplitude, podendo se esvaziar, em mãos inábeis, tornando-se mera retórica moralista
descontextualizada.
84
Tendo em vista essa relação possível com o conceito thompsoniano, Martin
Kaniki, continua sua argumentação referindo-se à tributação que, segundo ele, não foi
desenvolvida com vistas a aumentar a receita pública, mas com o “objetivo de obrigar
os africanos a se colocarem a serviço dos interesses do capitalismo internacional”. 237
Conceitos da historiografia marxistas dialogam, naturalmente, com uma crítica de viés
anticapitalista.
Assim, as colônias foram “integradas ao sistema capitalista ocidental, no
contexto de um sistema econômico coerente de exploração colonial”.238
Segundo
Rodney, diante dessa tentativa de “destruição de sua indepêndencia econômica, os
africanos respondiam com violência”.239
Na argumentação de Rodney parece haver um
traço fundamental do pensamento de Frantz Fanon, a presença da violência. Como
afirmado anteriormente, para Fanon a força motriz da descolonização seria justamente a
violência. Mais uma vez nota-se o diálogo entre a abordagem “marxista” da resistência
e as ideologias anticoloniais.
Tal interpretação remete ao fato de que o desenvolvimento do capitalismo
engendrou novas formas de resistências, tanto no nível da ação (as fugas do trabalho
forçado, as retenções da produção da lavoura, a sonegação de impostos), quanto
organizacional. Especialmente com a formação dos sindicatos, que acabaram em alguns
casos pluralizando racial e étnicamente a resistência.
Em muitos casos a resistência transpôs a barreira racial, sendo exemplares
movimentos ocorridos na África do Sul. Neste sentido, o fenômeno da resistência passa
a ser muito mais complexo do que o binômio Branco (invasor
colonizador)/Negro(colonizado resistente) pode fazer supor.
Em áreas mais industrializadas, com um nascente movimento operário, a
perspectiva de classe, por exemplo, acabava por conjugar brancos pobres com negros.
Em trecho de um panfleto intitulado Apelo aos trabalhadores Bantu - reproduzido na
HGA, lia-se: “Que importa a cor da sua pele! Vocês pertencem às massas laboriosas do
mundo inteiro. Daqui por diante, todos os assalariados fazem parte da grande confraria
dos trabalhadores”.240
É contrariado, assim, o binômio racial que aparece, ainda que de
forma implícita na própria HGA.
237
Idem, p. 455. 238 Catherine Coquery-Vidrovitch, “A economia colonial das antigas zonas francesas, belgas e
portuguesas (1914 - 1935)” In Albert Adu Boahen, (Edit.), op. cit., p. 401. 239 Walter Rodney, “A economia colonial”. In Albert Adu Boahen, (Edit.), op. cit., p. 377. Grifos nossos. 240 Apud Idem, Ibidem, p. 805.
85
Trabalhos mais recentes têm criticado esse possível “racialismo” da resistência,
por se centrar demais nas reações do africano ao “homem branco”. Como argumentaram
Abbink e Walraven em um estudo recente: “Um ponto fundamental na crítica aos
primeiros trabalhos sobre o conceito de resistência é que se centram nas reações dos
africanos contra o homem branco ou contra o colonialismo e não em seu verdadeiro
papel no desenvolvimento histórico”. 241
O juízo de Abbink e Walraven, apesar de correto, é incompleto, visto que os
autores não especificam concretamente o que seja precisamente esse “verdadeiro papel
[da resistência] no desenvolvimento histórico”. Tal fato torna sua crítica aos primeiros
estudos sobre a resistência - e, consequentemente, a alguns trabalhos da HGA -
incompleta. De todo modo, a reflexão em torno do papel dos sindicatos e partidos
políticos com discurso não-étnico ou racializado, inaugura o tema mais problemático
quanto à reflexão sobre a ideia de resistência na HGA.
Afinal, incluir, como fez a própria HGA, os sindicatos e os operários como
expressões de resistência seria romper definitivamente com o vínculo entre a
manutenção do status quo da tradição e a resistência. Da mesma forma, mais
problemático ainda seria incluir entidades como a International Socialist League na
resistência. Isso porque a organização estava filiada a uma ideologia que, para todos os
efeitos, tem sua origem na Europa “moderna” pós-revolução industrial e não na África
“tradicional”.
Explicita-se, agora, a conturbada continuidade da chamada “era clássica da
resistência” – como a designa Boahen -,242
que compreenderia os fins do século XIX e
início do XX, com as oposições anticoloniais posteriores, transpondo-se, assim, da
ênfase no status quo da tradição e nas figuras pessoais dos chefes tradicionais, para
organizações de feições modernas (sindicatos, partidos, etc.) e com um apelo mais
coletivo.
2.6. Resistência e Temporalidade
2.6.1. Historiografia e Política
Nesse ponto da análise, em que discutiremos a temporalidade da resistência,
cabe, de forma preliminar, refletir acerca do papel político que a história exerce. No
caso da HGA em especial a historiografia caminha de par a par com a política e tal fato
241 Jon Abbink; Klass van Walraven, op. cit., p. 16. 242 Albert Adu Boahen, “A África diante do desafio colonial”, op. cit., p. 15.
86
terá implicações profundas quando da definição temporal da insubordinação africana ao
colonialismo europeu.
É preciso atentar para o que Pocock chamou por caráter da história como sujeito
e forma de pensamento ou discurso político. A história é construída no seio de
comunidades políticas. Em circunstâncias precisas, como no caso da HGA, a
historiografia pode não só refletir ou expressar um discurso politicamente formatado,
mas pode ela mesma converter-se em prática política efetiva.243
Exemplificando, encaremos a África deste momento de planejamento e início da
publicação da HGA – anos 1960 e 1980 - enquanto uma comunidade política. Essa
comunidade possui uma história que é narrada e exposta de determinada forma dentro
da obra. A comunidade política em questão passava por um momento de forte ebulição,
sobretudo durante os anos de 1960 e 1970, quando vários conflitos nacionalistas se
desenrolavam e vários projetos para a formação da Nova África eram debatidos
efusivamente. Havia, por certo, uma disputa discursiva pelo poder. A história narrada,
imersa nessa disputa, implicava na exposição dos sucessos que ocorreram no passado,
na história vivida.244
A contradição aparente reside no fato de os ditos sucessos não serem outra coisa
senão o triunfo do fracasso. Os líderes das insubordinações anticoloniais fracassaram
todos – à exceção notável do caso etíope sob a liderança de Menelik II. Seu fracasso é
colocado em relevo como meio de corroborar o triunfo das independências nacionais
que haviam tido vez há pouco tempo.
Isso fica claro em passagens bastante categóricas como esta de Boahen e
M’Baye Gueye: “Pouco importa, com efeito, que os exércitos africanos tenham
sucumbido diante de inimigos mais bem equipados, se a causa pela qual os resistentes
se imolaram resta viva no espírito de seus descendentes”.245
O termo “descendentes” faz
crer que estamos diante do mesmo “grau de família” atemporal enunciado em
momentos anteriores da obra. Nesse tom, a história se converse em política do passado
e a política em história do presente.246
Este trecho corrobora nossa hipótese de que nesta historiografia a comunidade
política em questão refere-se à toda a África. A formação, por meio das independências,
243
J. A. G. Pocock, op. cit., p. 229. 244 Idem, p. 231. 245 M’Baye Gueye; Albert Adu Boahen, “Iniciativas e resistência africanas na África ocidental, 1880-
1914” In Albert Adu Boahen, (Edit.), op. cit., p. 66. 246 J. A. G. Pocock, op. cit., p. 229.
87
das novas nações africanas era acompanhada pela formação do novo continente. Uma
comunidade política, neste caso, não é necessariamente um Estado-nacional, mas assim
como este a comunidade política sob a qual nos debruçamos também é, em certo
sentido, uma comunidade imaginada. Tornaremos a este ponto.
Por ora, o importante é notar a presença do duplo identitário que assegura a
presença do outro na narrativa. Os africanos sucumbiram diante de um inimigo, um
elemento invasor. A África, enquanto comunidade política é aqui definida a partir de si
mesma e de seu outro opositivo. A história é escrita, desse modo, para reafirmar um Eu
e para fixar sua relação com o outro.247
Existe, nesse contexto, uma tensão entre a história e o historiador. Seria
demasiadamente fácil findar a análise na afirmação simples de que as comunidades
políticas “produzem” ou “constroem” uma história que legitima e torna válida “a
continuidade de sua existência e da ação que se desenvolve nela”.248
Há de fato este
movimento de legitimação e, no caso da HGA, – e da historiografia de resistência
anterior – a continuidade da existência da África enquanto comunidade política é
realizada através do conceito de resistência. Mas é preciso ir além, pondo em questão a
própria noção de continuidade e ao que, especificamente, se continua. Nesse ponto, o
tom de continuação corrobora a construção de uma comunidade imaginada.
Quanto maior o número de membros de uma comunidade política implicados na
elaboração do “imaginário dessa comunidade”, menos caberá distinguir entre a
comunidade e o imaginado, segundo Pocock.249
É neste sentido que a África, apesar de
não se constituir um Estado-nacional, pode ser encarada enquanto uma comunidade
imaginada.
Uma nação, diz Benedict Anderson, é uma comunidade porque “mesmo os
membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer
ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a
imagem viva da comunhão entre eles”. Para que exista essa comunhão a nação precisa
ser, necessariamente, soberana. Além disso, “independentemente da desigualdade e da
exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como
uma profunda camaradagem horizontal”.250
247
Idem, p. 264. 248 Idem, p. 232. 249 Idem, p. 233. 250 Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas, São Paulo, Companhia das Letras, 2009, pp. 31, 32,
33.
88
O que é a África apresentada na HGA – e mesmo em grande parte da
historiografia politicamente engajada dos anos de 1960 e 1980 – senão uma grande
confraria? Como nos lembra Appiah, a ideia de fraternidade é, naturalmente, aplicável
ao discurso nacionalista.251
É por este motivo que Joseph Ki-Zerbo tem tão caro para si
o “grau de família” que ligaria todos os africanos, ao que é acompanhado por outros
autores da obra, como Boahen.
A HGA tem suas energias canalizadas tanto para a construção do Estado-
nacional em África quanto, também, para a construção da própria África enquanto
comunidade integral, coerente e mesmo homogênea. Na HGA se faz notar aquilo que
Paulin Hountondji chamou por “unanimismo”, visão segundo a qual a África seria um
todo culturalmente homogêneo, havendo um substrato cultural compartilhado pelo
continente.252
Nisto ela ecoa o pan-africanismo, ideologia marcante que aflorou nos
anos de 1960.
Geralmente o pan-africanismo é definido como sendo a percepção de que os
povos africanos e seus descendentes possuem interesses e causas em comum. Trata-se
de uma definição geral, o fato é que o pan-africanismo terá diversas formas em
diferentes momentos históricos e localizações geográficas.253
Assim, longe de pretender
uma genealogia exaustiva do pan-africanismo cabe atentar para algumas de suas
inflexões mais importantes.
Alexander Crumell e Edward Blyden são, geralmente, tidos como pais da
orientação ideológica pan-africana, ainda no século XIX. Tal orientação estaria baseada
na ideia da raça, de maneira que a África seria a “pátria da raça negra”. A ênfase racial
remete ao fato de o pan-africanismo ter sua gênese ligada, principalmente, à dispersão
dos africanos e seus descendentes através do tráfico de escravos transatlântico. Isto é, à
diáspora africana nas Américas.254
À parte essa origem diaspórica inúmeras variações fazem parte da ideia pan-
africana. Seja em que variante for, o pan-africanismo inclui uma gama de “ideias,
atividades e movimentos” que celebram a pertença ao continente através da sua
251
Kwame Anthony Appiah, Na casa de meu pai, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 38. 252 Idem, p. 48. 253 Hakim Adi; Marika Sherwood, Pan-African History. Political figures from Africa and the Diaspora
since 1787, Londres/Nova York, Routledge, 2003, p. VII. 254 Kawme Anthony Appiah, op. cit., pp. 44, 45.
89
resistência à exploração, seja essa exploração classificada em termos de imperialismo,
colonialismo, escravismo ou capitalismo.255
Durante os anos de 1930 a ideia pan-africana passa a ser influenciada pelos
movimentos à esquerda de matiz comunista, socialista, anti-imperialista e
internacionalista. Neste contexto surgem as primeiras organizações que buscavam pôr
em prática a ideia pan-africana, a exemplo do Profintern’s International Trade Union
Committee of Negro Workers, bem como do Council of African Affairs. Organizações
políticas de cunho mais geral também teriam asseguradas uma presença pan-africana, a
exemplo do movimento trotskista internacional que tinha à testa C.L.R. James, notável
intelectual da diáspora africana e nome de relevo na história do movimento pan-
africano. Além de James também compõem essa geração George Padmore, Marcus
Garvey e W.E.B. Du Bois, todos igualmente oriundos do solo diaspórico.256
Consolidado este núcleo intelectual, ainda na primeira metade do século XX
congressos pan-africanos procuraram reforçar a solidariedade racial, tanto na África
quanto na diáspora. Cabe lembrar que a definição de “africano” é feita, neste momento,
em tons étnico-raciais, o que nos leva a concluir que o pan-africanismo nasce em par
com a negritude. Sendo esta aqui encarada de acordo com a definição de seu maior
representante africano, Leopold Sedar Senghor: uma “ideologia nova que em fins do
século XIX se apoiou nos valores do mundo negro”.257
Outra inflexão importante na ideia pan-africana possui um marco temporal e
espacial bem definido. Ela acontece em 1945, durante o quinto congresso pan-africano
realizado em Manchester. Neste momento, o foco do pan-africanismo passa a ser a
unidade continental e a luta pela libertação da África do jugo colonial.258
A ideia agora
atravessa uma distância - neste caso uma distância atlântica – e se coloca em um novo
contexto bastante preciso: o da reivindicação política africana propriamente dita.
Não é algo casual, mas antes sintomático desta travessia, que muitos
participantes deste congresso viriam a serem líderes políticos de relevo em África. Cabe
destacar Kwame Nkrumah e Julius Nyerere, que tomaram a dianteira da ação
independentista em seus países. Respectivamente, Gana e Tanzânia. Do mesmo modo,
os filhos da diáspora viriam a tomar a frente na política do continente, a exemplo de Du
255
Hakim Adi; Marika Sherwood, op. cit., Idem, Ibidem. 256 Idem, p. IX. 257 Leopold Sedar Senghor, Liberté – Vol. III. Négritude et Civilisation de L’Universal, Paris, Le Seuil,
1977, p. 299. 258 Idem, Ibidem.
90
Bois, Padmore e James que, anos mais tarde, rumariam para Gana, assumindo cargos
políticos de destaque.
Ainda que os africanos estivessem em menor número no congresso de
Manchester, em relação aos sujeitos advindos da diáspora, o ano de 1945 marca um
ponto crítico em que pan-africanismo, ele próprio, se africaniza. À parte a distância
atravessada é notável que a ênfase identitária continua a mesma: étnico-racial. De
maneira que o pan-africanismo não se desvincula ainda de seu par, a negritude.
Finalmente, tem vez a etapa que mais nos interessa da viagem da ideia pan-
africana. Com o pós-segunda guerra e a realização do já aludido congresso pan-africano
de Manchester, o pan-africanismo defronta-se com uma série de condições de aceitação
de maneira que pode ser transplantado para outra localização geográfica – o continente
africano como um todo. Esta condição de aceitação refere-se, essencialmente, ao desejo
de independência.
A partir desse momento a ênfase étnico-racial, tendo ainda sua importância
garantida, passa a ser articulada, ou mesmo substituída, pela pertença geográfica e por
uma vinculação mais propriamente política baseada no desejo de mudança social. A
consequência mais direta dessa transmutação será a adição dos países norte-saarianos à
equação pan-africana. De forma que é o próprio Senghor a definir a Africanidade
(Africanité) como sendo “a simbiose complementária dos valores da Arabitude
(Arabité) e da Negritude (Négritude)”.259
N’Krumah, por sua vez, dirá que foi esse giro
rumo ao continente que fez do pan-africanismo algo menos vago concernido somente a
um “nacionalismo negro” que via como nebuloso.260
Em que pese essas consonâncias acerca da unidade africana, a ideologia pan-
africana estava longe de ser um todo homogêneo neste contexto. Podemos identificar
duas tendências básicas: na primeira, estamos diante de uma África unida em um
mesmo recorte de Estado-nacional, na segunda vemos nações independentes se
articulando em um recorte continental.
O maior representante da primeira tendência foi, seguramente, Kwame
N’Krumah. N’Krumah afirmou que ao lograr a independência de Gana ele estava
lançando as bases para a empresa que realmente interessava: a “unificação política e
econômica da África”, em suas próprias palavras. A união política seria, para ele,
inevitável “devido ao nosso pano-de-fundo histórico” e a um “sentimento de unidade”
259 Idem, p. 105. 260 Kwame N’Krumah, Africa Must Unity, Praeger, 1963, pp. 133.
91
profundo. Ou seja, a unidade era legítima tanto por questões históricas objetivas quanto
metafísicas subjetivas. Tratava-se de construir um Estado africano através do imperativo
categórico da união africana: Africa must unity!261
Por outro, a segunda tendência via a situação por outra ótica, expressa em termos
paradigmáticos por Julius Nyerere. A organização política de Nyerere, TANU –
Tanganyika African National Union – tinha como primeiro lema: “Eu acredito na
Fraternidade Humana e na Unidade Africana”. Nyerere tinha para si que a África seria
uma grande família – Ujamaa – e que os princípios comunais desta família estavam
“enraizados em nosso próprio passado – na sociedade tradicional que nos produziu”. A
nova sociedade nascida da independência não poderia restringir-se aos “limites da
tribo”. Ela deveria abranger círculos ainda mais amplos: “para além da tribo, da
comunidade, da nação, ou até do continente”. 262
A diferença discursiva entre os dois projetos é sutil, mas passível de observação.
Ela pode ser resumida na expressão “ou até” de Nyerere. A unidade africana e a
transformação social interessavam em ambos os casos. Mas para N’Krumah a unidade
continental funcionava como um imperativo categórico que deveria ser, necessária e
urgentemente, institucionalizado na forma de um Estado-nacional unitário. O que a
diferença retórica tem de sútil a dessemelhança prática tem de explícita.
A decorrência prática mais visível desse debate será a formação de dois grupos
antagônicos que congregavam chefes de Estado das nações africanas independentes.
Um grupo, encabeçado por N’Krumah, ficou conhecido como grupo de
Casablanca. O outro, que tinha Nyerere à testa, como grupo de Monróvia. O primeiro
tendia a se opor às integrações regionais ou sub-regionais, por focalizar a unidade
integral. A tendência de Monróvia, por sua vez, aceitava e apoiava experiências feitas
em escala regional na edificação de uma união africana que não deveria,
necessariamente, tomar a forma institucionalizada de um Estado. Desse embate
discursivo nascerá a Organização da Unidade Africana – OUA, que deveria estabelecer
um compromisso entre os dois grupos.263
Criada em 1963, na cidade de Adis Abeba, Etiópia, a OUA tem sua carta-patente
de fundação assinada pelos chefes de Estado das nações africanas então já
261
Idem, pp. 131, 132. 262Julius Nyerere, Freedom and Socialism - Uhuru na Ujamaa, Nairobi/London/New York, Oxford
University Press, 1968. 263 Sharkdam Wapmuk, “In search of greater unity: African States and the quest for an African Union
Government” Journal of Alternative Perspectives in Social Sciences, Vol. I, N 3, 2009, p. 646.
92
independentes. Nela vê-se a menção à cooperação entre os Estados em consonância com
as aspirações de seus povos com vistas a fortalecer de forma mais ampla a unidade
“transcendendo diferenças étnicas e nacionais” para “o progresso geral da África”. Em
contrapartida, é mencionada também a determinação em manter a “soberania e
integridade territorial de seus Estados”.264
É perceptível o apelo à união continental, mas, também, nota-se a ênfase na
consolidação de Estados nacionais autônomos e soberanos. A proposta radical acaba
sendo preterida em nome de um nacionalismo pan-africano. Isso acaba sendo
perceptível na própria HGA, que começa a ser planejada em meio a este debate, mas
passa a ser publicada somente na década de 1980, quando a união continental radical
parecia ainda mais distante. Assim, a HGA estará com seus olhos voltados para os
recortes nacionais, ao mesmo tempo em que tenta forjar e legitimar uma identidade
africana continental.
A HGA tentava erigir e demonstrar uma identidade propriamente africana, e,
como argumenta Pocock, aquilo que de mais valioso tem a oferecer uma comunidade
política é uma identidade. 265
Neste caso, a identidade articula-se com a soberania,
amarradas pelo laço da história.
Através de um constructo histórico que forjasse uma identidade própria
legitimava-se a soberania pretérita – dos Estados tombados pré-coloniais – bem como a
soberania presente e futura – da África independente e pós-colonial.
É como se quanto mais consciente de sua identidade fossem os resistentes –
“modernos” ou “tradicionais” – mais tendessem a proteger-se no passado, utilizando a
história como forma de adquirir autoridade no presente, legitimando em simultâneo
tanto o intuito de manutenção soberana dos Estados africanos tombados pelo domínio
colonial, quanto a transformação social que as independências almejavam, com a
construção de novos Estados já dentro dos recortes legados pelo colonialismo.
A história compõe o pensamento político pan-africano, ajudando a pensar tal
transformação, a independência e construção da Nova África, legitimando-a. Mais uma
vez a história mostra-se vinculada à ação política. Afinal, numerosas sociedades sofrem
transtornos e mudanças radicais, sem, necessariamente, tê-las reconhecido, pensado ou
teorizado. O domínio do político é a instância privilegiada para a investigação, pois nele
264 OUA Carta-Patente, 1963. Disponível no acervo digital da Organização da Unidade Africana. <
http://www.au.int/en/sites/default/files/OAU_Charter_1963_0.pdf> Acesso em 6 de novembro de 2014. 265 Idem, pp. 236, 241.
93
as práticas de transformação vêm acompanhadas de teorias da mudança.266
A
resistência, historicamente construída, é peça fundamental da teoria da mudança social
que alicerçava a vertente pan-africana do pós-segunda guerra que colocamos em relevo.
A esta vertente do pan-africanismo designamos por intra-continental e
revolucionária. Trata-se da instância da ideologia pan-africana que busca tanto a
integração continental quanto uma transformação social radical, neste caso as
libertações nacionais. Nesta definição se encaixam ambos os grupos anteriormente
elencados, Casablanca e Monróvia.
Libertação nacional e integração continental não são mutuamente excludentes,
portanto. Daí que a contradição em se falar em termos de “nacionalismo pan-africano”
seja só aparente. Filiando-se a esta corrente os autores do volume VII da HGA fizeram
da resistência o lastro histórico para construir e integrar o continente, enquanto
comunidade política imaginada. A resistência seria o fator que assegura a continuidade
histórica desta comunidade.
2.6.2. Continuidade e a ruptura
Adentra-se, neste ponto da análise, na questão mais espinhosa de toda a
discussão acerca da resistência anticolonial africana. Aquela que diz respeito à sua
temporalidade propriamente dita. Mais importante do que classificar como ela, a
resistência, acontece – isto é, sua tipologia – é mapear em que tempo ela ocorre. Como
visto anteriormente, a abordagem tradicionalista tende a privilegiar as elites tradicionais
do período pré-colonial enquanto personagens da resistência. Por outro lado, a
abordagem centrada em recortes de classe – “marxista” – privilegia contingentes
urbanos ou rurais que expressam sua resistência em uma lógica discursiva direta ou
indiretamente anticapitalista.
Qual seria o vínculo existente – se é que existe - entre esses momentos iniciais
da oposição africana e as posteriores lutas pela independência? Trata-se agora somente
de um interlúdio que anuncia o principal tema a ser desenvolvido no volume seguinte da
HGA.
