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A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Copyright © Rogério Silvério de Farias Abril de 2010 Primeira edição Revisão e diagramação: Damon Tylard Capa: Di Almmo É proibida a reprodução total e parcial desta obra para fins comerciais, sem a autorização prévia, por escrito, do autor. Obra protegida pela Lei de Direitos Autorais.
Todos os personagens deste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas ou acontecimentos da vida real é mera coincidência.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Em meus anseios mais insanos a Eternidade, como uma deusa-
mãe, me acena, solícita; bem-aventurada seja toda vontade
adorável e contraditoriamente insana de viver e morrer, pois
assim se passará rapidamente por este caudaloso e estranho rio
de ilusões, o Tempo.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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SUMÁRIO
Apresentação, 11
Como nascem as bruxas, 16
O eu intruso, 20
A princesa de Belépsiah, 35
Penélope espera uma rosa, 40
O crime na rua do cemitério, 44
O estranho que apareceu, 50
O ultimato de Oannes, 54
A maldita choupana dos delírios, 60
O pranto dos deuses astronautas, 66
Descansa em paz, 70
A vingança de Fernando Juan Cuervo, 79
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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APRESENTAÇÃO
Minha angústia endiabrada rodopiou nas místicas dores do parto
deste livro, tal qual esfuziante bailarina ao som da música do
caos mental e da epifania das musas; destarte, eu, na doce
agonia de mil sonhos e quimeras, por fim relinchei dentro da
noite vazia e solitária; o cavalo insano que é meu anseio de
engendrar de súbito relinchou nesta baia fétida e decadente na
qual foi transformada a vida. O cavalo-desejo queria criar, e
assim fugiu, escoiceando o traseiro dos deuses da Arte e da
Literatura, e no transporte da carreira, eu ─ o homem-cavalo ─
vesti a pele de um centauro, deixando vir a outra transformação
delirante subsequente, a transformação dos sonhos em realidade
através da magia das palavras. Então o mais terrível dos egos
inflou e estourou. Reconheci a verdade, e ela cheirava mal.
Então quis galopar livre e indomável, observando a paisagem
contemporânea de forma clara através do véu da imaginação. E
assim foi. E num átimo o cavalo transformara-se em leão, e
depois rugira como um estentor visionário. Chegada era a hora
do leão nas savanas douradas da vontade de criar... Como um
deus... Ou como um demônio. E depois do leão, virei centauro
sem cabeça – criança grande. Para o reino do céu da criação
literária, não há que ser como um menino?
Eia! Avante!...Três transformações do espírito mencionou o
pensador delirante Nietzsche na boca de seu Zaratustra: como o
espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão,
finalmente em criança. Disse também o pensador que filosofava
a golpes de martelo: Há muitas coisas pesadas para o espírito
forte, sólido e respeitável, e que a força deste espírito está
clamando por coisas pesadas, e das mais pesadas. Pois é como
eu disse parágrafos atrás: digo que para ser escritor é preciso
passar por três transformações do espírito: o escritor torna-se
cavalo, depois leão, e por fim, centauro sem cabeça - criança.
Um místico centauro mental para galopar sem peias por
pradarias de mil imaginações.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Galopou minha mente como um centauro sem cabeça por mil
pradarias selvagens e inóspitas de uma imaginação inaudita, e
com ela trotou meu sonho mais delirante, num galope cheio de
quimeras e verdades douradas; trotou espartanamente,
pisoteando sem piedade o “horror metuendo” do nada das horas
dos mortais comuns (meras ovelhas apascentadas pelo tédio de
falsos pastores e falsos deuses?), e fui-me também em delírios e
devaneios pelas pradarias fétidas dos ramerrões da vida
prosaica, mas sempre solitariamente ousando sonhar de olhos
bem abertos e com o coração pueril batendo forte como um
tambor poético que incita tudo o que há de forte e criativo em
mim... e em mins!
Ouçam-me! Quero contar algo: vou estourar vossos cérebros
com a diversão do meu sonhar exótico! Isto não é um livro. É
uma bomba! Um chute nos fundilhos da Arte, da Literatura;
brado estranho da imaginação alada, da voz dos mortos do
ultramundo. Um galope de centauro sem cabeça.
Escritores não são comuns, nem imortais, embora sejam rios
humanos que desembocam numa cova; eu não sou um nem
outro; sou uma voz que se eleva acima da multidão como o grito
de um sincero sonhador de mundos de opiáceas latitudes; uma
chama se acende então, não é uma vela! Ah, incendiarei o
mundo com o poder das palavras, Nero que sou das letras!
***
É verdade, é uma chama do inferno: lira ígnea é tocada dentro
de mim. Eis a verdade: Uma estranha raça brota constantemente
dos subterrâneos, do húmus que se chama vida terrena!... Estou
falando da raça dos escritores de ficção. Estranha, mas adorável
e, sobretudo, necessária. Necessária porque a criatividade e a
fantasia, irmanadas, formam o vinho capitoso da vida, o vinho
que nos embriaga da dor lancinante de viver e morrer na ilusão
tosca da vida. E viver dói, tanto quanto escrever (a morte pode
ser a anestesia da vida?). Escritores de ficção formam parte de
uma raça singular de homens, uma raça necessária à beleza
sombria da vida e do mundo; ser contista é reencarnar-se mil
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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vezes numa só vida. E mesmo que para muitos a vida e o mundo
sejam destituídos de beleza e repleta de espinhosas flores de
horror, ainda assim os ficcionistas são ainda mais necessários,
porque vencem a morte com o talento, porque sonham
acordados e transformam em realidade seus mundos e
personagens, porque sempre haverá uma boa plateia para
contadores de histórias. Sonham acordados com mundos
fantásticos onde são, concomitantemente, deuses e cronistas, e
transformam esses devaneios criativos em realidade através da
magia luminosa das palavras: assim são os ficcionistas!
E o que dizer, particularmente, dos ficcionistas de horror,
fantasia e ficção científica? Aqueles que maravilhosamente
exacerbam no criar da fantasia lúcida?
Esses formam o sal da criatividade das letras, o sol que explode
em fogo, magia e fúria de criar além dos sonhos e delírios, a
levedura mística imprescindível, o terremoto psicológico que
acorda os mortos da literatura, arrebentando os sepulcros
caiados da arte literária bem comportada e burguesa, no crisol
turbulento que é a gênese do íntimo do escritor!
É somente aí, nos oníricos orbes, nos globos fantásticos e
sombrios de um ficcionista, que o verbo se faz carne e se torna
deus na terra! Santificado seja teu nome, ficcionista!
Quase sempre são infelizes, os escritores de ficção, e passeiam
de mãos dadas com o verme demoníaco da dor pela alameda dos
trágicos destinos, dos infortúnios mais loucos, dos azares e dos
pesadumes que o calvário imposto por uma suposta (?)
Providência incutiu no espírito desses homens excêntricos que
teimam em tornarem-se êmulos de seu Divino Criador.
O que move um sujeito a se debruçar horas e horas sobre um
papel ou diante de um computador, altas horas da noite, sombrio
como a última estrela da galáxia da solidão, construindo
mundos, gentes, destinos, só Deus ou o Demônio são capazes de
saber!
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Que importa se um escritor de ficção alcançará ou não a fama e
o reconhecimento? Que importa se amealhará fortuna? O que
realmente importa é que ele se fez deus e construiu o seu próprio
Céu e Inferno com a magia soberana das palavras!
Enquanto o tolo homem comum se esforça para alcançar apenas
dinheiro, mulheres, prestígio e prazer num mundo onde a única
solução para tudo jaz na morte, o escritor de ficção, famoso ou
obscuro, cria o seu próprio mundo, um mundo que lhe cai bem
como uma luva, um mundo onde ele reina e reinará para todo o
sempre como Deus e Diabo de seus personagens.
E só!
Mas a apoteose da mais criativa das loucuras atinge o zênite
quando um ficcionista resolve escrever sua autobiografia
misturada à fantasia num conto, numa novela ou num romance,
transformando em arte aquilo que muitos poderiam
simplesmente rotular de mero delírio; é então quando a batalha
entre o id e o ego assumem tons mágicos e trágicos, construindo,
com o sangue de sua pena, para falar de um jeito nietzscheano, a
ponte entre o homem e o além-do-homem; escrever com o
sangue é escrever com o próprio espírito, assim vencemos a
morte, e como dizia Jorge Luis Borges, “o homem esquece que é
um morto que conversa com mortos”.
Este livro pode ser um lixo ou um horror. Mas a vida é assim,
também. Feita de lixo e horror. Reciclemos tal lixo e tal horror
através da catarse da leitura.
Excitei meu cérebro! O meu negócio é o caos, a destruição, o
delírio ─ a Arte, portanto. É dureza, e só os artistas lutadores e
mortos de fome podem criar na tinhosa angústia do viver. Eis,
portanto, uma nova obra de contos de minha lavra.
O AUTOR
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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COMO NASCEM AS BRUXAS
Quando o fel amargo da sina e a bílis negra do rancor brotam
como ondas flamejantes nos mares tempestuosos da alma e do
coração de uma mulher, tome cuidado homem, anjo ou deus!...
Porque a mulher é uma criatura misteriosa e estranha, muito
além de santa e demônio ─ mata com o olhar e com o
sentimento! Flui em suas veias o místico e rebelde sangue de
Eva e em sua boca escorre a saliva peçonhenta e luxuriosa de
Lilith. Carrega dentro de si o céu e o inferno, e sua capacidade
de amar e odiar é infinita. Portanto, tu, que estás a ler estas
linhas, temei a mulher quando ela te odiar! A mulher é enigma e
labirinto, amor e morte, paixão e ódio, arco-íris e relâmpago,
poesia e cólera, luz e sombra, berço e túmulo!
Machucaste uma mulher? Se tu fores um homem, sofrerás; se tu
fores um deus, perderás um seguidor.
São muitas as histórias de mulheres e muitas as de bruxas. Esta é
uma delas. De bruxa e de mulher. Se tu, cristão, estás a ler estas
linhas, é melhor persignar-te antes de continuar a leitura desta
sombria e metuenda história!
Rebecca tinha dezoito primaveras naquele ano de 1692, em
Salém. Mas para ela, então, não eram primaveras, mas sim
outonos – outonos de tristeza, de ódio, de ojeriza ao seu fadário
de réprobo.
Ela sabia que, se continuasse com a vidinha estúpida que levava
em Salém, nunca seria nada na vida. A vida é assim, mormente
para os miseráveis: as portas só são abertas para os fortes, pois
aos tíbios é dado o veneno negro da vida e o labirinto da
mediocridade. A porta do inferno é ampla e fica aberta noite e
dia, por ela passam os fortes e ousados. A outra porta, mais
estreita, é a do céu: passam por ela os que suportaram o
sofrimento nos braços de Jesus, sem venderem sua alma e sem
sucumbirem à angústia do fracasso. Mas Rebecca não queria o
infortúnio como ingrediente básico do crescimento espiritual –
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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queria a vida sem dor, a paixão, a lascívia sem sofrimento, no
prazer, no gozo da carne.
Passam as estações da existência, e logo o outono imperava na
vida de Rebecca. O outono do infortúnio e da danação. Rebecca
estava agora junto ao leito de seu amor, Joshua, já quase morto
por uma doença terrível, algo muito pior que a lepra! Joshua
parecia um zumbi. Sua aparência física era pior do que uma
pessoa com anorexia em estágios finais. Joshua, o amor de
Rebecca, que sempre rezara, sempre semeara o amor e o bem,
mas agora ele estava morrendo. Os ossos pareciam querer furar
a pele branca, cadavérica. A carne começava a ficar pútrida,
fétida. Era praticamente um nauseabundo esqueleto vivo, e o
olhar perdido, embaciado, fitava o nada da vida e sonhava com
uma libertação na morte. A dor era tanta, que Joshua não mais
falava, mas trauteava algo como um cântico profano em repúdio
à dor excruciante da enfermidade satânica.
Rebecca tentava consolar Joshua, mas era inútil. O deus que
Joshua adorara durante toda a sua vida agora o premiara com a
negação de ajuda ante a terrível doença.
Rebecca ia perdendo a fé, mas num último hausto de esperança,
olhou o crucifixo na parede. Ali estava Cristo, o crucificado.
Uma prece, a última, a derradeira desprendeu-se dos lábios de
Rebecca, como num murmúrio, como uma pétala da flor negra
do desespero caindo, açoitada pelos ventos do destino cruel.
─ Jesus, não o deixe morrer! Por favor, não deixe meu amor
morrer!... Eu o quero perto de mim, preciso de Joshua, do seu
amor e seu corpo, ao meu lado, me tirando da solidão da vida...
Não, Senhor!... Não o deixe que o levem... não me deixe sozinha
neste mundo de sonhadores e desgraçados!”
O amor de Rebecca. O sofrimento de Joshua. O fardo da
enfermidade consumindo-o como um veneno lento e inexorável.
Joshua macilento, lúrido, às portas da morte, nas vascas da
agonia. Rebecca desesperando, perdendo as ilusões, as
esperanças do auxílio da mão divina...
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Os olhos de Joshua pareciam dizer a Rebecca:
“Rebecca...estou caindo na escuridão...faz frio, agora...Ouça-me,
querida...estou morrendo...é um vácuo a morte, e nele há o fim
mas o começo de uma nova dor...
Rebecca, me salva do inferno!”
Ao que Rebecca respondia, desesperada:
─ Não morra , meu amor! Oh, não morra!
O último suspiro quase coincidiu com o trovão da tempestade, lá
fora, na noite, que chegava como o veredicto da morte.
Logo, o temporal. A chuva. Lágrimas nos olhos de Rebecca.
Rebecca ainda tentou manter Joshua, seu amor, à vida, mas já
era tarde. Sacudiu-o no leito, mas ele morria, ele morria! Estava
agonizando, descendo ao reino das sombras, ao país dos mortos.
A respiração cessava. O coração parava de bater. Uma frieza
cadavérica apossava-se do corpo esquálido, carcomido pelo mal
que lhe consumia.
Então sobreveio o horror. Uma coisa tenebrosa aconteceu!
Joshua, agonizando, expeliu um grito final, de desespero e
medo, que retumbou no quarto como retumbam os trovões do
inferno, e concomitantemente, o corpo esquelético de Joshua
começou a tremer como que atravessado por uma eletricidade
estranha e medonha da morte. Uma baba ou gosma
sanguinolenta escorreu pela comissura da boca. A carne pútrida
foi se desprendendo como que a derreter sob sóis infernais
calcinantes, invisíveis ao olhar humano são. E os olhos saltaram
das órbitas, e um cheiro nauseabundo evolou da pele lívida de
Joshua, como uma emanação mefítica de mil carniças nas
pradarias ardentes do inferno, até que o paroxismo do horror
veio na forma do silêncio sepulcral e do rigor mortis.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Rebecca baixou a cabeça, vencida pelo horror, pelo medo, pelo
desespero... E pelo ódio! Sim, ódio do destino, do descaso de
Deus... Pois onde estivera Ele, enquanto Joshua morria, engolido
pela morte?
Rebecca soltou um grito histérico, insano. Depois, parecia estar
catatônica. Olhou o patético crucifixo na parede.
A ira. A loucura. O desespero. Ingredientes sinistros para uma
transformação diabólica de alma. Tudo a envenenar a alma da
jovem.
Rebecca apanhou a bíblia e alguns frascos de remédios de sobre
o criado-mudo e, num ímpeto de selvagem loucura e ódio, pôs-
se a atirá-los furiosamente sobre o crucifixo na parede, gritando
blasfêmias e impropérios.
─ Maldito sejas tu, ó deus dos desgraçados! Porque deixaste
meu amor morrer, Deus inútil? Por que não o salvaste? Eu
respondo: porque és o deus dos tíbios!
Com o estrondo do trovão da tempestade lá fora, um pacto
parecia selar-se nos recônditos da alma de Rebecca. E ela
comemorou com uma gargalhada insana quando a luz súbita do
relâmpago atravessou a vidraça da janela e iluminou-lhe o cenho
rancoroso, antes de murmurar para si própria:
─ Doravante terei mil razões de vingar-me do destino, por mil
eras eu te odiarei, ó Deus inútil dos fracos!...A magia domeu
ódio será o legado que deixarei sobre esse vale de lágrimas, a
Terra, de onde me tiraste aquele a quem amei, o meu querido
Joshua!
