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A PROFECIA DAS PEDRAS Flavia Bujor ISBN 85-7479-559-3 "Amo quem sonha com o impossível." Goethe

A profecia das pedras

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Page 1: A profecia das pedras

A PROFECIA DAS PEDRAS Flavia Bujor

ISBN 85-7479-559-3

"Amo quem sonha com o impossível."

Goethe

Page 2: A profecia das pedras

1 O velho releu o trecho de A Profecia e preocupado balançou a

cabeça.

— Breve, muito em breve — murmurou. Levantou-se da cadeira

com dificuldade e virou-se. O duque de Divulyon estava diante dele, com um

ar preocupado.

— E então? — perguntou.

O velho suspirou profundamente. Parecia estar no limite de suas

forças. Inúmeras rugas cruzavam seu rosto. Mantinha-se de pé com

dificuldade, a coluna curvada e as pernas trêmulas. Deixou-se cair em uma

poltrona e disse com voz fraca:

— Não posso mudar nada. Ela seguirá seu destino.

O duque, cuja angústia era perceptível, elevou o tom da voz:

— Theodon, você é sábio, dedicou toda a sua vida a compreender A

Profecia. Você ajudou meu pai. Ajudou a mim. Você me aconselhou, me

apoiou. Não me abandone agora! É preciso que ela viva. É preciso que ela

vença, aconteça o que acontecer. Ela é tão jovem. E pensar que em

breve... O que posso fazer para protegê-la, Theodon?

O velho mergulhou a cabeça entre as mãos e, após um longo

silêncio, respondeu:

— Eu a amo tanto quanto você. Vi essa menina crescer, apeguei-

me a ela, mesmo sabendo que não devia. Mas ela não escapará à Profecia.

Acredite, se eu pudesse ajudá-la, teria sido o primeiro a fazê-lo. Você me

pergunta como protegê-la, mas sabe que não pode fazê-lo, tente

compreender isso. Tudo o que você tem a fazer é entregar-lhe, amanhã,

o que pertence a ela. Agora vá e aproveite os últimos momentos para ficar

com ela.

Resignado, o duque murmurou:

— Esses catorze anos passaram tão depressa. Em seguida, saiu do

quarto.

O velho olhou para as chamas crepitantes na lareira. A Profecia se

cumpriria. Era questão de poucos dias. Ele tinha esperado por esse

momento, tinha aguardado impacientemente por ele. Em breve, todas as

suas perguntas encontrariam uma resposta. Sentiu um calafrio. Tinha sido

Page 3: A profecia das pedras

muito estúpido em se afeiçoar à menina. Devia ter evitado isso. A Profecia

tinha tomado outro sentido: em suas páginas obscuras, onde ele havia

procurado tanto ler o futuro e compreender o que estava anunciado de modo

confuso, ele só via o destino de Jade.

Jade estava largada sobre sua cama. Tinha um livro nas mãos,

mas estava agitada demais para ler. Seu olhar se perdia no vazio. De

repente, escutou alguém bater. Pulou da cama e gritou:

— Entre!

Um empregado entreabriu a porta e anunciou:

— Seu pai deseja vê-la. Pode recebê-lo agora?

Espantada com a visita, tão incomum àquela hora do dia,

concordou. O empregado saiu.

Jade alisou seus longos cabelos negros e, depois, jogou-os para

trás. Olhou-se no espelho e pareceu satisfeita. Seu sorriso deixava entrever

os dentes ligeiramente separados. Seus cílios talvez fossem um pouco

espessos demais e ela estava sempre brigando com algumas mechas

rebeldes. Quando ficava nervosa (o que acontecia com alguma freqüência),

sua pele ficava ruborizada e ela perdia o ar afetado que ostentava na maior

parte do tempo. Mas sabia que era bonita, alta, esguia e elegante. Era uma

menina segura de si. O que ela queria, ela sabia que iria conseguir.

Enquanto ela sorria para o espelho, seu pai entrou no quarto. Jade

foi ao seu encontro e ele a abraçou, com um carinho com o qual ela não

estava acostumada. Embora amasse a menina, o duque não costumava

mostrar seus sentimentos de maneira tão expansiva. Possuía uma fleuma

natural e dava mostras de seu sangue frio a toda hora. Portanto, naquele

dia, alguma coisa tinha acontecido para que seu comportamento se alterasse

de tal maneira. Afrouxou o abraço, mas ainda ficou um momento olhando

para Jade, sem dizer nada. Admirou mais uma vez os olhos verdes da

menina, de uma intensidade impressionante. "Ela é corajosa e determinada,

disse para si próprio, e tem uma personalidade forte." Sua fisionomia traía

seu caráter: era possível ler em seu rosto que era uma menina orgulhosa,

decidida, mas também mimada e teimosa. O duque não se atrevia a deixar

de olhar para o rosto de Jade, nem a pronunciar qualquer palavra.

Foi ela quem interrompeu o silêncio.

— Algum problema, papai? Você não tem que fechar um negócio,

Page 4: A profecia das pedras

ler uma tonelada de documentos, ou fazer mil outros trabalhos, como todo

dia? Deve ter acontecido alguma coisa muito séria para você não estar

trabalhando. Fiz alguma coisa errada?

Jade pronunciou as últimas palavras com uma inocência um tanto

fingida. O duque respondeu, tentando disfarçar:

— Claro que não, não aconteceu nada. Estou com um tempo livre,

só isso. Sei que isso não é comum, mas, como você pode ver, às vezes

acontece. Então, como você está?

Jade respondeu, muito excitada:

— O dia da festa está quase chegando. Vai ser absolutamente

maravilhosa! Ainda não sei se vou vestir o vestido de seda lilás ou o de cetim

branco. Encomendei um terceiro, magnífico, no condado de Tyrel. Se chegar

a tempo, vou usá-lo. Estou ansiosa para o dia chegar. Em vez de contar

os dias, estou contando as horas, até os minutos. Já dei as ordens sobre a

decoração da sala, os pratos, os músicos. Adorei organizar tudo sozinha! E

chamei músicos de uma cidade vizinha.

Jade continuou a falar, mas seu pai não escutava mais nada. "Ela

é tão despreocupada", não conseguia deixar de pensar, "não conhece o

perigo, nem a dor. Não conseguirá sobreviver." Mas logo se censurou por não

confiar o suficiente na menina e tentou concentrar-se no que ela dizia.

— Vai ser grandiosa, maravilhosa, fora do comum! Mal consigo

imaginar. Ainda não resolvi se vou servir o sorvete antes ou depois dos

doces. Melhor antes, não é? E também não sei se a baronesa de Carolynt

virá. Parece que ela andou febril. É a única que ainda não confirmou a

presença. Também, não ligo muito, ela é meio chata.

— Jade, você sabe o que é o medo?

A menina parou, surpresa e impaciente. Por que o pai a

interrompia, e ainda mais com uma pergunta tão sem cabimento? Será que

ele não se animava com a festa? Jade respondeu, irritada:

— Medo? Medo de quê? Nunca tive medo, é um sentimento que

desprezo. Só os fracos e os covardes têm medo. Por que a pergunta, papai?

Jade parou. Acabara de perceber que o duque estava pálido. Como

não tinha observado antes que ele tinha a fisionomia abatida, olheiras e

olhos vermelhos? E, sobretudo, aquela expressão transtornada? Alguma

coisa estava acontecendo. Seria um negócio mal-sucedido?

Page 5: A profecia das pedras

— Se só os fracos e os covardes têm medo, então eu sou fraco e

covarde — disse o duque. "Afinal, que importância teria isso agora?",

pensou.

— Que idéia, papai! Você é respeitado e admirado por todo mundo,

e não é para menos. Você é o duque de Divulyon!

Jade voltou a se animar e seus olhos verdes brilharam:

— Posso até acreditar que você esteja preocupado com os negócios,

mas com medo não! Se isso for uma piada, não tem a menor graça!

O duque não respondeu. O ânimo de Jade voltou e ela disse com

seriedade:

— E agora, papai, quero saber por que você não está dando a

menor importância para o meu aniversário. Já está chegando. Daqui a

poucos dias farei catorze anos!

— Engano seu, Jade. Eu me preocupo muito com o seu

aniversário. Mas...

O duque mordeu a língua. Já tinha falado demais. Ela não deveria

saber de nada antes da hora. Com medo de trair-se e acabar dando

explicações demais, o duque saiu bruscamente. Subiu para seu quarto e

começou a andar de um lado para o outro. A cada segundo lembrava-se do

momento em que ele deveria contar tudo à menina.

Jade ficou pensativa. O comportamento de seu pai era muito

estranho. Refletiu um pouco e, depois, deu de ombros, decidindo que aquilo

nada tinha a ver com ela. Concentrou-se nos preparativos da festa e logo um

sorriso voltou ao seu rosto.

Page 6: A profecia das pedras

2 Âmbar estava sentada na relva. Como sempre, sonhava de olhos

abertos enquanto observava os carneiros dos quais deveria cuidar. Outras

imagens ocupavam seus pensamentos. Imaginava que vivia bem perto do sol

e de seu calor aconchegante, que conversava com as nuvens e com os

pássaros. O vento a carregava em maravilhosas viagens. À noite,

deslumbrava-se com o cintilar de estrelas que podia tocar com a mão, e...

— Binha! Binha!

Voltou bruscamente à realidade. Havia se esquecido de que não

precisava cuidar só dos carneiros, mas também de um de seus irmãozinhos.

O menino estava tranqüilamente deitado sob uma árvore e gritava a plenos

pulmões:

— Binha! Vamos! Não tenho nada para fazer! Ninguém a chamava

de Âmbar. Sempre fora Binha. Sem dúvida, seu verdadeiro nome era

pretensioso demais para uma camponesa. Ficaria melhor numa filha de

nobres, em alguém de um outro mundo que não aquele. Sempre se

perguntava por qual motivo seus pais decidiram chamá-la assim. Jamais

encontrara uma resposta satisfatória, mas gostava do nome por sua

originalidade, seu perfume de mistério. Parecia guardar um segredo.

— Binha! Binha! Anda, vem!

Âmbar levantou-se e foi até onde estava o irmão. Sentou-se ao lado

dele, à sombra da árvore.

—Algum problema? — perguntou, com sua voz tranqüilizadora.

O problema é que não tenho nada para fazer! Me conta uma

história?

Âmbar sorriu e fez um carinho no rosto do menino.

— Pode ser. Mas não agora.

— Por quê?

— Quero ficar sozinha, sem falar nada, e escutar o silêncio.

— Eu quero uma história! Você sempre diz isso! — o menino pegou

o braço de Âmbar. — Por favor, Binha! — insistiu.

Ela o despenteou carinhosamente, libertou-se de seus braços e

deu-lhe um beijo na bochecha.

— Mais tarde. Prometo — disse ela. — Agora, vou deixá-lo aqui.

Page 7: A profecia das pedras

Não gosto de sombra. Vou voltar para o sol.

— Mas lá está quente demais! Como é que você agüenta esse calor?

— Eu adoro. Só isso.

Âmbar voltou para o meio do prado e deixou-se cair sobre a relva.

Ninguém desejaria sair de casa com um tempo daqueles. O calor era

escaldante e o ar queimava. O céu estava azul demais, puro demais, nem

uma única nuvem se via no horizonte. Os raios de sol inundavam de luz o

rosto de Âmbar. Ela adorava senti-los acariciar sua pele, e gostava daquele

calor que diziam ser insuportável. Na aldeia, todos rezavam para que a

canícula passasse logo, para que não começasse um período de seca. Mas,

se dependesse da vontade de Âmbar, o calor seria eterno.

Um vulto despontou na estrada. Âmbar virou-se para olhar. Um

menino vinha correndo até ela. Atravessou o pasto, esbaforido e, já no limite

de suas forças, parou diante dela. Âmbar o conhecia bem, eram amigos

desde crianças. Sorriu para ele.

Mas o menino a olhou com tristeza. Ela estava tão serena. Seus

cabelos, entre o louro e o ruivo, tão dourados quanto o sol, emolduravam o

rosto de pele clara e traços harmoniosos. Os olhos, cor de mel, onde se podia

notar um toque de verde, davam a seu olhar uma doçura e uma placidez

inatas.

Quase sem fôlego, o menino falou:

— Binha, você tem que correr. Deixe que eu fico com seu irmão e

tomo conta dos carneiros, mas vá depressa! Sua mãe... ela está muito mal.

Âmbar pensou que seu coração iria parar de bater. Tudo

desmoronou à sua volta. Sua vista ficou turva. Sentiu medo. Sentiu frio,

apesar do sol escaldante. Não conseguia respirar.

— Ande, Binha! Não perca tempo! Corra!

Parecia que a voz dele vinha de muito longe. A cabeça de Âmbar

rodava, o mundo inteiro balançava. Mas logo se recuperou. Era preciso

chegar a casa antes que fosse tarde demais. Levantou-se de um salto e pôs-

se a correr. Depressa. Mais depressa. As lágrimas toldavam sua visão e

inundavam seu rosto, mas ela nem percebia. Agora, só uma coisa importava:

impedir o inevitável, a morte de sua mãe. Não podia ser! Havia semanas,

meses, que sua mãe estava muito doente e sofrendo muito. Não existia

remédio para aquilo. Mas ela não podia morrer! Âmbar continuava sua

Page 8: A profecia das pedras

corrida desenfreada contra a morte. Já podia ver a aldeia ao longe. Corria,

corria, sem ter consciência do cansaço, do esgotamento de suas forças. Por

fim, chegou à praça, depois chegou diante da casa. Empurrou a porta,

entrou no único cômodo, escuro e silencioso, e precipitou-se na direção da

mãe. Ajoelhou-se perto dela e apertou sua mão com todas as forças,

sentindo seu calor. Sua mãe estava deitada numa cama de palha, a única da

casa. Sua fisionomia exprimia um sofrimento indescritível e sua pele já

mostrava a palidez da morte. Ela gemia e parecia delirar. Com uma voz fraca

e trêmula, murmurou:

— Você está aqui, Âmbar. Você está aqui. Fez uma pausa, e

continuou:

— Só me restam poucos dias de vida. Então, terei cumprido minha

missão.

— Mamãe, não diga nada. Isso cansa você.

— Só mais alguns dias. Mas não vou conseguir. Estou doente

demais.

Âmbar tentou conter as lágrimas. Precisava mostrar-se forte, como

sempre. Apertou a mão de sua mãe novamente. Um profundo desespero

tomou conta dela.

— Mamãe, mamãe — não pôde evitar balbuciar. — Tudo vai dar

certo.

Esforçava-se para acreditar nas próprias palavras, queria

persuadir a si mesma. Sobretudo, queria crer que tudo aquilo não passava

de um pesadelo, que sua mãe se levantaria da cama de palha e abraçaria

seus irmãos e irmãs, como sempre. Mas não, o pesadelo já durava muito.

Âmbar tentava fugir da horrível verdade. Tinha o hábito de inventar para si

um mundo de sonho, sempre que aquele onde ela vivia ficava cruel demais.

Escondia-se ali, recusando o sofrimento. Mas sua imaginação era frágil, logo

se esvaía para dar lugar à realidade. Então, a dor ficava ainda mais intensa,

como que para se vingar de quem tentava negá-la.

— Âmbar, só preciso viver mais um pouco. Uns poucos

dias, só uns poucos dias. Estou perto do fim.

A voz vacilante fez Âmbar estremecer. Percebeu que seu rosto,

assim como o de sua mãe, estava molhado de lágrimas. A mulher gemia, já

quase resignada. Ela própria não queria se entregar às lágrimas. A menina

Page 9: A profecia das pedras

era dessas que lutam até o fim, mesmo quando não há mais esperança, nem

futuro no horizonte. Ela era assim, e continuava a buscar um clarão na

noite.

— Âmbar. Âmbar. Minha missão, Âmbar.

— Fique quieta, mamãe. Não fale mais nada. No seu estado, isso

cansa demais. Mas não se preocupe, você vai ficar boa. Isso não passa de

uma gripe. Amanhã, você vai se levantar. Vai ver só, o sol está brilhando. As

cerejas estão maduras. A relva está verde como nunca. Não há nenhuma

nuvem, o céu está tão azul. Vale a pena dar uma saída. Garanto, amanhã

você vai se sentir melhor.

Âmbar tinha a voz trêmula e mal conseguia reprimir os soluços.

— Só quero viver mais alguns dias. Depois, pouco me importa. Mas

tenho uma missão e ainda é cedo demais. Se eu morrer, quem fará o que

deve ser feito? Permanecer viva por mais alguns dias é uma obrigação para

mim. Mas sinto que não vou conseguir. Está além de minhas forças.

— Mamãe, fique calma. Descanse, por favor. É importante.

— Âmbar, me prometa uma coisa. Quando minha hora chegar,

prometa que vai acreditar em tudo o que eu disser. Mesmo se minhas

palavras forem as de uma doente enfraquecida... Prometa.

— Prometo tudo o que você quiser, mamãe, mas agora pare de

falar, isso vai deixar você esgotada.

Âmbar não tinha levado a sério uma só palavra de sua mãe.

Atribuía todas aquelas divagações à febre.

3 — Ficarei no lugar da tia-avó e cuidarei da menina. Ela é tão

fechada, tão solitária...

— Você tem razão. Ela não é normal. Não tem nenhuma amiga e

ninguém consegue adivinhar o que ela pensa.

— Ela jamais sorri, não é incrível? E aqueles olhos, sempre baixos.

Ela tem um jeito tão indiferente e intrigante que chega a ser perturbador.

— É mesmo. Ela tem alguma coisa de incomum, que me deixa

pouco à vontade.

Quando uma das mulheres mais velhas da aldeia se aproximou, as

Page 10: A profecia das pedras

duas comadres calaram a boca. Ninguém sabia sua idade, nem mesmo ela,

que não tinha mais a força nem a vontade de contar o tempo. Ninguém

ligava muito para o que ela dizia, achavam que não fazia o menor sentido. No

entanto, apesar das aparências, a velha continuava bem lúcida. Tinha as

costas curvadas, o rosto marcado com uma ruga para cada caminho que

havia atravessado, e cada um de seus passos lentos parecia lhe custar um

grande esforço.

Por um instante, ela parou perto das comadres. Era impossível que

tivesse escutado a conversa, porque elas tinham se calado quando a velha se

aproximou. As mulheres deram um sorriso falsamente cordial para saudá-la

e receberam em troca um olhar de desprezo. Então, a velha falou, com a voz

grave:

— Com certeza, Opala não é normal. Sim, ela é diferente. E fará

coisas que vocês nem sequer ousariam imaginar.

Depois, afastou-se lentamente. Embaraçadas, as duas comadres

perceberam, pela primeira vez, a dignidade e a vontade que animavam a tia-

bisavó de Opala.

Desde que se entendeu por gente, Opala sempre viveu com sua tia-

bisavó Eugênia e a filha dela, que tinha o mesmo nome. Para diferenciá-la da

mãe, chamavam-na de Gina. Opala jamais conhecera outra casa além da

rica mansão onde as três moravam. Gina, sua tia-avó, ainda era muito ativa,

apesar da idade. Estava sempre ocupada com a casa e com a educação de

Opala, e tinha ensinado à menina tudo o que sabia: Literatura e História.

Também lhe havia transmitido bons conhecimentos a respeito de plantas

medicinais. Opala era uma aluna séria e aplicada. Nunca se perguntava se

gostava de estudar. Seus gostos, seus sentimentos e suas idéias eram

indefinidos, até mesmo inexistentes. Vários rapazes a achavam bonita, mas

ela parecia feita de pedra, e sua indiferença esfriava rapidamente os ardores

que suscitava. Era bem magra, frágil, seu rosto parecia feito de porcelana e a

pele era branca como leite. Seus traços delicados acentuavam a impressão

de fragilidade. Os olhos eram grandes, de um azul muito claro, com toques

de cinza, e o olhar parecia sempre ausente. Os cabelos lhe caíam sobre os

ombros em grandes cachos, acentuando sua aparência evanescente. Eram

louros, mas cada mecha tinha um tom diferente: palha, mel, acinzentado...

Andava quase sempre de cabeça baixa, com os olhos grudados no chão. Não

Page 11: A profecia das pedras

era tímida, mas a companhia dos outros não a atraía. Ninguém gostava dela

de verdade e ela não gostava de verdade de ninguém. Apesar da atenção que

sempre recebera de Eugênia e de Gina, jamais tinha conhecido o calor

humano, nem a afeição verdadeira.

Opala procurava alguma coisa para desenhar. Estava sempre

desenhando. Tinha o traço claro e preciso, e tentava reproduzir

perfeitamente aquilo que via. Uma vez ouviu dizerem que a arte era um jeito

diferente de ver a realidade, mas aquilo não fazia o menor sentido para ela.

Gostava de reproduzir o que via e queria sempre se superar. A cada dia,

procurava modelos mais difíceis. Mas agora não conseguia encontrar nada

que lhe agradasse. Já tinha olhado cada canto de seu quarto. De repente,

teve uma idéia. Levantou-se e foi até o quarto de Gina. Embora tivesse

permissão de fazê-lo, nunca tinha entrado ali sozinha antes. Estremeceu.

Teve a impressão de estar cometendo um delito. "Isso é ridículo", pensou.

"Tenho o direito de estar aqui! Gina está na cidade mas, se estivesse aqui,

não me proibiria de entrar." Ainda assim, estava pouco à vontade. Sentou-se

na cama. Não faltavam objetos complicados para serem usados como

modelos. A dificuldade seria escolher um só, mas, no entanto, movida por

um estranho desejo, tentou abrir a gaveta da mesinha de cabeceira. Estava

trancada à chave. Opala ficou surpresa com o que estava fazendo. Nunca

havia sido curiosa. "Alguma coisa está acontecendo comigo", murmurou.

"Não consigo me controlar."

A sensação estranha a perseguia. "Esta gaveta...", pensou. Mas

parou imediatamente. Instintivamente, afastou o lençol e levantou o

travesseiro. Descobriu uma pequena chave, pegou-a e introduziu-a na

fechadura da mesinha de cabeceira. Parou um instante e respirou

profundamente. "O que estou fazendo?", perguntou a si mesma. Então,

rapidamente, abriu a gaveta.

A primeira coisa que viu foi um livro volumoso, cujo título, escrito

em letras douradas, era A Profecia. Uma das páginas, no meio do livro,

estava marcada. Abriu justamente naquela página e leu algumas linhas

antes de fechar o livro com um gesto seco. "Nada interessante", disse. Tentou

raciocinar: o que exatamente estava procurando? Continuou a examinar o

conteúdo da gaveta, quando sua atenção foi atraída por uma bolsinha de

veludo preto, cujos cordões desamarrou. "Tem alguma coisa aqui dentro.

Page 12: A profecia das pedras

Alguma coisa que me chama." Era um objeto liso e quente ao toque. Uma

sensação desconhecida apoderou-se de Opala: tinha a impressão de estar

em outro lugar. Tirou o objeto da bolsa e o examinou. Era uma pedra

preciosa, não muito grande, redonda. Sua cor era de um verde muito pálido,

de um tom frio e uniforme. Opala segurou-a. "Não é uma pedra", murmurou.

"E alguma outra coisa diferente, poderosa. Uma mensagem." Não sabia de

onde lhe vinha essa certeza, mas sentia que estava perto da verdade.

Entrara num estado alterado de consciência, como se estivesse enfeitiçada.

Não via mais nada ao seu redor. Parecia haver uma ligação quase palpável

entre ela e a pedra. Ela queria dizer-lhe alguma coisa. Opala a apertou com

mais força. Sentiu que a pedra esfriava e que sua superfície tornava-se

áspera. Subitamente, sentiu um vazio imenso, uma intensa melancolia. A

pedra ficara gelada em poucos segundos. Trêmula, Opala foi obrigada a

largá-la. A comunicação que ela acreditava ter acontecido fora bruscamente

cortada. Levou a mão à testa. Estava quente. "Eu jamais deveria ter aberto

essa gaveta", censurou-se. "Não devia ter encontrado essa pedra." Ela sabia

disso, podia sentir. Apressadamente, recolocou a pedra na bolsa e a devolveu

a seu esconderijo original. Pegou o livro, que tinha ficado sobre a cama, e

arrumou-o em seu lugar. Trancou a gaveta e devolveu a chave para debaixo

do travesseiro. Arrumou cuidadosamente os lençóis. Foi o tempo exato.

Gina, sua tia-avó, acabava de entrar no quarto.

— Está tudo bem, Opala? Você está tão pálida!

— Tudo bem. Só estava procurando alguma coisa para desenhar —

respondeu a menina.

Apesar de seus esforços para parecer descontraída, sua voz

deixava perceber sua perturbação.

No exato momento em que Opala tocou a pedra, ele sentiu um

violento sobressalto. Um ricto deformou sua fisionomia malévola. E,

imediatamente, ele convocou o Conselho dos Doze por telepatia. Os membros

já se encontravam na grande sala de reuniões. A sua aproximação, todos

baixaram os olhos, temerosos. Com voz glacial, ele disse:

— Enfim, aconteceu o que já tínhamos desistido de esperar.

Interceptei alguma coisa muito interessante.

Page 13: A profecia das pedras

Os doze membros do Conselho logo adivinharam do que se tratava.

A satisfação era perceptível em seus rostos. Um deles perguntou:

— Não seria o caso de ordenar que os cavaleiros da Ordem a

tragam logo?

— Não — respondeu ele, com voz autoritária. — Tenho uma idéia

melhor.

— De qual delas se trata? — perguntou, curioso, outro membro do

Conselho.

— Da terceira. Talvez a mais perigosa. Possui tremendos poderes,

ainda adormecidos. Pude percebê-los quando entrou em contato com sua

pedra. Para nossa sorte, ainda é cedo demais para ela. Mais alguns dias e

teríamos perdido a vantagem!

— De qual pedra está falando? — perguntou outro membro do

Conselho.

—Da opala, a mais pura das três. Mas agora que já sei tudo sobre

ela, é também a mais frágil.

Paris, 2002 Dr. Arnon tirou os óculos e fez sinal à enfermeira para aproximar-

se:

— Parece até que está dormindo, não acha?

Ele apontou para o leito, onde uma pessoa encolhida definhava.

Parecia mergulhada num sono profundo, mas seu rosto tinha um tom

acinzentado.

— Não lhe resta muito tempo de vida — acrescentou o médico. —

Na minha opinião, só mais uns poucos dias. Você não se apegou a ela,

espero.

A enfermeira deu de ombros, com um gesto fatalista.

— Não muito. E, depois, ela já sofreu tanto...

O médico ficou em silêncio por um instante. Limpou

cuidadosamente as lentes dos óculos antes de falar:

— De qualquer maneira, não podemos mais ajudá-la. Depois da

morte de seus pais, ela desistiu definitivamente de lutar.

— Ela não tem mais ninguém da família?

Page 14: A profecia das pedras

— Nem irmãos, nem irmãs — respondeu. — Tem apenas um tio,

que é agora seu tutor legal. Mas ele mal a conhece. É quem paga o

tratamento, com o dinheiro que os pais lhe deixaram.

— A família é rica? — perguntou a enfermeira.

— É. Mas o dinheiro não poderá salvá-la.

— E esse tio, nunca vem vê-la?

— Não — respondeu o médico lentamente. — Ninguém nunca vem

vê-la.

Calaram-se. A enfermeira observou a figura frágil sobre o leito. Não

devia se afeiçoar a ninguém tão próximo do fim. Desviou o olhar.

O Dr. Arnon lhe disse, suavemente:

— Você já deve ter visto muitas histórias tristes. E, acredite, ainda

vai ver muitas mais.

— Eu sei.

— Então, vamos, esqueça isso. Que tal um café?

A enfermeira aquiesceu. Sem um olhar, deixou o quarto e fechou a

porta atrás de si. No quarto, ouvia-se apenas o som dos aparelhos que

mantinham a doente viva.

4 Jade estava magnífica em seu vestido verde-azulado, feito sob

medida no condado de Tyrel. Seus olhos verdes tinham um brilho especial e

um sorriso iluminava seu rosto. Desfilava pelo salão, como uma rainha entre

seus súditos. Todos os olhares concentravam-se nela, a estrela da festa.

Adorava essa sensação. Dançava, conversava com os convidados, ria

despreocupada. A festa parecia ainda melhor do que tinha imaginado. A

comida estava deliciosa, a decoração era suntuosa e o luxo, impressionante.

"Isso é a felicidade", pensava Jade.

Cada minuto que sua mãe ganhava da morte era um pequeno

milagre. Contra todas as expectativas, ela tinha conseguido chegar até ali.

Desde o dia, tão recente, em que Âmbar tinha se debruçado sobre sua

cabeceira, não havia mais dúvidas sobre a proximidade do fim. No entanto,

Page 15: A profecia das pedras

ela agarrava-se à vida. A menina não saía de perto da mãe. Não dormia nem

comia mais do que um pedaço de pão, quando a fome apertava. Hoje, a

doente parecia ainda pior. Tinha perdido a consciência pela manhã e ainda

não voltara a si. Felizmente respirava, mas com muita dificuldade.

O sol já tinha se posto. Era preciso que sua mãe saísse do terrível

estado de coma. "Ela vai viver. Vai viver", repetia Âmbar com uma convicção

inquebrantável. "Sempre há esperança, sempre! Enquanto estiver

respirando...”.

— Âmbar...

A voz rouca da mãe fez a menina dar um pulo. Tinha saído do

coma.

— Mamãe! Ah, mamãe!

— Vou conseguir, Âmbar. Vou conseguir... Que horas são?

Âmbar respondeu, feliz de vê-la mais lúcida, apesar de seu olhar

cada vez mais vidrado.

— Está bem, filha. Resta-me muito pouco tempo... Terei cumprido

minha missão. Estarei em paz, lá em cima... no céu.

— Mamãe!

— É preciso que você seja forte. Que aceite o seu destino.

— Descanse, mamãe.

— Espero que não tenha esquecido. Você já tem catorze anos.

— Nem me lembrei disso.

— Feliz aniversário.

Desde que Opala descobrira a pedra, tudo em sua vida parecia dar

errado. Tinha perdido o sono e uma febre teimosa abatera-se sobre ela. Nada

contou a Eugênia, nem a Gina, com medo de que elas descobrissem o motivo

da doença. Em segredo, tinha preparado alguns remédios à base de plantas,

mas eles não tinham surtido nenhum efeito. A febre persistia e ela sofria de

náuseas violentas.

Estava com medo de se trair, de deixar escapar que tinha

encontrado a estranha pedra entre as coisas de Gina. "Eu não queria fazer

nada de mal", não cansava de repetir. Desde a descoberta, ela havia se

calado ainda mais, e só falava o estritamente necessário. Estava ainda mais

fechada. "O que terá me acontecido naquele dia?", perguntava ela. "Não

Page 16: A profecia das pedras

consigo compreender."

— Quer mais um pedaço de bolo? — perguntou Gina,

com um sorriso forçado nos lábios.

Opala estremeceu, arrancada de seus pensamentos.

— Não, obrigada — respondeu friamente.

Opala percebia que sua tia-avó estava tentando desanuviar o

ambiente, mas não conseguia superar o sentimento de culpa. Gina não

conseguia disfarçar seu desagrado diante dos modos da sobrinha-neta. Sua

paciência e diplomacia foram pelos ares e ela elevou o tom da voz, irritada:

— Hoje é seu aniversário! Eugênia e eu estamos tentando fazer o

melhor possível, mas você não ajuda!

— Gina... — tentou intervir Eugênia.

— Ora, me deixe! — continuou Gina, cada vez mais nervosa. —

Opala, será que é pedir demais um sorriso ou um simples agradecimento?

Depois de tudo o que fizemos por você? O que é que você tem no lugar do

coração? Uma pedra?

Opala jogou sobre Gina um olhar incisivo. “Falando de pedras,

você me deve uma explicação", teve vontade de gritar. Mas baixou os olhos e

nada disse.

O duque de Divulyon contemplava Jade com amargura.

“Por quê?", perguntava ele sem cessar. "Por que ela? Por que

agora? Por que tudo isso?" Ele sabia que essas perguntas eram inúteis, que

não mudariam a situação. Sentia-se impotente, incapaz de mudar ou

empreender o que quer que fosse. No entanto, uma voz interior não parava

de lamentar e maldizer aquela profecia. Gostaria de conseguir calar essa voz

tão dolorosa, obrigá-la a silenciar. Mas não conseguia. Só pensava em Jade.

Tristemente, enfiou a mão no bolso de seu casaco e apertou a bolsa de

veludo negro.

Âmbar tinha os olhos vermelhos, os cabelos sujos e embaraçados;

cada um de seus músculos estava tenso; seus lábios, ressecados. Ela mal

percebia e pouco se importava com sua aparência. Precisava velar a mãe.

Seus irmãos e irmãs estavam abrigados em outras casas. Mas ela era a mais

velha e devia permanecer à cabeceira da doente.

Page 17: A profecia das pedras

O quarto estava iluminado pela débil luz de uma vela. Sua chama

vacilava e ameaçava apagar a todo instante. "Como a felicidade", filosofou.

"Outro dia, eu estava sentada no pasto, toda feliz, e de repente a vida

transformou-se num horrível pesadelo."

— Âmbar... — gemeu a mãe. — Estou me sentindo muito mal.

— Não fale mamãe. Cansa demais. Descanse, durma, já é tarde.

Logo, você se sentirá melhor.

— Sim... quando tudo tiver acabado... quando eu não tiver mais o

que sofrer... quando eu estiver em outro mundo.

— Mamãe, eu suplico, seja corajosa!

— Quase tenho pressa... de partir... de reencontrar meu marido...

de esquecer da dor, da pobreza... da sensação de não ter feito... nada... de

minha vida.

— Nada disso é verdade. Você fez tantas coisas. Olhe só, você me

fez! Sem você, eu não existiria!

— Ah, se você soubesse...

Depois que Gina se acalmou, um silêncio opressivo se instalou no

ambiente. A mesa, todos evitavam se olhar. Eugênia e Gina consultavam

nervosamente o relógio, a intervalos regulares. Opala, normalmente

impassível, não conseguia se conter. Queria se levantar e trancar-se em seu

quarto. Mas continuava sentada, desesperada. A febre fazia sua cabeça

girar. Ao fim de meia-hora, Eugênia pigarreou e disse:

— Está na hora.

Opala a olhou, surpresa.

— Na hora de quê? — perguntou inquieta. Eugênia sorriu

tristemente e respondeu:

— Ainda falta uma hora, mas acho melhor começarmos logo.

— Começar o quê? — perguntou novamente Opala.

Gina limpou discretamente a garganta. Desculpou-se com Opala

por ter se deixado levar pela irritação. Depois, olhou para Eugênia e repetiu:

— Sim. Está na hora.

Em seguida, pegou uma coisa e a depositou sobre a mesa. O

sangue de Opala gelou. Seu rosto empalideceu. Era a bolsa de veludo negro!

"Gina sabe que mexi em sua gaveta e a encontrei", pensou, alarmada. "E

Page 18: A profecia das pedras

agora quer uma explicação."

Mas, estranhamente, a tia-avó não parecia zangada.

— Essa é uma longa história — disse ela — mas não podemos lhe

contar tudo. O principal, você terá que descobrir sozinha. Não abra essa

bolsa agora. Na verdade, não a abra antes da meia-noite, porque poderá

acontecer alguma coisa muito séria.

Opala escutou, estupefata. Mas, já tendo sentido o poder da pedra,

não duvidou das palavras de sua tia-avó.

— Já está ficando tarde — pensou o duque de Divulyon. Dirigiu-se

a Jade, que conversava com seus convidados.

— Jade — murmurou ele. Ela se voltou, radiante.

— Papai! Ainda não tinha visto você. A festa está perfeita, não está?

O duque de Divulyon sentiu um nó na garganta.

— Sim, a festa foi muito bem organizada — conseguiu articular. —

E você está esplêndida.

Um sorriso voltou a iluminar o rosto de Jade.

— Jade, agora preciso que você deixe seus convidados. Quero falar

com você.

A menina espantou-se.

— Logo agora? Mas é minha festa, papai! Meu aniversário! Seja lá o

que você queira me dizer, não deve ser tão urgente assim!

— É urgente, sim.

Jade não disfarçou sua decepção, nem sua irritação. Afastou-se

dos convidados e seguiu seu pai a contragosto. Ele a conduziu a uma das

salas íntimas do palácio e trancou a porta. Ela sentou-se diante dele,

contrariada. O duque de Divulyon respirou fundo. Era preciso começar, para

que à meia-noite...

— Jade — disse ele — eu não sou seu pai.