Este tema é central em toda a discussão acerca da resistência, porque mesmo
admitindo a continuidade entre ambos os momentos, eles não formam unidades
homogêneas. Como salientou Canguilhem: “A progressividade de um advento não
266 Marcel Detiene, Comparar o incomparável, Aparecida, Ideias & Letras, 2004, p. 77.
94
exclui a originalidade de um evento”.267
Toda a dificuldade da análise teórica acerca do
fenômeno da resistência reside justamente em captar essa originalidade ao mesmo
tempo em que se discerne o momento em que essa mesma originalidade implica em
uma mudança qualitativa no fenômeno.268
Em geral, sejam tradicionalistas ou “marxistas”, os autores inseridos na HGA
aceitarão o caráter progressivo da resistência, bem como a continuidade entre as
oposições iniciais ao jugo colonial e as posteriores lutas nacionalistas pela
independência. Neste ponto, discordamos dos termos em que essa continuidade é
colocada. Quais sejam: as antinomias entre o “moderno” e o “tradicional”. Na HGA a
modernização é vista como importação, em sociedades “tradicionais”, de novos papéis
próprios da sociedade industrial. Dessa forma, as mudanças qualitativas no fenômeno
ficam quase sempre vinculadas ao processo de “modernização” da resistência.269
Coube a Terence Ranger levar a cabo a discussão sobre o caráter “tradicional e
moderno” da resistência. Vale lembrar, mais uma vez, que a HGA foi semeada em plena
onda de guerras de libertação nacional e que alguns movimentos nacionalistas
“manifestadamente se inspiraram nas lembranças de um passado heroico”.270
Os
historiadores do projeto da HGA veicularam a ideia de resistência ao nacionalismo
revolucionário pan-africano do século XX e, tal como muitos militantes deste último,
buscaram traçar uma continuidade entre a fase da expansão colonial do final do séc.
XIX e as guerras de libertação nacional. Nisto, a HGA entra em desacordo com uma
significativa parcela da historiografia, que não vê tal continuidade.
Tal é o caso de Henri Brunschwig para quem a resistência estaria vinculada aos
laços étnicos: “La resistance, en effet, paralt intimement liee ‘a l’ethnie. Et cette ethnie,
si difficile ‘a definir et si constante, pourrait bien etre specifique de l’Afrique noire”,271
de forma que os movimentos nacionalistas estariam em outro plano organizativo em que
as ideologias “importées d’Occident, et assez souples elles-mêmes, assez ambigiües
pour pouvoir s’adapter aux peuples et aux circonstances”.272
267 Georges Canguilhem, O Normal e o Patológico, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2009, p. 33. 268 Argumentação semelhante usou Ruy Mauro para o caso da relação entre o fenômeno colonial e a
dependência. Neste ponto específico o trabalho de Mauro nos serviu de inspiração. Para mais ver Ruy
Mauro Marini, Dialética da Dependência, op. cit. 269 Aprofundaremos este juízo no capítulo posterior deste trabalho. 270
Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistências africanas em face da partilha e da conquista”, op. cit., p.
65. 271 Henri Brunschwig, “De la Résistance Africaine à L’Impérialisme Européen”, The Journal of African
History, Vol. 15, nº 1, London, Cambridge University Press, 1974, p. 64. 272 Idem, Ibidem, p. 61
95
Defendendo o ponto de vista continuísta Ranger argumenta que a linha
argumentativa de Brunschwig parte da premissa de que o nacionalismo moderno é uma
manifestação da tendência ao “centralismo da inovação e à adoção de grandes projetos”,
o que significa que pertence “a uma tradição diametralmente oposta à da resistência”.273
Este juízo que Ranger faz acerca de Brunschwig, estando correto, deve ser aprofundado.
Em Brunschwig o recorte étnico é tido como o “reflexo elementar do
desenvolvimento, condenado pela modernização”.274
Dessa forma, seu conceito da
resistência, ancorado que está na distinção desta com o fenômeno nacional, encontra-se
alicerçado na própria retórica colonial. Afinal, trata-se de classificar à parte as
sociedades africanas – diferentemente das ocidentais elas são “étnicas” – negando-lhes
qualidades específicas.275
A definição da resistência de Brunschwig é feita a partir da
lógica da negação, ele a define a partir daquilo que ela não seria. Além de reducionista
essa conceituação encontra pouco embasamento histórico-etimológico.
O termo “etnia” advém do grego ethnos que pode ser traduzido por povo ou
nação. Seu surgimento remonta ao século XIX, portanto à expansão colonial em África.
Desde logo ele foi utilizado, juntamente com o termo ainda mais reducionista de
“tribo”, em detrimento de “nação”, pois se tratava de “classificar à parte algumas
sociedades, negando-lhes uma qualidade específica”. Para a doxa colonial convinha
definir as sociedades africanas – bem como as ameríndias, asiáticas e oceânicas – como
diferentes de um “nós” ocidental, retirando-lhes, portanto, elementos que pudessem
inseri-las em uma “humanidade comum”.276
Em resumo: “diferentemente do povo ou da nação – produtos de uma história, a
etnia é efetivamente o resultado de uma operação de classificação prévia [...] [que] só
aparentemente se assemelha a uma taxinomia racional e científica”.277
Assim adjetivadas, as sociedades africanas passavam a ser vistas como
dessemelhantes e mesmo inferiores ao ocidente, termos como etnia e tribo vinculam-se,
por conseguinte, à lógica binária do colonialismo: sociedade sem história / sociedade
com história; sociedade pré-industrial/sociedade industrial; comunidade/sociedade. E,
para o caso de Brunschwig, resistência/nacionalismo. De forma incisiva Amselle afirma
273 Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistências africanas em face da partilha e da conquista”,op. cit., p.
66. 274 Jean-François Bayart, op. cit., p. 82. 275
Jean-Loup Amselle, “Ethinies et spaces: Pour une anthropologie topologique” In ___; Elikia
M’Bokolo (Edits.,) Au couer de l’ethnie. Ethnies, tribalisme et État en Afrique, Paris, La Découvert,
2005, p. 14 . 276 Idem, Ibidem. 277 Jean Bazin, “A chacun son Bambara” Jean-Loup Amselle; Elikia M’Bokolo (Edits.), op. cit., p. 92.
96
que a tradição intelectual que enxerga nas configurações comunitárias/sociais
etnicamente formatadas “modos de resistência ao Estado e ao capitalismo” deve ser
descartada.278
O que interessa à esta discussão, de fato, é que o recorte étnico não pode, e não
serve, como divisa para conceituar a resistência. Não se trata de conceituar a ideia de
etnia, mas sim de saber se ela constitui um referente o qual se pode prescindir ou não.279
Neste caso, enquanto marco fundamental para o conceito de resistência a etnia seria tão
só mais um marcador social advindo da lógica colonial e, precisamente por este motivo,
deve ser rejeitada enquanto imperativo categórico para definição da resistência. Além de
reducionista estaríamos cativos do pensamento binário colonial, algo que, acreditamos,
só reforça estereótipos que o conceito de resistência, bem aplicado, deve ser capaz de
romper.
Além de Brunschwig há outro autor a pôr em questão o argumento da
continuidade entre resistência e nacionalismo, trata-se de Edward Steinhart. Para ele,
tratar as insurreições militares datadas dos anos iniciais do colonialismo como
precursoras das guerras de libertação nacional seria dar legitimidade aos numerosos
regimes autoritários que se instalaram em vários países africanos no pós-independência
e consolidar, dessa forma, uma espécie de “mito nacionalista autoritário”.
Nas palavras do próprio Steinhart: “Instead of examining anti-colonial
resistance, protest and liberation movements through the distorting lens of nationalist
mythology, we must create a better ‘myth’, one better suited to interpreting the reality of
African protest”.280
Steinhart parece querer, afirma Ranger, “reivindicar a herança das
resistências para a oposição radical ao autoritarismo nos novos Estados nacionais da
África.” 281
De todo modo, ao contrário da tese de Brunschwig a conceituação de
Steinhart é tanto mais sólida quanto menos cativa da lógica colonial. Ao contrário, é tão
crítica a esta quanto ao seu suposto adversário direto: o nacionalismo africano dos anos
de 1960 e 1970.
Para se contrapor a essas teses Ranger faz uso, na HGA, do trabalho de Allen
Isaacman. Em uma tese publicada anos antes da HGA, Isaacman argumenta, partindo do
278 Jean-Loup Amselle, op. cit., p. 24 279 Jean Bazin, op. cit., p. 90. 280
Edward Steinhart, “The Nyangire rebellion of 1907: anti-colonial protest ant the nationalism myth” In
Gregory Maddox, (Edit.), Conquest and resistance to colonialism in Africa, New York/London, Garland
Publishing, 1993, p. 362. 281 Terence O. Ranger, “Iniciativas e resistências africanas em face da partilha e da conquista”, op. cit., p.
66.
97
caso moçambicano, que as lutas camponesas da “era clássica da resistência” acabaram
por ser o germe da contestação que desembocaria na formação da Frelimo (Frente de
Libertação Nacional de Moçambique), um moderno movimento nacionalista que
encabeçou a guerra de libertação.
Para Isaacman, a “natureza do apelo, expressa em termos anticoloniais, e o
alcance da aliança que este apelo tornou possível, sugerem que a rebelião de 1917
ocupou uma posição de transição entre as formas primitivas de resistência africana e as
guerras de libertação de meados do século XX”. De maneira que “A revolta de 1917
constitui a culminação da longa tradição de resistência zambeziana e simultaneamente
se torna precursora da recente luta de libertação”. 282
Essa percepção longa, linear e indiscutível de tal temporalidade acaba dando
lugar a expressões panfletárias, implicando o uso de adjetivos positivos para caracterizar
os resistentes (como fez Ranger em citação acima, ao afirmar que as independências se
inspiraram em um passado heroico).
Contudo, apesar do diálogo inevitável entre o pragmatismo político dos anos
1960, 1970 e 1980 de um lado e a teoria historiográfica de outro não se pode reduzir
esta última à primeira. Henry Mwanzi é o autor que mais se esforça em demonstrar que
o projeto da HGA não compactuaria com os usos e abusos do passado insurgente. Diz
Mwanzi que os envolvidos nas lutas e movimentações políticas nacionalistas do pós-
segunda guerra tendiam a “considerar-se herdeiros de uma longa tradição de combate,
que remontava aos começos do século atual, se não a antes”. Tal ponto de vista,
continua Mwanzi, “é uma tentativa de utilizar critérios do presente – de utilizá-los
retroativamente – na interpretação dos acontecimentos do passado”.283
Em uma palavra:
têm-se aqui a única posição explícita de crítica e denúncia a uma visão anacrônica da
resistência.
Mesmo referenciando outros autores da HGA, Boahen em particular, Mwanzi
mostra-se, pelo seu posicionamento, como uma espécie de ponto fora da curva. Trata-se
do único autor que problematiza, de forma contundente, o suposto vínculo direto entre o
nacionalismo africano do pós-segunda guerra e as ações de insubordinação datadas do
início da invasão colonial. Sua crítica às elites africanas que encabeçaram as
282 Allen Isaacman, A tradição de resistência em Moçambique, Porto, Afrontamento, 1979, pp. 288, 290. 283 Henry A. Mwanzi, “Iniciativas e resistência africanas na África oriental, 1880-1914” In Albert Adu
Boahen, (Edit.), op. cit., pp. 167, 168.
98
independências vem cortante dentro da narrativa linear e homogênea que perpassa
grande parte dos demais escritos da HGA.
Sua assertiva mostra-se, por isso, como um aviso. Buscar, por meio de uma
perspectiva historiográfica, imune aos anacronismos da pragmática política, a mediação
necessária entre dois momentos, que, se comportam claras diferenças conjunturais,
possuem o mesmo vínculo causal: o colonialismo.
2.6.3. Tempo e Negação
Neste trabalho aceita-se, em parte, o ponto fundamental da argumentação
desenvolvida na HGA, que se refere especificamente à existência de uma relação entre
movimentos nacionalistas e oposições anticoloniais anteriores. Mas, atentando à
ressalva de Mwanzi, não concordamos com os termos em que esta relação é posta. O
regime de temporalidade que acompanha esta argumentação na HGA é incipiente para
tratar a questão em toda a sua complexidade. Em resumo: rejeita-se aqui a teleologia
implícita contida na argumentação dos autores da coleção, sejam tradicionalistas ou
“marxistas”.
Nesse regime de temporalidade subsiste a ideia de finalidade do processo
histórico. Por esta ótica as oposições coloniais desenvolvidas durante a expansão
colonial só ganham plena importância histórica se vistas enquanto predecessoras de algo
qualitativamente mais elaborado. Neste caso, o nacionalismo revolucionário. Ela existiu
com determinada finalidade, para ser superada em detrimento de um fim específico e
determinado por certo sentido da história.
Entretanto, como argumenta Lukács, o processo histórico “é causal, não
teleológico, é múltiplo, nunca unilateral, simplesmente retilíneo, mas sempre uma
tendência evolutiva desencadeada por interações e inter-relações reais de complexos
sempre ativos”. Por este motivo as orientações que o curso dos acontecimentos parecem
tomar “jamais podem, pois, ser avaliadas diretamente como progresso ou regressão”. 284
Naturalmente que aconteceram modificações qualitativas quanto às formas de
oposição anticolonial, tanto em seus meios de expressão discursivos, caráter de ação
concreto e estratégias. Mas tais modificações devem ser entendidas como expressão de
um todo processual.285
284 Gyorgy Lukács, Prolegômenos para uma ontologia do ser social, São Paulo, Boitempo, 2010, p. 70. 285 Idem, p. 112.
99
Não se trata, assim, de uma torrente que necessariamente deságua em um ponto
pré-fixado: o nacionalismo revolucionário da modernidade política. Ao contrário, é mais
um fluxo descontínuo de águas que se chocam entre si, interpenetrando-se. O
colonialismo não é, desse modo, a causa suficiente para haver resistência. Mas sim a
causa necessária para que haja este tipo de resistência que estamos discutindo.
A resistência, como bem definiu Alberto da Costa e Silva, desenvolve-se não em
linha reta, mas sim como um “V” invertido. Ela chega ao cume durante a expansão
colonial e, depois, já desce seguindo outra direção, quando das independências, grosso
modo. Ela, a resistência, serviu tanto para monarcas defenderem as suas “bandeiras de
vida”,286
na expressão de Costa e Silva, como para chefes de Estado da África
independente defender a União africana e um Estado de tipo ocidental. A isto
adicionamos que este “V” invertido, seja qual for linha dele que se analise, está
alicerçado em um mesmo chão, o colonial.
Essa percepção nos leva a um entendimento melhor, para o caso do conceito de
resistência na realidade africana, do que Lukács chamou de par categorial da
continuidade e da descontinuidade. Segundo ele “não há nenhum continuum sem
momentos de descontinuidade e nenhum momento de descontinuidade interrompe a
continuidade de maneira absoluta e total”.287
Toda a questão reside em mapear, na realidade histórica concreta, a unidade
fundamental que sintetiza determinada experiência histórica vivida que se desenvolve
através de um mesmo processo causal cuja evolução não conhece um fim específico
devido à descontinuidade que lhe é subjacente.
A resistência, encarada no meio desse complexo processual, produz sempre
categorias de maneira plural e dotadas de constituição heterogênea.288
Essas categorias,
ou “tipologias”, podem ser somente mapeadas na história concreta. Por este motivo, é
empreendimento vão pensar em grandes esquemas abstratos para captar a lógica da
resistência. As tipologias gerais – mesmo que assentes em categorias simples como
“primária” e “secundária” – não dão conta dessa heterogeneidade.
A resistência deve ser vista, portanto, enquanto processo, como já argumentado
em momento anterior. Mas cabe atentar para a natureza causal – e absolutamente não-
286 Alberto da Costa e Silva, entrevista. 287 Idem, p. 177. 288 Idem, p. 228.
100
teleológica – desse processo. Esteja esta teleologia implícita ou explicitada na
argumentação historiográfica ao correr da HGA.
Em termos mais complexos, isto implica dizer que não faz sentido pensar nos
movimentos nacionalistas enquanto herdeiros de um passado insubmisso contínuo e
linear. Da mesma forma, não faz sentido a ideia de uma resistência “tradicional” que
prepara o terreno para uma posterior “moderna”. Ambas – que em si constituem-se uma
unidade dialética – descendem de um mesmo evento causador: o colonialismo. Ambas,
portanto, descendem da mesma fonte: o colonizador que, em movimento contraditório-
reflexivo cria o seu duplo: o colonizado. A contradição dessa afirmação é decorrente do
caráter contraditório da história em sua concretude.
Talvez ninguém tenha expressado melhor essa complexa relação do que o
músico da Costa do Marfim Seydou Koné, o Alpha Blondy: “Somos um melting pot
cultural, mutantes culturais criados pelo Ocidente, seres desconcertantes. Vieram e nos
disseram: ‘Vamos colonizá-los’. [...] na metade do caminho, mudam de opinião: ‘isto
nos sai muito caro, sois independentes!’”. E conclui: “Sabes que está condenado a
reconhecer-me, não podes chamar-me bastardo: sou o fruto da sua cultura. Agora sou
projeção sua.”289
A afirmação do músico costa-marfinense nos leva a duas constatações
importantes: 1) O sujeito da resistência, o colonizado, é um sujeito-efeito.290
Efeito da
empreitada colonial, fruto dela ao mesmo tempo em que pode nega-la, e, quando se dá
essa negação há resistência. Com isso ele, o colonizado, co-participa no processo de sua
criação, bem como (re)cria, reflexivamente, a imagem do colonizador. 2) O
colonialismo deve ser visto enquanto um sistema de articulação eclética. Esta
articulação cria um mundo novo: a África propriamente dita, que não é outra coisa
senão construção contemporânea.
A África é um continente heteronômico. Na antiguidade, gregos e romanos
chamavam-na por Líbia ou Etiópia; durante o contato entre europeus e africanos, pela
via atlântica, não era incomum referir-se a ela como Guiné; da mesma forma, árabes
tinham-na por Bilad al-sudan, literalmente “o país dos negros”. Finalmente, África.
Nome que se consolidou com a experiência comum partilhada recente que foi a
289 Alpha Blondy apud Jean-François Bayart, op. cit., pp. 54, 55. É bem verdade que em certa ótica a
passagem de Alpha Blondy retira o agenciamento do sujeito africano. No entanto, naquilo que nos
interessa ela é certeira: o olhar reflexivo entre o colonizado e o colonizador. 290 Para usarmos os termos de Spivak que retornaremos de forma mais detalhada adiante.
101
colonização, nome que os habitantes desse continente adotaram. Portanto, um nome
próprio conquistado, tomado do colonizador.
A dominação colonial implicou um processo de reestruturação radical complexa
de costumes, práticas, configurações do imaginário e universos simbólicos, enfim, de
uma miríade de modus vivendi, anteriores à colonização. Não se trata, neste caso, da
“re-invenção” de um lugar. Ao contrário, trata-se, precisamente, de inventá-lo, ou, em
melhores termos, construí-lo a partir dos contornos legados pelo colonizador, conquistá-
lo. Definir a África nesses termos, como continente heteronômico, implica em enfatizar
o ato criativo subversivo. Tal não implica em uma suposta perda de sua “africanidade”.
Inversamente, ela é reforçada, pois foi o nome escolhido, conquistado, em meio à sua
trajetória heteronômica.
No entanto, cabe observar, isso não nos leva a considerar a colonização uma
faina pacífica ou benéfica. A relação colonial é, estamos cientes, realizada em condições
desiguais de exploração, subordinação por um lado, e resistência por outro. A
articulação eclética, longe de ser empresa fácil, implica antes uma ruptura dolorosa com
o passado, com a identidade que recobria os tempos pré-coloniais, os tempos em que
aquela terra possuía seus outros nomes. Sendo cada um desses nomes indicativo de uma
riqueza e complexidade tributária de períodos históricos passados próprios com suas
dinâmicas intrínsecas, longe, portanto, de qualquer metafísica baseada em um suposto
“grau de família”.
Por seu turno, os autores da HGA, comprometidos que estavam, em sua maioria,
com a agenda política pan-africana, determinaram o passado a partir do presente. O que
acontece é uma limitação do passado em relação ao presente. O juízo pode ser resumido
na seguinte sentença: “os heróis da resistência são os heróis das novas nações
africanas”.291
A presença do espelhamento entre o passado e o presente é perceptível.
Afinal, a causa pela qual os soberanos pré-coloniais se bateram “resta viva no espírito
de seus descendentes”, para lembrarmos esta valiosa citação de Boahen. Mas que causa
resta viva? A manutenção da soberania de entidades políticas que, em muitos casos, os
africanos sequer vivenciaram, pois não eram sequer nascidos? Ou a construção de um
Estado-nacional que estes antepassados nunca presenciaram, pois já estavam mortos?
291 Michael Crowder, West African resistance, New York, Africana Publishing Corporation, 1971, p.3.
Não por acaso, Crowder tanto compõe o volume VII da obra quanto, também, é um dos autores mais
citados nos artigos deste volume.
102
O fato é que a dor da perda da soberania é retratada, por certo, na HGA. Mas os
autores não problematizaram suficientemente que é a partir dessa perda que a própria
África nasce. A dor, nesse caso não é só de perda de algo, de mutilação, de fim. É dor
de início, de parto, como notou Hamidou Kane.292
Podemos mesmo inverter Beckett e
dizer que, neste caso, não só “O fim está no começo e no entanto continua-se”,293
mas
que, o começo está no fim e continua-se. A ruptura deste começo é mais profunda do
que os historiadores estavam dispostos a aceitar ao apelarem para um “grau de família”
intrínseco à realidade africana e para a existência de uma mesma “causa” – enquanto
intento político – entre os velhos soberanos destronados e as atuais gerações de
africanos.
Não enxergam na África uma construção presente, mas uma realidade pretérita
estática. A formação e os elementos centrais do discurso historiográfico expressam,
portanto, o estabelecimento conceitual de um território. Esse discurso estava
intimamente coadunado com uma corrente política específica, e a política funciona,
neste caso, como um “espelho em que a sociedade se olha, tomando consciência de si
mesma”.294
O problemático não é a articulação da escrita da história com a instância do
político, mas sim o fato de ela, a historiografia, assimilar, quase sempre sem maiores
mediações, a retórica política nacionalista pan-africana. Oblitera-se, assim, a riqueza
heteronímica do chão africano, os outros reflexos que poderiam haver no espelho, o
estabelecimento conceitual do território pode se dar de outra forma, mais plural, onde
todos os nomes sejam pronunciados.
Poder-se-ia apelar para a velha retórica croceana e admitir que “toda história é
história contemporânea” para aceitar e concordar com o tom discursivo da HGA.295
O
que seria simplismo. Esta máxima somente reforçaria o subjacente caráter teleológico
que norteia o conceito da resistência na HGA. Visto que parte-se da premissa segundo a
qual “os sucessivos pensamentos do passado formam uma cadeia compreensível que
conduz até, e alcança seu ponto culminante, no presente”. O historiador seria desta feita,
o “porta-voz da última vontade da história”, neste caso o nacionalismo pan-africano. O
momento presente seria, portanto, uma totalidade autossuficiente. 296
292 Cheikh Hamidou Kane, Aventura ambígua, São Paulo, Ática, 1984, p. 44. 293
Samuel Beckett, Fim de Partida, São Paulo, Cosac Naify, 2010. 294 Paulos Milkias; Getachew Metaferia, “Introduction” In ___; ___; (Edits.), The Battle of Adwa.
Reflections on Ethiopia’s historic victory against European colonialism, Nova York, Algora, 2005, p. 6. 295 Benedetto Croce, Teoria e storia della storiografia, Bari, Gius. Laterza & Figli, 1920, p. 4. 296 Siegfried Kracauer, op. cit., p. 104.