Assim nascem as bruxas - nascem do desespero incoercível, do
ódio contumaz e da rebeldia ante o corte dos liames da paixão
pelas mãos divinas!...
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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O EU INTRUSO
“Em vários tempos e lugares, a loucura foi considerada sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de nós quando, ao vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que já não é ele quem fala, é alguém, alguém que vê por ele, interpreta as coisas por ele, está atrás dele, invisível!…”
LIMA BARRETO
Prólogo
A vida cotidiana é recheada de acontecimentos bizarros,
insólitos e fantásticos. Estamos predestinados a nos deparar com
acontecimentos inauditos, aparentemente sem uma explicação
lógica plausível. Alguns desses acontecimentos estranhos e no
fundo perturbadoramente prodigiosos, chamamo-los usualmente
de sobrenaturais. E nessa mesma vida, nos deparamos com
pessoas assustadoramente excêntricas, personagens do drama
humano que é o existir neste mundo-inferno da dor e da
crucificação, o planeta Terra.
Aconteceu quando eu era bem jovem, acho que eu contava
umas dezenove ou vinte primaveras. Não lembro com exatidão
a data certa, pois hoje estou no outono da velhice, e me custa
recordar certas coisas que, inconscientemente ou não, eu queira
esquecer; como eu ia dizendo, naquela época, bem nos tempos
em que trabalhei na prefeitura da estranha cidade de
Maremontes, fui designado para assumir uma repartição
considerada uma das piores daquele serviço público, a
“Repartição dos Mortos”, como era chamada pejorativamente
pelos servidores mais antigos; na verdade era a “Central
Municipal de Óbitos”, um órgão da prefeitura responsável pelo
registro do passamento dos cidadãos.
Eu tinha sido aprovado na seleção de candidatos ao maldito
emprego público em primeiro lugar, e isso, ao contrário do que
deveria ser, me trouxera muitos problemas ao assumir a vaga
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
21
porque o chefe do setor administrativo era um sujeito assaz
invejoso e malvado; tal sujeito nefando ficara com inveja da
minha pessoa porque na época eu era estudioso, fazia faculdade,
era jovem e boa-pinta etc, enquanto ele, em sua sina de
malévolo, era feio, egoísta, preguiçoso para estudar e com a
curva de uma felicidade fajuta e efêmera proporcionada pela
gula desenhada engraçadamente na pança protuberante. Hoje,
sou um bom velho vagabundo e barbudo, e, sem fazer mal a uma
pulga manca, não estou nem aí para essa cidade estranha e
mesquinha que se tornou Maremontes, então me lembro dessas
coisas assim com certo espanto, porque percebi, com a maior
dor no coração, que o mundo é um asilo de loucos e
endemoniados, alguns deles inofensivos, porém alguns
terrivelmente demoníacos... Sim, a vida material, física, é um
circo caótico e medonho, e o artista principal ou triste palhaço é
o ser humano, condenado a ser engolido vivo no picadeiro do
tempo por um fantasmagórico leão das sombras, a morte!
A Central Municipal de Óbitos, responsável pelos trâmites e
burocracias concernentes aos falecimentos nos hospitais da
cidade, ficava numa espécie de garagem de prédio, bem perto da
rua do cemitério. Meu único amigo era o vigia noturno, um cara
que também tinha sido aprovado na seleção e, assim como eu,
estava ali na labuta em busca do pão nosso de cada dia,
adquirido penosamente pelo suor do trabalho honesto, pão esse
que era o pão que o diabo amassou. Porém estávamos decididos
a largar aquela porcaria de sonho de ser servidor público
municipal numa droga de prefeitura comandada por demônios
sórdidos e cujo demônio chefe, o sujo prefeito com cara e alma
de suíno, não dava a mínima para nós, tolos trabalhadores e
muito menos aos demais cidadãos, também pagadores de
impostos escorchantes.
A fauna humana é exótica e excêntrica na floresta do mundo.
Ali, em Maremontes, a coisa não era diferente. Odiávamos a
dona da funerária, que ganhara a licitação (de forma fraudulenta)
para recolher os mortos do necrotério e oferecer os serviços às
famílias atordoadas pelo passamento dos parentes. O nome da
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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funerária e o slogan eram por demais estranhos: “Funerária Bem
Morrer – aqui sua morte é levada a sério!”.
“Quantos morreram hoje, meus lindos querubins das sombras da
vida e da morte?”, ela, a dona da funerária, telefonava de hora
em hora nos perguntando em tom jocoso isso que foi escrito no
início deste parágrafo. Quando dizíamos que não tinha morrido
ninguém com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o
carpinteiro da Terra, ela falava do outro lado da linha bem
assim, chateada, mas de vez em quando soltando risadinhas
sarcásticas de bruxa malévola:
“Miséria humana! A Ceifadora de Almas parece estar em greve.
Bem, tomara que morram mais uns três malditos desgraçados até
a noitinha, pois quero viajar até o Rio de Janeiro semana que
vem com meu novo marido, o Deoclécio, um garotão lindo de
olhos verdes e bolsos vazios. Se não morrer ninguém, subo
nessa porcaria de hospital aí na frente da Central e esgano algum
doente em estado terminal ou vegetativo! A morte é a parte
lucrativa de meu negócio, não tenham dúvida alguma, meus
querubins!”
Depois que ela desligava, eu comentava com meu amigo vigia:
“Caramba! E temos de conviver com esse belo exemplar da ralé
espiritual do umbral! Essa dona da funerária é uma bruxa dos
tempos modernos e sujos onde vivemos! E esse emprego é um
lixo, só arrumo esses malditos empregos precários, com salários
baixos e ambiente sinistro, aqui nesta sórdida Maremontes onde
Judas perdeu as botas. Enquanto isso, meus irmãos estão todos
ricos como profissionais liberais, e orgulhando meus pais, que
me tomam por um reles inepto ao não conseguir encontrar belas
sinecuras. Quando terminar minha faculdade irei dar o fora
desse calabouço macabro de malditos, essa repartição dos
infernos. De que adiantará meus estudos, minha faculdade,
quando percebo que o mundo é demoníaco e só se salvam as
crianças, alguns poucos velhos e adultos desiludidos? Às vezes
me desanimo e penso em desistir de tudo. Penso: não vou mais
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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estudar e trabalhar, vou virar vagabundo que dá mais lucro.
Cansei de ser um fracassado com carteira assinada. Vou virar
um estoico poeta louco e viver de brisa. Ó brisa do mar, vou
morar na praia e só pescar.”
“Mas tu não sabes nem o que é um anzol, rapaz! Nunca te vi
pescando uma piabinha sequer! Teu negócio é escrever, um dia
haverás de ser um grande escritor e eu trabalharei como vigia
noturna em tua mansão amealhada graças ao sucesso de teusbest
sellers!Eh, eh, eh!...Relaxa, a vida é assim, como uma mulher,
uma hora está boa, outra ruim...A vida é mulher, e tem seus
momentos de TPM...”, comentava o vigia e começava a rir,
depois completava que iria largar também a droga do emprego e
casar com a mulher certa, uma viúva velha, rica e perneta, a qual
ele drogaria com soníferos para poder vadiar pela noite, em
busca de “altas gatas”, como ele dizia. Era um pássaro estranho
e rapinante, esse vigia noturno.
Eu e o vigia amigo levávamos livros e histórias em quadrinhos
de horror para lermos, enquanto não tocasse o maldito telefone
com a enfermeira do hospital dizendo para que avisássemos a
funerária para buscar um morto no necrotério.
Uma noite enfadonha de domingo, quando fazíamos o plantão, o
vigia começou a me contar histórias assombrosas e fantásticas.
Ele tinha fama de mentiroso, mas acreditei numa de suas
histórias extraordinárias.
Disse-me que seu tio, no passado, tinha sido rico, mas acabou
ficando louco e morrendo em circunstâncias estranhas junto com
sua namorada, num incêndio. Ele me contou a história medonha
e real. No quarto de seu tio, que era excêntrico e dado a leituras
de ciências ocultas, foi encontrado pelo meu amigo vigia um
diário. Esse diário era por seu tio intitulado “Diário de aventuras
espirituais”. Resumidamente, ei-s alguns trechos, que o vigia me
contou e que não esqueço até hoje, pois ele me mostrou o diário
no outro dia, e me deu a mim. Era um caderno velho e puído, a
capa, incongruente com o conteúdo sinistro do livro, mostrava
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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uma bela paisagem de verão, com um sol se pondo numa praia, e
o título em garrafais feito com esferográfica azul: “Diário de
aventuras espirituais”. Ainda tenho esse caderno em casa.
Pretendo queimá-lo, mas ainda não tive coragem.
Diário de Aventuras Espirituais
12 de março de 1980. Ontem fumei muito no narguilé. Depois
das viagens que fiz no final do ano passado, trouxe comigo o
narguilé e com ele um tabaco especial do oriente
chamado narshastra. Ah, como fumar o narshastra no narguilé
é delicioso, estranho e divertido! Acho que é melhor que ópio.
O narshastra, segundo especialistas em drogas, ainda é um
mistério. Às vezes parece simples tabaco, mas às vezes, segundo
algumas variedades, é pura erva ou uma espécie de opiáceo
incrível. O narshastra que trouxe comigo, me disseram aqueles
que o venderam para mim, é uma variedade mais suave já que
em alguns países, como a Índia, sua variedade mais forte e
exótica é considerada uma espécie de cânhamo e não nicotiana
propriamente dita, sendo usado secretamente em rituais místicos
já que o narshastra mais forte é considerado droga com alto
potencial alucinógeno e terrivelmente enlouquecedor e
cancerígeno sendo proibido o seu uso e a sua venda. Em
algumas ordens iniciáticas do oriente, ela é usada com
parcimônia para a recordação de vidas passadas e – incrível! –
até visões de reencarnações futuras!
O dia todo bebi vinhos capitosos e inebriantes, também. Sou um
vagabundo entregue a vícios e prazeres mundanos, um insensato
procurando a morte através de caminhos obscuros e
pecaminosos. Meus pais morreram e me deixaram uma boa
herança, duas casas e uma fortuna em joias. Vou torrar tudo, não
quero nem saber! Sim, pouco a pouco estou gastando tudo, sou
um estroina e resolvi fazer da minha vida um piquenique muito
louco e divertido. Vou me divertir muito e depois... Bem, depois
– dane-se! – irei apenas morrer, por o ponto final na minha louca
existência neste mundo de infelizes e desgraçados inventado
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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pelo sonho louco de um Demiurgo cochilando em seu trono de
merda.
Hoje, estou de ressaca, ressaca que vai passando aos poucos,
pois estou tomando bastante água, e isto me proporciona alívio.
Agora é de manhã, estou escrevendo neste caderno algumas
lembranças meio confusas do que me aconteceu ontem, a partir
da meia-noite, quando caí no sono após vagabundear o dia todo,
imerso nos delírios infernais da droga e do álcool.
Tudo começou com uma estranha sensação. Houve uma
sensação de ruptura, de queda. Foi um despertar de uma espécie
de estranho sono com sonhos bem reais, e na verdade não sei se
foram sonhos alucinantes de fato ou uma espécie estranha de
viagem fora do corpo. Foi a primeira vez que aquilo me
aconteceu, então por isso resolvi fazer este diário, um diário
daquilo que chamei de “aventuras espirituais”; pressinto coisas
sombrias, no futuro, o enigma da existência humana é estranho e
assustador. Na verdade, esses sonhos e sensações continuam
acontecendo, mas de maneira caótica, como o sentimento que
um morto tem ao saber que não está de fato morto, mas
abismado na dimensão do além-túmulo; não sei se são apenas
pesadelos loucos, realmente não sei. É uma coisa louca, uma
espécie de projeção do corpo astral ou uma possessão ou, talvez,
uma separação. Na verdade, não sei o que fundamentalmente
venha a ser isso. Não estou conseguindo explicar direito...
Bem, foi assim: despertei fora do corpo, mas era apenas minha
consciência fora do corpo, uma espécie de corpo mental, sendo
que eu não tinha um corpo astral ou coisa parecida como
costuma ocorrer entre os que experimentam essas atividades
extracorpóreas; era apenas o que eu chamo de meu Eu
Verdadeiro, fora do corpo denso, um eu sem qualquer tipo de
corpo, era como se eu fosse um grande olho invisível, solitário,
ímpar.
Eu sou, nesses momentos de experiência fantástica, uma espécie
de neblina translúcida, invisível para a maioria dos olhos
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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humanos, sem forma antropomórfica de qualquer espécie, sou
como uma radiação elétrica, atômica, anímica, translúcida. Mas
eu vejo meu corpo físico na cama, e ele, meu corpo físico, se
levanta sozinho e sai, e vive! Sem o meu Eu Verdadeiro dentro.
É assim que acontece.
Uma vez, olhei para o rosto dele, do corpo sem o meu Eu Real,
era evidentemente o meu corpo, mas havia um quê de sarcástico
e maligno em suas feições, como se fosse hospedeiro de um “id”
das sombras do meu aparelho psíquico excêntrico. Era um
semblante malvado na maior parte do tempo, eu creio. Eu o vi
levantar-se e vestir a roupa lá pela uma hora da madrugada. Saiu
quase como um zumbi. Era eu, mas ao mesmo tempo não era
eu. Que coisa estranha! Eu, na verdade, sou dois? Será que é
isso? O meu Eu Verdadeiro e o Eu Intruso no corpo físico,
somos apenas um? Este eu é apenas um substrato instintivo e
louco até então oculto em minha psique? Ou é uma entidade
separada do meu self? Será que estou louco? Será que eu
convivera com ele a vida toda e não percebera sua maldita
existência? Ele se vestiu e saiu para a rua, altas horas da noite!
Ele, o meu corpo físico em cujo cérebro se aninha um eu
vagabundo e safado que não sou exatamente eu, mas
provavelmente uma parte de mim que eu não imaginava existir.
O que essa “miséria” vai fazer a uma hora dessas?... Comecei a
segui-lo com minha consciência real, ou corpo mental. Meu
Deus será que estou louco? Dane-se!”.
15 de março de 1980. De novo aconteceu. Ainda bem que
comecei a anotar tudo neste meu diário, um caderno que
arranjei. Ontem à noite tive outras daquelas experiências. Parei
de beber e usar narshastra, mas as experiências continuam! E eu
que pensava que essas aventuras espirituais eram fruto de
alucinações provocadas pela bebida e pelo uso excessivo
do narshastra no narguilé, tenho que admitir que talvez não seja
exatamente isso. Talvez elas, as bebidas e o malditonarshastra,
tenham servido de catalisadores ou impulsionadores físicos e
psíquicos, mas não é exatamente a causa do que tenho sentido e
presenciado.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
27
Toda noite, eu saio do meu corpo, como já falei aqui no diário.
Algo como meu Eu Mental sai, sem qualquer tipo de corpo. Sou
como uma consciência ambulante. Mas o meu corpo físico que
fica na cama, se ergue, como se estivesse possuído e vai
vagabundear como um sonâmbulo pelas ruas! Mas não é um
estranho ou outro espírito que o possui, é uma parte do meu ego,
eu acho. Pode ser que meu corpo físico tenha vida própria,
separado da minha alma, do meu real ser, e esse corpo físico
tenha um eu próprio, que sempre o habitara, será que é isso?
Cheguei a cogitar isso, mas acho que não é, acho que é algo
mais profundo. O meu corpo não está possuído, mas sim sou eu
mesmo, ou alguma parte de meu eu que agora dominou a parte
física por completo. Talvez eu seja “eus”! Talvez o ego seja
múltiplo. Legião! Oh, meu deus será que sou esquizofrênico?
Tenho me seguido todas as noites. O meu corpo físico com este
meu Eu Intruso, vai aos lugares mais sinistros e abjetos.
Prostíbulos, bares fedorentos, cemitérios, às vezes rouba, às
vezes vandaliza. Quando pela madrugada meu corpo físico volta
para cama e se deita, exausto, então o meu Eu Verdadeiro, ou
minha consciência, reentra no físico, e aquele outro eu, parece
sumir-se nos recônditos do inconsciente ou apaga ou dorme em
seu sono nos recônditos das profundezas do meu ser.”
