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1 A PÓS-MODERNIDADE, A ÉTICA DO AGIR E A EFETIVIDADE DA TUTELA COLETIVA NA GARANTIA DOS DIREITOS SOCIAIS BÁSICOS COM VISTAS ÀS GERAÇÕES FUTURAS. Luis Fernando Nishi Sumário: I. INTRODUÇÃO. II. A MODERNIDADE E O CULTO À RAZÃO. III. DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA. IV. A PÓS-MODERNIDADE, A ÉTICA E O DIREITO. V. O UTILITARISMO E A ÉTICA RACIONAL. VI. VALORES, CONSENSO, UNIVERSALIDADE DE DIREITOS, POSITIVAÇÃO, ERA DOS DIREITOS E GERAÇÃO DE DIREITOS. VII. OS DIREITOS SOCIAIS E A TUTELA COLETIVA. VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS. IX. BIBLIOGRAFIA. I. INTRODUÇÃO A partir da Revolução francesa, com o surgimento da chamada “era das luzes”, rompia-se com os ideais religiosos, com a emancipação do homem, com o uso da razão para conquistar avanços tecnológicos e progresso científico. No dizer de HEGEL, “a crença de que a razão era o instrumento para se instaurar a harmonia e a felicidade entre os homens”.

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A PÓS-MODERNIDADE, A ÉTICA DO AGIR E A EFETIVIDADE

DA TUTELA COLETIVA NA GARANTIA DOS DIREITOS SOCIAIS

BÁSICOS COM VISTAS ÀS GERAÇÕES FUTURAS.

Luis Fernando Nishi

Sumário: I. INTRODUÇÃO. II. A MODERNIDADE E O

CULTO À RAZÃO. III. DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA.

IV. A PÓS-MODERNIDADE, A ÉTICA E O DIREITO. V. O

UTILITARISMO E A ÉTICA RACIONAL. VI. VALORES,

CONSENSO, UNIVERSALIDADE DE DIREITOS,

POSITIVAÇÃO, ERA DOS DIREITOS E GERAÇÃO DE

DIREITOS. VII. OS DIREITOS SOCIAIS E A TUTELA

COLETIVA. VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS. IX.

BIBLIOGRAFIA.

I. INTRODUÇÃO

A partir da Revolução francesa, com o surgimento da chamada “era

das luzes”, rompia-se com os ideais religiosos, com a emancipação do homem,

com o uso da razão para conquistar avanços tecnológicos e progresso científico.

No dizer de HEGEL, “a crença de que a razão era o instrumento para se instaurar

a harmonia e a felicidade entre os homens”.

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Para MAX WEBER1, citado por HABERMAS, essa modernidade,

sob o ponto de vista da racionalização, “não foi apenas a profanação da cultura

ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades modernas. As

novas estruturas sociais são caracterizadas pela diferenciação daqueles dois

sistemas, funcionalmente interligado, que se cristalizaram em torno dos núcleos

organizadores da empresa capitalista e do aparelho burocrático do Estado”, ou

seja, a institucionalização de uma ação econômica e administrativa racional com

respeito a fins.

Segundo HABERMAS2, era evidente a relação interna, e não

meramente contingente, entre a modernidade e aquilo que designou como

racionalismo ocidental. Entendeu-se como “racional” o processo de

desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do

mundo, criou uma cultura profana. As ciências empíricas modernas, no campo da

arte e as teorias morais e jurídicas fundamentadas em princípios, formaram

esferas culturais de valor.

Com a racionalização cultural e social, com o sistema da empresa

capitalista interligada com o aparelho burocrático do Estado, dissolveram-se as

formas tradicionais de vida, aliado ao que E. Durkheim afirma ser a visão

moderna do mundo, com relacionamento reflexivo com os novos valores,

rompendo-se com aqueles antes consagrados, que perderam a espontaneidade

natural.

Necessário refletir-se sobre um projeto civilizatório na tentativa de

analisar a relação enigmática, insolúvel, por vezes não tematizada pela filosofia

contemporânea, entre razão teórica e razão moral.

1 J. WEBER, Max (1973) apud HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000, p. 5. 2 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000, p. 4.

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O estreitamento da razão moderna conduz à preponderância da

racionalidade que se constrói por meio de um modelo autorreferencial do ‘eu’,

estabelecendo uma relação objetual com o mundo que o cerca, transformando a

interioridade do objeto.

A partir da falibilidade do conhecimento encontra na razão

competência universal da espécie, onde o processo de emancipação do homem

traz práticas reducionistas, implicando em encolhimento da moral no cômputo

geral do discurso.

Os avanços tecnológicos e as modernas técnicas de propagação da

informação e dados trouxeram mudanças no mundo econômico, social e jurídico,

com necessidade de adequação normativa, rompendo com paradigmas e criando

principiologia condizente com a nova era de direitos, que passaram a exigir

efetividade na sua implantação, com efeitos transcendentes ao individual, muito

mais voltadas as novas regras para as gerações futuras, como forma de se

alcançar a verdadeira ética do agir.

II. A MODERNIDADE E O CULTO À RAZÃO

Sobre a obra de HABERMAS3, interpretada STEPHEM K.

WHITE, na tradução de Márcio Pugliesi, constitui-se um esboço para um

programa de pesquisa alternativo nas ciências sociais, baseado num modelo

comunicativo de razão e ação como seu núcleo.

3 HABERMAS, Jürgen. Razão, Justiça e Modernidade – A obra recente de Jürgen Habermas, traduzido por Márcio Pugliesi, São Paulo, Ícone Editora, 1995.

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O fato de ser o pensamento de HABERMAS voltado à tentativa de

estabelecer um diálogo contínuo tendente à reconstrução da teoria crítica,

rompendo com o modelo de racionalidade iluminista, sem fomentar qualquer tipo

de otimismo ingênuo em relação ao potencial crítico e emancipador da razão,

propõe aprofundamento da atitude elucidativa e construtiva.

A obra leva a uma reflexão sobre um projeto civilizatório de

ilustração europeia que se mostra em crise, sem que HABERMAS endosse

princípios opostos a esse projeto, com tentativa de analisar a relação enigmática,

insolúvel, por vezes não tematizada pela filosofia contemporânea, entre razão

teórica e razão moral.

O estreitamento da razão moderna conduz à preponderância da

racionalidade que se constrói por meio de um modelo autorreferencial do ‘eu’,

estabelecendo uma relação objetual com o mundo que o cerca, transformando a

interioridade do objeto.

A partir da falibilidade do conhecimento encontra na razão

competência universal da espécie, onde o processo de emancipação do homem

traz práticas reducionistas, implicando em encolhimento da moral no cômputo

geral do discurso.

Na modernidade, ainda segundo referência a Max Weber (“Ciência

Política”.), tem fundamento no princípio da subjetividade, segundo o qual a razão

não precisaria se valer de nada mais que não fosse ela mesma para a

compreensão e explicação da realidade, no chamado culto à razão.

