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A Presença Indígena na Formação do Brasil Série Vias dos Saberes n o 2 E D U C A Ç Ã O P A R A T O D O S C O L E Ç Ã O

A Presença Indígena Na Formação Do Brasil - João Pacheco de Oliveira

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  • A Presena Indgena na

    Formao do Brasil

    Srie Vias dos Saberes no 2

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

  • A Coleo Educao para Todos, lan-ada pelo MEC e pela UNESCO em 2004, um espao para divulgao de textos documentos, relatrios de pesquisas e eventos e estudos de pesquisadores, acadmicos e educadores, nacionais e in-ternacionais, no sentido de aprofundar o debate em torno da busca da educao para todos.

    Representando espao de interlocu-o, informao e formao para o p-blico interessado no campo da educao continuada, reafirma o ideal de incluir so-cialmente o grande nmero de jovens e adultos excludos dos processos de apren-dizagem formal no Brasil e no mundo.

    Para a Secretaria de Educao Con-tinuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao, a educao para todos no pode separar-se de questes como qualificao profissional e mundo do trabalho; direitos humanos; etnia; gnero e diversidade de orientao sexual; justia e democracia; tolerncia e paz mundial; bem como desenvolvimento ecologica-mente sustentvel. Alm disso, a compre-enso e o respeito pelo diferente e pela diversidade so dimenses fundamentais do processo educativo.

  • EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

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    L E O

    A Presena Indgena na

    Formao do Brasil

    Joo Pacheco de OliveiraCarlos Augusto da Rocha Freire

    Braslia, novembro de 2006

  • Edies MEC/Unesco

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaRepresentao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/Unesco, 9 andar Braslia, DF, CEP: 70070-914Tel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

    SECAD Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeEsplanada dos Ministrios, Bl. L, sala 700Braslia, DF, CEP: 70097-900Tel: (55 61) 2104-8432Fax: (55 61) 2104-8476

  • EDUCAO PARA

    TODO

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    L E O

    A Presena Indgena na

    Formao do Brasil

    Joo Pacheco de OliveiraCarlos Augusto da Rocha Freire

    Braslia, novembro de 2006

  • 2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco) e Projeto Trilhas de Conhecimentos LACED/Museu Nacional

    Conselho Editorial da Coleo Educao para TodosAdama OuaneAlberto MeloClio da CunhaDalila ShepardOsmar FveroRicardo Henriques

    Coordenao EditorialAntonio Carlos de Souza Lima

    Reviso: Malu ResendeProjeto Grfico e Diagramao: Andria ResendeAssistentes: Jorge Tadeu Martins e Luciana RibeiroApoio: Rodrigo Cipoli Cajueiro e Francisco das Chagas de Souza / LACED

    Tiragem: 5000 exemplares

    A Presena Indgena na Formao do Brasil / Joo Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade;

    LACED/Museu Nacional, 2006.

    ISBN 978-85-60731-17-6

    268 p. (Coleo Educao para Todos; 13)1. ndios do Brasil. 2. Histria do Brasil. 3. Indigenismo. 4. Polticas Indigenistas. I. Pacheco de Oliveira, Joo. II. Freire, Carlos Augusto da Rocha.

    CDU 39(=1.81-82)

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da Unesco e do Ministrio da Educao, nem comprometem a Organizao e o Ministrio. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da Unesco e do Ministrio da Educao a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

  • Parceiros

    Este livro integra a srie Vias dos Saberes, desenvolvida pelo Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indgenas no Brasil / LACED Labora-trio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento / Museu Nacional UFRJ, em parceria com a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), e contou com o financiamento do fundo Pathways to Higher Education Initiative da Fundao Ford e da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco).

    A iniciativa Pathways to Higher Education (PHE) foi concebida para comple-mentar o International Fellowships Program IFP da Fundao Ford, e tem como proposta investir recursos em vrios pases at o ano de 2010 para promover pro-jetos que aumentem as possibilidades de acesso, permanncia e sucesso no En-sino Superior de integrantes de segmentos educacionalmente sub-representados em pases nos quais a Fundao Ford mantm programas de doaes. Enquanto o IFP apia diretamente indivduos cursando a ps-graduao por meio da con-cesso de bolsas de estudo, a PHE tem por objetivo fortalecer instituies educa-cionais interessadas em oferecer formao de qualidade em nvel de graduao a estudantes selecionados para o programa, revendo suas estruturas, metas e rotinas de atuao. Na Amrica Latina, a PHE financia projetos para estudantes indgenas do Brasil, do Chile, do Mxico e do Peru.

  • Sumrio

    ApresentaoRicardo Henriques ............................................................................................. 9

    PrefcioAntonio Carlos de Souza Lima ........................................................................ 11

    Introduo ..................................................................................................... 171 Os ndios do Brasil em 1500 ........................................................ 212 O imaginrio colonial ..................................................................... 25 Fontes para pesquisa ........................................................................... 31

    Parte 1 I Regime dos Aldeamentos Missionrios [15491755]1 Sobre o sistema colonial ............................................................... 351.1 A fora de trabalho indgena ................................................................ 38 Fontes para pesquisa ........................................................................... 44

    2 A ao missionria ......................................................................... 46 Fontes para pesquisa ........................................................................... 50

    3 A resistncia indgena ................................................................... 513.1 A guerra dos brbaros ....................................................................... 533.2 A Revolta de Ajuricaba ......................................................................... 563.3 Os jesutas e os Trinta Povos das Misses .......................................... 57 Fontes para pesquisa ........................................................................... 61

    Leituras adicionais O Regimento de 1 de abril de 1680 ................................................. 62 Mem de S e as guerras dos ilhus ............................................... 63 Jean de Lry e os Tupinamb ........................................................... 65

  • Parte 2 I Assimilao e Fragmentao [17551910]1 Entre o sistema colonial e o imprio brasileiro ....................... 691.1 O diretrio dos ndios ........................................................................... 701.2 Terra, trabalho indgena e colonizao ................................................ 74 Fontes para pesquisa ........................................................................... 78

    2 A ao missionria ......................................................................... 80 Fontes para pesquisa ........................................................................... 83

    3 A resistncia indgena ................................................................... 843.1 A Cabanada ......................................................................................... 873.2 A Cabanagem ...................................................................................... 90 Fontes para pesquisa ........................................................................... 92

    4 As imagens dos ndios nos sculos XVIII e XIX ...................... 93 Fontes para pesquisa ........................................................................... 97

    Leituras adicionais Carta Rgia Sobre os ndios Botocudos, cultura e povoao dos

    Campos Geraes de Coritiba e Guarapuava (05/11/1808) ................. 99 Texto de Jos Bonifcio de Andrada e Silva: os ndios devem gozar

    dos privilgios da raa branca ........................................................ 102 Deprecao Poema de Antnio Gonalves Dias .......................... 104

    Parte 3 I O Regime Tutelar [19101988]1 A precursora do indigenismo brasileiro: a Comisso

    Rondon ............................................................................................ 107 Fontes para pesquisa ......................................................................... 110

    2 O Regime Tutelar .......................................................................... 112 2.1 Criao e natureza do SPI ................................................................. 112 2.2 As intervenes do SPI ...................................................................... 1152.2.1 Atrao e pacificao ......................................................................... 116 2.2.2 As terras dos ndios ........................................................................... 1192.2.3 Assistncia sanitria e educacional ................................................... 123 2.2.4 Os rituais cvicos ................................................................................ 124 Fontes para pesquisa ......................................................................... 125

    3 O Conselho Nacional de Proteo aos ndios (CNPI) .......... 128

  • 4 A nova agncia indigenista ......................................................... 1314.1 A FUNAI e as terras indgenas .......................................................... 133 Fontes para pesquisa ......................................................................... 135

    5 Polticas e saberes de Estado em disputa: indigenismo laico e misses religiosas .................................. 1385.1 As misses tradicionais ...................................................................... 1385.2 Rondon e os missionrios .................................................................. 1415.3 O espao poltico das misses .......................................................... 1435.4 A conquista de almas e territrios ..................................................... 1445.5 A presena protestante ...................................................................... 147

    6 Um novo projeto missionrio ..................................................... 148 Fontes para pesquisa ......................................................................... 152

    7 O imaginrio sobre os indgenas no sculo XX .................... 157 Fontes para pesquisa ......................................................................... 162

    Leituras adicionais Misso Rondon (1908) .................................................................... 163 Declarao de Barbados I .............................................................. 170 Y-Juca-Pirama o ndio: aquele que deve morrer (1973) ............... 178

    PARTE 4 I Ensaios de Cidadania Indgena (19882006)1 Um novo contexto para os outros quinhentos ...................... 1872 O CIMI e o movimento indgena ................................................ 188 3 O movimento indgena, a mobilizao da sociedade civil e a Constituinte ................................................ 1914 O fortalecimento das organizaes indgenas ....................... 1955 Rede de apoio e protagonismo do movimento indgena ..... 197 Fontes para pesquisa ......................................................................... 199

    Leituras adicionais Captulo sobre os ndios: Constituio Federal/1988 ...................... 202 Conveno N 169 da OIT sobre Povos Indgenas e Tribais ........... 204 Mapa das Terras Indgenas (PPTAL/2005) ...................................... 205

    Cronologia .................................................................................................. 207

    Referncias ................................................................................................. 245

  • 9Apresentao

    A Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (SECAD/MEC) tem enorme satisfao em publicar, em parceria como o Laboratrio de Pesquisas em Etnicida-de, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o presente livro, parte da srie Vias dos Saberes.