16 de março de 1980. Estou anotando neste diário, agora pela
manhã, tudo o que vivi ontem à noite. Sai do meu corpo por
volta da meia-noite, e meu corpo físico se ergueu possuído por
uma vontade própria, ou seja, uma parte do meu eu; então um eu
maquiavélico, malvado, usa a noite toda esse meu corpo físico,
como se ele fosse uma máquina ou um veículo. Enquanto eu fico
apenas ao seu redor ou por sobre ele, como uma nuvem invisível
flutuante, uma alma penada, seguindo aquele ser estranho que,
na verdade, sou eu mesmo, ou uma parte de mim que eu até
então desconhecia, algo que toma conta do meu corpo físico,
que o possui.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Meu Deus, como é canalha a entidade que habita meu corpo
físico! Aquela parte de mim, ou parte do meu eu, ontem
encontrou uma prostituta de rua, usufrui de seus favores num
beco escuro, depois a esbofeteou quando ela pediu a paga pelos
serviços lúbricos prestados a mim, ou melhor, ao meu corpo e
aquele eu que me envergonha de ser parte mesma de minha
alma. Meu Deus, eu sou uma lata de lixo ambulante! Ou melhor,
aquela parte de mim que domina meu corpo físico todas as
noites, é um lixo! Ou será que ele, aquele meu eu inferior,
aquele intruso de mim mesmo, me domina todas as horas, todos
os dias, e eu só consigo descobrir quem e o que faz aquele eu ou
parte mim, quando adormeço e projeto minha real consciência
ou meu eu superior para fora daquele ergástulo, daquela prisão
ambulante de carne, sangue e ossos que é o corpo físico?”
17 de março de 1980. Ontem meu corpo físico, com seu eu
inferior dentro dele, ou seja, meu eu inferior, voltou para casa
com uma dessas mulheres de rua. Chama-se Sônia, a prostituta.
O meu corpo físico com aquele Eu Intruso anda todo faceiro.
Parece que se apaixonou por essa maldita vagabunda. Na
verdade, está doentiamente apaixonado por ela. Sônia parece
corresponder esse amor doentio. O intruso, aquele eu que sou
eu, mas ao mesmo tempo não sou eu, disse a ela seu nome.
Agora sei como se chama: Morbleim !...Que nome estranho
esse, mas ele deu a entender que não é bem um nome, mas uma
espécie de título ou condição. É como se alguém perguntasse a
um rei qual o seu nome e ele disse apenas: eu sou rei ou eu sou o
rei; como se uma mulher perguntasse o nome a um homem e ele
respondesse: meu nome é homem ou eu sou o homem; ou como
se um alienígena de outro planeta perguntasse a um terráqueo
qual o seu nome e ele, o terráqueo, dissesse: meu nome é
humano.
Eles adormeceram juntos, na cama, Morbleim e Sonia, e pela
manhã voltei ao meu corpo físico e o meu outro eu, o Morbleim,
abismou-se em uma inconsciência ou prisão dos mundos
internos do subconsciente que não ouso imaginar, dimensões
além de qualquer hipótese humana. Sonia parecia estar me
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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estranhando, e com razão. O meu eu superior não tinha nada a
ver com ela. Ela se despediu com um beijo lascivo, e marcamos
um novo encontro, na praça. Antes de sair pela porta, ela
comentou que eu parecia meio diferente. Apenas ri. Mas ela
desconfiara, ficara confusa, ela sentira que eu não parecia o
Morbleim. Senti nojo dessa vagabunda de cabelos ruivos e olhos
verdes dentro de minha casa. Acho que vou me mudar hoje
mesmo, vou comprar um chalé no campo. Farei isso hoje
mesmo. Talvez assim eu me livre dos dois, de “mim mesmo”, o
Morbleim, e dela, Sonia.
03 de abril de 1980. No mês passado, quando altas horas da
noite, ele despertou e se viu noutra casa, longe da cidade, ficou
irritado. Eu estava ao seu lado, invisível, no meu corpo mental.
Vi quando ele foi para o banheiro e olhou seu reflexo. Seu
reflexo, ele acreditava, era eu. Então ele sabia de minha
existência! Disse ao reflexo que não iria ficar assim, que eu era
um miserável, um idiota. Que eu não merecia ser dono do corpo
físico onde minha alma morava e nascera. Que eu era um idiota
e merecia morrer, ficar num mundo sem corpo para sempre.
Morbleim disse que eu era um fraco, um misógino. Disse que ia
procurar Sônia e trazê-la para morar naquilo que ele chamou de
ninho da luxúria, a casa onde eu, ou melhor, nós dois, eu e meu
outro eu, o Morbleim, estávamos agora morando. Ele, meu outro
eu, meu eu inferior, me odeia!...
05 de abril de 1980. Pela manhã, acordei-me na sarjeta. Eu, ou
melhor, o Morbleim, o Eu Intruso que se apossa do meu corpo
todas as noites, parece ter bebido demais, talvez não tenha
encontrado Sonia.
Eu, ou melhor, meu corpo físico habitado por mim e pelo meu
outro eu que é o Morbleim, parece que foi espancado. Voltei
para casa e anoto agora no meu diário minhas impressões.
Acredito que algum rufião ou cafetão de Sonia tenha dado uma
boa surra no Morbleim. Preciso fazer alguma coisa. Preciso
tomar medidas drásticas. Isto está ficando muito louco. Se
alguém me matar, eu morro, mas continuarei vivo num corpo
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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mental? Meu Deus será que enlouqueci? Será um caso de dupla
personalidade ou esquizofrenia?
07 de abril de 1980. Ele, Morbleim, o intruso, fala comigo, ao se
olhar no espelho do banheiro. Insulta-me, me chama de lixo, de
hipócrita. De fracassado. De frustrado e cretino. Humilha-me.
Sinto vontade de me matar, ou melhor, de matá-lo, matar aquele
miserável eu inferior, um eu intruso que eu desconhecia haver
dentro de mim, o Morbleim.
Diz que vai se vingar por eu ter me metido no seu namoro com
Sonia. Morbleim me odeia. Tenho medo do que esse louco eu,
ou o lado sombrio de meu ego, pretende fazer.
Preciso fazer alguma coisa. Estou me tornando desleixado, meu
corpo físico está ficando feio, não faço a barba faz tempo, meu
cabelo está grande e desgrenhado. Pareço um ermitão louco...
Morbleim parece um louco!
02 de maio de 1980. Faz tempo que não saio mais do corpo com
minha consciência. Acho que tudo acabou. Toda aquela história
sobre o Morbleim, o eu intruso, teria sido um surto psicótico,
talvez. Algum tipo de loucura passageira. Talvez Morbleim
nunca tenha existido, talvez tenha sido produto de minha
imaginação ou do narshastra e do álcool. Dormi muito bem esta
noite e desde o mês passado aquele meu eu inferior não se
apossou mais do meu corpo físico todas as noites. Graças a Deus
tudo parece ter acabado.
08 de maio de 1980. Praga dos diabos! Ontem o filho da mãe
voltou a se apossar do meu corpo outra vez. E com maior fúria.
Agora, de dia também! Morbleim está de volta! Está tomando
conta de mim, do meu corpo físico, digo. Quando fui tirar uma
soneca depois do almoço, o maldito voltou e se apossou de mim,
ou de meu corpo. Ficou no meu corpo até o outro dia, pela
manhã. Parece que Morbleim arranjou um jeito de me fazer
dormir longas horas. Por outro lado, ele tenta não dormir, mas
precisa, assim como eu, de sono. Já sei o que vou fazer, vou
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
31
dormir o mínimo possível. Tomar bastante café, remédios ou
receitas caseiras para afugentar o sono!
10 de maio de 1980. Estou sem dormir a vários dias. Não posso
dormir, senão o maldito Morbleim vai se apossar de mim! E
temo que ele pretenda fazer isso para sempre!... Oh, meu Deus,
o que farei? O que farei?
Quando cochilo, tenho pesadelos horrendos com ele, o
Morbleim, esse meu outro eu, o meu eu inferior. Vejo Morbleim
nos meus sonhos e pesadelos, me amaldiçoando, e até lutando
com minha alma, o lado bom de minha alma. Meu Deus, não
estou conseguindo mais ficar sem dormir. E sei que quando
adormecer, ele, o Morbleim, vai tomar conta de mim, do meu
corpo. Preciso fazer algo, preciso!
11 de maio de 1980. Ele anda lendo meus livros de ocultismo,
aquele miserável intruso, o Morbleim! Ele soube que comprei
livros de ocultismo e magia negra para tentar destruí-lo.
Morbleim também apareceu com outros livros, bem mais raros.
Quer me destruir, também. Parece que comprou em sebos, em
bairros obscuros de Maremontes. Jesus, são livros da mais
medonha magia negra! Livros terríveis, de feitiçarias, de
bruxarias, de pactos com os servos da energia do inferno!...Eu
sou louco, ou melhor, ele, Morbleim, o meu eu inferior que se
apossa do meu corpo físico é louco!...Vai ser um duelo, um
duelo mortal entre eus!...
12 de maio de 1980. Estou apavorado fora do meu corpo físico.
Oh, em que horrores espirituais fui me meter! Não consigo mais
voltar ao meu corpo. Só consigo escrever no diário quando ele
sai, pois consigo folhear o caderno e escrever nele, como um
fantasma semi-materializado pegaria uma caneta e escreveria.
Mas é muito difícil fazer isso. Erguer a caneta, abrir o caderno e
escrever através de processos de levitação e controle de objetos
materiais. Pareço um fantasma tentando interagir com o mundo
físico. Tomara que Morbleim não encontre o diário.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Parece que o miserável não dorme mais. Fez rituais no meu
quarto, desenhou pentagramas. Fez algum tipo de encanto
maldito!Oh, meu Deus, o Morbleim tomou conta
definitivamente do meu corpo físico! Preciso acabar com ele.
Mas fora do meu corpo físico, sou apenas um corpo mental. O
que farei? Preciso fazer algo!
Ele saiu o dia todo, agora. Estou sozinho na casa, sou um
fantasma vivo, um fantasma sem sequer um corpo astral, sem
nenhum corpo! Ele deixou alguns livros estranhos, sobre a
escrivaninha. Livros de magia negra que ele usou para me
expulsar definitivamente do meu corpo físico. Um deles era o
lendário e abominável “Regnun Tenebris”, e o outro era o não
menos medonho e raro “Necrosophia”, ambos escritos pelo
mago louco Kolga Salba, nos primórdios do antigo continente da
Lemúria, e adaptado e traduzido para o latim, segundo alguns
exegetas da literatura ocultista, pelo excêntrico monge e
alquimista medieval chamado Rosabis Torvatus.
Diziam os estudiosos do ocultismo, Torvatus era a própria
reencarnação de Kolga Salba, que com sua própria pena
adaptara as obras escritas em uma de suas muitas vidas
passadas, alterando em alguns trechos, para o seu tempo, na
Idade Média.
13 de maio de 1980. Ando sozinho pelos campos. Sou uma
espécie de alma penada viva. Quando ele sai de casa, vou até lá
e consigo escrever no diário. Mas ontem bebi na fonte do
conhecimento maldito mais uma vez, estudei com afinco as
páginas mofadas e negras do Necrosophia. Agora sei o que
fazer. Eu vou matá-lo! Vou acabar com o intruso! Vou matar
Morbleim!
14 de maio de 1980. É a última vez que escrevo neste diário.
Vou voltar para a outra casa, na cidade e deixar este caderno por
lá. Ontem, com ajuda dos conhecimentos de magia negra
adquiridos no Necrosophia e no Regnun Tenebris, fui a um
cemitério e consegui entrar no corpo de um cadáver na sepultura
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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que com muito custo violei. Sim, meti meu corpo mental dentro
da carcaça pútrida. Dentro do morto, tornei-me uma espécie de
zumbi ou morto-vivo, numa possessão cadavérica, e,
cambaleando em meio às névoas da noite, fui, em passos
trôpegos, até a casa onde encontrei eu mesmo, ou melhor, o meu
eu inferior, o Morbleim, possuindo meu corpo físico, deitado
com Sonia entregues a mais nojenta das luxúrias.
Morbleim e Sonia se apavoraram quando arrebentei a porta do
quarto. Foi uma briga intensa, mas eu os matei. Sonia desmaiou
de medo, foi fácil matá-la depois de liquidar o meu rival.
Primeiro esganei a mim mesmo, ou seja, matei meu Morbleim
dentro do meu corpo físico. Mas assim como eu, ele voltou a
tornar vivo o cadáver, ele voltou para o corpo morto por
esganadura. Então, enquanto ele cambaleava entrando no corpo
do cadáver que outrora me pertencera, olhei o lampião
pendurado na parede e selei nosso destino. Arrebentei o lampião
na parede do chalé e o fogo resvalou também sobre as cobertas
da cama, as chamas se alastraram como salamandras sequiosas
de morte. Corpos calcinados não tornam a vida, desta forma
matei Morbleim, o ladrão do meu corpo físico, e matei Sonia,
aquela vagabunda também!
Eu, possuindo o cadáver de um desconhecido, como se fosse um
zumbi, pulei a janela com o livro nas mãos. E agora estou aqui,
na cidade. Com muito custo terminarei de escrever o diário. Já
começa a amanhecer, depois voltarei para a sepultura, retornarei
com este cadáver redivivo ao seu túmulo. E então, como uma
alma penada, como um deus ou demônio que se livrou do
cativeiro do corpo carnal, vagarei a esmo pelos campos e ruas,
eternamente condenado, eternamente solitário em meu corpo
mental, em meu espírito vagabundo...
Epílogo
Não sei como ainda consigo me lembrar dessas coisas insanas da
minha juventude. Ainda tenho o tenebroso caderno em mãos. É
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
34
de fato um diário assustador, contendo relatos medonhos e
inacreditáveis, blasfêmias que ainda me deixam arrepiado.
Pretendo queimá-lo em breve. Não sei se essa história toda foi
invenção do velho amigo vigia noturno e companheiro de
trabalho, não sei se foi uma brincadeira dele para me assustar.
Se for isso, acho que conseguiu. Ou talvez ele próprio, o vigia,
tenha escrito esse diário, embora na época eu houvesse tido a
oportunidade de comparar sua caligrafia e ela era um tanto
diferente se comparada com a do diário. Mas, pensando bem, ele
pode ter disfarçado na forma de escrever. Talvez ele seja só um
gozador, um brincalhão. Mas não vou correr o risco. Vou jogar
no fogo esse diário de danação e horror, antes que aquele seu
dono estranho de alguma forma volte e tenha a infeliz ideia de
tornar a escrever nele. Pretendo esquecer tudo isso, essa loucura
toda.
Certas coisas na vida tem que ser esquecidas para só serem
relembradas nas horas sombrias que antecedem nossa morte. No
entanto, fico pensando: teria sido o tio do meu amigo vigia
noturno apenas um insano, um anormal? Era só um louco?... Um
delirante viciado no exótico narshastra? Ou alguém com um eu
intrometido ou estranha entidade dentro de seu corpo, um
invasor de seu próprio corpo e alma que ele chamava de
Morbleim, o intruso!
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
35
A PRINCESA DE BELÉPSIAH
O senhor Reinoldo Algrave tinha 50 outonos no lombo, era
celibatário e ainda morava com a mãe, a dona Joanita. A mãe
doente jogada no fundo da cama como um estorvo arcaico na
vida ─ na droga da vida!... Ela, a dona Joanita, não mais falava,
apenas gemia, trauteava sombria e lugubremente as canções da
dor. Os doentes quando gemem de dor, cantam tristemente. Ela
estava que era só pele e osso. Tinha se tornado um esqueleto
vivo, a dona Joanita, a mãe do “seu” Reinoldo Algrave, o eterno
solteirão da Rua Clarice Lispector, no bairro mais afastado do
centro da cidade.
O senhor Algrave tinha sido professor, mas agora estava
trabalhando em casa, assim ficava mais fácil de cuidar de sua
mãe, com os achaques da velhice e as dores da doença que a roía
internamente como um cupim devorador de carne e alma. O
filho da dona Joanita agora trabalhava em casa, trabalhava como
digitador. Free lancer, como dizem. Labutava para um escritório
de advocacia medíocre, cujo dono era um chicaneiro desprezível
e gordo chamado Zárpan.
Morava em Maremontes, uma estranha e pouco conhecida
cidadezinha do sul.