Substitui-se com isso a submissão do homem à divindade ou às leis

da natureza, passando a ser o dono do seu próprio destino, em busca de uma vida

melhor, lastreada em ciência e processo, como forma de alcançar uma justiça

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social e um bem-estar individual, tendo nessa visão otimista incentivos para a

prática de mudanças e reformas.

Se a visão moderna trouxe luzes ao obscurantismo, incertezas e à

insegurança antes vivenciadas, teve como corolário ideias relacionadas à

estabilidade, permanência, ordenação, racionalidade, certeza e disciplina entre

outros valores.

O domínio do conhecimento humano, da técnica e modelo das

ciências empíricas tinham na observância e na experiência fatores constitutivos

de determinadas crenças, fruto de pesquisa eficaz, que raramente começa antes

que uma comunidade científica conclua ter respostas seguras a respeito de seus

questionamentos, galgando o patamar do cientificismo, com respostas

plenamente desenvolvidas, ou substitutos integrais a elas.

É o papel da chamada ciência normal, segundo THOMAS S.

KUHN4, atividade em que a maioria dos cientistas emprega quase todo o seu

tempo em pesquisa, na formação do que se chama de um pressuposto, onde a

comunidade científica concluiu pela sua visão do mundo, cujo sucesso decorre da

sua disposição em defendê-lo.

Se a ciência normal resolve de uma maneira geral as investidas

baseadas nas chamadas novidades fundamentais, na medida em ineficazes para a

desconstituição dos compromissos básicos da comunidade científica, com

verdadeira natureza fundada na arbitrariedade, não impede a afetação decorrente

do desenvolvimento de técnicas mais apuradas por membros mais hábeis do

grupo.

4 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Coleção Debates – Ciência, dirigida por J.Guinsburg, Editora Perspectiva, 5ª ed., 1998, p. 23-24.

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Tais investidas, levam ao questionamento dos compromissos

básicos e dos pressupostos que estabilizam a ciência normal, mas se desorienta

face às anomalias apontadas, culminando com a formação de um novo conjunto

de compromissos, em verdadeira revolução científica.

III. DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

Nos primeiros estágios do desenvolvimento da maioria das ciências

caracterizam-se pela competição entre diversas concepções, de naturezas

distintas, cada uma delas parcialmente derivadas, próximas e de certa forma

compatíveis com os ditames da observação e do método científico. Um elemento

aparentemente arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos, é sempre

um ingrediente formador de crenças esposadas por uma comunidade científica

específica numa determinada época.

A pesquisa em desenvolvimento da ciência começa em regra a

partir de determinadas respostas que a comunidade científica pensa seguras.

Conceitua THOMAS S. KUHN5 que “são denominadas de

revoluções científicas os episódios extraordinários nos quais ocorre essa

alteração de compromissos profissionais. As revoluções científicas são os

complementos desintegradores da tradição à qual a atividade da ciência normal

está ligada”.

Se a ciência normal busca a formação de pressupostos para explicar

as realidades do mundo, sofrem constantes investidas próprias do

desenvolvimento tecnológico, aprimoramento científico ou mesmo fruto de uma

5 KUHN, Thomas S. op cit., p. 24.

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pesquisa mais minudente, estando em revolução permanente, rompendo com

paradigmas antes tidos como seguros.

As invenções de novas teorias têm impacto revolucionário, tanto

que KUHN assevera que uma nova teoria, por mais particular que seja, nunca é

um mero incremento ao que já se conhecia, pois, a sua assimilação constitui

rompimento com determinadas regras antes aceitas, numa constante inspeção

direta dos paradigmas, constituindo uma descoberta.

A ciência normal frequentemente suprime novidades fundamentais,

para que não subvertam os compromissos básicos, mas não impedem a investida

dos membros mais hábeis do grupo científico, que a desorientam seguidamente a

ponto de não mais conseguir se esquivar das anomalias apontadas dando ensejo

às revoluções científicas, desintegradoras da tradição.

Antes do rompimento dos paradigmas, o grupo científico assim os

considera como certos, sem a necessidade de, nos seus trabalhos, começar a

construir o pensamento a partir dos primeiros princípios e justificar o uso de cada

conceito introduzido.

Assevera o autor que:

(...) o cientista deve preocupar-se em compreender o mundo e ampliar a precisão e o alcance da ordem que lhe foi imposta. Esse compromisso, por sua vez, deve leva-lo a perscrutar com grande minucia empírica (por si mesmo ou através de colegas) algum aspecto da natureza. Se esse escrutínio revela bolsões de aparente desordem, esses devem ser desafiá-lo a um novo refinamento de suas técnicas de observação ou a uma maior articulação de suas teorias. Sem dúvida alguma existem ainda outras regras desse gênero, aceitas pelos cientistas em todas as épocas.6

6 KUHN, Thomas S. op cit., p .65.

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IV. A PÓS-MODERNIDADE, A ÉTICA E O DIREITO

ZYGMUNT BAUMAN, referindo-se a ULRICH BECK, afirma

que “no curso da modernização riscos e perigos representados pelas forças da

tecnologia 'produzidas pelo homem, foram crescendo sem cessar, até passarmos

da “sociedade industrial” à fase da “sociedade de Risco” da modernidade. Na

qual a lógica da produção de riqueza gradativamente se substitui pela lógica da

evitação de risco – Sendo agora a principal questão: “como se podem prever,

minimizar, dramatizar ou desafiar os riscos os perigos sistematicamente

produzidos como parte da modernização?”7.

Novos perigos decorrem da modernização, antes invisíveis, ou pelo

menos não reconhecíveis imediatamente como tais, que a ciência encontra nas

descobertas antecipadas soluções dos dilemas tecnológicos, formas de

minimização de um risco determinado, que pode ser medido objetivamente,

garantindo reações e respostas possíveis e exequíveis.

Entra-se na fase reflexiva da modernidade, que leva a uma ideia de

responsabilidade moral coletiva, dentro de um “mar de incertezas”, onde a

situação pós-moderna da ética não é nova; o que é novo é a enormidade das

apostas; “se é isso o que a auto-consciência pós-moderna nos deixou claro, essa

nova clareza pode andar um longo caminho para fazer o balanço do golpe que

deu a nossas certezas acarinhadas e desanuviadas”8.

Segundo ULRICH BECK, “na modernidade tardia, a produção

social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de

riscos”, onde a concepção de Marx e Engels de “indústria” ou de “sociedade de

7 BECK, UIrich apud BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-moderna, tradução João Resende Costa, São Paulo: Paulus, 1997, p. 227. 8 BECK, UIrich apud BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-moderna, tradução João Resende Costa, São Paulo: Paulus, 1997, p. 253.