A mãe de Âmbar reuniu suas últimas forças e prosseguiu:

— Sei que você não está acreditando em mim... Mas não estou

delirando! Sua verdadeira mãe confiou você a mim no dia de seu nascimento

e pediu para que cuidasse de você até que completasse catorze anos. Âmbar,

eu amei você como meus outros filhos.

Page 19: A profecia das pedras

A menina não conseguia acreditar. Aquilo era simplesmente

impossível. Mas sua mãe tirou alguma coisa de dentro da roupa: uma bolsa

de veludo negro. Estendeu a mão. Âmbar pegou a bolsa, intrigada.

— Não abra essa bolsa antes da meia-noite. Ela é sua, e seu

conteúdo também. Sua mãe entregou-a a mim juntamente com você.

Âmbar foi tomada por uma sensação de profundo mal-estar.

— Há ainda mais duas meninas — disse Gina gravemente. — São

suas inimigas. Jamais confie nelas. Também foram entregues a outras

famílias no nascimento, para garantir sua segurança.

— Por que segurança? — perguntou Opala. — Que perigo estamos

correndo?

— Você não deve saber — cortou Eugênia. — Ainda não é a hora.

Opala ficou tranqüila. Intuía grandes mudanças para muito em

breve, mas permaneceu impassível. Observou a noite negra e serena. Ela

não tinha medo do amanhã, nem dos dias futuros. Fez apenas uma

pergunta:

— Por que não me contaram nada antes?

Jade pulou da poltrona, com um olhar incrédulo.

— O quê? — exclamou.

Depois gritou:

— Não acredito nisso! Não acredito!

Seu rosto estava rubro e seus olhos brilhavam de raiva. Foram

necessários alguns minutos para que restabelecesse a calma. Uma intuição

a obrigava a levar a situação a sério: seu pai — ou melhor, o duque de

Divulyon, que ela acreditava ser seu pai — não estava mentindo. Ela andava

pela sala a passos largos, uma cólera surda crescendo no peito.

— Estou pouco ligando para essa bolsa de veludo e para essas

duas outras idiotas! Estou pouco ligando que minha mãe tenha me

abandonado quando nasci! E estou pouco ligando para saber o resto dessa

história!

— Jade... — tentava dizer o duque de Divulyon.

— É verdade. Não pedi para você jogar essa história ridícula sobre

a minha cabeça!

Page 20: A profecia das pedras

— Jade... — interrompeu o duque — ainda não acabei de falar.

— O que é que falta? Outra surpresinha dessas? Se for, eu

dispenso!

— À meia-noite, você deverá encontrar-se com as outras duas

meninas sob uma árvore, no local que indicarei. Você só voltará para casa

depois de ter enfrentado muitas provas. Uma coisa importante: não revele

sua identidade a ninguém e esconda cuidadosamente a bolsa de veludo.

Você encontrará muitos inimigos pelo caminho. Precisa aprender a

reconhecê-los e a desconfiar deles.

—Como? — a garganta da menina estava apertada. — Mas eu não

quero ir embora! Não quero um futuro horrível desses para mim! Quero ficar

aqui! Por favor, papai... quero ficar! — Jade explodiu em soluços.

— Ah, Jade — murmurou o duque de Divulyon. — Eu a amo mais

do que se fosse minha própria filha.

—Agora, você precisa partir. Há algum dinheiro na bolsa. Você se

sairá bem, Âmbar.

— Mas não quero deixá-la, mãe! Você precisa de mim!

— Preste atenção. A árvore fica perto daqui, entre a vila e o castelo

de Divulyon, no meio de um campo onde as flores brotam o ano inteiro, e

que não pertence a ninguém. É um dos últimos lugares encantados do reino.

— Sei onde fica — disse Âmbar, com o coração batendo tão forte e

depressa que chegava a doer.

— É uma árvore alta, com as folhas sempre verdes e frutos sempre

maduros. Ali, você encontrará suas inimigas. Agora, vá. É hora de partir.

Também está chegando a minha hora...

— Não posso ir embora! Você é e sempre será minha mãe. Não vou

abandoná-la. Não agora.

— Seja forte — respondeu sem forças a mãe. Em seguida, fechou

os olhos e sorriu docemente.

— Vou ficar — disse Âmbar, com firmeza. Mas, ao olhar para a

mulher, gritou, desesperada:

— Mamãe! Mamãe!

Page 21: A profecia das pedras

A enferma parecia dormir tranqüilamente, mas não respirava mais.

Havia deixado esse mundo sem uma palavra, apaziguada, sonhando com a

imagem incerta de um lugar melhor.

— Mamãe — murmurou Âmbar, tomada por uma dor lancinante.

Depositou um beijo sobre a fronte da mulher. Também deveria partir, rumo

ao desconhecido. "Serei forte", prometeu a si mesma. Depois, com o coração

ferido e sofrendo, mergulhou na noite.

5 Sob um céu estrelado, no campo eternamente florido, debaixo da

árvore cujas folhas jamais caíam, elas se viram. Desde o momento em que

tinham se encontrado, poucos instantes atrás, ainda não tinham trocado

uma palavra. Observaram-se mutuamente, com o mesmo pensamento no

espírito: somos inimigas. Jade olhava as meninas com desdém. A cabeça

erguida, o olhar orgulhoso, mostrava ostensivamente que pouco se

importava com elas. "Uma camponesa e uma pequeno-burguesa, grande

coisa", ironizava. No fundo, estava confusa, mas decidida a não deixar que

isso transparecesse. Observou Âmbar que, desfigurada, chorava em silêncio.

"Coitada, chega a dar pena!", pensou. Reparou nas roupas grosseiras, no

rosto sujo e no cabelo enlameado da menina. Embora tivessem lhe dito que

era sua inimiga, não conseguia sentir ódio dela. Em seguida, seu olhar

dirigiu-se a Opala. Sentiu seus músculos enrijecerem. "Essa não faz mesmo

o meu tipo. Somos e seremos inimigas! Mas por que me olha desse jeito? Ela

me deixa nervosa! Sim, me deixa nervosa!"

De fato, Opala fixava em Jade seu olhar ausente. Como de hábito,

não costumava emitir opiniões apressadas. Mas viu logo que ela e a menina

com arzinho superior não tinham sido feitas para se entenderem.

Âmbar estava perturbada demais pela morte da mãe para pensar

claramente. Tentava, sem sucesso, conter as lágrimas. Lançou alguns

olhares distraídos às duas inimigas, mas, deprimida demais para pensar,

contentou-se em observá-las, sem fazer julgamentos. Pedaços soltos de

frases vinham à sua memória e ela via-se novamente ao lado da mãe: "Duas

outras meninas... suas inimigas... um campo... dizem que é encantado... a

bolsa... só depois da meia-noite...”.

Page 22: A profecia das pedras

Um detalhe tirou Âmbar de seus devaneios. Esforçou-se para

reprimir a dor que oprimia seu peito e repetiu as últimas palavras de sua

mãe: "Seja forte. Seja forte!" Era preciso lutar contra o sofrimento, era

preciso voltar ao presente. Então, ela enxugou as lágrimas e rompeu o

silêncio:

— A bolsa de veludo negro! Alguém sabe as horas?

Jade e Opala, surpresas de que Âmbar tivesse mencionado uma

bolsa, a olharam com curiosidade. Embora não pudessem confessar,

estavam felizes por alguém ter tomado a palavra.

— Alguém sabe que horas são? — repetiu Âmbar. Jade consultou

seu relógio, cuja pulseira cravejada de brilhantes exibia com orgulho.

— É meia-noite e dez — respondeu com um tom agudo. Âmbar

olhou para Jade. Não invejava sua elegância, suas jóias nem seu olhar

ardente, mas, mesmo sem querer, admirava a força que se desprendia dela.

Em seguida, seu olhar pousou sobre Opala. Imóvel, o rosto desprovido de

emoção, ela tinha um sangue frio que, naquela situação, deixou Âmbar

impressionada.

— Meu nome é Âmbar. Perguntei as horas porque minha mãe me

deu uma bolsa de veludo negro que só poderia ser aberta depois da meia-

noite.

— Eu também! — exclamou Jade. — Mas, no meu caso, foi o

duque de Divulyon, que foi meu pai por catorze anos — mas não é mais —

que me deu a bolsa.

— Verdade? — espantou-se Âmbar. — Minha mãe também não era

minha mãe verdadeira. Mas, para mim, ela será sempre minha mãe. Além

disso, ela acabou de morrer...

Novamente tomada pela emoção, Âmbar calou-se. Opala, que até

então tinha se mantido em silêncio, disse com uma doçura que não era

comum nela:

— Lamento muito, Âmbar. Deve ser muito duro passar por tudo

isso no mesmo dia.

— Sim — concordou Âmbar, um pouco confortada por escutar uma

palavra amiga. — E você, também ganhou uma bolsa?

Opala balançou a cabeça, mostrando que sim.

— Temos isso em comum, nós três. Aliás, meu nome é Opala. Em

Page 23: A profecia das pedras

seguida, com a voz endurecida, completou: — Embora eu não saiba porquê,

nós somos inimigas.

— Totalmente — acrescentou Jade, olhando para Opala com

agressividade.

— Não consigo acreditar — disse Âmbar. — Não faz sentido sermos

inimigas sem nem mesmo nos conhecermos. Sinceramente, nada nos obriga

a isso!

— Mas somos — insistiu Jade. — Meu suposto pai, o duque de

Divulyon, não mente jamais. E se ele disse que somos inimigas, é porque

somos mesmo.

— Seu pai adotivo é o duque de Divulyon? — perguntou Âmbar.

— Sim. Até esta noite, eu era Jade de Divulyon. Agora, não sei

mais. Além de não saber nada sobre minha família, parece que não devo

dizer meu nome por aí, porque existem mil inimigos ocultos etc. etc.

— Me disseram a mesma coisa — confiou Âmbar.

— A mim também — confirmou Opala.

— E agora? O que vai acontecer? Não sei para onde devo ir, não sei

o que tenho que fazer! Além disso, também não sei por que estou junto com

vocês duas. Alguém sabe o que estamos fazendo aqui?

— Não — responderam ao mesmo tempo Opala e Âmbar.

— Estamos bem! — observou Jade. — E por que eu disse

"estamos"? Vocês são minhas inimigas, não são? Então, não tem essa

história de "nós". Por que é que temos que ficar juntas?

— Porque somos mais fortes juntas do que separadas. E ainda

mais se temos inimigos em comum — respondeu Âmbar. — Em princípio,

são eles que representam o maior perigo, não são? Quanto a mim, não

desejo nenhum mal a vocês duas. Nem mesmo sei quem vocês são.

— Vamos abrir as bolsas? — interrompeu Jade. — Talvez tenha

alguma coisa importante dentro delas.

— Boa idéia — concordou Âmbar.

— Ainda assim, somos inimigas — lembrou Opala.

Seu comentário não encontrou eco. Âmbar e Jade estavam

ocupadas abrindo suas bolsas de veludo. Opala fez o mesmo, com um desejo

incontido de rever a pedra.

Âmbar reprimiu um grito ao descobrir uma pedra com as cores do

Page 24: A profecia das pedras

outono, de um alaranjado-escuro e translúcido, puxando para o vermelho e

para o marrom. Parecia um pôr-do-sol. Foi invadida por uma sensação

apaziguadora. Embora seu sofrimento não se dissipasse, foi ligeiramente

atenuado, dando lugar a um suave calor. Fechou a mão. Podia sentir

claramente que aquilo não era uma simples pedra.

No mesmo momento, Jade tinha, na palma da mão, uma pedra de

um verde profundo, puro e intenso. "É de jade...", murmurou. Seu tom era

tão suntuoso, tão surpreendente, que ela permaneceu um bom tempo

admirando a pedra. Depois, sem saber bem por que, apertou-a na mão.

Nesse meio tempo, Opala examinava a pedra que havia provocado

sua febre. Antes, não tinha percebido seus reflexos azulados, nacarados, que

davam ao verde pálido um brilho complexo e fascinante, como se a pedra

estivesse salpicada de lantejoulas. Instintivamente, apertou-a na mão.

As três meninas sentiam que, pouco a pouco, a angústia as

abandonava. Seus corpos relaxavam e todos os seus pensamentos

tornavam-se agradáveis. Esqueceram que estavam no meio daquele campo,

que tinham sido arrancadas de casa, e que era noite fechada. Esqueceram

tudo e uma nova sensação de liberdade apoderou-se delas. Fecharam os

olhos ao mesmo tempo. Um laço formou-se entre suas almas. Suas pedras

pareciam comunicar-se, misturar-se, confundir-se... E a mesma coisa

acontecia com elas: eram uma só e um milhão, ao mesmo tempo. Pouco

importava: formavam um todo, um conjunto indestrutível. Pouco a pouco,

uma imagem surgiu em seus espíritos, uma imagem complexa e

desconhecida. Flutuou por longos minutos, o tempo suficiente para

impregnar suas memórias, depois se esfumou e desapareceu.

Âmbar, Jade e Opala saíram suavemente do estado em que

estavam mergulhadas. Não havia dúvida: deveriam seguir aquele desenho,

aquele símbolo estranho, cheio de espirais, curvas e arabescos. Ao mostrar a

imagem, as pedras tinham mostrado a elas o que fazer. Entreolharam-se

com um novo ânimo, quase amigável. Com a voz ainda distante, Âmbar

disse:

— Não são pedras. São outra coisa. Uma ajuda. Tenho certeza

disso. E vocês?

— Eu também — concordou Jade. — Agora, já sabemos o que

fazer. Temos que compreender e seguir este símbolo.

Page 25: A profecia das pedras

— Já é tarde — interrompeu Opala. — Amanhã, veremos o que

fazer. Agora, precisamos encontrar um lugar para dormir.

— Aqui mesmo — propôs Âmbar.

— Como aqui? — indignou-se Jade. — Preciso de uma mansão, de

um belo quarto e uma cama bem macia.

— Jade — disse Âmbar, suavemente. — Já é muito tarde. Quer que

caminhemos horas a fio até a próxima mansão, para chegar na porta e dizer:

"Alô, chegamos! São três horas da manhã e adoraríamos dormir aqui. Claro

que não poderemos dizer nossos nomes, nem dar nenhuma informação a

nosso respeito porque vocês podem ser nossos inimigos. Mas não tem

importância, não é mesmo? Afinal, chegar na casa dos outros no meio da

madrugada e pedir para dormir ali é uma coisa tão normal!"

Jade lançou um olhar raivoso em direção a Âmbar.

— Pois eu não vou dormir aqui — disse, destacando

cuidadosamente cada sílaba. Procurou alguns argumentos convincentes. —

Se nos disseram para partir, para prestar atenção a inimigos desconhecidos,

então deve haver algum perigo aqui.

— Não necessariamente — objetou Opala.

— Claro que sim! — insistiu Jade. — Não podemos voltar atrás e

muito menos ficar aqui. E preciso descobrir o que significa aquele símbolo o

mais depressa possível.

Na dúvida, Âmbar refletiu uns instantes. Depois disse:

— Conheço uma pequena fazenda isolada, a cerca de uma hora

daqui. Lá mora somente uma velha, com suas galinhas e gatos. Poderíamos

dormir no estábulo. Ela nem vai perceber. E estaremos em segurança.

— Um estábulo! Era só o que faltava! — protestou Jade

veementemente. — Meu vestido vai ficar todo amarrotado. E, depois, não

será num estábulo que encontraremos o significado do símbolo.

— Por que não? A fazendeira me conhece. Embora ela não dê

confiança a ninguém, sei que responderá às minhas perguntas. Assim que

amanhecer, vou vê-la como se fosse uma simples visita.

— E falar sobre nós? Nem pensar! — interrompeu Jade.

— Claro que não. Vou fazer de conta que acabei de chegar e não

falarei de vocês. Direi que minha mãe faleceu e me mostrou o símbolo antes

de morrer. Desenharei o símbolo e perguntarei se ela o conhece.

Page 26: A profecia das pedras

— Em resumo: vai fazê-la engolir uma bela mentira! — exultou

Jade. — Não é má idéia. Mas e se depois a velha falar. E se nossos inimigos

descobrem que estamos procurando o símbolo? Ou, pior, e se a velha for

nossa inimiga?

— Não há perigo — garantiu Âmbar. — Ela já está meio caduca e

vive afastada do mundo. Bom, estamos perdendo tempo. Vamos?

— Não, não e não! — Jade bateu os pés furiosamente.

— Não quero! Isso está fora de questão. Está vendo bem minhas

jóias? Minhas roupas? Pense um pouco! Não sou camponesa para dormir

num estábulo.

— Nós vamos — decidiu Âmbar.

— Não! — teimou Jade. Detestava que a contrariassem.

— O que você acha, Opala? — perguntou Âmbar. Opala que se

mantinha fora da discussão, como sempre, respondeu:

— Também acho que devemos ir. E se a Senhorita Jade

Mimadinha não quiser vir, pode ficar por aqui mesmo.

— Não sou mimada! — gritou Jade, mais furiosa ainda. — Só

para provar que não sou, vou com vocês — disse sem refletir.

Mordeu os lábios de raiva por ter cedido à vontade das outras. E

iria dormir num estábulo! Mas seu orgulho a impedia de voltar atrás. Viu

quando Opala ergueu os olhos para o céu:

— Mudou de idéia finalmente? Estou vendo o que nos

espera!

Jade fulminou-a com o olhar, incapaz de encontrar uma resposta

arrasadora. Âmbar colocou-se entre as duas.

— Parem com isso — ordenou com firmeza. — Está na hora de

partir.

Jade e Opala acompanharam Âmbar sem protestar. Caminhavam

depressa, preocupadas com o adiantado da hora. Ninguém dizia nada, cada

uma perdida em seus próprios pensamentos. Jade pensava num meio de

humilhar Opala. Aquela burguesinha, como ousava bancar a superior com

ela? Era intolerável! Um ódio surdo vibrava em sua alma e fazia seu corpo

estremecer. Além disso, ela teria que se rebaixar e dormir numa fazenda.

Tinha vontade de gritar, de dar uns tapas em Opala, mas a noite já estava

escura demais, e seu futuro, muito incerto.

Page 27: A profecia das pedras

Opala, por sua vez, pensava no símbolo que precisavam

compreender, nos inimigos escondidos nas sombras e nos dias que viriam.

Sentia que alguma coisa despertava dentro de si: estava interessada em sua

nova existência. Tinha se livrado de um peso. Deixar a casa das tias-avós era

como sair de uma prisão... confortável, mas ainda assim prisão. Por muito

tempo, se sentira acorrentada a um cotidiano banal, à certeza de que jamais

aconteceria nada de novo em sua vida. Agora, a liberdade lhe apresentava

uma nova vida. Descobriria o mundo, conheceria um perigo que sabia

próximo. Não estava excitada, nem assustada. Estava curiosa: finalmente

saberia o que significa "viver".

Quanto a Âmbar, só pensava na mãe. Revia seu sorriso protetor e

escutava sua voz apaziguadora, seu riso aberto. Relembrava momentos de

carinho. O rosto simples da mãe, marcado por tanto sofrimento e tão poucas

alegrias, voltava à sua memória como um símbolo. Sua mãe tinha perdido o

marido, levado por uma doença fulminante, e nunca se recuperara do golpe.

Âmbar também teve que superar essa perda, mas para ela foi mais fácil:

jamais havia realmente amado aquele pai rude e brutal, que nunca tinha se

preocupado com ela. Além disso, era muito pequena quando ele morreu, não

compreendeu direito o que tinha acontecido. Hoje, no entanto, tudo estava

muito claro, definido, e ela devia suportar aquela dor atroz. Lágrimas

rolaram sobre seu rosto.

"Seja forte. Seja forte..." As palavras da mãe ecoavam dentro dela.

"Jade e Opala têm mais personalidade do que eu, pensava. “Elas são

naturalmente fortes, enquanto eu tenho que me obrigar a ser assim”. É

preciso que eu lute. Se me convencer de que posso superar tudo isso, talvez

consiga mesmo." Com essas conclusões, Âmbar acelerou o passo. A fazenda

não estava longe. As três meninas atravessaram vastas planícies, campos,

prados verdejantes e algumas colinas não muito altas. Atrás de uma dessas

colinas, isolada de tudo, surgiu a fazenda semi-abandonada.

— Venham — sussurrou Âmbar.

Entraram no estábulo escuro e agora sem uso, quase em ruínas.

As vigas estavam partidas, teias de aranha tinham invadido todos os cantos

e um cheiro horrível se desprendia da palha. Âmbar não pareceu incomodar-

se. Deitou-se no chão e bocejou:

Page 28: A profecia das pedras

— Boa-noite!

Opala hesitou um pouco, mas depois deitou-se a seu lado. Jade,

horrorizada com o lugar, decidiu permanecer onde estava.

— Não vou dormir — disse bem alto. — Não vou dormir.

Como suas palavras não provocaram nenhuma reação, continuou:

— Não faz mal, não se preocupem comigo! Vou ficar de pé mesmo.

Garanto que não tem problema.

Nenhuma resposta. De repente, teve uma idéia brilhante.

Aproximou-se de Âmbar, que já estava de olhos fechados, e a sacudiu

vigorosamente. Assustada, Âmbar mal conteve um grito. Percebendo o rosto

de Jade sobre o seu, perguntou o que estava acontecendo.

— Me dê sua roupa — respondeu Jade.

— Como? Pode repetir o que disse?

— Temos que trocar nossas roupas!

— Que idéia é essa? — resmungou Opala.

— Não pedi sua opinião — retrucou secamente Jade. Voltou-se

para Âmbar e falou, apressada:

— Rápido. Tenho um plano. Me dê sua roupa e eu empresto a

minha. Mas tome cuidado. Não pode estragar, nem sujar, nem amarrotar.

— Senão será o fim do mundo — suspirou ironicamente Opala.

— Exatamente! — respondeu Jade no mesmo tom. — Depressa,

Âmbar!

— Já que você insiste — ponderou Âmbar. — Mas gostaria de

saber o motivo da troca.

— Coisa sem importância — garantiu Jade.

Mas, de repente, como se tivesse sido tomada por uma nova idéia,

Jade completou:

— Deixa prá lá. Vou ficar assim mesmo.

— Mas... — balbuciou Âmbar, que não sabia mais o que fazer.

— Até amanhã! — disse Jade alegremente.

— Até amanhã? — repetiu Âmbar, atordoada. — Espere, Jade!

Mas Jade não a escutava mais. Já tinha escapulido para fora do

estábulo.

Page 29: A profecia das pedras

6 Com passos firmes, Jade dirigiu-se à entrada da fazenda.

Atravessou o jardim abandonado, onde o mato e as urtigas cresciam

desordenadamente. Viu-se diante de uma porta de madeira, meio bamba e,

sem hesitar, começou a bater.

— Abra a porta! — gritou.

Era preciso acordar a dona da fazenda e Jade bateu com mais

força. Continuou esmurrando a porta por mais uns minutos. Finalmente,

quando percebeu que ninguém aparecia e que a mulher continuava

dormindo, resolveu mudar de estratégia. Deu um grito tão agudo e intenso

que Âmbar e Opala puderam ouvi-lo do estábulo. As meninas se

entreolharam, atordoadas. O que Jade estaria tentando fazer? Os gritos

cessaram por alguns instantes, mas depois voltaram, com o dobro da

intensidade. Desse jeito, a velha ia acabar acordando.

E foi o que aconteceu. Ainda meio adormecida, e muito irritada, a

velha abriu a porta. Viu a moça, extraordinariamente elegante, coberta de

jóias dos pés à cabeça.

— Acho que ainda estou sonhando — murmurou a mulher. Mas a

voz de Jade era bem real:

— Boa noite. Meu nome é Jade e gostaria de dormir aqui. O

estábulo é desconfortável demais e não me agrada adormecer ao ar livre.

Como pode imaginar, não faz o meu gênero.

Estarrecida, a velha franziu os olhos. Jade prosseguiu:

— Estou habituada ao luxo, mas uma cama seria suficiente. Já

que perdi meu palácio, tenho que me adaptar. Agora, por favor, mostre o

meu quarto porque estou realmente cansada.

A velha bateu a porta. "Essa menina é maluca", pensou. Mas Jade,

que era teimosa, voltou a bater na porta com toda a força e a gritar:

— Abra!

Embora meio desconfiada, a fazendeira estava curiosa e entreabriu

a porta. Jade a olhou nos olhos, muito séria. Calmamente, continuou:

— Eu tinha pensado em vestir roupas de camponesa e fingir que

era uma pobre menina em fuga. Tenho certeza de que a senhora teria me

acolhido. Mas preferi dizer a verdade e, agora, a senhora não quer me

Page 30: A profecia das pedras

receber. Estou fugindo, é verdade, e embora não pareça ser pobre, já faz

mais de uma hora que deixei de ser rica.

Novamente, a velha bateu a porta. Não costumava dar abrigo a

ninguém, e aquela menina era tão esquisita! Mas não era mentirosa. Sua voz

tinha um tom verdadeiro e sua expressão era totalmente sincera. A mulher

abriu a porta pela terceira vez.

— Por que você fugiu? — perguntou com a voz autoritária.

— Não foi por minha vontade! Fui obrigada e, ainda agora, não

compreendo o motivo. Se não fosse por isso, a senhora acha que eu viria

pedir abrigo numa fazenda tão miserável quanto a sua? E nem pense em

bater novamente a porta na minha cara. Não é nem um pouco educado e me

deixa nervosa. Seja como for, mesmo que a senhora não me deixe entrar,

não sairei daqui.

A velha ficou abalada com o olhar decidido de Jade. Aquela menina

tinha alguma coisa rara e forte.

— Está bem — disse a velha. — Venha comigo.

Jade reprimiu um sorriso vitorioso. A mulher a conduziu por um

corredor estreito e a fez entrar em um quarto minúsculo, modestamente

mobiliado, mas fresco e agradável.

— Era o quarto de meu filho — disse a mulher, nostalgicamente.

— Serve — respondeu Jade.

— De qualquer modo, é o único quarto além do meu.

— Está certo. Mas, como pode imaginar, preciso de uma camisola

para dormir.

— Lamento, mas isso aqui não é um hotel — resmungou a mulher.

Saiu do quarto sem dizer mais nada. Mas, ao fim de alguns

minutos, voltou com uma camisola branca, amarelada pelo tempo, feita de

tecido barato. Jade a pegou.

— Não é nenhum palácio, mas também não é um estábulo —

declarou, à guisa de agradecimento.

— Por hoje, pode ficar — disse a mulher mal-humorada. — Mas

amanhã você vai embora.

— Oh, só se eu quiser partir. Mas não se preocupe, não poderei

mesmo ficar.

— Melhor assim! Agora durma e me deixe em paz. Você não é

Page 31: A profecia das pedras

nenhuma rainha para interromper o sono de pessoas honestas no meio da

noite.

— Desculpe, mas fui obrigada a fazer isso. A senhora sabe que

aquele seu estábulo é simplesmente nojento!

A velha esboçou um sorriso fugaz e hesitante. Há muito tempo que

ela tinha esquecido como se sorria. Por anos a fio, tinha vivido totalmente

isolada, na vã esperança de que as desgraças que tinham se abatido sobre

sua vida terminassem. Acabou mergulhando na amargura. Agora, tinha

aparecido alguém. Mesmo que não passasse de uma menina mimada,

autoritária e provavelmente maluca, a companhia servia para tirá-la um

pouco do torpor.

Afastou-se, arrastando os pés, sem dizer mais nada. Voltou para

seu quarto e logo adormeceu, com um sentimento de satisfação guardado no

fundo do coração.

Jade vestiu a camisola com uma careta de desagrado: ficava

grande demais nela, mas era mais quente e menos áspera do que parecia à

primeira vista. A menina enfiou-se na cama. Ainda queria continuar

acordada para pensar em tudo o que tinha acontecido, mas suas pálpebras

fecharam sem que ela nem percebesse.

O galo cantou pela manhã. A luz do sol inundou o quarto onde

Jade dormia. A menina custou a acordar, tinha dormido tarde demais.

Assim que abriu os olhos, já descansada, seu primeiro pensamento foi para

o símbolo, como se tivesse sonhado com ele. Levantou-se de um pulo e

vestiu-se rapidamente. Tinha trazido consigo uma pequena bolsa azul-

turquesa, fácil de carregar e indispensável. Tirou dali uma escova e penteou-

se cuidadosamente. Depois, pegou a bolsinha de veludo negro e tirou a

pedra. Fechou-a na mão, pensando: "Diga o que devo fazer."

Mas nada aconteceu, a pedra continuou sendo um simples jade.

Devolveu-a ao seu lugar, decepcionada. "Sei muito bem o que devo fazer",

disse. "Não preciso desse troço para me ajudar."

Lançou um olhar ao quarto à sua volta. Alguns livros empoeirados

estavam arrumados sobre uma prateleira. As paredes, de um branco

duvidoso, não tinham enfeites. Uma escrivaninha de madeira estava

encostada perto da cama. Jade aproximou-se dela. Não havia nada sobre a

tampa, mas as gavetas estavam abarrotadas de cartas. Tentou ler algumas

Page 32: A profecia das pedras

delas, mas não conseguia decifrar a letra, emaranhada, que a tinta

desbotada tornava ilegível. Suspirou e colocou as cartas de volta no lugar.

Decidiu que a inspeção do quarto estava concluída. Ali, não havia nada que

pudesse interessá-la. Seguindo a voz da velha, que conversava com seus

gatos, chegou à cozinha, que servia também de sala de visitas e de jantar.

— Até que enfim — disse acidamente a mulher ao ver Jade. —

Sente-se aí.

Jade sentou-se à mesa retangular, feita de madeira sólida e

irregular. Disse:

— Estou com fome. Dê-me qualquer coisa de comer e partirei em

seguida.

A mulher colocou um grande pedaço de pão preto e duro diante

dela.

— O que é isso? — protestou Jade, afastando o pão com uma

careta de nojo. — Quero alguma coisa que preste. Vou logo avisando, não

vou sair daqui sem que a senhora tenha me servido um café da manhã

decente.

— Então não basta vir perturbar o meu sossego?! Ainda faz

exigências! — respondeu a dona da fazenda.

— Claro! Agora, ande! Traga logo alguns ovos, um pedaço de pão

fresco, geléia, leite e chocolate!

— Só isso?

— Não, a senhora tem razão: providencie também uma cesta com

comida suficiente para alguns dias. Lembre-se, sou uma fugitiva, preciso me

organizar para sobreviver. Não quero morrer de fome. Se isso acontecer, será

culpa sua, porque não me ajudou! Agora, vamos, depressa!

— Mas... — gaguejou a velha.

— E já que a senhora ainda está aí parada, aproveite e me traga

papel e caneta.

— Para quê?

— Quer mesmo carregar minha morte em sua consciência? —

perguntou Jade, com um tom falsamente dramático.

A velha compreendeu que de nada adiantaria discutir e curvou-se

às vontades da menina. Serviu um café da manhã reforçado. Em seguida,

preparou refeições frias, variadas e nutritivas, e colocou-as dentro de uma

Page 33: A profecia das pedras

cesta. Jade a observava trabalhar enquanto comia com apetite. Quando a

anfitriã acabou de providenciar seus pedidos, a menina sorriu e lembrou que

ainda faltava o papel e a caneta. Tinha devorado toda a comida que estava

sobre a mesa e, agora, saciada, só pensava no símbolo e em seu significado.

A velha arrumou a mesa e lhe deu material para escrever. Jade desenhou o

símbolo com a mão firme.

— O que é que você está fazendo? — perguntou a dona da fazenda.

— Você nunca está satisfeita, sempre quer alguma coisa mais? Não posso

fazer mais nada por você.

— Tudo bem — disse Jade. — Mas venha cá, quero mostrar-lhe

uma coisa. Me diga o que sabe sobre esse símbolo.

A velha observou o desenho demoradamente e, depois, balançou a

cabeça.

— Não tenho a menor idéia. Infelizmente, não posso ajudá-la.

— Não tente me esconder nada — respondeu Jade, com um tom

persuasivo. — Preciso descobrir o que significa este símbolo, de qualquer

maneira.

— Nunca o vi antes.

— Tem certeza absoluta?

— Não estou muito segura, mas conheço alguém que saberá

decifrá-lo. Ele mora em um lugarejo que fica a poucas horas daqui, chamado

Nathyrnn.

— Já ouvi falar — disse Jade cora firmeza — mas nunca fui lá.

Quem é esse homem?

— É um vendedor de livros antigos. Um homem muito viajado,

mas...

A velha calou-se. Sem perceber seu embaraço, Jade perguntou:

— A senhora conhece bem esse homem? É honesto? Posso confiar

nele?

— É meu filho — confessou a velha, com a voz embargada.

— Sei. E por que falar de seu filho a faz chorar? De fato, uma

lágrima escorria pelo rosto da mulher.

— Não posso falar.

— Não escondi meu nome da senhora, nem omiti que estou

fugindo. Agora, é sua vez de confiar em mim. A senhora já deve ter percebido

Page 34: A profecia das pedras

que não sou de desistir facilmente. Vou fazê-la falar, porque sou muito

curiosa.

— Meu filho tem muitos inimigos. Você pode ser um deles.

— Não se preocupe com isso. Também tenho uma boa coleção de

inimigos. Parece que estão em toda a parte. No entanto, não os conheço.

Também, hoje em dia, o que posso querer? — disse Jade com um tom

irônico e casual.

— Já vi que vou ter que contar tudo ou nunca me livra

rei de você! — suspirou a velha.

— Pode ter certeza disso — confirmou a menina.

— Meu filho era uma pessoa excepcional. Desde muito pequeno,

queria estudar. Amava a natureza e tinha um grande coração, como aliás

tem até hoje...

— Pode me poupar dessas explicações. Me conte o que ele tinha de

tão excepcional.

— Éramos muito pobres, muito mais do que hoje — começou a

velha. — Com dezesseis anos, ele partiu para descobrir o mundo. Precisava

de liberdade e de aventura. Foi embora, uma noite, deixando uma carta de

despedida.

— Só uma pergunta — interrompeu Jade. — Como se chama seu

filho?

— Jean. Jean Losserand. Jean, então, virou andarilho. Percorreu o

mundo, solitário e corajoso. Sempre me escrevia. Um dia, ele chegou a um

país estranho, o único país do mundo que não é dominado pelo Conselho

dos Doze.

— Dominado! — exclamou Jade. — Que exagero! Melhor dizer

governado, não?

— O único país do mundo que não é dominado pelo Conselho dos

Doze — teimou a mulher. — Sob o Conselho dos Doze, quem nascer

camponês será camponês a vida inteira. Quem for fraco será desprezado e

esmagado. Quem pensar diferente será obrigado a entrar para o rebanho.

Quem tentar sair do rebanho será pisado e rejeitado. Quem desejar criar

algo novo deverá se contentar em reproduzir o que já existe. Quem tiver um

dom será forçado a tornar-se medíocre. Quem se rebelar será morto. Quem

sonhar com a liberdade será aprisionado. Quem...

Page 35: A profecia das pedras

— Chega! — gritou Jade. — Isso tudo é um absurdo. Além do mais,

se ninguém pode ser livre, como seu filho é um andarilho?

— Deixe-me prosseguir. Como eu dizia, Jean chegou a esse país

tão diferente. Esse lugar não é governado por ninguém e, segundo ele me

escreveu, cada um pode viver como bem entender. No entanto, poucas

pessoas conseguem atravessar o campo magnético que cerca o território.

Para atravessá-lo, é preciso acreditar na beleza de cada ser, na criatividade,

na liberdade. E preciso acreditar num mundo melhor, na magia de cada

instante e nos sonhos inverossímeis. E preciso poder imaginar o

inimaginável. E preciso acreditar no impossível. Só assim se consegue

penetrar nesse país. E é por isso que ele é inacessível para o Conselho dos

Doze.

— O que é que tem nesse país? Como ele se chama?

— Esse país chama-se Conto de Fadas. Lá, vivem criaturas

mágicas, pessoas afetuosas... Mas não sei dizer exatamente o que existe lá,

porque nunca estive nesse lugar. Isso, você terá que perguntar para meu

filho. Só sei de tudo o que contei por causa das cartas. Ele disse que

qualquer criança pode entrar no país, porque o que é irreal para os adultos é

normal para elas.

— E o que o seu filho fez lá?

— O que ele fez? Ele ajudou pessoas, viveu aventuras incríveis...

Arriscou a própria vida, combateu forças maléficas...

— Isso parece uma história! — disse Jade, incrédula.

