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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES DE CIÊNCIA NA REVISTA GALILEU: EFEITOS DE SENTIDO DE MONOFONIA OU POLIFONIA? Natália Martins Flores 1 Ada Cristina Machado Silveira 2 1. Introdução Com o objetivo de estabelecer a comunicação entre dois sujeitos, a enunciação é tratada por Mikhail Bakhtin (1986) como um produto da interação entre esses comunicantes. A linguagem não tem apenas a função de expressão, mas funciona essencialmente como uma interação social que visa fazer dialogar dois indivíduos. Partindo dessa perspectiva, Bakhtin viria a interpretar a linguagem como sendo de natureza concreta e dialógica, que coloca em diálogo interlocutores e discursos. Assim, o discurso produzido nunca é individual, mas social, construído numa relação entre seres sociais e discursos que lhe são precedentes. A partir dos estudos de Bakhtin, os teóricos do discurso passaram a adotar o discurso como sendo de natureza inconclusa e aberta, elemento sempre em processo, em construção. Essa posição ocorre no próprio conceito de heterogeneidade constitutiva do discurso, o qual, segundo esclarece Jacqueline Authier-Revuz (2004), se refere a ele como constantemente perpassado pelas palavras do outro. Neste sentido, por mais que pretenda ser fechado, o discurso sempre está em contato com a alteridade, com o que lhe é precedente ou com o que lhe é oposto. Com a heterogeneidade constitutiva do discurso, o sujeito da AD não é mais entendido como centrado, dono do seu dizer, formado na relação de oposição Eu-Tu. Ele aparece como sujeito descentrado que divide espaço com o outro e, por isso, é constantemente invadido por outras vozes. Segundo Brandão (2004), antes de ser fonte do seu dizer esse sujeito histórico-ideológico constrói seu discurso na relação com os discursos do outro. A abordagem da linguagem como dialógica permite que os estudos de linguagem investiguem elementos que estão além da materialidade física léxico-gramatical. Entram 1 Bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM. 2 Doutor em Periodismo pela Universitat Autonoma de Barcelona. Professor do Programa de Pós- graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria UFSM.

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES DE CIÊNCIA NA REVISTA

GALILEU: EFEITOS DE SENTIDO DE MONOFONIA OU POLIFONIA?

Natália Martins Flores1

Ada Cristina Machado Silveira2

1. Introdução

Com o objetivo de estabelecer a comunicação entre dois sujeitos, a enunciação é

tratada por Mikhail Bakhtin (1986) como um produto da interação entre esses

comunicantes. A linguagem não tem apenas a função de expressão, mas funciona

essencialmente como uma interação social que visa fazer dialogar dois indivíduos.

Partindo dessa perspectiva, Bakhtin viria a interpretar a linguagem como sendo de

natureza concreta e dialógica, que coloca em diálogo interlocutores e discursos. Assim, o

discurso produzido nunca é individual, mas social, construído numa relação entre seres

sociais e discursos que lhe são precedentes.

A partir dos estudos de Bakhtin, os teóricos do discurso passaram a adotar o

discurso como sendo de natureza inconclusa e aberta, elemento sempre em processo,

em construção. Essa posição ocorre no próprio conceito de heterogeneidade constitutiva

do discurso, o qual, segundo esclarece Jacqueline Authier-Revuz (2004), se refere a ele

como constantemente perpassado pelas palavras do outro. Neste sentido, por mais que

pretenda ser fechado, o discurso sempre está em contato com a alteridade, com o que

lhe é precedente ou com o que lhe é oposto.

Com a heterogeneidade constitutiva do discurso, o sujeito da AD não é mais

entendido como centrado, dono do seu dizer, formado na relação de oposição Eu-Tu. Ele

aparece como sujeito descentrado que divide espaço com o outro e, por isso, é

constantemente invadido por outras vozes. Segundo Brandão (2004), antes de ser fonte

do seu dizer esse sujeito histórico-ideológico constrói seu discurso na relação com os

discursos do outro.

A abordagem da linguagem como dialógica permite que os estudos de linguagem

investiguem elementos que estão além da materialidade física léxico-gramatical. Entram

1 Bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Mestre em

Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. 2 Doutor em Periodismo pela Universitat Autonoma de Barcelona. Professor do Programa de Pós-

graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.

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em cena aspectos como a situação de comunicação imediata (os sujeitos que se

comunicam) e o contexto social e ideológico no qual a enunciação emerge. Esse aspecto

mostra que a enunciação e a linguagem não se estruturam apenas segundo elementos

lingüísticos, mas também de acordo com projeções construídas sobre o interlocutor e

condições sócio-históricas de seu tempo.