    Uma de nossas mais importantes misses propor uma agenda p-blica para o Sistema Nacional de Ensino que promova a diversidade sociocultural, extrapolando o seu mero reconhecimento, patamar j afirmado em diversos estudos sobre nossa sociedade, os quais derivam, em sua grande maioria, de celebraes reificantes da produo cultural de diferentes grupos sociais, que folclorizam manifestaes produzidas e reproduzidas no dia-a-dia das dinmicas sociais e reduzem os valores simblicos que do coeso e sentido aos projetos e s prticas sociais de inmeras comunidades.

    Queremos interferir nessa realidade transformando-a, propondo questes para reflexo que tangenciem a educao, tais como: de que modo reverteremos a histrica subordinao da diversidade cultural ao projeto de homogeneizao que imperou ou impera nas polticas p-blicas, o qual teve na escola o espao para consolidao e disseminao de explicaes encobridoras da complexidade de que se constitui nossa sociedade? Como convencer os atores sociais de que a invisibilidade dessa diversidade geradora de desigualdades sociais? Como promover cidadanias afirmadoras de suas identidades, compatveis com a atual construo da cidadania brasileira, em um mundo tensionado entre plu-

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    ralidade e universalidade, entre o local e o global? Como transformar a pluralidade social presente no microespao da sala de aula em estmulo para rearranjos pedaggicos, curriculares e organizacionais que com-preendam a tenso gerada na sua positividade, a fim de ampliar e tornar mais complexo o dilogo entre realidades, perspectivas, concepes e projetos originados da produo da diversidade sociocultural? Como superar a invisibilidade institucionalizada das diferenas culturais que valida avaliaes sobre desempenho escolar de crianas, jovens e adul-tos sem considerar as suas realidades e pertencimentos sociais?

    O impulso pela democratizao e afirmao dos direitos humanos na sociedade brasileira atinge fortemente muitas das nossas instituies es-tatais, atreladas a projetos de estado-nao comprometidos com a anu-lao das diferenas culturais de grupos subordinados. Neste contexto, as diferenas culturais dos povos indgenas, dos afro-descendentes e de outros povos portadores de identidades especficas foram sistema-ticamente negadas, compreendidas pelo crivo da inferioridade e, desse modo, fadadas assimilao pela matriz dominante.

    A proposta articular os atores sociais e os gestores para que os de-safios que foram postos estabeleam novos campos conceituais e prti-cas de planejamento e gesto, renovados pela valorizao da diversidade sociocultural, que transformem radicalmente posies preconceituosas e discriminatrias.

    Esperamos contribuir no s para difundir as bases conceituais para um renovado conhecimento da sociodiversidade dos povos indgenas no Brasil contemporneo, como tambm para fornecer subsdios para o fortalecimento dos estudantes indgenas no espao acadmico, e tornar mais complexo o conhecimento dos formadores sobre essa realidade e sobre as relaes que se estabelecem no convvio com as diferenas culturais. Finalmente, esperamos que a sociedade aprofunde sua busca pela democracia com superao das desigualdades sociais.

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (Secad/MEC)

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    Prefcio

    Nas trilhas das universidades, nos caminhos da Histria

    Vias dos Saberes uma srie de livros destinada a fornecer subsdios formao dos estudantes indgenas em cursos de nvel superior. Os textos visam agregar experincia de cada um pontos de partida para a composio dos instrumentos necessrios para aguar a percepo quanto aos amplos desafios sua frente, diante de metas que tm sido formuladas pelos seus povos, suas organizaes e comunidades. Entre as metas esto: a da sustentabilidade em bases culturalmente diferencia-das, em face do Estado nacional, das coletividades indgenas no Brasil do sculo XXI; a da percepo de seus direitos e deveres como integran-tes de coletividades indgenas e enquanto cidados brasileiros; a de uma viso ampla dos terrenos histricos sobre os quais caminharo como partcipes na construo de projetos variados de diferentes futuros, na qualidade de indgenas dotados de saberes tcnico-cientficos postos a servio de seus povos, mas adquiridos por meio do sistema de Ensino Superior brasileiro, portanto, fora de suas tradies de conhecimentos.

    A estas devemos agregar ainda duas outras metas fundamentais: a da conscincia poltica da heterogeneidade das situaes indgenas no Brasil, diante da qual se coloca a total impropriedade de modelos nicos para solucionar os problemas dos ndios no pas; e a da pre-sena, em longa durao, que vem desde os alvores das conquistas das Amricas, dos conhecimentos tradicionais indgenas em meio construo dos saberes cientficos ocidentais, no reconhecida e no-remunerada, todavia, pelos mecanismos financeiros que movem

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    o mundo capitalista contemporneo, e sem qualquer valorizao po-sitiva que no beire o folclrico.

    Num plano secundrio, os volumes de Vias dos Saberes buscam tambm servir tanto formao dos formadores, isto dos docentes do sistema universitrio brasileiro, quanto dos estudantes no-ind-genas, em geral bastante ignorantes da diversidade lingstica, dos mo-dos de vida e das vises de mundo de povos de histrias to distintas como os que habitam o Brasil e que compem um patrimnio humano inigualvel, ao menos para um mundo (Oxal um dia o construamos assim!) que tenha por princpio elementar o respeito diferena, o cul-tivo da diversidade, a polifonia de tradies e opinies e que se paute pela tolerncia, como tantos preconizam no presente. Como denomi-nador comum que aproxima os quase 220 povos indgenas falantes de 180 lnguas, com cerca de 734 mil indivduos (0,4% da populao brasileira) apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estats-tica (IBGE), no Censo de 2000, como indgenas h a violncia da colonizao europia com suas variadas histrias, desde os mais crus episdios de guerras de dizimao e de epidemias em perodos recu-ados da histria desse nosso pedao do continente americano at as mais adocicadas formas de proteo engendradas pelo republicano (e colonialista) Estado brasileiro contemporneo.

    Os quatro volumes desta srie foram especialmente pensados para atender aos debates em classes de aula em cursos regulares ou em cursos concebidos, de forma especfica, para os estudantes indgenas, como as licenciaturas interculturais e s discusses em trabalhos de tutoria, grupos de estudos, classes de suplementao, cursos de extenso, alm de muitos outros possveis espaos de troca e de dilo-go entre portadores de tradies culturais distintas, ainda que alguns deles indgenas e no-indgenas j tenham sido submetidos aos processos de homogeneizao nacionalizante que marcam o sistema de ensino brasileiro de alto a baixo.

    Se reconhecemos hoje, em textos de carter primordialmente pro-gramtico e em tom de crtica, que a realidade da vida social nos Estados contemporneos a das diferenas socioculturais ainda que

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    estas se dem em planos cognitivos muito distintos e em escalas tam-bm variadas de lugar para lugar e que preciso fazer do conflito de posies a matria de um outro dia-a-dia, tenso e instvel mas rico em vida e em possibilidades para um novo fazer escolar, na prtica, esta-mos muito longe de amar as divergncias e de construir as aproxi-maes provisrias possveis entre mundos simblicos apartados. Que fique claro: no apenas uma espcie de mea culpa bem-intencionada e posturas simpticas e pueris que poro termo a prticas geradas por estruturas de dominao colonial de longo prazo, de produo da de-sigualdade a partir das diferenas socioculturais, estas consideradas como signo de inferioridade. Tal enunciao prescritiva da busca de novas posturas mal disfara o exerccio da violncia (adocicada que seja), nica cauo de uma verdade tambm nica e totalitria. preciso ir bem mais adiante.

    Estes livros sobre a situao contempornea dos povos indgenas no Brasil, seus direitos, suas lnguas e a histria de seus relacionamentos com o invasor europeu e a colonizao brasileira no se pretendem pioneiros em seus temas, j que so tributrios de iniciativas impor-tantes que os precedem. Mas por algumas razes marcam, sim, uma ruptura. Em primeiro lugar, dentre seus autores figuram indgenas com-prometidos com as lutas de seus povos, pesquisadores nas reas de co-nhecimento sobre as quais escrevem, caminhando nessas encruzilhadas de saberes em que se vo inventando os projetos de futuro dos povos autctones das Amricas. Em segundo lugar, inovam por referencia-rem-se s lutas indgenas pelo reconhecimento cotidiano de suas his-trias diferenciadas e dos direitos prprios, bem como luta contra o preconceito, as quais tm agora na arena universitria seu principal campo de batalhas. Em terceiro lugar, porque estes livros desejam abrir caminho para muitos outros textos que, portadores de intenes seme-lhantes, venham a discordar do que neles est escrito, e a retificar, a ampliar, a gerar reflexes acerca de cada situao especfica, de cada povo especfico, de modo que, se surgirem semelhanas nesse processo, sejam elas resultantes da comparao entre os diferentes modos de vida e histrias especficas dos povos indgenas, e no do seu aniquilamento

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    pela submisso dessa diversidade a uma idia geral do que ser um ge-nrico cidado brasileiro.

    Finalmente, em quarto lugar e, sobretudo, por serem publicados pelo Governo Federal e distribudos amplamente no pas, espera-se ainda que esses livros abram novas trilhas a conhecimentos essenciais hoje enclausurados nos cofres das universidades a um importante e cres-cente nmero de estudantes indgenas, de modo que eles possam re-combin-los em solues prprias, singulares, inovadoras, fruto de suas prprias pesquisas e ideologias. Assim, talvez pela preservao da dife-rena em meio universalidade e pela busca da ruptura com os efeitos de poder totalitrio de saberes dominantes e segregadores, vivique-se a idia da universidade, em seu sentido mais original e denso, livre das constries amesquinhadoras com as quais a sua apropriao tem sido brindada por projetos de Estado. Quem sabe a a to atual e propalada incluso dos menos favorecidos venha a perder o risco de ser, para os povos indgenas, mais um projeto massificante e etnocida, e se possa reconhecer e purgar que muitas desigualdades se instauram na histria a partir da invaso e das conquistas dos diferentes.