103
Entretanto, conforme argumenta Kracauer, se aceitarmos a premissa razoável
que o contexto histórico-social do historiador não é autossuficiente, mas, ao contrário,
“um frágil composto de iniciativas em permanente fluxo” a suposição de que tal
contexto modela unilateralmente e de forma última a mente do historiador tem pouco
sentido.297
Como acontece com os grandes artistas e pensadores, os historiadores são, mais
uma vez nas palavras de Kracauer, “monstruosidades biológicas” que engendram o
tempo que os engendrou. Eles pertencem ao seu período tanto quando ao passado.
Havendo, portanto, um fluxo que não aceita a linearidade e tampouco a dependência
para com o momento presente, visto que este mesmo não se encerra em si.
A orientação para o tempo presente – tendo sua importância e acontecendo, de
fato – não é, todavia, uma exigência metodológica.298
Não deve, portanto, ser justificada
enquanto imperativo teórico-metodológico. Trata-se, enfim, de não reduzir o tempo à
dimensão Cronos.
O mito é conhecido: Cronos, o poderoso titã, é filho de Urano e Gaia. Manteve
matrimônio com sua irmã Reia, que lhe deu seis filhos, os deuses olimpianos
originários: Héstia, Deméter, Hera, Hades, Poseidon e, por fim, Zeus. Cronos engolia
cada filho a partir do seu nascimento. Zeus, com a ajuda de Reia, sua mãe, escapa, vinga
e liberta os irmãos. A cronologia, que tem o titã Cronos em sua raiz, compreende tão
somente a dimensão sucessiva do tempo, seu caráter mais limitado.
Posta numa temporalidade cronológica a resistência apresenta-se tal qual o mito.
Cada iniciativa de insubmissão é engolida pelo titã colonial até que, finalmente, a
modernidade chega ao fenômeno e as lutas nacionalistas vencedoras vingam
retroativamente os seus parentes – vistos como irmãos ou pais – engolidos
anteriormente. A historiografia legitima essa lógica através de marcos cronológicos
mais ou menos definidos, postos em termos de “era clássica da resistência”, “resistência
primária”, “resistência secundária” e assim por diante. Feitas estas considerações
passemos pra um segundo ponto importante: a negatividade implicada na resistência.
A resistência, ao mesmo tempo em que é desencadeada pelo fato colonial
também o nega. Trata-se, precisamente, de um fenômeno que se alimenta da negação.
Em termos diretos, se um colonizado escolhe resistir ele acaba se afirmando e negando
o que encara como invasor.
297 Idem, p. 107. 298 Idem, p. 109.
104
Por exemplo, quando o soberano Behanzin afirmou, de maneira irredutível, que
“O rei do Daomé não dá o seu país a ninguém!”,299
ele estava empreendendo uma
negação à conquista ao mesmo tempo em que afirmava algo: sua soberania. Essa
proposição corresponde a uma realidade de tipo negativo: o colonialismo existe, mas
não deve existir. Isto é, faz-se necessária uma atividade social para torná-lo não-
existente. 300
Neste caso, tal atividade é a resistência.301
Foi afirmado anteriormente que é tarefa vã pensar em esquemas abstratos para
erigir tipologias para a resistência. Todavia estamos diante de algo muito maior do que
uma negação teórica. Não estamos construindo abstratamente uma ideia da resistência.
Ao contrário, estamos constatando que, no plano da práxis concreta do fenômeno, ele
tem a forma de negação.
Essas duas constatações – a da resistência enquanto fenômeno imerso a um
regime de temporalidade causal e a do seu caráter negativo - nos levam a pôr a questão
nos termos de Gayatri Spivak. O agente implicado na resistência é, por conta da
natureza causal do fenômeno em que está inserido, um sujeito-efeito. Ele é efeito do
discurso dominante ao mesmo tempo em que o nega.302
Não há espaço aqui para
esquemas mais ou menos cronológicos de sucessão temporal. Pois a natureza do
fenômeno e do sujeito que nele toma parte é sempre determinada por um mesmo bloco
histórico, o da dominação colonial.
Toda ideia de herança e de filiação entre “dois momentos da resistência”, posta
na esteira linear, está, portanto, fadada a entrar em discussões acerca do início de uma
etapa e esgotamento da anterior. Ficando cativa, sempre, daquela que se apresenta como
a mais nova feição da “longa tradição” da resistência anticolonial. Assim como, por
exemplo, a própria HGA ficou cativa de certos elementos discursivos do nacionalismo
pan-africano. Sendo refém, com efeito, de uma teleologia petrificante.
2.6.4. A ideia e o fenômeno
O grande perigo de colocar a resistência dentro de um regime temporal
teleológico é o de convertê-la em uma “ideia”. Ou, melhor dizendo, fazer da sua
evolução processual o desenvolvimento de uma ideia direcionada para determinado fim.
299
Conforme citado em Joseph Ki-Zerbo, História da África Negra. Vol. II, op. cit., p. III. Grifos nossos. 300 Gyorgy Lukács, Para uma ontologia do ser social. Vol. I, São Paulo, Boitempo, p. 219. 301 Cabe não confundir essa postura com a abordagem tradicionalista. Nossa ênfase é a enunciação em si,
que possui forma negativa, e não quem a pronuncia, isto é um soberano de linhagem. 302 Gayatri Chakravorty Spivak, Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte, Editora UFMG, p. 25.
105
Inversamente, enquanto conceito, a resistência deve permanecer categoria estruturante
da explicação do fenômeno sem, necessariamente, aceitar que ela, por si própria,
alcance o real “em toda a sua concretude e complexidade”.303
A respeito disso nos colocamos na esteira de Mangabeira Unger, para quem a
história “não é o desdobramento de uma ideia nem o aperfeiçoamento de uma máquina.
É luta aberta, sinistra, que atinge nível que os mais influentes modelos de teoria e
ciências sociais não conseguiram reconhecer”. 304
A resistência, conforme encarada pela historiografia que compõe a HGA – ou
pela maior parte dela -, assemelha-se muito, no plano argumentativo, ao desdobramento
de uma ideia, advindo daí seu caráter teleológico, ou ao “aperfeiçoamento de uma
máquina” que com as peças advindas da “modernidade” passaria a funcionar de maneira
cada vez mais satisfatória. Trata-se aqui, em termos epistemológicos e historiográficos,
de uma necessidade falsa.305
A resistência, encarada enquanto desenvolvimento de uma “ideia” perde
justamente seu diferencial epistemológico: o de expressar a luta aberta, sinistra, que
acontece no todo social.
Aceitamos, portanto, que nenhuma ideia consegue alcançar o real em sua
completude, mas não é preciso, necessariamente, rejeitar de antemão as tentativas de
explicação geral por meio de conceitos estruturantes para a sociedade e a história. 306
A
questão central é que tais conceitos estejam atrelados com os fenômenos que os digam
respeito, ao mesmo tempo em que sirvam de laço para uma experiência conjunta.
“Resistência” é um exemplo neste sentido. Se a resistência pode ser considerada uma
“ideia” ela não deve ter caráter teleológico. Pertenceria, antes, à classe de ideias que
Kracauer designou como “ideias históricas”.
Segundo o pensador alemão, as ideias históricas são generalizações na medida
em que derivam e remontam a um “núcleo duro de dados descobertos”. Contudo, em
303 Luís de Gusmão, O fetichismo do conceito. Limites do conhecimento teórico na investigação social,
São Paulo, Topbooks, 2012. Gusmão repete exaustivamente que a atenção do pesquisador deve voltar-se
para “o real em toda a sua concretude e complexidade”. Cabe observar, porém, que a tese de Gusmão é
aqui aceita com ressalvas. Partilhamos com ele a premissa de que a investigação histórica deve basear-se no vocabulário corrente sem ambicionar rupturas epistemológicas profundas com o “universo mental do
homem comum”. Rejeitamos, no entanto, o tom que reveste seu argumento quando se verte em um elogio
irrestrito e acrítico a qualquer trabalho ateórico. A falta completa de teoria pode ser, em casos específicos,
tão danosa quanto o fetichismo denunciado por Gusmão. Apresentando-se enquanto visão imparcial pode
esconder relevos ideológicos. Relevos estes que podem ser mais bem reconhecidos através de uma crítica
teórica. 304 Roberto Mangabeira Unger, Necessidades falsas, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 16. 305 Idem, Ibidem. 306 Idem, Ibidem.
106
simultâneo, devem-se considerar estas “ideias” enquanto fruto de uma acertada intuição
que vai além das generalizações porque leva a conotações e significados que não se
encontravam, originalmente, no material analisado.307
Com efeito, a ideia de resistência – como toda ideia histórica – é ao mesmo
tempo “correta” e “errônea”, visto que seu grau de validade dependerá exclusivamente
de sua fidelidade com a evidência disponível em cada caso específico de oposição
anticolonial. A significação duradoura que ganha a ideia de resistência relaciona-se a
essa capacidade de conectar o particular com o geral.308
A ideia de um conceito de resistência é um ponto nodal na prática
historiográfica, visto que põe a dialogar o concreto e o abstrato. Assim o é desde que
esta ideia não possua conotações teleológicas que abstraiam do próprio fenômeno em
sua concretude e complexidade, vendo-o só como etapa a ser vencida num fluxo
temporal determinado. Podemos falar de uma “ideia de resistência” que assuma somente
a natureza processual-causal, que não seja teleologicamente condicionada.
307 Siegfried Kracauer, op. cit., p. 135. 308 Idem, p. 137.
107
CAPÍTULO III
O CONCEITO - PARTE II
Resistência e Libertação Nacional
[...] os descendentes de ambos em suas relações com os fantasmas uns dos outros,
tendo entre eles o fantasma do velho sangue derramado e o velho horror e o ódio e o
medo.
William Faulkner, Luz em agosto.309
3.1. Introdução
Apesar de descenderem de uma fonte comum - cujo norte aponta para
Petersburgo -310
William Faulkner e Kenzaburo Oe possuem uma diferença capital: a
presença da redenção. Em ambos o passado é um peso que faz o indivíduo cindir. Em
Oe, no entanto, há espaço para um evento redentor que vem aliviar este fardo.
Em O Grito Silencioso,311
Oe narra a trajetória de Mitsu. Em meados do século
XIX um antepassado do personagem liderou uma revolta que marcou decisivamente o
povoado que a família habitava. Gerações depois, Mitsu tem dificuldade em administrar
essa memória familiar. Sujeito estranhado, não consegue se encaixar no tempo pretérito
e tampouco no presente. Curiosamente, encontra sua redenção rumando para a África.
Tal encruzilhada histórica e existencial é em muito semelhante àquela
experimentada pelos próprios africanos do pós-expansão colonial. A questão de fundo
é: como olhar para o passado. Quase sempre ele será um capital simbólico familiar a ser
revestido por um tecido político. “Resistência” torna-se, também, descendência, e vem
redimir o presente espoliado. Em seu último volume a HGA estará focada, dessa forma,
na libertação nacional, tida como herdeira de uma “tradição de resistência”.
Alguns indivíduos, no entanto, chegaram a crises pessoais por não saber onde se
encaixar. Perguntava-se um jovem africano às vésperas de organizar seu exército de
libertação nacional: “Era [eu] finalmente um literato inconsequente, um visionário ou
um assimilado político, condenado à solidão?”. 312
309 William Faulkner, Luz em agosto, São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 43. 310 Para remetermos à alcunha criada por Coetzee para designar Dostoievski. J. M. Coetzee, O mestre de
Petersburgo, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. 311 Kenzaburo Oe, O Grito Silencioso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983. 312
Manuel dos Santos Lima, As Lágrimas e o Vento, Lisboa, África Editora, 1975, p. 101. Lima foi
fundador e primeiro comandante em chefe do Exército Popular de Libertação de Angola (EPLA), que
formou a base do que mais tarde viriam a ser a FAPLA, Forças Armadas Populares de Libertação de
Angola, braço armado do Movimento Popular de Libertação de Angola – MPLA. O romance de Lima é
assumidamente autobiográfico sendo o personagem que se indaga a expressão do próprio autor.
108
3.2. Do protesto à resistência
3.2.1. Poder e protesto na África
O volume VIII da HGA é organizado pelo cientista político queniano Ali
Mazrui. Na altura em que este último tomo era publicado, 1993, Mazrui já se
encontrava entre os veteranos em temas da “resistência” e do “nacionalismo” africano.
Possuindo, inclusive, uma obra que antecedeu a HGA e que, seguramente, deve ser
considerada como um dos marcos fundadores do conceito de resistência. Dessa forma,
antes de adentrar no volume específico da HGA - e, consequentemente, nas discussões
acerca da resistência enquanto herança ou descendência - cabe uma análise desta
primeira fase produtiva de Mazrui.
Figurando-se como um dos mais importantes ensaios gerais para a HGA, a
coletânea Protest and Power in Black Africa (1970) além de contar com a coordenação
de Mazrui, trazia textos assinados pela vanguarda historiográfica especializada nos
temas da insubmissão africana. Assinam os capítulos nomes como Yves Person,
Michael Crowder e Douglas Wheeler. Todos os autores que compuseram esta obra
viriam a ser, posteriormente, quando não diretamente incluídos, recorrentemente citados
no volume VIII da HGA.
Enquanto editor Ali Mazrui optou por dividir o conteúdo de Protest and Power
in Black Africa nos seguintes tópicos: 1) Resistência à conquista; 2) Rebeliões
localizadas contra leis estrangeiras; 3) Oposição religiosa; 4) Emergência de política
partidária; 5) Oposição econômica; 6) Expressões literárias do descontentamento e, por
fim, 7) Revoluções e aspectos diplomáticos da África pós-independência.
É notável que “resistência” apareça como um dos aspectos a serem abordados e
não como o alicerce conceitual que entrelaçaria as diferentes temáticas. Assim acontece,
pois Mazrui elegeu, neste momento, o “protesto” para nomear a oposição africana ao
colonialismo. Em termos teóricos trata-se do mesmo “conceito”, isto é, do mesmo
significado epistemológico profundo, mas envolto em outra malha vocabular.
Fazendo uso, portanto, do “protesto” enquanto categoria estruturante, Mazrui
argumenta que é preciso dividir os movimentos de protesto africano em quatro
categorias. Sendo estas, respectivamente: protestos pela conservação; pela restauração;
de caráter transformador e, finalmente, protestos de censura corretiva.313
313 Ali A. Mazrui, “Postlude: Toward a theory of protest” In ___; Robert I. Rotberg, (Edits.), Protest and
Power in Black Africa, New York, Oxford University Press, 1970, p. 1185.
109
Os “protestos pela conservação” estariam vinculados a uma sensação de ameaça
que seus participantes nutririam frente a um perigo externo. Este fenômeno seria,
essencialmente, uma reação; um ato pela defesa de um sistema de valores comuns a
determinado grupo. Já os “protestos pela restauração” aconteceriam quando o estado de
coisas já tivesse tombado, vencido pelo inimigo externo. Os que encabeçassem este tipo
de protesto lutariam, nostalgicamente, para fazer o relógio da história retornar seus
ponteiros.314
Em contrapartida, os “protestos de transformação” seriam manifestações de uma
insatisfação profunda com o sistema de valores existentes, ou com o modo como se
organizam as relações do que Mazrui chamou de “sistema de penalidades e
recompensas de determinado grupo”.315
O que moveria este tipo de manifestação seria o
ímpeto a uma mudança social radical. Enquanto os dois tipos anteriores - o de
“conservação” e o de “restauração” - estariam com os olhos voltados para o passado,
esta outra categoria voltaria sua íris para o futuro.
A última categoria, os denominados “protestos de censura corretiva”, não estaria
relacionada com a manutenção de um sistema de valores, ou contra o modo como são
organizadas as penalidades e recompensas de dado grupo. Ao invés disso, seria uma
iniciativa “ad hoc” [sic] demandada para modificar aspectos específicos do conjunto do
sistema opressor. Apesar da forma como esta última categoria é nomeada, Mazrui
adverte que todas as anteriores também guardariam em si uma dose de “censura” ou de
“correção” relativamente às sociedades em que se inserem. 316
Para o intelectual queniano, a África ofereceria um material particularmente rico
para analisar as diferentes funções do protesto em situações sociais diversas e em
momentos diferentes do desenvolvimento histórico. Fazendo-se notar na história do
continente toda a tipologia por ele sugerida.
Esta rica matéria-prima que a África disponibilizaria seria resultado, para
Mazrui, de transformações sociais engendradas em um lapso de tempo relativamente
curto.317
O autor fala de um espaço de cem anos. Escrevendo ele no ano de 1970 estaria
314 Idem, Ibidem. 315 Idem, Ibidem. Literalmente: “system of rewards and penalties”. 316 Idem, Ibidem. 317 Idem, p. 1186.
110
se referindo, precisamente, ao início da expansão colonial até o momento das lutas de
libertação nacional.318
Considerando estas transformações radicais ocorridas de maneira acelerada,
Mazrui assegura que o fator “protesto” pode ser encarado como um dos indicativos da
mudança que leva da “tradição” à “modernidade”.
“Sociedades tradicionais” estariam, argumenta o autor, quase invariavelmente,
determinadas a preocuparem-se com problemas de conservação social e moral. Isto
porque “tradição” é definida por Mazrui como sendo a aceitação daquilo que é
“santificado pelo tempo”. Desse modo, as formas mais importantes de protesto em ditas
“sociedades tradicionais” seriam aquelas que prezassem pela conservação ou pela
censura corretiva. 319
O argumento prossegue afirmando que na África o compromisso com o passado
- perceptível em sociedades com um profundo senso do que ele chamou por “lealdade
ancestral” - resultaria em uma minimização de ações com caráter reformista. O autor
esclarece que isso não implicaria que essas mesmas sociedades desconhecessem a
mudança ou a transformação. Admiti-lo seria retroceder à mitologia colonial.
Entretanto, ele diferencia a “mudança” da “reforma”. 320
A “mudança” diria respeito àquilo que é inconsciente, a algo que os membros de
um grupo podem estar fazendo sem necessariamente estarem cientes ou mesmo
quererem. É um movimento automatizado. Já a “reforma” implicaria compromisso com
uma transformação conscientemente direcionada a algo específico. Desta feita, a
distinção entre a “tradição” e a “modernidade” seria, fundamentalmente, o
deslocamento que leva da resignação automatizada da “mudança” à consciência da
“reforma”.321
Resignação, na teoria de Mazrui, não seria, necessariamente, uma percepção
fatalista da realidade. Mas, tão somente, um senso de aceitação profunda do passado
como fator que atribui legitimidade ao presente. A “modernidade” aconteceria quando
esse espírito de resignação sucumbe frente ao de reforma social. 322
318 Lembre-se que por esta altura ainda se desenrolavam as guerras de libertação em Angola, Moçambique
e Guiné-Bissau. Mazrui, inclusive, oferece a coletânea a Eduardo Mondlane, líder nacionalista
moçambicano recentemente assassinado. Mondlane também foi professor universitário nos Estados
Unidos, assim como Mazrui. 319 Idem, Ibidem. 320 Idem, Ibidem. 321 Idem, Ibidem. 322 Idem, Ibidem, p. 1187.
111
Nesse sistema, o “protesto” seria um mecanismo necessário para a transição
entre, por um lado, o mundo da aceitação e da conservação e, por outro, o mundo da
reforma e do desenvolvimento. O fenômeno seria significativo porque testaria a
elasticidade de determinada estrutura social. Igualmente, mais do que expressar um
ponto de vista individual, ele seria o vetor de um imperativo ético compartilhado por
grupos inteiros.323
Nas relações sociais conflituosas que engendram o fenômeno do protesto – ou
que foram engendradas por ele – a situação pode chegar, eventualmente, a extremos, de
maneira que tudo o que é trocado entre aqueles que protestam e o seu alvo é a violência.
Nesse caso, segundo Mazrui, o protesto perderia a função de indicador discursivo, e a
própria sobrevivência de todo o sistema de resolução de conflitos poderia estar em jogo.
A total inflexibilidade das partes pode desembocar em uma revolução radical.324
Segundo o intelectual queniano, de maneira irresistível o protesto africano
assumiu caráter conservador quando do primeiro contato entre a África e as culturas
estrangeiras. Os chamados “movimentos de resistência primária” teriam sido, assim,
sintomas do protesto pela conservação.325
Posteriormente, já com o status quo colonial
estabelecido, os movimentos religiosos iriam animar a nostalgia do passado. Fosse essa
imagem do passado real ou imaginária. Seriam, portanto, protestos pela restauração.326
O que subjaz a essa discussão levantada por Mazrui é o problema da
determinação da “consciência social” ou “política” dos movimentos africanos de
protesto. Para ele essa determinação toca em pontos semelhantes àqueles abordados por
correntes do marxismo.
Nestas correntes de pensamento, afirma o intelectual queniano, o que
primeiramente diz respeito à “classe desprivilegiada” é o fato de ela ser consciente de si
enquanto classe. Em segundo lugar, se esta classe encontra-se consciente daquilo que
deve ser alvo de seu protesto. Em terceiro lugar, como ela pode reverter o estado de
coisas que lhes era desfavorável.
Em diálogo com o marxismo Mazrui afirma que o primeiro fato refere-se à
autoconsciência de grupo; o segundo à queixa coletiva; e o terceiro à aspiração
revolucionária popular. Dessa forma, estes “três níveis de consciência” encontrados na
323 Idem, Ibidem. 324 Idem, Ibidem. 325 Sobre a noção de “resistência primária” ver capítulo II deste trabalho. 326 Idem, Ibidem, p. 1189.
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teoria marxista seriam, também, perceptíveis no desenvolvimento da consciência
política africana.327
Remontando à clássica tipologia de Terence Ranger, Mazrui argumenta que caso
a “resistência primária” tenha sido um indicativo de perturbação da fé no mundo que se
despedaçava, a “resistência secundária” teria sido, em muitos casos, um sinal do
“despertar das consciências”. Poder-se-ia distinguir, desse modo, níveis de consciência
e atuação política diferenciados. A estes níveis Mazrui denominou de “consciência
política africana”; “consciência nacional africana” e “nacionalismo africano”. 328
Nas definições sugeridas por Mazrui a “consciência política africana” estaria
vinculada ao advento da modernidade em África. Seria decorrência de uma queixa
comum derivada de um pano-de-fundo de humilhação e desigualdade. Essa consciência
ter-se-ia tornado uma “consciência nacional africana” quando as razões dessas queixas
tornavam-se comuns e partilhadas.329
Já o “nacionalismo africano” estaria vinculado às reações também
compartilhadas. Subjacente a este nacionalismo haveria uma “consciência negra
nacional”. Ela adviria da percepção de que o Estado colonial já não era praticável e que
alternativas seriam possíveis. Nesse processo, em determinado momento, a política de
reivindicações se transforma em uma força mais positiva. A “Política” passa, enfim, a
ser definida como expressão das aspirações nacionais.330
Sendo o nacionalismo africano o nível de consciência mais elevado para Mazrui
ele seria, por certo, o protesto político, por definição. Quando as ambições do grupo que
encabeça as reivindicações se convertem em aspirações estritamente políticas haveria
uma inflexão no fenômeno. Assim acontece porque Mazrui está envolvido com a
integração continental impulsionada pelo nacionalismo pan-africano com vias a
construir a “Nova África”. Desse modo, o protesto, em si, seria um importante
instrumento no processo de modernização do continente que irromperia nessa “nova
África”.331
A construção dos novos Estados africanos – que começavam na altura em que
Mazrui publica seu estudo a formar o novo continente – viria acompanhada de ações
que incentivavam a coletivização dos meios de produção. Algo que geraria, para
327
Idem, p. 1190. 328 Idem, Ibidem. 329 Idem, Ibidem, p. 1191. 330 Idem, Ibidem. 331 Idem, p. 1194.
113
Mazrui, empatia coletiva ao mesmo tempo em que nacionalizaria o protesto.