A produção social da enunciação se relaciona a sua própria natureza ideológica a

qual recebe influências do seu contexto. De acordo com Diana L. P. de Barros (2005),

Bakhtin descreve o texto, construído na enunciação, como um produto significante

produzido dentro de determinada sociedade e que, por isso, subentende o contexto

social, histórico e cultural que lhe deu origem. Assim, ele reveste-se também de

conteúdos ideológicos que perpassam essa sociedade.

A enunciação funciona assim como meio de exteriorizar e materializar o discurso.

Essa instância pressupõe a presença de um sujeito que, ao tomar a palavra, se instala

como enunciador e dirige-se a um segundo sujeito (o enunciatário) com o objetivo de

comunicar-se.

Quando falamos sobre os sujeitos da enunciação, não nos referimos aos sujeitos

físicos do mundo, mas a sujeitos do discurso, inseridos no texto. O esquema de Patrick

Charaudeau (2009) ilustra essa diferença entre sujeitos ao demarcar locutor/receptor

como sujeitos sociais e enunciador/destinatário como sujeitos do discurso:

Figura 1: Representação do dispositivo da encenação da linguagem

Fonte: CHARAUDEAU, 2009, p.77

2. O sujeito e a heterogeneidade

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O direcionamento dos estudos lingüísticos para a questão da heterogeneidade foi

incitado pelos estudos do círculo de Bakhtin e sua introdução na França por Julia

Kristeva. Ao mostrar a linguagem como dialógica e a palavra como uma ponte construída

em direção ao outro (BAKHTIN, 1986), esse círculo mostrou o discurso como um campo

heterogêneo de disputas entre sujeitos que interagem entre si por meio da linguagem.

Neste contexto, o discurso aparecia na sua natureza heterogênea e aberta, composto por

uma complexidade de elementos advindos de discursos outros.

Os pressupostos de dialogismo e heterogeneidade do discurso permitiram a

Bakhtin construir a sua teoria de polifonia por meio da análise de romances literários

como os de Dostoievski e da literatura popular ou carnavalesca. Esses textos são

caracterizados por Bakhtin como polifônicos, pois mostram uma série de “máscaras”

assumidas pelo autor, diversas vozes que se expressam ao mesmo tempo sem que, no

entanto, uma prepondere sobre as outras (BRANDÃO, 2004). Neste sentido, a polifonia

daria espaço para vozes ideológicas distintas e permitiria que essas convivessem no fio

do mesmo discurso sem reduzi-las a uma voz dominante.

A igualdade que essas vozes assumem no discurso pode ser observada na análise

de Bakhtin sobre os romances de Dostoievski:

A multiplicidade de vozes e consciências imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade

de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoievski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse

discurso diretamente significante (BAKHTIN, 2005, p.4).

No trecho acima, pode-se entender a polifonia bakhtiniana caracterizada não

apenas como o aparecimento de diversas vozes, mas como marcada pela equipolência

entre elas. Essa propriedade se refere ao fato das vozes deterem iguais condições de

expressão, ou seja, do autor deixar seus personagens falarem sem colocar seu ponto de

vista como preponderante. Marcadas por uma relação de independência entre si, essas

vozes mantêm o seu valor central sem subjugarem-se a uma voz unificadora como a do

autor ou do herói.

O dialogismo da obra de Dostoievski é colocado em oposição ao monologismo que

alguns textos literários clássicos assumem. Nos últimos, há a preponderância de uma voz

responsável por centralizar os pontos de vista e colocar as outras vozes sob o seu jugo.

Dessa forma, segundo Dominick LaCapra (2010), os estudos literários de Bakhtin

chamam atenção para a ambivalência e abertura dos textos, em que a carnavalização é

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tida como a forma em que o dialogismo e a heteroglossia aparecem de forma mais

acentuada.

Para Authier-Revuz (2004), a relação de oposição entre monologismo e

dialogismo é a marca fundamental dos estudos do círculo de Bakhtin, atravessados por

um paradigma coerente e pelas seguintes oposições:

Quadro 1: As oposições do Círculo de Bakhtin

Fonte: Adaptação de Authier-Revuz (2004, p.25)

Esse quadro permite-nos fazer relações entre os elementos diálogo, múltiplo,

relativo e inacabado em contraposição às existentes entre monólogo, único, absoluto e

acabado. Os primeiros elementos representariam a abertura do discurso e a ocorrência

de diversas vozes equipolentes no mesmo fio discursivo, enquanto que os últimos se

relacionariam ao fechamento do discurso no qual uma voz se sobrepõe e controla as

demais.