— Nada é espantoso em Conto de Fadas. Mas meu filho,

subitamente atacado de saudades, recusou toda a glória e a felicidade que

existiam lá e resolveu voltar para casa. Quase ninguém faz uma coisa

dessas. Alguns deixam de acreditar no que vêem à sua volta, então, um dia,

acordam em sua antiga cama. Não podem mais voltar a Conto de Fadas. Mas

com Jean foi diferente. Ele queria apenas rever a casa onde tinha passado a

infância. Nesse meio tempo, o Conselho dos Doze havia criado uma nova lei,

que proibia andarilhos. Jean foi preso pelos cavaleiros da Ordem e passou

três longos anos na prisão. Depois, foi obrigado a procurar um emprego.

Como a única coisa que o fazia viajar eram os livros, tornou-se vendedor de

obras antigas. Ele sempre me escrevia. Mas, há dez anos, o Conselho dos

Doze proibiu as cartas, e nunca mais tive notícias dele. Ele não pode deixar

Page 36: A profecia das pedras

a vila de Nathyrnn, onde vive vigiado.

— Eu poderia lhe dar uma jóia muito valiosa como agradecimento

pela hospedagem — disse Jade. — Mas vou fazer melhor: mesmo se demorar

algum tempo, trarei notícias de seu filho.

7 As três meninas continuaram a atravessar o ducado de Divulyon.

Contornavam as aldeias e evitavam as terras onde os camponeses

trabalhavam. Precisavam passar despercebidas. Nathyrnn ainda estava

longe. Âmbar carregava a cesta de mantimentos trazida por Jade. Tinha

passado a noite inteira inquieta. Ela e Opala se perguntavam o tempo todo o

que Jade estaria fazendo. Âmbar, com sua natureza sonhadora, tinha

imaginado mil possibilidades. Estremecia só de pensar nas conseqüências

dos atos que Jade podia ter cometido. Opala mantinha sua calma habitual.

Só vivia o momento presente, não parava para olhar o passado, mas também

não temia o futuro. Jade podia fazer o que quisesse, não adiantava se

preocupar de antemão.

Aos poucos, a conversa começava a fluir. Âmbar falava sem

reservas e com entusiasmo sobre a vida que deixara para trás. Reconstituía

seu cotidiano para Opala, que se espantava com o amor que Âmbar

demonstrava por tudo e por todos. Âmbar contou como observava a Lua e as

estrelas, como aspirava o perfume de cada flor do campo, como corria

descalça pela relva fresca e como nadava na água límpida do lago. Contou

também como gostava do sol, de imaginar histórias fantásticas, de ajudar os

outros, e de ler histórias que, mesmo proibidas, podiam ser encontradas na

casa de um homem generoso e culto que ela conhecia. Contou várias outras

coisas. Opala bebia suas palavras. Embora tivesse vivido na mais profunda

pobreza, Âmbar tinha sido feliz. Ela falara de seus sofrimentos, mas eles

pareciam apenas ter tornado sua felicidade ainda mais rara. Depois, veio a

morte de sua mãe... Âmbar não falou dessa dor, ainda não estava pronta

para isso. Mas agradeceu a Opala por tê-la escutado e percebeu que,

dividindo sua história com ela, haviam criado um laço entre elas, mesmo que

ainda frágil.

Agora que caminhavam rumo a Nathyrnn, Âmbar observava Opala.

Page 37: A profecia das pedras

Tinha certeza de que a menina não era tão insensível quanto parecia. Na

noite anterior, Opala tivera um pesadelo. Âmbar havia acordado e vira um

olhar apavorado no rosto da companheira, como se ela precisasse de ajuda.

Opala estava sonhando com um perigo muito próximo, com rostos

sombrios e ameaçadores. Febril, murmurava:

— Estão muito próximos. E sabem de tudo por mim. Eu jamais

deveria ter entrado naquele quarto. Agora é tarde demais.

Âmbar acalmou-a, com sua voz apaziguadora. Logo, as duas

voltaram a adormecer.

— Ainda está muito longe? — Âmbar perguntou a Jade, com a voz

queixosa.

— Sim — respondeu Jade secamente. — Já disse três vezes que

precisamos ir a Nathyrnn procurar Jean Losserand, conversar com ele sobre

o símbolo e pedir que nos fale sobre sua viagem a Conto de Fadas.

— Não acredito em histórias, nem nesse país mágico - interrompeu

Opala. — O Conselho dos Doze proibiu as histórias. Nunca li nenhuma e

nem me fizeram falta.

— Eu acredito! — disse Âmbar, enfaticamente. — Sempre inventei

histórias e gosto muito de contá-las. Adoraria conhecer Conto de Fadas. E

você, Jade?

— Claro que já li histórias! Em meu castelo havia um velho filósofo

chamado Theodon. Ele obedecia ao Conselho dos Doze à sua maneira e acho

que ele não tinha muito medo deles. Foi ele quem me deu as histórias para

ler e também me ensinou muitas outras coisas.

— Você aprendeu muitas coisas? — debochou Opala. — Nem

parece.

Jade preparou-se para responder, mas Âmbar foi mais rápida.

— Sosseguem as duas! Não vamos brigar como crianças toda vez

que começamos a conversar! Jade, você não tinha acabado de falar. Afinal,

você acredita nesse país, na magia, no irreal?

— Adoraria acreditar — respondeu Jade depois de uma pequena

pausa. — Estou certa de que esse país existe. Mas quem mora lá? Será que é

mesmo um lugar mágico ou apenas uma lenda? Primeiro, quero ver o que

Jean Losserand tem a dizer. Talvez eu fique realmente convencida depois

disso.

Page 38: A profecia das pedras

Como ninguém tinha mais nada a dizer, a conversa acabou. Um

silêncio obstinado voltou a instalar-se.

Jade tentava imaginar Nathyrnn e Jean Losserand, mas não

conseguia. Pôs-se a pensar nas perguntas que faria ao velho andarilho.

Ardia de impaciência. A caminhada, longa demais para seu gosto, a irritava.

Âmbar lembrava do que acontecera naquela manhã. Estava

morrendo de preocupação por causa do sumiço de Jade, quando a menina

apareceu, trazendo um cesto transbordante de alimentos e um sorriso

desconcertante.

— Vamos para Nathyrnn — disse ela.

Âmbar cobriu a menina de perguntas. Jade contou toda a história.

Opala escutou tudo sem se espantar, mas Âmbar não conteve a surpresa: a

velha que ela conhecia tinha se comportado com tanta cordialidade?

Inacreditável.

Jade falou longamente sobre Conto de Fadas. Nessa parte do

relato, Âmbar começou a sonhar acordada: imaginava a si própria passando

pelo campo magnético daquele país maravilhoso, com uma paisagem digna

desse nome, e sonhava as incríveis aventuras que viveria nesse mundo

mágico.

— Âmbar!

Aborrecida por ter sido tirada de seus devaneios, a menina olhou

para Jade.

— Âmbar! Você não percebeu que Opala está com problemas?

Opala tinha ficado para trás e estava parada. Seu rosto estava

imobilizado em uma expressão de horror. Seu olhar estava ausente, fixo e

aterrorizado.

— Tentei sacudi-la, mas não adiantou — disse Jade. — E você

continuou andando, como se nada estivesse acontecendo!

— Desculpe, meus pensamentos estavam longe — justificou-se

Âmbar.

— Parece que Opala não está mais aqui. Não que isso me

incomode, mas pode ser alguma coisa grave.

Rodearam a menina, falaram com ela, tentaram tirá-la daquele

estupor. Âmbar sentia-se culpada. Não sabia como ajudá-la e essa

impotência a torturava. De repente, Opala pareceu voltar a si. Sua expressão

Page 39: A profecia das pedras

retornou ao normal. Tentou falar alguma coisa mas, subitamente, caiu no

chão desacordada. Âmbar deu um grito e ajoelhou-se a seu lado. Jade ficou

de pé, observando a cena, mas seu olhar traía uma inquietude que ela

preferiria não sentir. Felizmente, Opala logo voltou a si.

— O que aconteceu?

Ela demorou para responder. Procurava as palavras certas para

descrever cada sensação.

— Alguém me transmitiu uma mensagem, mas não revelou sua

identidade. No começo, senti uma dor muito forte e meu corpo inteiro se

contraiu. Fiquei entorpecida pelo sofrimento. Escutei uma voz de homem.

Era desagradável e ressoava dentro da minha cabeça. A voz dizia que serei a

primeira a morrer. Cada palavra que dizia me fazia mal. Depois, disse que eu

estava sob seu controle e que nada poderia mudar isso.

— É um de nossos inimigos, que não tem nada melhor para fazer

além de atormentar uma pobre menina — interrompeu Jade. — Lamentável!

— Acho que não — argumentou Âmbar, com um ar muito sério. —

Alguém contactou Opala por telepatia.

— A voz também me enviou imagens — prosseguiu Opala. —

Primeiro, a de uma pequena cidade. Tenho certeza de que era Nathyrnn.

Além da dor inexplicável, comecei a sentir também muita náusea. Então, a

voz falou: nós nos encontraremos neste lugar. Em seguida, vi um livro

enorme, cujo título — A Profecia — estava gravado em letras douradas.

Estava coberto de sangue. A voz invadiu meu espírito: a Profecia não se

cumprirá da maneira como os outros queriam, mas, em um aspecto, ela diz

a verdade. Você morrerá! E o Eleito também sucumbirá. Mas você será a

primeira a cair e é você quem trairá os outros. Você está sob meu domínio e

me obedecerá como um autômato.

— Isso é uma mentira absurda! — gritou Âmbar.

Jade não tentou humilhar Opala, nem lhe dirigiu outra de suas

frases irônicas. Não conseguia sentir nenhuma raiva. Talvez sua inimiga não

fosse tão insensível quanto parecia. Agora mesmo, Opala chegava a comover.

A menina chorava em silêncio.

— Sei que é tudo verdade — disse ela com uma voz cautelosa. —

Estou convencida disso.

— Não é não! — replicou Âmbar. — Opala, você sabe muito bem

Page 40: A profecia das pedras

que essa voz só queria fazer mal a você e com certeza estava mentindo.

— Não. Adoraria que fosse assim, mas sei que é tudo verdade. A

voz me disse ainda outras coisas.

Opala calou-se. Mais lágrimas correram por seu rosto. Conseguiu

conter um pouco seu abatimento, mas a mensagem a tinha deixado

assustada demais para prosseguir.

— Continue! — ordenou bruscamente Jade. — Conte o que mais a

voz disse para você.

— Se isso não perturbá-la demais — apressou-se a completar

Âmbar.

— A continuação da mensagem é totalmente verdadeira. A voz

adquiriu uma entonação que se pretendia suave, mas era rouca e cortante.

Disse que me conhecia melhor do que eu mesma. Que eu jamais tinha me

destacado em nada que fizesse, que jamais senti amor, tristeza, alegria,

medo ou piedade. Disse também que nunca levei ninguém em consideração

e que não me interesso por nada. Que não passo de um fardo para vocês,

que não sou nada. Nada. Para finalizar, disse que ninguém tinha conseguido

me amar, nem conseguiria. E tudo isso é a mais pura verdade. E a realidade.

Opala não explodiu em soluços. Pelo contrário, enxugou as

lágrimas. Ergueu a cabeça com dignidade e declarou:

— Não sou assim. Se ninguém me ama, paciência! Mas, agora, não

preciso mais fingir que não ligo.

Âmbar e Jade calaram-se, impressionadas e um pouco

constrangidas. Jade tinha vontade de rir daquele tom dramático, mas Âmbar

a fez ficar quieta com um olhar severo.

Finalmente, Jade rompeu o silêncio:

— Isso não muda nada. Vamos a Nathyrnn! E temos que partir

imediatamente. Mais tarde, pensaremos nessa mensagem. De qualquer

maneira, não há nada a fazer.

— Gostaria muito de pedir um conselho a nossas pedras — disse

Âmbar. — Essa história da voz não me agradou nem um pouco.

— Você está com medo! — exclamou Jade com desprezo.

— Estou, e daí? Isso é normal, não é? Acho que tenho boas razões.

Além disso, não sou como você.

— Como assim?

Page 41: A profecia das pedras

— Não sou orgulhosa ao ponto de jamais confessar meus

sentimentos.

— Não entendi. Estou enganada ou você está me criticando?

— Você está enganada. Só constatei um fato. Bom, vamos pegar

nossas pedras. Fim da discussão.

Os olhos verdes de Jade brilharam com uma raiva que começava a

brotar, mas sua fúria logo se aplacou. Cada uma das meninas tirou sua

pedra de dentro da bolsa de veludo negro e a apertou na mão. Nada

aconteceu. Jade irritou-se. Âmbar e Opala, decepcionadas, não entendiam o

que estava acontecendo.

— Não temos outra opção. Temos que ir para Nathyrnn — repetiu

Jade.

Âmbar concordou, mas Opala gritou no mesmo instante:

— Não! De jeito nenhum. Quem me enviou aquela mensagem foi

muito claro a respeito do que eu encontraria lá. Não posso ir. É impossível.

— É verdade — apoiou Âmbar. — Você pode estar correndo um

risco real. Vamos evitar este lugar.

Jade teve vontade de protestar. Poderia ter se mostrado inflexível,

falar mais uma vez de seu desejo de encontrar Jean Losserand, de

compreender o mistério de Conto de Fadas e o significado do símbolo. Mas

calou-se. Ainda que fosse de fato egoísta (o que ela não acreditava nem

jamais confessaria), não queria botar a vida de Opala em risco.

No entanto, Jade não era apenas fútil. Era também inteligente. E

percebeu que alguma coisa não fazia sentido naquela mensagem.

Permaneceu de pé, pensativa, e não demorou em encontrar a falha. Então,

segura do que estava fazendo, disse para Âmbar e Opala:

— Vamos para Nathyrnn. Confiem em mim, não há

perigo.

Ele tinha pensado naquilo a noite inteira. Não tinha comido nem

dormido. Não sentia necessidade de nada. Precisava elaborar sua estratégia.

Diante disso, nada mais tinha importância. Pela madrugada, usou a

telepatia para pedir novamente uma reunião ao Conselho dos Doze. A sessão

foi curta. Limitou-se a informar que tudo estava em ordem, que o plano era

infalível e que começaria a ser executado em breve. Intimidados, os membros

Page 42: A profecia das pedras

do Conselho não ousaram perguntar quais eram seus planos. Tinham total

confiança nele. Era seu superior. E ordenou que voltassem ao meio-dia para

uma reunião de suprema importância. Agora que já estava na hora de

reencontrar aqueles incompetentes ávidos de poder e dinheiro, arrumou a

roupa — uma túnica comprida, cor de púrpura e bordada com fios de

ouro — com um gesto seco e dirigiu-se à sala de reunião do Conselho dos

Doze. Abriu a porta com a rudeza habitual. A sua entrada, o silêncio

espalhou-se pela sala. Cada participante foi invadido pelo medo e todos

ficaram imobilizados. Ninguém ousava encará-lo. Satisfeito de ver

sua autoridade respeitada, tomou a palavra. Sua voz cavernosa fez as

paredes vibrarem:

— Opala está sob meu controle — disse calmamente.

— Tudo aconteceu como eu queria. Ela acreditou em cada uma de

minhas palavras.

Entre os membros do Conselho, a admiração se misturou ao

temor. Ele os mediu de alto a baixo por um momento, observando seus

rostos gananciosos, seus cabelos brancos e seus olhos sem brilho. Ele não

conhecia a velhice.

— E agora, o que vai acontecer? — ousou perguntar o Terceiro

membro do Conselho, um homem de idade avançada, mas ainda vaidoso e

influente.

— Não é necessário que você saiba.

— Não... Claro que não... — balbuciou o homem.

Finalmente, os membros do Conselho ousaram levantar os olhos. A

silhueta maciça era envolvida pela escuridão. Só o olhar se destacava da

obscuridade que escondia seu rosto e reluzia com uma cintilação gelada.

— A sessão está encerrada. Manterei vocês informados.

Com essas palavras, abandonou a sala de reunião.

O Conselho esperou que ele saísse. Ele, o Décimo Terceiro

membro, aquele de cuja existência ninguém fora daquelas quatro paredes

suspeitava e que impunha sua vontade a todos. Sua imagem não se refletia

nos diversos espelhos que enfeitavam a sala. Ele não tinha sombra nem

reflexo. Não era um ser humano.

Page 43: A profecia das pedras

8 Âmbar estava espantada com Jade. Era uma menina que parecia

fútil e mimada, mas acabava de provar que podia ser também muito

perspicaz, pois rapidamente percebera o que ela e Opala nem sequer tinham

imaginado:

— Se essa voz ameaça pegar você em Nathyrnn — disse a Opala —,

é porque ela quer que você fique bem longe de lá — afirmou com segurança.

Foi difícil convencer Opala. Seu belo e pálido rosto estava retorcido

pelo medo. Seu corpo inteiro tremia. Cada passo em direção à cidade lhe

custava um esforço sobre-humano. Uma insuportável angústia a invadia, e

ela implorava que desistissem da viagem. Gritou tão desesperadamente que

até ela própria se assustara. Jade ficou uma fera e ordenou que seguissem

viagem. Como Opala não queria saber de mais nada, Jade terminou por dar-

lhe uma bofetada e puxá-la pelo braço. Ela não tinha paciência, nem

moderação, e Opala sabia disso.

— Você vem conosco, quer queira, quer não queira. Você não está

em seu estado normal! Em outras circunstâncias, eu a teria abandonado

aqui sem nem olhar para trás, mas acontece que você é a portadora de um

inimigo telepático que não tem mais o que fazer na vida além de atazanar

seu juízo!

Contrariada, com o rosto em fogo, Opala acabou obedecendo.

— Está se sentindo melhor? — perguntou Âmbar depois de algum

tempo.

Opala recusou-se a responder. A humilhação que acabara de sofrer

era mais forte do que o medo e ela não queria dar a impressão de precisar da

piedade das outras.

— Está tudo bem — disse com segurança.

— Tem certeza? — insistiu Âmbar.

— Tenho.

— Jade, falta muito para chegarmos a Nathyrnn? — perguntou

Âmbar. — Opala ainda está muito fraca.

— Eu estou bem — retrucou a menina, irritada com a solicitude de

Âmbar.

— Ainda falta uma hora... Ou duas — respondeu Jade.

Page 44: A profecia das pedras

— Tem certeza de que este é o caminho certo?

— Absoluta — respondeu secamente Jade.

— Estou com fome — disse Âmbar. — Pela manhã, quase não

tocamos na comida. Está na hora de fazer uma pausa, descansar um pouco

e comer alguma coisa.

— Não — disse Jade.

— Vamos parar, sim! — interveio Opala.

Jade lançou-lhe um olhar tão espantado quanto contrariado. Não

esperava por tal oposição.

— Vamos parar — teimou Âmbar.

— Está certo — suspirou Jade resignada.

Elas foram se sentar fora da trilha, protegidas por ervas secas e

plantas selvagens. Âmbar sorriu ao perceber que o sol brilhava em todo o

seu esplendor. Atacou a comida com um apetite que não imaginava possível.

Deu uma espiada em Opala que, desde a mensagem telepática, parecia

outra. Seus grandes olhos azuis transbordavam de angústia e toda cor havia

abandonado seu rosto. Âmbar sabia que sua preocupação incomodava

Opala, mas estava apreensiva. Sentia necessidade da aprovação dos outros e

gostaria de ser amiga de Opala. Mas sabia que a menina era arredia e que

considerava as outras duas como inimigas em potencial.

— Não tenho fome — disse Opala, recusando o cesto de comida

que Âmbar lhe estendia.

— Podíamos tentar mais uma vez usar as pedras — propôs Âmbar.

— Essas pedras não servem para nada — disse Jade. — Mesmo

assim, desamarrou os cordões de sua bolsa e segurou sua pedra na mão.

Âmbar e Opala a imitaram. Dessa vez, o efeito foi imediato. Foram

tomadas por um turbilhão e uma náusea profunda as invadiu. Uma

angústia terrível se apossou delas. As pedras pareciam vibrar e as meninas

foram sacudidas por estremecimentos. Subitamente, a comunicação se

rompeu. Elas permaneceram de pé, vacilantes. Âmbar e Jade sentiam-se

cansadas, totalmente sem forças. Mas Opala havia recuperado sua atitude

normal e todo o seu medo sumira.

Envergonhada de ter demonstrado fraqueza, queria agora se

retratar.

Page 45: A profecia das pedras

— Vamos partir logo. Fui muito estúpida por não querer ir com

vocês. Fui influenciada pela mensagem e só falei coisas ridículas. Por favor,

esqueçam tudo aquilo.

Queria provar que não era a menina nervosa que tinha falado tanta

bobagem sob o comando da voz. Aquela que ecoou em seu espírito, que a

tinha desorientado e aniquilado com uma facilidade assustadora. Queria

voltar a ser ela mesma. Maquinalmente, as três meninas voltaram a

caminhar.

— Jade, chegando a Nathyrnn, seria bom que você vendesse essas

roupas e jóias e vestisse alguma coisa mais simples — disse Âmbar. — Desse

jeito, você chama muito a atenção.

— Mas eu gosto de chamar muito a atenção — retrucou Jade. — E

não quero ficar parecida com uma camponesa! Se você não tem dinheiro

para comprar jóias, nem um vestido do condado de Tyrel, fique quieta e me

deixe em paz.

Envergonhada, Âmbar não respondeu nada. Era melhor não deixar

Jade ainda mais irritada. Verdade que o vestido, cuidadosamente

confeccionado por hábeis artesãos, caía-lhe muito bem. Transportada pela

imaginação, Âmbar via Jade como uma guerreira, com uma espada

ensangüentada na mão, montada sobre um cavalo branco como a espuma

do mar, o olhar orgulhoso. Dirigiu seus pensamentos para Opala e

imaginou-a como uma princesa dos contos de fada, com um vestido cinza-

perolado, combinando com seus olhos azuis claros e com sua pele pálida.

Ela usava um diadema de ouro que se fundia com sua cabeleira loura e

cacheada. Sob o diadema, Opala mantinha os olhos distantes, como sempre.

Âmbar sorriu com esse pensamento. Mas foi finalmente acordada para a

realidade pela voz de Jade:

— Nathyrnn!

Tinham chegado até ali sem problemas. Pelo caminho,

encontraram apenas camponeses, que podiam até ter ficado espantados com

a presença delas, mas não ousaram nem olhá-las. Mas, agora, os campos e

prados tinham sido substituídos pelas impressionantes muralhas que

cercavam Nathyrnn.

— Como vamos entrar? — perguntou Âmbar, desconcertada.

— Não tínhamos pensado nisso — disse Jade com uma ponta de

Page 46: A profecia das pedras

aborrecimento. Parecia que o perigo e os imprevistos a atraíam.

As muralhas eram guardadas por cavaleiros da Ordem. Três deles

estavam ali, com seus uniformes cinzentos, montados sobre cavalos da

mesma cor e portando espadas afiadas. Eram irredutíveis e impiedosos.

Perseguiam e castigavam as pessoas, aplicando por toda a parte a terrível lei

do Conselho dos Doze.

Jade dirigiu-se a um dos cavaleiros, e fez sinal a Âmbar e Opala

para que a seguissem. Desconfiadas, as duas ficaram um passo atrás da

menina.

— O que querem? — inquiriu brutalmente o cavaleiro. Era

imponente, tinha o rosto grosseiro e nem um pouco simpático. Sua voz era

dura e seca.

— Precisamos entrar em Nathyrnn — respondeu Jade no mesmo

tom, nem um pouco intimidada.

— Me mostre a autorização.

— Qual autorização? — deixou escapar Âmbar.

Jade fuzilou-a com os olhos.

— Não dê ouvidos a ela — disse ao cavaleiro com um sorriso

sedutor. — É uma de minhas criadas e não tem nada dentro da cabeça.

— Mostre a autorização — repetiu o homem. — Ninguém entra em

Nathyrnn sem autorização assinada pelo duque de Divulyon, eleito pelo

Conselho dos Doze e encarregado de administrar este território.

— Sei disso — disse Jade prontamente.

Gostaria de poder dizer que era a filha do duque, mas conteve-se.

Não podia revelar sua identidade a ninguém. Sorriu novamente para o

cavaleiro e o homem pareceu desconcertado com seu jeito. Podia-se notar

que era uma menina rica e, certamente, vinha de uma família influente. Mas

ele obedecia ordens e não podia deixar ninguém entrar sem autorização.

Então, Jade disse:

— Sou Corali de Mordorais, sobrinha do duque de Divulyon, e

essas duas são minha criada e minha acompanhante.

Jade tinha uma prima da mesma idade com este nome. Corali era

filha da irmã do duque.

— Já ouvi falar da sua família — disse o homem, com a voz mais

suave. — No entanto, sem autorização, não posso deixá-la entrar.

Page 47: A profecia das pedras

— Meu pai ficará furioso com o senhor — declarou Jade, com toda

a calma.

— O conde de Mordorais?

— Ele mesmo — afirmou Jade. — O senhor sabe muito bem que

ele trabalha com o duque de Divulyon. Tem muita influência junto ao duque

e, por extensão, junto ao Conselho dos Doze.

— Não duvido.

— Meu pai pediu-me que viesse a Nathyrnn para encontrar um tal

Jean de Losserand. Ele deve entregar-me uma encomenda, um livro de raro

valor.

—E por que o conde de Mordorais não mandou um pajem fazer

isso, ou não providenciou uma escolta para a senhorita? — perguntou o

cavaleiro, desconfiado.

— Porque eu estava com vontade de vir a Nathyrnn e não gosto de

andar escoltada. Meu pai deu-me uma autorização de entrada, assinada pelo

duque de Divulyon, mas eu a perdi. Ele ficará muito aborrecido se eu voltar

de mãos vazias.

Não muito convencido, o cavaleiro ficou quieto, e Jade continuou:

— Como pode duvidar de minha palavra? Basta ver minhas jóias.

Em todo esse ducado, apenas eu e a filha do duque de Divulyon possuímos

jóias como estas. Elas provam que sou Corali de Mordorais e que o senhor

deve me deixar entrar.

— Lamento, mas não posso.

Jade irritou-se.

Deixe-me entrar imediatamente ou juro que meu pai vai arrastá-lo

na lama até que peça perdão! — gritou com os olhos chispando de cólera. —

Vai torturá-lo em praça pública como se você fosse um criminoso comum,

vai fazê-lo morrer com os piores sofrimentos. Se não abrir essa porta agora,

vai se arrepender amargamente!

Eu... eu realmente não posso fazer isso, senhorita.

— Obedeça! — rugiu Jade.

Âmbar sugeriu, baixinho:

— Ja... quer dizer, Corali, quem sabe se você oferecesse uma de

suas jóias a ele?

— Parece que sua criada não é tão idiota como a senhorita diz.

Page 48: A profecia das pedras

— Não vou dar nada para você! — protestou Jade. — Era só o que

faltava, ter que pagar para entrar!

— Então, não vai entrar — concluiu o cavaleiro.

— Isso é o que você pensa. Abra esta porta!

— Não!

— Abra!

— Instintivamente, o cavaleiro levou a mão ao punho da espada.

Foi então que Opala avançou majestosamente, afastando Jade que se

debatia, surpresa. Fixou seu olhar glacial no cavaleiro e dirigiu-se a ele com

um tom calmo e decidido:

— Chega de mentiras. Esta menina não é Corali de Mordorais, nem

eu sou sua acompanhante.

— Então, quem está tentando se passar pela senhorita de

Mordorais?

— Ela é minha acompanhante. Trocamos de lugar para garantir

minha proteção.

— Sua proteção? — espantou-se o cavaleiro, cada vez mais

abismado. — Mas quem é a senhorita?

— Minha família é nobre demais para que seu nome seja

pronunciado diante de um simples cavaleiro — respondeu Opala impassível.

— O Conselho dos Doze me encarregou de uma missão da mais alta

importância. Devo manter sigilo e viajar na mais absoluta discrição.

O cavaleiro olhou para Opala, admirado.

— Mas por que a senhorita não tem a permissão para entrar em

Nathyrnn? — perguntou. — E que missão é essa?

— Estávamos acompanhadas por um guia. Mas, infelizmente, ele

nos traiu. Roubou nossa autorização e fugiu. Quando percebemos, já era

tarde demais. Quanto à minha missão, não posso dizer nada, mas como você

está se mostrando muito compreensivo, vou dizer-lhe uma coisa...

— Diga, diga — pediu o homem, já curioso.

— Minha missão tem a ver com a Profecia e com os três inimigos

do Conselho dos Doze.

O rosto do homem se iluminou.

— Então é verdade? Ouvi falar a respeito...

Opala arrepiou-se. Então, sua intuição estava certa. E continuou:

Page 49: A profecia das pedras

— O senhor compreende que é absolutamente necessário ajudar-

me nessa missão. O Conselho dos Doze não pode ser atrapalhado numa

questão tão urgente!

Opala falava com seriedade. Seus grandes olhos azuis encaravam o

cavaleiro, sem pestanejar.

— Claro... Compreendo — gaguejou ele.

Chamou seus dois companheiros e, juntos, abriram os portões de

Nathyrnn. Sem uma palavra de agradecimento, Opala, muito digna, entrou

na cidade, seguida por Jade e Âmbar.

— Boa sorte! — gritou o cavaleiro da Ordem.

E a imensa porta de Nathyrnn fechou-se atrás delas.

9 Depois de dez anos, Jean Losserand ainda tentava manter o gosto

pela aventura e pela vida. Mas percebia, amargurado, que sua sede de

absoluto morria pouco a pouco. Muito tempo atrás, tinha sonhado em

escapar da prisão que era Nathyrnn, mas a esperança o abandonara e agora

não encontrava forças para mais nada. Às vezes, pensava em sua velha mãe

com tristeza. Acreditava que nunca mais iria revê-la. A monotonia de sua

existência tinha crescido tanto que ocupava todo o espaço antes dedicado ao

amor e à liberdade. Até mesmo os livros tinham perdido seu encanto. Os

contos, as histórias fantásticas, os romances, tudo tinha sido proibido. Só

livros técnicos ou biográficos eram autorizados, porque eles não

incomodavam o Conselho. Jean Losserand era vigiado vinte e quatro horas

por dia, não havia mais nada que o reconfortasse, e ele já tinha desistido de

lutar contra aquela situação. Sua vida estava reduzida a um interminável e

preguiçoso suspiro. Pelo menos, até o dia em que escutou baterem à porta

de sua loja.

Ele tinha tão poucos clientes que não valia a pena abrir a livraria,

que estava em franca decadência. Livros empoeirados e rasgados se

amontoavam de qualquer jeito e a porta da loja permanecia fechada. Ficou

surpreso ao perceber que alguém ainda se interessava por ele. Dirigiu-se a

passos lentos até a porta e abriu. Ficou espantado com as três adolescentes,

tão diferentes, que o olhavam com curiosidade.

Page 50: A profecia das pedras

— O senhor é Jean Losserand? — perguntou Jade.

O livreiro observou a menina. Notou sua vivacidade, e percebeu a

determinação que iluminava seus olhos verdes. "Como pedras de jade",

pensou.

— Perdoe-nos por incomodá-lo — disse Âmbar docemente, mas

precisamos saber se o senhor é Jean Losserand, filho de uma senhora que

mora numa fazenda isolada.

— Com um estábulo muito mal conservado — acrescentou Jade.

Sou eu mesmo. Sou Jean Losserand — disse o livreiro, estarrecido.

— Vocês conhecem minha mãe?

— Ah, sim — disse Jade com uma voz brincalhona. — Ela é muito

hospitaleira.

— Minha mãe? — repetiu o homem, incrédulo.

— Ela mesma — confirmou Jade. — Mas viemos até aqui porque

precisamos de sua ajuda. Podemos entrar?

— Claro, por favor!

Jean Losserand conduziu as inesperadas visitantes até uma sala

contígua, convidou-as a se sentarem em gastas poltronas de veludo

vermelho e trouxe-lhes biscoitos e chá. Aproveitou para observá-las melhor.

Todas as três estavam normalmente vestidas, com roupas de qualidade, mas

sem luxo. Mas as semelhanças paravam aí.

Assim que viu Âmbar, foi assaltado por uma dúvida. Sua mão

esquerda começou a tremer descontroladamente, como acontecia sempre

que ficava muito emocionado. Teve que apoiar o bule de chá sobre uma

mesinha baixa.

Âmbar percebeu seu tremor e serviu o chá de menta nas xícaras de

porcelana rachadas.

— Obrigado — murmurou num suspiro. — Agora, digam, o que

posso fazer por vocês?

— É uma longa história — disse Jade.

A menina calou-se, observando o ambiente. Foi tomar um gole de

chá quente e acabou entornando um pouco sobre a calça. Âmbar a havia

finalmente convencido a vender seu vestido e parte de suas jóias. Jade ficou

aborrecida, mas era preciso evitar chamar a atenção dos habitantes de

Nathyrnn. Acabou cedendo aos argumentos de Âmbar e usou parte do

Page 51: A profecia das pedras

dinheiro obtido para comprar uma roupa mais comum.

Âmbar tirou algumas moedas de cobre de sua bolsa de veludo

preto e também comprou roupas simples e discretas, uma vez que seus

trajes de camponesa também chamavam muita atenção por ali. Também

aproveitou uma fonte pública para lavar o rosto e limpar a mistura de terra,

palha e lágrimas que o cobria. Agora, sentia-se melhor, mais fresca, embora

ainda estivesse cansada: a comunicação estabelecida com a pedra havia

esgotado suas energias. Beliscou um biscoito, sem apetite. Estava aliviada

por ter encontrado Jean Losserand. Tinha sido difícil achar a loja, localizada

numa rua estreita e sombria. Mas tinha que admitir: não gostara de

Nathyrnn. As pessoas pareciam fechadas e mal-humoradas; as ruas, calmas

demais, com raras lojas. Tudo era muito deserto e sem cuidado.

Agora, sentia-se segura por estar na livraria, na companhia

daquele homem que parecia tão gentil e atencioso. Ela o observara com a

atenção de sempre. Jean Losserand era imponente, embora seus ombros se

curvassem um pouco, dando a impressão de que carregava um fardo pesado.

Âmbar imaginava que tivesse entre trinta e quarenta anos. Seu rosto deixava

transparecer bondade e inteligência, mas seus olhos traíam uma espécie de

desespero resignado, misturado com nostalgia.

— Digam em que posso ajudá-las — ele perguntou novamente. —

Quem são vocês? O que estão fazendo em Nathyrnn?

Ele dirigiu a pergunta a Âmbar, mas foi Jade quem respondeu:

— Viemos dos arredores do castelo de Divulyon só para

vê-lo. Só conseguimos entrar em Nathyrnn graças a um brilhante

estratagema de Opala.

Jade indicou a menina com o queixo, deixando entrever uma ponta

de desprezo, que Opala devolveu sob forma de um olhar glacial. Jade

prosseguiu:

— Sabemos que você está do nosso lado e temos inimigos em

comum.

Baixando a voz, acrescentou:

— Parece que o Conselho dos Doze andou se reunindo para falar

de nós. E não foi para falar bem...

— Se vocês são inimigas do Conselho dos Doze, sejam bem-vindas

a Nathyrnn. Aqui é uma verdadeira prisão, onde são trancafiados todos os

Page 52: A profecia das pedras

que saíram de Conto de Fadas — explicou Jean Losserand.

— Não consigo compreender por que o Conselho se preocuparia

conosco — confidenciou Âmbar. — Além disso, temos inimigos que nem

sequer sabemos quem são. Por exemplo, hoje, Opala sofreu um ataque

telepático, muito maléfico e poderoso. Você sabe quem poderia ter feito isso?

— Só os membros do Conselho dos Doze sabem praticar a

telepatia. Bom, em Conto de Fadas também há muitos feiticeiros, mas eles

não poderiam estabelecer contato de tão longe.

— Então é verdade que o Conselho dos Doze está contra nós! —

constatou Jade. — Que coisa incrível! Sempre me falaram tão bem do

Conselho. Meu pai mesmo foi eleito para cuidar de um território e nomeado

duque pelo Conselho. Ele obedecia a todas as leis e ordens desse bando de

velhacos.

Diante do ar espantado de Jean Losserand, Jade explicou:

— Sou Jade de Divulyon. Eu não devia revelar isso, mas confio em

você. Fui expulsa do palácio e descobri que não sou filha verdadeira do

duque.

O livreiro começou a compreender. Então, os rumores que corriam

há dez anos em Conto de Fadas tinham fundamento. E suas dúvidas com

relação a Âmbar transformaram-se em uma certeza. Ele a tinha reconhecido.