Sentimentos como raiva e orgulho ferido, sendo coletivamente compartilhados, seriam
canalizados para e pelo Estado, de maneira a consolidar a nação através da retórica do
protesto.332
Dessa forma, a integração nacional é parte constituinte do processo de
modernização africano de maneira que o protesto, tornado atributo do Estado-nação,
desempenharia um papel relevante para superar a “tradição”. Entretanto, a função do
protesto não se limitaria à de gradiente modernizador ou integrador. Ele serviria,
também, como depósito de experiências, o que permitiria a um novo sistema social – a
África independente - dilatar sua capacidade de mudança.333
Em suma: o protesto seria, para Mazrui, um fenômeno social de amplas
implicações que só poderia ser corretamente apreendido com sólidos estudos de caso e
uma percepção teórica que atentasse para o seu alcance global no que diz respeito ao
caso africano.334
Percebe-se que, dentro das implicações desse sistema teórico, a
consolidação do Estado-nação - através da ênfase no caráter político do fenômeno do
protesto – é o aspecto principal.
Neste ponto cabe lembrar que a área de formação de Mazrui é a ciência política.
Mesmo quando se atém a realizar análises de contextos históricos precisos em sua
investigação, o autor sempre o faz a partir do terreno da teoria política. Por este motivo,
a política em Mazrui remete sempre à conflitualidade.335
Em termos de teoria política os
conflitos podem ter caráter agonístico ou antagonístico.336
Este último é o tipo que
interessa ao autor queniano.
Verifica-se que a definição do fenômeno da política é feita a partir de conflitos
entre os homens ou entre grupos sociais. Tais conflitos são diferenciados um dos outros,
na tese de Mazrui, de acordo com suas características intrínsecas: intensidade, agenda,
níveis de consciência, e assim por diante. A ênfase no conflito é tanta que chega a
lembrar a relação “amigo-inimigo” proposta por Carl Schimitt e ampliada por Julien
Freund como forma de definir o fenômeno político.337
332 Idem, Ibidem. 333 Idem, p. 1195. 334
Idem, Ibidem, 1196. 335 O mesmo vale para toda a historiografia que se ateve, neste momento, aos temas relativos à
insubordinação africana ao colonialismo. 336 Norberto Bobbio, Teoria Geral da Política, Rio de Janeiro, Elsivier, 2000, pp. 170, 171. 337 Idem, Ibidem.
114
O que diferencia bastante a teoria do protesto de Mazrui da conceituação da
política de Schmitt e Freund é o fato de estes últimos pensarem “o conflito” como
sendo, essencialmente, a guerra. A ênfase nesse caso recai sobre o uso da força. Já nas
categorias de protesto do autor queniano o uso explícito da força, ou a violência de
maneira mais geral, é somente uma das formas – a mais inflexiva, por certo – em que o
conflito pode chegar.
Outra diferença importante é que Mazrui escreve sua teoria pensando em um
contexto de mudança social: a libertação africana. Colocando-se, dessa forma, na
fronteira daquilo que Gramsci designou como sendo o “cientista da política” – aquele
que se move dentro da realidade efetiva – e o “político em ato” – aquele que toma a
realidade efetiva e procura transformá-la. 338
Tal caráter transformador é o que leva Mazrui a comparar a situação africana
com os problemas teóricos do marxismo. Corrente de pensamento que tem na
transformação social o seu mote principal. Afinal, para os que se colocam na esteira de
Marx, caberia não somente interpretar o mundo. Mas, também, transformá-lo.
A ênfase na dimensão política do fenômeno da insubmissão africana ao
colonialismo persistiria na obra posterior de Mazrui. A modernização da oposição
anticolonial faria dela algo cada vez mais politizado, mais “consciente”, melhor
direcionado. Sintomaticamente, o capítulo mais importante de todo o volume VIII da
HGA se intitula Procurai primeiramente o reino político.
3.2.2. Rumo ao reino do político
Anos depois de desenvolver sua teoria do protesto Ali Mazrui, agora editor do
volume VIII da HGA, parece realizar uma mudança tanto no seu vocabulário analítico
quanto nas categorias dele advindas. Parece ser menos um fenômeno de ruptura com sua
obra anterior e mais um processo de acréscimo ao seu modelo geral.
Atestando a continuidade com o primeiro trabalho o autor começa por repetir as
palavras daquele que, ao que parece, é seu inspirador: “Procurai primeiramente o reino
político e todo o restante vos será dado em suplemento”, sentenciou o ganense Kwame
Nkrumah, líder político e teórico das independências africanas.339
338 Antonio Gramsci, Quaderni del Carcere, Turino, Einaudi, 1977, p. 1577. 339 Kwame N’Krumah apud Ali A. Mazrui, “Procurai primeiramente o reino político...” In____; C.
Wondji (Edits.), História Geral da África. Vol. VIII, São Paulo: Cortez, 2012, pp. 126.
115
Segundo Mazrui, Nkrumah estaria convencido que a independência política era
o primeiro passo a ser dado na projeção de um futuro melhor para o continente. A
declaração derivaria “da ideia de primazia do político nos assuntos humanos”. Algo que
afastaria o pensador ganense do “determinismo econômico”. Dessa forma, conclui
Mazrui, “fosse um marxista por completo, Kwame Nkrumah teria proclamado ‘Procurai
primeiramente o reino econômico e todo o restante vos será dado em suplemento’”.340
Mazrui assume e faz uso de N’Krumah enquanto referência intelectual. A busca
pelo reino do político deve ser entendia, nesse contexto, enquanto a busca, então recém-
iniciada, da construção do Estado-nacional em África, algo representado logo na capa
deste volume da HGA.
Na imagem, usada como capa da edição original da obra, é possível ver o
corredor representando o africano – no singular – cumprindo seu percurso. Em sua mão,
a bandeira do continente. Ao seu lado, as bandeiras nacionais. À esquerda, os líderes
políticos que encabeçaram as independências, ilustrados como ramos ou frutos de uma
mesma árvore. O corredor se aproxima do reino do político. Ele é a representação
singular do plural formado pelos políticos a seu lado. A bandeira que carrega, do
mesmo modo, indica unidade africana dentro, e a partir de, um recorte nacional. O tom
teleológico-linear anteriormente discutido não se faz ausente. O maratonista tem uma
meta, um fim. Para alcançá-lo, conta com a proteção dos olhares solidários dos chefes
de Estado africanos.
340 Ali A. Mazrui, op. cit., Idem, Ibidem.
116
Além do tom teleológico – a ser posteriormente discutido -, há na expressão de
Mazrui um equívoco precisa ser problematizado. O problema reside na afirmação
segundo a qual o líder ganense Kwame Nkrumah não seria um “marxista por
completo”,341
dada a sua rejeição ao determinismo econômico e à ênfase do domínio
político na luta pela independência.
O marxismo com o qual Nkrumah se identificava – e, com ele, boa parte dos
demais líderes e teóricos africanos daquele período – estava vinculado à vertente
leninista que, originalmente, recusava o que chamava de economicismo vulgarizante e
propunha a ênfase na dimensão política da luta de classes. O próprio Lênin afirmou,
categoricamente, que “A política não pode deixar de ter a primazia sobre a economia.
Pensar o contrário é esquecer o abc do marxismo”.342
Este raciocínio encontraria seu nível mais sofisticado na obra de Gramsci que, na
esteira de Lênin, afirmou que as outras correntes filosóficas – além do marxismo –
deveriam ser analisadas em termos de seus conteúdos políticos, sendo, por conseguinte,
o conflito pela hegemonia uma luta que se desenrola no terreno político.343
Logo, se
admitíssemos a validade do raciocínio de Mazrui para o caso de Nkrumah teríamos de
estendê-lo a Gramsci e Lênin. Operação, no mínimo, problemática.
Toda contradição da afirmação de Mazrui reside no adjetivo “completo”. Se
existe um “marxismo completo” deve haver, por conseguinte, um marxismo
incompleto. Algo que, ao que parece, faz menos sentido do que pensar em termos de um
“marxismo não-dogmático” ou, nesse contexto, tão somente “leninista”.
Será justamente o marxismo-leninismo, coadunado ao contexto de libertação do
continente africano, que irá revestir as independências de originalidade teórica.
Conceitos como o de “neocolonialismo”, de Nkrumah, ou Uhuru na Ujamaa, do
tanzaniano Julius Nyerere, só podem ser corretamente apreendidos nessa associação.344
341 Conforme o original: “Had Nkrumah been a thorough-going Marxist he would have been tempted to
proclaim ‘Seek ye first the economic kingdom – and all else will be added unto it’” Ali A. Mazrui, “Seek
ye first the political kingdom” In ___; C. Wondji, General History of African. Vol. VIII, California, James
Currey/Unesco, 1999, p. 105. Estando, portanto, a tradução brasileira em consonância com o original. 342 V.I. Lênin apud Christinne Buci-Glucksmann, Gramsci e o Estado, São Paulo, Paz e Terra, 1980, p.
33. 343 Antonio Gramsci, op. cit., pp. 1379, 1381. 344 O neocolonialismo seria o domínio indireto das potências estrangeiras na África pós-independência
sendo, portanto, um desdobramento do imperialismo. Já o conceito de Ujamaa, de Nyerere, enfatiza o
comunalismo supostamente intrínseco ao contexto africano que priorizaria o envolvimento coletivo
mútuo. Seria tanto uma espécie de tradução cultural possível para o termo “socialismo” como uma
estratégia a ser utilizada para alcançar a liberdade, ou, nos termos de Nyerere, Uhuru. Para mais
consultar: Kwame N’Krumah, Neocolonialismo. Último estágio do imperialismo, Rio de Janeiro,
117
Entretanto, estes são conceitos desenvolvidos no pós-independência. Durante o
correr da luta independentista o conceito que agrega originalidade ao pensamento de
alguns teóricos africanos influenciados pelo marxismo-leninismo será, justamente, o de
resistência.
Dentre estes pensadores e ativistas, o guineense Amílcar Cabral foi,
possivelmente, aquele que mais se preocupou com o conceito de resistência. Em um
discurso pronunciado aos militantes do seu partido – o PAIGC, Partido africano de
independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde – ele sentenciou que a “resistência
desenvolve-se sob várias formas”, mas, primeiramente, sob a forma política: “primeiro
de tudo e no fim de tudo: Resistência Política”.345
Cabral, assim como Nkrumah,
incorre nessa ênfase justamente pelo marxismo e não a despeito dele.
Sublinhando, mais uma vez, que se trata de uma vinculação a uma corrente
específica do marxismo, aquela ligada a Lênin, a quem Cabral via como “uma luz
fecunda que ilumina o caminho da luta”.346
Só nesse contexto a afirmação de Nkrumah,
que Mazrui escolheu para iniciar sua reflexão, pode ser preenchida de seu pleno sentido.
De todo modo, Mazrui está correto ao afirmar que o “reino do político” era uma
“condição necessária” e não uma “condição suficiente” que, por si só, pudesse satisfazer
todas as aspirações do discurso de libertação. Desse modo, para Mazrui, Nkrumah teria
errado ao dizer que conquistado este reino “todo o resto vos será dado em
suplemento”.347
Admitidas as vantagens e limitações de se trabalhar com a assertiva de
Nkrumah, Ali Mazrui argumenta que na África Colonial a tomada da independência
aconteceu em quatro etapas que muitas vezes ter-se-iam entrelaçado umas às outras.
Em primeiro momento veio “uma fase de agitação das elites em favor de uma
maior autonomia”. Seguiu-se um período caracterizado pela participação “das massas”
na luta contra o fascismo. Por certo ele se refere à mobilização de tropas africanas
durante a segunda grande guerra. Com o fim desta surgiu a terceira fase que consistiria
“na luta não violenta das massas por uma total independência”. Finalmente, a fase
Civilização Brasileira, 1967. Julius Nyerere, Freedom and Socialism - Uhuru na Ujamaa,
Nairobi/London/New York, Oxford University Press, 1968. 345 Amílcar Cabral, Análise de alguns tipos de resistência, Lisboa, Seara Nova, 1975, p. 14. Grifos do
original. 346 Amílcar Cabral, Unidade e Luta – Vol. I. A arma da teoria, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 214. 347 Idem, Ibidem.
118
derradeira seria aquela em que irromperia “o combate armado pelo reino político: a
guerrilha contra os governos de minoria branca, sobretudo a partir dos anos 1960”.348
A forma como Mazrui caracteriza a primeira fase da sua sequência lembra,
bastante, a abordagem tradicionalista, anteriormente discutida,349
em que a ênfase recai
sobre as elites tradicionais como sujeitos principais da resistência.
A segunda fase, a da luta contra o fascismo, possui uma característica, a
princípio, contraditória. Afinal, os africanos serviram nas tropas das potências coloniais.
Sobre esse período, afirma Mazrui, “o conjunto da África teve que escolher entre o
imperialismo liberal e burguês e um imperialismo situado sob a insígnia de uma nova
ameaça – o nazismo e o fascismo”. 350
Longe de ser encarada como uma colaboração africana às potências coloniais, o
engajamento africano é visto como “uma fase particular da luta anticolonial”. Fase esta
em que a luta se dirigiria contra uma forma ainda mais perigosa do imperialismo,
encarnada pelo ideário fascista.351
A terceira fase, que compreende a movimentação pacífica pela independência,
fundava-se em organizações culturais e partidos políticos que atraiam o interesse da
“elite instruída”, no dizer de Mazrui. Apesar de a ênfase recair sobre a via discursiva e
não-violenta o autor inclui em seus exemplos a resposta armada etíope à ocupação
italiana.352
A quarta e última fase – o combate armado pela conquista do “reino do político”
- é aquela que merece a atenção mais detida de Mazrui. Nesse momento teria irrompido
“a mais potente força de oposição ao colonialismo” formada por africanos “que
começavam a se organizar melhor, a formular mais claramente suas exigências e, em
definitivo, a se armar melhor para lutar”.353
Doravante, a “resistência” aparece,
finalmente, em Mazrui.
Escreve o autor que “a resistência africana obedece a muitas tradições”. A tônica
já deixa entrever que - assim como na sua obra anterior, quando se fez valer do léxico
do protesto - ele se esforçará por apreender o fenômeno anticolonial em um modelo
tipológico rigoroso ao qual a realidade histórica tornaria discernível. 354
348 Idem, p. 126. 349 Ver capítulo anterior. 350
Idem, pp. 132, 133. 351 Idem, Ibidem. 352 Idem, 127. 353 Idem, p. 134. 354 Idem, Ibidem.
119
3.2.3. Tradições de resistência
Nesse momento Mazrui tenta definir suas categorias em termos de tradições de
iniciativas anticoloniais, que estariam divididas, respectivamente, em cinco tipos: 1) a
de tipo guerreira; 2) a vinculada à jihad; 3) a do radicalismo cristão; 4) da mobilização
política não violenta e, por fim; 5) a tradição da guerrilha, também denominada como
estratégia de luta armada pela libertação.
A dita “tradição guerreira de resistência” estaria vinculada ao conceito de
“resistência primária”, que Mazrui, mais uma vez, apropria para suas reflexões. Este
tipo de resistência seria “primária” em sentido cronológico, designando “a resistência
que se manifesta no momento da invasão e da conquista europeias”.355
Fato interessante, Mazrui também define “primária” como sendo a dimensão
cultural da resistência. Assim, essa resistência não estaria concentrada, de maneira
exclusiva, ao que aconteceu na época anterior às lutas nacionalistas. Mas, também,
naquilo que se enraizou “muito profundamente na tradição guerreira autóctone”. Sendo,
para Mazrui, o significado cultural mais relevante do que o cronológico.356
Como exemplo o autor cita o caso da revolta mau-mau encabeçada pelo povo
kikuyu no Quênia. Os combatentes dessa sublevação pegaram em armas em fins dos
anos 1950. Do ponto de vista estritamente cronológico não seria possível classificar a
revolta como “primária” visto que nessa altura a invasão e expansão colonial já era fato
consumado e pertencente ao tempo pretérito.
No entanto, culturalmente falando – para Mazrui - o episódio seria um exemplo
de “resistência primária” – nos termos de Ranger – ou “guerreira” – nos termos do
próprio Mazrui -, pois seus combatentes teriam se apoiado “sobre um conjunto de
valores guerreiros e de crenças religiosas muito propriamente pertencentes aos kikuyu,
tendo incorporado toda a simbologia de combate das culturas autóctones”. Logo, do
ponto de vista cultural, tratar-se-ia de uma “resistência primária” e, portanto, inserida na
dita “tradição guerreira da resistência”. 357
Para atestar que a “tradição guerreira” cumpriu sua trajetória ascendente,
desembocando na independência, o autor queniano recorre à anedota. Segundo ele,
Joshua Nkomo, combatente pela independência do Zimbábue, retornava ao país natal
em 1962, depois de amargar um exílio por conta de seu ativismo político.
355 Idem, p. 134. 356 Idem, Ibidem. 357 Idem, Ibidem.
120
Ao chegar, ele teria sido recebido por um sobrevivente das oposições do período
de expansão colonial. O ancião teria lhe dado um “machado dos espíritos” para
simbolizar o legado “das gerações marciais”.358
Da forma como Mazrui a descreve a “tradição guerreira” está vinculada a certo
simbolismo primordial presente nas religiões de caráter animista, nos cultos iniciáticos,
e numa espécie de estética marcial comum a toda a África Sul-Saariana. Esta categoria
mostra-se - tanto pela tônica de Mazrui como pelos exemplos por ele escolhidos - como
restrita a esta parte do continente, abaixo do grande deserto.
Isso acaba se desdobrando na segunda categoria elencada por Mazrui, aquela
vinculada à “tradição de Jihad”. Nesta tradição o autor insere as iniciativas que se
fizeram valer da “luta na via de Deus” de origem muçulmana para mobilizar a
resistência. Apesar de refletir, de início, sobre casos acontecidos na África sul-saariana
– tais como o famoso califado de Sokoto na Nigéria -, Mazrui se desloca rapidamente
para o norte do continente.
Na Argélia, exemplifica o autor, “a propensão a qualificar a população autóctone
como muçulmana teve como efeito o fortalecimento dos laços entre o islã e o
nacionalismo”. Dessa forma, mesmo partidos nacionalistas de inspiração “moderna”
seriam decorrência do “espírito de jihad”. 359
Afinal, escreve Mazrui, o martírio sofrido pelos argelinos “somente poderia
reacender a chama da tradição da jihad” de maneira que a Frente de Libertação
Nacional – movimento que encabeçou a independência – “reencontrou-se com o
glorioso combate travado no século XIX [...] [pelos] heróis argelinos” que se opuseram
à invasão francesa por meio da jihad. Sendo o exemplo mais notável desse “heroísmo
jihadista” o líder militar ‘Abd al-Kadir al-Jazairi.360
Também é citado o interessante exemplo egípcio. O principal líder da revolução
egípcia, Gamal Abdel Nasser, construiu um pensamento original que Mazrui resume,
corretamente, da seguinte forma: “A luta contra o imperialismo inscrevia-se [para
Nasser] [...], no contexto de três forças: a resistência islâmica, o nacionalismo árabe e o
pan-africanismo”.361
358 Idem, pp. 135, 136. 359 Idem, Ibidem, 137. 360 Idem, Ibidem. 361 Idem, Ibidem.
121
O líder egípcio mantinha distância, entretanto, dos círculos mais extremistas do
islamismo não se vendo em sua obra teórica acerca da revolução a própria palavra
“jihad”.362
Ao que parece – e isto não fica claro na argumentação de Mazrui – Nasser não
seria um exemplo de resistência a partir da “tradição de jihad”, mesmo que utilizasse o
islã em sua retórica. Falta ao líder egípcio a carga simbólica marcial de continuidade
com o passado das iniciativas feitas a partir da jihad. Talvez por isso fique difícil para
Mazrui tratá-lo como herdeiro de combatentes que se bateram em nome de Alá e não
contra o colonial-imperialismo.
Isso nos leva a crer que o tom é, mais uma vez, estético. Se anteriormente
avistou-se uma “estética guerreira”, vê-se agora “estética da jihad”, ligada a imagens de
origem muçulmana revestidas por tonalidades marciais. Algo que talvez faltasse a
Nasser, visto que sua retórica discursiva evitava a excessiva ênfase militar na política.
Afinal, como ele mesmo teria afirmado: “uma revolução nascida no sangue está fadada
a perecer no sangue”.363
Dando prosseguimento à construção de seu edifício teórico, Mazrui apresenta a
“tradição do radicalismo cristão”. Novamente, o substrato religioso é utilizado para
definir o tipo de resistência que se oporia às forças coloniais. Entretanto, ao contrário do
que acontece com a tradição de jihad – ligada ao islamismo – e com a tradição guerreira
– ligada à religiosidade “animista” ou mediúnica -, a tradição do radicalismo cristão é
objeto de uma problemática teórica interessante feita por Mazrui. Afinal, o cristianismo
foi, ele próprio, instrumento do colonialismo europeu.
Segundo o intelectual queniano o advento do cristianismo na África “engendrou
uma dialética no sentido quase hegeliano de contradição no plano da ideia”. Assim
aconteceu porque as escolas missionárias além de propagarem a fé em cristo também
promoveram, de algum modo, a propagação de “ideologias laicas ocidentais”. 364
Contam-se, dessa forma, os exemplos de Julius Nyerere, Eduardo Mondlane,
Kwame Nkrumah, e demais líderes nacionalistas, educados em escolas missionárias e,
posteriormente, políticos independentistas. O próprio Nkrumah afirmou ser “ao mesmo
tempo marxista-leninista e cristão sem confissão, não vejo aqui nenhuma contradição”.
362 O pensamento de Nasser será pormenorizado na sequência. 363 Gamal Abdel Nasser apud Ali A. Mazrui, “Procurai primeiramente o reino do político...”, op. cit., p.
138. 364 Idem, p. 139. Grifos do original.
122
Além desses “rebeldes laicos” o cristianismo também produziu africanos que, sendo
religiosos, recusaram o colonialismo.365
Fato notável, Mazrui insere nessa tradição somente as igrejas cristãs europeias.
A tradição religiosa cristã africana inexiste nessa parte do texto de Mazrui. Os etíopes,
por exemplo, que utilizaram seu cristianismo contra os invasores colonialistas não
aparecem referenciados.366
Estariam eles, de todo modo, inseridos no “radicalismo
cristão”? Tal como Mazrui a entende, ao que parece, não.
A outra categoria da lista seria a “tradição da resistência pela não-violência”.
Esta tradição, ao contrário das demais, está, de fato, ancorada em uma tática específica,
um modus operandi próprio que não depende, necessariamente, de um conteúdo
religioso apriorístico. Ficando menos cativa, portanto, de um tom estético-formalista.
Essa tática – ou, como chama Mazrui, “tradição” - estaria intimamente associada à
influência, em solo africano, da doutrina de Mahatma Gandhi e dos resultados da luta
anticolonial da Índia. 367
De fato, foi o próprio Gandhi que iniciou esta “tradição” na África quando, entre
os anos de 1906 e 1908, “conduziu a primeira campanha de desobediência civil lançada
na África do sul”. Este seria o marco fundador da “tradição” que, mais tarde – já nos
365 Kwame Nkrumah apud Ali A. Mazrui, Idem, Ibidem. É curioso que, Mazrui cite esta frase de
Nkrumah após ter afirmado que este não seria um “marxista completo”. O equívoco, de todo modo, reside
no adjetivo “completo”, conforme argumentamos acima. 366 Trata-se de um fato curioso, afinal, a vitória etíope sob o colonialismo – cuja base ideológica tinha
fortes vínculos em sua religião – teve um profundo impacto tanto na África quanto em sua diáspora. A
vitória da Etiópia teria mostrado, segundo Getachew Metafaria, uma possível saída para os povos africanos colonizados, sendo ela encarada enquanto um símbolo de sua dignidade e uma mensagem de
libertação que apontava para uma África unida e alto-suficiente, reforçando, assim, a retórica pan-
africana. Getachew Metafaria, “Ethiopia: A bulwark against European colonialism and its Role in the
Pan-African Movement” In ___; Paulos Milkias, (Edits.), The Battle of Adwa, op. cit. A importância do
cristianismo na resistência etíope é tamanha que os editores desta publicação começam por narrar Adwa a
partir do império de Enzana, ainda em no ano de 330 da presente Era. Isto é, quando se deu a introdução
da religião cristã em terras etíopes. 367 Cabe lembrar que a doutrina da não-violência, ou resistência passiva, foi desenvolvida por Liev
Tólstoi, sendo assimilada por Gandhi que a matizou com princípios hindus bastante semelhantes aos de
Tólstoi. Além do hinduísmo outras religiões de origem indiana se mostram próximas aos princípios da
não-violência. Tais são os casos do budismo e do jainismo. Ambos, Tólstoi e Gandhi, trocaram intensa correspondência e Gandhi escreveu a Tólstoi sobre os acontecimentos da luta antirracista na África do Sul
e sobre o uso da resistência passiva nesta. O velho escritor russo mostrou-se solidário com a causa do
jovem ativista indiano. O diálogo só foi interrompido pela morte de Tólstoi. Parte da correspondência
encontra-se traduzida em: Belkiss J. Rabello, “Correspondência entre L.N. Tolstói e M.K. Gandhi”,
Cadernos de Literatura em Tradução, Vol. I, nº. 9. São Paulo: Edusp, 2008, pp. 85-113. Assome-se a isso
a influência decisiva da própria experiência africana de Gandhi na formulação de sua teoria. Talvez tenha
sido justamente essa experiência que tenha feito a resistência passiva sair da argumentação e ir para a
prática. Sobre isso ver Joseph Lelyveld, Mahatma Gandhi e sua luta com a Índia, São Paulo, Companhia
das Letras, 2012, pp. 21 – 168.