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classes” gira em torno da questão de como a riqueza socialmente produzida pode

ser distribuída de forma socialmente desigual e ao mesmo tempo “legítima”,

coincidindo com o paradigma da sociedade de risco, com processo de

modernização reflexiva, sobrepondo-se questões relativas ao manejo político,

científico e riscos do desenvolvimento tecnológico. Aduz que a distribuição e o

incremento dos riscos trazem situações sociais de ameaça.

Acrescenta que na dinâmica evolutiva as sociedades de classes

continuam referidas ao ideal da igualdade, o que não se verifica no caso da

sociedade de risco, cujo contraprojeto normativo serve de base e impulso à

segurança:

O lugar do sistema axiológico da sociedade ‘desigual’ é ocupado assim pelo sistema axiológico da sociedade ‘insegura’. Enquanto a utopia da igualdade contém uma abundância de metas conteudístico-positivas de alteração social, a utopia da segurança continua sendo peculiarmente negativa e defensiva; nesse caso, já não se trata de alcançar efetivamente algo ‘bom’, mas tão somente evitar o pior. O sonho da sociedade de risco é: todos querem e devem compartilhar do bolo. A meta da sociedade de risco é: todos devem ser poupados do veneno. 9

HANS JONAS conclui que a ética tradicional não mais acompanha

a evolução das tecnologias, com a mudança do novo agir humano, com

preocupação voltada às futuras gerações10.

O utopismo marxista não mais se sustenta, num descompasso entre

o que acontece hoje com a visão ética Kantiana, voltada unicamente para o

presente, ainda que aliada ao pensamento de Hobbes, recebe critica porque

nenhuma motivação tem com a ética do futuro. A tecnologia leva a destruição do

9 BECK, Ulrich. Sociedade de risco. 1ª ed., São Paulo: Editora 34 Ltda., 2010, p. 30-31. 10 JONAS, Hans. O Princípio da Responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Contraponto, Editora PUC Rio.

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homem pelo homem, pelo poder tão grande que detém, a ensejar preocupação

com a visão ética voltada para o futuro, que não pode ser desprezada.

Sob o ponto de vista formal do direito, o máximo que se chegava é

no direito do nascituro, sendo que HANS JONAS rompe com esses limites,

valorizando o direito para futuras gerações. As futuras gerações têm direitos, que

não encontram sustento no sistema atual.

Por sua vez, sob o ponto de visto do direito, tal como construído,

não há como se reconhecer direitos de quem sequer existe, onde o ideal de

sustentabilidade e concretização de um plano depende de como estarão as futuras

gerações, ou mesmo de quantas gerações devem ser tuteladas. Combate-se tanto

o pensamento religioso e dai retira o relativismo do pensamento Kantiano, como

princípio racional, com este direcionando suas críticas, com vistas a busca da

adequação para as gerações futuras, encontrando na metafísica base de

sustentação do seu pensamento.

Indaga HANS JONAS da força que a ética deve ter para as

gerações futuras, o mundo atualmente gira na tentativa de ser feliz no presente.

Nunca o universo tentou tanto ser feliz, sem considerar as gerações futuras.

Pergunta da força que deve ter esse futuro, contrapondo a tecnologia ao

pensamento de Marx, que entendia que a tecnologia é que libertaria do homem,

deixando de fazer o trabalho pesado, libertando o homem. Contrapondo-se a isso

entende que a tecnologia não está libertando o homem, mas o torna prisioneiro,

numa nova relação do tempo e espaço.

Combate a visão utopista de Marx, este destinando a tecnologia

para suprimento das necessidades atuais e presentes, em busca da felicidade, sem

se preocupar com os excedentes sociais voltados ao futuro. Partindo de um mito

grego - Prometeu - que trouxe o fogo para os homens, fogo como a ideia da

razão. Prometeu rouba o fogo e o traz para os homens, gerando a ira dos deuses.

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Zeus acorrenta Prometeu a um penhasco, e corvos comem o fígado de Prometeu,

que se regenera, a ponto de novamente ter seu fígado comido, criando a ideia dos

arquétipos. Prometeu foi condenado a viver acorrentado, buscando a libertação

da razão, com a ideia de uma nova ética. Clama-se por uma ética, com freios na

própria razão, voluntários, ou seja, nada que seja religioso.

A promessa da tecnologia moderna se tornou uma ameaça, com um

vácuo da ética, tudo fragmentado, com o relativismo dos valores atuais, buscando

a necessidade da preservação do homem, com dignidade e respeito, criando-se a

“heurística do medo”, onde a ideia do medo e do perigo levaria o homem a

pensar nas ameaças modernas e tecnologia. Para equacionar o vazio ético propõe

HANS JONAS mobilização do homem, somente possível por um sentimento, o

medo.

Com a ideia da desfiguração do homem, busca-se a sua

preservação, não apenas da sobrevivência física, mas da sua essência, e para a

criação da ideia de uma essência humana, não se desvincula da perquirição da

influencia religiosa. Referindo-se a Sartre, este entende, contrariamente ao

fundamentalismo que justifica a essência, com forte influência religiosa,

precedente a existência, entende o inverso. Para Sartre a existência precede a

essência.

HANS JONAS entende a ideia central da humanidade como

fundamento central da ética, com respeito e cuidado, não aquele Kantiano que só

se volta ao presente, com a necessidade da responsabilidade voltada ao futuro,

estendendo-se até a metafísica, afirmando “que o pecado é irreversível, onde o

perdão não volta a estaca zero”.

Segundo o imperativo categórico de Kant: “Aja de modo que tu

também possas querer que a tua máxima se torne lei geral”, pautado na razão e

de sua concordância consigo mesma, a partir da suposição da existência de uma

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sociedade de atores humanos – seres racionais em ação – onde a ação deve existir

de modo que possa ser concebida, sem contradição, como exercício geral da

comunidade.

Um imperativo adequado ao novo tipo de agir assim seria: “Aja de

modo a que o efeito da tua ação seja compatível com a permanência de uma

autêntica vida humana sobre a Terra”.11

O sacrifício do futuro em prol do presente não é logicamente mais

refutável do que o sacrifício do presente a favor do futuro, com caminho a ser

seguido independentemente da distribuição da felicidade ou infelicidade, sem

contradição na ilação de que a existência e a felicidade das gerações futuras

sejam pagas com a infelicidade ou mesmo com a eliminação parcial da presente,

ou vice-versa.

A tecnologia muda o agir humano, impondo um agir segundo a

ética, agora com novas posturas. As cidades são criações humanas, tendo a

natureza como um poder maior. As muralhas protegiam as cidades da natureza.

Cidades cercadas não se expandem. Qualquer coisa que acontece de grave dentro

das cidades, reclama o agir humano assim condicionado. Com a queda das

muralhas o homem cada vez mais se põe a controlar e invadir a natureza.