De acordo com LaCapra (2010), a partir das críticas de Bakhtin ao monologismo,

a linguagem foi assumida como um campo de força que coloca em tensão forças

centrípetas (unificadoras) e centrífugas (heteroglotas) e que, no confronto, produz-se a

cultura. A importância do equilíbrio entre essas forças é mostrada por meio do apreço de

Bakhtin pela carnavalização, a qual faz emergir a heterogeneidade de pontos de vista e

vozes. Neste sentido, “a ausência ou o colapso da carnavalização facilita um movimento

rumo à pura luta pelo poder entre forças opostas” (LACAPRA, 2010, p.173).

O conceito de polifonia de Bakhtin elaborado no contexto de textos literários foi

apropriado por estudos posteriores do discurso e, em algumas situações, adquiriu

imprecisões e polissemias. Como exemplo, pode-se citar a confusão que se estabeleceu

entre polifonia e dialogismo, conceitos caros aos estudos bakhtinianos. Assumida como

sinônimo de dialogismo, a polifonia acabou muitas vezes sendo entendida como uma

característica intrínseca de todos os textos, provocando um esvaziamento do seu

significado original.

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Barros auxilia-nos a diferenciar o dialogismo da polifonia. A autora define o

dialogismo como princípio da linguagem e a polifonia como efeito de sentido produzido

no discurso:

Em outras palavras, o diálogo é condição da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos, segundo as estratégias discursivas acionadas. No primeiro caso, o dos textos polifônicos, as vozes se mostram; no segundo, o dos monofônicos, elas se ocultam sob

a aparência de uma única voz. Monofonia e polifonia de um discurso são,

dessa forma, efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se utilizam em textos, por definição, dialógicos (BARROS, 2003, p.6).

Seguindo a mesma direção, José Luiz Fiorin (2008) procura entender as sutilezas

existentes entre polifonia, plurivocalidade e heteroglossia. Diferentemente dos dois

últimos termos, que servem para nomear a natureza heterogênea da linguagem, a

polifonia subentende uma dimensão política das vozes, pois se refere à equipolência das

mesmas. Assim, a presença de várias vozes somente implica em polifonia se essas

tiverem a mesma independência e se expressarem de forma igualitária.

De fato, a dimensão política de expressão igualitária de todas as vozes adotada

pela teoria polifônica bakhtiniana produziu uma visão radical do que poderia ser

considerado um texto polifônico. Apesar de compreender a limitação que essa

radicalidade provoca em análises textuais, entende-se que os princípios de equipolência,

imiscibilidade e plenivalência desta teoria podem auxiliar na compreensão de textos

midiáticos. A mídia é responsável por fazer falar diversas vozes presentes no tecido

social. Esta instância, muitas vezes, transforma-se em arena de luta entre diversos

atores sociais.

A adoção da perspectiva dos estudos de Bakhtin por autores como Barros (2005,

2003), Brandão (2004) e Fiorin (2008) mostra os mecanismos de construção de efeitos

de sentido de monofonia e polifonia num discurso. Enquanto o primeiro faz o discurso

parecer ter uma única voz atuante, o segundo mostra a sua dialogicidade, ou seja, as

diferentes vozes que constituem esse discurso, sem que uma julgue as restantes. Assim,

o conceito de polifonia de Bakhtin pode nos esclarecer a configuração da identidade de

ciência na revista Galileu: como única voz preponderante ou como uma voz que

estabelece relações de equipolência com outras vozes do discurso.

3. Das formações ideológicas às formações discursivas

Ainda que apreciando o conceito de polifonia bakhtiniano, a sistematização da

nossa análise utiliza as categorias de enunciador e locutor construídas por Oswald Ducrot

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na sua teoria polifônica do discurso. Compreendemos que as teorias polifônicas desses

dois pesquisadores divergem em muitos aspectos e, neste sentido, no presente item

pretendemos discorrer brevemente sobre suas diferenças conceituais e sobre possíveis

aproximações entre essas teorias para a análise de textos.

A constituição da teoria polifônica de Ducrot parte de Bakhtin e opera no nível

lingüístico (cf. BRANDÃO, 2004), dentro dos estudos da pragmática semântica. No

entanto, como o próprio Ducrot (1987) discorre, diferentemente da teoria bakhtiniana

que é aplicada a textos, a sua teoria polifônica se aplica a enunciados isolados. O

objetivo do linguista é questionar a unicidade do sujeito falante assumida como óbvia

pelas correntes da linguística moderna. Neste sentido, essa teoria polifônica pretende

mostrar que dentro de um enunciado existem diversas vozes se sobrepondo.