123
anos de 1950 – se alastraria por outras regiões do continente sendo um de seus mais
notáveis utilizadores o líder zambiano Kenneth Kaunda.368
Finalmente, chega a última das “tradições”. Aquela que Mazrui chama de
“estratégia de luta armada pela libertação”. Para o autor, o primeiro ponto que
diferenciaria esta tradição de todas as demais anteriormente elencadas seria o seu forte
apelo internacional, algo que, possivelmente, escaparia às outras. Com efeito, “as lutas
armadas mais modernas – nas colônias portuguesas, na África Austral e na Argélia –
foram conflitos fortemente internacionalizados”, cujo exemplo maior seria o apoio
cubano à defesa da soberania de Angola. 369
O segundo elemento diferenciador seria o uso de armamentos e instituições
“modernas” no combate – algo que fugia às outras duas tradições marciais, tanto a
“guerreira” quanto a “da jihad” e escapa, por motivos óbvios, da “tradição não-
violenta”. 370
Dessa forma, a “tradição de luta armada” estaria modelada em termos do
discurso revolucionário moderno, incluindo em suas táticas ações de guerrilha e
sabotagem. Igualmente, a organização giraria em torno de movimentos sociais
politizados, partidos e/ou sindicatos, com a presença de um forte discurso
nacionalista.371
3.3. Protesto, resistência e tradições
3.3.1. A centralidade da resistência
A interpretação de Ali Mazrui tem como mérito e ao mesmo tempo como
espinha dorsal, a ênfase na dimensão política das iniciativas de oposição ao
colonialismo. No entanto, se sua área de formação lhe permitiu uma tipologia ousada e
globalizante – a mais ambiciosa de toda a HGA – ao mesmo tempo o fez cair em
algumas contradições com o seu modelo anterior, em que prezava pelo “protesto” e não
pela “resistência” enquanto termo classificativo.
A teoria do protesto de Mazrui mostra-se como aprofundamento das categorias
anteriores introduzidas por Terence Ranger. Se este último se limitou a uma
terminologia binária para a resistência – “primária” e “secundária” – o primeiro a
dissecou de forma a construir categorias analíticas mais específicas.
368 Idem, p. 140. 369 Idem, 143. 370 Idem, p. 143. 371 Idem, Ibidem.
124
Em seu famoso trabalho de 1968 Ranger, conforme visto anteriormente,372
se
limitou a conjugar as iniciativas ocorridas durante a expansão colonial – a “resistência
primária” – com os conflitos nacionalistas do pós-segunda guerra.
Pouco depois, Mazrui acrescentaria que as “resistências primárias” seriam
protestos pela conservação ou de caráter restaurador. Enquanto que o moderno
nacionalismo revolucionário estaria próximo do que chamou de “protesto pela
transformação”. Os “protestos de censura corretiva” seriam utilizados em ambos os
momentos.
A diferença básica entre Ranger e Mazrui talvez seja, principalmente, o fato de
este pensar suas categorias em termos temporais e aquele fazer o contrário, pensar as
temporalidades a partir das tipologias. Em Mazrui não é tanto o tempo em que o
protesto aconteceu que lhe confere sentido, mas seu modus operandi, sua forma de
organização e reivindicação bem como a formalização estética desse mesmo modus
operandi.
Em que pese estas aproximações e diferenciações possíveis para com a
historiografia de resistência que lhe era contemporânea, ou que por pouco lhe
antecedeu, por que Mazrui se fez valer, em um primeiro momento, do termo “protesto”
e não “resistência”?
A resposta a esta pergunta nos leva a uma das ideias básicas deste trabalho:
apesar de existir um conceito de resistência ele não foi, de fato, sistematizado de
maneira a criar um consenso epistemológico.373
Isso leva quase que inerentemente à
utilização de vários outros termos para designar um mesmo ato, o de se opor ao
colonial-imperialismo.
“Protesto”, nesse caso, parece ter sido utilizado por nele subsistir,
aparentemente, a mesma ideia básica de insubmissão e oposição que existe em
“resistência”. Dois vocábulos para um mesmo “conceito profundo”, isto é, uma mesma
ideia básica estruturante. Seguindo este raciocínio poderíamos abranger ainda mais o
leque vocabular e incluir: rebeliões, sublevações, insurgências, e assim sucessivamente,
em uma lista infindável de aparentes sinônimos de “resistência”, algo que não é
incomum na HGA. Entretanto, essa ambivalência terminológica advém de um
julgamento apressado e equivocado que só à primeira vista pode fazer sentido.
372 Ver capítulo II deste trabalho. 373 Com isso não estamos acusando o dissenso, apenas evidenciando sua existência. É justamente este
dissenso que cria a riqueza polifônica da historiografia de resistência.
125
Do ponto de vista propriamente semântico “protesto” não equivale à
“resistência”. Logo, se existir um conceito de protesto este deve ser essencialmente
diferente de um conceito da resistência, apesar do diálogo natural que pode haver entre
ambos os vocábulos. É Donald Crummey quem nos traz a diferença básica entre os
fenômenos e, por conseguinte, entre os conceitos que lhes fazem menção.
Em um estudo realizado em 1986,374
Crummey escreveu que os estudos sobre
protestos devem ser diferenciados daqueles que dizem respeito à resistência. Sua
justificativa é que o protesto implicaria a vocalização da insubmissão, enquanto que a
resistência poderia subsistir em meio ao silêncio.375
Estando correto, este juízo deve ser
aprofundado.
“Protesto” tem por origem o latim protestari, que significa “declarar
publicamente”. Uma declaração pública precisa ser necessariamente um exercício de
vocalização de uma determinada demanda reprimida. Um protesto deve ser público e
declarado vocalmente, para fazer sentido à própria palavra. A resistência, por seu turno,
não precisa desse imperativo.
Apesar de parecer abstrata à primeira vista a resistência não-vocalizada - que se
faz do silêncio enquanto tática - é tão verossímil e perceptível quanto a vocalizada. Não
se trata, aqui, de ficção teórica. Ao contrário, ela pode por vezes adquirir um caráter
ainda mais concreto que a resistência que se vale da vocalização. Isso se deve ao fato de
que o silêncio carrega sempre um nível de pessoalidade ao fenômeno da resistência.
Exemplos possíveis podem ser encontrados em fontes memorialísticas que,
eventualmente, ganharam forma literária.
Em seu conhecido romance A vida verdadeira de Domingos Xavier - escrito no
primeiro ano da guerra de libertação nacional angolana, 1961 - Luandino Vieira – ele
próprio militante nacionalista e preso político àquela altura – descreve cenas de tortura
nas quais o torturado, protagonista que dá nome à narrativa, se recusava a falar.376
Algo semelhante presenciou o “anônimo” Ambudo Momade. Este moçambicano
foi também encarcerado durante a luta anticolonial, tendo visto morrer sete pessoas na
prisão “entre eles Cambaco, que havia sido funcionário. Era chefe de posto da Palma.
374 Portanto no entretempo entre o primeiro trabalho de Mazrui – aquele em que emprega o termo protesto
– e o segundo – aquele que se reporta à resistência. 375 Donald Crummey, op. cit., p. 10. 376 José Luandino Vieira, A vida verdadeira de Domingos Xavier, Lisboa, Caminho, 2003.
126
Por se recusar a confessar relações ou dar informações da Frelimo era sempre
espancado e acabou por morrer à paulada”.377
Em ambos os casos, tanto na narrativa ficcional de Luandino quanto no
testemunho de Ambudo Momade, estamos diante da decisão pessoal de silenciar. No
entanto, o silêncio, enquanto tática, não se limita, necessariamente, a esta esfera mais
íntima do agente histórico. Assim como no protesto, ele pode assumir um caráter mais
coletivo e organizado, chegando, por vezes, a possuir um tom de aparente conformidade
com o contexto de submissão. Como relata o outrora combatente português em África,
João de Melo, em suas Memórias de ver matar e morrer.
Nos conta Melo que frente aos maus-tratos das autoridades coloniais “Toda a
gente guardou silêncio” para, em seguida - protegidos pela noite, dentro de suas cubatas
- trocarem palavras que demonstravam a insatisfação com o que se passava. Neste
momento, “O que um adiantava a dizer, os outros acenavam com a cabeça, como quem
aperta ainda mais o cerco e prepara o tiro de morte naqueles que estavam debaixo das
suas miras concertadas”.378
Estas demonstrações de resistência não-vocalizada coadunam-se com as
reflexões de Pollak, para quem “o silêncio sobre o passado longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais”.379
Da mesma forma, o silêncio em um momento presente não é,
necessariamente, aceitação do poder hegemônico vigente. Ao contrário, pode ser a sua
negação.
Nestas situações confrontamo-nos com a mesma pergunta feita por Gayatri
Spivak: Pode o subalterno falar?380
Para os casos utilizados aqui como exemplo essa
indagação deve ser tomada em seu sentido literal. Pode o sujeito africano – posto em
posição subalterna em um contexto colonial – falar, isto é, expressar vocalmente sua
insubordinação?
A esta pergunta seguem-se outras, conforme aponta Edward Said. Afinal de
contas, quando a noção de poder eurocêntrica imaginaria que nativos, que pareciam até
então subservientes e taciturnos, algum dia fossem capazes de fazer a própria Europa
desistir de sua empreitada colonial? Ou mesmo fossem capazes de dizer, de vocalizar,
377 VV. AA, Tortura na Colónia de Moçambique 1963 – 1974. Depoimentos de presos políticos, Porto,
Afrontamento, 1977, p. 47. 378 João de Melo, A memória de ver matar e morrer, Lisboa, Prelo, 1977, pp. 261, 262. 379 Michael Pollak, “Memória, esquecimento, Silêncio”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação
Getúlio Vargas, Vol. 2, n. 3, 1989, p. 5. 380 Gayatri Chakravorty Spivak, op. cit.
127
qualquer coisa que pudesse contrariar a lógica discursiva então vigente?381
Acrescentaríamos a estas indagações que o próprio silêncio taciturno estava revestido
por um verniz, por vezes aparentemente incolor, de resistência.382
Este silêncio não pode, no entanto, ser objeto de fetichismo teórico resumido em
sentenças do tipo: “silenciam porque resistem”. Não se trata, absolutamente, de um
pressuposto teórico. O que vai determinar se o silêncio foi usado como tática de
resistência será o próprio contexto histórico e seus registros nas fontes.
Em um primeiro momento pode-se deduzir que este tipo de resistência necessita
de noções como “micro-poderes”, retiradas de um vocabulário próximo a Michel
Foucault. Afinal, essa resistência ocorre na órbita da aldeia ou da escolha pessoal e não
na esfera do grande jogo político. Essa dedução seria equivocada. Como argumentou
Spivak: apesar de teoricamente cativante, a noção foulcaultiana de poder pode, na
verdade, conduzir a uma visão mistificadora da realidade social.383
Com Edward Said afirmamos que, muitas vezes, a noção foucaultiana de poder
oblitera o papel das classes, da economia e, finalmente, da insurgência e da rebelião.
Elementos estes essenciais para a análise da insubmissão africana no contexto colonial.
Bem como para a existência de um conceito da resistência. Esquecê-los seria pôr de
lado a própria ideia de que seja possível resistir. 384
381 Edward W. Said. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 24. 382 O dito teológico segundo o qual “o invisível é parte do visível” talvez encontre aqui uma bela
expressão secular. Claro que este invisível só pode ser captado se estiver, em alguma medida,
documentado para que, sob o olhar cuidadoso do investigador, ele possa vir à luz de maneira mais
explícita. Não por acaso a esta instância de atuação do engajamento social J. Scott chamou de “infra-
política”. Para mais ver James. C. Scott, op. cit.. 383 Gayatri Chakravorty Spivak, op. cit., p. 57. Não reduzimos a tese de Spivak à ideia de resistência. Da mesma forma, usamos sua crítica, e a de Said abaixo, à Foucault somente como indicativo de nossas
orientações teóricas. 384 Said chega a se indagar: “Que resistências foram feitas à ordem disciplinária e por que, como defendeu
Nicos Poulantzas em Estado, política e socialismo, Foucault nunca analisa as resistências, que sempre
acabam dominadas pelo sistema que descreve?”. O problema, continua Said, reside na “utilização que faz
Foucault do termo pouvoir se estendendo demasiadamente, tragando qualquer obstáculo que se encontra
em seu caminho (as resistências a ele, os fundamentos econômicos e de classe que o atualizam e
alimentam, as reservas que acumula), excluindo completamente a mudança e mistificando sua soberania
microfísica”. Edward Said, El mundo, el texto y el crítico, Buenos Aires, Debate, 2004, pp. 326, 327.
Trata-se de uma crítica mordaz e bem embasada à Foucault e à sua “microfísica do poder”. A tese do
filósofo francês é, por certo, aparentemente esclarecedora, especialmente ao falar do poder enquanto “algo que só funciona em cadeia” sendo “exercido em rede [...] [e] nunca estando nas mãos de alguns”.
No entanto, trata-se de uma abstração teoricista que pouca relação mantem com o real. Certamente, a
abstração foucaultiana não estava nas mãos dos torturadores do moçambicano Cambaco. O que estava nas
mãos destes eram seus objetos de tortura, legitimados em uso por uma determinada ideologia. Para
Foucault, entretanto, o poder só circula, em redes, através de “aparelhos de saber que não são construções
ideológicas”. Michel Foucault, Microfísica do Poder, São Paulo, 2009, pp. 182, 183, 186. Ao fim, têm-se
um tom mistificador e obscurantista das ações humanas, como bem apontou Said e Spivak. Este tom
aplicado aos casos por nós analisados não seria esclarecedor nem do ponto de vista teórico e tampouco do
ponto de vista interpretativo.
128
Chegamos, assim, a outra diferença essencial entre “resistência” e “protesto”. A
primeira palavra possui um núcleo ético que escapa a todos os seus possíveis sinônimos.
Como assegura Alfredo Bosi, o sentido mais profundo de “resistência” é “aquele que
apela para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é
opor a força própria à força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é
de/sistir”.385
Ao assumir este conceito o intelectual retorna à esfera da “responsabilidade
institucional”, de que fala Said, ao que é seguido por Spivak,386
assumindo um
compromisso ético diante do seu objeto e da sociedade em que ele mesmo se insere no
momento em que realiza a pesquisa.
Declinam-se dessas considerações duas conclusões: 1) Todo protesto é, por
definição, um ato de resistência. Entretanto, nem todo ato de resistência é,
necessariamente, um protesto. O protesto seria somente aquela resistência que chegou a
ser vocalizada, experimentada no terreno público aberto. 2) Por possuir um núcleo ético
mais profundo e um significado bruto mais abrangente é a “resistência” e não o
“protesto” que deve ser encarada como palavra representativa de um conceito.
Todos os demais termos que na HGA, bem como em outras obras, aparecem
como sinônimos da resistência devem ser vistas como expressões conjunturais ou
significados contextuais da mesma. Assim, nossa argumentação se estende do
“protesto”, para a insurgência, a sublevação, a revolta, e assim sucessivamente. Nessa
indistinção clara entre o “protesto” e a “resistência” ou, melhor dizendo, na escolha de
ter privilegiado o primeiro termo e não o segundo para forjar um conceito político-
historiográfico, é que reside o maior problema da primeira fase da obra de Mazrui.
Outro aspecto relevante é que neste momento o que interessa para o autor
queniano é a formação do Estado-nação, a consolidação da soberania política. Em uma
palavra: a conquista do “reino do político”.
Na HGA ele amadurece este raciocínio e passa a empregar o termo “resistência”
em suas análises. Talvez o fato de o volume precedente da obra ter utilizado
exaustivamente este vocábulo, enquanto conceito, tenha pesado nessa substituição
terminológica. Por si só o fato de ter grafado a ação anticolonial sob o signo da
“resistência” pode ser considerado um avanço em relação ao ensaio anterior.
385 Alfredo Bosi, Literatura e Resistência, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 118. Grifos do
original. 386 Gayatri Chakravorty Spivak, op. cit., p. 58.
129
3.3.2. As fronteiras das tradições
A ênfase na dimensão política do fenômeno da resistência é, certamente, a
característica mais saliente do “modelo Mazrui”. Entretanto, há um ruído de fundo na
forma como ele encara essa dimensão que deve ser considerado. Em resumo: sua tese
pressupõe que os movimentos de resistência estavam marchando para o “reino do
político”. Sendo este sintetizado, ou mesmo reduzido, à formação do Estado-nação.
Trata-se de uma argumentação que Mazrui mantém tanto na sua obra de 1970,
acerca do protesto, quanto na HGA. Há, neste tipo de argumentação, uma diferença,
ainda que não de todo explicitada, entre o pré-político e o político por excelência.
Mazrui, a exemplo dos autores do volume anterior da HGA, segue a clássica
definição de Hobsbawm para quem os agentes “pré-políticos” seriam aqueles que não
contavam com uma semântica clara, específica, para expressar suas aspirações. Só os
movimentos sociais “modernos” poderiam ser considerados políticos por excelência.387
Essa é a lógica dual que subsiste em toda a historiografia da resistência da HGA, tendo
em Mazrui uma de suas formas mais bem acabadas.
Dessa forma, todas as “tradições” elencadas por Mazrui possuem sua
importância assegurada por se encaminharem para o “reino do político”, ou, então, por
já estarem dentro dele, como no caso da “tradição de luta armada pela libertação
nacional”. Trata-se de um esquema teleologicamente formatado. Além disso, nota-se a
presença de mais dois problemas: primeiro, o fato de o autor realizar sua conceituação
da resistência em uma tipologia que mistura atributos; segundo, por fazer da “tradição”
seu mote principal.
Tradição, para Mazrui, parece ter o mesmo significado que para os autores do
volume VII da HGA. Ela está associada a ideias de continuidade, manutenção e
linearidade. O passo que Mazrui dá em relação ao volume anterior da HGA reside no
reconhecimento da existência de várias tradições diferentes. Todavia, continuam
presentes as ideias básicas da argumentação anterior. A “tradição” - seja ela de que tipo
for - só existe no tempo linear da continuidade e só é atribuída de sentido se associada
aos movimentos de libertação nacional e às noções de modernidade política. Outro
problema reside nos pontos escolhidos pelo autor para caracterizar a resistência. Isto é,
nos atributos escolhidos para a conceituação.
387 Ver capítulo II.
130
Um fenômeno - qualquer que seja - para ser conceituado, precisa de um
imperativo categórico que o acompanhe e que o diferencie dos demais. Este imperativo,
ou atributo, precisa ser o mesmo utilizado para diferenciá-lo de outros fenômenos e,
portanto, de outros conceitos. O atributo pode ser definido em termos discursivos,
formais, temporais, simbólicos, estratégicos, e assim por diante. O importante é que seja
exatamente o mesmo fator diferencial usado para definir os conceitos que espelham os
fenômenos estudados.
Mazrui inscreve suas tradições em termos simbólicos e culturais, em um
momento. Já em outro momento usa a da religião como o atributo diferencial e, por fim,
este atributo passa a ser a estratégia. Há uma mistura de atributos definidores, algo
problemático para qualquer tipo de conceituação.
A “tradição guerreira”, por exemplo, está vinculada a certos ritos de iniciação e a
certos elementos típicos da religiosidade “animista”, mediúnica ou espiritualista. Ela
vem acompanhada por elementos mágicos que passam de mão em mão, de geração em
geração. Chegando, obrigatoriamente, às mãos dos independentistas modernos. O tom
teleológico do argumento é perceptível à primeira vista.
A “tradição de jihad” também é definida em termos religiosos e, assim como a
“guerreira”, sua tônica é marcial e linear. A diferença reside, no entanto, na crença. Ao
invés dos cultos animistas estamos diante da palavra de Alá e seu profeta. A distinção
entre ambas se faz a partir, portanto, de um imperativo comum: a religião. Um mesmo
atributo diferenciador. Até este momento não há maiores problemas.
No entanto, Mazrui admite que a “tradição guerreira” também seria “primária”,
afinal foi a primeira das iniciativas anticoloniais. Mas acontece que a jihad também
esteve presente no primeiro momento da invasão colonial. O que impede, portanto, de
tratá-la como uma “resistência primária”? Em suma: o tempo e a estratégia são iguais.
Ambas se desenrolam durante a expansão colonial e ambas tem por modus operandi o
espírito de guerra, o que torna artificial o adjetivo “guerreira” – ou “primária” - para
caracterizar uma delas apenas.
Já a “tradição do radicalismo cristão” apesar de definida em termos religiosos –
em aparente coerência com as demais – não vem acompanhada, necessariamente, da
ênfase no fator marcial. O caso que poderia conjugar a cruz com a espada não é citado
por Mazrui. A guarda imperial etíope não é usada como referência.
Trata-se de um fato curioso, visto que Menelik II – o Negus do império etíope na
altura da primeira invasão italiana – se fez valer da ênfase religiosa no seu discurso
131
mobilizador. Este também seria um exemplo de “resistência primária”, conjugada,
outrossim, pela experiência de um “radicalismo cristão”?
Com efeito, o atributo distintivo que Mazrui elegeu permite que ele diferencie
iniciativas anticoloniais que poderiam, sob outro aspecto, usarem o mesmo rotulo
tipológico: “primária”, “pré-política”, “armada”, “tradicional”, e assim por diante, como
se queira. Mas admitamos que Mazrui use da religião como atributo distintivo. Se for
este o caso, não estaríamos, ainda, diante de uma contradição radical em seu modelo
visto que as três tipologias em questão vivem sob a sombra de algum deus e/ou espírito
ancestral.
Todavia, na continuação do seu argumento, quando fundamenta as suas outras
categorias, Mazrui sai da seara do fator religioso e realiza uma conceituação com base
no que chamou de “estratégia”. A estratégia também é citada nas tradições anteriores,
entretanto, por serem fundamentalmente as mesmas em duas delas – isto é, estratégia
armada com forte simbolismo marcial – não pode ser tomada como atributo diferencial.
O autor faz referência a uma “tradição da não-violência” definida em termos
homônimos como uma estratégia pacífica, relacionada, sobretudo, com a figura de
Mahatma Gandhi. Usando do mesmo fator diferencial Mazrui fala da “tradição de luta
armada pela libertação nacional”. Ao contrário da tradição anterior a força mobilizadora
desta residiria na via armada e na formação de guerrilhas e partidos políticos com apelo
à comunidade internacional.
De partida, é visível a mudança de atributo diferencial destas tradições para com
as anteriores. Passa-se da religião e do simbolismo para o modus operandi propriamente
dito. Algo que, por si só, já torna o empreendimento teórico em questão problemático.