Dentro das cidades, ‘a ética visa o homem em relação ao homem,

antropocêntrica, tinha a ver com o aqui e o agora, dentro do circulo imediato da

ação’12, onde ‘novas dimensões da responsabilidade, não rompem com a ética

tradicional’, ensombrecida com a ideia do coletivo13. Nisso, a natureza se torna

vulnerável, com a ideia de interesses difusos, transindividuais, tendo na ética

11 JONAS, Hans. op cit., p.47. 12 JONAS, Hans op cit., p. 35. 13 JONAS, Hans op cit., p. 39.

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tradicional o perdão, que faz o ato começar do zero. Assim, no novo mundo, o

saber é fundamental, o medo imobiliza e a razão cria caminhos14.

Surgem novas concepções de direito e deveres, onde o mundo do

fazer está acima do ‘homo sapiens’, com a tecnologia, o ‘homo sapiens’

prepondera sobre o ‘faber’, surgindo a ideia dos deveres do Estado, de modo a

desenvolver políticas públicas voltadas a contenção das ameaças e dos riscos

com vista a gerações futuras, traçando regras de imperiosa observância, com

um novo mundo do dever.

Propõe-se com isso que se aja segundo uma autêntica vida sobre a

Terra, os efeitos da ação (imperativo categórico) não devem impedir a sequência

autentica e continuidade da humanidade (máxima Kantiana, incluindo o futuro),

propondo HANS JONAS: “inclua a humanidade nas suas ações”, buscando a sua

continuidade. Pode-se arriscar a sua própria vida, mas não a da humanidade.

Tem-se nessa visão ética, diferente de Kant (individual e presente), a ideia do

sujeito coletivo (coletivo e para o futuro).

Tem-se a ética do agir coletivo, ficando a ética de Kant para a vida

cotidiana, sem preocupação com o futuro.

Não há direito em apostar a humanidade. Não temos o direito a não

existência das gerações futuras ou de coloca-las em risco, com preponderância

das politicas públicas sobre o individual de Kant, em prestígio à humanidade.

Sendo o homem um objeto da técnica, com orientação para a

humanidade autêntica, temas como a manipulação genética, prolongamento da

vida, medicalização da vida, relações de consumo, questões ambientais,

sustentabilidade e tantos outros assuntos, ganham novos contornos, criando

deveres da ética do futuro – representação das futuras gerações, medo acoplado a

14 JONAS, Hans op cit., p. 41.

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mais ciência, prevendo-se as consequências futuras para a humanidade, com o

conhecimento do possível, ainda que não se conheça de tudo, mas deve -se

trabalhar tal intento, de forma a consagrar-se a precaução.

Parte-se de uma incerteza, prognóstico do mal, mais destaque à

dúvida do que a certeza, probabilidades das propostas altas, elevadas a princípio

denominado da precaução, constituindo um mandamento da ponderação, herança

de uma evolução anterior, resgatada do passado e que é essencial.

Princípio ético não pode ser fundado na incerteza, e nos temas de

relevância e magnitude, é preciso dar mais valor ao prognóstico do desastre do

que a busca da felicidade, onde a ética tradicional não se aplica a isso, apenas a

vida privada.

Não se pode apostar na totalidade dos interesses dos outros, em

nome do progresso sem possibilidade de haver apostas totais, tanto que assevera

o citado autor que “a humanidade não tem direito ao suicídio”.

A humanidade tem a obrigação incondicional de existir cuja ideia

central não se vincula a divisão dos direitos/deveres, com extinção da

reciprocidade na ética do futuro. Na ética tradicional pensa-se em direito e

deveres, imagem e semelhança do meu próprio direito. Ética tradicional trabalha

a logica dos direito e deveres, enquanto que aquela almejada lida com direitos

ainda não existentes, sem ideia de reciprocidade. Relacionamento de pais e filhos

não contém a ideia de reciprocidade, é a origem genuína da ideia da

responsabilidade.

A humanidade deve continuar existindo, portanto, todos tem o

dever de assim fazer. As gerações presentes têm o dever de manter a humanidade

(existir), enquanto as gerações futuras o dever-ser, tornando possível o seu

alcance.

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As gerações futuras não têm direitos, mas o dever de se manter na

humanidade autêntica, sem reciprocidade.

Dever de todos de dar continuidade a humanidade, criando-se a

ideia de ética pautada no princípio da responsabilidade, longe da ideia de

reciprocidade de direitos e deveres.

Dever de todos e direitos de todos a humanidade autêntica.

V. O UTILITARISMO E A ÉTICA RACIONAL

Para MICHAEL J. SANDEL15, se você acredita em direitos

humanos, provavelmente não é um utilitarista, porque, na sua visão, todos os

seres humanos são merecedores de respeito, não importando quem seja ou onde

vivam, errado trata-los como meros instrumentos da felicidade coletiva.

KANT referido por SANDEL16 apresenta uma proposta alternativa

para a questão dos direitos e deveres, onde da indagação sobre a o princípio

supremo da moralidade tem com o repúdio a maximização do bem-estar e a

valorização da virtude, que não respeitam a liberdade humana, defendendo a

associação da justiça e moralidade.

Ao basear direitos em cálculos sobre o que produzirá a maior

felicidade, argumento central do utilitarismo, os tornam vulneráveis, atrelando

15 SANDEL, Michael J., Justiça – O que é fazer a coisa certa, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 16 KANT apud SANDEL, Michael J., Justiça – O que é fazer a coisa certa, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

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princípios aos desejos, numa ponderação do custo-benefício do bem-estar, que

significa buscar o que traz mais felicidade para um maior número de pessoas,

com a ideia de obtenção de resultado.

Para a visão utilitarista da maximização da felicidade, a finalidade

de se buscar a felicidade, justifica a utilização de determinados meios.

Contrariamente a isso, salienta-se que Kant afirma que a

moralidade não deve ser baseada apenas em considerações empíricas, como

interesses, vontades, desejos e preferências, pois contingentes e variáveis,

destruindo a sua dignidade.

O princípio utilitarista da felicidade não contribui para o

estabelecimento da moralidade, diferente fazer um homem feliz de torna-lo bom,

sem distinguir o certo do errado, com incentivo muito mais à esperteza e astúcia.

Para Kant, temos a capacidade de raciocinar e de sermos livres,

própria dos seres humanos, onde o raciocínio não é o único atributo,

possibilitando ter e sentir desejos e preferências, por meio do exercício do que

denomina “pura razão prática”, não a fundamentando em qualquer autoridade

divina, mas na íntima relação na capacidade de raciocínio e a liberdade.

JEREMY BENTHAM, referido por SANDEL, desprezava a ideia

dos direitos naturais, os considerando absurdos, fundando a doutrina utilitarista,

com ideia central no apelo intuitivo, onde o objetivo da moral é maximizar a

felicidade, com hegemonia do prazer sobre a dor, disso advindo o sentido do

certo e do errado.