Para operacionalizar a análise da polifonia de enunciados e mostrar os papéis que

podem ser assumidos no discurso, Ducrot parte da teoria narrativa de Gerard Genette e

dos conceitos de narrador e de personagens. Os locutores fariam o papel de narrador,

enquanto que aos enunciadores caberia o papel de personagens do discurso. Assim,

Esta situação me parece próxima da que procurarei descrever, no nível do enunciado, dizendo que o locutor apresenta uma enunciação de que se declara responsável – como exprimindo atitudes de que pode recusar a responsabilidade. O locutor fala no sentido em que o narrador relata,

ou seja, ele é dado como a fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia – como pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos de consciência estranhos ao narrador (DUCROT, 1987, p. 196).

Ducrot (1987) ainda toma o cuidado de diferenciar o locutor do sujeito empírico

que escreve o texto. Enquanto o primeiro se refere a um ser do enunciado, o sujeito

empírico é uma pessoa exterior ao enunciado e que, por isso, não interessa às análises

da semântica textual.

Assumindo a existência tanto de narradores como de personagens nos

enunciados, a teoria polifônica de Ducrot (1987) estabelece duas formas de polifonia

expressas tanto no nível dos locutores como dos enunciadores. Enquanto a primeira

forma se refere a diferentes sujeitos que assumem a palavra, a segunda – mais

frequente, segundo Ducrot – representaria os diferentes pontos de vista assumidos no

discurso. Assim,

[...] o sentido do enunciado, na representação que ele dá da enunciação, pode fazer surgir aí vozes que não são as de um locutor. Chamo de ‘enunciadores’ estes seres que são considerados como se expressando

através da enunciação, sem que para tanto lhe atribuam palavras precisas; se eles ‘falam’ é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude,

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mas não, no sentido material do termo, suas palavras (DUCROT, 1987, p.192) (grifos do autor).

Focando-se na análise semântica de enunciados, a teoria polifônica de Ducrot

apresenta diferenciações em relação ao conceito original de polifonia bakhtiniano.

Diferente de Bakhtin, Ducrot não se interessa pelas relações de igualdade entre as vozes

discursivas, ou seja, pelas instâncias de equipolência, imiscibilidade e plenivalência que

caracterizariam a polifonia bakhtiniana. Assim, apesar de apontar diversos enunciadores

e locutores presentes nos enunciados, Ducrot não se preocupa em entender as relações

de dominação ou independência que estes sujeitos estabelecem entre si.

Tomando essas diferenças como base, pretendemos adotar a teoria polifônica de

Bakhtin e fazê-la dialogar com o esquema de locutores e enunciadores apresentados por

Ducrot. Neste sentido, utilizaremos alguns elementos da teoria polifônica de Ducrot

somente na sistematização da análise de textos midiáticos por entendermos que essas

categorias são extremamente operacionais no nível lingüístico.

A apropriação de conceitos de Bakhtin e Ducrot exige uma vigilância conceitual

que evite fazermos confusão quanto aos pressupostos teóricos desses dois

pesquisadores. O diálogo empreendido entre eles pretende mostrar saídas para a

localização das vozes discursivas do texto – por meio das categorias de sujeitos de

Ducrot – sem, no entanto, perder a historicidade presente em Bakhtin. Assim, tendo

como principal foco os pontos de enunciação ou de vista assumidos pelo discurso,

pretendemos entender como esses se relacionam à sua historicidade.

A questão dos pontos de vista remete ao próprio espaço que o sujeito do discurso

recebe na AD. Como descentrado e disperso (FOUCAULT, 1972), esse se move entre

diferentes posições de sujeito, lugares que são determinados externamente ao discurso

por meio de determinações históricas, culturais e sociais. Esses lugares em que o sujeito

de coloca são denominados formações discursivas e o externo que os determina se refere

às formações ideológicas, conforme explicitaremos mais adiante.

Ao estudar as relações entre ideologia e discurso, Michel Pêcheux reelaborou no

contexto da AD os conceitos de formação discursiva de Foucault e de ideologia de

Althusser. A formação discursiva é definida por ele como

aquilo que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de um arenga de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc) a

partir de uma posição dada na conjuntura social (PECHEUX apud BARONAS, 2004, p.56).