Era ela mesmo! Observou cada traço de seu rosto. Tudo confirmava sua

suspeita. Jean Losserand foi invadido por uma alegria intensa. Ela estava

viva! Um raio de sol iluminou seu coração e ele foi tomado por uma onda de

emoção. A esperança retornou de uma vez só e, com ela, um amor sem

limites pela vida. Ele repetia para si mesmo a frase mágica: Ela está viva! A.

frase queimava seus lábios, mas ele sabia que precisava se conter. Era difícil

segurar a alegria, mas ficou calado.

Nesse meio tempo, Jade procurava o papel onde tinha desenhado o

símbolo. Assim que conseguiu encontrá-lo, estendeu-o a Jean Losserand,

que o olhou com curiosidade.

— O que é isso — perguntou apressadamente. — Pode decifrá-lo?

O livreiro observou o desenho por um curto instante e respondeu:

— É um símbolo escrito numa antiga linguagem de Conto de

Fadas.

— É mesmo? — espantou-se Âmbar. — E o que quer dizer?

Page 53: A profecia das pedras

— É bastante complexo. Tem a ver com a sabedoria e com o poder

de ler o que os corações escondem... Ao mesmo tempo, pode-se ler este

símbolo como um nome próprio: Oonagh.

— Oonagh? — repetiu Âmbar, imediatamente seduzida pela

musicalidade do nome.

Jean Losserand explicou:

— Oonagh é uma criatura que vive em Conto de Fadas, um país

cujo povo foi, em grande parte, dizimado pelo Conselho dos Doze. É uma

criatura mágica, cuja sabedoria é reconhecida por todos, e que tem o dom de

ler os corações. Todos falam dela com muito respeito.

— Oonagh mora em Conto de Fadas! — repetia Âmbar, com a

imaginação em êxtase.

— Sim, dentro de uma gruta cheia de cristais.

— Parece que precisaremos ir ver essa Oonagh — disse Jade. —

Mas fale-nos mais um pouco sobre Conto de Fadas. Não se trata de uma

lenda?

— De jeito nenhum — assegurou Jean Losserand. — Realmente

estive lá.

— E como é esse país?

Contarei tudo o que sei. Mas, antes, é preciso que vocês acreditem

ilimitadamente no impossível para conseguir transpor o campo magnético

que cerca Conto de Fadas. Precisam ser como crianças inocentes e

confiantes no irreal. Talvez isso seja um pouco difícil para vocês...

— Para mim, de jeito nenhum — disse Jade orgulhosamente,

porque ela não podia imaginar que existisse alguma coisa no mundo que ela

não conseguisse fazer.

— Quem são os habitantes de Conto de Fada? — perguntou

Âmbar. — Princesas em perigo, cavaleiros e feiticeiros?

— Também. Muito tempo atrás, quando o Conselho dos Doze ainda

não tinha o poder que tem hoje, centenas de pessoas com poderes mágicos

viviam livremente pelo mundo. Os humanos eram apenas uma entre as

espécies evoluídas e todos respeitavam as diferenças. No entanto, embora

esses seres fossem muito bem intencionados, o Conselho dos Doze temia seu

imenso poder. Quando se tornou mais influente, começou a semear, no

coração dos humanos, o ódio contra as outras raças. Assim, pouco a pouco,

Page 54: A profecia das pedras

abusando da confiança total dessas pessoas tão diferentes de nós, conseguiu

destruí-las. Foi um período de barbárie, vergonhoso.

Uma sombra de medo passou pelo doce olhar de Âmbar e ela

perguntou, com a voz embargada:

— E depois, o que aconteceu? Por que ninguém se revoltou? Por

que ninguém tentou salvá-los?

— Ninguém compreendeu direito o que estava acontecendo. As

pessoas confiavam em seus semelhantes e estavam acostumadas à paz.

Tudo aconteceu de maneira muito confusa e dissimulada. Por fim, as

criaturas mágicas, pacíficas por natureza, decidiram evitar mais

derramamento de sangue. Os sobreviventes isolaram-se em um território

recuado e ainda livre da civilização, mas com terra rica e fértil. Chegando lá,

conjuraram seus poderes e criaram campos magnéticos para se protegerem

do mal. E assim nasceu Conto de Fadas, que é hoje um país próspero, de

uma beleza estonteante, onde os homens e seres dotados de poderes

sobrenaturais convivem em harmonia, como em outros tempos. Infelizmente,

lá também há pessoas más. Onde existe vida, não existe apenas o bem. Mas,

pelo menos, o Conselho dos Doze não tem nenhum poder lá dentro. É um

território livre.

— Que história bonita! — murmurou Âmbar emocionada.

— Também acho — disse Jade, sem a mesma emoção.

— Conto de Fadas fica muito longe daqui?

— Não. É até bem perto — respondeu Jean Losserand. — Nathyrnn

fica nos limites do ducado de Divulyon. A fronteira do ducado está a menos

de um quarto de hora daqui, mas é muito bem vigiada. Muito poucos

conseguem atravessá-la. Logo depois, erguem-se os campos magnéticos

que cercam Conto de Fadas.

—Então, é bem perto mesmo. Vai ser fácil chegar lá — animou-se

Jade.

— Não acredite nisso — retrucou o livreiro. — Primeiro, você

precisa de uma autorização para sair de Nathyrnn. E, depois, o mais difícil:

será preciso atravessar a fronteira.

— Para sair de Nathyrnn, não teremos problemas: Opala inventou

uma mentira muito plausível — afirmou Jade, com certa frieza, ainda

chateada por não ter conseguido convencer o cavaleiro da Ordem.

Page 55: A profecia das pedras

— Foi mesmo! — apoiou Âmbar entusiasmada. — Conte para ele,

Opala!

A contragosto, Opala explicou, com sua voz neutra:

— Uma intuição me levou a dizer que estávamos a serviço do

Conselho dos Doze. Eu estava totalmente convencida de que a mensagem

telepática tinha partido deles. Eu sabia, sentia que éramos inimigas.

Jean Losserand estremeceu ao ouvir essas palavras.

— É claro que, durante as mensagens telepáticas, os espíritos

ficam ligados, mas não se consegue ler os pensamentos do outro! A não ser...

A não ser que o objetivo dessa comunicação seja o de causar sofrimento ou

medo.

O silêncio tomou conta do ambiente.

— A voz também falou de uma profecia, de um livro coberto de

sangue — contou Âmbar, num fio de voz. — Você sabe que livro é esse?

Jean Losserand pesou cuidadosamente as palavras, temendo

revelar o que não devia. Olhou para Âmbar mais uma vez e observou seus

traços doces, seu olhar caloroso, antes de falar:

— A Profecia foi escrita por um filósofo chamado Neophileus,

alguns séculos atrás. Ele fazia parte de um povo alegre, de caráter forte e

indomável, os Clorhyuns. Neophileus tinha o dom de ler o futuro e previu a

destruição parcial de seus descendentes, alguns séculos mais tarde,

pelo Conselho dos Doze. Infelizmente, a paz parecia tão assegurada que

ninguém acreditou nele.

O olhar das três meninas estava fixado em Jean Losserand. O de

Jade brilhava de curiosidade, o de Âmbar transbordava de interesse e

compreensão, e o de Opala permanecia indecifrável.

— Neophileus também previu que chegaria o dia em que os tempos

mudariam e o mundo se transformaria. Vislumbrou um sério problema no

futuro e, depois, pela primeira vez, não conseguiu decifrar claramente o que

viria mais tarde.

— Não entendi — disse Âmbar.

— Isso quer dizer que, a partir de certo ponto da curva do tempo, o

futuro estava indefinido. Em vez de seguir uma linha reta, dividia-se em

vários caminhos. A humanidade escolheria um desses caminhos, que

transformaria o mundo tal como o conhecemos. Então, Neophileus escreveu

Page 56: A profecia das pedras

A Profecia.

Jean Losserand calou-se. Já tinha dito o suficiente.

— Então, precisamos mesmo ir até Conto de Fadas e falar com

Oonagh — disse Âmbar. — Mas como vamos passar pela fronteira de

Divulyon?

— Não sei — respondeu o livreiro. — Quando fui para Conto de

Fadas, a fronteira só existia na teoria. Agora, as coisas mudaram.

—Daremos um jeito — disse Jade, sem hesitar.

— Como? — perguntou Âmbar.

— Não posso ajudá-las — disse Jean Losserand. — Mas procurem

um rapaz chamado Adrien de Rivebel. Embora só tenha dezesseis anos, já

passou três anos nas masmorras de Nathyrnn. Acaba de ser solto.

— Mas por quê? — espantou-se Âmbar.

— Ele nasceu em Conto de Fadas. Vem de uma família nobre, de

cavaleiros. Com treze anos, Adrien quis descobrir o mundo. Fugiu de casa.

Os cavaleiros da Ordem o pegaram na fronteira de Divulyon e o jogaram na

prisão.

— Isso não é justo! — indignou-se Âmbar.

— Claro que não — concordou Jean Losserand. — Mas correm

rumores. Dizem que ele não é como os antigos prisioneiros. Não se deixou

abater pela prisão. Em vez de destruir seu caráter, as grades da cela o

fortaleceram. Foi condenado a viver aqui, nessa cidade sem brilho, nem

esperança. No entanto, segundo dizem, está tentando organizar uma revolta

para libertar os habitantes de Nathyrnn.

— Gosto muito de revoltas! — exultou Jade. — E uma boa idéia.

— Infelizmente, é impossível — retrucou o livreiro.

— Não existe impossível para quem crê — retorquiu Âmbar.

Jean Losserand sorriu tristemente. Ele não tinha mais forças para

sonhar com o impossível.

— Procurem Adrien de Rivebel — suspirou ele. — Talvez ele possa

ajudá-las.

Jade jogou uma mecha de cabelo para trás e disse:

— Não estamos precisando de ajuda, mas procuraremos Adrien de

Rivebel. E preciso libertar Nathyrnn.

— Já falei: é impossível! — suspirou o livreiro.

Page 57: A profecia das pedras

— Sua mãe está à sua espera, senhor Losserand — retrucou Jade.

— E prometi a ela levar notícias suas. Não seria melhor se você lhe desse as

notícias pessoalmente?

E, com um ar desafiador, a menina completou: — Nada é

impossível!

10 Âmbar esperava encontrar um príncipe encantado como os dos

contos de fadas, galante e poético, mas Adrien parecia mais um cavaleiro

com traços fechados, nítidos e bem talhados. Tinha um ar pensativo e

ponderado, e apenas os olhos escuros demonstravam a coragem e a paixão

que se agitavam dentro dele.

Os cabelos castanho-escuros, desalinhados, acentuavam seu

aspecto misterioso. Adrien sabia fingir indiferença e trancar seus

sentimentos no fundo da alma. Graças a isso, resistiu a três anos de

reclusão. Era inocente de todas as acusações que lhe tinham feito e essa

certeza o tinha ajudado, em vez de desesperá-lo. Sabia que a raiva não lhe

serviria para nada e a ignorou, embora uma voz clamasse por justiça dentro

de seu coração.

Agora que tinha saído da prisão, deixava que sua verdadeira

natureza voltasse a dominá-lo. Tinha concebido o plano da revolta de

Nathyrnn nos mínimos detalhes. Era preciso libertar a cidade para poder se

libertar também. Procurava aliados para a causa. Criara um estratagema,

mas ainda não tinha encontrado ninguém que pudesse ajudá-lo a pô-lo em

prática. Quase todos os habitantes de Nathyrnn tinham sido aniquilados,

fosse pela prisão, fosse pela resignação ou pelo hábito. Poucos ainda

mantinham vivos seus sonhos e esperanças. Estes simpatizavam com a

revolta de Adrien, mas não ousavam se juntar a ele. Ainda não. Não estavam

inteiramente convencidos, mas poderiam ficar.

Adrien aguardava ajuda, sem se desesperar. E essa ajuda apareceu

na hora em que ele menos esperava, quando encontrou Jade, Âmbar e

Opala. Não ficou nem um pouco surpreso ao vê-las entrar no minúsculo

quarto que ocupava no albergue. Recebeu-as cordialmente e indicou

algumas cadeiras bambas para se sentarem.

Page 58: A profecia das pedras

Adrien de Rivebel era culto e inteligente: logo percebeu quem eram

suas visitantes. Em Conto de Fadas, várias histórias falavam delas. Ele

próprio tinha consultado Oonagh, ao completar dez anos, para conhecer o

caminho que deveria seguir. A criatura mágica tinha respondido:

— Você não é o Eleito. Mas não poderá ficar na sombra. Seu

coração é orgulhoso e ardente. Procure a água para deter esse calor

devastador, nunca a madeira para atiçá-lo.

— Mas por quê? — perguntou o menino, perturbado.

— Você pode vir a correr grande perigo. E precisará prestar muita

atenção para não colocar outras vidas em perigo. Não dê ouvidos ao seu

coração. Ele é passional demais. Abra bem os olhos e deixe a razão guiar

seus passos.

— Isso é muito confuso — murmurou Adrien.

—Um dia, seu caminho cruzará com o daquelas que todos

esperam, e então você compreenderá.

Agora que as três pedras da Profecia estavam diante dele, não se

sentia completamente seguro sobre o caminho a seguir. Mas percebia

claramente que, juntos, eles poderiam dar um passo na direção correta.

Evidentemente, não disse nada às meninas sobre o que havia compreendido.

No começo, nenhuma delas abriu a boca. Limitaram-se a observá-

lo com atenção. Jade logo compreendeu que tinha encontrado um aliado,

alguém parecido com ela. Podia ver nos olhos de Adrien que, unidos,

conseguiriam organizar a revolta de Nathyrnn. Não prestou atenção à

intensidade do olhar que Adrien lhe dirigia, mas o fato não escapou à

atenção de Âmbar e de Opala.

Âmbar estava assombrada com o rapaz. Percebia que era orgulhoso

e determinado, exatamente como Jade, mas com muito mais controle sobre

suas emoções. "Teremos problemas", pensava ela. "Duas pessoas tão

parecidas, tão ardentes, não podem... não devem... se sentir atraídas, ou

pior, se apaixonarem!"

Um pensamento diferente tomava conta de Opala. No momento em

que seus olhos pousaram sobre o rapaz, uma profunda mudança se operou

dentro dela. Uma forte emoção balançou seu coração. Um calor difuso a

invadiu. Não conseguia lutar contra essa nova sensação, nem desejava fazê-

lo. Perturbada, perguntava-se o que estava acontecendo. Opala encarava

Page 59: A profecia das pedras

Adrien sem nenhum disfarce. Era como se uma agradável doença tomasse

conta dela. E uma intuição atravessou seu espírito: compreendeu, soube que

tinha sido feita para amar aqueles olhos verde-acinzentados. Teve a certeza

de que ela e Adrien deveriam ficar juntos, não poderia ser de outra maneira.

Logo ela, normalmente tão fria, sufocava de calor. Mas o olhar de Adrien

estava fixado em Jade. Isso, Opala viu bem. Estranhamente, não sentiu

inveja, nem ciúme. Disse calmamente para si mesma: "Está errado. Adrien

não pode olhar para Jade desse jeito. Ele está sentindo por ela a mesma

coisa que estou sentindo por ele... Então, ele terá que mudar".

Nesse meio tempo, Jade, entusiasmada com a idéia de promover

uma revolução, de desafiar a lei e provar sua coragem, estava envolvida em

uma animada conversa a respeito da insurreição da cidade.

— Um amigo nos contou que você está preparando uma revolta em

Nathyrnn — disse ela, dirigindo a Adrien um sorriso cúmplice.

Ela o tratava sem a menor cerimônia. Ele só devia ter uns dois

anos mais do que ela. Além disso, Jade pouco estava se preocupando com a

educação.

— Não quero passar minha vida entre os muros desta cidade tão

triste — respondeu Adrien. — Primeiro, pensei em fugir daqui, para voltar a

Conto de Fadas. Mas quero que todos os habitantes de Nathyrnn sejam

libertados. E tenho uma solução para isso.

— Qual? — perguntou Jade, com os olhos cintilando de interesse.

— É meio complicado. Precisaríamos recorrer à magia e não

encontrei ninguém capaz de realizar o que estou imaginando.

— E o que é? — perguntou Jade, impaciente.

Alguém precisa lançar um feitiço e adormecer profundamente

todos os que estiverem fora do círculo encantatório.

— Círculo encantatório? O que é isso?

— É um pequeno círculo de proteção que se forma em torno do

feiticeiro quando ele pronuncia suas palavras mágicas. Isso o protege de seu

próprio encantamento. Assim, o círculo o manterá acordado. Uma vez que o

círculo seja formado e o feitiço seja lançado, o mágico pode sair dele: o

encantamento não pode mais atingi-lo.

— Acho que seu plano tem um problema — disse Jade. — Desse

jeito, os cavaleiros adormecerão, mas os habitantes de Nathyrnn também!

Page 60: A profecia das pedras

— Exatamente! Só um mágico muito experiente conseguirá

produzir um círculo encantatório tão grande que proteja todos os habitantes

de Nathyrnn.

— Assim, todos conseguirão escapar sem riscos — completou Jade.

— Não totalmente sem riscos. O sortilégio não dura mais do que

dez minutos. Mal dará tempo de abrir as portas da cidade e escapar. Depois,

para chegar à fronteira do ducado de Divulyon, será preciso repetir o feitiço

algumas vezes. E esse é um problema e tanto: conjurar um encantamento

tão potente já é difícil. Repeti-lo a curtos intervalos de tempo é quase

impossível.

— Quase — sublinhou Jade. — Quase impossível. Isso faz muita

diferença.

De repente, Opala quebrou seu silêncio.

— Adrien, você já encontrou o bruxo capaz de pôr seu plano em

prática?

— Ainda não — confessou o rapaz.

— Nós podemos fazer isso. Pelo menos, acho que podemos — disse

ela.

— Nós? Como? — espantou-se Âmbar.

— Com as pedras! — respondeu Opala. — O que ele precisa não é

uma fonte de grande poder? Pois então...

Adrien nem tentou fingir espanto. Estava justamente esperando

que a conversa chegasse nesse ponto.

— Digamos que seja possível. Mas ainda teríamos outro problema.

Seria preciso avisar à população sobre a hora exata da fuga para que todos

estejam prontos.

O rapaz sabia que a revolta faria correr sangue. Mas não queria

assustar ainda mais suas novas aliadas.

— Quando seria a fuga? — perguntou Âmbar.

— Daqui a um mês, o que vocês acham? — propôs Adrien.

Ele já esperava pela reação de Jade. Foi exatamente a que ele

imaginava.

— De jeito nenhum! — disparou ela. — Não vou esperar um mês.

Quero chegar a Conto de Fadas o mais rápido possível.

— O que você quer dizer com "o mais rápido possível"? —

Page 61: A profecia das pedras

perguntou Âmbar.

— Hoje à noite.

— Hoje à noite? — exclamaram Âmbar e Adrien ao mesmo tempo.

— Tem que ser possível — disse Jade. — Nossos inimigos

contataram Opala usando a telepatia, não foi? Pois usaremos o mesmo

estratagema para avisar a população!

— Para atingir cada espírito dessa cidade — começou Adrien, seria

preciso que vocês...

— Seria preciso que nós tentássemos! — interrompeu Jade. — De

tanto duvidar, corremos o risco de terminar nossos dias nessa cidade. E isso

está fora de questão!

— Não é tão simples assim — lembrou Adrien. — Isso vai exigir um

grande esforço de vocês e... E sabe do que mais? Você está certa! Se vocês

chegaram até aqui, também conseguirão nos ajudar a sair! — concluiu o

rapaz, contagiado pelo entusiasmo de Jade.

Âmbar deu um profundo suspiro. Não estava totalmente

convencida, mas Jade e Opala já tinham tirado suas pedras das bolsas de

veludo preto. Ela hesitou. Tinham acabado de conhecer Adrien. Não seria

prematuro depositar tanta confiança nele? Mesmo assim, pegou sua pedra.

No fundo, a idéia de ficar prisioneira em Nathyrnn era tão desagradável para

ela quanto para Jade.

— Pensem apenas em seu objetivo: avisar os moradores da fuga —

disse Adrien. — Se a mensagem for bastante clara e sua vontade, bem forte,

as pessoas ficarão convencidas. Concentrem toda a sua energia.

Opala balançou a cabeça em sinal de concordância, mas Âmbar

resistiu, sem saber bem por quê. Segurando as pedras, as três meninas

firmaram seu pensamento na libertação de Nathyrnn. Seus rostos se

tornaram avermelhados pelo esforço que faziam. Então, aconteceu uma coisa

completamente inesperada. As meninas fecharam os olhos ao mesmo tempo.

Sob o olhar estupefato de Adrien, uma esfera translúcida, saída de não se

sabe onde, materializou-se em torno delas e começou a flutuar, levando as

três meninas em seu interior. A esfera parecia frágil como uma bolha prestes

a estourar, mas, na realidade, era mais resistente do que uma armadura de

ferro. As meninas nada percebiam. Uma imagem ocupava suas mentes: a de

uma multidão atravessando as portas da cidade. Elas murmuravam palavras

Page 62: A profecia das pedras

que não conheciam, projetavam imagens cujo sentido lhes escapava.

Alguma coisa tinha se apossado delas, mas essa coisa parecia vir

do fundo de suas almas. Sem perceber, estavam transmitindo esses

pensamentos para toda a população de Nathyrnn.

Adrien, impressionado, observava a cena. Podia ouvir as palavras

que Jade, Opala e Âmbar transmitiam por telepatia. Elas repercutiam em

seu espírito, persuasivas.

Ao fim de um quarto de hora, a esfera iniciou uma lenta descida e

pousou sobre o chão. A bolha sumiu tão repentinamente quanto havia

aparecido.

Jade e Opala não pareciam nem um pouco afetadas pelo prodígio

que acabavam de realizar. Voltaram tranqüilamente para suas cadeiras.

Jade sorria, cheia de si. Mas os olhos de Âmbar estavam perdidos no vazio.

Sem nem mesmo procurar uma cadeira, ela sentou-se no chão e começou a

chorar:

— Nunca mais a verei... Eu não deveria ter... e sem nem pedir

desculpas... Não sobreviverei...

Bruscamente, sua entonação mudou e Âmbar brandiu o punho

num gesto ameaçador. Sua voz tornou-se violenta:

— Não quero! Deixe-me em paz! Quero ser livre! Pare

com isso!

— Âmbar — gritou Jade. — O que está acontecendo? Adrien

suspirou:

Era o que eu temia. Ao entrar em contato com todos os habitantes,

Âmbar absorveu seus pensamentos. Será preciso sentir as emoções de cada

um deles até conseguir se libertar do transe. Isso vai durar algumas horas.

— Mas por que Opala e eu não fomos também atingidas? —

perguntou Jade.

— Isso quer dizer que Âmbar é dotada de grande sensibilidade —

explicou Adrien. — Mas não se preocupem. Vai passar e deixar apenas uma

lembrança desagradável.

— Tem certeza? — perguntou Jade.

— Absoluta. O mais importante é que vocês conseguiram! Foi uma

proeza. E isso quer dizer que temos uma chance. Genial!

— Obrigada — disse Jade, sem nenhuma modéstia. — Não foi tão

Page 63: A profecia das pedras

difícil assim.

— Ainda bem, porque o que temos pela frente não será nada fácil.

— Veremos — disse Jade. Depois, com a voz um pouco alterada,

completou: — Não tenho medo.

Paris, 2002 Acordei. Pela primeira vez em muito tempo, escutei as batidas de

meu coração e me senti viva e feliz por isso. Com dificuldade, percebi um

raio de luz no fim do abismo negro da dor, da escuridão cotidiana e sem

esperança. Não podia ignorar que a morte me espreitava, que ela tomaria

conta de mim sem nenhuma piedade. Eu tinha medo. Sentia frio. Minha vida

não tinha sentido. Embora viva, eu já estava morta. Os dias eram todos

iguais, desesperados, inúteis e repletos de sofrimento. A doença me

devorava. Não conseguia mais combatê-la. Esgotei minhas lágrimas e minha

coragem. Nada mais me restava. Tudo parecia sem sentido. No fundo, minha

existência tinha se reduzido a nada; não me sobravam forças nem mesmo

para achar que o desespero era uma injustiça.

Uma noite a mais, igual àquelas que vieram antes e às que viriam

em seguida. Pelo menos, era isso o que eu pensava quando adormeci. Não

costumo sonhar. Durmo pouco e mal. Mas, dessa vez, aconteceu uma coisa

rara. Tive um sonho maravilhoso e incrivelmente real. Deu-me a impressão

de que, num mundo longínquo, ele acontecia de verdade. Como saber se os

sonhos não são mensagens de uma existência real e se minha vida, tão sem

sentido, não é o reflexo desse mundo desconhecido? Tive um acesso de

tosse. Agarrei-me à lembrança do sonho com todas as forças. Jade, Opala e

Âmbar... Estranho! As iniciais de seus nomes formavam meu apelido: Joa.

Antigamente todo mundo me chamava assim, embora meu nome verdadeiro

seja Joana. Tentei engolir o nó que se formava em minha garganta. Julgava

que tinha ultrapassado a fase em que a saudade trazia lágrimas aos meus

olhos. Joa. Isso pertencia ao passado. Um tempo que tinha ido embora.

Agora, eu não tinha mais nome, já que ninguém se dava ao trabalho de falar

comigo. Eu não passava de um corpo inerte, sobre uma cama, em um

quarto. Nada.

Page 64: A profecia das pedras

Voltei a fechar os olhos. Minhas pálpebras queimavam. A

esperança não me levaria a lugar algum. Ainda assim, eu queria que o sonho

continuasse.

11 Jade e Adrien prepararam cuidadosamente o plano de fuga. Não

pareciam duvidar do sucesso. O rapaz levou um bom tempo procurando a

fórmula mágica em livros ocultos. Finalmente, sacudiu uma folha amarelada

e gasta pelo tempo. Jade a examinou e organizaram um cronograma para as

operações. Por fim, chegou a hora de conjurar o feitiço.

— E tarde demais para voltar atrás — pensou Opala. — Agora,

deveria ir até o fim. No entanto, alguma coisa dentro dela dizia o contrário.

Âmbar já tinha saído do torpor, mas ainda se sentia muito

debilitada. Jade e Adrien estavam impacientes para começar.

Jade pegou a fórmula mágica e Opala aproximou-se. Âmbar

juntou-se a elas, com as pernas ainda bambas e a cabeça enevoada.

— Bom — disse Adrien, com o coração aos pulos. — Vamos lá!

Basta recitar a fórmula mágica sem parar, sem interromper. O círculo

encantatório é invisível. Vocês serão a fonte que alimentará a magia.

As meninas pegaram as pedras.

Os habitantes de Nathyrnn já devem estar a caminho da saída da

cidade — disse Adrien, febril. — Vou encontrá-los lá. Nesse meio tempo,

vocês vão recitar o encantamento. Então, eu abro as portas da cidade, vocês

me encontram lá, e todos estarão livres!

— Já sabemos — disse Jade. — É muito simples.

— Não será muito fácil para vocês chegarem até lá — preveniu

Adrien. — O esforço necessário para fazer o encantamento as deixará muito

enfraquecidas. Espero que o cansaço só as pegue quando já estiverem fora

de Nathyrnn.

— Sem problemas — cortou Jade, com firmeza.

— Concentrem-se bem — insistiu Adrien.

— Chega! Você já explicou tudo! — resmungou Jade, impaciente.

Não chegaram a discutir. Adrien foi ao encontro dos habitantes da

cidade. As meninas apertaram suas pedras nas mãos e começaram a recitar

Page 65: A profecia das pedras

a fórmula mágica. Nada aconteceu. As palavras não faziam sentido.

Tornaram a ler a fórmula diversas vezes. Seus corpos foram invadidos pela

lassidão. Depois de alguns minutos, pararam ao mesmo tempo,

compreendendo que o feitiço já tinha sido lançado. Não estavam cansadas,

não tinham mais capacidade de refletir ou de falar. Eram apenas corpos

desprovidos de pensamentos. No entanto, sabiam o que deviam fazer, como

se estivessem controladas por uma vontade desconhecida. Correram até a

saída de Nathyrnn, onde Adrien as esperava diante das portas abertas. As

pessoas estavam maravilhadas e agitadas. A liberdade parecia um milagre.

— Chegaram! — exclamou Adrien quando viu as meninas. —

Parece que tudo está dando certo. Agora, é preciso tirar todo mundo daqui.

Alguns virão conosco até Conto de Fadas, outros seguirão para suas

próprias cidades.

Jean Losserand estava entre os últimos. Finalmente, reencontraria

sua mãe e seu lar. Do meio da multidão que se apressava em sair, fez um

sinal para Jade, Opala e Âmbar, com os olhos molhados por lágrimas de

felicidade e incredulidade. Mas as meninas não o viram. E, ainda que o

vissem, não poderiam reconhecê-lo.

Adrien prosseguiu:

— Agora, continuem. Preciso libertar os prisioneiros que estão

trancados nas celas. Sei onde encontrar as chaves, mas isso tem que ser

feito logo. Avancem na direção de Conto de Fadas durante dez minutos,

depois façam uma parada para descansar e esperem por mim.

As meninas permaneceram em silêncio. Seguiram a multidão com

o espírito vazio, sem manifestar o menor espanto diante da inacreditável

cena: a população inteira empurrando-se para fora da cidade enquanto os

cavaleiros da Ordem dormiam tranqüilamente...

As meninas e uma parte dos habitantes de Nathyrnn avançaram

pela noite. De acordo com as instruções de Adrien, pararam ao fim de dez

minutos. Pouco depois, o encantamento acabou. Jade, Opala e Âmbar

desmaiaram sobre a terra seca. A magia tinha esgotado suas energias.

Enquanto durou seu efeito, as meninas não se deram conta, mas agora

percebiam como estavam debilitadas. Todos os esforços para fazê-las voltar a

si revelaram-se inúteis.

Dez minutos mais tarde, Adrien chegou, acompanhado por mais de

Page 66: A profecia das pedras

cento e cinqüenta prisioneiros.

— Até agora, tudo está indo muito bem — disse o rapaz.

Um dos mais velhos habitantes de Nathyrnn apontou para as

meninas caídas no chão. Adrien sabia que o estado delas não era grave,

mas, vendo Jade imóvel e inconsciente, não pôde deixar de sentir um

calafrio. Logo se recompôs.

— Vamos prosseguir. Eu carrego uma das meninas e vocês levam

as outras. Antes de chegarmos à fronteira, elas já estarão recuperadas.

Estão apenas esgotadas. Foram elas que lançaram o encantamento que nos

permitiu chegar até aqui.

Um murmúrio admirado percorreu a multidão. Com um gesto

brusco, Adrien interrompeu o falatório.

— Elas não terão forças para lançar um segundo encantamento e

adormecer os cavaleiros que guardam a fronteira. Não há escolha: será

preciso provar que nossos sonhos valem a pena, que nossa coragem não é

apenas ilusão. Teremos que lutar.

Um clamor amedrontado elevou-se da multidão. Adrien manteve-se

imperturbável:

— Antes de saírem, os prisioneiros pegaram as espadas dos

cavaleiros adormecidos. Como alguns ainda são crianças e outros não têm

forças para o combate, as armas serão entregues aos mais fortes e hábeis

entre nós. Não fugimos à toa! Temos um objetivo e ele está próximo. Aqueles

que possuem coragem para lutar, dêem um passo adiante. Nada resiste à

esperança!

A fronteira do ducado de Divulyon era fortemente vigiada, mas

diante do ardor de Adrien, de sua vontade inabalável, cada homem forte deu

um passo à frente. Adrien se encarregou de distribuir as armas.

— Nada resiste à esperança — murmurou pela segunda vez, para

tentar convencer a si próprio.

Os habitantes de Nathyrnn retomaram a marcha. Dois homens

carregavam Jade e Âmbar. Adrien encarregou-se de levar Opala. O rapaz

percebeu que uma certa nobreza emanava da menina. Deixou-se levar pelo

calor do corpo que apertava contra si e avaliou a tropa que conduzia. Em

cada olhar, brilhava uma determinação emocionada. Mulheres, velhos,

crianças, todos avançavam corajosamente. A noite estava escura, mas o

Page 67: A profecia das pedras

caminho pedregoso que atravessavam era o da liberdade. Ninguém falava,

saboreando a frágil tranqüilidade que os envolvia.

As três meninas não demoraram a voltar a si. Estavam exaustas,

com uma forte dor de cabeça, o corpo dolorido, mas lúcidas. Bem que

gostariam de tentar novo encantamento, mas estavam totalmente

incapacitadas. Os homens pousaram-nas no chão, mas elas mal conseguiam

se manter de pé e caminhar. Foi preciso ampará-las por um bom tempo.

Cerca de um quarto de hora mais tarde, os combatentes chegaram

à fronteira do ducado de Divulyon. A escuridão os protegia dos olhares

inimigos. Diante deles, enfileiravam-se centenas de cavaleiros da Ordem.

Logo adiante, o campo magnético que envolvia Conto de Fadas formava uma

abóbada que, embora opaca, emitia uma deslumbrante claridade.

— Lutem com bravura! — disse Adrien aos homens armados. —

Vamos fazer uma bela confusão para distrair os guardas e permitir que os

mais fracos passem primeiro. Só recuem em último caso.

Com essas palavras, o rapaz brandiu sua espada e avançou,

seguido pelos homens. Na falta de armas, alguns entraram na batalha

apenas com gritos de guerra e mãos nuas.

No início, o ataque surpresa funcionou bem. Mães e crianças

correram em debandada para o campo magnético. Ocupados em defender-se

dos atacantes, os cavaleiros da Ordem pouco puderam fazer para detê-las.

As crianças entraram em Conto de Fadas sem dificuldades e suas mães

conseguiram acompanhá-las. Mas, no campo de batalha, o jogo virava

rapidamente. Os cavaleiros da Ordem venciam seus adversários sem

piedade. Apenas uma dezena de homens, entre eles Adrien, estavam

conseguindo desestabilizá-los de fato. Muitos dos antigos habitantes de

Nathyrnn caíam, agonizantes ou gravemente feridos. Protegidos pela

escuridão, restavam apenas uns poucos homens frágeis, alguns idosos,

várias senhoras, Jade, Âmbar e Opala.

— Se esperarmos mais, não conseguiremos passar — disse Jade

repentinamente. — Temos que tentar agora. Corram! Salvem-se! Não parem,

passem entre os cavaleiros. Ainda há alguma esperança. Sigam-me!

Juntando as poucas forças que havia recuperado, Jade entrou na

briga, sem o menor medo, e pegou no chão uma espada manchada de

sangue. Sua educação tinha sido completa. Conhecia línguas antigas, mas

Page 68: A profecia das pedras

também sabia lutar muito bem. Ergueu a espada. Nesse momento, o tilintar

das armas em choque diminuiu, e depois silenciou completamente.

Tanto os cavaleiros da Ordem quanto os fugitivos não puderam

evitar a perturbação diante da visão da jovem de catorze anos, cabelos

negros e olhar firme. Sua imagem parecia deslocada naquele lugar, onde o

sangue corria em abundância. Os cavaleiros da Ordem hesitaram. Por um

instante, não souberam o que fazer. Foi um erro. Rápida e ágil, Jade atacou

um deles. Âmbar, Opala e os fugitivos, incapazes de lutar, aproveitaram para

tentar atravessar o campo de batalha. Âmbar passou pelo campo magnético

sem nenhuma dificuldade. Outros, depois de intensa concentração,

conseguiram entrar com alguma dificuldade. Mas muitos fugitivos, entre eles

Opala, não puderam atravessar a fronteira que os separava de Conto de

Fadas. De repente, Adrien, que combatia furiosamente, gritou para Jade e

para os homens que restavam:

— Vamos recuar! Se continuarmos, não conseguiremos sobreviver.

Mas Jade não lhe deu ouvidos. Com uma técnica admirável, vencia

os mais experientes cavaleiros da Ordem.

— Anda, Jade! Venha! — Estamos em minoria, não podemos mais

vencer!

Quase a contragosto, Jade recuou na direção do campo magnético

com Adrien e os outros homens. Apertando firmemente sua pedra, tentou

passar pela proteção de Conto de Fadas. "Eu acredito", disse a si própria.

"Preciso ir ver Oonagh. Conto de Fadas existe. O impossível também." Sentiu

uma imensa dor. Seu corpo foi violentamente sacudido por espasmos. Um

vento glacial a invadiu. Tentou avançar, sem sucesso. Fechou os olhos,

cerrou os punhos. Quando os reabriu, percebeu que estava dentro de Conto

de Fadas. Do lado de fora do campo magnético, as coisas estavam

complicadas. Poucos sobreviventes tinham seguido Jade até a fronteira.