Para Bentham o princípio da utilidade erigia-se à condição de

ciência da moral, que poderia servir como base à reforma política.

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Encontra na sua doutrina justificativa para a captura de mendigos,

os levando à segregação, como forma de promover o bem-estar geral e alcançar a

felicidade social, os colocando perto de prostitutas, loucos delirantes, surdos,

idiotas (...).

Crítica maior a isso é a total inaptidão ao respeito dos direitos

individuais, considerando apenas a somatória das satisfações, como um dado

exato, aritmético, como na hipótese da própria tortura como modo de sacrificar o

interesse de um em proveito de uma maioria em maior escala. Ainda que não

favoráveis à tortura, sua utilização segundo o pensamento é aceitável.

Instaura-se um debate ético sobre o tema, pois, para Kant, a tortura

é ruim seja qual for a finalidade, violentando a humanidade, enquanto para o

utilitarismo o fim justifica, sopesando valores maiores. Faz-se no tema da tortura

um cálculo, onde a tortura no seu resultado poupa um sofrimento em maior

escala. Todavia, não se consagra a defesa da tortura, mas um meio para o

resultado.

Na visão utilitarista, após elaborar um cálculo, concluiu que o

melhor a fazer é aquilo que levar ao resultado, onde a moral depende da

utilidade, da finalidade, pesando custos e benefícios. No utilitarismo, busca-se a

felicidade para um maior número de pessoas, não fundada na ideia da razão.

Funda-se na ideia de sensações e não da razão.

Premissas utilitarista levam a ilações do tipo: defender animais que

sofrem, contrário das plantas; mais útil para a sociedade um morrer, que não tem

filhos, do que três outros com famílias e assim por diante.

Contrariamente a isso, a ética racional se pauta pela defesa dos

direitos fundamentais no pensamento de Kant, para este, entrar no raciocínio

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utilitarista, fere a ética, especialmente princípios fundamentais e a dignidade da

pessoa humana.

No entender de Kant existe um piso mínimo de direitos, dentro

deste patamar, garante-se eticamente o mínimo existencial e sempre que se

utiliza uma pessoa humana como meio, fere-se a dignidade.

O que importa é a motivação, ponto central de sua obra “Crítica da

Razão Pura”, tendo a moralidade e liberdade a base de fundamentação, sendo

que, para ser livre é preciso cumprir a lei, com ligação na autonomia, pois ser

autônomo e com liberdade é agir conforme a lei, mas uma lei que eu fiz e não

aquela desvinculada de princípios.

A ideia do livre-arbítrio tem relação com a visão cristã, sendo que,

para Kant, tem-se um pacto social, e ser livre é agir dentro do que foi contratado,

sendo a liberdade não apenas a ausência de restrições ao agir, pois assim só se

faz para satisfação de uma vontade, necessidade, preferência, etc. Assim fazendo,

não se age com liberdade, mas segundo regras exteriores e longe dos princípios

internos.

Se a ação tem um apelo exterior, não há falar em liberdade, mas a

vontade do outro, a liberdade não se vincula aos apelos internos, mas à razão. Se

o tema é ética, não se seguem inclinações sociais; para Kant, ser livre é cumprir

seu dever: livre para a ética é aquilo que não tem apelo exterior.

Extrai-se o pensamento de Kant o conceito de dignidade da pessoa

humana, onde o homem não é usado como meio, mas considerado em si mesmo,

o motivo é o que importa, fazer o que é certo, não pelos seus apelos externos.

O diferencial é a intenção de agir eticamente, ainda que o resultado

final seja o mesmo com aplicação do pensamento utilitarista.

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Os princípios da ética são incondicionais, se impõem em si

mesmos, o chamado imperativo categórico, não hipotético. O imperativo

categórico existe em função da razão, e a ética só existe a partir de uma lei

fundante.

A razão deve produzir suas leis, sendo a primeira lei, o primeiro

imperativo categórico, construindo uma lei fundamental e universal, que é o

primeiro elemento da ética, com potencial de se transformar em uma lei

universal, propiciando a fundamento para nortear o agir humano, sem qualquer

apego a divindade.

Segundo pensamento Kantiano, deve-se agir de acordo com a sua

razão, dentro de princípios que podem ser universalizados, sem qualquer vínculo

com apegos externos.

O princípio imperativo categórico, também, num segundo plano, se

funda no fim em si mesmo, pessoas são racionais e devem agir para um fim, em

si mesmo, tendente a universalidade, com a ideia da dignidade, justificativa para

se alcançar a ética racional.

Nesse cenário, como ilustração, considera o suicídio eticamente

incorreto, onde o suicida tenta resolver seus problemas, mas não da humanidade,

juntamente com o homicídio violam os princípios da dignidade da pessoa

humana.

Agir moralmente é agir por dever, agir com liberdade é agir

segundo o imperativo categórico, respeitando a dignidade da pessoa humana, não

agir por inclinação ou apelos externos.

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VI. VALORES, CONSENSO, UNIVERSALIDADE DE DIREITOS,

POSITIVAÇÃO, ERA DOS DIREITOS E GERAÇÃO DE DIREITOS

NORBERTO BOBBIO, conceituado filósofo do direito

contemporâneo nas suas ideias, sempre de maneira lúcida e inovadora, mantém

coletâneas de artigos escritos entre as décadas de 1960 e 1970, com análise e

preocupação profunda da era pós-moderna, desde o fim das Guerras Mundiais e a

partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, como em preâmbulo e

antevendo a ideia de gerações de direitos.

Salienta BOBBIO17 que, em 1987, no Simpósio sobre

“Fundamentos dos Direitos do Homem”, promovido pelo Institut International

de Philosophie, alertava para o problema grave de nosso tempo, relativamente

aos direitos do Homem, que não era mais o de fundamentá-los, mas protegê-los.

Afirmava que a problemática dos direitos “passou do campo

filosófico para o jurídico e, num sentido mais amplo, político”. Como problema

mais urgente a se enfrentar entende não ser o fundamento, mas o das garantias.

Valores originariamente se fundavam na natureza humana, que os

considerava como verdades evidentes, aceitos em determinados momentos

históricos. Depois, tais evidências evoluem para desdobramentos, segundo

momentos históricos posteriores, que se distanciam daqueles valores

fundamentais, evidenciando-se muito mais o interesse individual. Em um terceiro

momento, os valores se justificam pelo apoio que guardam no consenso, ou seja,

um valor tanto mais é fundado quanto mais é aceito.

17 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, tradução de Carlos Nelson Coutinho,. Rio de Janeiro: Editora Campus, 7ª Tiragem, 2004.

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Para BOBBIO toda classificação é uma violência contra a própria

história, tendo no exemplo de quando começa a modernidade, função muito mais

didática, dando a ideia de que tudo é quadrado, simétrico. Filosoficamente

falando, não há uma continuidade histórica que justifique um pensamento, pois

uma parte de um contexto e pressupostos diversos, razão porque deve se atenuar

a violência histórica.