A formação discursiva é responsável por interpelar o sujeito e fazê-lo assumir

lugares determinados. No seu conjunto, várias formações discursivas constituem uma

formação ideológica, que é:

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[...] um elemento [...] suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de

uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras (PECHEUX; FUCHS, 1997, p.166).

A presença de formações discursivas em determinado discurso não pode ser

entendida como algo homogêneo e fechado. Ao contrário, esse elemento se caracteriza

por ser heterogêneo, um espaço aberto relacionado ao interdiscurso. Essa concepção é

elaborada por Pêcheux e outros teóricos na década de 70:

Uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, já que ela é constitutivamente ‘invadida’ por elementos provenientes de outros lugares (i.e., de outras formações discursivas) que nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo sob a forma de ‘pré-construídos’ e de ‘discursos transversos’) (PECHEUX

apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.241) (grifos do autor).

Neste espaço interdiscursivo, o discurso é atravessado pela confluência de

diversas formações discursivas que remetem a formações ideológicas específicas. Por

meio da análise de efeitos de sentidos de monofonia ou polifonia do discurso, poderíamos

entender como se dá essa relação entre FDs e as diferentes vozes que estas reportam.

4. A operacionalização da análise

O corpus de análise detém-se em reportagens de setembro de 2010 (Quanto

custa ser feliz) e fevereiro de 2011 (A cura do envelhecimento). Essas matérias mostram

as descobertas mais recentes da ciência referentes a duas situações buscadas pelo ser

humano: a felicidade (setembro de 2010) e a cura do envelhecimento (fevereiro de

2011). As duas matérias contêm, respectivamente, oito e dez páginas, com texto, fotos,

ilustrações e quadros com textos secundários exteriores ao texto principal e que

remetem a outras pesquisas sobre o tema da reportagem. Entendemos que a

reportagem produz sentidos com a reunião destes três elementos (fotos, quadros e

texto), mas nosso recorte de análise deteve-se apenas na análise do texto da

reportagem.

Dividiu-se a análise em três etapas, descritas a seguir: 1) localização dos

locutores e enunciadores presentes no corpus; 2) descrição das formações ideológicas de

que se originam as posições de enunciação (enunciadores) encontradas e 3) localização

das formações discursivas que compõem o discurso da revista.

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A primeira etapa da análise utilizou a distinção operacional entre locutores e

enunciadores proposta por Ducrot (1987). Como visto anteriormente, essas categorias se

referem ao nível discursivo e excluem o sujeito exterior ao texto. Esses conceitos

aparecem esquematizados abaixo:

Locutor: responsável pelo enunciado e por conduzir a narrativa. Enunciador: ponto de vista em que são apresentados os acontecimentos.

Primeiramente, lemos as reportagens do corpus e localizamos os seus locutores.

Para uma melhor organização, os locutores foram numerados (exemplo: L1) e colocados

em tabelas específicas, referentes à reportagem em que se encontram. Num segundo

momento, fizemos nova leitura do material para localizar os pontos de vista que esses

locutores assumem e, assim, mostrar os enunciadores do discurso. Cada reportagem

suscitou a localização de enunciadores específicos, os quais também foram enumerados e

caracterizados. Optamos por numerar os enunciadores sequencialmente. Assim, supondo

que a primeira reportagem analisada refere-se aos enunciadores E1 e E2, E3, a segunda

possui na sequência os enunciadores E4, E5.

Após localizar os locutores e enunciadores das reportagens, nos focamos na

análise da segunda categoria por representar um nível de polifonia mais forte em relação

ao nível dos locutores (BRANDÃO, 2004). Segundo entendemos, a análise dos pontos de

enunciação que o discurso deixa ver traria respostas mais concretas sobre os efeitos de

sentido adotados por ele.

Conformadas por meio de inscrições culturais, sociais e históricas (DUCROT,

1987), as posições de enunciação podem ser associadas ao conceito de formações

ideológicas da AD. Assim, numa segunda etapa de análise, optamos por descrever as

formações ideológicas de que se originam as posições de enunciação encontradas no

corpus.

Na terceira etapa de análise, nos detivemos na materialização dessas formações

ideológicas no discurso da revista, por meio da localização das formações discursivas que

compõem o corpus. A relação entre formações ideológicas e discursivas foi baseada no

aporte teórico da AD. Para executar essa etapa, realizamos novamente a leitura do

material, no qual marcamos as FDs que apareciam. Após reconhecê-las, as descrevemos

individualmente. Para finalizar, nos detivemos na análise das relações construídas pelas

FDs e a interação que elas mantêm com a FD de ciência no discurso da revista. Essas

relações ajudariam a conformar a identidade de ciência produzida na publicação e, para

suscitá-las, realizamos nova leitura das reportagens.