    *

    A Presena Indgena na Formao do Brasil, de Joo Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire, no se prope a ser um manual didtico para se estudar a histria do Brasil, muito menos a dos diversos Brasis Indgenas. Trata-se, isto sim, de apresentar novas chaves de leitura que permitam desfazer o conjunto de lugares-comuns que continua a ser inculcado pelo sistema de educao em nosso pas, e que contribui quer para destituir de contemporaneidade as populaes nativas das Amricas que o habitam, quer para negar-lhes o reconheci-mento dos direitos condizentes com a autoctonia. Ao se utilizarem de vasto material iconogrfico e textual, os autores desejam mostrar que s possvel entender o tempo presente brasileiro se consideramos os apor-tes indgenas em vidas, terras, saberes, sensibilidades, ritmos e modos de ser a essa construo em que estamos todos imiscudos.

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    A narrativa histrica oficial, os currculos desde o ensino bsico ao universitrio, passando pela mentalidade dos governantes seja qual for a rea da administrao pblica e dos gestores de instituies de ensino, ou mesmo pelo mais comum dos cursos de graduao em hist-ria, ao fornecerem uma nica linha explicativa calcada em momentos privilegiados em que os indgenas no esto presentes, sepultam aquilo que a tornou possvel. Os autores no propem aqui, porm, uma outra (meta-)narrativa contraposta vigente e igualmente totalitria e tota-lizante. Tampouco tm a tentao do elogio da mistura democrtica que, todavia, anula a presena atual dos povos indgenas, tornando-os princpios genricos de um genrico e nico Brasil. O livro quer abrir caminhos para novas pesquisas, outras interpretaes e uma viso de ns mesmos indgenas e no-indgenas mais acurada, elementos es-senciais para o exerccio dos direitos de pertencimento a este pas, que esperamos possam os jovens estudantes em formao inclusive e prin-cipalmente os indgenas vir a nos explicar de muitos outros modos.

    Antonio Carlos de Souza LimaLACED / Departamento de Antropologia

    Museu Nacional / UFRJ

  • Giovanni Batista Ramusio. Mapa do Brasil colonial, 1557

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    Introduo

    No h (qualquer) recanto deste mundo que no guarde minha im-presso digital e a marca do meu calcanhar no topo dos arranha-cus...

    [Aim Csaire Cahiers dun retour au pays natal]

    O objetivo deste livro fornecer informaes bsicas sobre a pre-sena e a participao dos indgenas no processo de formao do Brasil. A nossa histria tem sido sempre descrita como a histria da colonizao, como a narrativa da transferncia de pessoas, instituies e conhecimentos para um novo cenrio, no-europeu, so-bre o qual estas vieram a estabelecer um progressivo controle, dando origem ao marco territorial atual. Nesse relato as populaes autcto-nes entraram sobretudo marcadas pelo acidental, pelo extico e pelo passageiro, como se a existncia de indgenas fosse algo inteiramente fortuito, um obstculo que logo veio a ser superado e, com o passar do tempo, chegou a ser minimizado e quase inteiramente esquecido.

    A descoberta aparece como um feliz e casual desvio de rota e o en-contro com os indgenas vem descrito como integrado por surpresa e estupor. Os relatos exacerbaram a diferena na experincia humana, enfatizando unilateralmente o distanciamento de usos e costumes. Que, de tanto ser reiterado, acabou por engendrar uma imagem esttica e impositiva (mesmo quando fortemente contrastante com a realidade observada). Pouco a pouco esse artifcio narrativo cedeu lugar a uma retrica, a mobilizao do trabalho indgena foi transformada em uma pedagogia moral e religiosa. A entrada sertes adentro, atravessando terras habitadas pelos ndios, virou uma epopia, por meio da qual os colonizadores iriam semeando a civilizao.

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    Ao contrrio de tal tendncia, a idia que organiza este livro a de que o indgena, seja no passado mais remoto ou no momento atual, seja na amaznia, na mata atlntica, nas savanas ou nos chapades, foi sempre uma parte essencial desse processo de formao territorial e poltica. As prticas e as representaes que caracterizam a socieda-de brasileira no podem ser compreendidas se no forem levadas em considerao as populaes aqui estabelecidas, com suas formas de or-ganizao sociocultural e com a sua intervenincia e controle sobre os recursos ambientais existentes.

    Ao falar do escravo, o poeta Aim Csaire evidencia a sua presena na civilizao que o nega, mas que foi construda justamente sobre a sua existncia e o seu trabalho. A epgrafe acima deve aplicar-se com muita propriedade populao autctone deste pas, aos indgenas e seus des-cendentes, que concorreram com as riquezas de suas terras, seu sangue e seu conhecimento para a construo desta nao. esta a hiptese que atravessa todo este livro e lhe d sentido, pretendendo assim questionar o complacente silncio ou a explcita atribuio de irrelevncia que destinada aos indgenas nos compndios usuais de histria do Brasil.

    Este livro foi escrito pensando atingir um pblico universitrio e em especial os estudantes indgenas que ingressam no Ensino Superior. No tem assim um formato simples e didtico, voltado para o aprendi-zado direto de informaes julgadas necessrias, algo que corriqueiro em cartilhas e manuais. Pretende, ao contrrio, fazer pensar sobre os indgenas e a histria do Brasil, suscitar debates, estimular a reviso do que est inadequadamente descrito ou deformado por vises preconcei-tuosas. Ou seja, induzir pesquisas e a busca de novos conhecimentos, pontuar debates e discusses, concorrer para um exerccio mais ativo e crtico da cidadania.

    O formato escolhido reflete claramente isto. No se pretendeu es-gotar as informaes sobre qualquer evento ou perodo histrico, nem aprofundar o estudo sobre reaes conquista por parte de alguns po-vos indgenas em particular. Pelas funes prticas que desempenhar este livro, no pode pretender tratar da histria na escala e na perspec-tiva de cada um dos povos indgenas.

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    O seu ponto de partida no , atravs das contranarrativas e das outras histrias relatadas pelos indgenas, apresentar um painel diversificado e rico, mas tambm fragmentrio da histria do Brasil. Cada captulo for-nece ao leitor uma chave de apreenso sociolgica, apresentando a seguir um painel amplo, contendo informaes importantes e em profuso que podero ser melhor aprofundadas atravs de uma bibliografia de apoio.

    Em boxes esto transcritos trechos de documentos que, trazendo em seu corpo as marcas de um contexto histrico bem concreto, podem es-timular exerccios de leitura e discusso de textos. A finalidade de que o estudante dialogue com os fatos narrados como se fossem contempo-rneos, com a vivacidade e a responsabilidade de quem tem que fazer escolhas e situar-se na dimenso viva de uma histria por fazer.

    A cronologia colocada ao final no pretende de modo algum ser completa ou refletir o esgotamento das fontes utilizadas, mas apenas estimular os professores e os estudantes a pesquisarem e construrem por sua vez uma cronologia que acompanhe, verifique e fundamente as interpretaes a que chegaram. Uma cronologia um instrumento de trabalho de grande utilidade para o estudioso da histria, pois exige romper com a completude e o encantamento da narrativa, impondo que todos os fatos (descritos ou implcitos) venham dispostos segundo um eixo temporal. Alm de ser muito til ao estudante, a cronologia chama a ateno para a necessidade de que as interpretaes respondam aos fatos e s cadeias temporais, ao invs de procederem exclusivamente de certezas e idias preexistentes.

    Para os membros de coletividades e grupos sociais que sofreram com a discriminao e o preconceito, sendo ignorados pela histria oficial e colocados sempre em posio subalterna pelas interpretaes e ideolo-gias dominantes, o conhecimento uma aventura fascinante e libertado-ra, uma estrada aberta para o passado e tambm para o presente. Uma tarefa complexa que exige rigor cientfico, mas tambm esprito crtico e responsabilidade social, pois como nos lembra o socilogo Pierre Bour-dieu, fazemos cincia e sobretudo sociologia tanto em funo de nossa prpria formao quanto contra ela. E s a Histria pode nos desvencilhar da Histria (Bourdieu, 2003:6).

  • Curt Nimuendaju. Mapa Etno-histrico do Brasil

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    1 Os ndios do Brasil em 1500

    Inmeras pesquisas arqueolgicas assinalam a ocupao do territ-rio brasileiro por populaes paleondias h mais de 12 mil anos. Os pesquisadores acreditam hoje que houve vrias etapas nesse processo de disperso humana, pois as novas descobertas arqueolgicas questionam os dados que cercam antigas interpretaes do povoamento americano, como a migrao asitica pelo Estreito de Behring (v. Funari e Noelli, 2005). Pesquisas dirigidas pela arqueloga norte-americana Ana Roo-sevelt (1992) na Amaznia apontam registros de sociedades complexas, sofisticadas no desenvolvimento tecnolgico (cermicas) e na organi-zao social (cacicados). As investigaes posteriores, se no mantm um acordo completo, questionam as antigas hipteses de povoamento, baseadas na pressuposio de existncia de sociedades pequenas e sim-ples, de caadores e coletores, caracterizadas por uma alta mobilidade e o uso de materiais perecveis, como cestarias.

    O etnlogo Curt Nimuendaju assinalou no seu mapa etno-hist-rico a existncia de cerca de 1400 povos indgenas no territrio que correspondia ao Brasil do descobrimento (veja mapa). Eram povos de grandes famlias lingsticas tupi-guarani, j, karib, aruk, xirian, tucano etc. com diversidade geogrfica e de organizao social. A respeito dos povos Tupi haveria vrias hipteses de sua disperso sobre o territrio brasileiro. Arquelogos como Francisco Noelli defendem o modelo desenvolvido por Donald Lathrap e Jos Brochado, no qual as rotas de expanso estiveram vinculadas a um centro de origem loca-lizado na regio junto confluncia do Madeira com o Amazonas (Noelli, 1996:31). Segundo este modelo, a expanso dos Tupinamb se deu do Baixo Amazonas ao litoral nordestino, chegando at So Paulo, enquanto os Guarani seguiriam para o sul at a foz do rio da Prata. Os povos Tupi eram encontrados em toda a costa e no vale amaznico, onde dividiam o territrio com grupos da famlia aruk (nos rios Negro e Madeira) e Karib (nas Guianas e no Baixo Amazonas).