Agora, só Adrien e aqueles que não conseguiam acreditar no impossível,

entre os quais se encontrava Opala, ainda estavam do lado de fora.

Percebendo que muitos haviam conseguido escapar, ou tinham fugido da

luta, os cavaleiros da Ordem avançaram sobre os últimos combatentes.

Adrien não se conformava em abandoná-los. Alguns choravam,

desesperados, outros gritavam de pavor.

— Basta acreditar — dizia-lhes Adrien. — Façam um esforço,

Page 69: A profecia das pedras

lembrem-se de um sonho de criança, não importa qual. Vocês vão conseguir.

Mas ele sabia que não era verdade. Além disso, era tarde demais.

Subitamente, para surpresa geral, Opala avançou na direção dos inimigos.

Com a voz firme e forte, falou:

— Cavaleiros! Não peço para me pouparem. Mas tenham suficiente

justiça no coração para julgar os que me acompanham. O único crime que

cometeram foi o de buscar a liberdade. Os senhores acham que, por isso,

eles merecem a morte?

Adrien olhou para Opala, admirado. Logo ela, que costumava

manter os olhos baixos, fixava nos cavaleiros seu olhar impassível.

Mantinha-se tão firme que dava a impressão de ser invulnerável. Parecia tão

majestosa, tão bonita... Adrien percebeu, então, que tinha estado cego até

aquele momento. Amava Opala. Correu na direção da menina, tentando

protegê-la. Queria dizer a ela o que sentia. Mas um dos cavaleiros foi mais

rápido. As palavras de Opala o faziam rir. Não faziam sentido para ele, um

soldado treinado para ceifar vidas, e não para preservá-las. O homem

desembainhou sua espada afiada e, sem nenhuma piedade, enterrou-a no

coração da menina. Com um brutal sorriso nos lábios, viu a lâmina

trespassar o corpo de Opala.

O corpo inerte desabou sobre os braços de Adrien. O sangue,

escarlate, derramou-se sobre suas roupas. Ela nunca tinha estado tão

bonita, serena até mesmo na hora da morte. Lágrimas transbordaram dos

olhos de Adrien e o rapaz pousou seus lábios na boca, ainda doce e morna,

de Opala.

— Eu a amava — disse Adrien, com simplicidade.

Os cavaleiros da Ordem entreolharam-se. Estavam acostumados às

lamentações, ao choro e às acusações, nada disso os tocava. Era só esperar

acabar. Mas Adrien continuou, com sua voz triste e segura:

— A culpa não é de vocês.

Os cavaleiros viraram a cabeça, surpreendidos.

— Vocês foram educados para a guerra, só aprenderam matar. E

esse o seu ofício e vocês são muito bons nisso. Vocês são homens, sabem

manejar as armas melhor do que ninguém.

Os cavaleiros estavam cada vez mais espantados.

Discretamente, Adrien tirou a pedra de Opala da bolsa de veludo e,

Page 70: A profecia das pedras

como a tinha visto fazer, apertou-a na mão. Depois, prosseguiu:

— No entanto, esqueceram-se do mais importante. Todos vocês

possuem um coração, também podem amar. E é isso que faz de vocês

homens de verdade.

A assistência balançou lentamente a cabeça. Estranhamente,

ninguém ousava pensar em continuar a luta.

— Vocês mataram a mulher que eu amava — disse Adrien. — Mas

não os culpo.

Seriam as palavras de Adrien que emudeciam os cavaleiros ou a

visão do corpo inerte de Opala? Ou seria o poder mágico da pedra? Ninguém

jamais soube a resposta. Então, Adrien falou, com toda a simplicidade:

— Se vocês são homens, sabem o que devem fazer. Nesse

momento, um dos cavaleiros, hesitante, colocou sua espada de volta na

bainha. Os outros seguiram seu exemplo. Não sabiam se estavam fazendo a

coisa certa, mas uma força interior os obrigava a isso.

Então, dando as costas a eles, Adrien dirigiu-se para o campo

magnético. Apertou a pedra com força, segurando as lágrimas. Ele e Opala

eram um só. Ela o havia amado. Ele a amava.

Passaram sem dificuldades pelo campo magnético de Conto de

Fadas. Assim como a esperança, o amor tinha vencido o impossível.

12 O ferimento era profundo: um talho ensangüentado no antebraço

esquerdo. Na véspera, tinha lutado contra os Bumblinks, criaturas maléficas

que espalhavam-se pela floresta setentrional de Conto de Fadas. Resolveu

atravessar a floresta assim mesmo. Não queria fazer uma longa e cansativa

viagem para contorná-la. Mas não tinha sido boa escolha. A floresta era

povoada por seres malignos, que não toleravam a presença humana. Em

apenas três dias, tinha se metido em duas batalhas e, numa delas, perdera

seu cavalo. Felizmente, a noite já estava chegando; logo, os seres da floresta

adormeceriam.

Parou em uma das poucas clareiras. Não tinha forças para

prosseguir. De repente, escutou um ruído. Rapidamente, usou a mão boa

para empunhar sua espada. Uma silhueta surgiu.

Page 71: A profecia das pedras

Desconfiado, o rapaz esperou. O desconhecido avançou.

Pequenino, atarracado, estava vestido com uma túnica verde-escura e trazia

uma espada na cinta. Impossível saber ao certo sua idade: apesar de

algumas rugas que riscavam seu rosto, sua expressão era juvenil. Os

cabelos, de um louro muito pálido, caíam em desalinho sobre a testa

proeminente. Tinha um nariz minúsculo e achatado, lábios descoloridos,

mas carnudos. Suas sobrancelhas, assim como o cabelo, eram muito finas,

quase brancas e encimavam dois grandes olhos negros, de olhar

despreocupado, mas experiente. Um grande sorriso espalhava-se por seu

rosto, aparentemente benévolo. No entanto, bastava observá-lo melhor para

perceber que podia tornar-se irredutível, caso a situação assim o exigisse.

Seria humano? A primeira vista, parecia ser. Seu aspecto era bem parecido

com o de um homem. Entretanto, olhando com atenção, percebia-se que sua

pele tinha uma leve coloração de prata.

— Guarde sua espada, estrangeiro! — disse a criatura. — Sou de

paz.

Desconfiado, o rapaz não obedeceu à criatura. Mas, depois de um

momento de reflexão, acabou cedendo.

— Vim de longe para encontrar você — continuou a criatura. —

Meu nome é Elforhys e estou me apresentando para pedir ajuda, não para

brigar.

Elforhys avançou alguns passos. Observou o rapaz. Devia ter cerca

de dezoito anos. Seus cabelos eram castanho-escuros. Os olhos, muito azuis,

com ligeiros tons de esmeralda, deixavam perceber certa melancolia. Seu

rosto era muito sério.

Elforhys sentiu que sua respiração acelerava-se. "Até que enfim",

disse para si mesmo.

— Diga, você é um hovalyn, um cavaleiro errante, como o povo diz?

— Sim, eu sou — confirmou o jovem.

— E qual é o seu nome? — perguntou Elforhys, com o coração aos

pulos. — Diga sem medo.

Page 72: A profecia das pedras

Não tenho nome — confessou o hovalyn. — Se tenho, não sei qual

é. Há dois anos, acordei no meio de um campo, sem nenhuma lembrança.

Meu passado estava apagado de minha memória. Então, decidi tornar-me

hovalyn e partir à procura de meu nome.

— O Inomeado! — exclamou Elforhys com uma admiração e

entusiasmo sinceros. — Sua reputação é conhecida em todo o Conto de

Fadas! Em toda a parte fala-se de um corajoso hovalyn que procura o

próprio nome. Então, é você o Inomeado?

— Infelizmente, sim. Minha busca parece não levar a lugar algum.

— Posso ajudá-lo. Posso auxiliá-lo a atravessar a floresta e

acompanhá-lo ainda mais longe.

— E por que faria isso?

— Também tenho uma busca a fazer, mas não posso revelar o

motivo nem seu objetivo.

"Procuro pelo Eleito. E acho que já o encontrei" — acrescentou

Elforhys para si mesmo.

O Inomeado não fez objeções. Depois de tudo o que tinha passado,

um companheiro de viagem seria bem-vindo, ainda que fosse um

companheiro misterioso.

O rapaz ficou em silêncio. Como de hábito, seus pensamentos

estavam fixados em seu sonho: encontrar sua identidade. Já tinha

percorrido a maior parte de Conto de Fadas perguntando a cada pessoa se

sabia alguma coisa sobre sua origem. Não conseguiu nenhum resultado

concreto. E verdade que, muitas vezes, foi recompensado por combater

monstros que aterrorizavam a população. Mas o que ele queria não era a

glória. Depois de enfrentar mil peripécias, à noite, antes de adormecer, as

perguntas de sempre voltavam à sua mente: qual seria seu nome, qual seria

sua origem? Dependendo do seu humor, ele inventava um passado diferente.

Mas isso não era suficiente para estancar o desejo; ao fim dos devaneios,

acabava ainda mais frustrado.

Já estava ficando tarde e a fome começava a apertar. O Inomeado

abriu sua pesada sacola e tirou um grande pedaço de pão, um cantil de

água, presunto defumado e uma fruta de aspecto estranho. Ofereceu a

Elforhys, que agradeceu polidamente e tirou, de sua própria sacola, uma

refeição nada comum: uma massa arroxeada, viscosa e gosmenta, que

Page 73: A profecia das pedras

devorou em poucos minutos. Depois, já satisfeito, esperou pacientemente

que seu companheiro terminasse de comer.

Em silêncio, o Inomeado acendeu uma fogueira, sentou-se, e

mergulhou em seus pensamentos. A situação era inusitada. De uma hora

para outra, passava a ter a companhia de um estranho a respeito do qual

não sabia nada, ou quase nada. Poderia confiar nele?

Elforhys já dormia profundamente. Mas o Inomeado não conseguia

pegar no sono. Estava deitado, com os olhos abertos, observando as estrelas

cintilantes. Tentava reconhecer as diferentes constelações e citá-las pelos

nomes. Uma saudade indefinível invadia seu coração. Quem era ele?... Quem

era ele?... Não possuía nenhuma lembrança, nada que fizesse dele um ser

humano. Era apenas um corpo, uma alma em sofrimento, um estranho para

si mesmo. Tirou a espada da cinta, observou a lâmina comprida, uniforme e

cortante e imaginou-a penetrando seu coração. Sentiria frio? Talvez não, o

inverno já vivia dentro dele, um eterno inverno feito de perguntas sem

respostas. Será que sua presença era necessária nesse mundo?

As estrelas brilhavam mais do que de costume. Levantou-se, com a

espada na mão, e começou a caminhar, sem saber para onde, sem pensar

que poderia se perder. Que importava? Entrou por um caminho sinuoso e

embrenhou-se nas profundezas da noite. Caminhou por um longo tempo,

sem parar e sem prestar atenção a nada. Finalmente, chegou a uma clareira

iluminada pela luz pálida da lua. Encontrou um lago, sentou-se na margem

e contemplou o rosto refletido nas águas. O rosto era o seu, mas, sem um

nome, o que significava? Meditou longamente, com a espada ao lado.

Repentinamente, a água agitou-se e uma criatura parecida com uma sereia

surgiu do lago. Linda, com o corpo de mulher arrematado por uma cauda

coberta com escamas de ouro, só poderia ser uma criatura do mundo das

fadas. Sua pele era de uma brancura e de uma pureza quase perfeita

demais. Seus traços eram bem desenhados e os olhos azuis, salpicados de

ouro. Seus cabelos negros caíam sobre os ombros em cachos grandes e

sedosos, e não pareciam molhados da água de onde ela tinha acabado de

sair. Nas mãos, entre os dedos finos, trazia um estojo de ouro cravejado de

pérolas. Dirigiu-se ao Inomeado sem demonstrar medo:

— Você, mortal, ousou aventurar-se pela margem do lago dos

Tormentos! Apenas as almas que sofrem têm permissão para contemplar seu

Page 74: A profecia das pedras

reflexo. Aqueles que procuram um consolo, quando não o merecem, morrem

afogados. Eu e minhas irmãs somos as guardiãs do lago. Aparecemos muito

raramente, e apenas para aqueles que são dignos de tal encontro. Vim até a

superfície para encontrá-lo, mortal, pois devo entregar uma coisa que

pertence a você.

— Você está enganada. Só tenho um corpo, uma alma... Não sou

nada, nem sequer tenho um nome. Me chamam de Inomeado.

— Conheço sua identidade, seu passado e até mesmo uma parte de

seu futuro. E não sou a única. Mas, mesmo que você peça, não revelarei o

nome que lhe deram na hora de seu nascimento. Não é essa minha missão.

Só tenho o direito de lhe entregar este estojo. Ele foi confiado, a mim e a

minhas irmãs, alguns anos atrás. Prometemos só entregá-lo a uma pessoa

especial, que estava destinada a aparecer às margens do lago. A pessoa é

você, mortal. Cuide bem do conteúdo deste estojo. Essa era a vontade de

quem o deixou conosco.

O Inomeado pegou o objeto. A sereia mergulhou nas profundezas

do lago sem mais uma palavra, sem nenhum ruído. Sem saber o que pensar

de tudo aquilo, mas tomado pela curiosidade, abriu cuidadosamente a

tampa, com a respiração suspensa e o coração em disparada. A caixa estava

vazia.

Era muito raro que o Décimo Terceiro membro sentisse cólera.

Dessa vez, no entanto, sua fúria era indescritível. Tremia de raiva, seu rosto

estava deformado. Urrava e sua voz repercutia pelos salões do palácio do

Conselho dos Doze.

— O quê? — rugiu. — Está me dizendo que toda a cidade de

Nathyrnn escapou? Você acha que sou imbecil?

Sobre uma grande placa dourada, que flutuava no ar, havia a

imagem de um cavaleiro da Ordem, com a expressão apavorada.

— Sim, todos escaparam — confessou o homem, com a voz quase

inaudível.

— Que explicação você dá para isso? — rugiu o Décimo Terceiro

membro do Conselho. — Vai me dizer que estava dormindo?

— Bom... na verdade... sim — balbuciou o cavaleiro, confuso e

Page 75: A profecia das pedras

envergonhado.

— Como ousa mentir para mim? Não sabe o que o espera? A morte!

Em praça pública e com desonra!

— Mas juro... não estou mentindo.

— Passe para a fronteira do ducado de Divulyon! Imediatamente!

— Logo, a imagem se embaralhou e deu lugar ao rosto de outro

cavaleiro da Ordem.

— Comandante-em-chefe dos cavaleiros da Ordem de proteção à

fronteira do ducado de Divulyon, às suas ordens! — recitou o homem.

— Comandante — disse o Décimo Terceiro membro, bastante

alterado, por acaso o senhor interceptou um grupo de fugitivos algumas

horas atrás?

— Quer dizer que... — respondeu o comandante com a voz muito

humilde e hesitante.

— O que aconteceu? — gritou seu interlocutor. — Não minta!

De fato, interceptamos algumas pessoas. Mas neutralizamos a

maior parte do grupo. Combatemos bravamente. Nossas tropas foram

duramente testadas. Nós...

— Quero saber se alguém passou para Conto de Fadas!

— Sim — confessou o comandante, baixando o olhar.

— Impossível! — urrou o Décimo Terceiro membro. — Quem

conduziu essa revolta?

— Aparentemente, um rapazinho que não conseguimos identificar.

— Havia também três meninas, em torno de catorze anos?

— Creio que sim. Uma delas lutava especialmente bem.

— Não me diga que ela está morta ou você morrerá!

— Ela não. Mas uma outra.

— Outra? Qual?

— Uma loura, de olhos muito claros, pele leitosa, roupas simples.

— Como? Cavaleiro, você acaba de assinar sua sentença de morte!

— vociferou o Décimo Terceiro membro do Conselho.

Fez um gesto com a mão e a imagem desapareceu. Cerrou os

punhos, furioso. Seu plano tinha fracassado. Não apenas Opala tinha ido a

Nathyrnn como havia morrido cedo demais. Além disso, as outras duas

pedras estavam em Conto de Fadas, fora de alcance. Juntas, as três pedras

Page 76: A profecia das pedras

representavam uma ameaça, eram poderosas. Com a morte de Opala... tanto

pior. Ele não teria piedade das outras.

Então, teve uma idéia. Seu rosto foi deformado por um sinistro

ricto de satisfação.

13

A paisagem estava mergulhada na escuridão, mas era possível

adivinhar planícies repletas de plantas selvagens e colinas cobertas de

bosques.

Os antigos habitantes de Nathyrnn transbordavam de alegria e

abraçavam-se com o rosto transfigurado de felicidade. Como não acreditar

no impossível, depois de ter visto os impiedosos cavaleiros da Ordem

recolherem suas espadas?

Só Adrien, Jade e Âmbar não partilhavam a euforia geral. Estavam

em silêncio, mergulhados em pensamentos sombrios. A morte de Opala os

havia surpreendido e perturbado. Ela não estava mais entre eles, jamais

voltaria. Ainda não conseguiam aceitar uma partida tão súbita. No entanto,

o corpo inanimado da menina estava nos braços de Adrien. Seus cachos

louros balançavam em vão, seus lábios descoloridos estavam fixados em um

tímido sorriso, o sangue havia abandonado seu rosto pálido. Apesar de tudo,

e a despeito da morte, ela continuava bela e parecia ainda mais inacessível.

Adrien, com o coração repleto de arrependimento, continha a custo

as lágrimas e a tristeza. Embora estivesse muito perturbado, fechou o rosto e

levou Jade e Âmbar à casa de seu amigo Owen d'Yrdhal. A casa era

imponente mas sem extravagância. A porta de entrada estava aberta, já que

ninguém se dava ao trabalho de fechá-la. Adrien entrou e dirigiu-se ao

quarto de hóspedes, onde costumava dormir. Não precisava explicar o

motivo de sua chegada. No corredor escuro, cruzou com alguns rapazes que

estavam se divertindo àquela hora da noite, mas não ligou para eles.

No quarto, deitou Opala sobre lençóis brancos e frescos, ajoelhou-

se a seu lado, segurou sua mão ainda morna, e ficou olhando para ela.

Pouco atrás dele, estavam Jade e Âmbar. Não sabiam que lugar era

aquele, nem o que fazer, nem o que estava acontecendo... Não queriam mais

pensar, nem mesmo se mexer. Opala estava morta. E isso era uma coisa

impossível de conceber.

Page 77: A profecia das pedras

Âmbar não conseguia evitar o choro. Cega pelas lágrimas,

perguntava-se por que a vida era tão incompreensível, por que não

demonstrava nenhum respeito por aqueles que decidia aniquilar. Ela

acreditava que Opala não podia ser atingida por nada, que era imortal. Por

que partira de maneira tão prematura e cruel?

Jade sentia-se mal. Não conseguia ficar sinceramente triste com a

perda de Opala. Algumas lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas eram mais

devidas ao horror que a morte lhe inspirava, à angústia de, um dia, se ver

jogada no vazio sem fundo, sem fim, onde não existia pensamento, nem

sonhos, onde estaria afastada do mundo, esquecida... Um pouco

envergonhada, teve que confessar a si própria: detestava Opala. Nem morta,

conseguia lhe dedicar algum afeto, só um pouquinho de compaixão. No

entanto, sabia que ela, Opala e Âmbar formavam um conjunto, um todo

indefinido, que não deveria ser separado. Opala não podia ter morrido, Jade

tinha certeza, disso. Seus sentimentos eram contraditórios. Por um lado, não

lamentava a morte de Opala; por outro, sentia-se culpada pela própria

insensibilidade. Lembrava-se da frieza e do desprezo que a menina

demonstrava por ela. Mas uma voz lhe murmurava que Opala era

indispensável, e a reprovava por ter sido tão dura e arrogante.

Nesse momento, um homem entrou no quarto. Era bem apessoado,

tinha ombros largos e seu sorriso aberto iluminava um rosto franco e alegre.

Aparentava ter vinte anos. Estava vestido com simplicidade e parecia irradiar

felicidade. Da porta, gritou:

— Adrien! Que bom vê-lo de volta! Vim correndo quando soube que

estava aqui. Conte-me logo: quem são essas lindas senhoritas?

Dirigindo-se a Âmbar e Jade, exclamou:

— Sou Owen d'Yrdahl, amigo de Adrien e estou encantado em

conhecê-las. Sejam bem-vindas à minha casa.

Adrien levantou-se, deixando entrever o corpo de Opala, e falou,

com a voz pouco firme:

— Veja, Owen! Ela está morta! Morta! Por minha culpa. Foi

assassinada por um cavaleiro da Ordem, mas eu podia ter impedido e não fiz

nada!

O sorriso de Owen desapareceu por completo. Precipitou-se para a

cabeceira da cama, tomou o pulso de Opala e olhou o sangue que escorria da

Page 78: A profecia das pedras

ferida. Sem maiores explicações, abandonou o quarto. Jade e Âmbar

entreolharam-se, espantadas. Ao fim de poucos minutos, Owen retornou,

acompanhado de um homem atarracado, de meia idade, que examinou

Opala em silêncio.

— Este é Loghin, um de nossos curandeiros mais experientes —

disse Owen. — Nesse caso, não sei se vai adiantar, mas é preciso evitar que

a menina perca sangue demais.

— Owen, pare de brincar comigo — disse Adrien com a voz

cansada. — Opala está morta. Não vejo o que um curandeiro possa fazer por

ela. Isso não tem graça nenhuma.

—Graça?

Owen franziu a testa e gritou:

— É verdade! Você não está sabendo!

— Não estou sabendo do quê? — perguntou Adrien, sentindo uma

esperança insensata invadir seu coração.

— Da greve da Morte! Há dois séculos que ela não leva ninguém. E

muito desagradável. Mas sua amiga está viva.

— Muito desagradável? — repetiu Âmbar. — Não vejo nada de

desagradável num milagre. O que é essa greve da Morte?

— Todo mundo sabe que a Morte é uma criatura que habita Conto

de Fadas. Evidentemente, ela mora em lugares aonde ninguém pode ir.

Poucas horas atrás, ela resolveu não trabalhar mais. Então, ninguém pode

morrer.

Jade e Âmbar estavam estupefatas. Adrien, mais acostumado a

Conto de Fadas, não continha as lágrimas de felicidade.

— A Morte está deprimida — prosseguiu Owen. — Acha que

ninguém gosta dela — o que é verdade. Mas ela queria que reconhecessem

seu valor. Dizem que quer se matar. Como isso é impossível, ela fica ainda

mais deprimida. Seus conselheiros estão desesperados.

— Então, Opala está viva! — entusiasmou-se Âmbar.

— Sim, mas levará tempo até ficar completamente restabelecida.

Por isso, não deve perder mais sangue.

Loghin, o curandeiro, aplicou bálsamos e compressas no ferimento

de Opala, enquanto recitava estranhas palavras.

— A última greve da Morte teve terríveis conseqüências prosseguiu

Page 79: A profecia das pedras

Owen. — Durou dez anos. Durante esse tempo, quem se feria, ou ficava

doente, curava-se rapidamente. Mas aqueles que estavam em pior estado,

continuavam a agonizar sem que a Morte os libertasse do sofrimento.

Finalmente, os conselheiros conseguiram trazê-la de volta à razão. Mas,

desta vez, tenho a impressão de que a coisa é mais séria.

— Que história! — exclamou Âmbar, impressionada.

— Bom. Agora que já estão mais tranqüilos com relação à sua

amiga — Opala, se entendi bem —, o que acham de nos conhecermos

melhor? —- propôs Owen a Âmbar e Jade.

— Bom, faz pouco tempo que conhecemos Adrien. Ainda assim,

nós o ajudamos a libertar uma cidade, e viemos encontrar Oonagh, a

criatura que lê corações ou coisa parecida — disse Jade, tonta de cansaço.

— Eu sou Jade, mas isso é tudo o que sei sobre minha pessoa. Fui expulsa

de meu palácio por meu próprio pai e tenho inimigos por toda a parte. Isso

não era exatamente a idéia que eu fazia de uma vida feliz, mas enfim...

— Eu sou Âmbar — disse a outra menina simplesmente.

— Jade, Opala, Âmbar... — murmurou Owen, como se fizesse uma

constatação evidente.

Jade estava quase desabando. Sentia-se esgotada, sua cabeça

rodava, ela não sabia mais o que dizer.

— Preciso... dormir... — murmurou, percebendo que

suas pálpebras estavam cada vez mais pesadas.

Sim, claro, vou providenciar um quarto para vocês disse Owen. E,

dirigindo-se a Adrien:

— Espere um pouco, já volto.

Pouco depois, já de volta à conversa com Adrien, Owen exclamou,

muito agitado:

— As pedras da Profecia. Você me trouxe as meninas mais

comentadas em Conto de Fadas! Acho que me deve uma explicação!

— São moças inacreditáveis — declarou Adrien. — E não se

espante por Jade estar morrendo de sono. Nas últimas horas, ela esteve

combatendo os cavaleiros da Ordem.

— Mas ela é imprudente demais! Como sai contando assim seu

nome e sua história? Será que não percebe o risco que está correndo?

— Acho que não — respondeu Adrien. — Pelo jeito, nenhuma delas

Page 80: A profecia das pedras

conhece bem A Profecia.

— Nesse caso, não nos cabe abrir os olhos delas. Mas, me conte,

como é Lá Fora?

— Muito diferente daqui — suspirou Adrien. — Você nem imagina

quanto. São dois mundos quase opostos. Lá Fora é grande e bonito como

dizem por aqui. Mas também é cruel, violento e primitivo. A vida é rude e

arcaica. As pessoas não sabem o que é a liberdade, a sociedade delas é

hierarquizada e injusta.

— Você não está exagerando?

— Talvez... acho que não. Mas, conte-me você: o que aconteceu por

aqui?

O rosto de Owen tornou-se sombrio.

— Estamos ficando desesperados — confidenciou num sussurro.

— Não... Não me diga que o Eleito...

— Exatamente. Não foi encontrado.

— Isso é muito preocupante! De acordo com A Profecia, a batalha

está muito próxima... Se o Eleito não der sinal de vida... como lutaremos?

Em breve, começaremos a reunir o exército, mas, sem ele, isso não levará a

lugar nenhum.

—Todo mundo rumina os mesmos pensamentos que você disse

Owen irritado. — Estamos perdendo a moral. Oonagh está esperando, mas

nada acontece. Até agora, o Eleito não se manifestou.

— E se ele não chegar? Isso significa dizer que Neophileus se

enganou, que A Profecia é falsa e que nossas esperanças são inúteis —

finalizou Owen com um suspiro. — Mas isso não pode ser verdade! Se o

Eleito não existir, talvez as pedras não tenham todo o poder que

imaginamos.

— E então tudo estará perdido — disse Owen, deixando as

palavras caírem.

14 O Inomeado teve dificuldade para encontrar o caminho de volta,

mas, ao amanhecer, estava na clareira, ao lado de Elforhys. Apesar do

campo magnético que cobria Conto de Fadas, a luz do dia era clara, forte e

Page 81: A profecia das pedras

inundava a floresta. Uma brisa morna balançava as folhas das árvores.

Pássaros cantavam. O Inomeado e Elforhys despertaram junto com a

floresta. Embora ainda estivessem cansados e com o corpo dolorido,

resolveram partir.

De longe, podia-se escutar gritos estridentes. As criaturas da

floresta acordavam também. Eram os Bumblinks e Ghibduls.

Elforhys pertencia a uma raça pouco populosa, os Clorhyuns, da

qual também fizera parte Neophileus. Eles não possuíam verdadeiros

poderes mágicos, mas Elforhys sabia se defender e não tinha medo de lutar

contra um adversário mais ágil. Conhecia um bom caminho para saírem da

floresta, embora jamais tivesse passado por ele — seguia a indicação de um

amigo de confiança. Claro, sempre havia o risco de encontrarem os

Bumblinks ou os Ghibduls. Era preciso ficar bastante atento.

Os dois companheiros seguiram pelo caminho a passos rápidos.

Elforhys embrenhava-se com segurança por atalhos sinuosos, margeados

por plantas espinhosas e pequenos arbustos. O Inomeado não tinha medo.

Dava tão pouca importância à sua vida que não temia perdê-la. Depois de

algumas horas de monótona caminhada, Elforhys abandonou os atalhos

para se aventurar na floresta.

— Não dá para ser de outro jeito — explicou ao Inomeado, que

concordou com a cabeça.

A partir daquele ponto, a floresta parecia ainda mais ameaçadora.

Arvores retorcidas elevavam-se até o céu sem nuvens.

— Quanto mais nos aproximamos do coração da floresta, mais

forte fica a presença de criaturas maléficas — explicou Elforhys. — Já é

incrível que tenhamos chegado até aqui sem problemas.

À medida que o tempo passava, o sol levantava-se, e a atmosfera

tornava-se mais pesada, apesar da sombra das árvores. O Inomeado sentia-

se estranhamente cansado, tinha vontade de parar, deitar-se sob uma

árvore, abandonar-se ao sono. Avançava cada vez mais devagar, com o olhar

perdido no vazio. Quanto mais progredia, mais os sons tornavam-se

indistintos, e as imagens menos precisas. Sentia-se sufocar. Finalmente, o

vazio se impôs: tudo escureceu em torno dele. Seu corpo amoleceu e caiu no

chão. Uma voz anasalada ressoou: "Nada, nada, nada. Você não é nada,

nada". Em seguida, percebeu a voz suplicante de Elforhys, que lhe falava por

Page 82: A profecia das pedras

telepatia:

— Não deixe que façam isso, Inomeado! É um ataque mental dos

Ghibduls! Desperte, basta um pouco de vontade. Não se deixe abater!

Mas a voz de Elforhys o incomodava. Queria expulsá-la de seu

espírito, impedi-la de continuar ecoando em sua mente Sua boca estava

pastosa. Tentou, com esforço, mandar Elforhys calar-se. E, de repente, sem

querer e sem saber por que fazia aquilo, articulou nitidamente a frase: "O

estojo em minha sacola!", como se tivesse sido ditada por alguém. Depois,

caiu num estado de inconsciência, no qual gostaria de permanecer para

sempre.

No entanto, ao fim de poucos minutos, sentiu que Elforhys

colocava o estojo incrustado de pérolas em sua mão. Movido por um

poderoso instinto, abriu a tampa, e foi tomado por uma forte e imediata

sensação de bem-estar. Voltou a si em poucos instantes.

— Inomeado! Você acordou! — exclamou Elforhys. — Achei que

você estava perdido. A força mental dos Ghibduls é terrível. Sacudi você,

gritei, tentei a telepatia, mas nada funcionava.

— Obrigado — disse o Inomeado. — Se você não estivesse aqui, eu

não conseguiria sobreviver.

— E verdade. Os Ghibduls teriam capturado você, levariam-no

para seu castelo maligno e o torturariam...

— Obrigado — repetiu o hovalyn, sem saber o que mais dizer.

— Ainda bem que você falou no estojo. Estava em sua sacola.

Tentei abri-lo, mas não consegui. Ele é encantado? Só obedece a você?

— Não sei bem. Achei no caminho...

Elforhys não insistiu. Por que, mesmo tomado pelo mais profundo

torpor, o Inomeado tinha pedido o estojo? E como o objeto tinha conseguido

salvá-lo?

— Inomeado, diga-me uma coisa. Aonde você pretende ir quando

sair da floresta?

— Ainda nem conseguimos sair... — disse o rapaz, esquivando-se

de uma resposta direta.

— Os Ghibduls não vão desistir. Você escapou uma vez, mas eles

tentarão uma revanche.

— São inimigos perigosos — zombou o rapaz, querendo mudar de

Page 83: A profecia das pedras

assunto.

Mas Elforhys insistiu:

— Tirando isso, você nunca me disse para onde está indo.

— Estou... estou pensando em ir a Thaar — respondeu o

Inomeado, visivelmente contrariado,

— A Thaar? — repetiu Elforhys, incrédulo. — A cidade das

Origens? Por quê? Que interesse isso pode ter para um hovalyn? E uma

cidade perigosa, difícil de entrar, e você não tem nada para ajudá-lo em sua

busca!

—Na verdade, não sei aonde ir — confessou o Inomeado. — E

Thaar é um dos poucos lugares onde ainda não estive. E só por isso.

— Você já procurou Oonagh? — perguntou Elforhys, adivinhando a

resposta.

—Não, nunca. O que você acha que Oonagh pode me dizer? Sei

muito bem o que está trancado em meu coração: perguntas e sofrimento,

mas nada sobre meu passado.

— Não sei, não... Eu mesmo, algum tempo atrás, estive na gruta de

Oonagh. E soube de coisas que, embora estivessem inscritas no meu

coração, nem imaginava que existissem.

— Tenho quase certeza de que isso não adiantará nada -— teimou

o Inomeado. — Além disso, Oonagh mora tão longe, numa caverna escondida

em uma montanha escarpada... Pouca gente enfrenta essa viagem.

— Confie em mim. Siga meus conselhos. Procure Oonagh. Se isso

não o ajudar, iremos a Thaar.

Bem, por que não? Se você insiste tanto, irei à casa de Oonagh —

concordou o hovalyn.

Longe dali, no coração da floresta, situava-se o tenebroso covil dos

Ghibduls. Ninguém conhecia verdadeiramente seu estranho caráter. Em seu

próprio território, o modo de ser e de agir dos Ghibduls era muito superior

ao dos humanos: jamais guerreavam, eram tolerantes com as diferenças e

não havia lugar para a discórdia em seus lares. Muitos julgavam que os

costumes daquelas criaturas eram primitivos e que sua sociedade era pouco

evoluída. Puro engano. Os Ghibduls viviam sem conflitos e, assim como

todas as criaturas — ou talvez ainda mais do que as outras — , eram

capazes de sentir amor e piedade. Viviam livres e felizes; a floresta era sua

Page 84: A profecia das pedras

casa, sua diversão, e seu único limite, pois jamais tinham saído dali. Sua

aparência repulsiva ajudava a criar as muitas lendas que corriam, falando

de sua crueldade. Na realidade, eram leais e afetuosos. Mas também ferozes

guerreiros. Sabiam que eram mais fortes do que a maioria das outras

espécies e, receosos de ver seu território invadido, não poupavam os

intrusos. Para eles, aqueles estrangeiros de aspecto esquisito não passavam

de animais selvagens e cruéis, prontos para serem caçados e mortos. Sim, os

Ghibduls adoravam sentir o sangue quente escorrer pelas suas mãos, e

deliciavam-se com aquele cheiro pesado e doce que impregnava suas

narinas. Para eles, esses animais inferiores, incapazes de pensar ou amar,

deveriam ficar felizes por serem mortos por eles (aliás, os animais em

questão tinham a mesma opinião a respeito dos Ghibduls).

Recentemente, os Ghibduls tinham sofrido a afronta mais grave de

sua história. Havia um homem dentro da floresta, e esse homem os vencera.

Eles o tinham atacado para vingar a derrota que o homem infligira aos

Bumblinks, seus amigos. Mas o homem não apenas lutara valentemente,

como conseguira ferir a maior parte de seus adversários. Manejava com

destreza uma espada que parecia encantada e, sobretudo, não temia a

morte. Até então, os Ghibduls só conheciam homens apegados à vida, que se

debatiam em desespero. Mas esse hovalyn era diferente, tinham que admitir

e reconhecer isto, com uma ponta de despeito. Com o orgulho ferido,

juraram vingança, mas, no fundo, não conseguiam evitar que a admiração se

misturasse ao ódio que sentiam. Tinham tentado desestabilizar mentalmente

o inimigo, o que só costumavam fazer com seus mais valorosos adversários.

Ainda assim, o humano vencera.

Profundamente perturbados, os guerreiros procuraram a ajuda de

seus pensadores: os estrategistas e conselheiros encarregados dos assuntos

da mais alta importância. Os próprios pensadores ficaram impressionados

com o relato dos guerreiros. Mas um deles, o de espírito mais alerta, acabou

encontrando uma solução que causou espanto. No início, a oposição à idéia

foi feroz. Mas, por fim, concordaram. O homem que os derrotara ainda

poderia ser pego de surpresa, e foi o que eles prometeram...

Page 85: A profecia das pedras

Paris, 2002

O silêncio impenetrável, inalterável, me dava medo. Só escutava o

ruído contínuo dos aparelhos aos quais minha frágil vida estava ligada.