O novo fator distintivo é a “estratégia”. Essa confusão e mistura de atributos distintivos
é, sem dúvida, um fator passível de crítica em Mazrui.
Poderíamos tentar salvar este edifício teórico ao colocar a discussão nos termos
de Michel de Certau, distinguindo entre a “tática” e a “estratégia”. A tática existiria
somente em relação a um outro, sem possuir lugar próprio, sendo “arma do fraco”,
“sinônimo de astúcia”. A estratégia, ao contrário, seria determinada pela detenção de
um poder, um postulado próprio, lugares teóricos que lhe conferem inteligibilidade,
seria “gesto cartesiano da modernidade”, nas palavras de Certau.388
388 Michel de Certau, A Invenção do Cotidiano. Vol. I. Artes de Fazer, Rio de Janeiro, Vozes, 2007, p. 97.
132
Seria uma forma de salvar a tipologia de Mazrui afirmando que as tradições de
jihad, guerreira e do radicalismo cristão inserem-se no plano da tática e a tradição não-
violenta e de luta armada nacionalista seriam estratégias propriamente ditas por
possuírem um lugar de atuação que buscam conquistar em definitivo: o Estado.
Todavia, admitir a tese de Certau, para este caso, seria persistir em um regime de
temporalidade teleologicamente condicionado.
Em um momento existe o “pré-político”, que se nutre da tática e que deve seguir
rumo ao “político”, que deve seguir, por sua vez, rumo à estratégia. Tratar-se-ia de uma
falsa solução para um falso problema que persiste por se fazer valer, direta ou
indiretamente, da lógica binária “tradição versus modernidade”.389
Talvez a lógica
binária em questão seja menos relevante do que todos os modelos até agora elencados
parecem supor. Sejam aqueles presentes na HGA, sejam os demais disponíveis em
outras obras marcantes. O nacionalismo revolucionário pan-africano surge, nesse
interim, como “tipo ideal realizado na evolução histórica”, para usar a expressão de
Thompson.390
Acreditamos ser mais frutífero atentar para o caráter desigual e irregular das
transformações da resistência, tomada enquanto fenômeno concreto. Descobrindo,
assim, elementos “tradicionais” no período “moderno” e vice-versa sem engendrar em
uma fórmula opositiva em que um seria desenho acabado e o outro rascunho preparativo
feito às pressas, intempestivamente. No afastaríamos, assim, de tipos ideais
historicamente evolutivos.
Recusamos, com isso, a acepção linear que carrega o termo “tradição” em todos
os trabalhos, incluindo o de Mazrui. Apesar de este se esforçar por estabelecer
“tradições plurais” estas possuem fronteiras pouco visíveis e são conceituadas a partir
de fatores diferenciais distintos que misturam atributos.
389 É ainda justamente este falso problema que persiste na teoria social contemporânea tomada mais
amplamente. Slavoj Zizek, por exemplo, chega a se pronunciar contrário à “fórmula da resistência”. Em
suas palavras: “não gosto da fórmula da resistência. Aceitamos que o poder existe, resistimos e
começamos a gozar com a resistência. Acho que é preciso tomar uma decisão. É claro que agora não
podemos deixar de resistir, mas qual é nossa verdadeira meta? Não gosto da posição crítica que não assume uma responsabilidade — o Estado existe, nós o criticamos, mas precisamos manter distância.
Nesse sentido, sou muito pragmático: se não há alternativa, prepare-se para sujar as mãos”. Isto é, a
resistência, reduzida à mera “tática”, ou – para o nosso caso – como elemento da “tradição” -, não teria
por alvo a tomada do Estado. Entretanto, a tomada do aparelho de Estado não exclui, necessariamente, a
resistência, o que torna a afirmação de Zizek só em parte verdadeira, isto é, naquilo que se refere às obras
específicas de Michel Foucault, Alain Badiou e Judith Butler, citadas pelo autor esloveno. Slavoj Zizek,
Entrevista concedida a Rogério Bettoni e Bernardo Malamut, Disponível em
<http://umbigodascoisas.com/2012/12/02/slavoj-zizek-entrevista> Acessado em 20 de Maio de 2014. 390 E.P. Thompson, A miséria da teoria, op. cit., p. 57.
133
Amalgamam-se, no argumento de Mazrui, elementos diferenciadores como o
tempo, o discurso, a estratégia, a lógica simbólica. Desembocando, assim, em fronteiras
artificiais e conceituações arbitrárias. Isso nos leva a concluir que a resistência não tem
por fim último a tomada do Estado, ou a construção da Nação. Estas podem ser, tão
somente, uma de suas consequências, tudo vai depender do contexto histórico em que
ela esteja circunscrita.
Se encararmos a construção do Estado-nação, ou – o que dá no mesmo - a trilha
que leva ao “reino do político”, como fim último da resistência, estaríamos retirando
elementos históricos de seu contexto original, submetendo-os a um processo de
estetização para, em seguida, recorrer às suas supostas semelhanças classificando-os em
tipologias e inserindo-os em uma narrativa política que lhes era originalmente estranha.
É justamente este o procedimento adotado em grande parte dos casos, incluindo Mazrui.
Qualquer constructo teórico-historiográfico que encare a “modernidade” -
encarnada pelo “Estado-nação” -, como ponto culminante de uma “tradição de
resistência”, estará fadado a confundir duas instâncias diferentes do conceito de
resistência.
Uma dessas instâncias diz respeito à historicidade própria a um evento
específico de iniciativa e oposição anticolonial. A outra é relativa aos fenômenos de
ruptura, continuidade ou antecipação que acontecem no interior dessa historicidade.391
Obliterando-se estas duas instâncias e incorrendo em um processo de “afinidade
seletiva” desagua-se em um vínculo muitas vezes artificial entre as independências e as
iniciativas anticoloniais do final do século XIX.
3.4. A resistência nos estudos de caso
Além de a resistência ser trabalhada por Mazrui enquanto categoria analítica
estruturada em tipologias, ela também aparece na HGA em estudos de caso com
ambições mais locais ou regionais.
Curiosamente, algumas ocorrências da “resistência” acontecem não em sua
presença, mas em sua ausência. Como, por exemplo, acontece com Tayeb Chenntouf ao
trabalhar com o chifre da África e a África setentrional. Chenntouf possui um
391
Para chegar a essas conclusões foi útil, e inspirador, os preceitos de Jacques Rancière acerca das
relações entre o estético e o político. Jacques Rancière, A partilha do sensível. Estética e política, São
Paulo, Editora 34/Exo Experimental, 2009. Rancière empreende a mesma crítica às noções de
modernidade e tradição, só que no plano do estético. Aplicamos seus preceitos – de forma mediada – ao
terreno da política e da resistência.
134
vocabulário baseado no léxico do nacionalismo africano. Não tendo, entretanto, a
“resistência” grafada diretamente em seu texto.
A despeito disso, ele conclui sua análise afirmando que os anos que perpassam a
segunda-guerra não constituem o ponto de partida para a política nacionalista do
continente. As raízes seriam “mais antigas e complexas” e emergiriam “com a
aceleração dos seus processos formativos”.392
Este raciocínio de Chenntouf só pode ser
corretamente apreendido se articulado ao conjunto da obra. As raízes antigas de que fala
remetem diretamente ao vínculo entre nacionalismo de massas e iniciativas anticoloniais
do século XIX e princípios do XX.
Já no artigo assinado por Majhemout Diop - em colaboração com David
Birmingham, Ivan Hrbek, Alfredo Margarido e Djibril Tamsir Niane -, a resistência é
graficamente visível, possuindo, por conseguinte, um papel mais relevante.
De início a “resistência” aparece vinculada à contraofensiva da Etiópia frente à
invasão italiana, estendendo-se, com o correr do texto, a todo continente. A questão
chave para os autores é: “qual teria sido a natureza da reação da África frente às
tendências fascistas e imperiais deste período?”. A “reação” foi, por certo, uma
“resistência [...] [que] manifestou-se sob diversos aspectos – político, militar,
econômico e cultural”.393
A resistência militar, como o próprio nome indica, seria aquela feita pela força
das armas; a cultural estaria voltada para o fator religioso, fosse ele islâmico, cristão ou
das “religiões tradicionais africanas” [sic]; no que diz respeito à resistência econômica
ela “se traduziu pelo nascimento de sindicatos e de movimentos corporativistas
modernos”; finalmente, a resistência política teria sido marcado pelo “desenvolvimento
do nacionalismo moderno, pela aparição de novos níveis de consciência política, pelos
balbuciamentos [sic] de organizações políticas modernas”.394
É perceptível, mais uma vez, a presença da linha divisória entre a tradição e a
modernidade. De todo modo, como é lugar comum na HGA, essa fronteira não impede o
discurso de filiação dessas organizações “modernas” com as iniciativas que lhes
antecederam. “Em alguns casos”, escrevem os autores, “a resistência africana armada
392 Tayeb Chenntouf, “O chifre da África e a África setentrional” In Ali A. Mazrui; C. Wondji, (Edits.),
op. cit., p. 66. 393 Majhemout Diop em colaboração com David Birmingham; Ivan Hrbek; Alfredo Margarido; Djibril
Tamsir Niane, “A África tropical e a África equatorial sob domínio francês, espanhol e português” In Ali
A. Mazrui; C. Wondji, (Edits.), op. cit., pp. 68, 69. 394 Idem, Ibidem. Itálico do original.
135
diante da dominação francesa, observada durante esta década [1935 - 1945], tinha raízes
em uma época bem anterior”.395
A conclusão dos autores é interessante e insere o contexto africano na esfera
internacional. Para eles a década de 1935 – 1945 marcou fortemente o nacionalismo
africano. Durante esse período houve a sedimentação de “novas formas de resistência
africana”. Das quais se sobressaem os “movimentos políticos, uma ebulição religiosa e
cultural, uma nova atividade sindical, um crescimento dos movimentos grevistas, bem
como a aparição do jornalismo político africano”.396
Foi, em suma, um período de
aprendizado para o continente.
O conflito bélico mundial “não ensinou a Europa a ser menos imperialista mas,
instruiu a África no sentido de ser mais nacionalista e, neste último continente, também
estimulou a tomada de consciência política”. Assim, a África entrava na trilha da
libertação nacional.397
Apesar da manutenção da lógica opositiva “tradição versus modernidade”, o
capítulo, enquanto estudo de caso, soube articular “resistência” com a política
nacionalista africana. Da mesma forma, os autores buscaram tipologias apropriadas ao
seu objeto de estudo específico. Procedimento menos ambicioso sob o ponto de vista
teórico, mas que legitimou e deu coerência ao uso do conceito de resistência no
trabalho.
Há momentos, no entanto, em que a luta pela libertação nacional é narrada sem
quase mencionar a “resistência” e quando o faz ela se mostra mais um elemento
vocabular do que conceitual no texto. Isso é indicativo da relação teórica artificial criada
entre as iniciativas anticoloniais dos princípios da colonização e a política nacionalista
do século XX. Exemplo disso é o texto de Ivan Hrbek acerca da África setentrional e o
chifre da África.398
Já no capítulo que aborda a África Ocidental, escrito por Jean Suret-Canale e
Albert Adu Boahen, há um esforço maior em ligar de forma mais orgânica os
fenômenos anticoloniais do passado com o nacionalismo de massas.
De maneira taxativa os autores afirmam que já havia sido demonstrado “de
forma cabal no volume VII [...] [da HGA que as] atividades nacionalistas ou
395
Idem, p. 81. 396 Idem, p. 87. 397 Idem, Ibidem, p. 88. Grifos do original. 398 Ivan Hrbek, “A África setentrional e o chifre da África” In Ali A. Mazrui; C. Wondji, (Edits.), op. cit.,
pp. 151 – 190.
136
anticoloniais haviam começado desde a instauração do sistema colonial na África e se
haviam desenvolvido intensamente e com complexidade no transcorrer dos anos”.399
Para os autores foram nos anos imediatamente posteriores a segunda grande guerra que
o anticolonialismo, ou o nacionalismo, encontraram seu momento de apogeu.
É sublinhado, também, o papel do Congresso Pan-Africano ocorrido em
Manchester em 1945. Foi neste evento que “pela primeira vez [conclamou-se] [...] não
somente ‘uma completa e absoluta independência’ e uma África unificada com base em
uma economia socialista”, como, também, esboçaram-se estratégias que apelavam para
a força armada como matriz de uma mudança revolucionária no continente.400
Outra característica importante do evento, segundo Boahen e Suret-Canale, foi o
empréstimo de parte da terminologia marxista ao movimento nacionalista e anticolonial.
Colocada nesses termos a política do congresso convocava “os operários, os
agricultores e os intelectuais das colônias a unirem-se e constituírem organizações
eficazes para combater a exploração imperialista e conquistar a independência”. 401
A partir disso era recomendado, também, “o recurso a métodos como a greve, o
boicote e a ação direta, assim como outras estratégias não violentas”. Retornados do
congresso muitos líderes começaram, imediatamente, as movimentações pela
independência. Dentre eles Kwame Nkrumah, J. Kenyatta e O. Awolowo. 402
Fato curioso, e contraditório, é que a afirmação inicial dos autores de que o
nacionalismo teria começado já no período da conquista e expansão colonial é
acompanhada, também, pela afirmação presente ao final do texto de que “a luta pela
independência nasceu em um mundo que vira a derrota do fascismo e do nazismo”.403
Isto é, em um momento posterior à expansão colonial.
De todo modo, cabe notar que um dos autores do capítulo é Boahen, o próprio
editor do volume VII da HGA, que teve como foco e escopo principal a invasão colonial
e as iniciativas a ela contrapostas.
Por este motivo, é claro que ele seria taxativo ao afirmar que as raízes para o
fator nacionalista seriam datadas de um tempo anterior ao dos conflitos pela libertação
nacional. Ao mesmo tempo, porém, enfatiza o período pós-segunda guerra como
nascedouro da luta pela independência. Isso demonstra não só contradição do autor, mas
399 Jean Suret-Canale; A. Adu Boahen, “A África Ocidental” In Ali A. Mazrui; C. Wondji, (Edits.), op.
cit., p. 196. 400 Idem, p. 197. 401 Idem, Ibidem. 402 Idem, Ibidem. 403 Idem, p. 227.
137
algo mais vertical: a artificialidade do vínculo teórico criado entre estes dois momentos.
Algo que vai para além do trabalho de Boahen, abarcando tanto a HGA quanto a maior
parte da historiografia de resistência dos anos de 1960 e 1970.
Atestando esta artificialidade, o conceito de resistência aparece neste último
volume da HGA, em termos quantitativos, de maneira tímida, apesar de expressar, de
forma qualitativa, juízos teóricos ambiciosos e por vezes sólidos. Disto fica a
interrogação: se um movimento foi a extensão ou a sinonímia de outro por que o léxico
se modifica tanto? Por que há a presença tão marcante de termos como “resistência”,
“tradição”, “iniciativas”, “reações” para o trato com o do período de expansão colonial
e, por outro lado, uma forte presença de “nacionalismo”, “Estado”, “libertação
nacional”, quando se trata do pós-segunda guerra? Fenômenos iguais mereceriam os
mesmos conceitos e adjetivos. Esta mudança é mais um indicativo da já aludida
artificialidade do vínculo criado.
Vejamos, por exemplo, a análise de Elikia M’Bokolo acerca da região oeste
equatorial do continente. Nesta região da África, afirma o autor, “parece ter
predominado por toda a parte [...] atitudes de resistência passiva frente a agentes e
símbolos da colonização”.404
No entanto, com a exceção do caso de M’Bokolo e demais
autores citados anteriormente a “resistência” parece retornar, em muitos capítulos, ao
lugar mais de vocábulo e menos de conceito. Indicando que há, de fato, uma
artificialidade no vínculo criado entre os ditos “dois momentos de resistência”
Trata-se de outro fato que demonstra, também, a incoerência teórica que decorre
de se trabalhar com o binômio “tradição versus modernidade” para definir a resistência.
Ela, a resistência, dificilmente será fator de equilíbrio entre essas esferas. Quase sempre
penderá para um desses lados enquanto valor distintivo, por mais que, retoricamente,
afirme-se seu caráter de longa duração continuísta.
Cabe aqui retomar com novos elementos uma discussão que, em que pese sua
densidade, deve ser considerada. A África é, o dissemos, um continente heteronômico.
No sentido de, enquanto espaço geograficamente delimitado, possuir uma história
pregressa à colonização – perceptível nos vários nomes usados ao correr da história para
nomear seu solo – e no sentido de ser criado, construído, imaginado, a partir e pela
realidade colonial.405
404 Elikia M’Bokolo, “A África Equatorial do oeste” In Ali A. Mazrui; C. Wondji, (Edits.), op. cit., p.
234. 405 Para mais sobre nossa definição de África heteronômica ver capítulo II.
138
A Era da “África africana” foi inaugurada sob o domínio colonial. A história da
modernidade africana, em qualquer esfera que seja – nas artes, nas ciências ou na
política – está intimamente entrelaçada à história do colonialismo. A narrativa escrita na
HGA, possuindo seus matizes nacionalistas e pan-africanos, institucionalizava a história
a partir de sua nacionalização e continentalização do conhecimento e modus vivendi tido
por “modernos”. Assim, retroativamente enxergam-se nações, onde antes a doxa
colonial enxergava “tribos” ou, menos vulgarmente, etnias.
Nesse contexto, é preciso entender o nacionalismo nos termos colocados por
Partha Chatterjee, isto é, como um projeto cultural amplo que implica a construção de
uma modernidade que tenha por divisa o recorte nacional. 406
A peculiaridade, neste
caso, reside no fato de o recorte dessa historiografia ser, também, continental, pan-
africano.
Desse modo, ainda com Chatterjee, vemos na modernidade “a primeira filosofia
social que conjura nas mentes da maior parte das pessoas comuns sonhos de
independência e auto-governo”. Toda a complexidade reside no fato de esta mesma
filosofia social que, em seu solo originário – a Europa ocidental – desembocou nessa
ânsia emancipacionista, serviu de lastro para a ocupação e exploração colonial, fazendo-
se valer da suposta “razão”, – os argumentos em torno da ideia de terra nullius o
comprovam -:407
o governo estrangeiro seria necessário, os autóctones deviam antes se
tornar “esclarecidos” para um dia, quem sabe, se governarem. 408
Neste sentido, “não importa o quão habilmente a fábrica da razão possa disfarçar
a realidade do poder, o desejo de autonomia continua a se levantar contra o poder; o
poder enfrenta resistências”.409
Essas resistências não são fruto de uma “tradição”
oposta à modernidade. Elas já são modernas, porque já se movem dentro do terreno
colonial, que é, ele próprio, moderno.
Por conseguinte, foi a mesma lógica da modernidade – baseada no auto-governo
e independência – que levou os africanos ao entendimento de que o imperialismo
colonial era ilegítimo; de forma a ser a independência o objetivo desejado. Em síntese:
há a apropriação dos elementos básicos da “modernidade” para fazer frente a ela mesma
406 Partha Chartterjee, Colonialismo, modernidade e política, Salvador, EdUFBA, 2004, p. 61. 407 Ver o capítulo I deste trabalho. 408 Partha Chartterjee, op. cit., p. 62. 409 Idem, p. 63.
139
criando assim outras modernidades possíveis. Tais elementos podem ser a razão, os
sonhos de liberdade; a vontade de poder, e/ou a resistência a ele, diz Chartterjee.410
Em resumo: a resposta à modernidade ocidental engendrou o movimento
criativo e dialeticamente contraditório da modernidade africana. Da mesma forma, as
respostas da modernidade africana levaram, em alguma medida, à revisão da
modernidade ocidental. A “modernidade”, enquanto evento genérico é assim definida a
partir da lógica da mudança social radical, da criação de novas identidades e
manutenção da soberania.
É empreendimento vão pensar e medir o quão tradicional é esta ou aquela
resistência visto que, em última análise, todas elas se dão no terreno da modernidade,
isto é, da mudança. Mesmo quando falamos das soberanias africanas que viram a
chegada dos colonizadores elas já não são “elas mesmas”, pois já se movem dentro do
bloco histórico do colonialismo, tentando adaptar-se a ele, absorve-lo, ou vencê-lo.
A oposição direta entre a tradição e a modernidade, e, consequentemente, a
definição da resistência enquanto fenômeno que se moderniza com o tempo é uma saída
fácil demais. Fácil o suficiente para encararmos como problemática se vista mais a
fundo, cativa de uma dicotomia criada pelo próprio colonial-imperialismo. A
resistência, tal como a África – assim nomeada ao menos -, é moderna de nascença.
Com isso não fazemos um giro de retorno ao eurocentrismo? Não. A
modernidade, enquanto fenômeno geral deve, pois, ser articulada com a experiência
historicamente delimitada de cada modernidade exclusiva. Neste caso, o fenômeno
colonial é esta experiência e ele acontece em um solo determinado, e recebe respostas
de agentes determinados. A ligação da África com seus outros nomes – pré-modernos –
e da resistência anticolonial com as insubordinações pré-modernas – é o algo específico
da modernidade africana. Portanto, não eurocentrada. Esta especificidade está longe de
ser abstrata, pois está bem documentada. Uma olhada breve em registros literários deve
corroborar essa hipótese.
Não é outra senão essa a operação que Artur Pestana, o Pepetela, realiza ao
articular o guerrilheiro da libertação nacional com figuras de um passado tão longínquo
que já se encontram no tempo do mito, como o rei iorubano divinizado Ogum ou o
antigo soberano pré-colonial Muatiânvua.411
Do mesmo modo, Naguib Mahfouz buscou
410 Idem, Ibidem. 411 Pepetela, Mayombe, Lisboa, Dom Quixote, 2011.
140
fazer da reconquista de Tebas pelos antigos egípcios uma metáfora histórica para a luta
anti-imperialista e para a consolidação do moderno Estado-nacional egípcio. 412
Essa ligação com o passado foi o que fez nascer o sentimento de que o presente
precisava ser mudado que urgia estabelecer, no presente, uma independência e auto-
governo, porque tal era a tarefa colocada pela realidade vivida. Fosse através da
manutenção da soberania ou da transformação social radical. Assim, o nacionalismo,
enquanto projeto cultural tipicamente moderno, nos termos de Chaterjee, se associa, no
caso africano, com o seu par: Libertação. Mesmo quando ele, o nacionalismo, não se faz
presente, a resistência já é moderna, pois já se encontra no bloco histórico colonial que é
moderno por excelência.
3.5. Interlúdio: Resistência e lógica histórica
Cabe, agora, um breve intervalo na linearidade do texto. Algo que, esperamos,
não frustre o leitor. Podemos resumir muito do que foi afirmado anteriormente em uma
questão problemática acerca da historiografia de resistência que estamos analisando: ao
tomar, ainda que inconscientemente, a lógica binária do colonialismo, os historiadores
convertem a resistência em um conceito analítico estático e teleológico, retirando-lhe
seu caráter processual-causal. Esta lógica binária reside na antinomia entre o moderno e
o tradicional. Antinomia esta criada pela doxa colonialista e reforçada,
contraditoriamente, por parte do discurso nacionalista pan-africano.
Guardada esta questão, neste intervalo entraremos no elemento chave do fazer
historiográfico: a lógica histórica. Cabe se distanciar da lógica binária do colonialismo,
substituindo-a pela lógica histórica. Talvez ela ajude a resolver a questão, ou, ao menos,
a problematiza-la de forma mais correta.
Por “lógica histórica” E. P. Thompson designava o “método lógico de
investigação adequado a materiais históricos, destinado na medida do possível, a testar
hipóteses”. Hipóteses estas relativas à estrutura e causação, num diálogo permanente
“entre o conceito e a evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um
lado, e a pesquisa empírica, do outro”. O objeto, continua Thompson, do conhecimento
histórico são os “‘fatos’ ou evidências, certamente dotados de existência real, mas que
só se tornam cognoscíveis segundo maneiras que são, e devem ser, a preocupação dos
412 Naguib Mahfouz, A batalha de Tebas, Rio de Janeiro, Rocord, 2003.
141
vigilantes métodos históricos”. 413
Por esta perspectiva, afirmarmos ser o conceito a
forma teórico-formal – ou “abstrata” – de tornar cognoscível a história vivida na qual se
plasmam os fatos e evidências dotados de existência real, nos termos de Thompson.