    As descries geogrficas e culturais da vida desses povos elaboradas pelos cronistas coloniais contm inmeras limitaes. Freqentemen-

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    te se equivocavam na identificao das populaes, e pouco compre-endiam como os ndios se rearticulavam para fazer frente ao projeto colonial portugus (Pacheco de oliveira, 1987). A incapacidade dos portugueses em subjugar alguns grupos indgenas contribuiu para iden-tificar genericamente os ndios hostis como Tapuios. Tal identidade ocultava as iniciativas indgenas, os processos socioculturais intertri-bais de aliana ou conflito com colonizadores.

    H vrias estimativas sobre o montante da populao indgena poca da conquista, tendo cada autor adotado um mtodo prprio de clculo (rea ocupada por aldeia, densidade da populao etc.). Ju-lian Steward, no Handbook of South American Indians calculou em 1.500.000 os ndios que habitavam o Brasil (Steward, 1949). William Denevan projetou a existncia de quase 5.000.000 de ndios na Amaz-nia (Bethell, 1998:130-131), sendo reduzida posteriormente essa pro-jeo para cerca de 3.600.000 (hemmiNg, 1978).

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    Maximiliano de Wied-Neuwied. Uma famlia de Botocudos em viagem (abaixo);na pgina anterior, festa danante dos ndios Camac

    O historiador John Hemming elaborou detalhadas tabelas por regio, estimando em 2.431.000 a populao indgena em 1500. Entretanto, seu trabalho sofreu crticas, pois transportou dados populacionais de sculos posteriores para 1500, alm de incluir grupos que no se situa-vam em certos lugares naquele sculo (Monteiro, 1995). Especialista em demografia histrica, Maria Luiza Marclio (2004) adotou os nmeros de Hemming, enfatizando o carter precrio e incompleto das fontes coloniais. Marclio lembrou a depopulao sofrida pelas populaes in-dgenas atravs de guerras de conquista, extermnio e escravizao, alm do contgio de doenas, como a varola, o sarampo e a tuberculose, que dizimavam grupos inteiros rapidamente, sofrimento testemunhado por jesutas como Jos de Anchieta e Manoel da Nbrega.

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    O poder desarticulador das doenas pode ser exemplificado com a epidemia de varola que entre 1562-1565, em poucos meses, matou mais de 30.000 ndios na Bahia (hemmiNg, 1978:144). O padre Jos de An-chieta descreveu o que ocorreu:

    No mesmo ano de 1562, por justos juzos de Deus, sobreveio uma grande doena aos ndios e escravos dos portugueses, e com isto grande fome, em que morreu muita gente, e dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos portugue-ses a se fazer escravos, vendendo-se por um prato de farinha, e outros diziam, que lhes pusessem ferretes, que queriam ser es-cravos: foi to grande a morte que deu neste gentio, que se dizia, que entre escravos e ndios forros morreriam 30.000 no espao de 2 ou 3 meses (aNchieta, 1933:356).

    Entretanto, a histria demogrfica dos ndios desde 1500 no deve ser compreendida apenas como uma sucesso de doenas, massacres e violncias diversas. A disperso populacional, demonstrada no mapa etno-histrico de Nimuendaju, possibilitou diversas reaes dos povos indgenas ao contato com os colonizadores, entre as quais a promoo de grandes deslocamentos para escapar escravido e s conseqncias das molstias trazidas pelos europeus.

    Maximiliano de Wied-Neuwied. ndio Camac

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    2 O imaginrio colonial

    O contato com vrios povos indgenas criou para os europeus a necessidade de compreender e enquadrar essas populaes no seu uni-verso mtico e conceitual. Durante o sc. XVI, os relatos sobre o novo mundo identificaram os indgenas como gentios (pagos), brasis, negros da terra(ndios escravizados) e ndios (ndios aldeados) (cuNha, 1993).

    A primeira descrio da terra e de seus habitantes, realizada pelo escrivo Pero Vaz de Caminha em 1500, enfocou os ndios de forma positiva, comparando-os, velada ou abertamente, aos habitantes do Jardim do den (BetteNcourt, 1992:41). Em alguns trechos da famo-

    Hercules Florence. Habitao dos Apiac sobre o Arinos

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    sa carta remetida ao Rei D. Manuel reportando o achamento do Brasil, Caminha assim sintetizou suas impresses sobre os ndios:

    Parece-me gente de tal inocncia que, se homem os entendesse e eles a ns, seriam logo cristos (...) se os degredados, que aqui ho de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, no duvido que eles, segundo a santa inteno de Vossa Alteza, se ho de fazer cristos e crer em nossa santa f, qual preza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente boa e de boa simplicidade. E imprimir-se- ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que no foi sem causa (camiNha, 1999:54).

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    Outros navegadores, como Amrico Vespcio, tambm descreveram em cartas o contato inicial com os povos indgenas. Alm disso, a gran-de curiosidade que existia nas cortes europias sobre as novas terras fez com que vrios ndios fossem levados a Portugal e Frana. Essomeric, filho de um chefe indgena carij, ficou na Frana, tornando-se herdeiro do nobre francs Paulmier De Gonneville (Perrone-Moiss, 1992a). n-dios Tupinamb participaram de uma festa brasileira para os reis de Frana em Rouen (1550) (cuNha, 1993).

    Coube a missionrios religiosos, viajantes e nobres portugueses, franceses e holandeses, que circularam pelo Brasil ou aqui se instala-ram, atuarem como cronistas da vida no novo mundo. Os seus relatos foram ilustrados por diversos artistas que divulgaram imagens marcan-tes para o imaginrio europeu.

    Pero de Magalhes Gandavo, Jean de Lry (ver leituras adicionais), Hans Staden e Andr Thevet foram alguns dos autores que associaram texto e imagens em seus relatos. Ao falar da condio e costumes dos ndios da terra, descrevendo as aldeias e o comportamento dos ndios nas guerras e no cotidiano, Gandavo (1980) interpretou o modo de vida indgena de uma forma que se tornou recorrente entre os cronistas, a exemplo de Gabriel Soares de Souza (1971): a falta das letras F, L, e R na lngua indgena implicaria uma sociedade sem f, sem lei e sem rei.

    Jean Baptiste Debret. ndio Camac Mongoi (ao lado); na pgina anterior, famlia de um chefe ndio camac preparando-se para uma festa

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    As diferenas de costumes diante dos europeus eram enfatizadas, sen-do ressaltadas as prticas tidas como brbaras, como a antropofagia. Para o franciscano Andr Thevet, os canibais da terra firme e das ilhas

    cujas terras vo do Cabo de Santo Agostinho s proximidades do Marinho, so os mais cruis e desumanos de todos os povos americanos, no passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro, se no at mesmo com maior satisfao. (...) No h fera dos desertos dfrica ou dArbia que aprecie to ardentemente o sangue humano quanto estes brutssimos selvagens. Por isso no h nao que consiga aproximar-se deles, seja crist ou outra qualquer. (...) Os mais dignos dentre eles no so merecedores de nenhuma confiana. Eis por que os espanhis e portugueses lhes fazem eventuais represlias, em memria das quais s Deus sabe como devem ser tratados pelos selvagens quando estes os prendem para devor-los (thevet, 1978:199).

    Tais relatos fizeram circular imagens profundamente ambguas e ne-gativas dos povos indgenas. Essas representaes dos ndios no perodo colonial derivavam de vises de mundo que davam um sentido humani-trio e religioso ao empreendimento colonial. O fato de ter ficado pri-sioneiro dos ndios Tupinamb em Ubatuba (SP) possibilitou ao maru-jo alemo Hans Staden (1974) interpretar o cotidiano daqueles ndios, estabelecendo um dos poucos relatos compreensivos do modo de vida indgena pelo olhar europeu do sc. XVI.

    Ao final, entrechocavam-se duas concepes sobre a humanidade dos gentios:

    a) Eram seres humanos que estavam degradados, vivendo como selvagens e canibais, mas possuam todo o potencial para se tor-narem cristos.

    Na Idade Mdia, Santo Agostinho defendeu a converso dos sel-vagens. Os inmeros atributos dados pelos cristos aos ndios gentios, brbaros etc. supunham essa possibilidade. O mis-sionrio francs Yves dEvreux e o portugus Manoel da Nbre-ga defendiam tal posio sintetizando uma viso religiosa sobre os ndios.

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    No Dilogo sobre a converso do gentio, Nbrega expressou a disposio da conquista espiritual dos jesutas, levando as palavras reveladas aos ndios, que reagiam muitas vezes com indiferena pregao jesutica. Cronistas coloniais como Ga-briel Soares de Souza, Pero de Magalhes Gandavo e vreux constataram esse fato.