Sempre tive medo do escuro. Por que negar? E, para mim, a morte é isso: a

escuridão total, eterna e insondável. Imaginava-me caindo num abismo, sem

ter onde me segurar. Via-me agarrada pelo vazio, para sempre engolida por

um mundo desprovido de sentimentos, de pensamentos, de cores, de tudo.

Não estaria mais doente. Eu me perderia no nada, tudo seria esquecido,

tudo se esfacelaria, até os vestígios de minha existência. Se a morte era

mesmo assim, então a vida já tinha me abandonado. Mas, não, eu

continuava ali, deitada, imóvel, com o rosto descolorido, tremendo

convulsivamente, aguardando o fim... Sentia tanto medo que achava que ele

me mataria antes da doença. Já conseguia aceitar a dor, sabendo que ela me

devoraria meticulosamente até o fim. Mas nunca esquecia esse medo que,

sempre grudado em mim, me consumia, me perseguia, me submergia sem

descanso. Eu tinha medo do silêncio, do escuro, do tempo, do esquecimento,

da eternidade. Da morte. Queria parar o tempo, ordenar que interrompesse

seu curso, gritar para que voltasse atrás, para devolver minha vida, meu

futuro. Perto de mim, já não existia mais nada que pudesse confortar,

ajudar. Só havia a angústia, cada dia maior.

Então tive o sonho. Ele perturbou minha espera, me transformou,

me projetou para fora do tempo, fora da vida que eu levava, ou da ausência

de vida que constituía meu universo. Queria que ele não acabasse nunca,

que me fizesse esquecer de tudo, que me apagasse do mundo... Cheguei a

acreditar que poderia viver no sonho, fazer dele minha realidade, e de minha

triste realidade um sonho distante e inverossímil. Embora à minha revelia,

ele me devolveu um pouco de esperança. Mas era só um sonho. Essa

constatação estilhaçava minhas ilusões.

Então, respirei profundamente. E tive que encarar a verdade, essa

verdade que eu lia no olhar furtivo das enfermeiras, que se escondia,

morrendo de medo, no fundo de mim. Não dava para continuar acreditando

que minha vida voltaria a ser o que era antes, eu não tinha mais o direito,

nem forças para isso. Joa, a filha adorada, mimada, rodeada de amigos e de

Page 86: A profecia das pedras

alegria, não existia mais.

Reprimi o medo, estourei a bolha de irrealidade onde tentava me

proteger graças ao sonho. E disse, em voz alta, para melhor compreender

aquilo que me fazia fugir:

— Tenho catorze anos. E vou morrer.

Ponto final. Assunto encerrado

15 Âmbar acordou desorientada e teve um momento de pânico. Onde

estava? O que tinha acontecido? Mas, rapidamente, o dia anterior, carregado

de emoções, voltou-lhe à memória.

Levantou-se depressa, tomou um banho quente na pequena sala

íntima contígua ao quarto e vestiu-se. Provou os delicados perfumes que

estavam numa prateleira e decidiu usar um deles. Penteou-se e, uma vez

pronta, deixou o quarto. Seguiu pelo corredor e, sem saber direito onde

estava, passou diante de várias portas de madeira entalhada, sem ousar

entrar por nenhuma delas. Finalmente, depois de atravessar vários

corredores parecidos, percebeu que caminhava em círculos. Para seu alívio,

encontrou uma mulher de cerca de cinqüenta anos e explicou-lhe seu

problema. A mulher riu de sua desorientação:

— Ora, menina, essa casa não é tão grande assim para alguém se

perder! Venha comigo. Vou levá-la até a sala principal para tomar seu café

da manhã.

— Na verdade — arriscou-se a dizer Âmbar —, eu queria encontrar

Jade, Adrien e Opala. Chegamos ontem à noite...

O rosto da mulher tornou-se subitamente sério.

—Então, é você... — disse, pensativamente.

— Como?

— Nada. Venha comigo. Vou levá-la até seus amigos. Âmbar seguiu

a mulher. Percebeu, então, que ela não caminhava: seu corpo flutuava e

deslizava alguns centímetros acima do chão.

— Você... você faz magia? — perguntou Âmbar desajeitadamente.

— Magia? Era meu sonho de infância, mas não tenho capacidade

para isso. É preciso ter o dom, e eu não tenho.

Page 87: A profecia das pedras

—Mas esse seu jeito de andar sem andar... — disse Âmbar,

confusa.

—Isso? Ora menina, sou uma Donlusiana. Como você queria que

eu caminhasse?

— Ah, desculpe — respondeu Âmbar, embaraçada. Não

compreendeu direito as palavras da mulher. Poucos metros adiante, a

Donlusiana abriu uma das portas para Âmbar entrar. Adrien estava lá, à

cabeceira de Opala, junto com Jade e Owen d'Yrdahl.

— Âmbar! — gritou Owen. — Até que enfim você apareceu! Que tal

um passeio para conhecer um pouco de Conto de Fadas?

—Claro, eu adoraria! — disse ela, realmente encantada com a

idéia.

—Eu vou ficar — disse Adrien. — Quero estar por perto para o caso

de Opala acordar.

—Jade, Âmbar e Owen saíram. Três cavalos estavam no pátio.

Quando se aproximaram, as meninas observaram que havia pequenas

diferenças entre esses animais e os cavalos que conheciam: os dali eram

recobertos por uma espécie de pelagem castanha, que parecia bastante

macia e espessa, tinham crinas douradas, flamejantes, que pareciam se

consumir em chamas, e seus olhos azuis brilhavam de inteligência.

—Esse cavalos são verdadeiros puros-sangues, impossível

encontrar animais mais mágicos — disse Owen.

— Mágicos? — perguntou Âmbar, desconcertada. — O que eles

fazem? Voam, soltam fogo pelas ventas?

—Claro que não — respondeu Owen, espantado. — Eu não disse

que eles foram enfeitiçados por um mágico.

—Então, como eles são mágicos? — perguntou Âmbar.

—Está decepcionada? Se preferir, posso lhe dar uma montaria

mais comum — disse Owen com uma ponta de malícia.

—Ah, não... não...

Âmbar não insistiu mais. Montaram e puseram-se a caminho.

Owen foi na frente. As duas meninas logo ficaram desapontadas. A paisagem

de Conto de Fadas não tinha nada de surpreendente. O céu, de um azul

imaculado, estendia-se a perder de vista. No horizonte, percebia-se alguns

Page 88: A profecia das pedras

picos distantes, cobertos de neves eternas. Âmbar olhava os cumes

enfeitados de branco e as colinas que se ofereciam à sua visão. De repente,

Owen disse:

—Oonagh mora naquelas montanhas. E uma viagem difícil. Se

vocês não precisassem mesmo ir, eu desaconselharia, mas, enfim... Só não

devem ir à cidade de Thaar. Nem tentem fazer uma coisa dessas.

—Por quê? — perguntou Jade, surpresa com as recomendações.

—É mais do que arriscado — respondeu Owen. — É mortal. A

cidade é maldita. Já foi batizada, rebatizada, mas nada adianta, jamais

mudará, jamais poderá mudar.

—Mas por quê? — repetiu Jade.

—Bobagem — interrompeu secamente Owen, subitamente nervoso.

Âmbar não prestava muita atenção à conversa. Acariciava o pêlo de

seu cavalo. Imaginava que fosse macio, mas estava áspero. No entanto, mal

ela formulou mentalmente essa observação, a textura sob seus dedos

mudou. Tornou-se lisa, sedosa, infinitamente agradável de tocar, exatamente

como tinha imaginado antes. Intrigada, olhou para a pelagem do animal.

"Seria tão bonita se fosse branca", pensou. Logo, seu desejo tornou-se

realidade. O pêlo do animal foi clareando até chegar à cor que Âmbar tinha

imaginado: um branco puro, uniforme, luminoso.

—Owen — gritou Âmbar —, já entendi! O cavalo adivinha os

desejos do cavaleiro e os satisfaz! E mágico!

—Como é que você queria que fosse? — resmungou Owen,

aborrecido. — Não está bom assim? Esses cavalos sempre me pareceram

excelentes...

—São ótimos! — entusiasmou-se Âmbar. — É que não consigo

acreditar!

Os três seguiram por um caminho sem graça, margeado por casas

simples e prados sem interesse. Âmbar propôs aos companheiros apostarem

uma corrida, e eles aceitaram. Então, ela pensou, com todas as forças, que

queria que o cavalo galopasse até o limite de sua capacidade. Logo sentiu o

ar chicotear seu rosto e a velocidade embriagá-la... O chão parecia

desaparecer sob as patas do animal. Nunca tinha experimentado semelhante

sensação. Depois de alguns deliciosos minutos, Âmbar ordenou

mentalmente ao cavalo que parasse e se juntou novamente aos

Page 89: A profecia das pedras

companheiros. Jade e Owen vinham bem atrás, ofegantes...

—É incrível, nunca vi uma coisa dessas! — exclamou Owen. —

Normalmente, os cavalos precisam de um certo tempo para se habituarem

aos cavaleiros. Eles só atendem aos seus desejos depois de longos meses de

treinamento e, mesmo assim, é preciso ser um cavaleiro experiente. Eu

mesmo tive muito trabalho para preparar o animal que você está montando.

Levei muito tempo para que ele me entendesse tão bem quanto está fazendo

com você!

—Ele tem nome?

—Como é que vou saber? E lógico que deve ter um, mas cavalos

não falam com homens, mesmo que sejam capazes.

—E você não deu nenhum nome para ele? — perguntou Âmbar.

—Não. Ele ficaria muito chateado, isso é contra os costumes deles.

—Ah! — limitou-se a dizer Âmbar, que não tinha mais palavras

para exprimir seu espanto.

Como o passeio começava a tornar-se cansativo, Owen propôs que

voltassem. Jade perguntou ao anfitrião sobre os costumes do povo de Conto

de Fadas, mas ele respondeu simplesmente:

—Somos livres. Temos responsabilidades, é claro, mas cada um

decide seus atos. Trabalhamos, nos divertimos, vivemos...

—E as criaturas mágicas? — insistiu Jade.

—Elas vivem entre nós. Normalmente.

—Mas, então, o que é que tem aqui de tão mágico? — irritou-se

Jade.

— Conto de Fadas é apenas um nome, um conceito, não um modo

de vida. São palavras, que não ilustram a realidade, nem tentam representá-

la. O irreal acaba fazendo parte do nosso cotidiano: a gente se acostuma com

ele. E nossa existência não é um conto, nós sofremos e temos problemas,

mesmo vivendo entre criaturas mágicas... Owen parou. Depois, prosseguiu:

— ... Lá Fora, onde há a vida normal; lá, onde vivem os

homens, também existe o mal.

Estavam se aproximando da mansão. Deixaram os animais na

estrebaria. Âmbar olhou com certo carinho para o cavalo que tinha montado.

Tinha um ar orgulhoso; sua crina dourada contrastava com o branco

cremoso que seu pêlo havia adotado; seus olhos vivos, muito azuis,

Page 90: A profecia das pedras

observavam os cavaleiros sem pestanejar. Âmbar o abandonou a contragosto

para seguir Owen e Jade.

Na mansão, tudo estava muito agitado. Mal entraram na casa, um

homem precipitou-se na direção de Owen. Jade e Âmbar o reconheceram.

Era Loghin, o curandeiro que haviam conhecido na véspera.

—Temos um problema muito sério — disse ele, visivelmente

perturbado.

—Calma, Loghin. O que houve?

—Não posso ficar calmo... Logo depois da sua saída, chegou um

mensageiro...

—Um mensageiro? Então, a notícia deve ter sido mesmo

importante!

—Ah, sim — suspirou Loghin, lamentando-se. — Owen, aconteceu

o pior.

—O pior como? Vai me dizer ou não?

—Tomaram a cidade de Thaar.

—O quê? — gritou Owen d'Yrdhal, espantado.

—O mensageiro está na sala principal — disse Loghin. —

Aconselhei-o a esperar seu retorno.

Silencioso, com o olhar perturbado, Owen seguiu o curandeiro. As

duas meninas foram para o quarto onde Adrien velava Opala, mas não

entraram imediatamente.

—Thaar... — murmurou Âmbar, preocupada. Que perigo existe

nessa cidade? Nas mãos de quem ela caiu?

—É esquisito mesmo — respondeu Jade. — Owen e o curandeiro

pareciam muito assustados. Eu achava que não existia guerra em Conto de

Fadas.

—Parece que estou sonhando — disse Âmbar. — Tudo parece tão

irreal...

—E eu! Para mim, chega. Quero saber o que são essas pedras,

quem sou eu, por que me tiraram de casa — disse Jade. — Quero que me

expliquem o que o Conselho dos Doze tem contra nós. Quero viver num

mundo definido, que não seja cercado de mistérios, de sonhos inacreditáveis!

Assim que Opala acordar, temos que procurar Oonagh!

Com essas palavras, entraram no quarto. Adrien não estava mais

Page 91: A profecia das pedras

ali. Opala tremia violentamente. As meninas correram em sua direção. Ainda

estava inconsciente, mas, do fundo do coma, articulava alguns sons. Não

dava para distinguir nenhuma palavra coerente em meio ao embaralhamento

de monossílabos que ela pronunciava. De repente, Opala calou-se e ficou

imóvel.

Muito zangada, Jade gritou:

—Onde está Adrien? Ele vai embora assim, sem avisar, deixa-nos

trancadas aqui com uma Opala delirante, em uma casa estranha, nessa

maldita cidade!

—Adrien deve ter tido suas razões para sair — disse Âmbar

calmamente. — Podemos procurar Loghin.

—Onde? Estou perdida. Esse não é o meu lugar, aqui tudo é

mágico demais para mim!

—A mansão não tem nada de mágica — disse Âmbar. —Além disso,

podemos tentar encontrar a sala principal.

Nesse momento, Adrien apareceu. Vinha vestido com um uniforme

azul e dourado. Embora sua expressão fosse particularmente determinada,

seu rosto estava pálido.

—Adrien! — gritou Jade, aborrecida. — Onde você estava?

—Thaar foi dominada — disse o rapaz.

—Já sabemos — respondeu Âmbar.

—Então, temos uma guerra? — perguntou Jade.

—Sim e não — respondeu Adrien, muito sério. Sentou-se numa

cadeira e prosseguiu. Vou contar tudo a vocês. É preciso que saibam, para

que expliquem a Opala por que a abandonei.

—Ora, mas você só saiu enquanto dávamos um passeio. Não é tão

grave assim — disse Âmbar.

—Não estou falando disso. Em breve partirei. Definitivamente.

—Mas... — interrompeu Jade.

—Não me interrompa. Escutem, você duas. Thaar não é uma

cidade comum. Alguns dizem que é tomada pelo mal. Ela pertence ao

passado e reflete o passado. E a única cidade que permanece intacta há

milênios, como se estivesse fora do tempo. Também é chamada Cidade das

Origens. Na verdade, Thaar nunca fez parte de Conto de Fadas.

Estranhamente, não é protegida pelo campo magnético, embora fique dentro

Page 92: A profecia das pedras

dele. Por causa disso, há bastante tempo, os membros do Conselho dos Doze

conseguem penetrar ali por telepatia. Esse é um dos motivos pelos quais o

lugar é tão perigoso. Não há muita gente morando ali. Além disso, nem todos

os habitantes são pessoas honestas e alguns, sedentos de poder, traíram

Conto de Fadas, ajudando o Conselho dos Doze a dominar os espíritos dos

outros. Alguns ainda conseguiam resistir, com muita dificuldade, mas a

força tenebrosa do Conselho dos Doze invadiu a cidade e a submeteu ao seu

domínio. E pior, a partir de Thaar, eles podem entrar em Conto de Fadas. De

repente, os membros do Conselho dos Doze, ou até mesmo os cavaleiros da

Ordem, podem se materializar aqui por teletransporte. Para fazer isso,

precisariam realizar um sortilégio de grande complexidade, que não foi feito

mais do que dez vezes em toda a história. Mas é pouco provável que tentem

uma coisa dessas. A estratégia deles é mais segura: por intermédio de seus

fiéis aliados em Thaar, eles se infiltrarão mentalmente no espírito das

pessoas. Assim, será fácil escravizá-las, destruí-las ou subjugá-las. E vão

conseguir. Em Thaar, todos já desistiram de combater. Não sabemos direito

qual é a situação deles, mas, felizmente, um dos habitantes conseguiu fugir.

Já enviamos mensagens para os quatro cantos de Conto de Fadas.

— Como pretendem combatê-los? — perguntou Âmbar, agitada.

—É simples. Os voluntários cercarão a cidade. Se o Conselho dos

Doze tentar expandir sua dominação, eles lutarão... mentalmente. De

qualquer modo, o exército tentará penetrar no espírito dos habitantes e

ajudá-los, o que é praticamente impossível por causa da força do Conselho

dos Doze. Também tentaremos entrar na cidade, combater, deter o ataque

mental.

—Espere um instante — disse Jade — por que você disse

"tentaremos"?

—Acabo de me alistar no exército — disse Adrien, com a voz

carregada de emoção. — Partirei amanhã.

—Você vai arriscar sua vida!? — exclamou Jade.

—Quero ser útil e não ficar vergonhosamente escondido, apenas

esperando os acontecimentos — replicou o rapaz — Precisamos de

voluntários. Se não for minha vida, irá a de outro.

—Mas você voltará, não? — perguntou Âmbar.

—Talvez — disse Adrien, com um tom evasivo. — Quando tudo

Page 93: A profecia das pedras

estiver terminado. Mas talvez não. Nesse caso, ao menos terei lutado.

— Adrien, deixe de ser patético — gritou Jade. — Você

fala como se fosse o fim do mundo!

O rapaz esboçou um sorriso.

— Ainda não terminei de falar... Parem de me fazer perguntas.

Acreditem, o que vou dizer agora é muito sério. Eu deveria ficar calado,

mas...

—Diga de uma vez — cortou Jade.

—É preciso que vocês procurem Oonagh. Agora. Sem perda de

tempo.

—E Opala? — perguntou Âmbar.

Loghin, o curandeiro, me deu uma poção, feita por ele mesmo, que

permitirá a Opala voltar a si por poucos minutos. Poderei me despedir dela.

Em seguida, ela voltará ao estado de inconsciência. Será preciso arrumar

um modo de levá-la com vocês. Ela se curará sozinha.

—Isso não faz sentido! Como encontraremos o caminho? — disse

Âmbar, indignada.

—Vocês têm que conseguir... E muito importante. Agora, deixem-

me a sós com Opala. Logo em seguida, devem partir. Owen colocou os

cavalos mágicos à disposição de vocês.

As meninas foram para o corredor e ficaram diante da porta

fechada. Jade estava revoltada.

— Todo mundo nos manda embora! Estamos sempre sendo

expulsas!

Âmbar não respondeu. Jade estava certa. Ela também não

agüentava mais aquilo.

No quarto, Adrien contemplava Opala com um ar cheio de

saudades. "Estou desolado", murmurou. Em seguida, tirou do bolso um

pequeno frasco habilmente talhado, cheio de um líquido azulado que parecia

borbulhar. Adrien destampou o vidrinho. Um cheiro de sangue, de morte,

pesado como carne apodrecida, invadiu o ambiente. O rapaz reprimiu uma

careta de nojo e aproximou a mistura repugnante do nariz de Opala. A

menina entreabriu os lábios e ele despejou o líquido milagroso em sua boca.

Pouco a pouco, ela voltou a si. Suas narinas estremeceram, seus lábios

abriram-se num sorriso e, com os olhos ainda fechados, murmurou:

Page 94: A profecia das pedras

— Como dormi bem... Então, bocejou e abriu os olhos.

— Opala! — gritou Adrien, com a voz embargada de

tanta emoção.

A menina ainda não conseguia enxergar direito o que se passava

ao seu redor. Levou alguns segundos para despertar completamente. Seu

olhar claro, quase transparente, iluminou-se e, constrangida, deixou escapar

num suspiro:

— Adrien! Você está aqui! O que aconteceu?

O rapaz sentiu as lágrimas inundarem seus olhos, mas conseguiu

conter-se. Com o coração apertado, disse a si mesmo que talvez estivesse

vendo Opala pela última vez.

—Eu te amo — disse com voz trêmula. — Pensarei em você todos

os dias, até que consiga revê-la. Estarei perto de você sempre que sonhar

comigo.

Não conseguiu prosseguir. Opala, com os imensos olhos azuis

pousados sobre ele, parecia aflita e feliz ao mesmo tempo. Recuperou-se,

apertou seu corpo contra o do rapaz e disse:

—Não me abandone... Não vá embora, fique comigo... É muito

perigoso, você está arriscando sua vida... E eu te amo.

Opala ainda queria dizer mais alguma coisa, mas, de repente, seu

olhar turvou-se e sua cabeça afundou-se no travesseiro, novamente

inconsciente.

Adrien jamais conseguiu compreender como ela tinha adivinhado

que ele partiria para uma guerra. No entanto, saber que Opala também o

amava era o mais importante. Agora, ele podia enfrentar o Conselho dos

Doze sem o menor temor. O amor lhe serviria como escudo.

16 Jade e Âmbar, taciturnas, cavalgavam em direção aos picos

nevados. Jade carregava Opala, inanimada, e perguntava-se onde dormiria

na noite seguinte e que nova aventura insensata seria obrigada a enfrentar.

Âmbar observava a paisagem a seu redor. As casas modestas e as

imponentes, os campos cultivados que margeavam o caminho. Mas nada lhe

chamou tanta atenção quanto alguns trabalhadores que cantavam e riam

Page 95: A profecia das pedras

em vez de lavrar a terra. Pareciam humanos, mas ela podia perceber seus

longos cabelos prateados. Apesar de seus esforços para manter a calma e

concentrar a atenção na paisagem, Âmbar não conseguia evitar a irritação.

Sentia-se impotente, tinha a impressão de não conduzir mais a própria vida,

de avançar em meio à mais absoluta escuridão. O que a esperava agora?

Será que algum dia compreenderia a razão de tudo aquilo?

Jade também resmungava consigo mesma. Sim, ela queria demais

descobrir o mistério que lhe escondiam. Mas bem que gostaria de voltar

atrás, retornar a seu palácio. Sabia que isso era impossível, mas deixar de

seguir cegamente as ordens alheias era uma idéia tentadora.

De repente, ela disse:

— Âmbar, não ria de mim, mas tenho a impressão de que todo

mundo sabe o que devemos fazer, menos nós. Eles nos conhecem melhor

que nós mesmas. Sabe o que estou achando?

—Não — respondeu Âmbar, distraída.

— Se o Conselho dos Doze tem alguma coisa contra as criaturas

mágicas é porque tem medo delas.

—Sim, parece evidente.

—Se o Conselho dos Doze tem alguma coisa contra os que

conhecem Conto de Fadas, é porque tem medo deles também. Imagine se

todos soubessem da existência desse lugar. Haveria rebeliões em toda parte.

Todos iriam querer vir para cá. Agora, pense um minuto... Não acontecem

muitas revoltas porque as pessoas não têm coragem suficiente. Mas é

também porque é inútil tentar: os cavaleiros da Ordem estão por toda parte.

A verdade mesmo é que a maioria das pessoas não compreende nada,

entende o que quero dizer?

— Claro — concordou Âmbar. — As pessoas são privadas de

liberdade, de ambições, de sonhos... Desde o momento em que nascem,

sabem que o futuro não lhes reservará nenhuma surpresa. Meus pais eram

camponeses, eu também deveria ser camponesa e não tinha nenhuma

outra escolha. Com o pretexto de criar uma sociedade estável, o Conselho

dos Doze priva as pessoas da liberdade, mas ninguém se dá conta disso.

Desde que nascemos, esta mos acostumados a isso e seguimos todas as

regras sem jamais perguntar por quê.

Page 96: A profecia das pedras

—Antes de sair de casa, eu via o mundo como tinham me ensinado

a ver. E você? Já sabia da verdade há muito tempo?

Há muito tempo. Cresci livre, solta, sempre me refugiei nos livros

proibidos. Aprendi neles o que era a vida. Veja o que é o mundo sob o

controle do Conselho dos Doze: os doentes são julgados fracos e inúteis,

todos os desprezam, só falam com eles para censurá-los.

—E verdade. As pessoas só fazem aquilo que ordenam que façam.

Nunca se questionam, esquecem a amizade, o afeto.

—É ridículo — adiantou Âmbar — mas... não, deixa para lá...

Apesar da insistência de Jade, ela não completou o pensamento

que lhe havia surgido.

—O que eu queria dizer — recomeçou Jade — é que se os membros

do Conselho dos Doze têm alguma coisa contra nós, é porque eles também

têm medo de nós, por mais incrível que isso possa parecer. Eles tiveram todo

o tempo do mundo para nos destruir, desde o nosso nascimento. Poderiam

ter enviado os cavaleiros da Ordem em nosso encalço. Se eles nos temem,

devem ter uma excelente razão para isso. Só não consigo imaginar qual

seria...

—Isso mesmo! Acho que somos capazes de fazer alguma coisa

contra eles. Talvez possamos desestabilizá-los ou... sim! Mostrar às pessoas

o que descobrimos!

—Hummm... — respondeu Jade, pouco convencida. — E como é

que você pretende abrir os olhos de milhares de pessoas? Se bem que...

talvez as pedras pudessem nos ajudar.

Foi a vez de Âmbar hesitar.

—Acho que não vai dar certo. Só nos seguirão aqueles que já estão

convencidos.

—É. E depois, por que deveríamos fazer isso? Mas, por outro lado,

se ninguém fizer nada...

—Sim, mas não sabemos se somos mesmo capazes de mudar

alguma coisa.

As meninas voltaram a mergulhar em seus pensamentos.

A tarde já chegava e ainda não tinham comido nada. Decidiram

fazer uma parada. Owen lhes tinha dado bastante comida para levarem na

viagem. Não havia risco de passarem fome. Sentaram-se à sombra fresca de

Page 97: A profecia das pedras

um carvalho e deitaram o corpo de Opala com cuidado. A menina ainda

estava inconsciente e permanecia inerte. Loghin tinha feito um curativo em

seu ferimento, e ele tinha parado de sangrar.

Jade e Âmbar desembrulharam os mantimentos. Atacaram com

apetite o pão fresco, a carne seca, os queijos gordurosos, e deixaram de lado

algumas coisas de aspecto desconhecido e pouco convidativo.

—Sabe, Jade... no fundo, não lamento estar aqui. Que futuro eu

teria? Nenhum... Sairia da infância e veria o que o futuro me oferecia: nada.

Mas comigo é diferente. Poucos dias atrás, eu teria gritado em alto

e bom som que era a filha do duque de Divulyon. Teria contado a você como

meu palácio era luxuoso. Ao contrário de você, eu achava que o futuro me

traria tudo: riqueza, reconhecimento, tudo o que eu sonhasse. Agora, sinto-

me um pouco culpada por não ter sabido ir além das aparências.

Jade calou-se, ruborizada. Jamais pensara em revelar seus

sentimentos a ninguém. O duque de Divulyon tinha lhe dito que Âmbar e

Opala eram suas inimigas, o que era verdade com relação à segunda, mas

não à primeira. Por que ele teria dito aquilo? Estava com a desagradável

impressão de ter mudado depois de ter abandonado o palácio.

Perigosamente, Âmbar parecia ser sua primeira amiga — uma palavra que

sempre lhe parecera obscura e sem sentido.

Não, não era possível! Ela, Jade, a filha do duque de Divulyon, não

poderia estar pensando tais coisas. Era muito estranho, não fazia tanto

tempo assim que tinha partido. Podia jurar que anos tinham se passado.

Sentia que seu passado era uma coisa definitivamente encerrada.

De repente, Âmbar quebrou o silêncio.

—Tive uma idéia. Por que não tentamos reanimar Opala com

nossas pedras?

—Pode ser.

Âmbar tirou da bolsa de Opala o saquinho de veludo negro.

Colocou a pedra entre os dedos fechados da menina. Depois, pegou sua

pedra de âmbar e apertou-a com força. Jade, distraída, fez a mesma coisa.

Aguardaram um pouco. Nada aconteceu. Âmbar esforçou-se ainda mais. As

meninas sentiam que as pedras tentavam entrar em contato com a de Opala,

mas sem sucesso. Como ela estava inconsciente, ficava impossível

estabelecer a comunicação habitual.

Page 98: A profecia das pedras

Derrotadas, Jade e Âmbar retomaram viagem. Âmbar instalou

Opala sobre seu cavalo, pedindo mentalmente que ele a desculpasse pelo

peso extra. Sabia que o cavalo a compreendia, mesmo sem nada responder.

— Gostaria tanto de dar um nome a você — murmurou Âmbar por

telepatia —, mas Owen acha que isso o desagradaria.

Nesse instante, o cavalo começou a se agitar e Âmbar sentiu-se

tomada por um ligeiro incômodo. Percebeu que essa sensação era causada

pelo cavalo que, por telepatia, tentava dissuadi-la da idéia.

—Está bem, não precisa ficar nervoso. Não vou lhe dar nome

nenhum. Mas eu não sabia que você conseguia transmitir seus sentimentos

e sensações. É surpreendente!

O cavalo parou. Âmbar compreendeu que ele estava contrariado,

ferido em seu orgulho.

—Me perdoe! É porque ainda não estou acostumada com Conto de

Fadas. De onde eu venho, tudo é tão diferente!

Mais calmo, o cavalo retomou sua marcha. Âmbar tinha a

impressão de que o animal comunicava-se com a ela. Imagens e impressões

tomavam seu espírito. Poderiam até ser frutos de sua imaginação, mas ela

duvidava disso.

Cavalgaram muito tempo, sem interrupções. Não sabiam se tinham

escolhido o melhor caminho. Seguiam pelas montanhas. Ainda estavam

distantes, muito distantes de Oonagh.

A tarde caiu, envolvendo Conto de Fadas em um véu de penumbra

e, depois, a noite tomou seu lugar. Elas não estavam cansadas, mas as

sombras pareciam perigosas, os contornos da paisagem sumiam na

escuridão e as meninas ficaram com medo de se perderem ou de serem

atacadas por inimigos desconhecidos. Decidiram parar. Adrien lhes havia

aconselhado a não pedir abrigo, para evitar surpresas desagradáveis. Elas

sabiam que seus inimigos podiam estar em qualquer parte. Sentiam-se

seguras em Conto de Fadas, mas agora, na escuridão, não sabiam mais no

que acreditar.

Sentaram-se à beira da estrada, sob uma árvore, jantaram e

deitaram-se na relva, com o corpo de Opala ao lado delas.

—Estive pensando — disse Âmbar.

—Eu também.

Page 99: A profecia das pedras

—Os habitantes de Conto de Fadas acreditam. Eles acreditam no

impossível, em seus sonhos. São livres. Não necessariamente felizes, como

lembrou Owen, mas livres para escolher a vida que quiserem. É estranho

que aqui também existam guerras. É um lugar tão pacífico. Nos lugares onde

reina o Conselho dos Doze, as pessoas não acreditam em nada, não sonham,

não têm esperança. Não sabem se são felizes ou tristes, nem querem saber.

Lá não existem guerras, mas há tantas proibições...

—Engano seu — interrompeu Jade. — Aqui também existe a

maldade, Owen mesmo nos contou. Existiram guerras, há a violência. Não se

pode viver sempre em paz. E lá, Lá Fora, a guerra existe desde muito tempo,

e perdura até hoje. O Conselho dos Doze luta contra a liberdade, contra a

felicidade. Mas jamais conseguirá vencer completamente porque onde há o

mal também há o bem. A guerra existe aqui e lá.

Jade calou-se. Impressionada, Âmbar respondeu:

— Acho que você tem razão... A eterna luta entre o bem e o mal.

As duas riram.

— Lá Fora — prosseguiu Âmbar — as pessoas só pensam em si

mesmas. Esquecem de olhar ao seu redor, esquecem os sentimentos, e não

percebem isso! Quem se revoltará desse jeito? Quem ousará ser diferente dos

outros? E quem tentará mudar os outros?

— É por isso que Conto de Fadas precisa ajudá-los — decidiu

Jade. — Aqui as pessoas compreendem o que se passa do lado de lá. São

capazes de ajudar. Quanto a nós, acho que não temos o direito de fechar os

olhos.

Embalada pelas próprias palavras, Jade estava a ponto de dizer

mais alguma coisa, quando uma voz hesitante a interrompeu:

— O que está acontecendo? Onde estamos?

As meninas sobressaltaram-se. Opala acabava de despertar.

— Estou me sentindo mal — disse com voz fraca.

Âmbar agachou-se a seu lado e a tranqüilizou:

— Estamos em Conto de Fadas. Você está ferida, mas não é nada

grave.

Opala levou a mão ao ferimento, reprimindo um grito de pavor.

Loghin tinha feito um bom trabalho, mas ainda estava muito dolorido.

— Vamos pegar as pedras — sugeriu Jade.

Page 100: A profecia das pedras

Opala e Âmbar obedeceram maquinalmente. Concentraram-se, e

em breve um suave calor as invadiu. Por um momento, não pensaram em

nada. Sentiam-se relaxadas, seus problemas tinham desaparecido. Pouco a

pouco, a comunicação se estabeleceu. Jade e Âmbar tinham a impressão de

estar transmitindo uma parte de suas forças para Opala. Uma onda de

cansaço as atingiu.

—Estou me sentindo melhor — murmurou Opala. — A ferida está

parando de doer. Mas ainda preciso descansar um pouco antes de seguir

viagem. Aliás, para onde estamos indo?

— Para onde vive Oonagh, é óbvio! — disse Jade, secamente.

— Mas não se apresse — disse Âmbar. — Essa noite, vamos

dormir. Amanhã, contaremos tudo para você.

E as três meninas fecharam os olhos, esquecendo suas angústias.

17 O Inomeado e Elforhys tinham decidido passar a noite numa

minúscula clareira. Depois do ataque mental dos Ghibduls, nenhum outro

incidente voltou a perturbar sua viagem. Só uma vez, Elforhys achou que

tinha se perdido, mas uma hora mais tarde já tinha reencontrado o

caminho.

Antes de se deitar para dormir, o Inomeado perguntou a Elforhys

se faltava muito para saírem da floresta.

— Bom, isso não depende de mim. Se não encontrarmos nenhum

obstáculo, talvez em mais dois dias consigamos sair daqui. Mas também

pode durar semanas...

Depois de jantar e conversar um pouco, os companheiros

deitaram-se. O Inomeado, que quase não tinha dormido na noite anterior,

caiu num sono profundo.

Durante o dia, sem que ele tivesse percebido nada, os Ghibduls

tinham ficado à sua espreita. Assim que perceberam que dormia,

infiltraram-se insidiosamente em seu espírito, anestesiaram-no por algumas

horas e fizeram a mesma coisa com Elforhys. Se o mundo acabasse não

acordariam mesmo!

Page 101: A profecia das pedras

Satisfeitos, os pensadores Ghibduls esfregaram suas mãos de

dedos tortos. Em meio a risadas zombeteiras, ordenaram aos guerreiros que

trouxessem o Inomeado e Elforhys à sua presença.

As criaturas mágicas atravessaram a floresta como um furacão.

Voavam a cerca de três metros do solo e logo encontraram suas vítimas.

Brutalmente, os Ghibduls os amarraram com fortes cipós e

contemplaram seus prisioneiros sem a menor piedade. Como tinham

chegado a imaginar que aquelas duas pobres presas representavam uma

ameaça real?

Dois dos guerreiros levantaram o Inomeado e Elforhys sem

nenhum cuidado e os carregaram como se fossem pacotes de compras.

Então, dirigiram-se alegremente para sua cidade.

Não conseguia descobrir onde estava. Os contornos do lugar eram

indefinidos. O que teria ocorrido? O Inomeado não fazia a menor idéia.

Esforçou-se para se lembrar dos últimos acontecimentos, mas sua mente

parecia enfumaçada. Estava de olhos abertos e não se lembrava de ter

perdido a consciência. Percebeu que seus braços e pernas estavam

amarrados com cipós e que estava preso a uma espécie de cadeira, coberta

com um musgo esverdeado como líquen. Sentia-se tão sonolento que nem

tentou se soltar. Encontrava-se em um lugar desconhecido, com paredes de

um branco sujo, em companhia de Elforhys, inconsciente e preso pelos

mesmos cipós escuros. Pouco a pouco, despertou completamente. A situação

lembrou-lhe outra ocasião, dois anos atrás, quando tinha acordado

repentinamente no meio de um campo. Mas, da outra vez, ele se lembrava de

cada momento que tinha precedido seu adormecer na clareira.

Observou o aposento com mais atenção. A luz era fraca. Não

existiam móveis e nada deixava adivinhar quem seriam os donos do lugar.