4.1 Sobre locutores e enunciadores

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A aplicação do esquema de locutores e enunciadores de Ducrot suscitou a

localização das vozes que compõem o discurso da revista. Essas estariam distribuídas

nessas duas categorias e demonstrariam a polifonia deste discurso. Na análise, localizou-

se um número bastante grande de locutores, os quais se dividem em pessoas comuns e

pesquisadores que investigam o tema proposto pela reportagem. Abaixo, citamos os

locutores da matéria de setembro de 2010:

Quadro 2: locutores da reportagem de setembro de 2010

Diferentemente da matéria de setembro, os locutores da matéria de fevereiro de

2011 não se referem a pessoas comuns e sim ocorrem somente como vozes de

pesquisadores e escritores que se ocupam do tema da reportagem. Na tabela abaixo,

mostramos os locutores dessa matéria:

Quadro 3: locutores da reportagem de fevereiro de 2011

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Apesar da diversidade de fontes consultadas para a composição das matérias, na

análise encontraram-se apenas dois enunciadores para cada reportagem. Como visto

anteriormente, esses sujeitos referem-se aos pontos de vista defendidos pelos locutores.

Na reportagem de setembro, os enunciadores são os seguintes:

E1: a felicidade estaria relacionada a pequenos prazeres, o que é comprovado pela

minha experiência pessoal (L2, L1, L5, L11, L12) e

E2: a felicidade está relacionada a pequenos prazeres, o que é comprovado pela ciência

(L3, L4, L6, L7, L8, L9, L10, L13).

Mesmo utilizando argumentos diferentes para afirmar que a felicidade encontra-se

nas pequenas coisas, essas duas posições de enunciação se complementam. Filiadas aos

mesmos interesses, pessoas comuns e pesquisadores se colocam contra o consumo

excessivo e entendem que o consumo relacionado a pequenos prazeres seria o caminho

para a felicidade. Enquanto E2 entende as pesquisas científicas como resposta para a

busca da felicidade, E1 apóia-se no senso comum e experiências pessoais para afirmar

que a tese da ciência está certa. Essa diferenciação entre posições de enunciação (e a

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sua semelhança ao chegar à mesma conclusão) pode ser exemplificada pelos trechos

abaixo:

E1 [senso comum]: “É legal entrar em uma loja sem olhar o preço, mas no final das contas o que me faz melhor hoje é passar tempo com as

pessoas de que gosto” (Quanto custa ser feliz. Galileu, n.230, p.42). E2 [ciência]: “A relação entre felicidade e pequenos prazeres é três vezes maior do que entre felicidade e riqueza”, diz o psicólogo Jordi Quoidbach, que conduziu o estudo (Quanto custa ser feliz. Galileu,

n.230, p.43).

A relação entre essas duas posições de enunciação produz um dizer que entende

as pesquisas científicas como resposta para o caminho da felicidade, pois ela é

responsável por propor essa nova relação com o dinheiro. Neste contexto, as pessoas

comuns inseridas no discurso não representam um ponto de vista divergente ao

científico, mas servem apenas como forma de exemplificar que a felicidade proposta pela

ciência é aplicável na vida real.

Na reportagem de fevereiro de 2011, encontraram-se os seguintes enunciadores:

E3: A ciência representa um avanço para o ser humano ao apontar novos tratamentos

para manter combater o envelhecimento (L1, L2, L3, L4, L5; L6; L7; L8) e

E4: A procura pela cura do envelhecimento não resolveria todos os problemas do homem

(L9; L10; L11; L12)

Esses enunciadores se configuram como oposições: enquanto E3 acredita na

ciência como modo de melhorar a qualidade de vida do ser humano, E4 coloca-se numa

posição de precaução quanto a esses resultados científicos e suas promessas de melhorar

a qualidade de vida. Apesar dos confrontos entre essas duas posições de enunciação,

ambas se originam de locutores da ciência. Essa abordagem permite que pensemos o

discurso da revista Galileu disposto a mostrar as discordâncias entre a comunidade

científica, a qual se compõe numa heterogeneidade de opiniões.

Ainda assim, a apresentação da ciência como solução aparece claramente no

fechamento da matéria, em que o repórter (L1) se posiciona favorável às pesquisas

científicas que procuram a cura do envelhecimento.

4.2 A localização das formações ideológicas

As posições de enunciação encontradas nas matérias analisadas se referem a duas

formações ideológicas: a formação ideológica da modernidade e a formação ideológica da

pós-modernidade.