BOBBIO assevera que a partir da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, que representou um fato novo na história, princípios

fundamentais de conduta humana livre e expressamente aceitos pelos governos

da maioria dos homens que vivem na Terra. Pela primeira vez valores são

erigidos a universais, cujo consenso sobre a sua validade e capacidade para reger

os destinos da comunidade futura de todos os homens foi explicitamente

declarado.

São valores comuns partilhados por toda humanidade, fruto de

longa conquista com papel filosófico importante na sua concretização.

A problemática dos direitos humanos deve ser analisada sob o

ponto de vista prático de sua efetividade e não do fundamento. Ainda que se tente

deixar de lado os fundamentos, faz uma análise destes, como forma de apontar as

dificuldades para que tais direitos se implementem ou se efetivem.

A discussão dos direitos humanos não é mais de se buscar seus

fundamentos filosóficos, mas jurídicos, para garantir-lhes eficácia, surgindo no

contexto da Assembleia Geral da ONU, relativamente ao que se sucedeu com os

Direitos Universais do Homem.

O fundamento não é inexistente, mas em certo sentido resolvido,

com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a discussão filosófica não é

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desprezada, mas não é mais prioritária, mas superada a partir de um consenso de

valores aceitos universalmente, como fruto da própria natureza humana.

Aqueles direitos passaram a ser positivados.

Nesse processo, três foram os modos de se fixar valores

considerados universais, num primeiro momento analisar a natureza humana sob

o ponto de vista universal de que todos somos iguais. Se partirmos do

pressuposto da sua existência e da natureza humana, cada filosofo explica de sua

maneira, não se tendo uma certeza de seu fundamento.

O segundo modo da evidência, exclui qualquer outro modo de

questionamento sobre a razão de se fazer evidente, pela própria evolução

histórica, tal pressuposto.

A Declaração dos Direitos Humanos tira a evidência por exemplo

de que não se deve torturar. Não se pode fundar valores na natureza humana,

nem mesmo pelas evidências, porque elas mudam segundo o contexto histórico.

O terceiro modo é de se fundar o valor num consenso, mudando a

subjetividade para um parâmetro objetivo, bastante perigoso, porque, como

salienta, o nazismo era um consenso histórico. BOBBIO, sob o ponto de vista

dos Direitos Humanos, não descarta os momentos históricos desses consensos.

O consenso não é absoluto, mas é possível, sem fazer um apelo ao

absoluto para se chegar a um consenso que não seja relativo, como um pacto, que

tem valor limitado aos contextos históricos. Ideias da natureza humana naquele

momento histórico. Nem tanto ao relativismo jusnaturalista, nem ao absoluto

histórico. Há categorias históricas dos direitos.

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A Declaração dos Direitos Humanos é um consenso histórico18.

O argumento do consenso diz que o fundamento nunca é absoluto,

mas quanto mais aceito, se faz o consenso.

O positivismo aceito por quarenta e oito Estados, passou a servir de

norte aos demais, por ser aceito pela maioria dos homens que vivem na Terra,

por isso atingindo o patamar de universal.

A Declaração significa não aquilo que objetivamente é aceito

universalmente, mas subjetivamente aceito num momento histórico, sendo o

documento essa prova.

Na obra de BOBBIO explicita-se a lenta conquista histórica a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, que passa por estágios.

No jusnaturalismo moderno (Locke, Hobbes, Rousseau etc.)19, a

liberdade é um ideal, não existência, mas um valor, um ‘dever ser’, segundo um

modelo (dignidade, natureza, liberdade etc). O ‘ser’ deve se adequar ao ‘dever

ser’, com respeito ao princípio. Serve de proposta ao legislador, ideia de

universal dos grandes direitos.

Um segundo momento se dá quando esses grandes direitos saem da

teoria para a prática, ganhando na concretude, mas perdendo na universalidade,

com distinção do que se denomina o mundo da prática e do poder. Esses direitos

com a Declaração são positivados, valendo para localidades, mas não na

universalidade, ganha na eficácia e perdem na universalidade. Os que menos

precisam positivam, mas os que precisam, não. Não é Universal, mas eficaz para

certas regiões.

18 BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 26. 19 BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 29.

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A Declaração dos Direitos Humanos que positiva para uma

universalidade. Se positivou valores universais (1948), “Direitos do Homem”,

sem ideia de fronteiras.

Assim ocorrendo, aponta para certos problemas, pois as declarações

não têm sanções, são abstratas, despertando BOBBIO para a busca de solução

desses problemas, com a necessidade de concretizar para efetivar tais direitos.

Passa-se, então à ideia da ‘geração’ dos direitos para a sua

efetividade, partindo-se do princípio de que os direitos humanos são mutáveis,

não definitivos, pois não são frutos da natureza, são influenciáveis pelo contexto

histórico da civilização.

A respeito das chamadas ‘gerações de direitos’, os fundamenta

naqueles chamados ‘Direitos Negativos”, direitos contra o absolutismo,

limitando-se o poder do Estado; além dos ‘Direitos Positivos’, onde há a

participação na sua formação, criando-se os chamados direitos sociais; não

apenas aqueles em que o Estado exemplificadamente deva garantir a vida, para

que não me mate, mas que me dê, também, educação, saúde etc.; por fim nos

‘Direitos de Solidariedade’, com a ideia de coletividade, com críticas a essa

teoria de gerações de direitos pela visão demasiadamente simplista, tanto que se

fala em direitos de até sexta geração.

Na busca de soluções para a efetividade dos direitos universais,

BOBBIO trabalha com a ideia da Dimensão dos direitos. Sob esse ângulo dos

Direitos Negativos, tendo como objeto a Liberdade, parte-se primeiro da ideia de

conflitos (Estado X indivíduo), sendo sujeito o cidadão (cidadania – Revolução

Francesa – cidadania). Nascem os direitos dos cidadãos enquanto indivíduo

(Vida, Liberdade, Propriedade).

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Quanto à segunda geração de direitos, temos os chamados direitos

sociais/econômicos, tendo no conflito entre o Capital vs Trabalho, o sujeito

Trabalhador (Classe trabalhadora) como centro, tendo como objeto todas as

conquistas sociais. Nasce o Direito do Trabalho – Previdência. Chocam-se os

interesses individuais com o coletivo e sociais.

A Terceira análise (genericamente denominados dos direitos de

solidariedade, ou de terceira geração), BOBBIO chama de especialização de

direitos, começa a ter uma fragmentação desses mesmos direitos.

Parte-se do homem abstrato, para o homem trabalhador, chegando-

se a fragmentação dos direitos à vida, por exemplo, especificando esses direitos

(mulher, criança, índio, idoso, deficiente, ambiente, consumidor etc).

São coletividades fragmentadas.