No passado ele amara algumas mulheres, mas tudo terminara em
dor para o senhor Reinoldo Algrave. A dor ─ esse tempero
maldito do amor que rima com sofredor. Reinoldo Algrave era
um sofredor. Tinha sido um brilhante aluno no colégio e na
faculdade, depois lecionando por alguns anos (como sua mãe,
que na juventude também fora mestra). Por alguns anos porque
mais cedo ou mais tarde professor acaba doente ou triste. No
caso do senhor Algrave, era um triste. Sem contar no salário de
professor ─ em Maremontes a paga de professor também era um
salário de fome. Assim Reinoldo Algrave tornou-se um
fracassado, um derrotado na vida. Como sua mãe. Como eu.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
36
Como você. Como todos nós, os poetas. Como Cristo pregado
na cruz.
O senhor Algrave agora passava a maior parte de seus
miseráveis dias em seu quarto-escritório, onde digitava coisas
burocráticas para um rotundo leguleio. Nas horas vagas, escrevia
contos de ficção científica, terror e fantasia. Sonhava em ser um
grande beletrista, um literato famoso e rico. O senhor Reinoldo
Algrave sempre fora um grande sonhador, cumpre salientar!
Mas nunca publicava nada; suas histórias eram muito loucas e
totalmente inverossímeis, e destarte eram religiosamente
recusadas pelos editores. Resumo da ópera: Reinoldo Algrave
tornara-se um cara esquisitão que vivia no mundo da Lua. Um
excêntrico. Um poeta, sim senhor!... Um solitário ─
Oh, Jesus! Mais um?!
“Reinoldo, traga-me o anódino!”, gritava dona Joanita quando as
dores aumentavam. As dores eram como caranguejos invisíveis
mordendo-lhe o prazer de viver.
“Já vou, mãe!”, dizia o filho.
“Ligeiro, filho!... Traga-me a droga do anódino!”
Uma noite sua mãe gritou pela última vez. O último grito de
uma pessoa despedindo-se da vida é uma coisa aterrorizante de
se ouvir, ainda mais quando tal pessoa sofre muito. Foi como se
a velha tivesse retorcido a dor pelo pescoço, mandado o mundo,
a vida, os médicos que a enviaram para morrer em casa, os
remédios e a porcaria da doença para o quinto dos infernos. A
libertação da dona Joanita foi estentórica: gritou como mil onças
astrais retumbando os gongos de bronze do dissabor. O grito
lancinante cortou a noite como um facão, e acordou o senhor
Algrave que lia deitado na cama uma revista de histórias em
quadrinhos de horror, bebericando vez por outra a coca-cola ao
virar das páginas.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
37
No dia seguinte o funeral aconteceu sob frio e garoa. O
cemitério estava tristonho, como sempre. A morada dos mortos
é triste e sombria. A última lágrima do senhor Algrave rolou
pela comissura do olho e ele sentiu-se um mar de tristeza. As
lágrimas são como tsunamis do mar da alma, são dilúvios do
coração sofredor.
O tempo foi passando como um cometa errante ou um macaco
elétrico montado numa bicicleta de fogo. Aos poucos o senhor
Algrave ia envelhecendo, e agora havia pouco trabalho porque o
escritório de advocacia fora à falência e, além disso, morrera
dias depois o dono, aquele doutor Zárpan, o leguleio que lhe
pagava mensalmente uma ninharia pelos trabalhos digitados.
Morrera atropelado pela carroça de um carregador de papelão ─
os cascos do pangaré esmagara a pança e a cabeça do doutor
Zárpan e o advogado zarpou desta para melhor... Ou pior, pois
ainda não se sabe.
Aos poucos um manto negro de depressão cobriu o sol da vida
do senhor Algrave.
Solitário, ele não ligava para mais nada.
Uma noite de verão, ele deitou-se na cama de seu quarto e
sentiu-se muito solitário, e desejou amar uma mulher, alguém
por quem ele se apaixonasse.
Quase adormecendo, ele ouviu uma voz que parecia vir do além.
“Olá meu nome é Azulthéria e venho de Belépsiah para fazer
amor contigo.”
O senhor Algrave pensou estar ficando louco.
Procurou na penumbra do quarto com os olhos arregalados, mas
não via ninguém. Acendeu o abajur. Nada. Ele achava que
estava ficando louco por causa da idade, nesta época ele já tinha
quase sessenta anos.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Foi até a janela, olhou para fora. A cidade dormia nas trevas, sob
o dossel de um milhão de estrelas distantes.
Voltou para a cama e tentou dormir.
Voltou a ouvir a voz, naquela fronteira entre o sono e a vigília.
“Aquilo que vocês terrícolas chamam Lua tem muitas crateras, e
nós vivemos numa delas, dentro da quarta dimensão. Algumas
delas foram feitas artificialmente pela civilização subterrânea
que ali habita o mundo de Belépsiah, oriunda de Fomalhaut b
desde tempos imemoriais. Atualmente uma casta de alto poder
espiritual vive na quarta dimensão do lado escuro da Lua, e está
em guerra contra o povo subterrâneo do satélite que chamam
Lua, mas cujo nome verdadeiro é Belépsiah. Belépsiah não é um
mundo morto, porém um mundo vivo em cujos subterrâneos há
impérios galácticos de tremendo poder e tecnologia. Quando da
chegada da raça Koradi na Terra, boa parte das almas
encarnadas nos corpos dos que hoje são essa casta de pseudo-
cientistas e pseudo-astrônomos irão padecer no plano astral
inferior de Belépsiah, nos mundos-infernos subterrâneos deste
satélite da terra. Isto tudo vos digo, por experiência mística
direta, não pelos drungowlistis, os equivalentes dos títulos
acadêmicos ou anos de cátedra das universidades da Terra”.
“Tu foste o escolhido, meu amor, pelos Faraós de Belépsiah. Os
Faraós de Belépsiah estiveram no passado da Terra, na época da
civilização do Egito Antigo. Eu, Azulthéria, teu amor, possuo
uma missão: abrigar em meu ventre a tua semente. Nossa raça
não tem mais varões, vitimada que foi por uma doença venérea.
Então nós mulheres belépsiahanas precisamos gerar filhos dos
homens da Terra, numa miscigenação interplanetária perfeita.
Vou gerar no meu ventre o teu filho, híbrido de terrícola e
belépsiahano.”
O senhor Algrave não conseguia se mexer na cama, voltara a
ficar num estado meio cataléptico.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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“Feche os olhos para poder me ver, querido, pois eu estou na
quarta dimensão”, disse a mulher de Belépsiah.
Ele cerrou os olhos e a viu. Era linda! Tinha traços exóticos,
lembrava Cleópatra ou Nefertiti. Um corpo nu de luz e flor sob
vestes transparentes! Queria amar ela, imediatamente.
Ele sentiu um perfume de mil flores, e amou a mulher de
Belépsiah a noite toda.
Pela manhã ela se despediu dos braços de seu amor, e ele temeu
que tudo tivesse sido apenas um sonho bom.
“Adeus, querido! O nosso rebento chamar-se-á Ens Seminis, e
um dia, quando ele ficar adulto, vai saber que seu pai foi um
homem bom e solitário, no planeta azul que vocês chamam
Terra, mas que para nós é Glarshungor, o Baixo.
Pela manhã, o senhor Algrave abriu os olhos e estava feliz.
“Finalmente serei pai. Pai de Ens Seminis, o messias
belépsiahano. Agora estou pronto para a assunção. Minha alma
vai voar!”
Foi assim que o senhor Algrave encontrou a felicidade, até que
chegasse a morte. Morreu de enfarte enquanto olhava para a
Lua, numa noite de primavera. Seu espírito solitário voou para
lá, para a Lua, para Belépsiah. Ele viveria eternamente no
mundo da Lua, agora. O senhor Algrave sempre fora um grande
sonhador. Sim, ele fora embora. Para a Lua. Para Belépsiah.
Para a Belépsiah de seus sonhos, seus sonhos loucos, os sonhos
que ele nunca deixara de acalentar. Para os braços de Azulthéria,
o seu amor, a sua alma-gêmea, que o esperava com seu filho Ens
Seminis, em alguma pirâmide de uma cidade-estado de
Belépsiah. E foi assim que o senhor Reinoldo Agrave partiu para
ser faraó em Belépsiah. Partiu para nunca mais voltar. Nunca
mais. Nunca mais.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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PENÉLOPE ESPERA UMA ROSA
Foi numa amena tarde de primavera que ambos juraram amor
eterno, debaixo da árvore frondosa. Ali, entre sonhos e desejos
álacres e pueris.
No tronco da árvore, Ulisses escrevera com a ponta do canivete
o seu nome e o de Penélope, emoldurando tudo com a forma de
um pequeno coração.
O casal de namorados Ulisses e Penélope não era o celebérrimo
casal da mitologia, era apenas um simples casal que se amava
muito, numa pequena cidade do interior do sul chamada Rio das
Ilusões.
O tempo foi passando como um sonho louco. A guerra da vida
cobra posições avançadas, e logo Ulisses, o exército de um
homem só, teve que buscar trabalho na capital, logo depois que
se casara com a formosa Penélope. Era preciso ganhar a vida,
ganhar dinheiro, o pão de cada dia. E para isso teria que buscar
trabalho nos longes da capital. Na frieza da cidade grande.
E assim foi. Partiu Ulisses para a cidade grande e cinzenta, de
arranha-céus que quase tocavam o firmamento que agora era da
cor do fundo de um cadinho, e não mais azul turquesa como o
do interior, como o firmamento do Rio das Ilusões. A poluição,
o trânsito louco com automóveis e ônibus aos borbotões, as
pessoas sem tempo, sem tempo para apreciar o voo dos
pássaros... Mas que pássaros? No céu da cidade passarinhos não
tinha mais, não senhor! Só esporádicos pássaros de aço com
gente dentro de sua barriga, pessoas que ele engolia para voar
com elas, e depois regurgitá-las no aeroporto.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
41
Ulisses e sua odisseia na cidade grande e desumana. Nos três
primeiros meses, ganhou dinheiro como servente de pedreiro e
destarte enviou dinheiro para Penélope, grávida do seu primeiro
filho, o fruto do amor entre ele e Penélope. Estava tudo indo tão
maravilhosamente bem... Eles dois teriam o seu esperado
Telêmaco!
Mas veio o tempo ruim. A escuridão. A grande escuridão da
vida e da morte.
Mas antes viera o azar. Ulisses despedido. Ulisses sem dinheiro
para o aluguel da pensão. A cidade grande não tem pena de
ninguém. Ulisses na rua, dormindo na praça, escondido da
polícia ruim, que prende e bate nos desafortunados, da gente boa
que foi parar na rua porque não teve chance, não teve vez.
Enviou uma carta com alguns centavos que tinha. A carta para
Penélope. Penélope esperava uma rosa. Ele prometera a flor,
então ele a traria. Não seria uma flor do campo; nas cidades há
poucos jardins e muitas floriculturas onde as flores não são tão
belas.
Penélope recebeu a missiva. A carta recendia a tristeza. Ia
demorar mais um mês para Ulisses voltar. Estava sem dinheiro
para a passagem.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
42
A morte esbarrara em Ulisses numa sexta-feira 13. Atropelado
prosaicamente numa manhã sombria, ao atravessar a rua rumo à
agência de empregos. Tinha ido a uma agência de empregos e
acabou num necrotério. Morto. Desesperadamente morto.
Quando caíra no asfalto, onde não crescia flor alguma, lembrou
que prometera retornar a Penélope com uma rosa, a qual lhe
entregaria entre beijos, ósculos , amplexos, carinhos ardentes de
quem se ama. Penélope espera uma rosa, ele murmurou
agonizando no chão.
Para onde Ulisses foi, flor não tinha. Só as que alguém
colocasse no vaso sobre o seu túmulo. Ou será que não? Ou será
que havia muitas flores num jardim edênico?
Mas Ulisses perdera os documentos quando se dirigira a agencia
de empregos, e não percebera.
E foi assim que foi enterrado como indigente.
Penélope fazia tricô, tecendo a manta. Era para espairecer e
ganhar algum dinheiro. Seu velho pai arranjando-lhes
pretendentes, uns tipos toscos e rudes que ela odiava, odiava.
Perdera o bebê, e agora vivia solitária como um fantasma. Não
teria mais Telêmaco. Ela era um fantasma, em temporário exílio
na vida.
Depois que seus pais morreram, ela ficou tão só como um
fantasma numa casa vazia.
Costumava olhar pela janela, esperando o carteiro que nunca
mais lhe entregou uma carta. Ulisses talvez voltasse, um dia,
com uma rosa, a rosa do seu amor.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
43
Não veio carta. Talvez ele tivesse morrido. Ou deixado de amá-
la.
Dois anos depois foi que ela teve a certeza de que ele morrera.
Ele viera em sonhos e juntos se amavam em jardins oníricos
repletos de rosas. Rosas vermelhas.
Numa noite escura ela sonhou claramente. Mas ela estava
sonhando, e os sonhos são estranhos. Era Ulisses e trazia uma
rosa. Uma rosa negra. A rosa negra da morte!
Foi o bastante para Penélope ter certeza. Ele morrera.
Chovia lá fora quando Penélope despertou. E choveu também
nos olhos tristes de Penélope. Lágrimas do céu do amor doído.
Todo sonho de amor acaba. Todo amor acaba. Toda vida acaba.
Em dor. Em morte.
Fez menção de levantar-se da cama, quando notou em suas
mãos uma flor. Uma rosa. Perfumada e bela. Um cheiro de
anjos. Não era vermelha. Não era negra. Era branca. A rosa
branca do amor eterno. Do amor eterno de Ulisses por ela.
Ele viera em espírito, pensou Penélope. Os mortos, eles falam
conosco em sonhos. Os mortos são os vivos em férias. Ulisses
trouxe-me a rosa que ela tanto esperava, pensou Penélope. A
rosa branca do amor eterno.
Foi assim que Penélope envelheceu sozinha naquela pequena
casa do interior. Foi assim que ela enlouqueceu. E foi assim que
Penélope morreu. A vida enlouquece. A vida é o cabaré da
morte. A vida nos mata. A vida é criminosa. Como o Destino.
Oh, como o amor!
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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O CRIME NA RUA DO CEMITÉRIO
Ele vivia sozinho num velho edifício na rua do cemitério.
Diziam que era meio louco, mas isto não importava para ele: a
opinião dos outros. A opinião dos vizinhos. Morava num
pequeno apartamento. O velho era do tipo esquisitão. Tinha
entrado na casa dos 70, mas seu espírito teimava em não
envelhecer. Era dado a cobiçar jovens e belas mulheres. Quando
a solidão apertava, ele ia caçar. Tentava, pelo menos. Quem iria
querer um maldito velho? Um dia conseguiu uma presa. Uma
vulgar qualquer. Uma zinha qualquer. Mas bela. Bela como um
sonho louco.
A velhice pode ser uma coisa triste. O fogo da vida vai
acabando, e a gente enlouquecendo. O velho era um tipo
excêntrico, mas fazia dos prazeres uma busca pelo esfíngico
sentido da vida. Porém o tempo passa, mesmo para um poeta
louco. Em seus momentos de melancolia atroz, ele se lembrava
de um pensamento antigo que dizia, em resumo, o seguinte:
morre jovem aquele que é amado pelos deuses.
Mas ele não morrera jovem. Envelhecera. Queria morrer, mas
de amor.
Era um obscuro poeta da rua do cemitério. Escrevia livros; não
ganhava fortunas com seus livros, mas dava para sobreviver.
Um sonhador do amor e da morte. Compunha poemas de luz e
sombra. Eis tudo.
Numa manhã de março encontraram um corpo navalhado na
frente do edifício. O porteiro Malaquias encontrou o defunto
degolado próximo à escada.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
45
Os vizinhos sentiram a fedentina do cadáver do velho, era verão.
Avisaram Malaquias que já avisara a polícia. “Teve furdunço e
morte aqui na droga do Edifício Paradiso.”
O velho solitário vira pela porta entreaberta o Malaquias
avisando no corredor. Era um idiota, pensou. E os vizinhos
também! Todos uns malditos idiotas.
Os malditos vizinhos, como rosnava o velho. Disseram aos
policiais que o velho era um sujeito caladão, de poucos amigos.
Na verdade não tinha amigos: velhos como aquele não tinham
mais amigos, não senhor. E só teve um amor. Cibele. Conheceu-
a quando completara seu último ano de vida. Pensou finalmente
que ia ser feliz na droga do amor. Enganara-se o infeliz.
A polícia arrombou a porta do apartamento e encontrou o
cadáver já em adiantado estado de decomposição. Os vermes e
as moscas desfilavam por seu esquelético corpo. Estava deitado,
morrera cansado de tanto viver. Morrera sonhando, por certo.