    Nbrega percebia a necessidade de iniciativas missionrias con-tra essa realidade. Isto foi enfatizado logo no incio do Dilogo, na discusso entre dois irmos jesutas: Gonalo lvares, mis-sionrio na Capitania do Esprito Santo, e Mateus Nogueira, ferreiro de Jesus Cristo.Gonalo lvares: Por demais trabalhar com estes! So to bes-tiais, que no lhes entra no corao coisa de Deus! Esto to en-carniados em matar e comer, que nenhuma outra bem-aventu-rana sabem desejar! Pregar a estes pregar em deserto a pedras.Mateus Nogueira: Se tiveram rei, puderam-se converter ou se adoram alguma coisa. Mas como no sabem que coisa crer nem adorar, no podem entender a pregao do Evangelho, pois ela se funda em fazer crer e adorar a um s Deus e a esse s ser-vir; e como este gentio no adora nada, nem cr em nada, tudo o que lhe dizeis se fica nada (dourado, 1958:175-176).

    b) Eram seres inferiores, animais que no poderiam se tornar cris-tos, mas podiam ser escravizados ou mortos.

    Esta interpretao decorria da divulgao de esteretipos sobre os povos brbaros, sendo manipulada por colonos em proveito prprio, para legitimar as guerras justas e a escravido (rami-Nelli, 1996).

    Na pintura religiosa renascentista o ndio, uma vez submetido aos valores cristos, tornou-se humanizado. O pintor holands Albert Eckhout representou essa ruptura conceitual na sua obra: nos qua-dros que retratam ndios Tupis e Tapuios, os ndios aliados eram pacficos, trabalhadores, tinham famlia, andavam vestidos (foram domesticados), estavam acessveis ao trabalho cotidiano, enquanto os ndios bravos (brbaros) eram antropfagos que andavam nus, carregando despojos esquartejados como alimentao e guerreavam os colonizadores.

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    A superioridade crist diante dos nativos degenerados justificava a conquista: para mudar costumes e valores era necessrio integrar os nativos ao trabalho colonial. No Brasil, os diferentes tipos de trabalho compulsrio dos ndios junto aos aldeamentos expressavam os conflitos entre os projetos coloniais dos missionrios e os dos colonos, pois en-volviam tanto distintas vises sobre os ndios, quanto a disputa sobre a posse do trabalho indgena, com a conseqente consolidao desses respectivos projetos.

    As guerras justas para aprisionamento dos ndios hostis tinham sua legislao baseada num imaginrio difuso sobre prticas indge-nas brbaras canibalismo, poligamia etc. Tal imaginrio era sempre acionado em defesa dos interesses econmicos dos colonos. O confronto dos missionrios com pajs supostamente demonacos tinha razes no

    Albert Eckhout. Dana Tapuia

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    imaginrio medieval da luta crist contra feiticeiros, bruxas. Da encon-trarmos uma iconografia recorrente de mulheres canibais nos textos dos cronistas muito distante da realidade. H gravuras em que o canibalis-mo associado s prticas demonacas, tudo indicando a necessidade de uma interveno salvadora, disciplinadora e exterior. Foi com base nessas representaes, associadas a argumentaes de distintas ordens, que se construiu a crena (que se naturalizou como certeza) do carter filantrpico e humanitrio da interveno colonizadora.

    O gravurista Theodor de Bry foi um dos principais responsveis por essas representaes do canibalismo, apresentando guerreiros nus, for-tes e altivos deliciando-se com o esquartejamento de prisioneiros. Diver-sas cenas antropofgicas reinterpretadas a partir de tcnicas europias de retalhamento de corpos, formas de assar carne etc. simbolizaram o continente americano nas representaes cartogrficas produzidas nos sculos XVI e XVII.

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    Hercules Florence. Jovem Mundurucu

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    Parte 1Regime dos Aldeamentos Missionrios [15491755]

    Lopo Homem (com Pedro e Jorge Reinel). Terra Brasilis, mapa do Atlas Miller, 1515-1519

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    1 Sobre o sistema colonial

    O projeto colonial portugus envolveu uma poltica indigenista que fragmentava a populao autctone em dois grupos polarizados, os alia-dos e os inimigos, para os quais eram dirigidas aes e representaes contrastantes. O emprego da fora permitido pela legislao dependia dessa avaliao, bem como dos contextos e dos interesses (muitas vezes divergentes) da administrao portuguesa na metrpole e na colnia. Os procedimentos a serem adotados quanto aos ndios do Brasil eram freqentemente objeto de debate em Lisboa, na Bahia e no Maranho, envolvendo questes como a liberdade ou a escravizao, as formas mais adequadas de converso e as conseqncias de tudo isso para a colonizao do Brasil.

    No existia porm em quaisquer das duas hipteses, seja para os aliados ou inimigos, um reconhecimento da relatividade das culturas nem de espaos significativos de autonomia. Os povos e as famlias indgenas que se tornavam aliados dos portugueses necessitavam ser convertidos f crist, enquanto os ndios bravos (como eram cha-mados nos documentos da poca) deviam ser subjugados militar e po-liticamente de forma a garantir o seu processo de catequizao. Este tinha por objetivo justificar o projeto colonial como uma iniciativa de natureza tico-religiosa preparando a populao autctone para servir como mo-de-obra nos empreendimentos coloniais (econmicos, geo-polticos e militares).

    Idias sobre paganismo, selvageria e barbrie, presentes no imagi-nrio cristo medieval, orientaram o estabelecimento dessa legislao colonial tanto quanto os interesses comerciais da Coroa portuguesa. Estes sempre prevaleceram sobre as iniciativas missionrias de defesa de direitos para os ndios. Em sua maioria, os livros de histria desta-cam que a legislao colonial, muitas vezes inspirada na perspectiva dos jesutas, estava muito longe da realidade cotidiana vivida na colnia. Bulas Papais, Cartas e Alvars Rgios (veja cronologia no final do livro) foram ignorados por administradores e particulares que detinham po-deres locais, agindo de acordo com seus prprios interesses ou cedendo

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    s presses dos moradores (brancos) das colnias. Isto ajuda a explicar algumas revoltas locais, principalmente dirigidas contra os mission-rios, que ocorriam sempre que os interesses econmicos dos moradores eram contrariados.

    A legislao da colnia era subordinada legislao metropolitana. Assim funcionava aquele sistema jurdico. Com o auxlio de conselhos consultivos a Mesa de Conscincia e Ordens (1532), o Conselho da ndia (1603) e o Conselho Ultramarino (1643) o rei definia os Regi-mentos dos governadores gerais do Brasil e estabelecia leis atravs de Cartas Rgias, Alvars etc. A legislao da Coroa que atingia os gentios era regulamentada na colnia pelos governadores gerais atravs de De-cretos e Alvars.

    As investigaes mais recentes apontam no apenas o conflito de normas e interesses, mas tambm a sua articulao e muitas vezes a complementariedade. A historiadora ngela Domingues assinalou que essas legislaes

    se interligam entre si, se esclarecem e clarificam: a legislao de carter geral que estabelece e legitima os casos de escravatura dos ndios por guerra justa e por resgate; a legislao especfi-ca sobre os ndios, que regulamenta e normaliza as relaes de dependncia, de trabalho e as instituies; e um outro tipo de legislao que, ainda que de mbito diferente, menciona, margi-nalmente, a relao dos ndios com os poderes ou os indivduos (domiNgueS, 2000a:46).

    Existia uma imensa legislao colonial referente s questes locais e aos ndios, assim como aquelas dirigidas ao estabelecimento de direi-tos gerais (liberdade, trabalho etc.). Tal legislao mudava suas disposi-es conforme os indgenas fossem aliados ou inimigos dos portugue-ses. Eram poucas as leis nas quais no ocorriam tais distines. Como exemplos, temos as leis de 20/3/1570 e 24/2/1587, em que o rei de Por-tugal estabeleceu quais ndios podiam ser transformados em cativos ou no (PerroNe-moiSS, 1992a:529).

    A legislao sobre guerras justas, originria do direito de guerra me-dieval (thomaS, 1982), foi instrumentalizada no sc. XIV em Portugal. Era uma doutrina que autorizava a Coroa e a Igreja a declararem guer-

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    ra aos pagos. Este direito foi limitado autoridade real no sc. XVI (idem). Nessa poca, a existncia de costumes brbaros e o impedimen-to propagao da f j no bastavam para a declarao de uma guerra justa, decretada quando havia impedimentos ao comrcio e expanso do projeto territorial colonial.

    Os ndios que se tornariam aliados (chamados de mansos ou cristos) eram aqueles trazidos de suas aldeias atravs de descimentos, deslocamentos forados, compulsrios (aleNcaStro, 2000:119), e novamente aldeados prximos a povoaes coloniais. A eram catequi-zados e civilizados, tornando-se vassalos dEl Rei. A ausncia de um sistema de escravido no significava porm a inexistncia de elementos coercitivos (alis comuns na pedagogia da poca) nem de conflitos na relao entre os missionrios e os indgenas. As misses no eram ape-nas um empreendimento religioso, mas tambm econmico e poltico-militar. Embora estivessem dirigidos por princpios ticos e religiosos, at mesmo os jesutas observavam que os ndios abandonavam com fa-cilidade os ensinamentos que recebiam nos aldeamentos e retornavam aos sertes, o que contradizia a auto-representao dos missionrios como salvadores das almas e portadores da civilizao.

    Xilogravura de dois chefes tupinamb, com os corpos

    emplumados e ostentando, o da esquerda, tembet e um ibirapema

    e o da direita, tembet, acangatra, enduape e um arco e flechas. Do livro

    Duas viagens ao Brasil, Hans Staden

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    1.1 A fora de trabalho indgena

    Nas primeiras dcadas do sc. XVI, circularam pela costa brasileira traficantes de mercadorias europeus e comerciantes portugueses. Tais desbravadores tinham por objetivo estabelecer relaes de escambo com os ndios do litoral, trocando mercadorias e quinquilharias por uma madeira corante valorizada na Europa, o pau-brasil.