Tentou se mexer e arrebentar os cipós que o prendiam, mas sem sucesso.

Quanto mais se contorcia, mais os cipós se entranhavam na estranha

cadeira.

Elforhys despertou tão desorientado quanto o hovalyn.

—Onde estamos? — perguntou com uma voz aguda.

—Não faço a menor idéia. E você. Não consegue se lembrar de

nada?

— Minha memória virou pó.

Page 102: A profecia das pedras

O hovalyn suspirou resignado. Não era o único a não guardar

lembrança do que os tinha levado até ali. Devia existir uma explicação para

que ambos tivessem perdido a memória.

A criatura mágica olhava para os aposentos, cada vez mais

intrigada.

— Tudo isso é muito estranho. Estávamos na clareira e, de repente,

nos vemos amarrados neste lugar, prisioneiros de um inimigo desconhecido.

Mal pronunciou essas palavras e a porta abriu-se com um

estrondo. Um Ghibdul entrou no aposento, caminhando com dignidade. Era

pequeno, o que não tornava seu aspecto mais confiável. Seu corpo era

coberto por uma carapaça verde-escura, que só deixava de fora suas mãos

repulsivas, seus pés de garras afiadas, o pescoço e a cabeça arroxeada. Essa

carapaça funcionava como uma armadura natural. O Ghibdul mantinha-se

encurvado e seu rosto era particularmente assustador. Os olhos — que não

passavam de duas fendas estreitas, cor de lama suja — cintilavam com um

brilho duro e inteligente. A boca, do mesmo tom esverdeado da carapaça, era

esquisitíssima, translúcida, quase invisível. O nariz não passava de três

fendas no meio de um rosto amarrotado. Na cabeça, ele trazia uma espécie

de capacete enferrujado, de onde surgia uma cabeleira rebelde, parecida com

os cipós que amarravam o Inomeado e Elforhys. Nas costas do Ghibdul,

podia-se perceber um par de asas escuras, finas e pregueadas.

Era assustador.

A criatura entrou no quarto com um passo duro e pesado.

—Um Ghibdul — constatou Elforhys em voz alta.

—Isso o espanta, prisioneiro? — perguntou a criatura com uma voz

áspera.

—Onde estamos? — perguntou o Inomeado. — Que querem de

nós?

—Cale a boca, seu verme. Animais como vocês não são dignos de

nos dirigir palavra. Nenhuma presa jamais teve essa honra.

—Estou me lixando para sua honra — resmungou Elforhys.

—Cale-se! Aqui, eu falo e vocês escutam. Se desobedecerem,

cortarei suas cabeças e vocês terão que esperar pelo fim da greve da Morte

para que eu acabe definitivamente com vocês.

A perspectiva de ter a cabeça cortada pela repugnante criatura, e

Page 103: A profecia das pedras

de ter que esperar indefinidamente pela Morte, convenceu o Inomeado e

Elforhys a ficarem quietos.

— Bom, vou explicar a situação — disse o Ghibdul, com sua voz

cavernosa. Vocês são nossos prisioneiros e não têm a menor chance de

escapar. Estão em nossa cidade, um lugar que, com certeza, jamais poderia

abrigar seres inferiores como vocês, incapazes de compreender uma

civilização refinada como a nossa. Daqui a algumas horas, vocês serão

alimentados. Depois, levaremos vocês para um lugar que deixará seus

espíritos incultos realmente encantados...

—Que lugar? — perguntou Elforhys, esquecendo de manter a

boca fechada.

—Silêncio! — rugiu o Ghibdul. — Como ousa me desobedecer, ser

inferior?

—Não era essa minha intenção — respondeu Elforhys, sem sombra

de medo na voz.

—Seu miserável insignificante! Se soubesse a vontade que tenho de

destroçá-lo agora mesmo...

Com essas palavras, o Ghibdul se aproximou de Elforhys e roçou-

lhe o rosto com a mão. Foi o bastante para que suas garras afiadas

dilacerassem a pele do companheiro do Inomeado. O sangue dourado tingiu

a pele prateada de Elforhys, mas ele não deixou escapar nem um gemido.

O Inomeado voltou-se, então, para o Ghibdul:

—Você se arrependerá disso, pode ter certeza.

—Está me ameaçando?

Estranhamente, a criatura tinha um ar pensativo, quase intrigado.

—Não estou brincando — prosseguiu o Inomeado. — Estou

avisando. Não gosto de pegar ninguém desprevenido.

—Já, já, vou lhe mostrar do que sou capaz — disse o Ghibdul.

—E só isso o que espero — respondeu o hovalyn, com a voz grave.

—Vamos lutar com as mãos limpas, mas tenho que preservar sua

vida. Não posso contrariar as ordens que me foram dadas.

—Está bem — disse o Inomeado, nem um pouco perturbado.

Elforhys lançou-lhe um olhar inseguro. O Ghibdul pronunciou

algumas sílabas ininteligíveis e os cipós que prendiam o hovalyn soltaram-

se.

Page 104: A profecia das pedras

O Inomeado sabia que seu adversário era capaz de vencê-lo com

poucos golpes, usando apenas suas garras afiadas. No entanto, avançou

tranqüilo, com um passo quase relaxado.

Uma expressão ignóbil apareceu no rosto do Ghibdul, uma careta

que podia ser interpretada como um sorriso malévolo. Sem nenhum

movimento preliminar, lançou-se contra o hovalyn que, perto dele, parecia

fraco e inofensivo. Suas mãos rasgaram o ar raivosamente, sucessivas vezes.

Mas, cada vez que julgava ter atingido seu oponente, o Inomeado se

esquivava do ataque. Pouco a pouco, o Ghibdul foi perdendo o fôlego. Mas,

sem querer admitir a derrota, continuava a tentar ferir o hovalyn.

Elforhys olhava, admirado, para o Inomeado. O rapaz movia-se

com destreza e agilidade, aparando os golpes sem se deixar atingir.

Finalmente, o Ghibdul, já ofegante, murmurou algumas palavras

incompreensíveis e o hovalyn foi novamente jogado na cadeira por uma força

invisível e amarrado pelos cipós.

—Homem... — disse o Ghibdul, com uma voz seca que deixava

transparecer uma ponta de admiração — o fato de ter conseguido evitar

meus ataques, mesmo estando desarmado, não faz de você nem um pouco

superior a mim.

—Jamais pretendi tal coisa — respondeu o Inomeado no mesmo

tom — , mas não vejo razão para que me julgue inferior a você.

—Aguarde. Você vai ver do que nós, Ghibduls, somos capazes.

Nossa força telepática é inegável e, armados, somos invencíveis!

— Isso é muito interessante — comentou o hovalyn.

Profundamente envergonhada, a criatura mágica saiu sem dizer

mais nada. O Inomeado e Elforhys ficaram novamente sozinhos.

—Que idéia, enfrentar o Ghibdul! — reprovou Elforhys.

—Eu não podia deixar que ele o agredisse sem fazer nada!

—É muita imprudência por umas poucas gotas do meu sangue!

Meu ferimento fechará logo, nem cicatriz deixará. Tenho ótimas defesas

naturais. Mas você, Inomeado, acaba de ganhar o ódio de um Ghibdul. E

acredite, essa raiva não vai passar tão cedo.

—Seja como for, ele já não parecia nada amigável quando chegou

— respondeu o hovalyn, despreocupado.

O Inomeado e Elforhys viram o tempo passar enquanto lutavam

Page 105: A profecia das pedras

contra os cipós, mas não encontraram maneira de libertarem-se. Não

conseguiam evitar a ansiedade com relação ao destino que os aguardava.

Finalmente, a porta se abriu. Uma mulher entrou. E era humana!

Elforhys e o Inomeado arregalaram os olhos. Estava vestida com uma roupa

malfeita, de tecido vegetal fabricado a partir das plantas da floresta. Era

suja, e seus pés descalços estavam cobertos de cicatrizes, assim como suas

mãos. Seu rosto era duro, mas mostrava, ainda assim, que era humana.

Tinha as maçãs do rosto salientes, os olhos negros, apertados, com um

brilho agressivo, lábios finos e pele sem brilho. O nariz achatado destacava-

se no rosto melancólico. Os cabelos castanhos, grudados de lama e sujeira,

caíam sobre seus ombros largos.

A mulher aproximou-se e depositou um prato de madeira cheio de

frutas no chão. De má vontade, desfez os nós que prendiam Elforhys e o

Inomeado.

—Podem comer — disse ela com uma voz rouca — , mas não

adianta tentar fugir. Os pés de vocês estão presos nos cipós.

—Você é humana? — perguntou, educadamente, o Inomeado.

—Sou. Os Ghibduls precisam de criados como eu. Eles pegam as

mulheres que se perdem na floresta. Eles são bons para mim.

—Como você se chama? — perguntou o Inomeado, na esperança de

engajar uma conversa e ganhar a confiança da criada.

—Nailde. Coma logo, não fique fazendo perguntas! Não posso ficar

falando com vocês. Gosto daqui e não ajudo os prisioneiros. Vocês acham

que eu quero fugir também, não é? Sinto muito, mas não quero.

—E você consegue ver gente como você morrendo? Consegue ouvir

os gritos dos torturados sem sentir remorso? — perguntou Elforhys.

—Os Ghibduls me tratam melhor do que os seres humanos e eu os

sirvo da melhor maneira possível. Isso é tudo.

Com essas palavras, Nailde praguejou e cuspiu aos pés do

Inomeado. Ainda babando, e com uma expressão muito orgulhosa e segura,

deu meia volta e saiu batendo a porta com um estrondo.

—Que coisa incrível! Essa mulher acabou adotando os costumes

dos Ghibduls — observou Elforhys.

—E quem poderá saber como era sua vida entre os humanos? —

retrucou o Inomeado com indulgência. — Antes de transformar-se em uma

Page 106: A profecia das pedras

mulher tão rude, ela deve ter sido uma moça simples, talvez

incompreendida. Deve ter sofrido muito... Não sabemos que tipo de conforto

os Ghibduls deram a ela. Segundo diz, gosta da vida que leva aqui...

Elforhys olhou para o Inomeado, surpreso. Ele se compadecia da

mulher que acabava de lhe negar a liberdade! "Decididamente, a natureza

dos homens era ainda mais incompreensível do que imaginava" — pensou

Elforhys.

O Inomeado comeu tranqüilamente as frutas trazidas por Nailde.

Depois de satisfeito, passou o prato a Elforhys, que engoliu o que tinha

sobrado. Com as mãos livres, o hovalyn tentou, sem sucesso, soltar os pés

dos cipós.

— Ah, vocês, os humanos... — suspirou Elforhys, o Clorhyun,

quase resignado. — Sempre tão cheios de esperança... Acho que é isso que

os ajuda a sobreviver. Mesmo que lhes digam que não há saída, vocês vão

insistir.

Nailde retornou para buscar o prato vazio. O Inomeado prendeu a

respiração, esperando que a criada tivesse mudado de idéia, que a piedade

tivesse voltado a seu coração. Elforhys surpreendeu seu olhar iluminado.

"Sempre ingênuo, sempre confiando nos outros", disse para si mesmo com

um suspiro. "O homens se julgam habitados pelo bem, enquanto se ocupam

em destruir uns aos outros. Estranho."

Nailde despejou uma nova saraivada de injúrias sobre o Inomeado.

Parecia sentir um prazer especial em humilhá-lo. Era óbvio que não

pretendia libertá-lo.

O Inomeado compreendeu, desapontado, que não tinha conseguido

fazer Nailde mudar de idéia.

A criada abandonou o quarto, ainda xingando.

Elforhys e o Inomeado começaram a ficar apreensivos. Quase

imediatamente após a saída de Nailde, quatro imponentes Ghibduls

invadiram o aposento. Um deles murmurou algumas palavras e os

prisioneiros foram libertados dos cipós.

— Venham! — ordenou um Ghibdul.

Antes de alcançar a saída, foram levados através de várias peças

sombrias e puderam observar melhor o lugar onde tinham estado

aprisionados. Era um edifício lúgubre, de arquitetura estranha, com uma

Page 107: A profecia das pedras

aparência de abandono e escuridão. No entanto, seu interior formigava de

Ghibduls.

Foram conduzidos pelos carcereiros por ruas estreitas e sinuosas e

descobriram o que ninguém suspeitava existir: uma cidade ativa e

organizada, rodeada por árvores imensas que funcionavam como muralhas

naturais. O lugar onde a cidade fora construída não tinha sido escolhido ao

acaso.

Um pátio imenso surgiu diante de seus olhos. Parecia um teatro,

com pedras ornamentadas pintadas de preto. Percebendo sua aproximação,

os Ghibduls ostentaram sorrisos orgulhosos. Foram conduzidos por uma

galeria cheia de esculturas e pinturas que revelavam a mestria de uma arte

refinada e original, da qual ninguém imaginava que os Ghibduls fossem

capazes.

Uma multidão de criaturas mágicas aglomerava-se na entrada. Os

carcereiros formaram uma passagem, conduzindo os prisioneiros por ali.

Subiram intermináveis escadas e chegaram a uma porta de cobre, atrás da

qual jogaram o Inomeado e Elforhys. Depois, fecharam a porta e partiram.

Os dois companheiros caíram no vazio, sem compreender o que

estava acontecendo, antes de atravessar uma espécie de bolha esponjosa e

caírem no chão, sem nenhum arranhão. Ouviram uma explosão de aplausos.

Elforhys e o Inomeado apertaram os olhos, impressionados. Uma

visão inacreditável se descortinava diante deles: estavam num teatro

gigantesco, muito elegante e bem iluminado, com milhares de Ghibduls

confortavelmente instalados em poltronas forradas de veludo escuro.

Surgiam novidades por toda parte. O teatro possuía forma elíptica;

inumeráveis fileiras de espectadores elevavam-se até o teto, que representava

a floresta sob um céu azul.

Um espaçoso palco ficava no centro da construção, sobre uma

coluna de mármore curta e grossa, e era cercado de vidro, de modo que os

espectadores podiam vê-lo de qualquer ângulo.

O problema é que Elforhys e o Inomeado estavam justamente no

centro do palco. Erguendo os olhos, puderam enxergar no teto o alçapão,

quase imperceptível, do qual tinham sido jogados.

Page 108: A profecia das pedras

—Onde estamos? — perguntou o Inomeado.

—Não faço a menor idéia. Não parece boa coisa...

—Mas é tão surpreendente! — exclamou o hovalyn. — Passamos a

vida achando que os Ghibduls eram criaturas bárbaras e, de repente, nos

encontramos num lugar incrível como esse...

—É uma pena, mas você não vai ter oportunidade de contar o que

viu a ninguém...

Os Ghibduls saíram voando para oferecer um lanche aos

espectadores. Não tinham a noção do dinheiro. Comprar e vender eram

coisas desconhecidas para eles. Tudo lhes era fornecido pela natureza.

O Inomeado percebeu que apenas uma pequena parte da platéia

era reservada para algumas dezenas de mulheres desmazeladas, humanas

ou de outras espécies, que não tinham lugar para se sentar. Apesar da

distância, conseguiu reconhecer Nailde, que vociferava e brandia os punhos,

provavelmente para ele.

De repente, as luzes se apagaram. Uma voz possante ressoou:

— Sejam bem-vindos, caros amigos Ghibduls. Hoje, temos a honra

de apresentar a vocês um autêntico exemplar Clorhyun e um humano, diria

mesmo que é um hovalyn. Quem será o vencedor? Quanto tempo ele

conseguirá resistir? Façam suas apostas. Como de costume, eles

se submeterão a provas que preparamos especialmente para o prazer de

vocês. Desejo a todos uma boa tarde. E ótima diversão!

Os Ghibduls aplaudiram entusiasmados. Elforhys e o Inomeado

entreolharam-se, preocupados. Mas, antes que pudessem trocar uma só

palavra, antes mesmo de o público ter terminado de aplaudir o início do

espetáculo, sentiram uma dor aguda atingi-los. Sob o braço esquerdo, bem

no lugar onde o Inomeado tinha sido ferido pelos Bumblinks, não fazia muito

tempo, a ferida abriu-se novamente e o sangue começou a correr. Ele

conseguiu reprimir um grito. Quase que ao mesmo tempo, sobreveio outro

ataque. Dessa vez, atingiu seu corpo inteiro. Embora o golpe não provocasse

nenhum ferimento, o hovalyn precisou reunir todas as suas forças para não

cair, retorcido de dor.

Os espectadores riam da cena e comentavam alegremente cada

detalhe.

O rosto de Elforhys, contorcido, exprimia um sofrimento atroz. Ao

Page 109: A profecia das pedras

serem atingidos pela terceira vez, o Clorhyun desabou inconsciente.

A platéia vaiou.

O Inomeado cambaleava. Sua perna esquerda tinha sido

profundamente ferida. O cheiro insuportável de seu sangue subia-lhe até a

garganta e o fazia sufocar. Seus olhos estavam congestionados de raiva. Por

que os Ghibduls deliciavam-se com seu sofrimento de maneira tão selvagem?

Ele continuou dignamente erguido, mesmo quando seu braço esquerdo foi

dilacerado por uma força invisível. Murmúrios de espanto começaram a

circular pela multidão.

Novamente, uma descarga de dor envolveu todo o corpo do

hovalyn. Dessa vez, ele foi derrubado no chão. Clamores de decepção

elevaram-se da platéia.

Mesmo abatido, o Inomeado reuniu sua coragem e sua força de

vontade e levantou-se. Seus olhos brilhavam com tal determinação que a

multidão ficou abalada.

Quando sentiu uma punhalada invisível trespassar seu ventre, o

hovalyn não pestanejou. Sabia que não tinha nada a perder, a Morte estava

em greve. Precisava apenas resistir aos ataques. Mas estava difícil. Ele não

agüentava mais. Quando nova onda de dor atingiu seu corpo, teve que

apoiar-se contra o vidro que cercava o palco. Com um último esforço, tentou

recuperar-se. Queria gritar uma ameaça, uma frase digna e pertinente,

qualquer coisa que lhe devolvesse um pouco de orgulho... Mas tudo

começava a se embaralhar à sua volta, as imagens, os sons, os cheiros,

todas as suas sensações se esvaneciam, sumiam, só restava o sofrimento...

Ele ainda resistia quando, subitamente, uma voz ressoou pelo

palco, a mesma que tinha apresentado o espetáculo.

— É chegado o momento da escolha!

Um frêmito de excitação percorreu o público. O Inomeado fez um

esforço sobre-humano para permanecer de pé. Tudo parecia cada vez mais

distante...

— Ajoelhe-se, hovalyn! — prosseguiu a voz. — Renegue tudo o que

você é, desista de lutar. Jamais conseguirá nos vencer. Rebaixe-se e a

tortura cessará, você passará a ser um dos nossos. Conhecemos a

identidade que você procura tão desesperadamente. Nós a revelaremos a

você. Você terá um lugar entre nós. No entanto, se insistir e recusar nossa

Page 110: A profecia das pedras

proposta, a dor prosseguirá até deixá-lo enlouquecido. Assim que a greve da

Morte acabar, nós o mataremos. Então, admite que foi vencido? Aceita nos

servir?

— Nunca! — disse o Inomeado num sopro de voz. Uma nova onda

de dor abateu-se sobre seu corpo.

Uma voz distante, grave, dura, mas admirada, ressoou pelo teatro:

— É ele... É ele! Parem, é ele! O Inomeado caiu desmaiado.

18 As três meninas despertaram ao mesmo tempo. O sol mal acabava

de nascer. Fizeram uma refeição leve. Âmbar experimentava uma fruta

estranha, que parecia deliciosa. Nenhuma delas falava. Ainda estavam muito

cansadas.

Foi Opala quem percebeu primeiro as duas meninas que vinham

em sua direção. Tinham um rosto fresco e delicado e caminhavam com uma

expressão despreocupada. Mas Âmbar não deixou de notar nelas um jeito

orgulhoso, uma certa arrogância.

No começo, ficaram em silêncio, examinando as viajantes. Era

impossível adivinhar sua idade. Uma delas tinha o cabelo castanho-claro,

bem curto, habilmente despenteado. Seus olhos eram de um azul cintilante e

malicioso. A outra, morena, penteada da mesma maneira, tinha olhos

castanhos e um olhar fluido. Eram bem parecidas. Tinham o nariz pequeno,

fino, ligeiramente arrebitado, lábios carnudos que sorriam inocentemente.

Tanto seus traços quanto seu jeito sugeriam pessoas charmosas e angelicais.

Mas elas não conseguiam esconder um ar de desdém.

—Lorine! — gritou a menina de olhos azuis com uma voz infantil.

— Você acredita que sejam humanas? De verdade?

—É provável — respondeu a outra, com a mesma vozinha aguda.

— Que coisa incrível!

—Eu existo! — disse Jade secamente. — Acho bom levarem isso em

conta quando falarem de nós.

—Tem razão, Mairenith — disse Lorine. — São humanas mesmo!

— Obrigada pela constatação — retrucou Jade, já irritada.

Âmbar e Opala olhavam atentamente para as duas meninas.

Page 111: A profecia das pedras

Aquelas vozes fininhas lhes inspiravam mais mal-estar do que fascinação.

—Nossa, como estou contente! — exclamou Mairenith, mexendo

seus longos cílios negros.

—Estamos radiantes de encontrar vocês! — disse Lorine,

mostrando no sorriso seus dentes brancos e perfeitos.

—Eu acho vocês lindas — disse Mairenith alegremente. — Não são

bonitas, Lorine?

—Muito bonitas.

—Obrigada — respondeu Jade. — Mas vocês não poderiam ser um

pouco menos debochadas?

—Lindas mesmo — repetiu Lorine. — Como nunca vi antes.

—Nem eu — disse Mairenith. — Diga, Jade. Você me acha bonita

também?

—Como é que você sabe meu nome?

—Ora, eu sou uma Nalyss... E então, você me acha bonita? —

repetiu, modulando a voz.

Jade, Âmbar e Opala perguntavam-se quem seriam as estranhas

visitantes.

—Por que essa pergunta? — inquiriu Âmbar.

—Porque quero saber — respondeu Mairenith, amuada.

—Sim, vocês são bonitas — disse Jade, já chateada. — Mas são

também muito esquisitas. E gostaria que não fossem tão pretensiosas!

Âmbar e Opala trocaram um sorriso discreto ao ouvir Jade falar de

seus próprios defeitos.

—Ela nos acha bonitas! — entusiasmou-se Mairenith, feliz como se

não tivesse escutado o resto.

—E somos mesmo! — disse Lorine.

Foi então que apareceu uma terceira menina, tão bonita quanto as

outras duas. Mas não se parecia com elas. Era mais fácil lhe atribuir uma

idade. Não devia passar de quinze anos. Tinha um aspecto delicado, sem ser

frágil. Uma longa cabeleira, suave como seda, deslizava por seu corpo

esguio. Seus traços resplandeciam de pureza. Tinha a pele fresca e os lábios

vermelhos. Seu olhar inocente causava alguma perturbação em quem a

encarava.

—Ah, Lorine! — gritou Mairenith, assustada.

Page 112: A profecia das pedras

—Que horror! — exclamou a outra.

—Não posso suportar isso — gemeu Mairenith, à beira das

lágrimas.

—Suma daqui, horrível criatura! — berrou Lorine. — Vá para

longe, não se aproxime delas!

Depois, como se fossem tomadas por um visão repugnante,

Mairenith e Lorine saíram correndo.

—Nossa! Elas são mesmo muito esquisitas — disse Âmbar, dividida

entre a vontade de rir e a surpresa.

—E como! — concordou Jade.

— Como corriam! — disse Âmbar, espantada. — Parecia que

tinham visto uma criatura totalmente horrenda e gritaram tanto que quase

me arrebentaram os tímpanos. Decididamente, não entendi nada.

Jade deu de ombros. A recém-chegada aproximou-se com um

sorriso.

—Meu nome é Janelle.

—Fico feliz em saber — respondeu Jade, com azedume.

—Aquelas meninas eram Nalyss. São um bocado esquisitas, não

são?

Janelle sentou-se ao lado das três e começou a contar a história

das Nalyss, um numeroso grupo de mulheres que habitava Conto de Fadas.

Não passavam dos trinta anos de idade e eram tão narcisistas que se

apaixonavam pela própria beleza e dedicavam toda a sua vida a cuidar dela.

A obsessão era tão intensa que elas não podiam se olhar em espelhos, ou na

água dos lagos, porque corriam o risco de não conseguir mais se separar da

própria imagem.

Janelle, no entanto, não contou tudo o que sabia. Omitiu, por

exemplo, que nem todas as pessoas conseguiam ver uma Nalyss. Esses seres

possuíam um dom muito raro, cujo valor nem todos conseguem perceber:

sabiam julgar a beleza interior das pessoas e a percebiam melhor do que sua

beleza física. As Nalyss só apareciam para as pessoas que conjugavam essas

duas qualidades. Outras pessoas as repugnavam.

As Nalyss passavam a vida em busca de pessoas que pudessem

confirmar sua beleza. Superficiais, eram também desprovidas de

inteligência. Gostavam de encantar homens que julgavam dignos, deixavam-

Page 113: A profecia das pedras

nos apaixonados e, algumas vezes, acabavam grávidas de novas Nalyss.

Ao fim da vida, eram poucas as que percebiam que tinham corrido

à toa atrás de um ideal sem sentido. Poucas compreendiam que a beleza não

lhes tinha servido para nada, que tinham simplesmente deixado de viver.

Janelle calou-se, deixando um longo silêncio marcar o fim de seu

relato.

—E você, é o quê? — perguntou Jade, rompendo o encanto da

narrativa.

—Sou Janelle. Guio pessoas até seu destino em troca de alimento e

um pouco de consideração.

—Nesse caso, não nos serve — disse Jade, muito antipática, sem

ao menos saber por que reagia de maneira tão desagradável.

— Não! Pelo contrário — indignou-se Âmbar. — Janelle, será que

você poderia nos conduzir até Oonagh? Não conhecemos absolutamente

nada de Conto de Fadas e estamos meio perdidas...

— Mas é claro! — respondeu Janelle, radiante.

Opala observou em silêncio a menina que sorria para ela. Mesmo

sem querer, não sentia mais nenhuma hostilidade contra ela.

Puseram-se a caminho, Âmbar e Opala num cavalo, Jade e Janelle

no outro.

As três meninas estavam pouco à vontade com a nova

companheira. Sem saber se podiam confiar nela, viajavam em silêncio ou

trocavam poucas palavras, sem dizer nada de importante. No entanto, como

a recém-chegada parecia realmente inofensiva, Âmbar começou a conversar

com ela, enquanto Jade e Opala continuavam em silêncio.

Rapidamente, Janelle se revelou uma menina normal e simpática.

Contou a Âmbar que tinha catorze anos e que era muito pobre. Em vez de

passar a vida em sua aldeia natal, tinha preferido descobrir Conto de Fadas

trabalhando como guia.

—Mas você é tão nova! — espantou-se Âmbar. — E eu não sabia

que aqui também existia a pobreza.

—Infelizmente, existe. Onde há vida, não pode existir só felicidade.

Apesar dos olhares fulminantes que Jade lhe enviava, Âmbar

estava tocada pela simpatia de Janelle, e começou a contar sua própria

história desde o início. Quando chegou no ponto em que falaria da pedra,

Page 114: A profecia das pedras

Jade a interrompeu violentamente:

— Cale a boca, Âmbar! Não toque nesse assunto!

O olhar caloroso de Âmbar gelou instantaneamente. Ela voltou-se,

irritada.

— Jade, não me diga o que devo ou não devo fazer. Sou forte o

suficiente para me controlar. Se você não consegue confiar nas pessoas, é

problema seu. Não meu. Eu respeito seus pontos de vista, então também

respeite os meus. Cuide da sua vida, das suas pretensões de princesa, e

deixe os outros em paz.

Jade dirigiu um olhar ferido para Âmbar, que sustentou o olhar,

ainda espantada com as próprias palavras.

— E incrível como a gente se engana — disse Jade, num tom frio e

pesado. — Já sabe que uma pessoa é inimiga, que pode representar um

perigo, e mesmo assim se arrisca a gostar dela. A gente ignora todos os

avisos, acredita que está construindo uma amizade, mesmo que ainda frágil,

que está existindo um entendimento mútuo. Depois, é obrigada a ver aquilo

que tinha tentado ignorar. Da noite para o dia, descobre-se um inimigo onde

a gente jurava que tinha um amigo.

Surpresa com a discussão inflamada das companheiras, Opala

deixou a indiferença de lado e tentou, desajeitadamente, conduzir a conversa

para um terreno mais seguro.

—O que aconteceu enquanto eu estava inconsciente? Como

consegui sobreviver? Alguém sabe se Adrien está bem? Onde ele está? Tive

um sonho... Ele estava vestido com uma espécie de uniforme e eu sentia que

ele estava de partida.

—Isso mesmo — respondeu Âmbar. — Eu tinha esquecido que você

não sabia de nada.

—E começou a contar a Opala, com a voz ainda alterada, os fatos

que ela ignorava.

Jade mantinha os olhos baixos. Sentia confusamente que não

estava em seu estado normal, mas não queria admitir isso. Janelle a

incomodava cada vez menos. Começava não exatamente a aceitá-la, mas

simplesmente a esquecer sua presença.

As meninas atravessaram algumas aldeias sem maiores incidentes.

Quando Âmbar terminou de contar a Opala tudo o que tinha acontecido,

Page 115: A profecia das pedras

instalou-se um pesado silêncio no grupo. Janelle tentou desanuviar o

ambiente, sem sucesso. Ao fim de algumas horas, o cavalo de Âmbar enviou-

lhe uma onda telepática, avisando que estava exausto e que precisava

descansar.

— Precisamos parar um pouco — disse ela.

De comum acordo, acamparam numa campina selvagem. Certa

tensão pairava sobre o grupo.

— Você se julga muito importante só porque interpreta os

pensamentos dos cavalos, não é mesmo? — perguntou Jade, agressiva.

—Pelo menos, não acho que sou o centro do universo.

—Acalmem-se vocês duas! — interveio Opala, cada vez mais

espantada. — Está acontecendo alguma coisa muito esquisita. Acho que

devíamos pedir ajuda às pedras.

—A verdade é que você não tem força suficiente para assumir o

que pensa — retrucou Âmbar. — Está sempre pedindo ajuda.

Mais espantada ainda, Opala olhou para Âmbar. O que estava

acontecendo? Mesmo assim, desamarrou os cordões de sua bolsa e segurou

a opala de reflexos nacarados. Mas foi por poucos instantes. A pedra

queimou sua mão. Largou-a com um grito de dor. Depois, com todo cuidado,

pegou-a do chão e recolocou-a dentro da bolsa. Sua mão direita estava

vermelha, queimada. Jade e Âmbar não lhe dirigiram sequer um olhar de

solidariedade. Apenas Janelle perguntou como ela estava.

Opala, que tinha aprendido a suportar Jade e começava a gostar

de Âmbar, sentiu-se novamente distante das duas. Tudo o que tinham vivido

juntas deveria tê-las aproximado, mas a chegada de Janelle tinha tornado

tensa a relação. Agora, uma raiva enorme, sem nenhum motivo, se

interpunha entre elas e destruía a ainda frágil amizade que as ligava.

— Acha que pode me magoar? — perguntou Opala a Âmbar. —

Lamento, mas está enganada. Só espero que não comece a chorar porque sei

bem a menina sensível que você é, tão tocante com todo mundo. Seria triste

ver suas lágrimas correrem. Como é que eu poderia dizer qualquer coisa

desagradável para você, logo para você, que não tem nenhum defeito? Claro

que devo passar por cima do fato de que você é uma camponesa ignorante e

afetada.

A torrente de palavras saía quase que sozinha, viva, incontrolável.

Page 116: A profecia das pedras

Agora, não se arrependia de tê-las deixado fluir. Uma raiva inexplicável

começava a crescer dentro de si.

As meninas retomaram viagem. Janelle não ousava intervir. Tentou

puxar assunto com sua voz suave, mas foi em vão. As três trocavam farpas

cada vez mais afiadas entre si. A situação começou a degenerar quando, ao

fim de algumas horas, Âmbar e Jade pararam os cavalos a pretexto de

descansar mais um pouco. Mal pousaram os pés em terra, as duas se

atracaram aos tapas. Opala juntou-se à confusão e também saiu

distribuindo golpes.

Janelle não reagiu imediatamente. Acabou descendo de seu cavalo

e tentou chamar as meninas à razão, mas isso não produziu o menor efeito.

Gritou. Tempo perdido. Meteu-se entre as meninas e acabou levando uns

tabefes raivosos. Seu corpo franzino pareceu dobrar-se sob a força dos

golpes. Finalmente, com uma força de que não supunha ser capaz, separou

as três meninas.

Jade, com a cabeleira negra caindo sobre os olhos, toda

descabelada, com as roupas amassadas, parecia fora de si. Seus olhos

chispavam. Seu rosto estava levemente ferido e exibia algumas gotas de

sangue. Opala saiu da confusão com alguns arranhões e um olhar ainda

mais insondável do que de costume. A briga tinha reavivado a dor de seu

ferimento. Mantinha a cabeça baixa para dissimular seus sentimentos.

Âmbar lutava contra as lágrimas. Seu lábio inferior estava partido e ela

sentia o gosto amargo, quente, desagradável, do sangue que escorria por

dentro da boca. Trocaram olhares hostis. A situação tornava-se

insustentável.

Paris, 2002 Eu estava cada vez mais fraca, frágil. Mal tocava na comida que as

enfermeiras me traziam. Havia meses que não me olhava no espelho. Eu me

imaginava magra, trêmula, com os ossos à mostra, os traços abatidos. Não

ousava encarar meu olhar desesperado. Queria guardar a imagem de Joa e

não a de uma doente deformada pelo medo.

Quando fechava os olhos com força, conseguia me rever como eu

era antes. A imagem se materializava lentamente, cada vez menos nítida à

Page 117: A profecia das pedras

medida que o tempo passava. Eu era outra pessoa. Joa.

Essas lembranças me faziam sofrer e lágrimas quentes inundavam

meus olhos. Tinha tentado esquecer, relegar minha história ao fundo de

minha memória, e achava que estava conseguindo. Queria ser capaz de

aceitar meu destino.

Mas o sonho fez ressurgir o passado, ao mesmo tempo em que

delineava o futuro. Eu pensava que era forte e firme o suficiente para resistir

a ele. Mas não era. Embora não admitisse, sentia um lento renascer da

esperança. No entanto, tudo não tinha passado de um sonho. Desde o

começo, meu espírito atormentado inventou essa história que me devolveu a

vida. Eu chegava a ter medo de pensar nisso, como se minhas lembranças,

meus sentimentos e pensamentos pudessem alterar as cores cintilantes do

sonho esfumaçá-las até que desaparecessem. O sonho me parecia tão

importante que eu tinha medo de deixá-lo escapar da memória. Queria que

continuasse eternamente. Inconscientemente, eu acreditava que ele era

verdadeiro, eu o sentia verdadeiro, eu o queria verdadeiro.

Mas a doença continuava a me consumir. Eu estava muito mal. O

sonho, que me levara para longe da realidade, tornou minha dor ainda mais

viva quando despertei no leito do hospital. Quanto mais eu queria viver,

mais sofria na luta contra a morte. Novamente, comecei a recusar essa

fatalidade e a acreditar na ilusão da esperança. Eu me maldizia por ser tão

ingênua. Contudo, no fundo, estava mais feliz assim.

19 Assim que o sol se pôs, marcando o fim de uma jornada sofrida e

cansativa, as quatro meninas pararam para descansar próximo a uma

campina. Janelle tinha preferido a natureza a uma cidade desconhecida, e

as outras dobraram-se diante de seus argumentos. A tensão no grupo

aproximava-se do paroxismo. Jade, Opala e Âmbar estavam caladas, mas se

continham a duras penas. Mantinham a cabeça baixa, mas seus olhares

estavam repletos de uma raiva destrutiva, incompreensível, que esperava

apenas um sinal qualquer para explodir.

Tanto Âmbar quanto Jade tinham as mãos nervosamente

crispadas sobre as crinas de seus cavalos. Até mesmo Opala, sempre tão

Page 118: A profecia das pedras

reta e rígida, deixava transparecer uma cólera terrível.

As meninas sentaram-se. Âmbar desfez lentamente o pacote de

mantimentos. Jade e Opala seguiam de perto cada um de seus movimentos.

Âmbar e Jade tentaram pegar a mesma fruta.

—Larga! É minha! — gritou Jade.

—É mesmo? E por quê? — replicou Âmbar. — Seus desejos têm

que estar sempre na frente dos outros?