Definindo a história como um processo, não dotado de linearidade – assim como
este trabalho – Thompson afirma que os processos históricos já acabados, isto é,
pretéritos – a derrocada do império malinquê de Samori Touré, por exemplo –
“realmente ocorreram, e a historiografia pode falsificar ou não entender, mas não pode
modificar, em nenhum grau, o status ontológico do passado”. Por conseguinte, a
historiografia “se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada
geração”.414
Entretanto, obviamente que a escrita da história, por mais que se modifique,
não alterará o aludido “status ontológico do passado”.
A historiografia de resistência africana irá, grosso modo, afirmar – com razão –
que a historiografia colonial esteve equivocada em seu percurso não necessariamente
por ter errado nas datas dos fatos, ou na narrativa factual stricto sensu, mas sim porque
negligenciou evidências que não lhe interessavam, que desmentiam contundentemente
sua ideologia racista, ou porque formulou perguntas e respostas conceitualmente
inadequadas aos dados. Isso fica claro nas atas das reuniões do comitê científico da
HGA. Nelas foi afirmado, categoricamente, que o que interessava era narrar a
insubordinação anticolonial não como atos irracionais e sanguinários, como a
historiografia colonial os matizava, mas sim como aquilo que de fato foram: atos de
resistência.415
É bem verdade que, ao fazer isto, a HGA esteja, também, fazendo um juízo de
valor acerca do passado. Afinal, “resistência” longe de ser um vocábulo, torna-se
conceito, o que de maneira alguma é algo inadequado. O problemático é quando ela
torna-se, também, adjetivo moral. Lançar juízos de valor é algo adequado, se feito de
forma mediada e não moralizante, “porque o historiador examina vidas e escolhas
individuais, e não apenas acontecimentos históricos”.416
Ou seja, não se trata somente de analisar o fenômeno, o processo, da resistência,
mas sim quem e por que resistiu. O julgamento deve ser feito “dentro do devido e
relevante contexto histórico”, sem isso há tanto o anacronismo quanto, também, o
413 E. P. Thompson, A miséria da teoria, op. cit., p. 49. 414
Idem, p. 51. 415 UNESCO, Septieme reunion du bureau du Comite Scientifique International pour la redaction d’une
Histoire Generale de L’Afrique, Paris, 18 – 29 de julho de 1977. Disponível em
http://unescodoc.unesco.org/images/0003/000324/032484ed.pdf. 416 E. P. Thompson, A miséria da teoria, op. cit., p. 52.
142
conceito torna-se adjetivo moral. É essa adjetivação e anacronismo que leva Boahen a
afirmar, como já mostrado, que “a causa” pela qual os resistentes se bateram “resta viva
em seus descendentes”.
De forma alguma o próprio Boahen, enquanto descendente desses mesmos
resistentes, se bateria exatamente pela mesma causa que estes. Samori Touré pegou em
armas, tanto por causa de sua soberania, como também para continuar seu comércio
escravista – afinal, ambas as coisas estavam articuladas.417
Erudito singular, Boahen o
sabia, naturalmente. Não se trata de desconhecimento, mas de reconhecimento de um
fato. A falta de reconhecimento deste fato para conceituar a resistência de Touré frente
ao colonialismo deve-se às afinidades seletivas do historiador com seu objeto. E mais,
do sujeito, Boahen – ou Mazrui, ou Ki-Zerbo -, com seu próprio passado em seu
contexto de produção.
É verdade que somente quem está vivo pode dar um significado ao passado.
Esse passado foi, e provavelmente sempre o será, “uma discussão acerca de valores”.
Mas, ao “reconstituir esse processo, ao mostrar como a causação na realidade se
efetuou, devemos, à medida que nossa disciplina o permita, controlar nossos próprios
valores”. O que é possível é identificar-se “com certos atores do passado, e rejeitar
outros”.418
A HGA, com sua postura, está evidenciando que são esses valores – de oposição,
insubordinação – que tornam a história significativa para nós,419
sendo precisamente
estes valores que ela pretende ampliar e manter em seu próprio presente. Ela volta ao
passado, congratula-se com seus heróis, mas enquanto o faz atribui-lhes o seu próprio
significado a estes, significado que lhes era originalmente estranho.
O “machado dos espíritos” que o velho guerreiro entrega ao líder nacionalista,
que Mazrui utiliza para endossar o seu argumento, é justamente o objeto antigo
utilizado, sem maiores problematizações, em um novo contexto.420
Por um lado tem-se
417 Sobre a relação de Samori com o comércio de escravos ver capítulo II. 418 Idem, Ibidem, p. 53. 419 Pedimos licença para fazer coro ao nosso próprio objeto de análise. 420 Acima mostramos como o diálogo entre o passado longínquo e a modernidade africana acontece e
encontra-se documentado em, por exemplo, expressões literárias, das quais citamos os romances de
Pepetela e Naguib Mahfouz. Eles, os romancistas, podem fazer esse vínculo sem problematizá-lo. A
licença poética lhes concede essa brecha, e ainda bem que essa concessão existe, pois abre margem para a
inventividade e gênio próprios desses autores. É justamente essa concessão que os tornam nossas fontes,
nossos registros, nossa documentação acerca do imaginário de certa época. Um crítico literário que
acusasse Mahfouz de “anacronismo” cairia no ridículo e seria tanto infeliz quanto ingênuo, na verdade é
até difícil imaginar tal situação. Já os historiadores não possuem tamanha liberdade, e, em nosso caso,
ainda bem que essa concessão não existe. Se tal vínculo for proposto em uma obra histórica ele deverá ser
143
a crítica incisiva à dominação colonial, à violação que ela significou, por outro lado
tem-se a obliteração das contradições dos próprios resistentes, o que, com efeito, os
distanciam de nós.
Assim, a HGA – ou a historiografia de resistência de forma mais geral –
identifica-se com atores que antes eram rejeitados, e rejeita outros que anteriormente
eram alvo da empatia da historiografia colonial. Essa identificação, em si, não é o
problema, 421
o fato é que ela ganha contornos de um discurso moralizante e anacrônico.
A historiografia toma uma posição de valor em busca de sua própria genealogia. Afinal,
ela é escrita pelos “descendentes” de um mesmo “grau de família”.
O conceito acaba ditando o discurso historiográfico. Algo nocivo à prática do
historiador, visto que o que deve ditar a sua argumentação são as evidencias, postas em
diálogo com o próprio conceito que não deve suplantá-las. O “nós resistimos” não é
igual ao “eles resistiram”, por mais que ambos os tempos verbais se conjuguem no
terreno da modernidade. As evidências – presentes na forma de legitimação ideológica
da resistência, no seu modus operandi, nas motivações subjacentes, etc. – o comprovam.
O vínculo de causação é, no entanto, o mesmo: o colonialismo. Isto justifica a
existência do conceito, e não a irmandade, o “grau de família” supostamente inerente
aos povos africanos, ou uma mesma “causa” – intento - hereditária. Irresistivelmente
essa lógica argumentativa leva a HGA a tratar a resistência como constructo conceitual
estático, e não como processo. Retirando-lhe seu caráter contraditório ao longo de sua
esteira causal. De fato, a resistência exibe uma elasticidade grande para nomear
fenômenos, mas essa elasticidade não é decorrência de ela ser estática, mas sim porque
ela precisa dar conta do desenvolvimento irregular e desigual de um mesmo processo
substancialmente contraditório: a oposição, enfrentamento, ao colonialismo.
3.6. Nacionalismo e Libertação
A HGA toma a perspectiva longa, continuísta e linear da resistência, pois esta era
a mesma perspectiva de parte significativa dos movimentos de libertação nacional. A
lógica binária, que tem no tradicional e no moderno seus polos de referência, é
mais problematizado e mediado que em uma narrativa literária. Além do mais, Pepetela e Mahfouz
relacionam o que chamamos por modernidade africana com Eras pré-modernas. Algo diferente do que faz
Mazrui, visto que todos os resistentes, seja aquele portador do “machado dos espíritos” seja o chefe de
Estado são, como acreditamos, modernos, por estarem inseridos na lógica da mudança. Ainda assim cabe
a devida problematização. 421 Afinal, para escrever sobre os resistentes, tratando-os por este nome, é preciso reconhecer-se nesse ato
e neles mesmos, em alguma medida. Mas vendo-os em suas contradições próprias, pessoais e históricas.
Isso é verdade, assinalamos, para este próprio trabalho.
144
dominante por conta dessa relação direta entre a historiografia e a política. Relação mais
fácil de ser comprovada se o olhar for retrospectivo.
Em muitas obras que antecederam a HGA – servindo-lhe de ensaio – o
componente nacionalista possui seu lugar assegurado. Lembremos, por exemplo, da
coletânea organizada por Terence Ranger – Emerging themes of African History – que
tem por prefaciador, ninguém menos que Julius Nyerere, o líder da independência
tanzaniana. 422
Na coletânea anteriormente analisada Power e Protest in Black Africa, há a
dedicatória, em primeira página, a Eduardo Mondlane. Líder moçambicano então
recentemente assassinado. Fato importante, Mondlane também foi professor de
sociologia na Universidade de Syracuse, Estados Unidos, antes de se entregar à sua
vocação política. Por fim, contam-se, por exemplo, as inúmeras referências de Mazrui à
Kwame Nkrumah no volume VIII da própria HGA.
O discurso nacionalista e a historiografia se coadunavam de maneira a um ser
termômetro exato do outro. Havia entre ambos uma língua comum, um léxico próprio
que sustentava a aproximação. Colocando nos termos de John Pocock, havia uma
“linguagem política”. Esta linguagem não era homogênea, mas assentava em uma série
de “idiomas” ou “sub-linguagens”, que coexistiam de maneira a convergir ou mesmo
entrar em conflito.423
Cabe, portanto, neste momento, analisar como as ideologias, que ancoraram o
discurso nacionalista e pan-africano, são vistas pela HGA e ao mesmo tempo colocar em
perspectiva o modo como os próprios movimentos de libertação se viam.
Estes movimentos fizeram-se valer, em muitos casos, de um discurso que
tentava vincular as reivindicações nacionalistas com a história pregressa da oposição à
expansão colonial. A imagem que faziam de si mesmos era, paradoxalmente, tanto
contraditória quanto conciliatória. Buscavam conciliar-se com seus heróis passados. Ao
mesmo tempo, contradiziam a estes no teor do seu discurso e nos métodos da luta. Por
vezes apresentavam-se como ponto culminante da evolução de um processo formador.
A HGA abraçou esse argumento continuísta. Sob várias formulações teóricas
diferentes o que se percebe é a continuidade, a linha reta representada pela palavra
“resistência” que lastreia o discurso nacionalista. Os escritos de pensadores e/ou
ativistas nacionalistas africanos explicitará isto.
422 Ver capítulo II deste trabalho. 423 John G. A. Pocock, op. cit., p. 85.
145
Samora Machel, líder do movimento político que encabeçou a independência
moçambicana – A Frelimo (Frente de Libertação Nacional de Moçambique) – foi
taxativo ao sentenciar que ao longo do “processo histórico das guerras de conquista, o
Povo Moçambicano sempre se bateu heroicamente... contra o opressor colonialista”. A
história moçambicana devia ser vista pelo seu povo como motivo de orgulho pelo seu
ímpeto de independência. A “resistência”, se foi derrotada no passado, o foi por “culpa
das classes feudais no poder”. 424
O antecessor político de Machel no comando da Frelimo, Eduardo Mondlane,
formulou uma argumentação mais sofisticada em termos de embasamento – afinal,
Mondlane era historiador e sociólogo de ofício -, mas com conteúdo básico idêntico.
Argumentou Mondlane que nos finais do século XIX e início do XX a
“resistência ativa” havia sido esmagada com a derrota de Makombe, rei do Barué. Com
isso, em meados dos anos de 1930, a administração colonial estendeu-se por todo o
território moçambicano, destruindo as estruturas tradicionais de poder. A partir desse
momento, a situação ter-se-ia radicalizado e “tanto a repressão como a resistência
acentuaram-se”. Havendo, doravante, no entanto, um aspecto original: essa “resistência
passou das hierarquias tradicionais”, que haviam se tornado “dóceis fantoches dos
portugueses”, para outros “indivíduos e grupos” que possuiriam novas feições, novo
léxico, enfim, uma nova forma de fazer oposição. 425
É interessante notar que ao mesmo tempo em que buscava pertencer a uma
“longa tradição de resistência” - matizada por elementos de homogeneidade - o discurso
nacionalista revolucionário por vezes desacreditava elementos dessa mesma “tradição”
por não terem mantido a posição de “resistência” constantemente, cedendo ao
colonialismo. O que há não é vínculo familiar de todo harmônico, mas, ao contrário,
mal-estar com a herança que se tem em mãos.
De todo modo, um sentimento e um desejo comum pela independência -,
consubstanciado por palavras como resistência, luta e protesto - se fará sentir em toda a
África, do Cairo à Cidade do Cabo. Das planícies pantanosas da Guiné às terras altas da
Etiópia. Todo o continente falava não só uma mesma linguagem política, mas partilhava
de elementos de uma cultura política comum.
424 Samora Machel apud Allen Isaacman, A tradição de resistência em Moçambique, op. cit., p. 6. 425 Eduardo Mondlane, “Resistência – A procura de um movimento nacional” In Manuela Ribeiro
Sanches, (Org.), Malhas que os Impérios tecem, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 334, 335.
146
Os países do continente partilhavam uma linguagem que remetia a um conjunto
de valores, práticas e, principalmente, representações políticas que expressavam
identidades coletivas e leituras do passado feitas com as mesmas lentes. Principalmente,
essa cultura política fornecia inspiração para projetos voltados para o futuro.426
Esta lente compartilhada por vários olhos que miram o horizonte futuro nos leva
a crer que estamos diante do que Jacques Rancière chamou de partilha do sensível. Uma
partilha do sensível diz respeito tanto à existência de uma experiência comum partilhada
por dada coletividade, como, também, nas partes exclusivas. O sensível partilhado
refere-se ao espaço e tempo.427
Neste sentido, o discurso político emanado pela libertação nacional funciona
como evidência que revela tanto a existência do comum partilhado, como dos recortes
que definem as perspectivas específicas diferenciadas.
Sem negar as inúmeras particularidades de cada caso é possível admitir que
grande parte dos políticos e teóricos nacionalistas africanos possuíam uma retórica
próxima por experimentarem o comum sensível a todos: o fato colonial. Por este motivo
é que o pan-africanismo deve ser antes posto em termos de uma sensibilidade. Tornada
política e, no caso da HGA, também histórica.
Tomando exemplos específicos essa hipótese ganha contornos concretos. Sem
pretender a exaustão nos voltemos para dois pontos diferentes do continente. No
extremo norte, o Egito. Na outra extremidade continental a África do Sul.
No Egito, Gamal Abdel Nasser, líder político maior do nacionalismo deste país,
escreverá uma Filosofia da Revolução.428
Nela Nasser argumenta que as raízes da
revolução egípcia devem ser procuradas pelos historiadores. Cabendo a eles a
competência de avaliar a importância deste evento. Mas, antecipa: “Na história de uma
nação não há brechas que se possam tapar com palavreado; não há fatos que surjam de
repente como se não tivessem precedentes”. Dessa forma, a revolução seria a
426 Rodrigo Patto de Sá Motta, “Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela história”
In ___ (Org.), Culturas Políticas na História. Novos Estudos, Belo Horizonte, Argvmentvm, 2009, p. 21. 427 Jacques Rancière, op. cit., pp. 15, 16. 428
Como dito em momento anterior essa filosofia revolucionária tem por tese central que o Egito estaria
inserido na intersecção de três círculos, entendidos como áreas de atuação e influência recíproca.
Respectivamente, um círculo estaria vinculado à civilização árabe; o outro, de caráter religioso,
concerniria à fé islâmica; o último círculo seria o pan-africano. Estes espaços estariam em permanente
contato entre si e o Egito dialogaria com todos.
147
“realização de uma esperança que era acalentada pelo coração do povo egípcio na época
moderna”.429
Ao mesmo tempo em que dá relevo ao “moderno” Nasser não se esquece das
“antigas gerações” em que o “germe da rebelião”, em suas próprias palavras, já estava
presente. O líder egípcio diferencia o seu Egito, revolucionário, daquele dos Faraós;
daquele do período greco-romano, e assim por diante. Não há, necessariamente,
anacronismo e tampouco um passadismo nostálgico restaurador. Existe, ao invés, a
lógica centrada na mudança, por mais que Nasser deposite no presente o capital das
“antigas gerações” do passado. 430
Em resumo, nas palavras do então chefe de Estado, é o passado que convoca à
luta presente: “É a nós, e a nós somente, que o passado designa para desempenhar esse
papel. Somos os únicos qualificados para interpretá-lo”. 431
Político moderno, com o discurso matizado por tons socialistas, Nasser fazia
questão de se articular com o passado, ou a “tradição”. Um meio de reforçar essa
articulação era fazer uso de uma auto-representação que remetesse a algum elemento
deste passado, ou desta “tradição”.
O islã, tornado há muito “religião tradicional” por excelência dessa parte da
África, seria um instrumento na articulação da “tradição” das “antigas gerações” com a
“modernidade” revolucionária. Desse modo, compreendem-se melhor as imagens do
Hajj – peregrinação à Meca – de Nasser. Mais do que ato religioso tratava-se de um ato
político.
429 Gamal Abdel Nasser, “A Filosofia da Revolução” In ___, A Revolução no mundo árabe, São Paulo,
Edarli, pp. 61, 62. 430 Idem, p. 68. 431 Idem, p. 118.
148
Nasser durante o Hajj.432
Nas imagens acima o líder egípcio aparece nas vestes islâmicas tradicionais
utilizadas durante o Hajj. A peregrinação em questão aconteceu em 1954. Na foto à
esquerda Nasser mostra-se compenetrado na leitura, talvez de algum escrito religioso
condizente com a ocasião. Na fotografia à direita ele estava, por sua postura, ciente de
que sua imagem era capturada, atestando o fator auto-representativo da ocasião.
No outro extremo do continente, na África do Sul, o então jovem líder político
Nelson Mandela – que tinha o Egito de Nasser como exemplo -433
afirmava procurar
inspiração nas “histórias das guerras travadas pelos antepassados em defesa da pátria”,
vendo tais histórias não somente como parte das narrativas ancestrais, mas como uma
forma de “orgulho e glória da nação africana”.434
432 Fonte: Arquivo fotográfico da Fundação Gamal Abdel Nasser e da Biblioteca de Alexandria. Acervo
disponível em: <http://www.nasser.org>. Acesso em 23 de maio de 2014. 433
Em suas próprias palavras: “O Egito era um modelo importante para nós, pois podíamos testemunhar
em primeira mão o programa de reformas econômicas socialistas que estava sendo lançado pelo
presidente Nasser”. Nelson Mandela, Longa caminhada até a liberdade, Curitiba, Nossa Cultura, 2012, p.
364. 434 Nelson Mandela, No easy walk to Freedom, Heinemann, Portsmouth N.H, 1965, p. 147.
149
Mandela e seus companheiros batizaram sua organização de Umkhonto we
Sizwe, que significa “A lança da nação”. O nome fazia referência a esta arma por ela
ser, nas palavras de Mandela, o símbolo dos “negros africanos [que] haviam resistido
[...] às incursões brancas”. Apesar do nome, as armas agora seriam outras. Incluindo-
se explosivos e possibilidade de guerrilhas armadas com fuzis.435
De forma semelhante ao que acontecia no Egito, o vínculo com o passado da
tradição permanece. Ao mesmo tempo em que se enfatiza o novo modelo da luta. A
auto-representação também é importante enquanto fonte ilustrativa.
Mandela em vestes Xhosa.436
Nas fotos acima Mandela aparece em vestes tradicionais de sua etnia: Xhosa.
Não foi possível detectar o evento específico que levou o líder sul-africano a vestir-se
como seus antepassados e posar para a foto. Mas a ausência dessa informação não
oblitera o leitmotiv por detrás desse ato.
Fato importante a ser considerado é que, por sua postura, Mandela de fato posa
para a foto. A imagem foi capturada, estando o fotografado ciente disso. Não se trata de
uma captura em um momento fortuito. Na primeira imagem, à esquerda, a fotografia foi
435 Nelson Mandela, Longa caminhada até a liberdade, op. cit., p. 336. 436 Eli Weinberg, Nelson Mandela Portrait wearing traditional beads and bed spread, 1961. Disponível
em <http://artblart.com/2013/05/24/exhibition-rise-and-fall-of-apartheid-at-haus-der-kunst-munich/>;
< http://www.retronaut.com/2012/11/nelson-mandela/>. Acesso em 24 de Junho de 2013.
150
tirada a partir de cima. Já na foto à direita a foto foi batida partindo de baixo, de maneira
a destacar ainda mais a figura do líder sul-africano, mesmo procedimento usado
anteriormente para o líder egípcio.
Este fato faz crer que era exatamente essa a intenção em ambos os casos:
destacar a figura individual, sendo que; através dela, o indivíduo se articularia com um
pano de fundo mais amplo que estaria associado a elementos de uma história comum
coletivamente partilhada. A imagem dos líderes sintetiza a ideia geral de representação
de si que os movimentos de libertação possuíam.437
Com posturas desse tipo estes pensadores-ativistas ecoariam, segundo Terence
Ranger, em trabalho anterior à HGA, a resposta de muitos de seus ditos predecessores,
encarados como mitos heroicos da resistência.438
Contudo, foram feitas outras leituras mais problemáticas da “resistência” e da
“tradição” por parte de certos políticos nacionalistas africanos. O então chefe de Estado
da Guiné-Conacri, Sekou Touré, por exemplo, neste mesmo período reclamava a
ascendência materna de Samori Touré, o Almamy do império malinquê da África
ocidental que se opôs militarmente à invasão imperialista francesa.
Sekóu Touré em vários momentos evocou a memória de seu suposto
antepassado para criar consenso nacional e legitimar-se no poder. Tal consenso nacional
era acompanhado por um forte discurso étnico malinquê instrumentalizado pelos órgãos
de propaganda do partido. De acordo com Ibrahima Kaké, Sekóu Touré apresentava-se
como o descendente de Samori “escolhido pelos anjos” para vingar o Almamy.
Articulava, dessa forma, seu poder político de chefe de Estado com o de portador de
poderes sobrenaturais herdados de sua suposta linhagem imperial.439
Por caminhos bastante diferentes, nos três casos acima são criados para fins
político-pragmáticos, não mais puramente teóricos ou historiográficos, o vínculo entre
as insurreições armadas de finais do século XIX e a política nacionalista então corrente,
fazendo crer que não haveria necessariamente oposição direta entre o discurso
nacionalista e o vínculo étnico ou religioso, ou entre organizações políticas modernas e
modelos de hierarquias ancestrais. Contrariamente, portanto, às teses que caracterizam o
437 Apesar de que, no caso de Mandela a fotografia reforça sua africanidade através de um recorte étnico.
Ou seja, de certa forma o diferencia aos outros grupos sul-africanos. Já em Nasser o recorte é religioso. O
importante em ambos é a utilização, em meio a um contexto “moderno” de atributos geralmente incluídos
na esfera da “tradição”. 438 Terence Ranger. “Connexions between ‘Primary Resistance’ movementes and Modern Nationalism in
East and Central Africa. Part I”. Journal of African History. Vol. IX, n 3. Cambridge: Cambridge
University Press, 1968, p. 445. 439 Ibrahima Baba Kaké. Sékou Touré. Le héros et le tyran. Paris: Jeune Afrique, 1987, pp. 21, 22.