O conflito passa a ser entre o ‘Mercado vs Cidadão’’. Disso surge a

ideia de Proteção das Vulnerabilidades, dentro da coletividade fragmentada.

Pode-se incluir nisso os chamados ‘Direitos Difusos’. Acopla-se

aos direitos a ideia de deveres, como solidariedade. Tais direitos se conflitam

com direitos de outras dimensões, sem prejuízo dos conflitos entre os próprios

direitos em suas dimensões internas.

Essa terceira dimensão de direitos para alguns é Antropocêntrica,

culminando com o surgimento dos chamados ‘Direitos de 4ª Dimensão’, no

interesse das gerações futuras, meio ambiente sustentável, dentre outros. Seriam,

para outros, fragmentação dos ‘Direitos de 3ª Dimensão’.

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Os chamados ‘Direitos de 3ª Dimensão’ cuidam de interesses entre

presentes, cuja fragmentação parece que não abrange aqueles futuros ou mesmo

sem identificação subjetiva.

Parece surgir uma ‘4ª Dimensão’, muito mais com o caráter de

deveres e não mais de direitos, aquilo que BOBBIO denomina transição entre o

mundo dos direitos e o mundo dos deveres.

VII. OS DIREITOS SOCIAIS E A TUTELA COLETIVA

Retomando a relevante classificação das “gerações de direitos”,

brevemente analisada acima, difundida por BOBBIO, é certo que os direitos

fundamentais de primeira geração, herança das revoluções liberais, decorrem do

Jusnaturalismo, como liberdades individuais que devem ser asseguradas em face

do Estado.

No âmbito dos interesses metaindividuais, importante salientar, por

sua vez, os direitos de terceira geração, de caráter universal, são identificados por

cinco direitos da fraternidade, consoante PAULO BONAVIDES20 enumera: o

direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito

de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de

comunicação.

Nada obstante o aprofundamento ter ocorrido no contexto dos

direitos de terceira geração, consubstanciados após as duas Grandes Guerras

Mundiais, emergindo a Declaração de Direitos Humanos (1948), já consignada

acima, o início do reconhecimento dos direitos de dimensão coletiva ocorreu

20 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 32ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017, p. 584.

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em momento anterior, com a busca das liberdades reais (prestações públicas

positivas), a fim de corrigir as desigualdades existentes na sociedade.

Assim, daremos enfoque ao estudo dos “direitos de segunda

geração”, oriundos dos movimentos de cunho social, que surgiram no contexto

da Revolução Industrial, tornando imprescindível a evolução do processo civil

para garantia desses direitos sociais através da tutela coletiva.

Com a mudança do Estado Liberal e o desenvolvimento do Estado

Social, cujos dois paradigmas são as Constituições Mexicana (1917) e de

Weimar (1919), nasceu a necessidade de reconhecimento jurídico dos direitos de

segunda geração, que traduzem, basicamente, os direitos coletivos stricto sensu,

quais sejam: direito à saúde, direito à educação, direitos aos trabalhadores, direito

à assistência social, entre outros.

Refletindo essa realidade, segundo relata PAULO BONAVIDES, a

Constituição de 1934 positivou:

(...) a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo, a ordem econômica e social, a instituição da Justiça do Trabalho, o salário-mínimo, as férias anuais do trabalhador obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da educação e da cultura debaixo da proteção especial do Estado.21

Trata-se de direitos que exigem a atuação positiva do Poder

Público, com o fornecimento de prestações materiais, objetivando assegurar a

igualdade material, “direito-chave do Estado Social”22, diante da superação da

igualdade jurídica do Liberalismo.

21 BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 377. 22 BONAVIDES, Paulo. op. cit,, p. 384.

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Deve, portanto, o Estado promover a isonomia fática da sociedade,

efetivando os direitos fundamentais garantidos na ordem constitucional.

Em razão disso, inicialmente, reconheceu-se caráter meramente

programático desses direitos de segunda geração. Isso porque, questionou-se a

eficácia decorrente da própria natureza desses direitos, uma vez que as prestações

materiais exigidas dependem da existência de meios e recursos do Estado, que,

muitas vezes, são limitados23.

Diferentemente do que ocorre com os direitos de primeira geração,

os quais a mera positivação no ordenamento jurídico já possibilita seu exercício,

oponível ao arbítrio estatal, exigindo simples abstenção; nos direitos de segunda

geração, a exigência de atuação positiva do Estado gerou essa crise de execução e

eficácia, que deve ser superada, contudo, diante da expressa previsão na

Constituição Federal de 1988 de aplicabilidade imediata dos direitos

fundamentais, nos termos do §1º do art. 5º, o que incluiu os direitos sociais

básicos.

Dessa forma, verifica-se que a obrigatoriedade das normas de

direitos econômicos, sociais e culturais - os direitos de segunda geração,

vinculam as políticas públicas a serem adotadas pelos governantes brasileiros,

com vistas a reduzir as desigualdades sociais e regionais, erradicando a pobreza e

marginalização24.

Embora inexistente liberalidade na atuação positiva estatal, que

decorre do reconhecimento dos direitos de segunda geração, não é esse o

panorama que se observa na realidade brasileira, em que se observa crescente

demanda por essas prestações materiais, diante da omissão estatal, como, por

exemplo, ocorre nas inúmeras ações de fornecimento de medicamentos.

23 BONAVIDES, Paulo. op. cit,, p. 578-579. 24 WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. 2ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 63.

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Nesse ponto, cumpre salientar que a inobservância dos direitos

sociais extrapola o âmbito do interesse individual, característico dos direitos de

liberdade (direitos de primeira geração), necessitando de adequados mecanismos

de tutela, o que impôs, nesse contexto, o desenvolvimento do processo coletivo, e

não de forma individual como tem se verificado na praxe forense.

Sobre a questão, bem assevera CARLOS WEIS:

Não se pode, ainda, esquecer os dados sociológicos em questão, a relevar que os direitos sociais rompem o padrão jurídico liberal, cujas garantias têm em vista a proteção de direitos individuais. Os novos direitos, de outro lado, carregam consigo demandas daqueles que não têm seus direitos reconhecidos ou viabilizados, em face da inexistência de condições materiais que assegurem sua fruição, geralmente identificados em interesses que transcendem a esfera individual. Esta novidade só recentemente tem sido acompanhada

pelo surgimento de estruturas processuais que possibilitam a

defesa judicial de pretensões originadas dos referidos direitos econômicos, sociais e culturais.

25 (sem grifos no original)

Segundo referido autor, a possibilidade de judicialização de

pretensão para exigir o cumprimento dos direitos econômicos, sociais e culturais

que os caracteriza como de interesses transindividuais, certo que há pluralidade

de interessados e a “ausência de uma pretensão particularizada contra o

Estado”26.