    O comrcio intenso dessa madeira devastou muitas reas do litoral brasileiro. Os ndios cortavam e transportavam a madeira at uma fei-toria, onde era trocada por artigos diversos e ficava estocada at a che-gada das embarcaes de carga. Milhares de toras de pau-brasil foram transportados para Portugal pelos comerciantes que se instalaram no Brasil a partir de 1502. Ao mesmo tempo, traficantes franceses busca-vam o mesmo comrcio com os ndios, mas sem o emprego de feitorias. Nessas primeiras dcadas do sc. XVI, no houve o estabelecimento de colnias de povoamento no litoral do Brasil, apenas o emprego dis-perso do escambo.

    Andr Thevet. Corte e embarque

    de pau-brasil

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    Quando os donatrios nomeados pela Coroa portuguesa instalaram as primeiras colnias no Brasil, a partir de 1530, a prtica do escam-bo continuou sendo adotada pelos ndios, em busca principalmente de objetos de metal. Entretanto, aos poucos, surgiam atos de sujeio de ndios aliados, empregados na defesa do territrio e como mo-de-obra na construo de prdios, igrejas e vilas.

    Os ndios Tupi, como os Tupinamb, empregavam prticas agrco-las tradicionais. Diante das necessidades da nascente cultura da cana-de-acar, implantada para acelerar o desenvolvimento econmico do territrio brasileiro, os colonos comearam a adotar o uso da mo-de-obra indgena escrava (Schwartz, 1988). Houve o declnio do es-cambo, pois as exigncias cada vez maiores tanto dos ndios como dos portugueses saturaram e inviabilizaram esse mercado. Por outro lado, colonos e exploradores precisavam cada vez mais do brao indgena para tocar os engenhos de cana-de-acar. Entretanto, no notaram que entre os ndios do litoral do nordeste cabiam s mulheres os traba-lhos de agricultura. Os ndios, ao serem escravizados e levados para os engenhos, no suportavam o trabalho e, sempre que podiam, fugiam dos canaviais.

    A escravido foi adotada pelos colonos em larga escala, usando ex-tensivamente as terras da cultura canavieira e os negros da terra (os ndios) para a produo comercial e de subsistncia. Como a produo aucareira precisava de grande fora de trabalho, um dos artifcios para conseguir essa mo-de-obra era a guerra justa, permitida contra n-dios inimigos, que podiam ser escravizados. Entre 1540 e 1570, em So Vicente, no sul, e Pernambuco, no nordeste, foram instalados cerca de 30 engenhos movimentados por milhares de escravos indgenas. Nessa poca, os senhores de engenho combatiam os missionrios jesutas jun-to Coroa portuguesa, pois os religiosos impediam a escravizao dos ndios aldeados.

    Nesse contexto, intensificaram-se as rebelies e os massacres de in-dgenas. Em poucos anos, foram dizimados os Tupiniquim de Ilhus e os Caet de Pernambuco e da Bahia. Ao mesmo tempo, epidemias de varola matavam milhares de ndios na Bahia (marchaNt, 1980; riBei-

  • 40

    ro, 1983), enquanto a fome grassava, aumentando a dependncia dos produtores em relao mo-de-obra existente na colnia.

    Com o estabelecimento do Governo-Geral em 1549, foram intensifi-cadas as incurses para a captura de ndios que seriam escravizados nos engenhos e nas cidades. Nestas, tornaram-se a principal mo-de-obra na edificao de prdios e igrejas. Nesse perodo houve intensos e fora-dos deslocamentos de ndios de outras regies para o litoral.

    No final do sc. XVI, comeou a declinar o uso da mo-de-obra escrava indgena nos engenhos. A reao dos ndios escravido e ao trabalho agrcola, a disseminao de doenas e o incremento do trfico negreiro caracterizaram o trabalho indgena como transitrio no m-bito do estabelecimento da indstria aucareira (Schwartz, 1988). Em meados do sc. XVII, a mo-de-obra negra predominava nos engenhos, havendo nos arredores o cultivo de alimentos por ndios assalariados ou camponeses.

    Os ndios dos aldeamentos eram considerados ndios de repartio, n-dios forros (ibid.:120). Na Amaznia, havia aldeias de repartio que centralizavam ndios de diferentes origens, distribudos para servir no s a missionrios como aos colonos e Coroa portuguesa, ganhando um salrio definido na legislao local (BeSSa Freire, 2001a). Os colo-nos priorizavam a conquista dos ndios escravizados a partir de resga-tes e guerras justas. Foi essa fora de trabalho escrava que estabeleceu os engenhos no nordeste e sustentou as empresas que exploravam as drogas do serto na Amaznia aps o fim das relaes de escambo das primeiras dcadas do sc. XVI (marchaNt, 1980; couto, 1998; maeStri, 1995).

    ndios de resgate ou ndios de corda eram os ndios aprisionados em guer-ras intertribais e supostamente conduzidos para a aldeia vencedora, onde seriam sacrificados em rituais antropofgicos. Os portugueses ofereciam mercadorias para resgatar esses ndios e torn-los seus es-cravos (thomaS, 1982). A Coroa portuguesa aceitava a escravido dos ndios resgatados de guerras tribais (domiNgueS, 2000b), legalizando tal prtica. O Alvar de 1574 limitou o cativeiro desses ndios a dez anos de trabalhos forados (aleNcaStro, 2000:119).

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    A sujeio ou o preamento eram principalmente dirigidos aos gentios brbaros, guerreiros que no se submetiam facilmente escravido. Os ndios mansos eram persuadidos a viver nos aldeamentos em tro-ca da posse de terras para subsistncia e a garantia de recebimento de salrios na realizao de trabalhos cotidianos. Nos primrdios da colo-nizao, durante o regime das Capitanias hereditrias, os ataques ind-genas inviabilizaram os trabalhos compulsrios, exceto nas Capitanias onde os colonos estabeleceram alianas, como em Pernambuco e So Vicente (FauSto, 1997).

    O preamento de ndios, realizado por bandeirantes paulistas, acon-tecia revelia dos direitos de guerra que definiam a escravido lcita a partir das guerras justas. Houve momentos em que at missionrios como Manoel da Nbrega (1931) e Jos de Anchieta (1933) defenderam a sujeio dos brbaros em guerras justas como o nico caminho para a converso dos gentios. Diante de longos conflitos, como a guer-ra dos brbaros no nordeste, a sujeio foi transformada em exter-mnio, aldeias foram queimadas e destrudas, os ndios que resistiram, degolados, e os prisioneiros escravizados (PomPa, 2003:273).

    A catequese e a civilizao dos gentios foi realizada nos aldeamen-tos resultantes dos descimentos, nem sempre localizados prximos a povoaes. Os jesutas procuravam estabelec-los distantes dos colo-nos, para controlar o emprego da mo-de-obra indgena. Nessa poca, havia nos aldeamentos procuradores que defendiam a liberdade dos ndios, assim como ndios que faziam peties em defesa de suas terras e liberdade.

    Um exemplo dessa realidade foi o Regimento de 1680 (veja pg. 62), esta-belecido graas aos esforos do jesuta Antonio Vieira junto Coroa por-tuguesa. Esta lei proibia a escravido do indgena mesmo que conquista-do por resgate ou por guerra justa. Escravos negros foram introduzidos no Maranho para suprir o trabalho dos antigos escravos indgenas.

    O Regimento estabelecia que haveria uma distribuio tripartite das atividades dos ndios de servio das aldeias: a) um grupo acompa-nharia os padres nos trabalhos missionrios; b) outro ficaria a servio dos moradores; c) o ltimo grupo cuidaria da subsistncia das famlias

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    indgenas dos aldeamentos (Beozzo, 1983). Tais aldeamentos deveriam ser governados pelos procos e pelos principais (chefes) dos ndios. Os jesutas controlariam todos os aldeamentos no Maranho e no Par onde no existissem missionrios de outras denominaes, tornando-se os procos de qualquer novo aldeamento. O trabalho de catequese seria estendido a lugares remotos da Amaznia, os ndios sendo doutrinados e educados em indstrias nas suas prprias terras.

    O Padre Antnio Vieira agia procurando alternativas para as conse-qncias da colonizao portuguesa no Maranho, que havia testemu-nhado nos seus Sermes:

    Sendo o Maranho conquistado no ano de 1615, havendo achado os portugueses desta cidade de So Lus at o Gurup mais de quinhentas povoaes de ndios, todas muito numerosas e algu-mas delas tanto, que deitavam quatro a cinco mil arcos, quando eu cheguei ao Maranho, que foi no ano de 1652, tudo isto estava despovoado, consumido, e reduzido a mil e poucas aldeolas, de todas as quais no pde Andr Vidal ajuntar oitocentos ndios de armas, e toda aquela imensidade de gente se acabou ou ns a aca-bamos em pouco mais de trinta anos, sendo constante estimao dos mesmos conquistadores que, depois de sua entrada at aquele tempo, eram mortos dos ditos ndios mais de dois milhes de almas, donde se devem notar muito duas coisas. A primeira, que todos estes ndios eram naturais daquelas mesmas terras onde os achamos, com que se no pode atribuir tanta mortandade mudana e diferena de clima, seno ao excessivo e desacostu-mado trabalho e opresso com que eram tratados. A segunda, que neste mesmo tempo, estando os sertes abertos e fazendo-se contnuas entradas neles, foram tambm infinitos os cativos com que se enchiam as casas e as fazendas dos portugueses e tudo se consumiu em to poucos anos (vieira, 1992:IX-X).

    A proibio de cativeiro dos ndios pela Lei de 1 de abril de 1680 provocou revoltas entre os colonos. Estes acompanhavam a formao de grandes aldeamentos indgenas, onde os ndios tinham garantido o direito a terras para cultivo e sobrevivncia. Desde o incio da coloniza-o, a Coroa portuguesa reconhecia legalmente o direito dos indgenas aos territrios que ocupavam. A Carta Rgia de 10/9/1611 afirmava que

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    os gentios so senhores de suas fazendas nas povoaes, como o so na serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer mo-lstia ou injustia alguma (cuNha, 1987:58). O Alvar de 1 de abril de 1680 estabelecia que os ndios estavam isentos de tributos sobre as terras das quais eram primrios e naturais senhores (ibid.:59).