A formação ideológica da modernidade entende a ciência como saber capaz de

fazer proposições absolutas e de descobrir todas as verdades do mundo. O pensamento

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

progressista e otimista da modernidade entendia o saber científico como valor supremo e

verdade absoluta. Neste período, segundo Hilton Japiassú (1982), a ciência reduziu a

natureza a um sistema possível de ser captado por leis científicas. Assim, por meio do

uso de métodos científicos, o homem era capaz de controlá-la.

A configuração desta FI encontra-se presente na reportagem de setembro de

2010 quando esta se refere à ciência como poder capaz de indicar, propor, mostrar, etc.

quais são os meios de se chegar à felicidade. A ausência de estudos que indiquem

resultados contrários ao que está sendo imposto pelo ponto de vista (E2) também se

relaciona à imagem da ciência como única verdade.

O determinismo da formação ideológica da modernidade pode ser claramente

observado em alguns trechos da reportagem de setembro em que a ciência tem o poder

de mostrar às pessoas o único jeito de conseguir ser feliz. Essa perspectiva acaba por

colocar a culpa de não ser feliz no indivíduo, pois, se ele não o é, é porque não se focou

nas coisas certas (indicadas pela ciência):

Por outro lado, dinheiro não pode ser vilão – desde que se saiba gastá-lo

seguindo os passos dos cientistas (Quanto custa ser feliz. Galileu, n.230, p.47) (grifos nossos).

Na reportagem de fevereiro, a formação ideológica da modernidade ocorre, por

exemplo, quando se propõem todos os avanços que a ciência está descobrindo para

combater o envelhecimento. O enunciador E3 posiciona a ciência como determinadora do

modo como o ser humano vai envelhecer.

A segunda formação ideológica localizada relaciona-se à posição de enunciação

que tem a ciência como apenas uma das soluções para os problemas humanos. Surgida

na pós-modernidade, em que há a falência do projeto de modernidade e das grandes

narrativas, essa FI posiciona a ciência como uma das respostas entre inúmeras outras

possíveis. No corpus, essa formação confronta a formação discursiva da modernidade ao

relativizar a capacidade da ciência resolver os dilemas humanos. Veja no seguinte

trecho:

Mesmo que a medicina conseguisse fazer com que as pessoas tivessem saúde e disposição para trabalhar até os 100, provavelmente não haveria

mercado para todos. Com uma superpopulação de idosos, a previdência social certamente iria quebrar (A cura do envelhecimento. Galileu, n.235, p.43)

4.3 Formações discursivas que compõem a revista

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No corpus, a materialização das posições ideológicas da modernidade e da pós-

modernidade ocorre por meio das seguintes formações discursivas:

FD ciência: explicações das pesquisas científicas e discurso de pesquisadores.

FD senso comum: experiências de vida, depoimentos de pessoas comuns.

FD consumo simbólico: consumo não excessivo focado em pequenos prazeres.

FD da saúde: explicações concernentes à medicina e saúde.

FD do planejamento público: preocupações sociais e culturais quanto ao planejamento

populacional.

As FDs de ciência, do senso comum, do consumo simbólico e da saúde

estabelecem uma relação de complementaridade e de explicação. A FD da ciência explica

o modo como as pesquisas científicas foram conduzidas e os seus resultados

estabelecendo uma relação de justificação à FD do consumo simbólico e de explicação à

FD do senso comum. A relação entre a FD da ciência e a FD de saúde é também de

complementação, em que a primeira mostra pesquisas científicas que procuram

aprimorar a saúde do homem. Por último, as FDs de saúde e de ciência e a FD de

planejamento público apresentam uma relação de oposição, pois as descobertas

científicas não auxiliariam na questão da previdência social, por exemplo.

Figura 2: Relações entre as formações discursivas

A FD de ciência aparece no corpus por meio de marcas pertencentes ao universo

da ciência, mas que sofreram um processo de vulgarização pelo jornalismo. Essa FD

ocorre na reportagem de setembro ao trazer o ponto de vista biológico para explicar que

dinheiro traz felicidade, mas não tanto quanto imaginamos e na reportagem de fevereiro

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ao mostrar o modo como alguns cientistas esperam retardar o envelhecimento. Assim,

são descritos o funcionamento do corpo humano (o processamento da felicidade no

cérebro) e o modo como as pesquisas científicas foram conduzidas (a metodologia).