151
fenômeno da resistência pela presença de elementos étnicos, em oposição ao moderno
nacionalismo de massas. 440
Esse uso estritamente político da resistência para a legitimação da unidade
nacional tendo por base elementos étnicos, religiosos e raciais identifica-se com o
conceito de “tradições inventadas”, desenvolvido por Eric Hobsbawm, em coletânea
organizada conjuntamente com Terence Ranger.
Segundo Hobsbawm, a “invenção de tradições é essencialmente um processo de
formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas
pela imposição da repetição”. Sendo que a utilização de elementos antigos, como a
figura de Samori, na elaboração de novas tradições inventadas, como a descendência
imperial de Sekou Touré, “mostra-se uma das facetas mais interessantes desse
fenômeno”. 441
A “tradição de resistência” fornecia, dessa forma, um valioso substrato
simbólico para ajudar a consolidar a ideia de nação, desembocando, por vezes, em um
uso anacrônico dos nomes de alguns dos chefes locais africanos da resistência como
fundadores diretos ou indiretos de determinado Estado-nação.
Em relação a esse fato, para o caso da HGA nota-se uma transigência – ou, ao
menos, certo mal-estar - que não tem relação com outro fator, senão com o vínculo da
obra ao nacionalismo pan-africano.
A respeito de Sekou Touré, por exemplo, é escrito por Isawa Elaigswu e Ali
Mazrui, na HGA: “É necessário notar que as origens familiares de Sékou Touré
conferiam-lhe uma espécie de legitimidade tradicional que recobria o seu partido,
mediante o risco de alienar-lhe alguns grupos étnicos”. Em letras miúdas no pé-de-
página lê-se “Sékou Touré passou por neto do rei mandinga [malinquê] Samori
Touré”.442
À parte o inegável mérito deste artigo específico de Mazrui e Elaigswu - que traz
dados precisos e informações valiosas - acreditamos que a crítica à filiação anacrônica à
resistência não deva ficar resumida, somente, a um rodapé lacônico, deixando para o
corpo de texto a legitimidade das “origens familiares” do governante guineense.
440
Como na tese de Brunschwig analisada no capítulo II deste trabalho. 441 Eric Hobsbawm, “Introdução: A Invenção das Tradições” In _____; Terence Ranger. (Orgs.). A
Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p 15. 442 Isawa Elaigswu em colaboração com Ali A. Mazrui, “Construção da nação e evolução das estruturas
políticas” In Ali A. Mazrui; C. Wondji, (Edits.), op. cit., p. 529.
152
Correndo-se aqui o risco da controvérsia afirmamos que a HGA ficou, em incontáveis
casos, cativa ao seu próprio objeto de estudo: o nacionalismo revolucionário africano.
A HGA heroiciza não somente os grandes homens de linhagem que se opuseram
ao colonialismo nos princípios do século XIX. Ela acaba heroicizando, também, os
próprios nacionalistas da segunda metade do século XX. Algo ainda mais
problemático.443
A HGA, na ânsia de legitimar historicamente a independência e
libertação africana acaba criando um fardo histórico desnecessário para o continente.
Os heróis mitificados – “modernos” ou “tradicionais” – são referentes dos quais
a história da África, da forma como é escrita na HGA, não consegue fugir. Diante disso
repetimos Peter Kien, protagonista de Auto de fé: “Ai dos que nascerão depois de nós!
Estão condenados. Herdarão de nós um milhão de mártires e os instrumentos de tortura
mediante os quais completarão um segundo milhão. Nenhum governo é capaz de
suportar tal quantidade de santos”.444
Ai dos que vieram depois dos épicos confrontos
de resistência – “tradicional” ou “moderna” – podem perecer hoje em meio a uma
“asfixia no resistencialismo”, para usarmos a expressão de Kabou.445
Se a tarefa colocada for a de erigir um conceito de resistência, ele precisa,
necessariamente, se pôr na contramão das tendências instrumentalistas mais
anacrônicas. Deve ser um conceito crítico consigo mesmo, a partir de um movimento
auto-questionador. Esse movimento não se faz notar, da forma que deveria, na HGA. É
em Steinhart que ele encontra sua primeira fórmula geral mais bem acabada. O “mito
nacionalista autoritário” deve ser, ele próprio, alvo do conceito de resistência que
pretende monopolizar.446
Todavia, cabe sempre a devida contextualização. Na altura de sua publicação
havia condições de a HGA fazer uma crítica reflexiva desse tipo?447
Pelo exame
histórico-bibliográfico realizado neste trabalho a resposta a esta pergunta é positiva.
Nesta altura já se encontravam publicados trabalhos que criticavam a instrumentalização
negativa dos “heróis da resistência”, bem como o autoritarismo de alguns dos
movimentos de libertação nacional. Além de críticas gerais – das quais a de Steinhart é
a mais contundente – teses com temáticas específicas também vinham corroborar essa
visão auto-questionadora.
443 Lembremos, os rostos destes políticos estão impressos na capa da publicação. 444
Elias Canetti, op. cit., p. 298. 445 Axelle Kabou, E se a África recusasse o desenvolvimento?, Mangualde, Pedago/Luanda, Mulemba,
2013, p. 93. 446 Ver capítulo II 447 Lembre-se que o volume VIII da HGA é publicado somente em 1993.
153
Por exemplo, mesmo sendo considerado um dos nomes maiores do Pan-
Africanismo já era conhecido o “personalismo rancoroso” de Sékou Touré, segundo
Axelle Kabou. Não medindo esforços, o político guineense, em “reconstruir o reino
malinké do seu ilustre ancestral usurpado”. Nestes “esforços” somam-se o genocídio
peul, a perseguição ao povo sussu e várias conspirações palacianas inventadas. Tudo
feito sob a insígnia da resistência, da filiação com uma tradição.448
Em suma, conclui Kabou, a retórica marxista e libertadora “de muitos dirigentes
africanos de esquerda serviu para dissimular muitos cadáveres e dizimar tudo o que era
capaz de pensar”. Os “heróis da resistência” instrumentalizados por esses dirigentes,
com a transigência de parte significativa da historiografia, serviram tão somente para
reforçar a influência das elites políticas, encerrando o restante da população em um
interminável passado.449
Com um passado tão épico o que resta ao presente?
Assim, perde-se por completo a validade de se usar o conceito de resistência
como alicerce analítico. Afinal, o que lhe estrutura é: o imperativo ético de emancipação
social que rechaça a autoridade ilegítima, invasora e autocrática. Seja ela advinda de um
outro estrangeiro, ou do mesmo. Neste último caso estamos diante do processo chamado
comumente de auto-colonização ou recolonização,450
isto é, de “‘indigenização’
definitiva do sistema colonial”.451
O grande risco que há nessa operação é moralizar a pesquisa. Saber que
“resistência” possui um conteúdo ético não implica, necessariamente, em fazer da
investigação profissão de fé de uma determinada crença política. A resistência não deve
ser um conceito moralmente valorativo ao trabalho. Não é preciso atribuir valor moral à
oposição anticolonial. Afinal ela, de fato, existe.
Da mesma forma, é desnecessário crer numa agenda política específica para
consensualmente admitir que tanto as primeiras oposições anticoloniais quanto os
movimentos nacionalistas possuem um mesmo vínculo causal objetivo: o colonialismo.
É preciso atentar, nesse contexto, para uma distinção simples, mas importante, que
Wittgenstein não deixa esquecer, aquela que existe entre a causa e o motivo.452
448 Axelle Kabou, E se a África recusasse o desenvolvimento?, Mangualde, Pedago/Luanda, Mulemba,
2013, p. 173. 449 Idem, pp. 44, 160. 450 Na expressão de Alberto da Costa e Silva nos apresentada em entrevista. 451
Bogumil Jewsiewicki, “Debates sobre a modernidade e relações de gênero na cultura urbana pós-
colonial congolesa” In Daniel Aarão, et alli Tradições e Modernidades, Rio de Janeiro, Editora FGV, p.
122 452 Pergunta-se o filósofo austríaco em suas Investigações filosóficas: “Qual é a diferença entre motivo e
causa? – Como é que se encontra o motivo, como é que se encontra a causa?”. Ludwig Wittgenstein,
154
O que torna possível o entrelaçamento de todas as iniciativas de ações que
fizeram oposição ao colonialismo sob a alcunha de um mesmo conceito é o vínculo
causal, como argumentado em momento anterior.453
Por outro lado, as motivações que
subsidiaram estas oposições devem sempre ser demonstradas quando forem diferentes e,
dado a enorme variedade de contextos específicos, essas motivações são, quase sempre,
distintas.
Em um momento, por exemplo, essa motivação pode ser a independência, a
construção do Estado-nação, a expulsão do invasor, assim por diante. É isto que
diferencia eles de nós e não o fato de sermos mais ou menos “conscientes” porque
supostamente mais politizados. São as motivações que estabelecem a distância
necessária do historiador com sua fonte sem que, com isso, ele abra mão do conceito e
do engajamento ético que seu uso implica. Não se pode atribuir uma mesma motivação
subjacente a expressões diferentes da resistência. Para isso seria preciso aceitar a ideia
de filiação, descendência ou linearidade, suprimir a rica diferença do nós e eles por um
metafísico e improvável “grau de família” comum.
Em termos práticos: apesar do diálogo inevitável entre o pragmatismo político
dos anos 1960, 1970 e 1980, de um lado, e a teoria historiográfica, de outro, não se pode
reduzir esta última à primeira. Todavia, mesmo não reduzindo uma à outra é inegável
que a HGA não se desvinculou da retórica nacionalista pan-africana.
Assim, a historiografia ficou presa aos termos dos próprios movimentos de
libertação. O historiador fez do arquivo o seu cadafalso. Quando os movimentos
nacionais de libertação possuíam uma retórica invulgar isso imprimia certo caráter
original à leitura. Quando possuíam uma lógica anacrônica e autoritária tal não era
explicitado e sujeito a uma crítica contundente e radical, ficando impresso na pesquisa o
mesmo anacronismo do discurso político-pragmático de ocasião.
Todo o problema pode ser resumido no tratamento binário que usa dos pontos
fixos circunscritos nas noções de tradição e modernidade, postos em algum lugar do
horizonte histórico como norte referencial. A modernidade pode, e deve, ser discutida
sem as ideias de progresso e narração como inscrição no tempo linear.454
Da mesma
forma, a tradição, pode, e deve, ser pensada para além de sua definição da doxa
Tratado Lógico-Filosófico. Investigações filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p.
598. 453 Ver capítulo II. 454 Bogumil Jewsiewicki, op. cit., p. 115.
155
colonialista da permanência, do residual, do arcaico, do pré-moderno, pré-
contemporâneo.
Com isso fugiríamos do movimento um tanto esquizofrênico que a HGA e o
discurso nacionalista imprimiu à história: a modernidade, quando interessa, torna-se
consequência teleológica da tradição. Esta última, por sua vez, quando não interessa à
política de ocasião torna-se algo residual a ser superado pela ação revolucionária. De
“matriz geradora” a mero “resíduo”, eis os dois extremos em que o mesmo passado
pode se encontrar nessa construção narrativa.
O potencial de mudança social e emancipação humana que subjaz nos
fenômenos da insubmissão e no conceito de resistência não existem aprioristicamente.
Por mais que se edifiquem tipologias, esquemas, vocabulários, que tentem comprovar o
contrário.
O que há de historicamente objetivo nesse fenômeno é o evento causal que
desencadeia as iniciativas que lhe fizeram oposição e que justifica, no plano da práxis, a
utilidade do conceito. Toda a ideia de filiação mais profunda; ou toda noção de exemplo
histórico a ser seguido, reinventado ou superado - só existe na medida em que isso é
desejado pelos participantes de uma determinada demanda social. Na medida em que o
engajamento do grupo se faz presente.455
Este engajamento pode ser, sob alguns
aspectos, ideologicamente interessante e estrategicamente útil. Ou pode ser anacrônico e
humanamente desastroso.
Dessa forma, em um contexto de ameaça colonial e ao seu discurso reificante,
essa articulação pode, quando bem realizada, perfazer o que Benjamin chamou de “salto
de tigre para o passado”.456
Cabe ao historiador, partindo da análise da realidade concreta articulada a uma
crítica teórica rigorosa, definir as limitações desse salto, bem como seus possíveis
pontos positivos. Sem fetichizar o conceito. Sem tratá-lo como monopólio de um grupo
social específico. Tornando, assim, o próprio conceito objeto de crítica.
455 Slavoj Zizek, Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 389. 456 Walter Benjamin, “Sobre o conceito da História” In__, O Anjo da História, São Paulo/Belo Horizonte:
Autêntica, 2012, p. 18.
156
CODA
O chacal com um olho que olha para trás e outro que olha para a frente, para o
caminho a seguir.
Ondaatje.
“A história, um cego a tocar tambor”. Assim a definiu o poeta sírio Ali Ahmad
Esber, Adonis.457
De fato, eventualmente, à maneira de Milton ou Homero, o historiador
faz às vezes de poeta cego. Pode enunciar sua palavra da prisão, à maneira de Milton.
Ou enuncia-la do palácio, como Homero. Pode querer alcançar o paraíso perdido, ou
pode almejar chegar à Ítaca.458
De todo modo estará, sempre, escrevendo de algum lugar
e para algum lugar. Seus olhos e seus pés são as partes de seu corpo determinantes de
sua escrita. Ela será fruto daquilo que, cego que é, imagina ver e de onde finca os pés.
A esta localização do historiador refere-se a discussão que animou a parte inicial
deste trabalho. No que condiz à perspectiva africana, tema do primeiro capítulo, importa
não só saber o que se olha, mas de onde se olha. Onde, finalmente, estão fincados os pés
do pesquisador que se debruça sobre o continente africano. Ele pode olhar a África
estando com os pés dentro dela. Quando assim acontece ele se faz valer da perspectiva
africana.
A perspectiva africana, desenvolvida por Joseph Ki-Zerbo, evoca uma nova
imagem do objeto estudado – A África transmuta-se de terra nullius em pátria, lugar de
retorno da humanidade não mais reificada. Não um ponto cujo referencial é
geograficamente determinado e antropologicamente fixo. Inversamente, é encarada no
seu processo de autoconstrução e libertação da natureza bruta. Essa “África” é antes
metáfora. Significante que carrega consigo uma dimensão até então suprimida do fazer
historiográfico, cativo que estava da lógica colonial.459
Por este diapasão, o historiador é tanto Homero quanto Milton. Em meio à
cegueira de um tempo inflexivo procura descortinar a criação de um lugar novo. Sua
África é Ítaca, lugar de retorno a ser conquistado. Mas, ao mesmo tempo, também ganha
contornos de um paraíso perdido, em que antes haveria só “absorção por osmose” entre
povos que compartilhariam de um mesmo “grau de família”.
457
Adonis [Ali Ahmad Said Esber], op. cit, p. 227. 458 Em o Paraíso Perdido John Milton (1608 - 1674) narra a queda do homem, sua expulsão do paraíso
por meio das tentações de Lúcifer. A obra se insere na ativa militância de Milton, que lhe rendeu a prisão.
Já Ítaca refere-se à ilha natal do herói homérico Ulisses (Odisseu). 459 Stuart Hall, Da Diáspora, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011, p. 41.
157
Ademais, emerge um agente histórico responsável pela construção desse novo
espaço: o sujeito africano. Este sujeito, à parte as diversas formas como é definido pelos
variados autores ao correr da obra, cumpre o papel de protagonista histórico por
excelência na imensa maioria dos capítulos que chegaram a lume na HGA.
O sujeito africano, que metaforizamos na figura do Ulisses retornado, parece,
ainda, tentar reconquistar Ítaca dos usurpadores do poder. Seja este usurpador o outro,
encarnado no colonizador estrangeiro; ou o mesmo, que procede à auto-colonização do
pós-independência. De todo modo, já se encontra, ao menos, em solo pátrio. É este fato
que torna possível a construção de instrumentais analíticos que narrem da melhor
maneira possível sua peleja em reaver o que é seu. Dessa forma, a perspectiva africana é
pressuposto teórico, ou, melhor, chão epistemológico, para a edificação de contra-
narrativas que se oponham à mitologia colonial.
Mesmo se restrita ao uso vocabular, se a resistência estiver assente na
perspectiva africana, ela evocará um significado contrário à lógica colonial e terá por
significante um agente que também se apresentará na contramão da doxa colonialista. À
parte as dissonâncias existentes no retrato feito do sujeito africano e, consequentemente,
do uso vocabular da resistência, ambos serão empreendimentos discursivos que
procurarão desmistificar a África e os africanos, enfatizando sua ação frente a elementos
externos ou mesmo frente às contradições internas do continente. Ainda que este último
caso seja menos frequente em relação ao primeiro na HGA. De toda forma, somente o
fato colonial é merecedor, na HGA, de um conceito de resistência.
Para que seja possível a existência de um conceito de resistência é necessária a
presença de um outro opositivo e de um fato globalizante partilhado que introjete carga
identitária comum a uma série de experiências locais geográfica e cronologicamente
delimitadas. No caso das relações intra-africanas, faltaria, para a HGA, o fator opositivo.
Já no caso de outras experiências históricas marcantes, a exemplo da diáspora africana,
faltaria o fator globalizante.
Somente a experiência colonial conjugaria simultaneamente a presença de um
sujeito opositivo e de uma experiência comum partilhada pelo continente como um
todo. Coadunando, assim, os dois pré-requisitos para a edificação de um conceito da
resistência, capaz de estruturar a narrativa historiográfica e atribuir sentido à história ela
mesma.
158
Desse modo, no volume VII da HGA o conceito de resistência está voltado para
retratar a força reativa dos povos africanos frente à invasão colonial. Há, neste
momento, um conceito propriamente dito, pois a palavra passa a ser usada com
preocupações epistemológicas antes inteiramente ausentes. Nomeiam-se explicitamente
os tipos de resistência, suas táticas, meios de expressão, temporalidades.
Cabe lembrar que os anos que perpassam as décadas de 1960 e 1970 foram de
extrema importância para o discurso pan-africano, seguramente o responsável
ideológico maior pelas independências que então se desenrolavam. Tal fato deixa
entrever que, desde o seu princípio, a questão foi tanto historiográfica quanto política.
Afinal, foi neste momento que a HGA foi gestada e, da mesma forma, foi a partir desse
contexto que a geração de historiadores que comporia a coleção começava a publicar
seus primeiros trabalhos.
Nasce, a partir daí, o paradigma conceitual linear que animou a imensa parcela
dos historiadores de então. Esta geração – e seus discípulos – formaria o núcleo
fundamental da HGA.
À parte este consenso no que toca à continuidade da “resistência” com o
“nacionalismo de massas” mapeamos, no volume VII da HGA, duas abordagens
distintas na definição e trato da resistência. De um lado há a abordagem tradicionalista
e, de outro, a “marxista”. Por vezes estas abordagens chocam-se e por outras vezes
interseccionam-se.
Basicamente os tradicionalistas, cujo representante maior – na HGA – é o ganês
Albert Adu Boahen, fazem da resistência um fenômeno não só vinculado, mas
intrinsecamente dependente da tradição. O tônus do conceito advém do passado pré-
colonial e das elites africanas que procuraram manter o “status quo” – nos termos de
Boahen – que o colonizador veio subverter radicalmente. Assim, os personagens
principais dessa narrativa são os soberanos, reis e imperadores, que passam a ter sua
imagem matizada por tons de heroísmo, por terem resistido, e, também, por tons de
amargura, por terem sucumbido.
Disto nasce um quadro certamente cativante. Nele se encontram Behanzin,
Asantehene dos ashanti, com aspecto tranquilo, mas determinado; Samori, o Almamy
malinquê, sobre seu cavalo, imponente mesmo derrotado; Menelik II, o Negus Neguest,
em seu trono, conclamando seu povo às armas e às orações para salvaguardar a
independência etíope. Todos soberanos da tradição, com títulos e insígnias que advém
dos tempos pré-coloniais. Todos intransigentes naquilo que respeita à sua autonomia.
159
Por sua vez, a abordagem “marxista” merece esse nome e as aspas que o
acompanham, pois mesmo que seus autores não sejam expressamente marxistas seus
textos dialogam intensamente com quadros conceituais advindos dessa escola, e, por
outro lado, nota-se a presença de aspectos ideológicos próximos ao pensamento
anticolonial que, por sua vez, sempre assumiu sua dívida para com o marxismo.
Agora a ênfase recai em terminologias caras a esta linhagem de pensamento. De
maneira direta nota-se a ênfase no trinômio capitalismo, proletariado, burguesia que
passa a ser articulado, ou mesmo identificado, com o colonialismo, o colonizado e o
colonizador, respectivamente. Quadros conceituais da historiografia marxista também se
fazem presentes, direta ou indiretamente, a exemplo da noção de banditismo social, ou
rebeldia primitiva de forma mais geral.
Elencadas estas duas escolas rumamos para a análise pormenorizada do volume
VIII da HGA. Neste momento um autor em particular é destacado: Ali Mazrui.
Logramos demonstrar a forma como este autor define a resistência, ainda que por vezes
enveredando em marcos tipológicos artificiais que, tal como as demais conceituações
dos outros autores da obra, insistem na ênfase no binômio tradição versus modernidade
para definir a resistência.
Procuramos demonstrar que a resistência é, primordialmente, um processo. Em
lugar das conceituações acima – que via de regra se fazem valer de um tom teleológico
– acreditamos que a resistência deve ser vista em uma temporalidade causal em que a
causa – o colonialismo – não implica descendência entre uma resistência passada e uma
“moderna”.
A insistência em argumentar por esta filiação, por este vínculo, faz o historiador
verter-se menos em Homero e mais em Milton. Vê-se preso aos termos de sua própria
fonte: o nacionalismo pan-africano. A esta prisão é preciso recusar, pois o imperativo
ético profundo que subsiste no conceito de resistência que justifica, no plano da
concretude histórica vivida, a sua utilidade, independe de qualquer agenda política.
Uma coisa é a causa, outra o motivo. Motivações nacionalistas revolucionárias
diferem em quase tudo de motivações reativas de soberanos prestes a serem
destronados. A causa, ou, melhor, o evento causador para onde ambas as iniciativas são
direcionadas, no entanto, tem o mesmo nome, fica à sombra de um mesmo conceito:
colonialismo. As oposições a um mesmo fenômeno merecem, por conseguinte, um
mesmo tratamento conceitual.
160
O chacal de Ondaatje termina o seu percurso, após visitar diversos períodos e
espaços, cortando o deserto de um continente heteronômico. Foi-se da antiguidade, dos
tempos em que este continente era chamado de Líbia ou Etiópia; até a época em que se
denominou Guiné; passando pelo período em que foi conhecido por Bilad al-sudan.460
Finalmente, África. Nome que se consolidou com a colonização. “Resistência” virou, a
partir de então, o seu adjetivo. Ao menos nisso parecem concordar as várias vozes da
historiografia que analisamos. O adjetivo vinha coroar uma espécie de harmonia
fundamental entre as insubmissões deste continente renomeado.
Entretanto, outras vozes soam, ritmadas pelo tambor cego da história: Samori,
Behanzin, Menelik, Nasser, Mandela, Cabral. Soam muito distintas. De fato, o são. Está
longe de ser um coral harmonioso. Todavia, justiça seja feita, são respostas grafadas em
uma mesma partitura: a colonial. Ainda que sob claves distintas. As vozes da
historiografia, que pretendem analisar essas vozes da história, não podem ficar reféns de
um maestro: a política de ocasião. Sobretudo quando este assume os contornos mais
anacrônicos e autoritários. Tais fatos devem justificar um conceito estruturante
autocrítico da resistência.
460
Os antigos gregos designavam todo o continente como “Líbia”. Por outro lado em vários momentos
“Etiópia” aparece como sinônimo de África ou, de forma mais geral, os africanos são chamados de
“etíopes”. Quando do início do contato entre europeus e africanos, pela via atlântica, não era incomum se
referir também a toda massa continental como “Guiné”. Já o “Bilad al-sudan” designa em árabe o “país
dos negros”, literalmente.
161
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de Maio de 2014.