Havia papéis sobre a escrivaninha. Deixara uma carta, sabe-se lá
para quem ler! Decerto o escritor defunto sabia que alguém iria
ler ao encontrar sua carcaça morta. Velho louco!
Ele tomara veneno para matar ratos. E matara dois. Ele não era
um rato, mas seria o terceiro a morrer. Achaques da velhice já
atormentavam o velho solitário, mas não foi por isso que ele se
matou. Foi por amor. Morreu por amor. Amor doentio, amor
mórbido. A droga do amor!
Um dos policiais pegou a carta. Era Simões, um celibatário que
fazia da profissão de tira o sentido de sua vida neste mundo cão.
Simão pôs-se a ler, enquanto o pessoal responsável por levar o
cadáver ao IML já começava a trabalhar.
Eis, em síntese, o que dizia a carta:
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
46
“A quem interessar possa...
Gosto muito de escrever. Cartas é o meu forte. Escrevo esta
missiva sem um destinatário definido. Alguém lerá, por certo.
Eu gostaria de conhecer a pessoa que lerá esta carta. Eu gostaria
de conhecer as pessoas, os seres humanos. Se bem que NUNCA
iremos conhecer uma pessoa. O ser humano é um super-herói e
um super-vilão. Sua identidade secreta jamais será descoberta.
Somos heróis e vilões mascarados. O Homem é um enigma
feroz, uma esfinge que devora e mata. E só.
Sim, eu estou revendo minhas posições quanto à vida.
Realmente a vida é bem estranha - às vezes um tanto amarga, às
vezes um tanto doce. Agridoce, a maldita vida!
A vida parece uma poção mágica, mistura de mel e fel.
Encanta-nos na doçura dos sonhos e nos precipita para o inferno
da realidade.
Gostaria de ter escrito alguma obra séria. Ter escrito seriamente;
devia ter parado com esses delírios de poesia. Foi a poesia o
meu primeiro veneno; eu morri de poesia.
Gostaria de escrever sobre as coisas lancinantes da vida – as
reais, que são mais fantásticas que todo pesadelo de um literato
de contos fantásticos. Mas agora é tarde. Escrevo algo pela
última vez. Esta carta.
A vida é uma flecha atirada por acaso a um destino final: o
morrer; pode ser bem curta ou longa esta trajetória. O destino
tem conluio com a morte; mas a gente não deve temer nem a
morte nem o destino. São dois malditos impostores. Na verdade
ando numa fase ateia, ando completamente ateu e, como sou
pisciano, isto tem me feito muito mal pois o pisciano é místico
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
47
por natureza. Mas... o nativo de peixes é assim, carrega o céu e
o inferno dentro de si. Dizem até que todo pisciano faz sua
última encarnação neste planeta. De todo modo, vai ser a última,
nesta minha fase de descrença total. Uma visita ao hospital, ver
crianças morrendo... Isto me faz pensar: que Deus estúpido! Não
idolatro de jeito algum esse Deus. Como diria meu filósofo
favorito (estou estudando há anos a obra dele!), como diria ele:
"não posso crer num Deus que quer ser adorado o tempo todo".
De todo modo, já trabalhei em funerária, e ali aprendi a não
temer nem a morte e nem os mortos. Os vivos, esses é que são
os delinqüentes da vida! Lembro como se fosse agora de uma
dona de funerária me dizendo: “Morreu alguém hoje?”, no que
eu respondia seco: “Não!”. A dona da funerária locupletara-se
em poucos anos com esse comércio macabro, e nessas ausências
de cadáveres para os préstimos da funerária, declarava-me:
“Pois se não morrer alguém hoje, sou capaz de subir na UTI e
com um travesseiro matar alguém em estado terminal”. A
Central de Serviços Funerários, onde eu trabalhava, fica
defronte ao hospital. Era um trabalho apavorante, mas eu
aprendi muito lá, mormente a conhecer o incrível animal
humano.
Mas falarei agora dos maiores tormentos da vida, o amor. Ah, o
amor! Céu e inferno. Paz e guerra. O amor, a batalha silenciosa
do amor, onde ninguém sai vencedor.
Eu amei Cibele durante algum tempo. Jovem, ardente,
inteligente. Apaixonei-me pelo seu jeito gótico de ser. Vestia-se
de preto, e fazíamos amor em cemitérios, ao luar. Cibele, da
pele pálida, dos cabelos negros, dos lábios rubros. Dos olhos
verdes.
No começo, foi tudo muito belo. Efêmera ilusão. Ilusão, o amor.
Uma ilusão dentro de outra ilusão, a estranha ilusão da vida.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
48
Certa noite de verão descobri que ela me traía, que só queria o
meu dinheiro, o pouco dinheiro da minha aposentadoria.
E certa noite de verão descobri que eu queria matá-la, pois ela
não mais me amava e queria partir. Para sempre. Eu a deixaria
partir. Ela partiria para sempre, sim. Partiria para a morte.
Antes, matei o cão que saíra com ela. Está lá, na frente do
edifício, morto. Peguei-o, é o motorista do ponto de táxi
defronte ao edifício fedorento onde morei durante longos anos.
Matei-o. Matei Cibele depois, quando cheguei a casa e ela me
esperava com um ar de sonsa. Foi por isso que a matei. Ela jaz
agora dentro do banheiro, e como não sei o que fazer com o
cadáver, nem o que fazer comigo, partirei também. Acabo de
tomar o veneno. Não vão me pôr nas grades, já sou muito
crescidinho para isto. Vou morrer. Já anoitece. O veneno
começa a fazer efeito, tomei uma dose excessiva, para matar
mastodontes e não ratos como eu. As dores começam, já é hora
de morrer... Dor, solidão... Eu te amei, Cibele!...Por que me
traíste, amor?...Choro de dor e de amargura... Estou morrendo...
Estou morr...endo...Cibe..le...É o..fim...de tud...”
***
O policial civil Simões terminava de ler a carta quando um
colega seu gritou.
- Eu já sei, disse Simões. Há um cadáver de mulher no banheiro.
É Cibele. Uma garota de programa bem conhecida, cujo gigolô
era o taxista morto na frente do edifício. Aqui, está na carta. O
velho conta tudo. Caso encerrado, mais um maldito crime
passional. Maldito assassino, o amor! É por isso que nunca amei
ninguém.
Estava desvendado o crime da rua do cemitério.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
49
O ESTRANHO QUE APARECEU
Malaquias era um derrotado. Um fracassado na vida. Tinha sido
quase tudo durante anos, para ganhar a droga da vida. Torneiro
mecânico, gari, porteiro de edifício, trapaceiro. A última
profissão, ou melhor, bico, foi de jardineiro. E como jardineiro
se aposentou com uma ninharia. Sim, o jardineiro tinha se
aposentado. Morava sozinho agora, desde que Hortênsia
morrera. Hortênsia era sua esposa. Morrera de câncer. Sim,
silencioso, o câncer roera as entranhas de Hortênsia antes de
levá-la para o túmulo. Era primavera quando ela agonizou. As
hortênsias morrem na primavera, Malaquias pensou.
Malaquias não quis saber mais de flores depois que se
aposentou. Algumas têm muitos espinhos, dizia para si mesmo.
Então não quis saber nem de flores e nem de musas. Sim,
musas, porque Malaquias era poeta também, mas não mostrava
seus poemas para mais ninguém. Todos riam de seus escritos.
São todos uns boçais, ele pensava. Malaquias não se formara em
nada, tinha pouco estudo, mas lia muito. Livros que ele
comprava barato nos sebos. Malaquias não escrevia de modo
comum, era um nefelibata, um escritor excêntrico. E assim ele
tornou-se um poeta secreto. E louco, cumpre salientar. Ou
quase, na melhor das hipóteses.
Pois é. Não quis saber mais nem de flores e nem de musas. Até
que...
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
50
Até que Zoraide apareceu. E ele voltou a ter musa. Zoraide era
bela como uma petúnia alada. Era meio cigana. Olhos verdes.
Cabelos meio ruivos. Usava sempre um vestido vermelho da cor
da paixão e do diabo.
Não faltou quem avisasse o Malaquias que ele ia se ferrar, lá no
botequim do seu Manolo. Estavam todos tomando umas e
outras, alguns jogando sinuca, tomando cerveja ou chope,
degustando coxinhas e pastéis.
Pedrão Olho-de-Pombo passou o taco de bilhar para a outra mão
e fumou um cigarro, enquanto falava para Malaquias, sentado e
tomando um chopinho.
─ Mala, vou te dar um conselho...
“Mala” era o apelido de Malaquias entre os vadios que
habitavam o botequim do Manolo.
─ Mala, tu vais entrar numa baita fria com essa Zoraide. Ela vai
te sugar.
Malaquias não gostava de Pedrão. Achava-o um porre.
─ Vai te ferrar, seu metido. Por acaso Zoraide é vampira, pra me
sugar? Cuida da tua droga de vida, seu filho da mãe!Vai pro
inferno!
Pedrão não gostou e se aproximou de onde estava sentado
Malaquias. Grudou-o pelo colarinho. Alguém intervém: um
estranho. Ele estivera observando tudo o tempo todo.
─ Largue ele! Deixe o Malaquias em paz.
Pedrão soltou Malaquias e girou nos calcanhares, para averiguar
quem havia dito aquilo.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
51
Pedrão olhou o misterioso homem que se levantara. Era um
homem todo vestido de preto, o semblante sério. Usava óculos
escuros e vestia roupas estranhas. Um cara com cara de bravo,
pensou Malaquias. Pedrão resmungou:
─Não se meta onde não foi chamado, forasteiro.
─Pedrão, você é um idiota. Você é que está se metendo onde
não devia. Deixe Malaquias em paz.
O estranho homem falou, aproximando-se de Pedrão:
─ Pedrão, sua braguilha está aberta.
─Hã?! ─ fez Pedrão, abaixando a cabeça para olhar o zíper.
O estranho vestido de preto deu-lhe um murro. Pedrão caiu
desmaiado.
Todos ficaram quietos e não quiseram se meter. Até o “seu”
Manolo engoliu em seco. O homem vestido de negro era forte,
embora fosse alto e magro. Havia uma aura de poder em torno
de si. E certa melancolia, uma aura melancólica, por assim dizer.
Aos poucos todos foram sossegando, alguns ajudavam Pedrão a
se recuperar. Malaquias saiu do botequim. O estranho homem o
seguiu.
Lá fora, Malaquias parou e encarou o homem.
─Por que me defendeu estranho?
─Sou seu anjo protetor.
─Palhaçada. Quem é você?
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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─Falando sério, sou o escritor que está escrevendo o conto onde
você é o protagonista.
─Ah, vai pro inferno, seu retardado! ─ falou Malaquias, girando
nos calcanhares e partindo, deixando o estranho para trás.
Malaquias zanzou por aqui e ali, para espairecer.
Quando Malaquias chegou a casa, encontrou Zoraide na cama
com o estranho de preto que lhe salvara a vida no boteco.
─Que pensa que está fazendo, seu pulha maldito? – berrou
Malaquias, irado.
─Me apaixonei por Zoraide enquanto escrevia o livro onde és o
personagem principal. Zoraide seria a vilã no conto, mas me
apaixonei por ela e... Bem, vamos nos casar e eu ficarei para
sempre por aqui, no mundo da ficção, onde sou deus e rei.
─Louco! – grunhiu Malaquias, espumando de raiva.
─Eu devia ter te matado nos primeiro parágrafos, mas resolvi
que irás morrer de ataque cardíaco daqui a dois minutos,
Malaquias. Vou te matar, agora, seu miserável!
─Vai não, seu cachorro!
─Vou sim. O conto é meu. Sou eu quem está escrevendo ele.
Sou o dono do teu destino. Irás morrer, agora só falta um minuto
para tu teres um ataque cardíaco fulminante. Vou terminar o
conto com tua morte. Irás morrer, sinto muito.
─Quem irá morrer, és tu, canalha! ─ disse Malaquias, sacando
um revólver do bolso interno do casaco.
No dia seguinte, pela manhã, ninguém soube explicar a morte
do escritor. A polícia cogitou na probabilidade de uma bala
perdida.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
53
O ULTIMATO DE OANNES
Não sei exatamente durante quanto tempo permaneci
semiconsciente, boiando ao sabor das ondas, agarrado àquele
providencial tronco de palmeira. Estou meio que montado, meio
que deitado sobre o tronco, e mal percebo que o sol vai
nascendo esplendidamente no longínquo horizonte, refletindo
nas águas seus belos matizes áureos e ígneos de majestosa
claridade.
Estou na vastidão do mar de Andaman, perto de Khao Lak, no
sudoeste da Tailândia.
Meu nome é Tony Cegalla, e sei que sou o sobrevivente de um
pesadelo fantástico e atemorizante, de um horror inimaginável
urdido pelas mãos inclementes de uma força além de minha
capacidade de compreensão.
O mar está calmo e, paulatinamente, minha memória vai
clareando, e então vou lembrando tudo, dispersando as nuvens
plúmbeas do horror que ainda assombram minha alma
atemorizada!...
***
Turistas estavam passeando despreocupadamente pelas areias da
exótica praia de Khao Lak, nas proximidades do centro da
província de Phuket. Dentre eles, estou eu, minha esposa
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
54
Lorraine e meu filho Bob, de nove anos. Também havia Kimbo,
um pequeno e irrequieto airedale terrier.
Sou escritor, e estava ali, em férias com a família, na Tailândia.
Lembro que Kimbo brincava com uma bola vermelha, enquanto
Bob, observado por Lorraine e eu, construía metodicamente um
castelo de areia, bem ali, na beira da praia, utilizando-se um
pequeno balde e uma pá de plástico amarelo. Kimbo começou a
latir alto, pressentindo nervosamente algo de estranho e aziago
no ar. De repente olhamos para o mar, e o que vimos nos
paralisou de medo. Era o horror, e ele vinha do mar na forma de
gigantesca onda. Na verdade o terrível tsunami que entraria para
a História naquele fatídico 26 de dezembro de 2004, assinando
com a tinta da morte sua passagem assassina pela Costa de
Andaman.
O tsunami parecia uma colossal mão do gigante líquido que é o
mar, dando um safanão nas pessoas, que eram como insetos
minúsculos ante a força da vaga destruidora da morte.
Em pânico, nadei e gritei por Bob e Lorraine. Então Lorraine,
com esforço, conseguiu segurar-se em minha mão, à medida que
todos nós éramos arrastados como lenhos no inferno das águas.
Vi pessoas, cadeiras, destroços sendo arrastados.
Todavia, o pior estava por vir. Após entrar terra adentro,
destruindo tudo, agora o tsunami voltava loucamente, num
repuxo vertiginoso, arrastando e levando-nos para o mar.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
55
Lorraine gritava por Bob. Tentando insuflar em minha esposa
um pouco de esperança, gritei a ela que Bob devia estar bem,
pois sabia nadar, apesar de sua pouca idade, e em meu íntimo
abençoei o dia em que o matriculei na aula de natação, nas
últimas férias em Orlando.
Foi neste instante que avistei minha tábua de salvação, o tronco
de palmeira que flutuava ao acaso nas águas. Como eu já
estivesse exausto de tanto nadar e boiar agarrei-me ao tronco,
conseguindo puxar Lorraine pelo braço até junto de mim, no
momento exato em que ela, fatigada, afundava.
***
Caíram as trevas da noite, porém agora uma imensa lua cheia
iluminava a superfície ondulante do mar, tal qual lâmpada de
majestosa esperança.
Estávamos longe da costa, agora. Exaustos, porém vivos,
agarrados ao tronco flutuante.
Ao luar, víamos, com profundo horror, corpos boiando. Eram
corpos de velhos, mulheres e crianças; turistas, pescadores,
aldeões. Gente que o tsunami infernal carregara, no repuxo
infernal das águas. Era como se boiássemos num cemitério
aquático de horror pleno!
Ao surgir um novo dia, veio a sede, a qual nos martirizava ainda
mais.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
56
Lorraine parecia, além de atônita, perto do poço negro do
desespero, devido ao fato do sumiço de Bob nas águas do mar.
De repente minha esposa sentiu nascerem forças dentro de si ao
avistar dois objetos, o balde e a pequena pá de plástico. Sem
medir as consequências, Lorraine largou do tronco e nadou com
suas últimas forças até os brinquedos que boiavam, mas que
estavam mais longe do que supúnhamos.