A opção de explicar os processos biológicos que ocorrem no nosso cérebro e de

expor a metodologia dos estudos científicos pretende trazer credibilidade à ciência e atua

como forma de convencer o leitor de que aqueles resultados são verdadeiros. Assim

também atuam elementos no texto que procuram evidenciar ora a atualidade das

pesquisas ora a qualidade dessas pesquisas, ao invocar o passado clássico destes

estudos. Assim, respectivamente, aparecem trechos como Estudos recentes, a nova

ciência da felicidade e estudo clássico da década de 1970.

Apesar de se constituir num espaço fora dos laboratórios, a formação discursiva

do senso comum não apresenta oposições/contradições à FD da ciência. Na matéria de

setembro, ela está presente no texto principalmente como forma de comprovar e

mostrar que a verdade científica descoberta nos estudos encontra-se aplicável na vida

real, ou seja, não é um resultado distante do cotidiano do leitor. Essa relação de

complementaridade entre essas FDs é apenas colocada em cheque com um pequeno

trecho da matéria:

Mayara concluiu, sozinha, o que os pesquisadores estão tentando nos mostrar (Quanto custa ser feliz. Galileu, n.230, p.42)

Este trecho deixa ver uma possível tensão entre a FD do senso comum e FD da

ciência, pois Mayara (representando o senso comum) parece ter descoberto o caminho

para a felicidade antes da ciência. No entanto, essa relação de tensão entre as FDs é

pouco explorada no restante da matéria, a qual dá mais espaço para a FD da ciência

explicar o porquê da felicidade estar nas pequenas coisas e comprovar essa colocação

por meio de testes em laboratórios.

A relação de oposição entre FDs somente se encontra presente na reportagem

sobre envelhecimento, de fevereiro de 2011. Nela, a FD de planejamento público se

contrapõe à FD de ciência e de saúde. Enquanto a FD de ciência mostra os benefícios

para a saúde das novas pesquisas científicas sobre envelhecimento, a FD de

planejamento duvida das eficiências dessas pesquisas para resolver problemas sociais e

culturais do homem. Embora apareça timidamente, essa relação de oposição entre FDs

demonstra uma possível abertura para discussão das vantagens e desvantagens das

pesquisas científicas para o ser humano.

5. Considerações finais

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A utilização de um corpus reduzido de apenas duas reportagens serviu para

exemplificar os aportes teórico-metodológicos que pretendem ser seguidos por essa

pesquisa. A partir das colocações da banca examinadora, pretendemos estender o corpus

de pesquisa e verificar se esse resultado preliminar se confirma em outras reportagens

da revista Galileu.

De acordo com a metodologia aplicada, pode-se suscitar uma série de pontos

concernentes à polifonia na Galileu que merecem ser discutidos. Primeiramente, segundo

nos mostra a análise, a presença de muitos locutores necessariamente não se refere a

uma identidade aberta de ciência em que suas questões são discutidas, pois esses

podem representar o mesmo ponto de vista. Essa situação ocorre em ambas as

reportagens analisadas, em que os locutores ocupam lugares que remetem, em sua

maioria, à formação ideológica da modernidade.

Como segundo ponto, destaca-se que a presença de diversos enunciadores

também não remete necessariamente à polifonia. Como nos mostra a análise da

reportagem de setembro, E1 e E2 não se contrapõem apesar de serem distintos e de

serem assumidos por locutores de lugares diferentes (a comunidade científica e o senso

comum). Outra questão colocada se refere a enunciadores assumidos por locutores que

advém de lugares semelhantes. Embora derivem da mesma comunidade (a científica), E3

e E4 se contrapõem, o que nos mostra que o discurso dos cientistas também é composto

por heterogeneidades.

Essas colocações nos permitem ampliar a questão da polifonia e abordar as

formações ideológicas como possível escolha para compreender a configuração dessas

vozes que perpassam o discurso. A discursividade de Galileu é construída numa

confluência de vozes relacionadas às FIs da modernidade e da pós-modernidade. No

entanto, ao abordar a dimensão política que essas vozes devem assumir para que se

tenha uma polifonia bakhtiniana, entendemos que esse discurso não é considerado

polifônico devido à ausência de equipolência, imiscibilidade e plenivalência entre as vozes

(enunciadores), as quais se complementam e dificilmente se contrapõem.

Ainda há a predominância no discurso da revista de vozes relacionadas à

formação ideológica da modernidade. Esse predomínio pode ser observado quando

analisamos as relações que as formações discursivas estabelecem com a formação

discursiva de ciência. A revista posiciona a FD de ciência como capaz de trazer respostas

úteis para o homem e, por isso, coloca-a para explicar e complementar as outras FDs, as

quais não estabelecem oposição.

Referências bibliográficas

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