    No Maranho, a revolta dos colonos levou expulso dos jesutas (1684) e quebra do monoplio do trfico de escravos. Entretanto, em 1686 foi sancionado um novo Regimento das Misses do Estado do Ma-ranho e do Par, que vigorou at 1755, modificando a repartio dos ndios e reintegrando os jesutas direo dos aldeamentos, junto com missionrios franciscanos. Os jesutas retomaram o governo espiritual e temporal dos aldeamentos, alm do controle da repartio do trabalho indgena. Metade dos ndios passou a se dedicar aos trabalhos dos colo-nos. O Regimento estabelecia ainda que os jesutas deviam se responsabi-lizar por suprir qualquer escassez de mo-de-obra, promovendo entradas e descimentos que viessem a incrementar os ndios de repartio. Ficavam autorizados tambm a instalar misses no serto (Beozzo, 1983).

    J a vida nos aldeamentos foi reorganizada, sendo proibida a a resi-dncia de brancos e mamelucos e as unies voltadas para a escravizao e a submisso de ndios. Os salrios e o tempo de servio dos ndios fora das aldeias foram regulamentados, junto com os servios domsticos das ndias.

    Os aldeamentos possibilitaram a ocupao territorial, alm da con-verso dos gentios e a garantia de mo-de-obra para os cultivos. Os missionrios procuravam tratar bem os ndios aliados, visando ao seu emprego na defesa do territrio conquistado em face dos ndios bravios ou dos invasores estrangeiros (franceses, holandeses etc.). O Conselho Ultramarino conhecia essa realidade quando proibiu o con-tato de ndios com estrangeiros. Ao lutarem do lado dos portugueses, alguns ndios ganharam ttulos honorficos (como o ndio Araribia, no Rio de Janeiro), recebendo terras para os aldeamentos como re-compensa. Entretanto, a doao de lguas de terras em quadra (al-meida, 2003:220) aos ndios nunca impediu que essas terras fossem invadidas por colonos.

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  • 46

    2 A ao missionria

    O direito de padroado definiu a organizao administrativa das misses religiosas no Brasil colonial. Tal direito, concedido por dele-gao papal aos reis de Portugal, tornava esses monarcas chefes civis e religiosos do clero. Em troca da garantia de propagao da f crist junto aos gentios nas novas terras conquistadas, a hierarquia eclesi-stica portuguesa submeteu-se ao Estado: o clero era funcionrio e a igreja um departamento do reino, representando a religio oficial (hoorNaert et al., 1979).

    A Primeira Missa no Brasil, leo sobre tela de Victor Meirelles, 1860 [detalhe].Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

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    Como chefe da igreja, coube ao rei e a outras instncias religiosas do Estado portugus definirem a poltica religiosa para a colnia. O trabalho de catequese deveria possibilitar a rpida expanso do sistema colonial, ocupando territrios e defendendo novas fronteiras. A institucionalizao das ordens religiosas na colnia veio com a instalao de conventos, col-gios e igrejas, proliferando a disseminao de smbolos religiosos, como cruzeiros e oratrios. Tais instalaes possibilitaram a ao missionria junto aos aldeamentos indgenas (hoorNaert, 1998).

    O discurso doutrinrio da evangelizao dos gentios envolvia comba-te, conquista e dominao dos brbaros infiis (NeveS, 1978). O zelo missionrio no ataque s religies indgenas e aos seus representantes, os pajs, alm da converso dos principais, no se dava apenas atravs da pregao do evangelho. Havia mecanismos compensatrios para os ndios, como conquista de sesmarias, pagamentos de salrios etc.

    Como estratgia missionria havia a adoo de intrpretes, os ln-guas, ou o aprendizado do idioma indgena, permitindo o ensino do evangelho s crianas atravs do aprendizado da escrita e da leitura. Nos colgios de meninos, os curumins eram educados atravs da msica sacra e de prticas litrgicas, utilizando os jesutas instrumen-tos pedaggicos como catecismos, vocabulrios e gramticas elabora-das com o auxlio de intrpretes (aNchieta, 1933; leite, 1965; NeveS, 1978; NBrega, 1931).

    A disciplina imposta aos ndios para que se tornassem vassalos do reino portugus envolvia uma resistncia pouco conhecida: freqente-mente os ndios negavam o aprendizado, abandonando os aldeamentos em busca de seus territrios nos sertes. No era o reconhecimento do cristianismo o problema, mas a dificuldade em abandonar seus costu-mes mgicos e religiosos, regras de parentesco (poligamia e outros). A reao catequese fez os jesutas alterarem suas prticas: ao chegar ao Brasil com o governador geral Tom de Souza, o padre Manoel da N-brega confrontou o povo baiano e os sacerdotes seculares que defendiam a escravido indgena (couto, 1998). Nbrega pregou a converso dos gentios, viajando pelo litoral sul do Brasil, estabelecendo colgios jesu-tas e aldeamentos cristos (NBrega, 1931). Entretanto, junto com Jos

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    de Anchieta, concluiu que a defesa da liberdade dos ndios era ineficaz para os objetivos missionrios, passando a acreditar que a converso do gentio s seria possvel aps sua sujeio. Aps Mem de S (em aliana com Nbrega) subjugar os Tupiniquim do sul da Bahia, os jesutas cons-tituram 11 aldeamentos naquela Capitania (leite, 1965).

    Por necessitarem dos proventos da Coroa para a subsistncia, os missionrios difundiam nos aldeamentos uma concepo crist do tra-balho, enquanto paulatinamente fugiam da dependncia do padroado. A expanso da catequese tornou-se possvel com a implementao da produo agrcola nas terras cedidas pela Coroa, trocando os jesutas a dependncia salarial pelos recursos obtidos com o trabalho indgena, participando do circuito mercantil colonial.

    Do sc. XVI a meados do sc. XVIII, o trabalho catequtico pode ser dividido em ciclos litorneo, sertanejo e maranhense (hoorNaert et al., 1979). Entre as principais caractersticas da ao missionria no litoral citamos:

    O esforo para o domnio da lngua tupi, instrumento essencial para a conquista e a reduo dos ndios em aldeamentos.

    O desenvolvimento da tcnica de catequese a partir da instala-o de colgios jesutas, permitindo o estabelecimento de um sistema de aldeamento (definio de normas de trabalho, con-vivncia, costumes, legislao interna, ritos e festas sacras).

    A polarizao em defesa da liberdade dos ndios em vrios mo-mentos, quando predominou o esprito missionrio dos jesutas diante dos interesses comerciais do sistema colonial.

    A submisso de ordens religiosas (como os franciscanos e os car-melitas) aos projetos de expanso do sistema colonial, endossan-do guerras justas e a escravido indgenas. Os franciscanos do nordeste participaram de bandeiras de preao de indgenas e da guerra contra os ndios Potiguara em 1585 (hoorNaert et al., 1979:54-55).

    A consolidao da cultura da cana-de-acar, baseada na escravido negra, levou ao declnio os aldeamentos do litoral, deslocando o interes-se das ordens religiosas para o trabalho catequtico no serto, acompa-nhando novos ciclos econmicos. A catequese indgena ter como novo

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    foco de conflito os fazendeiros de gado interessados em exterminar ou escravizar povos indgenas. A introduo de missionrios apostlicos no serto, como os capuchinhos submissos ao Papa e no ao padroado (hoorNaert et al., 1979), possibilitou a denncia da estrutura agrria baseada na escravido.

    No estado do Maranho, os jesutas lutaram pela liberdade dos n-dios defendida pelo Pe. Antonio Vieira, instalando aldeamentos longe de povoaes e fazendas, ameaando a reproduo do sistema colonial. Em meados do sc. XVII, Vieira organizou o regimento interno dos aldeamentos e das misses do Maranho e Gro-Par. Tal regulamento envolveu todos os atos que regiam a vida missionria, das atividades econmicas catequese. Agia para a cura das almas (casamentos de ndios, confisses etc.) e para a administrao temporal dos ndios (Beozzo, 1983:203). Nesta ltima, Vieira disciplinou tanto as relaes pessoais com os ndios, como a eleio do Principal da aldeia (ibid.:204), alm do uso de armas de fogo, que no deveriam ser usadas em caso algum, salvo defenso natural e quando no h outros, que possam usar das ditas armas (idem).

    Entretanto, aps o Regimento de 1680 (ver pgina 62), os moradores reagiram, expulsando os jesutas e transformando esses aldeamentos em vilas sob o controle secular (hoorNaert et al., 1979).

    Quando voltaram a atuar na Amaznia junto com outras ordens religiosas, os jesutas enfrentaram uma nova repartio das tarefas mis-sionrias estabelecida pela Coroa. Para os portugueses, os missionrios deviam agir para garantir as fronteiras do imprio portugus e para tornar os ndios mansos produtivos atravs da catequese.

    Paulatinamente, os militares portugueses, com o apoio dos jesutas, retomaram a bacia do Solimes e rio Negro expulsando os jesutas es-panhis capitaneados pelo missionrio Samuel Fritz. A cada ano acon-teciam descimentos e resgates, alm de guerras justas contra os povos que se opunham catequese (Porro, 1996). Os jesutas defendiam seus interesses, tentando manter o controle da mo-de-obra indgena, mas perderam terreno para carmelitas, mercedrios e outras ordens submis-sas s presses comerciais (ibid.:63).