Vê-se que a evolução da tutela coletiva acompanha, e não poderia

ser diferente, o direito material, com o qual intimamente interage; este, por sua

vez, desenvolve-se de acordo com as relações da sociedade, que estão em

constante mudança.

25 WEIS. Carlos. op. cit., p. 65. 26 WEIS. Carlos. op. cit., p.189.

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Cabe ao legislador identificar essas novas situações, promovendo a

adaptação do processo à necessidade de novas formas de tutela jurisdicional,

certo que não basta a positivação dos direitos coletivos lato sensu, mas também

imprescindível a previsão de meios para torná-los efetivos27.

Especificamente no caso dos direitos coletivos stricto sensu – de

segunda geração, a efetivação destes pressupõe a estruturação dos serviços e

políticas públicas, bem como dos mecanismos de tutela coletiva a fim de

promover o próprio acesso à justiça em prol de sua eficácia.

VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O período pós-modernidade rompe com uma era, dando início a

algo novo, com o fim do racionalismo, o vazio teórico, a insegurança que se

extrai efetivamente da sociedade, com princípios e valores que se desenvolvem

com espantosa rapidez.

A interpretação dos fenômenos políticos e jurídicos passa a não ser

apenas um exercício abstrato na busca de verdades universais e desvinculadas do

seu contexto histórico.

Os avanços da ciência e tecnologia, seja pelo desenvolvimento dos

domínios da informática e da rede mundial dos computadores, trouxe mudanças

no próprio processo de produção e da atividade lucrativa, antes atrelado ao

trabalho, com geração de recursos que longe se mostra dos modelos produtivos e

industriais da modernidade, com nova concepção de interesses, muito mais

27 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2017, p. 35-36.

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voltados a geração de recursos à prestação de serviços fundada na veiculação

informática e de dados, dando novos contornos à competitividade.

A visão iluminista pautada no poder quase absoluto da razão, sofre

primeiro abalo em Marx, que assentou que as crenças religiosas, filosóficas,

políticas e morais dependiam da posição social do indivíduo, das relações entre

produção e trabalho, com posterior descoberta de que o homem não é senhor

absoluto da sua própria vontade, desejo e instintos.

O Estado moderno surge ao final da Idade Média, das ruínas do

feudalismo, na passagem do Estado absolutista para o liberal, com o direito

incorporando o jusnaturalismo racionalista. Consolida-se o Direito moderno com

a onda positivista com vocação de ciência. A teoria crítica do direito passa a

enxerga-lo fora de sua pureza, desvinculado da atuação dos sujeitos que o

consolidam, seja legislador, juiz ou jurista, com destaque para a sua

diferenciação instrumental e crítica.

O papel do jusnaturalismo é relevante, ao partir da ideia de que a lei

estabelecia a vontade divina, para depois dar ênfase ao seu aspecto racional,

marcante na era moderna, culminando com a Revolução Francesa e Americana,

sem falar na explicitação de direitos fundamentais consolidados a partir de um

consenso, explicitados como verdadeira universalidade, passando-se ao chamado

positivismo jurídico.

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do

positivismo, segundo LUIS ROBERTO BARROSO:

(...) abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das

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relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada ‘nova hermenêutica’ e a teoria dos direitos fundamentais. 28

O pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas

da superação do conhecimento convencional, não voltada à solução dos conflitos

de interesses entre presentes, mas também voltado às gerações futuras, interesses

que transcendem ao individual, mas aos interesses transindividuais, coletivos e

difusos.

A própria Constituição Brasileira traça regras, define princípios,

com frequentes mudanças de paradigmas, com carga valorativa em reformulação,

sem voltar aos processos antecedentes em retrocesso, mas evolutivos do

pensamento universal.

Os princípios constitucionais passam a ser a síntese dos valores

abrigados, espelho da ideologia da sociedade, dando harmonia ao sistema,

cabendo ao intérprete a identificação do primado maior que rege o tema.

Nesse contexto da geração de novos direitos, decorrentes da própria

concepção da dignidade da pessoa humana, modalidades difusas de interesses

ganham contornos para a sua efetividade, não apenas constituídos de conceitos

programáticos, em verdadeira evolução.

Seja na garantia dos direitos universalizados e fruto de um

consenso geral, mas principalmente na sua especialização com contornos de dar

efetividade às suas disposições, inclusive impondo a força coercitiva e punitiva

na sua observância, estará se pautando na melhor sustentabilidade das gerações

vindouras, com melhor dignidade à Humanidade em todos os seus aspectos.

28 BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. Revista da EMERJ, v. 4, nº 15, 2001, p. 29.

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Nas chamadas ‘Gerações de direitos’, preconizadas por BOBBIO, a

partir dos chamados direitos sociais, proclama os chamados ‘Direitos de

Solidariedade’ na busca da maior dimensão dos direitos universais,

independentemente da rotulação como fragmentação daqueles ou especialização

em proteção às vulnerabilidades próprias da evolução social, com preocupação

aos chamados ‘Direitos de 4ª Dimensão’, no interesse das gerações futuras, meio

ambiente sustentável, dentre outros.

Sob esse espectro, a principiologia se aprimora, seja com novos

enfoques em garantia da efetivação das conquistas universais, com projeção

voltada ao futuro, em tempo em que sequer se imaginava contemplar, tendo na

perspicácia de BOBBIO discorrida acima antevisão comparável a um vaticínio,

de grande contribuição para a formação dos Direitos em permanente evolução.

O sacrifício do futuro em prol do presente como preconiza HANS

JONAS não é logicamente mais refutável do que o sacrifício do presente a favor

do futuro, com caminho a ser seguido independentemente da distribuição da

felicidade ou infelicidade, sem contradição na ilação de que a existência e a

felicidade das gerações futuras sejam pagas com a infelicidade ou mesmo com a

eliminação parcial da presente, ou vice-versa.

O agir humano exige pautar-se na ética, agora com novas posturas,

em prestígio da relação do homem com os seus pares, onde novas dimensões da

responsabilidade voltam-se à ideia do coletivo, dos interesses difusos,

transindividuais, mobilizando a razão a criar caminhos.

Surgem novas concepções de direito e deveres, especialmente do

Estado, o que torna imprescindível a necessidade de novas formas de tutela que

se ajustem às especificidades destes novos direitos materiais com enfoque nas

relações de natureza coletiva, de modo a tornar efetivos os direitos sociais

básicos.

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Necessário, assim, o desenvolvimento de políticas públicas voltadas

a contenção das ameaças e dos riscos com vista a gerações futuras, traçando

regras de imperiosa observância, com um novo mundo do dever.

Propõe-se com isso que aja o Homem incluindo a Humanidade nas

suas ações, buscando a sua continuidade, pois em relação a esta não se admite

correr riscos, com a ética do agir coletivo, de onde se elevam novos princípios

como os da responsabilidade, proporcionalidade e precaução.

IX. BIBLIOGRAFIA

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