Então eu a perdi de vista quando uma onda mais alta levantou, e
comecei a chorar, pronto para me entregar à morte, pois não
tinha mais forças para procurá-la.
Devo então ter desmaiado ou entrado num estado de delírio ou
alucinação, pelo menos é o que meu lado cético afirma hoje em
dia.
E ali estava eu, sozinho, boiando sobre um tronco na
assustadora e ondulante solidão do oceano.
Talvez tenha entrado numa espécie de febre delirante devido ao
cansaço e a falta de água, pois vivenciei uma série de aventuras
em espécies de delírios ou pesadelos vívidos, estranhos e reais
demais.
Vi, à luz exangue de uma lua parcialmente nublada por nuvens
pardacentas, emergindo das profundezas, como espectros dos
mistérios do fundo do mar, uma legião assustadora de
fantásticas criaturas, que mais pareciam devas ou elementais dos
oceanos, mitológicos seres ou entidades, metade peixe, metade
mulher ou homem, algo assim como sereias ou tritões. Eram
criaturas espantosas, de semblante grave, quase todas nadando
ou montadas em animais semelhantes a hipocampos
gigantescos, que pareciam cavalgar ou galopar por sobre as
ondas. Então, um desses seres, que por último emergira das
profundezas pelágicas, se dirigiu a mim, numa emissão contínua
de exortações telepáticas, algo como um ultimato terrível e
feroz. E a “voz psíquica” daquele ser titânico, colossal e
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
57
sobrenatural, ressoou em minha mente como a bulha de mil
ondas ou como o rugido bestial de mil leviatãs dos mares
revoltos do inferno. E soube, então, que estava diante de um ser
mais antigo que o Homem, que em eras antiquíssimas da Terra
fora adorado sob o nome de Poseidon ou Netuno, Dagon ou
Oannes.
Assim se pronunciava o portentoso e gigantesco rei do
mar:
“Ó vil criatura vivente da superfície! Homem das regiões
secas!... O povo do augusto abismo das águas clama por mais
guerra, todavia eu proclamo um ultimato à vossa raça infame!
Vós deveis avisar aos vossos semelhantes que os oceanos e
mares são reinos habitados por muitas raças, povos que estão
aqui desde a aurora do mundo!... É mister que vós cessais com a
poluição das águas dos mares, bem como com todo nefando
experimento atômico e nuclear, que os líderes de vossa
civilização realizam ocultamente nas regiões do alto pélago, lar
do Povo das Profundezas! Que os néscios homens da superfície
cessem com suas paranoias e megalomanias, do contrário nós,
dos reinos do fundo do mar, seremos forçados a entrar em guerra
convosco. A grande onda que vos enviei foi um mero aviso, um
ultimato!”
Aterrorizado, perdi de todo a consciência...
***
Agora, ao despertar para um novo dia, eis-me aqui.
Pestanejei ao ouvir latidos em pleno mar, e mal pude acreditar
no que via. Sobre um grande pedaço de madeira que funcionava
como jangada improvisada, estavam Bob, Lorraine e Kimbo,
vivos, ao lado de um homem magro, um tailandês, que, com um
pedaço de pau, remava energicamente. Naquele instante passei a
crer em milagres e em forças além da capacidade humana de
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
58
compreensão, e, sobretudo passei a respeitar o mar e seus
mistérios milenares.
Soube, então, que o tailandês se chamava Thomburi, e ele
salvara Bob, Kimbo e Lorraine; ele próprio sobrevivera,
também, ao repuxo do tsunami infernal que nos levara a todos
ao mar alto.
Eu e minha família estávamos todos esperançosos, e não
demorou muito tempo para aparecer diante de nós um barco de
salvamento.
Thomburi e eu gritamos e acenamos, e logo do barco desceu um
escaler com marinheiros que se dirigiram até nossa jangada
improvisada. Finalmente estávamos salvos.
Mas até hoje, em noites de chuva, tenho sonhos fantásticos com
Oannes e seu ultimato. Eis porque resolvi escrever meu próximo
livro, enfatizando questões ambientais que protejam o mar e
todas as criaturas vivas e fantásticas que habitam suas
misteriosas, profundas, antigas e imemoriais águas!
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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A MALDITA CHOUPANA DOS DELÍRIOS
Foi escrevendo amarguradamente seu livro que nunca seria
publicado, lá naquela choupana afastada, perto do Pântano da
Coruja Corcunda, que Terêncio verificou com assombro que as
ígneas forças criativas de seus delírios eram melhores que as
forças imanentes do destino, destino que os Deuses Sombrios
forjaram e lhe infligiram ainda no útero aquoso de sua mãe, hoje
falecida como uma rosa pisoteada pelos cascos de fogo do
cavalo da morte.
Filho de uma família de proletários desiludidos refugiara-se
como poeta que era nos sonhos e devaneios cheios de aventuras
insólitas, ao completar seu quadragésimo primeiro ano, após
anos de fracassos e tribulações no insosso palco da vida
cotidiana.
Terêncio era sincero, sensível e incompreendido, e quando
mostrava a alguém da vida prosaica seus escritos fabulosos, esse
alguém o chamava de louco, néscio ou lunático.
Tentara ser feliz no amor. Amou por doze meses a bela e
virginal Dandara, mas esta, catequizada pelos maledicentes e
detratores de Terêncio, sucumbira nas areias movediças do
ciúme, e desde então o solitário viu a alma e o amor de Dandara
evaporar como o perfume dourado dos cabelos de Afrodite,
deusa-mãe dos amantes e dos poetas malogrados.
Terêncio era um sujeito desajeitado para as coisas prática da
vida. Seus mundos eram aqueles dos devaneios criados após
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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leituras e mais leituras de livros antigos e estranhos, nos espaços
interestelares das linhas e entrelinhas.
Certa tarde triste de outono, ao crepúsculo, sob fina garoa,
Terêncio largou tudo, sua vida e seu destino, refugiando-se
como valente eremita no pântano da Coruja Corcunda, e lá
tentaria pintar com palavras o desassossego de não poder sonhar
acordado sem culpa, bem como a vitória que era ingressar e
viver e contar a todos a beleza do mundo maravilhoso do delírio,
as aventuras dos devaneios mais loucos e febris. Escreveria um
livro, portanto. Um livro maravilhoso onde todos os sonhadores
do mundo pudessem beber o licor sagrado das palavras
esfuziantes e alucinógenas, tecidas no manto crucial do delírio
poético.
Passou a comer apenas mel e gafanhotos, bebendo a água tépida
de um córrego que descia rumorejante e límpido do morro até o
pântano onde estava a choupana.
A angústia de um homem terrivelmente solitário e triste diante
do absurdo da condição humana, é cruz que se carrega com
denodo, mormente os poetas que não enterraram seus sonhos no
cemitério dos dias sempre iguais.
E Terêncio escreveu febrilmente sobre os delírios que tinha,
desde tenra infância, quando era uma criatura feliz e sem medos.
E chorou por duas noites porque vira que o seu mundo não era
aquela podridão asquerosa que tentaram lhe impingir quando se
tornara adulto na vida física, numa cidade cinzenta onde apenas
se conjugava os verbos comprar e vender.
Houve uma noite na solidão aterradora daquela choupana em
que Terêncio escreveu tanto em seu caderno, mas tanto, tanto...
Que ele viu que sua obra era um romance autobiográfico, e ele,
Terêncio, foi transportado como um anjo sobre nuvens douradas
num céu plácido de estrelas. Estrelas de luzes iridescentes que o
acalmavam tanto quanto o olhar hipnoticamente amoroso de sua
já morta mãe, quando ela o embalava no colo, nas noites escuras
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
61
da infância onde a fome roía toda a família de poucos recursos,
naquele bairro cinzento nos arrabaldes da cidade sem esperança.
Foi transportado em vida, isto é, foi levado da vigília para o
delírio. Uma assunção terpsicórea e alucinante, uma subida ao
mundo delirante sem fronteiras.
No último delírio em que se perdeu Terêncio atravessou o
estranho mundo de Swyrnea. Swyrnea havia sido criado por um
outro poeta delirante e febril, habitante de longínquas e acres
terras de Pindorama.
Foi muito além de Swyrnea que Terêncio conheceu Shyrla
Máris, em Kthunbulkthur, reino vizinho da Swyrnea.
Filha do mago e rei Sorianus de Klapanthyzyr, Shyrla Máris fora
raptada por Kolga Salba, o mago viajante interdimensional, e
somente Terêncio, o ungido, o valoroso campeão escolhido,
poderia salvá-la das garras do mago negro, versado na Ciência
da Serpente do Descenso, nascida do pus das sete chagas da
cauda do Demônio.
Bebendo na cabaça sagrada a seiva violácea das árvores mortas
de Krizumne, plantadas no bosque dos Sátiros Mancos, e
com ajuda da Magia Luminosa de Sorianus, Terêncio despertou
seu verdadeiro ser delirante, e então assumiu seu nome
verdadeiro, Azariel Wareh Kareh, guerreiro e mago neófito das
Hostes da Luz. Azariel Wareh Kareh, portador da magnífica
espada flamejante!
Com a ajuda de Sorianus e seu discípulo favorito, o inquieto
Hevahrystus (ambos poetas que sonhavam acordados no mundo
da vigília, mas que eram magos e guerreiros no mundo do
delírio, e, portanto profetas da Magia Luminosa), todos partiram
na grande aventura em busca da princesa raptada, Shyrla Máris,
a virgem de olhos cor de âmbar e seios tentadores, princesa cujo
encanto faz sonhar até mesmo os demônios mais ferozes do
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
62
inferno. Shyrla Máris, aquela cujos olhos lembravam os doces
olhos de Dandara!
No caminho encontraram o andarilho Lion Nardus, delirante
também do mundo dos acordados, sempre empunhando um
machado de guerra cuja lâmina não brilhava mais que seus
olhos negros. Também encontraram a valente amazona Déia
Thuam, hábil no arco e flecha, e a feiticeira do Bem, Magna
Victória. E então seguiram todos até a fortaleza de Kolga Salba,
no topo enevoado da montanha da Serpente do Descenso.
Montados em seus voadores Yrazakzais, animais meio libélulas
e meio cavalos, com rostos de leões mansos, eles chegaram até a
fortaleza do misterioso e temido mago negro Kolga Salba.
Azariel Wareh Kareh e seus amigos guerreiros lutaram contra os
homens-morcego Drynomaths, fiéis servos de Kolga Salba.
A batalha foi cruel e decisiva. Azariel quase chorou quando viu
morrer Lion Nardus e Hevahrystus sob as garras e caninos dos
terríveis e fétidos Drynomaths. Lion Nardus e Hevahrystus
talvez tivessem perecido porque foram abruptamente
interrompidos em seus devaneios, em suas casas, no mundo da
vigília... Mas também podem ter morrido subitamente na vida
física, o que de fato era desastrosamente a mesma coisa. Lion
Nardus e Hevahrystus morreram na batalha, não sem antes matar
vários homens-morcego. Fim igualmente triste tivera Déia
Thuam, que também não morreu sem antes fincar flechas no
coração apodrecido de dúzias de Drynomaths. Magna Victória,
todavia, mesmo ferida, viveu para entoar preces aos Deuses
Luminosos até o fim de seus dias nas Terras Delirantes.
No final, houve a batalha mística entre a Luz e a Sombra,
Sorianus versus Kolga Salba, e este último, ferido de morte pela
Magia Luminosa emanada do cetro místico de Sorianus,
enveredou por um dos portais interdimensionais, e hoje o
feiticeiro se refugia no Mundo dos Pesadelos, jurando voltar
para vingar-se de todos.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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Por vinte anos Terêncio ou Azariel Wareh Kareh viveu ao lado
da princesa dos olhos cor de âmbar, filha de Sorianus, o sábio de
hirsuta barba. E houve muitas festas nos reinos delirantes. E o
vinho azul do reino de Kthunbulkthur foi servido a todos. E toda
manhã, quando Terêncio acordava de seu delírio,
anotava e escrevia febrilmente sobre tudo o que ocorrera durante
os devaneios.
Eram trechos e mais trechos narrando suas aventuras nos
devaneios, como Azariel nas dimensões alucinógenas de seu ego
mais sombrio e delirante.
***
Dez malditos anos se passaram antes que, num dia de forte
chuva, um aventureiro, certo poeta perdido e solitário de nome
Stephen Passioncraft, encontrou a choupana abandonada perto
do pântano; em seu interior havia várias ossadas humanas além
do próprio esqueleto de Terêncio (vestido com andrajos puídos
de tonalidade ambarina), este sentado espartanamente com uma
caneta na mão diante de um caderno amarelecido sobre uma
escrivaninha coberta de pó e teias de aranhas.
Stephen Passioncraft arregalou os olhos de terror, pois
reconhecera pelas vestes (um dólmã verde) num dos esqueletos
o seu amigo nefelibata Júlio Leófitas, do qual supunha que havia
morrido nas selvas escuras de Madagásgar.
Stephen derrubou da cadeira o esqueleto de Terêncio e sentou-se
a ler o manuscrito, e entusiasmado, empunhou a caneta e
continuou as aventuras delirantes nos mundos onde hoje reina
soberano o príncipe regente Azariel Wareh Kareh, ao lado da
filha de Sorianus , a princesa Shryla Máris dos olhos cor de
âmbar.
E Stephen, depois de compreender que o delírio é uma benção,
mas também uma maldição, escreveu até cair morto de
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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fome e cansaço, como ocorrera com Terêncio e os mil e um
poetas delirantes que, cansados do tédio de uma vida insípida,
refugiaram-se na choupana e, portanto, nas Terras Delirantes,
onde ainda vivem como guerreiros ou magos ou bardos errantes.
A maldita choupana dos delírios continua lá e continuará para
todo o sempre, pois é sabido que continuamente haverá uma
legião de poetas enlouquecidos de dor e solidão em busca de
aventuras no mundo barbaramente perfeito que só o delírio pode
criar, poetas enlouquecidos e solitários como este que acabou de
escrever este estranho e insólito conto-delírio.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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O PRANTO DOS DEUSES ASTRONAUTAS
Um estranho rumor estraçalhou impiedosamente o silêncio
sepulcral daquele lugar desolado.
Era uma gigantesca e brilhante espaçonave que pousava
lentamente. Tinha o formato esférico e rutilava. Parecia um
grande globo de metal muito brilhante. Pousou sobre o solo
desértico daquele planeta inóspito, num dia qualquer no
calendário cósmico de um futuro remoto e sombrio.
Pegajosa e cinzenta bruma pairava solenemente no ar como um
grande e hediondo espectro emigrado dos confins do grande
reino dos mortos.
Alguns sábios do Universo dizem que todo planeta é como um
ser vivo. De fato todo planeta é um ser vivo, mas aquele planeta
estava morto. Sim, um mundo morto e esquecido na imensidão
da galáxia.
Aquele mundo morto fora, outrora, um planeta exuberante,
maravilhoso, orbe mirífico cheio de vida, verdadeiro Jardim do
Paraíso. Mas agora, no entanto, era apenas um mundo
devastado, ruína sombria e esquecida na vastidão do espaço
sideral.
Quem ou o que assassinara aquele mundo?
Quem ou o que transformara um paraíso num inferno? Somente
seres demoníacos seriam capazes de perpetrar um
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
66
crime assim. Seres demoníacos ou êmulos de demônios? Seres
racionais, com sensibilidade, com alma, não poderiam ter
habitado aquele planeta. Que tipo de raça monstruosa, cheia de
veneno no coração teria povoado aquele mundo?
Séculos e séculos de insanidades sem limites, guerras
incompreensíveis, ódios implacáveis, egoísmos doentios e
desenfreados. Tudo transformara aquele planeta paradisíaco
num gigantesco e sombrio cemitério espacial.
Uma porta de formato ovóide abriu-se vagarosa e
silenciosamente na parte lateral inferior da nave espacial de
formato esférico.
Em seguida, uma rampa de metal transparente foi estendida
como um tapete rígido, sem a emissão de um ruído sequer.
Estranha comitiva saiu do interior da espaçonave.
Quem seriam aqueles estranhos seres?...De onde viriam?...Qual
o propósito deles?
Eram seres humanoides, andróginos de angelical aparência.
Seres superiores, indubitavelmente. Seres oriundos de muito
além das estrelas conhecidas. Seres de uma galáxia distante,
perdida nos confins do vasto e infinito espaço cósmico. Em suas
perfeições mentais e espirituais, seriam chamados de deuses
astronautas por qualquer outra raça atrasada e primitiva.