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    A expresso desse ciclo econmico, com a defesa das fronteiras (dilatar a f e o imprio), associado civilizao dos ndios, di-minuiu a influncia jesuta na Amaznia: franciscanos, carmelitas e mercedrios dominaram a repartio dos territrios missionrios, es-palhando aldeamentos no Par, no rio Negro e no baixo Amazonas (FragoSo, 1992).

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    Fontes para Pesquisa

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    3 A resistncia indgena

    O contato dos povos indgenas com os invasores coloniais portu-gueses, franceses, holandeses etc. no pode ser reduzido ao binmio extermnio e mestiagem. Desde as primeiras relaes de escambo (mar-chaNt, 1980), passando pelas inmeras alianas guerreiras at o desespe-ro causado pelas epidemias de varola, cada povo indgena reagiu a todos os contatos a partir do seu prprio dinamismo e criatividade.

    Assim, com o tempo, no s foram criadas novas sociedades e no-vos tipos de sociedade (moNteiro, 2001:55), como o conhecimento dessa realidade esteve viciado pelo olhar do cronista que desde o in-cio naturalizava essas sociedades, dividindo-as em Tupis e Tapuias (aliados/inimigos) de forma a consolidar os objetivos de dominao do projeto colonial portugus.

    Na histria desse contato, as iniciativas de inmeras lideranas in-dgenas em defesa dos interesses de seus povos foram registradas em

    Theodore de Bry. Epidemia mata ndios Tupinamb

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    documentos oficiais e relatos de cronistas, como a aliana Tupinamb de Cunhambebe e Aimber contra os Temimin de Araribia na guerra dos Tamoios (almeida, 2003), a guerra dos Potiguara comandados pelo chefe Tejucupapo contra os portugueses (mooNeN & maia, 1992) e, anos mais tarde, os mesmos Potiguara, comandados por Antonio Felipe Camaro, aliando-se agora aos portugueses para expulsar os holande-ses do Brasil (moNteiro, 2001). No Maranho, o padre capuchinho Claude dAbbeville testemunhou, no incio do sc. XVII, o discurso de um ancio indgena que questionava as iniciativas dos franceses. Esse ndio, de nome Mombor-uau, discursou na ocasio para todos os principais (chefes) Tupinamb reunidos na vila de Eussauap:

    Vi a chegada dos pro em Pernambuco e Poti; e comearam les como vs, franceses, fazeis agora. De incio, os per no faziam seno traficar sem pretenderem fixar residncia. Nessa poca, dormiam livremente com as raparigas, o que os nossos companheiros de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nos devamos acostumar a les e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificar cidades para morarem conosco. E assim parecia que desejavam que constitussemos uma s nao. Depois, comearam a dizer que no podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que Deus smente lhes permitia possu-las por meio do casamento e que les no podiam casar sem que elas fssem batizadas. E para isso eram necessrios pa. Mandaram vir os pa; e stes ergue-ram cruzes e principiaram a instruir os nossos e a batiz-los. Mais tarde afirmaram que nem les nem os pa podiam viver sem escravos para os servirem e por les trabalharem. E, assim, se viram constrangidos os nossos a fornecer-lhos. Mas no satis-feitos com os escravos capturados na guerra, quiseram tambm os filhos dos nossos e acabaram escravizando tda a nao; e com tal tirania e crueldade a trataram, que os que ficaram livres foram, como ns, forados a deixar a regio.

    Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vs o fizestes smente para traficar. Como os per, no recusveis tomar nossas filhas e ns nos julgvamos felizes quan-do elas tinham filhos. Nessa poca, no falveis em aqui vos fixar; apenas vos contentveis com visitar-nos uma vez por ano, permanecendo entre ns smente durante quatro ou cinco luas.

  • 53

    Regressveis ento a vosso pas, levando os nossos gneros para troc-los com aquilo de que carecamos.

    Agora j nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos contra os nossos inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba e vrios Pa. Em verdade, esta-mos satisfeitos, mas os per fizeram o mesmo.

    Depois da chegada dos Pa, plantastes cruzes como os per. Co-meais agora a instruir e batizar tal qual les fizeram; dizeis que no podeis tomar nossas filhas seno por espsas e aps terem sido batizadas. O mesmo diziam os per. Como stes, vs no quereis escravos, a princpio; agora os pedis e os quereis como les no fim. No creio, entretanto, que tenhais o mesmo fito que os per; alis, isso no me atemoriza, pois velho como estou nada mais temo. Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos (daBBeville, 1975:115-116).

    As atitudes indgenas registradas entre os povos do litoral no sc. XVI tambm se estendem para os povos localizados nos sertes, no interior do Brasil e na Amaznia a partir do sc. XVII. Registramos aqui trs importantes momentos da resistncia indgena: a) a guerra dos brbaros; b) a revolta dos ndios Manao, chefiados por Ajuricaba; c) os jesutas e os trinta povos das misses.

    3.1 A guerra dos brbaros

    A expanso da pecuria sobre as terras dos ndios durante o sc. XVII, na regio do semi-rido nordestino, acentuou os pequenos confli-tos que ocorriam entre colonos e ndios tidos como brbaros: Tarairi, Jandu, Ari, Ic, Payay, Paiacu, todos identificados como Tapuios, habitantes de uma regio que compreendia desde o centro-oeste da Bahia at o Cear (PomPa, 2003).

    Os conflitos com os ndios na regio litornea do Recncavo baiano existiam desde meados do sc. XVI. As guerras do recncavo surgi-ram com a construo de Salvador em 1555, cessando com as expedi-es punitivas de Mem de S que empregaram milhares de ndios aldea-dos para combaterem as rebelies dos Tupinamb (PuNtoNi, 2002).

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    No sculo XVII, inicialmente, as guerras do recncavo foram marcadas pelas invases dos ndios Tapuios a vilas e a engenhos, entre 1612 e 1621 (PuNtoNi, 2002). Os combates contra os Tapuios envolveram um grande contingente de ndios aldeados, inclusive antigos Tapuios como os ndios Aimor, que estavam aliados a soldados e a bandeirantes paulistas (PomPa, 2003). Durante os combates, havia des-locamentos de populaes em conflito, intensa mobilidade e unificao de grupos em aldeamentos estimulada por jesutas.

    Entre 1651 e 1656, os Tapuios continuaram atacando as vilas do Recncavo, estabelecendo a partir de 1657 trs momentos reconhecidos pelos historiadores nessa guerra:

    a) A Guerra de Orob (1657-1659)

    b) A Guerra do Apor (1669-1673)

    c) As guerras no So Francisco (1674-1679) (PuNtoNi, 2002)

    Na guerra do Orob, os ndios Payay j aldeados, localizados en-to no norte da Bahia e atualmente extintos, foram requisitados pelos portugueses para combater os Tapuios e outros ndios seus inimigos, os Topin, hoje extintos. Tais expedies deviam fazer guerra aos Ta-puios desbaratando-os e degolando-os por todos os meios e inds-trias que no ardil militar forem possveis (PuNtoNi, 2002:100). Duran-te os conflitos, grupos locais de ndios Payay rebelaram-se contra os portugueses, sendo derrotados e descidos para aldeamentos no litoral (PuNtoNi, 2002).

    A guerra nos campos do Apor foi uma guerra justa contra os Tapuios (ndios Topin e outros) da regio do Apor (atual Bahia). Essas expedies guerreiras, contando novamente com ndios Payay, podiam degolar os ndios que resistissem tropa, e escravizar todos os prisioneiros. Essas tropas tinham o direito de repartir as terras indge-nas conquistadas (PuNtoNi, 2002).

    As guerras no rio So Francisco correspondem revolta inicial de sete aldeias de ndios Anaio (Tapuios) contra os curraleiros (cria-dores de gado) que invadiram suas terras. Os portugueses convocaram centenas de ndios Kariri, flecheiros, para integrar as tropas do serto.

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    Centenas de ndios, j rendidos e amarrados, foram trucidados pelos portugueses (PomPa, 2003).

    Em vrios momentos, os padres missionrios (capuchinhos, jesutas) aliaram-se aos ndios no decorrer das revoltas, pois freqentemente os ndios apenas se defendiam de ataques de moradores (PuNtoNi, 2002; PomPa, 2003).

    A Guerra do Au, principalmente contra os ndios Tarairi (Jandu), resultou das mesmas questes. Nesse confronto revelou-se a complexi-dade das relaes que os ndios Tapuios estabeleciam com os regionais (vaqueiros, colonos etc.), desenvolvendo tticas de guerra singulares.

    Na luta contra os missionrios pelo domnio dos ndios (escraviza-o), os curraleiros recorreram s bandeiras paulistas e guerra jus-ta. Enfrentaram nesse contexto alguns principais indgenas, como o chefe Canind, dos ndios Jandu, que optaram por negociar exaustiva-mente as condies da paz e da vassalagem exigida por Portugal.

    A guerra dos brbaros revelou que as atitudes indgenas de reao colonizao foram complexas, envolvendo articulaes diversas entre populaes, alm de reelaboraes socioculturais, como a que permitiu a associao de diversos povos contra os portugueses. Da mesma forma, o processo de territorializao que da surgiu foi decorrente do tratado de paz e do seu descumprimento pelos colonizadores, tornando as ini-ciativas de aldeamento meramente circunstanciais.

    Belmonte. Bandeirante com gualteira de couro de anta, gibo de armas, rodela, espada, arcabuz e forquilha

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    3.2 A Revolta de Ajuricaba

    Na disputa pelas drogas do serto no sculo XVII, os portugueses avanaram sobre a regio do Vale do rio Negro, na Amaznia, onde a populao indgena tinha grande densidade. Alm de empregarem os ndios na coleta dos produtos, interessava aos portugueses expandir as fronteiras territoriais do im