Eles olharam atentamente aquele finado mundo, um planeta
completamente poluído e devastado, que agora mais parecia
uma grande lata de lixo na imensidão do cosmo, ou então , mais
apropriadamente, uma grande necrópole onde nem mesmo os
fantasmas agora habitavam.
Um dos seres falou em tom melancólico, mas ao mesmo tempo
solene, dirigindo-se ao outro companheiro, o que estava mais
perto de si.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
67
─ Observe com muita atenção, Aethugla Hann...
O outro, Aethugla Hann, olhou e meneou com vagar a cabeça
calva, dizendo:
─Uma raça selvagem, insana e irracional habitou, em tempos
remotos, este mundo, Vrull Baak. É o que presumo. É o que é
mais provável.
─Acho que não foi à toa que a civilização deste planeta foi
extinta. Observe as águas dos rios deste planeta, onde há muito
tempo atrás mitigava a sede os seus habitantes. Hoje, não
passam de valos de pútridas e fétidas águas. Enfim, eis um lugar
onde nem mesmo um verme viveria. Trata-se de um mundo
morto, Aethugla Hann.
─Uma raça assassina de seu próprio mundo, assassina de si
mesma, Vrull Baak ─ e Aethugla Hann derramou uma lágrima
cristalina que rolou pela face angelical como um pequeno aljôfar
de maravilhosa beleza e sensibilidade.
─Observemos mais, companheiro eirmão AethuglaHann.
Observemos as florestas devastadas, o ar poluído, enfim todo os
eu ecossistema destruído.
─Oh, deuses siderais! Quanta destruição!...
─Penso que, mesmo se tais seres fossem ainda vivos, não teriam
o grau de conscientização, a maturidade psicológica e espiritual
necessários para um contato direto conosco, o pacífico e
benfazejo povo do bem-aventurado planeta Empíreo─comentou
Vrull Baak, tristonho, começando a chorar também.
─Ouvi dizer que certas civilizações tão adiantadas quanto a
nossa tentaram contato com os seres bárbaros deste planeta.
Alguns povos mais primitivos deste mundo chegaram até a
chamar de deuses para esses astronautas benfazejos e
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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intergaláticos. Alguns de nós até chegaram a encarnar aqui, na
tentativa de salvar este mundo, mas tudo em vão. Os seres deste
planeta arruinado sempre foram paranóicos e problemáticos,
megalomaníacos e excêntricos. Eles desenvolveram em suas
psicosferas, eum suas mentes perturbadas, por assim dizer,
elementos terrivelmente bestiais e destrutivos de diabólico
egoísmo. Ouvi dizer também que uns poucos representantes
dessa raça assassina de si própria e de seu mundo (poucos que
ainda tinham amor em suas almas) foram levados por mestres do
universo para o planeta F, durante o último cataclismo
promovido por Hercólubus, o planeta higienizador, os poucos
escolhidos foram levados, sim , para que pudessem servir de
sementeira para uma nova raça galáctica.
─Vamos embora. Nada mais nos resta a fazer. Nossas
lamentações são inúteis, bem como nosso pranto ─ disse Vrull
Baak, olhando par ao resto da comitiva, que permanecera
silenciosa. ─ Este lugar é a necrópole de uma raça insana, a
necrópole de uma raça das trevas... As trevas do egoísmo, da
intolerância espiritual, da falta de concórdia entre as almas.
Entraram na espaçonave, que em seguida, elevando-se no ar
como um imenso sol de metal rutilante, se foi aos confins do
espaço sideral, deixando para trás um mundo absolutamente
morto e putrefato, horrendo monumento planetário ao egoísmo
insano...Um mundo que outrora chamavam...Terra! Um planeta
destruído por estranhos seres que um dia o habitaram, os
Homens!
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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DESCANSA EM PAZ
I
Era o último dia. O bendito último dia. Sairia da prisão, enfim.
Ele, um certo Zé, entre tantos outros no Brasil, não estava feliz,
não muito. Um homem como aquele Zé jamais se libertaria,
mesmo depois de tantos anos. Há prisões para as quais não
existem chaves.
No dia seguinte, pela manhã, sairia da maldita prisão. Seu corpo
sairia, mas não sua mente. Sua alma continuaria prisioneira nas
grades de um passado atroz.
Claro, houvera felicidade no passado, efêmera felicidade. A
felicidade da infância. Depois o começo da adolescência, o
começo do inferno, do seu inferno.
A parte escura do passado teimava em não ser esquecida,
tatuagem negra no corpo da memória. Lembranças amargas de
um passado cujas tumbas abriam-se esporadicamente, com seus
fantasmas atormentadores e cruéis.
Não conseguiu dormir na noite que antecedeu sua liberdade.
Estava ansioso. Ansioso demais.
Quando Zé saiu da penitenciária, um carcereiro, que cultivara
certa amizade com ele, falou-lhe, em tom de brincadeira:
- Zé, toma juízo, heim! Não vais querer pegar mais alguns anos
de xilindró, vais?
Zé torceu o nariz.
II
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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A cidade. A cidade fria, impiedosa, cálculo errôneo no grave
problema que se tornou a civilização. Zé sentou no banco da
praça, solitário como um deus ou um demônio. Pombos comiam
restos de pipocas caídos ao chão, perto do banco onde Zé
sentava.
Zé suspirou. E de súbito fez um gesto brusco com a mão,
enxotando as aves. A revoada espalhou-se num vôo estrepitoso,
num barulhento ruflar de asas soando como aplausos dos
Deuses que dirigem o teatro do Destino.
III
Enquanto Zé caminhava, lembrava-se amargamente de que
ninguém fora buscá-lo, na saída da penitenciária. Ninguém.
Talvez seus irmãos, na capital, já tivessem morrido. Talvez sua
velha mãe também. Ele não devia mais nada para a droga do
Estado, nem para ninguém. Por que ninguém fora buscá-lo?...
Sim, ninguém tinha ido buscá-lo. E daí? Danem-se. Sua mãe ele
ainda perdoava. Se ainda estivesse viva, devia estar bem
velhinha, fraquinha. Não tinha condições de sair dos arrabaldes
para vir buscá-lo. Será que ela já tinha morrido? Tanto tempo.
Zé contou quase vinte anos de prisão, marcados com um lápis
velho na parede da prisão.
Anos e anos de loucura, da loucura da prisão. Da solidão da
prisão. Do inferno em vida da prisão.
IV
A casa. A velha casa. A velha e simples casinha de madeira sem
pintura. A casa nos arrabaldes da cidade. A casa de sua mãe, a
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71
sua casa. A casa onde vivera os felizes anos da infância e parte
da adolescência rebelde.
O céu estava azul. O sol brilhava aprazível. O vento afagava a
face de aspecto severo de Zé, face marcada por uma pequena
cicatriz perto dos lábios.
Mais do que nunca ele sentia-se um homem com pouca
esperança.
O portãozinho de ferro pintado de branco, agora estava sujo e
enferrujado. Zé o empurrou devagar, a dobradiça guinchou alto,
como uma velha rabugenta. Rabugenta como provavelmente
estaria sua mãe?
V
Chegou até a porta da casa. Antes de bater, engoliu em seco, o
coração batendo como um pequeno tambor dentro do peito.
Por fim, com o nó do dos dedos da mão fechada bateu na
superfície de madeira.
Por um momento ficou perdido em pensamentos e
reminiscências angustiantes.
Antes de ouvir aqueles passos lentos, trôpegos, arrastados pelo
peso dos anos, ele ficou pensando, pensando. Chinelos
arrastando-se no assoalho de madeira, eis o ruído.
A maçaneta suja e encardida girou lentamente. Zé pensou em
desistir, mas não o faria. Será que ela ainda lembrava dele?...
Tolice do Zé. Mãe nunca esquece um filho. Por pior que o filho
seja. O amor de mãe não esquece nada.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
72
Primeiro surgiu a mão. A mão da mãe. Uma mão encarquilhada,
dedos tortos pela passagem dos anos e pela artrite. Mão de
dedos finos e cambados abrindo-se como flor murcha. A mão
empurrando a porta, puxando-a para dentro. E o Zé, o filho, só
olhando. A dobradiça da porta gemeu barulhenta, evocando
lembranças... A porta continuava barulhenta desde a infância de
Zé.
Logo a cabeleira branca, vencida pelos anos, desgrenhada,
assomou na porta.
Os negros e embaciados olhos de dona Zéfa, chamas apagadas
pelos ventos fortes do Destino, o rosto marcado de rugas.
Ela assomou inteira, ali, na soleira da porta, os dentes velhos,
amarelos surgindo meio tímidos, quase forçados.
─ Quem é?...O que o senhor desej... – a frase foi interrompida
como que por um raio; a voz quase sumida, vencida pela
surpresa.
Ele lançou um olhar perscrutador. Ela estava bem magrinha, Zé
notou; o câncer estaria vencendo a luta? Os olhos de Zé de
repente pareceram dois vales solitários, imersos numa chuva
triste e súbita da nuvem escura que havia se tornado sua alma
infeliz.
Engoliu em seco, a voz de Zé presa na garganta; as palavras
eram como pássaros do espírito presos na gaiola efêmera de seu
corpo. Por fim conseguiu gaguejar algo:
─ Mãe, sou eu, o Zé...o seu filho.
Ela olhou-o dos pés a cabeça, incrédula, a voz embargada pela
emoção maternal. Mas dona Zéfa sempre fora sisuda, austera,
mal-humorada, um cubo de gelo ambulante. Ela
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
73
segurava as lágrimas, a emoção de rever o filho que não o via há
anos, o filho que fora preso por matar um infeliz, numa briga,
num botequim de esquina.
─ É o Zé mesmo. A cicatriz no rosto. É o Zé mesmo. Entra.
Entra, rapaz. Tem café no bule, na chapa do fogão a lenha.
VI
Moscas adejavam pela pequena cozinha, onde um fogão a lenha
crepitava.
De vez em quando Zéfa abanava com a mão, enxotando os
insetos.
Um gato preto esquálido rondava perto do fogão, miando vez
por outra.
Na cadeira, com a xícara na mão, Zé falou, mirando o felino da
cor da noite:
─ É o “Bruxo”, mãe?
─ É. Tá velho como o meu coração. Eu vou e ele fica – disse a
velha Zéfa, enchendo com cuidado a xícara do filho com o bule
fumegante.
Depois de algum tempo de silêncio, Zé falou:
─ Mãe, já paguei o que devia. Estou livre pra valer. Não devo
mais nada pra Justiça e nem pra mais ninguém. Se devo alguma
coisa, só pra Deus, isto se Ele existir.
Ela meneou a cabeça, reprovando a bobagem dita; soltou
muxoxos, desaprovando.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
74
Zé continuou:
─ Mãe, estou pensando em arrumar um emprego e...
─ Zé – interrompeu a mãe, puxando a cadeira pelo espaldar e
sentando, ao mesmo tempo em que suspirava. - Não te ilude,
filho meu. Se antes de tu ser preso já era difícil arranjar um
emprego, imagina agora, com a tua ficha “suja”. Ninguém dá
emprego pra quem já “puxou” anos de cadeia e sem falar que tu
já passou dos quarenta. E quem passou dos quarenta, neste país
vagabundo, pode procurar com uma vela acesa que não acha
nada.
Zé aquiesceu com olhar desiludido.
Zéfa continuou:
─ Zé...Continuas o mesmo sonhador de sempre. Como foi teu
pai, antes de morrer atropelado e bêbado.
─ Bom, mãe...eu tinha pensado em falar com algum político da
cidade e... - ele sugeriu.
─ Esquece, filho meu. Os políticos são todos safados, Zé. Só
prometem, prometem, enrolam, enrolam...
─ A senhora tem razão, mãe. São uns filhos da mãe, os
políticos...
─ Além disso não tens estudo, filho meu. Se já não tem
emprego pra quem tem estudo, imagina pra ti, filho meu.
Ela suspirou de novo e tentou mudar de assunto:
─ Ando cansada, Zé. Cansada da vida, cansada de tudo. A vida
cansa, Zé. Chega um momento na velhice em que a gente deseja
apenas morrer, morrer em paz, Zé. Em paz.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
75
Zé cofiou a barba por fazer, uma vergonha nascendo dentro de
si. Ele se sentia um inútil, um fracasso, um grande fracassado na
vida. Ali, continuando a incomodar sua mãe, já vencida pela
velhice. Um imprestável, ele se achou.
Zéfa levantou-se da cadeira com um gemido. Disse:
─ Boa noite, Zé. Foi um dia bom pra mim. Não queria morrer
sem te ver de novo, filho. Os teus irmão, aqueles ingratos, foram
embora pra capital...só vem aqui uma vez por ano.
─ Eu não sirvo pra nada, mãe. Só lhe dei desgosto nesses
anos...
Ela o olhou de soslaio:
─ Deixa disso, rapaz. Vai dormir. E tenha esperança. As coisas
de repente mudam na vida da gente. E podem mudar pra
melhor. Esperança, Zé. Tenha esperança. Esperança é o segundo
nome de Deus, filho meu. Fé, Zé. É o que resta pra gente neste
vale de lágrimas que se tornou o mundo. A sorte da gente de
repente muda de direção, o Destino, Zé, é como o vento; às
vezes sopra forte, às vezes fraco, às vezes contra, às vezes a
favor. Vai dormir, Zé. O teu quarto continua como deixaste.
Estás de volta ao lar, Zé. E não te esquece: amanhã será uma
nova manhã e uma nova promessa de esperança.
VII
Na manhã seguinte Zé acordou cedinho com a algazarra dos
pardais nos beirais do telhado.
Ligou o velho radio. Tocava uma velha música sertaneja, triste
como ela só.
Zé continuava na cama, tentando achar uma saída do labirinto
do Destino, mas a saída parecia estar somente nos sonhos, nos
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
76
sonhos que a infância deixara-lhe como legado da mais pura das
esperanças.
A realidade era uma prisão, Zé pensava. Ele era um prisioneiro,
nunca deixaria de sê-lo. Não é preciso estar dentro de uma
cadeia para sentir-se preso. Há prisões interiores irrevogáveis,
prisões do espírito.
Onde estava aquela louca alegria de viver, sol da manhã de sua
infância, Zé perguntava-se, aquela deusa louca chamada alegria,
bailarina bêbada que o ensinava a dançar sobre si mesmo? Onde
estavam as flores que brotavam no jardim de sua mente, quando
criança? Cadê o arco-íris da alegria de viver?
O mundo tornara-se um inferno sórdido onde as horas eram
como pregos que o crucificavam no calvário dos dias.
Zé tentou chorar, mas não conseguiu.
Levantou-se do leito, por fim, a contragosto. Quisera ficar ali,
deitado, dormindo e sonhando, talvez dormir e morrer...
Foi só lá pelas onze e meia da manhã que Zé se ligou. Estranhou
o fato de sua mãe não ter acordado ainda. Talvez doença
apertara o cerco...
Zé encaminhou-se até a porta do quarto da mãe. A porta estava
só encostada. Zé empurrou-a com vagar. Um cheiro de velhice
emanou do interior do aposento.
─ Mãe, tá dormindo ainda? ─ Zé inquiriu, a voz baixa. -
Mãe, já é um novo dia...
Então o horror. Zéfa estava estendida na velha cama, na
penumbra do quarto, os olhos arregalados contemplando o
infinito além dos portais da Eternidade.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
77
A face da mãe estava pintada pelo palor da morte, e um sorriso
de amor de mãe, um sorriso derradeiro a curvar-lhe os
lábios. O último, e um dos raros sorrisos da mãe, o sorriso do
amor de mãe. Ela esperara tantos anos, adiara a morte, para
rever o filho, o filho livre da prisão dos homens. Agora a mãe
libertara-se, estava livre, mais livre que o Zé, seu filho, livre da
prisão da vida, livre da prisão da dor, da sua dor.
Zé engoliu em seco. O coração acelerando, mãos tremendo , um
estranho suor frio.
Murmurou, enquanto fechava a porta, uma lágrima grossa
despencando como pequena jóia rara da comissura de um dos
olhos.
─ Dorme, mãe. Dorme. Como a senhora disse: amanhã será um
novo dia, uma nova manhã e uma nova esperança. Mãe,
descansa em paz...Descansa em paz!...
Zé baixou a cabeça e debulhou-se em lágrimas.
Na cozinha o gato Bruxo miou estranhamente alto. Tinha, agora,
um novo dono.
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
78
A VINGANÇA DE FERNANDO JUAN CUERVO
1. A estrada do medo!
Para a antiga e sombria cidade de Maremontes partira o
caminhoneiro Robson e seu ajudante, um sujeito meio
espantadiço e espalhafatoso chamado “Boca Tojo”. Levavam
uma carga de melancias. Melancias especiais cumpre salientar.
Melancias recheadas de marijuana!
Haviam atravessado a rodovia 666, e agora seguiam por um
caminho que era considerado um atalho, um caminho alternativo
de pouco movimento.
O “possante” - era assim que Robson chamava seu velho
caminhão. Boca Tojo, ex-garçom e vigia, fazia agora um “bico”
com seu velho amigo, num “trabalho” arriscado, pois se os tiras
descobrissem a “carga especial” enfiada através de pequenos
furos nas melancias, furos estes feitos com uma furadeira
elétrica, a dupla iria para a cadeia! Assim sendo, Boca era o
acompanhante de Robson e o “chapa” para descarregar as
“melancias doidonas”, como os dois as chamavam.
─ É isso aí, Boca!...Se beber, não dirija! – disse Robson
gargalhando sarcasticamente, bebendo uma latinha de cerveja e
tragando um cigarro de maconha, uma verdadeira “bomba” ou
“tora”, como eles costumavam dizer em suas gírias de
imprestáveis.
Boca Tojo, espevitado como sempre, estourou também numa
ruidosa gargalhada. E depois, bebendo avidamente uma lata de
cerveja enquanto soltava baforadas de seu “baseado”, foi
dizendo:
─ Droga, “Chefinho”! E se a polícia rodoviária aparecer?
E se ela nos parar e fizer o teste do bafômetro?
A princesa de Belépsiah – Rogério Silvério de Farias
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─ Neste fim de mundo, aqui? Boca, estamos numa região
desértica, praticamente. Isto aqui é como um atalho do inferno.
Além disso, os tiras teriam que ter, além do bafômetro, também
um “maconhômetro” especial pra nós dois!... – respondeu
Robison, rindo. - Sabe, foi uma boa ideia termos seguido por
este caminho pouco usado. Vamos chegar a tempo de entregar
essas “melancias doidonas” ao chefão do tráfico em Maremontes
e o maior ladrão da cidade, o Zena!
─ Sabe o que os frentistas disseram para mim, no posto de
gasolina? – falou Boca Tojo, despertando a curiosidade de
Robson, na boleia.
─ O quê, Tojo?
─ Tinha um velhote manco muito estranho por lá. Falou-me que
esta maldita estrada que estamos seguindo recebeu o nome de
“Estrada do Medo”, e que esta droga de região que estamos
atravessando é... malassombrada!...Existe uma história ou lenda
terrível sobre esta região... Os motoristas e caminhoneiros
evitam passar por aqui. Sei que parecerá loucura, mas vou contar
a estranha e assustadora história que o velho me contou...
“Havia, tempos atrás, um jovem motoqueiro chamado Fernando
Juan Cuervo, descendente dos primeiros mexicanos que vieram
para Maremontes no começo do século passado. Certa noite de
lua cheia, quando Fernando Juan Cuervo passeava por esta
rodovia com sua namorada na garupa da motocicleta, ambos
foram atropelados por um caminhão. Margarita, a namorada de
Fernando Juan Cuervo, teve a cabeça esmagada pelas rodas do
caminhão, enquanto Fernando, cheio de ódio, morreu
lentamente, provavelmente agonizando em busca de ajuda, pois
o motorista bêbado fugira do local do acidente.
“Quando a polícia foi avisada e chegou ao local, só havia o
corpo de Margarita, já em adiantado estado de putrefação, com
abutres bicando a carne podre do corpo sem cabeça da morena.
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Cabeça, aliás, que sumira provavelmente carregada e devorada
por algum maldito animal da região ou pelos próprios abutres.
“Fernando Juan Cuervo nunca foi encontrado. Dizem que ele
morreu após ter se arrastado pela planície na vã busca de alguma
casa onde os moradores pudessem ajudar, mas a região é
deserta, não se encontram moradores por ali. Assim, alguns
levantaram a hipótese de que Fernando Juan Cuervo teria
acabado morrendo de agonia e desespero enquanto se arrastava
por ali, em busca de ajuda, e depois foi atacado por algum coiote
ou cão selvagem ou devorado por algum abutre, que arrastaram
sua carcaça.
“O povo falava horrores de Fernando Juan Cuervo, quando este
era vivo. Havia indícios de seu envolvimento com drogas
pesadas e alucinógenas, bem como sua paixão por livros de
ocultismo e magia negra e certos rituais de necromancia e vudu,
que aprendera em suas viagens de motocicleta pelo negro Haiti.
“Agora”, me disse o velho, “alguns acreditavam que o zumbi do
motoqueiro Fernando Juan Cuervo, cheio de ódio e desejo de
vingança, aparecia, ao cair da noite, com sua motocicleta negra e
infernal, para vingar-se de todos que passam por aqui. Vingar-se
especialmente dos caminhoneiros, mas também esperar pelo
reencontro com alguém todo especial, o seu inimigo, aquele que
atropelara e matara sua amada, a bela Margarita. Os
caminhoneiros mais velhos e loucos deram um apelido
assustador a esse desaparecido Fernando Juan Cuervo:
“MORTOQUEIRO, O ZUMBI DO ASFALTO”!... O velho
manco contou-me tudo isto, pois quando era criança conseguiu
escapar vivo do Mortoqueiro, porém viu seu pai ser atropelado
na estrada enquanto trocava um pneu furado. O Mortoqueiro
feriu a perna do velho, por isto era manco”.
─ Vá pro inferno, Boca Tojo! – grunhiu Robson, quase se
engasgando com o gole da cerveja, e atirando de modo irritado a
lata em direção a seu amigo, que a aparou com as mãos.
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Subitamente Robson ficara sombrio, como se lembrasse de algo,
algo terrível.
Logo depois, houve silêncio dentro da cabina do caminhão, que
seguiu ligeiro pelo asfalto. Robson buzinou e loucamente
começou a fazer zigue-zagues na pista asfaltada, bêbado,
irrequieto e sombrio.
2. O cão do inferno!
As névoas começaram a aumentar. O crepúsculo começava a
sangrar no horizonte, como um poço de laivos de sangue de um
cadáver esquartejado. A noite começara a cair, como uma
mortalha.
─ Chefinho, é melhor acionar os faróis, a droga da névoa
começou a apertar, além disso, daqui a pouco a noite escurece
de vez tudo por aqui, nesta estrada dos infernos. Hoje vai ser
noite de lua cheia, mas o luar será precário para diminuir tanta
escuridão neste fim de mundo.
─ Já acionei os faróis, Boca – disse Robson. – Deixe de ser
medroso, homem!
A névoa à frente e a escuridão misturada com os poucos raios de
luar davam um tom fantástico e infernal àquela estrada. Robson
teve que diminuir a velocidade, já que o caminhão parecia estar
transitando pela rodovia do inferno.
De repente um vulto negro surgiu à frente, entre as névoas
turbilhonantes. Parecia um animal. Talvez um coiote, um lobo,
embora seu aspecto fosse mais sinistro. Robson teve que pisar
no breque, o caminhão guinchou feito um demônio ferido, os
pneus soltando fumaça no asfalto negro, o cheiro de borracha se
fez sentir.
─ Filho da mãe! – urrou Robson, manobrando o volante
enquanto freava. – Parece um maldito cachorro!
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Boca comentou:
─ Sim, parece um cachorro preto no meio da névoa. Mas pode
ser um coiote também. Está bem ali, cerca de 50 metros à frente
do nosso caminhão!
─ Pode ser um lobo ou cão selvagem...
─ Sim, pode ser chefinho!
Robson pegou do porta-luvas um revólver.
─ Se for... O meu “trinta-e-oito” aqui vai dar um jeito; vou
meter bala no rabo desse desgraçado que está nos fazendo perder
tempo e dinheiro! Esta droga de carga de “melancias doidonas”
tem que chegar até amanhã de manhã, e não vai ser um vira-lata
do inferno que vai me impedir de cumprir o que foi tratado!...
Robson abriu a porta do caminhão e desceu com o revólver em
riste. Boca também desceu. Ambos se posicionaram em frente
ao caminhão estacionado naquela rodovia deserta e enevoada.
─ Manda bala, chefinho! – disse Boca, olhando Robson fazendo
mira com o revólver; o cão ou o que quer que fosse aquilo,
estava parado em meio às névoas. Os olhos da estranha criatura
eram vermelhos, Robson e Boca puderam ver. Parecia realmente
um cão negro.
Balas foram descarregadas, quebrando o silêncio do lugar.
O cão preto fugira ao primeiro disparo, sumindo-se nas névoas,
deixando para trás não um ladrar comum, mas algo similar a um
regougar diabólico de uma hiena sarcástica das savanas negras
do inferno.
─ Se mandou! – disse Boca. – Parecia mais uma hiena, aquela
coisa no meio das névoas.
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─ Hiena ou... Um cão do inferno! Seja o que for, se essa droga
de coisa aparecer de novo no meio da estrada, vou transformá-la
em peneira! – disse Robson engatilhando o revólver.
2. Fogo nas névoas!
Ambos voltaram ao caminhão e deram partida. Continuaram a
viagem. Cerca de menos de meio quilômetro à frente, o
caminhão pifou.
─ E agora essa? – gritou enfezado Robson.
─ Puxa vida! E essa agora? Vamos averiguar o que foi, parece
que não temos mais combustível, segundo o que vejo bem aí à
sua frente, no painel... Droga, mas não faz pouco tempo
enchemos o tanque no posto! O que será que houve? – disse
Boca.
Desceram e foram averiguar. De repente ouviram um ronco de
motocicleta. Alguém acelerava raivosamente uma motocicleta.
─ Vem alguém pela rodovia, em sentido contrário ao nosso! –
disse Boca.
─ Não vou vacilar. Nesta região deserta, pode ser assaltante de
carga! E hoje em dia, roubam até o nosso tipo de carga, Boca! –
disse Robson, indo até a boleia e pegando novamente o revólver
que guardara no porta-luvas, após atirar no “cachorro preto”.
Um vulto ao crepúsculo, um motoqueiro negro que vinha em
alta velocidade, em meio às névoas, sob a fraca luminosidade da
lua cheia. Passou como um relâmpago do inferno por perto de
Robson e Boca, os dois tiveram que correr para o acostamento.
─ Maluco esse! – fez Boca.
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─ Esses motoqueiros andam mais “chapados” que nós dois,
Boca! São uns demônios!
Foi nesse instante que Boca viu algo no asfalto, um rasto de
combustível, o combustível do caminhão. O tanque
provavelmente estava ou fora furado, e agora tinha deixado
como que um rastilho de pólvora. E foi aí também que Boca
compreendeu tudo. Boca pensou, raciocinou e concluiu. Era ele,
sim... Era ele, só podia ser!
─ Chefinho, olha ali, eis o porquê de o caminhão ter pifado!
Robson enfezou-se:
─ Diabo! A droga do tanque de combustível!
Novamente o ruído da motocicleta. O motoqueiro, misterioso e
negro, voltando. Boca gritou que era ele, o Mortoqueiro, o
zumbi do asfalto.
A alguma distância do caminhão e do ponto onde estava Robson
e Boca, o motoqueiro, em meio às névoas e visto
indistintamente, começou a acelerar a motocicleta, patinando o
pneu traseiro, soltando fumaça e cheiro de borracha queimada
no asfalto, até lançar uma pequena fagulha que incendiou o
rastro de combustível que seguia até o gotejante tanque do
caminhão de Robson.
Num instante, como um rastilho de pólvora, as labaredas
correram rumo ao tanque do caminhão.
Robson ainda gritou antes de ver o caminhão ir pelos ares, numa
explosão infernal:
─ Corra pra planície ao lado do acostamento, Boca! A droga
desse caminhão vai explodir!
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E assim os dois fizeram, ocultando-se atrás de um grande
matacão ao lado da pista. As labaredas como demônios, tinham
seguido até o tanque do caminhão, que explodira e incendiara
por completo, alastrando fogo nas névoas.
4. O zumbi do asfalto!
Após alguns minutos, Robson saiu detrás da rocha com seu
amigo Boca. Robson gritou de raiva, olhando ora para o que
restara do caminhão em chamas, ora para o motoqueiro ao
longe, que empinou a motocicleta e veio em direção a eles.
─ Esse filho da mãe acabou com o meu “possante” e nossa carga
de marijuana! Vou mandar bala nesse miserável!
─ É ele chefe , só pode ser ... Mortoqueiro, o zumbi do asfalto!
Atira chefe! Ele vem vindo pra nos atropelar! Mete bala nesse
filho da mãe! Se for fantasma, não morre; se for vivo, morre e
vai pro inferno!
Quando Robson apertou no gatilho, estremeceu. Somente agora
ele percebera que havia gasto todas as balas no cachorro ou
coiote que minutos atrás cercara o caminhão.
Robson atirou-se para o lado, arremessando o revólver contra o
motoqueiro negro e sinistro, mas não conseguiu acertá-lo pois
ele passara como um bólido. Foi ao cabo de alguns segundos
que Robson percebeu que o motociclista sinistro, utilizando-se
de uma corrente, laçara o pescoço de Boca e agora ia já longe
arrastando o corpo do amigo. Boca foi arrastado por alguns
metros, impiedosamente. Gritou muito antes de ter a cabeça
arrancada. Depois a corrente foi solta, e o motoqueiro deu um
cavalo-de-pau com a motocicleta e passou por cima do corpo de
Boca, esmagando-o, aproveitando para dar um chute na cabeça
decepada.
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Robson olhava tudo atônito. Era ele, sim. O maldito descendente
de mexicano, Fernando Juan Cuervo! O Mortoqueiro. O morto-
vivo do asfalto!...
O terror de Robson aumento ainda mais quando viu que Cuervo,
todo vestido de negro, com um capacete também escuro que lhe
ocultava a face, empinou a motocicleta e veio lentamente em sua
direção, como se saboreasse o desespero do caminhoneiro.
Cerca de vinte metros à frente de Robson, o Mortoqueiro retirou
de sua jaqueta de couro negro um pingente, um berloque em que
se via a foto de uma bela morena com uma flor nos cabelos
negros... A flor que tinha um nome parecido com o nome de sua
amada...Margarita!
Robson reconheceu, mesmo de longe. E suas lembranças
voltaram, até àquela fatídica noite em que, após fumar cinqüenta
baseados e ficar totalmente doido, atropelara Fernando Juan
Cuervo e sua amada Margarita, fugindo depois.
A vingança dos mortos é terrível, mas a dos mortos-vivos como
Fernando Juan Cuervo é mais terrível ainda.
5. O “Mortoqueiro”ataca e mata!
Um calafrio de medo deslizou como uma lesma fria por sua
coluna. Robson estava paralisado de terror, ali, no meio da pista,
para onde voltara para olhar melhor, ao longe, o cadáver
decapitado de Boca Tojo, atropelado e morto pelo sinistro
Fernando Juan Cuervo, o Mortoqueiro.
Robson engoliu em seco quando viu o Mortoqueiro acelerar a
motocicleta e vir em sua direção com um facão em riste, facão
que ele sacara de uma bainha presa à sua perna.
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Era tarde demais para escapar. Robson teve a cabeça decepada
pela lâmina gélida que rebrilhou ao luar, úmida pelas névoas. O
sangue tingiu a noite com a cor da violência e da morte. E
quando a cabeça de Robson rolou pelo chão, o Mortoqueiro fez
outro cavalo-de-pau e retornou, passando por cima, brandindo o
facão, como se estivesse comemorando a vingança concluída.
Os miolos de Robson salpicaram o asfalto, como um tempero do
terror.
A lua cheia chegava, cintilando como um esférico espectro do
além. A névoa, como uma fumaça fantasmagórica, já diminuía e
começava a desaparecer. Se alguém estivesse por perto, veria o
cão negro do inferno que latiu e depois uivou sinistramente
como um demônio louco dos abismos negros das sombras,
aproximando-se da motocicleta e seu macabro piloto. Veria
também, através da viseira negra do capacete do Mortoqueiro,
um sorriso diabólico de satisfação naquela caveira podre e
vingativa que um dia tinha sido o rosto de Fernando Juan
Cuervo.