—O que você está falando? Acha mesmo que vou lhe dar ouvidos?

Para mim, você não existe.

Jade atirou-se sobre Âmbar, dando livre curso a sua raiva. A luta

foi tão violenta, tão furiosa, que Janelle e Opala não ousaram se aproximar.

Jade sabia defender-se muito bem, e possuía uma força felina, mas a cólera

dava um ímpeto temerário a Âmbar. Por fim, a briga cessou.

—O que é que você está olhando? — perguntou Jade a Opala, ao

mesmo tempo em que desferia contra ela um golpe brutal, apesar de seu

cansaço. Opala derrubou Jade que, já machucada, levantou-se com

dificuldade.

—Não pense que vou ficar junto de seres tão desprezíveis quanto

vocês — uivou. — Vou deixá-las entre as pessoas de sua própria espécie!

Jade partiu com passos firmes para o outro lado do campo,

decidida a passar a noite lá. Opala fez o mesmo, mas dirigiu-se para o lado

oposto.

Âmbar ficou sozinha com Janelle. Não tinha raiva da jovem guia e

a presença da menina, se não reduzia sua irritação, também não a

aumentava.

—Posso ajudar? — perguntou Janelle. — Se quiser desabafar,

talvez isso a acalme.

—Acho que não — respondeu Âmbar com uma careta.

—Se você preferir, posso contar algumas histórias. Assim, você

pensará em outras coisas.

—Se quiser...

Janelle começou a falar de si própria, descrevendo detalhadamente

sua infância, sua vida e suas viagens. Ela não sabia definir Conto de Fadas.

Para ela, aquele universo era o cotidiano. Estava acostumada com ele e não

via nada do que acontecia ali como fantástico.

Page 119: A profecia das pedras

Contou como tinha vivido numa casa decadente. Era a primogênita

de uma família numerosa e miserável. Desde criança, sonhava em viajar, em

escapar daquela existência precária e encontrar uma vida diferente. Apesar

disso, amava muito sua família e tinha prometido voltar para ajudá-los.

— Sua história se parece com a minha — disse Âmbar

com a voz sonhadora, cheia de lembranças.

Janelle sorriu e continuou a falar. Era dotada de uma imaginação

fértil, que lhe permitira manter-se longe da pobreza. Com dez anos, saiu de

casa. Queria descobrir Conto de Fadas. Em apenas dois anos, conseguiu

atravessar vastas e pitorescas regiões e admirar lugares cuja existência e

beleza jamais tinha imaginado. Então, retornou à sua cidade natal para

rever seus parentes. Chegou muito alegre, desejando contar a todos que se

tornaria uma guia. Mas encontrou sua casa devastada por uma epidemia

que tinha dizimado sua família. Suas duas irmãs, as únicas sobreviventes,

aconselharam-na a sumir dali e a nunca mais voltar. Tinha sido difícil

reconhecê-las, o rosto encovado, o corpo definhado... Horrorizada com a

imagem de sua cidade devastada, partiu no mesmo dia, esperando que o

futuro conseguisse fazê-la esquecer esse triste passado.

—Sua vida também não foi fácil — disse Âmbar.

—Não mesmo. Eu tentava me distrair inventando histórias, contos

que eu mesma criava, mas ninguém estava muito interessado neles. Mas

continuei querendo ser guia. Infelizmente, quase ninguém solicita meus

serviços...

—Ao fim do relato, Âmbar sentia-se muito próxima de Janelle. A

menina tinha contado histórias divertidas e poéticas, que ela mesma tinha

inventado. Âmbar escutou com atenção, riu e aplaudiu suas fábulas.

—Você é mesmo uma boa contadora de histórias — exclamou, já

cativada.

—Obrigada — respondeu Janelle. — Mas agora é sua vez. Adoraria

conhecer sua história.

Âmbar concordou. Como Jade não estava mais ali para censurá-la,

contou tudo a Janelle, que a escutava com muita atenção e partilhava de

suas emoções. Seu olhar inflamava-se, suas faces ruborizavam, ela parecia

tão viva, tão animada, tão fascinada.

Quando terminou, Janelle fixou seus olhos em Âmbar.

Page 120: A profecia das pedras

— Você tem um dom. Sabe contar as coisas de um modo que

envolve quem as escuta.

Âmbar riu novamente, mas, na penumbra, percebeu uma lágrima

furtiva escorrendo pelo rosto da nova amiga.

—Está tudo bem? Posso ajudar? — perguntou docemente.

—Não — soluçou Janelle, visivelmente desamparada.

—O que você tem? Conte para mim — insistiu Âmbar.

—Não é nada... É que me lembrei de meus pais... e não pude

evitar...

As últimas palavras saíram num breve soluço. Mas, rapidamente,

Janelle se recompôs. Emocionada, Âmbar não perguntou mais nada.

Também tinha contado a história da morte de sua mãe. Janelle não se

derramou em condolências. Mostrou-se amiga, sem exageros. Âmbar gostou

dessa reação e isso as aproximou como se partilhassem um segredo, alguma

coisa muito pessoal. Falar de sua mãe era expor uma parte de si própria.

Sentia-se cada vez mais à vontade na companhia de Janelle. Achava que

uma verdadeira amizade estava nascendo entre elas.

No entanto, lá no fundo, a raiva continuava a borbulhar e crescia

lentamente. Só conseguia contê-la enquanto mantivesse distância de Jade e

de Opala.

—Sabe, Âmbar, não sei se isso interessa a você, mas vivo sozinha

há muitos anos — disse Janelle timidamente. — Só tenho companhia por

poucos instantes, e não crio laços com ninguém. Escondo todos os meus

sentimentos, minhas opiniões, sem deixar nada transparecer.

—Deve ser muito duro viver assim — disse Âmbar, adivinhando a

seqüência da conversa.

—É, sim...

Parecia que Janelle ia dizer mais alguma coisa, mas mudou de

assunto. As duas continuaram a conversar e a descobrir afinidades.

— E essas duas meninas, o que você acha delas? — perguntou

Janelle.

Âmbar sentiu a cólera voltar.

— Jade é pretensiosa, disse com a voz já alterada. É egoísta,

completamente absorvida por si mesma. Ela é insuportável, só presta

atenção em si, e julga-se perfeita! Não suporto seu arzinho de princesa

Page 121: A profecia das pedras

orgulhosa. Quanto a Opala, é uma pedra de gelo, não tem um pingo de

sentimento. Nem sorrir ela sabe. Quando decide emitir um som, pode-se

considerar um milagre. Eu a detesto. Odeio todas as duas!

Janelle olhou para a companheira. O sangue voltara a correr em

seus lábios, e a expressão amável e calorosa de Âmbar tinha sido substituída

por um ar terrível, impregnado de uma raiva infinita.

Janelle conseguiu acalmá-la com alguma dificuldade. A noite

estava ficando muito escura. Mesmo assim, as meninas continuaram

conversando por um bom tempo. Janelle irradiava bondade. Âmbar estava

radiante por tê-la encontrado.

Quando o cansaço se instalou de vez, as amigas decidiram se

deitar, prometendo novas histórias para o dia seguinte. Depois de algumas

boas gargalhadas, acabaram adormecendo. Âmbar caiu num sono pesado e

sem sonhos.

O céu estava salpicado de estrelas. A lua brilhava mansamente. O

silêncio da noite foi quebrado por um grito abafado. Âmbar levantou-se

bruscamente, com a respiração suspensa. No meio da penumbra, distinguiu

o vulto de Janelle, de pé, diante dela.

— O que está acontecendo? — gemeu Âmbar. — Estou

me sentindo tão mal...

A menina não respondeu. Sua expressão tinha mudado, seu rosto

agora parecia maligno, raivoso. Âmbar achou que estava enxergando mal.

Janelle abaixou-se e tentou pegar alguma coisa no meio da relva alta, mas

deu um grito estridente e levantou-se em seguida. Impossível negar: seu

olhar tinha se tornado faiscante e furioso.

—Janelle — murmurou Âmbar, intrigada.

—Deixe-me! — gritou a menina, com uma voz aguda e histérica.

—O que é que você tem?

—Então você não vê? Não compreende?

Janelle estendeu lentamente sua mão fechada, depois abriu os

dedos. Sua palma estava queimada. Nesse instante, Âmbar a viu como as

Nalyss a tinham visto — e como qualquer pessoa a veria, se seu físico fosse o

reflexo de sua alma. Grosseira, os cabelos negros desgrenhados, a pele

oleosa, olhos fundos, cor de carvão, o rosto inchado, um nariz deformado,

uma silhueta desgraciosa, os ombros largos demais. Seu olhar transbordava

Page 122: A profecia das pedras

de baixos sentimentos, cada um de seus traços era crispado pelo desejo de

destruição. Janelle tinha se transformado na encarnação do ódio.

—A culpa é toda sua! — berrou ela, transtornada.

—Mas... como assim?

—Toda sua! Não quer enxergar? Eu odeio você... Odeio você!

Âmbar sentia-se mal. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Não

entendia mais nada, nem queria entender.

—Você tem tudo o que eu nunca tive! — continuou a outra. — Você

roubou o meu lugar! Você roubou a minha vida!

—Isso não faz o menor sentido — balbuciou Âmbar.

—Claro, para você é fácil dizer isso. Sou uma pobre menina, uma

miserável, não tenho o direito de ter importância, não é? É isso o que você

acha?

—Não, de jeito nenhum!

—Ainda não compreendeu? Pois vou ajudá-la. Lembremos dessa

história desde o começo. De repente, cruzo com três meninas no meu

caminho. Paro e, escutando a conversa delas, percebo que acabaram de ver

as Nalyss e que elas fugiram quando cheguei... Sim, elas são suficientemente

perfeitas para ver as Nalyss, mas eu não!

— Eu não sabia... — murmurou Âmbar, sentindo o mundo desabar

à sua volta. A sensação de mal-estar se intensificava.

—Então — prosseguiu — decidi ficar amiga delas. — Queria

mostrar a elas que eu também tenho o direito de existir, de ser apreciada.

—Eu nunca disse o contrário.

—Mas as três meninas me ignoraram.

—Isso não é verdade!

—Elas têm tudo de bom. A vida lhes ofereceu de tudo; a mim, não

deu nada. Então senti a raiva me invadir, violenta, mas boa. Ela me

preencheu, me possuiu, até me invadir completamente. Então, era preciso

que eu a botasse para fora. Concentrei-me e com uma facilidade que nunca

tinha experimentado antes liberei a raiva. Ela transbordou e outra alma foi

banhada por ela.

—Jade! — exclamou Âmbar.

—Mas o ódio continuou crescendo em mim. Para controlá-lo, tive

que passá-lo para a outra menina, Opala, não é? Pouco a pouco, o ódio a

Page 123: A profecia das pedras

dominou. Depois, dominou você também.

—Mas por quê? Não lhe fizemos nada! — protestou Âmbar, quase

sufocando.

—Mais tarde, você começou a confiar em mim. Inventei uma

história para minha vida, você acreditou em mim, teve pena. Eu detesto seus

sentimentos adocicados, seu arzinho caridoso. Morria de vontade de dizer a

verdade, de contar como transmiti o ódio, e promovi mortes e guerras.

Quando você me falou da pedra, compreendi quem você era. Nesse

momento, achei que minha raiva era plenamente justificada. Eu quis

suplantar, humilhar, destruir você.

—Não! — gritou Âmbar, ainda recusando a verdade.

—Essa noite, tentei roubar sua pedra, mas não consegui. Ela

queimou minha mão. Então, você acordou, confiante, com sua expressão

sábia, perfeita, insuportável.

Âmbar não conseguia dizer mais nada.

—O que você acha? Que eu me preocupo? Que não avalio o mal

que posso causar? Não é nada disso. O mal me alimenta, me traz poder! Sem

ele, não sou nada. Eu sirvo a ele. Ele me reconforta, me transforma, me

deixa invulnerável. Preciso dele. Quando vejo as pessoas sofrendo, quando

sinto o mal me possuir, fico fortalecida! Não tenho mais necessidade de me

esconder atrás de sorrisos angelicais, não preciso mais me forçar a ser outra

pessoa, a parecer gentil... O mal permite que eu seja eu mesma.

—Por que você está me dizendo tudo isso?

—Porque sei que escutar essas coisas faz mal a você. Minhas

palavras atingem, ferem você, tiram sangue de sua alma ferida... E eu adoro

ver isso. Você pensava que era superior a mim? Pois não é. Pensava que eu

era sua amiga? Pois é o contrário: sou uma de suas mais fervorosas

inimigas. Suas lágrimas me proporcionam imenso prazer. Acha que sou

desleal? Pois não me arrependo de nada; sou minha inveja, assumo minha

natureza. Não me curvo ao mundo educadinho que querem me impor. Eu

crio o mal e vivo dele.

Com essas palavras, Janelle sorriu triunfante e partiu satisfeita.

Âmbar julgou vislumbrar ao longe um cavaleiro que observava a cena. Mas

essa imagem só poderia ser uma ilusão, uma miragem na noite.

Page 124: A profecia das pedras

Pegou sua pedra do meio da relva. Tinha voltado a ser morna e

reconfortante. Com a partida de Janelle, todo o ódio desapareceu de seu

coração. No entanto, as lágrimas continuaram a molhar seu rosto, como

pérolas de desamparo.

20 O Inomeado abriu os olhos. Rapidamente, sentiu-se desperto. Seus

ferimentos tinham desaparecido, não sentia mais nenhuma dor, não havia

mais nenhum traço dos cortes profundos que tinham marcado seu corpo.

Percebeu que estava no mesmo quarto pequeno, de paredes nuas. Embora

estivesse sentado na mesma cadeira de musgo verde, não estava mais

amarrado com os cipós. A seu lado, Elforhys, ainda amarrado, também nem

parecia ter sido ferido.

—Inomeado! Até que enfim, voltou a si!

—Mas... o teatro, a dor...

—Que história é essa? Você ainda deve estar sob estado de choque.

—Eu não estava sonhando — murmurou o Inomeado,

desconcertado.

—Algumas horas depois da saída de Nailde, os Ghibduls vieram

aqui.

—Eu sei.

—Eles rodearam você e começaram a fazer um encantamento

estranho... Você desmaiou. Eles ficaram ao seu lado sem dizer nada. Você se

agitava, balbuciava sons incompreensíveis... A coisa toda durou cerca de

meia hora. Eu já estava ficando preocupado. Depois que eles saíram, você

continuou inconsciente. Eu chamei, gritei, tentei ajudar você. Finalmente,

umas duas horas mais tarde, os cipós soltaram-se sozinhos e seu sono ficou

mais regular.

Impressionado, o Inomeado contemplou seu corpo intacto — com

exceção da antiga ferida no braço direito — sem entender nada. Mergulhou a

cabeça entre as mãos. Será que sua memória andava lhe pregando peças?

Depois de ter apagado seu passado, agora o enganaria novamente, forjando

um presente imaginário?

Mal teve tempo de refletir sobre o assunto. Logo, três Ghibduls

Page 125: A profecia das pedras

entraram no aposento. Seus rostos monstruosos tinham assumido uma

expressão afável, seus lábios até tentavam esboçar um sorriso. Um deles

aproximou-se do rapaz e, sem uma palavra, estendeu um objeto comprido,

embrulhado em um envelope de um branco imaculado. O Inomeado

estendeu a mão com alguma hesitação e cuidado.

— Pegue, encorajou um Ghibdul, com uma voz rouca,

onde se percebia humildade, respeito e admiração.

O Inomeado apoderou-se do objeto e desfez o embrulho.

Impressionado, reconheceu sua espada encantada.

— Se aceitá-la, respeitável hovalyn, apresentaremos nossas

desculpas — prosseguiu o Ghibdul.

Elforhys caiu na gargalhada. Os Ghibduls lançaram-lhe um olhar

turvo.

—Se é assim, talvez vocês pudessem nos libertar agora — disse

alegremente. — Estamos muito tocados com sua súbita mudança de

comportamento, mas...

—Cale-se, verme! — ordenou aquele que tinha entregue a espada

ao Inomeado, e que era, claramente, quem tinha mais autoridade ali.

—Eu os proíbo de tratar Elforhys dessa maneira! — indignou-se o

Inomeado.

—Se esse é o seu desejo — resmungou o Ghibdul, contrariado.

—Acho que vocês poderiam nos dar algumas explicações —

continuou o hovalyn, ainda perturbado, mas disposto a tirar partido da

inusitada situação.

—Nós penetramos no seu espírito e simulamos uma encenação a

partir das imagens que já existiam no seu pensamento, mas cuja existência

você ignorava. E acrescentamos alguns elementos de nossa escolha.

—Então, tudo o que julguei ver e sentir era falso?

—A partir da sua saída deste aposento, sim. Foi uma prova

necessária e eficaz. Somos particularmente hábeis nesse gênero de

manipulação indolor.

—Indolor! — disse o Inomeado. — Cada um percebe as palavras à

sua maneira, mas não vi a intrusão de vocês no meu espírito como uma

coisa agradável, nem simpática.

O Ghibdul estava tão próximo do rapaz que ele podia sentir seu

Page 126: A profecia das pedras

hálito fétido. Quando a criatura voltou a falar, teve que virar o rosto.

—Tínhamos dúvidas a seu respeito. O que adivinhávamos nos

parecia improvável, mas somos persistentes. E esta intervenção telepática

confirmou nossas suspeitas, nossas esperanças.

—Então, aprenderam a esperar? Pois nós aprendemos isso todo dia

— ironizou Elforhys.

—Hovalyn, você é aquele que esperamos há muito tempo. Qual é

seu nome?

—Não tenho nome — respondeu o cavaleiro. — Sou o Inomeado.

Os Ghibduls não pareceram perturbados com a revelação.

—Você foi o único a resistir tanto tempo à... humm, à tortura

mental que lhe infligimos. Ficamos muito contrariados, diga-se de passagem,

por fazê-lo passar por aquilo.

—De fato, não foi nem um pouco delicado de sua parte.

—Mas era necessário — desculpou-se o Ghibdul. — Sabe, mesmo

entre nós, ninguém suportou uma prova dessas por tanto tempo. Mas o que

mais impressionou foi a sua escolha. Foi inacreditável. Nunca uma pessoa

escolheu essa saída Ninguém teve tamanha coragem. Só você.

—Então, vocês se divertem torturando mentalmente uns aos

outros? — perguntou Elforhys. — Nossa! Que passatempo mais... agradável!

—É apenas um teste. Todo mundo passa por isso.

—E por que eu sou "aquele que todos esperavam"? — perguntou o

Inomeado.

—Nós vivemos enclausurados há muitos séculos. Criamos uma

civilização que ainda está em seus primórdios. Mas, desde o início dos

tempos, uma tradição, uma crença, vem sendo transmitida. Ela diz que, um

dia, chegaria aqui um homem e nós o reconheceríamos. Este homem

mudaria nosso modo de viver e nos aproximaria das outras criaturas. E nós

o seguiremos, obedeceremos e ajudaremos quando ele pedir nossa ajuda.

Esse homem, Inomeado, é você.

—Ah, não — protestou o hovalyn. — Vocês estão enganados. Como

querem que eu os aproxime das outras criaturas? Além disso, não tenho a

menor intenção de comandar vocês!

— Vamos levá-lo para conhecer nossa cidade. Em seguida, você

partirá. Mas chegará o dia em que você nos chamará — afirmou com calma e

Page 127: A profecia das pedras

segurança o Ghibdul. — É assim que as coisas são.

Como o Inomeado não parecia convencido e seu rosto conservava

uma expressão cética, outro Ghibdul explicou:

— Está tudo na Profecia, hovalyn. Neophileus escreveu que, no

fundo da floresta, vivia uma civilização escondida e que, um dia, depois de

uma vitória, um homem a descobriria. Ele passaria por uma prova que

revelaria sua identidade àqueles que o mantinham cativo. Depois, esse

homem iria embora. Quando as trevas estivessem prestes

a apagar a luz, ele retornaria, pediria ajuda a esse povo e o

faria sair do desconhecimento. Hovalyn, essa é a sua história. E é também a

nossa.

O Ghibdul fez uma pausa. Uma das criaturas continuou:

— Nós sabemos quem é você. Está na Profecia: nós revelaríamos

sua identidade a você. Por isso, você não descobriu nada até hoje.

Tremendo de emoção, o coração batendo loucamente, a garganta e

o ventre contraídos de ansiedade, o Inomeado esperou pelo fim da história.

Saberia, enfim, quem era? Os Ghibduls o olharam solenemente. Finalmente,

um deles anunciou:

— Inomeado, você é aquele que todos esperam. Você é o Eleito.

21 Âmbar passou o resto da noite acordada, com os olhos cheios de

lágrimas. Não conseguia admitir que Janelle a tivesse enganado. Tinha

imaginado que a menina era sua amiga. Ainda que essa ilusão tivesse

durado pouco tempo, ela tinha confiado em Janelle, tinha aberto sua alma...

Ao amanhecer, Jade e Opala correram para perto dela. Todo o ódio

tinha se dissipado. As meninas tiveram o forte pressentimento de que

alguma coisa horrível havia acontecido com Âmbar. Apressaram-se em

escutá-la e consolá-la.

Foi inevitável que sentissem certo mal-estar ao se lembrarem da

raiva que haviam sentido na véspera. O lábio inchado de Âmbar era a prova

da insanidade que as invadira.

Finalmente, depois de uma série de desculpas, as meninas se

deram conta de que, depois da queda de Nathyrnn, elas tinham ficado muito

Page 128: A profecia das pedras

mais próximas. Até mesmo a hostilidade reinante entre Jade e Opala tinha

sido consideravelmente atenuada.

Comeram em silêncio, e depois retomaram caminho.

As montanhas, envoltas em nuvens e neve, ainda estavam

distantes e lançavam-se contra o céu colorido com as luzes da aurora. As

meninas continuaram cavalgando em direção à caverna de Oonagh. Ainda

faltava muito para chegarem a seu destino. Jade acreditava que, se

apertassem o passo, chegariam em menos de uma semana. Âmbar ordenou

docemente a seu cavalo que se apressasse.

— Só agora me lembrei — disse Âmbar. — Durante a noite, tive a

impressão de ter visto um cavaleiro. Sei que é improvável, mas achei que

devia dizer isso a vocês.

Jade deu de ombros, mas Opala, que montava o mesmo cavalo que

ela, disse:

— Eu também percebi um vulto, pouco antes de adormecer.

Sua voz estava muito calma, como se aquela informação não

tivesse maior interesse.

— Quem estaria nos espionando? — perguntou Jade. — Detesto

esses mistérios. A última coisa de que precisa mos é de um cavaleiro

fantasma em nosso encalço. Se o virem novamente, me avisem. Acho que um

bom chute no traseiro lhe será muito útil.

Âmbar riu alegremente. Opala a olhava e sorria furtivamente. O

momento em que estivera com Adrien, antes de voltar a perder a

consciência, ainda estava muito forte em sua lembrança e a envolvia com

um calor carinhoso, reconfortante, capaz de adoçar seu olhar sobre o

mundo. Custou a perceber que estava atravessando um lugar cheio de

criaturas diferentes dos humanos. Em vez de intimidá-la, essa perspectiva

fazia com que se interessasse por tudo. Observava a paisagem como se fosse

maravilhosa. Tinha um olhar mudado, um olhar novo. O que a teria feito

mudar: o encontro com Jade, Âmbar e Adrien, seu período de inconsciência,

ou sua sobrevivência miraculosa? É verdade que tinha sentido impressões

estranhas durante seu período de coma. Lembrava-se de ter sonhado muito,

embora não se lembrasse exatamente dos sonhos. Sabia até que tinha

percebido, mesmo desmaiada, que Adrien iria partir e arriscar sua vida. Ao

pensar nisso, sentiu um aperto no coração. Conseguiria revê-lo em breve?

Page 129: A profecia das pedras

Âmbar tentava distrair-se olhando a paisagem. Novamente, notou

alguns camponeses que não trabalhavam a terra. Eram homens e mulheres,

sem nenhum instrumento de trabalho, com longos cabelos prateados, que

contentavam-se em rir e cantar no meio da colheita. Curiosa, propôs às

meninas que parassem e perguntassem o que era aquilo. Apearam dos

cavalos e embrenharam-se pelo campo de girassóis. Assim que os

camponeses perceberam sua presença, abriram largos e simpáticos sorrisos.

Âmbar cumprimentou-os com amabilidade e seu olhar caloroso os

conquistou imediatamente. Um deles, baixo e robusto, exclamou:

— Seus olhos são de ouro, são de céu, são de flores!

Os outros concordaram, com um olhar malicioso e sorridente.

Âmbar não sabia o que responder àquele cumprimento tão pouco habitual.

Mas logo recuperou-se e perguntou:

— Vocês trabalham a terra? Não conheço nada de Conto de Fadas

e gostaria de saber como vivem os camponeses daqui, se é que vocês são

camponeses...

O grupo riu sem nenhuma maldade. Pareciam pessoas simples,

mas acolhedoras, com seus olhares plenos de alegria.

— Nós compreendemos a terra — explicou uma das mulheres. —

Nossos cantos e risos a alimentam, deixam-na feliz. Nossa maior

recompensa é ver as plantas germinarem. Vivemos em cumplicidade com

elas e com a terra que lhes traz ao mundo. Se isso significa ser camponês,

então somos camponeses.

Vocês são um povo mágico? — perguntou Jade, maravilhada.

Não mais do que os outros, ou do que vocês mesmas — respondeu

a mulher. — Cada qual traz sua magia. Uma semente jamais se parece com

outra.

Diante do ar espantado das meninas, os trabalhadores explodiram

em gargalhadas. Depois, a mulher que estava dando explicações murmurou:

— Estamos muito felizes em conhecê-las.

Como era hora de retomar caminho, as meninas despediram-se

daquele povo jovial, e partiram debaixo de muitos risos, votos de felicidade e

cantos melodiosos.

De volta a seu cavalo, Âmbar disse:

—Quando eu estava indo embora, o homem que tinha dito aquelas

Page 130: A profecia das pedras

coisas esquisitas sobre meus olhos sussurrou uma frase...

—É mesmo? — interessou-se Jade.

—É. Ele disse alguma coisa como: "A natureza faz milagres com os

quais a magia só pode sonhar".

—Que pessoas mais esquisitas — disse Opala.

Mas são simpáticos — objetou Âmbar.

—De qualquer maneira, parece que gostaram bastante de você —

brincou Jade.

—De mim? — respondeu Âmbar. — Deve ser porque me sinto

próxima deles, porque os compreendo...

As meninas continuaram a cavalgar, fazendo apenas breves

paradas para descansar. Ao fim de algumas horas, surgiu no horizonte o

contorno de uma cidade envolvida numa bruma escura. Apesar da

desconfiança que estavam criando em relação a lugares desconhecidos,

Jade, Opala e Âmbar resolveram atravessá-la para economizar tempo.

À tarde, chegaram à cidade. Apearam e conduziram seus cavalos

pela mão. Elas avançavam, confiantes.

— Acha que há algum perigo aqui? — perguntou Âmbar a seu

cavalo.

O cavalo não respondeu imediatamente. Pareceu farejar o ar antes

de enviar a Âmbar uma impressão de desolação e tristeza, mas não de

perigo.

A cidade estava silenciosa. Todas as casas estavam fechadas.

Opala observou calmamente:

— Algumas casas foram incendiadas recentemente. De fato, no fim

da primeira rua, encontraram algumas casas de madeira reduzidas a montes

de cinza e objetos destruídos.

Âmbar arrepiou-se. Subitamente, um homem saiu de uma das

casas. Tinha um ar desesperado. Era corpulento e vestia-se com um elegante

traje de seda, que lembrava uma toga. Mas seu rosto lívido só mostrava um

imenso pavor. Ele tremia violentamente. Em seus olhos úmidos, percebia-se

um desespero próximo da loucura. O homem atirou-se aos pés das meninas.

— Sejam quem forem vocês, ajudem-nos — suplicou.

— Eu imploro, não nos deixem morrer.

Opala achou que o homem estava apenas fazendo drama e ensaiou

Page 131: A profecia das pedras

continuar seu caminho. Tinha aprendido a desconfiar de tudo. Mas Âmbar a

reteve e Jade aprovou seu gesto com um breve aceno de cabeça.

As meninas trocaram um olhar de concordância. Uma por

compaixão e a outra por curiosidade, Âmbar e Jade decidiram ver o que

estava acontecendo. Opala não teve outra saída a não ser acompanhá-las.

Âmbar pediu a seu cavalo que a esperasse ali e seguiu o homem até uma

casa de pedra. Dentro da casa, amontoavam-se muitas crianças e uma

mulher descabelada, em lágrimas, que parecia estar em estado de choque. A

casa tinha sido saqueada. Móveis e objetos estavam quebrados e jogados no

chão. Quadros sem valor, mas bonitos, tinham sido rasgados. Antes, a casa

devia ter sido confortável. Agora, não passava de escombros.

—Vejam o que eles fizeram! Vejam! — disse o homem. — E agora, o

que vamos fazer? Além de vocês, ninguém ousa botar os pés na cidade,

ninguém quer arriscar a vida para nos ajudar...

—O que aconteceu? — perguntou Âmbar.

—Eles voltaram — soluçou o homem com os olhos arregalados de

pavor. — Desde a queda de Thaar, eles ressurgiram em toda parte.

—Eles quem? — perguntou Jade.

A mulher, que estava no fundo da peça, soltou um uivo lancinante.

— Não liguem para ela — disse o homem. — É uma louca que

andava pela cidade. Quando eles chegaram, abriguei-a aqui. Fiz isso em

memória de minha esposa, que foi assassinada por eles muitos anos atrás.

A mulher continuava a gritar histericamente.

— Beah Jardun, cale a boca! — ordenou o homem tapando os

ouvidos.

Acalmada pela suave sonoridade de seu nome, a mulher obedeceu

docilmente.

— Quer dizer que vocês não sabem quem eles são? —

espantou-se o homem, voltando à conversa. — Nós sempre os tememos. Já

houve períodos em que eles dominaram quase todo Conto de Fadas. Depois,

passaram-se séculos sem que se ouvisse falar neles. Mas agora eles voltaram

e estão mais poderosos do que nunca. São comandados por uma centena de

encantadores das Trevas. Sempre pretenderam dominar Conto de Fadas. E

por isso que se bandearam para o lado do Conselho dos Doze, que prometeu

a eles esse território em troca de seu apoio e submissão. Mas eles só se

Page 132: A profecia das pedras

dobraram às ordens do Conselho para melhor o trair depois da vitória.

—Quem são esses encantadores da Trevas? — interrompeu Jade.

—São criaturas maléficas de todos os tipos que passaram para o

lado do mal — respondeu o homem. — Há até homens entre eles. Todos têm

um ponto em comum: o desejo de destruição. Alguns chegam a conseguir

insuflar o ódio entre os inocentes. Eles possuem o Dom do Mal.

—Como Janelle — lembrou Âmbar, com amargura.

—Depois que Thaar caiu em suas mãos e nas do Conselho dos

Doze, eles voltaram a assombrar Conto de Fadas. Saqueiam aldeias,

subjugam os que são mais fracos do que eles... E a maior parte do nosso

exército, que poderia nos proteger, está concentrada em torno de Thaar.

Quanto aos encantadores da Luz, acho que não passam de uma lenda,

jamais existiram de fato. Muitos de nós estamos prontos para combater, mas

como o Eleito nunca chega, as pessoas desesperam-se e acabam ficando

resignadas.

—Quem é o Eleito? — perguntou Jade.

O homem a olhou mais espantado ainda. Depois, pareceu perceber

alguma coisa e recuou, pigarreando:

—Nem sei mais o que digo... Acho que estou divagando, como a

pobre alucinada da Beah. Não levem minhas palavras a sério.

—Não pense que acreditamos nisso. Mas, diga, eles têm um nome?

—Não exatamente... só o exército das Trevas.

—E quem são os encantadores da Luz?

—Caso existam mesmo, são as únicas pessoas capazes de se opor

aos encantadores da Trevas. Em breve, quando o exército da Luz se reunir...

—Que exército? — perguntou Jade. — E por que se reunirá?

Haverá uma guerra?

—Já falei demais — suspirou o homem. — De minha boca não

sairá mais nem uma palavra.

Âmbar tinha se aproximado das crianças e tentava

desajeitadamente reconfortá-las. Enquanto Jade empenhava-se em obter

informações sobre o Eleito com o homem, ela falava-lhes com sua voz suave

e doce. Um clarão de lucidez pareceu passar pelos olhos de Beah Jardun.

Ela ergueu ligeiramente o corpo, puxou Âmbar pelo braço, para aproximá-la

de si, e segredou nervosamente:

Page 133: A profecia das pedras

— Quando você nasceu, sua mãe ficou tão contente... Assustada, é

claro, mas muito feliz. Eu estava lá. Era uma simples criada, mas estava lá.

Tinha muita gente, até mesmo Jean Losserand, o andarilho, que depois de

muitas peripécias regressou para sua casa, estava lá de passagem. Ele

ajudou sua mãe a fugir e a deixar você em segurança Lá Fora. Depois,

quando tentou trazê-la de volta para Conto de Fadas, eles foram capturados.

Jean Losserand foi mandado para a prisão, mas sua mãe foi morta por

ordem do Conselho dos Doze. Também fui presa. Felizmente, tive mais sorte,

consegui voltar e reencontrar seu pai, que ainda esperava pelo regresso de

sua mãe. Mais tarde, ele também foi assassinado pelo exército das Trevas.

— Isso é verdade?

Foram as únicas palavras que Âmbar conseguiu pronunciar,

tantas eram as emoções que a invadiam.

— Claro que é verdade — indignou-se Beah. — Sua mãe e seu pai

amavam você. Eu, Jean e os outros também, e foi isso que a fez ser

diferente, Âmbar.

Depois, a mulher recaiu num estado de torpor que nada, nem

mesmo as veementes perguntas de Âmbar conseguiram mais penetrar.

Nesse meio tempo, o homem tinha retomado seu relato.

—Esta modesta aldeia é habitada exclusivamente por mágicos

profissionais e curandeiros, como eu. Utilizamos apenas uma forma

rudimentar de magia para dar a nossas poções e ungüentos a força

desejada. Somos corajosos, porém pacíficos. Mesmo assim, eles foram

impiedosos conosco. Roubaram nossa comida, nossas poucas jóias, e

incendiaram as casas. Consegui salvar apenas uma dezena de poções. Hoje,

eles retornaram, destruíram o que restava e selaram a aldeia.

—Selaram a aldeia? O que quer dizer isso? — perguntou Jade.

—É o que eles fazem por onde passam. Marcam as cidades com o

Selo das Trevas. Por um ano, ninguém poderá sair daqui. Estamos

condenados a morrer de fome. Pior, não podemos morrer. Padeceremos até

que a greve da Morte chegue ao fim.

—Isso é ignóbil! — disse Jade.

— Ninguém se aventura a entrar em uma aldeia selada pelo

exército das Trevas por medo de represálias, ou simplesmente porque não

querem ficar prisioneiros aqui dentro.

Page 134: A profecia das pedras

—Isso significa que estamos trancadas na aldeia — constatou

Opala, com toda a calma.

—Infelizmente... — o homem começou a soluçar. — Não pude fazer

nada para impedir. Quando vi, vocês já estavam aqui dentro.

—Temos alguns mantimentos. Eles nos permitirão sobreviver por

alguns dias — respondeu Opala, com otimismo. Encontraremos uma

solução.

— Caímos numa armadilha — disse Jade irritada. Âmbar, calada,

mal conseguia seguir a conversação. As palavras de Beah Jardun não lhe

saíam do pensamento.

—Mas por que o exército das Trevas atacou vocês? — quis saber

Jade.

—Eles poupam os vilarejos e as aldeias rurais. Acreditam que seria

perda de tempo atacá-los. É gente que jamais se oporia a eles, não

constituem ameaça. Mas aldeias como a nossa são atacadas sem piedade.

Sabem que estamos contra eles. Quando o Eleito chegar, nós nos

juntaremos a ele. Por isso, tentam nos intimidar.

—Você não disse que o Eleito não existia, que só estava divagando?

— ironizou Jade.

—Mas claro! Eu estou... doente — disse o homem tentando se

corrigir. — Falo coisas sem sentido, não consigo me controlar. Que Eleito?

Nem sei de onde tirei essa idéia.

—O homem tentava fingir um acesso de loucura.

—Então, como você se chama? — perguntou Jade, desistindo de

fazer o homem falar do Eleito.

—Amnhor.

—Bom, então agora temos que encontrar um jeito de libertar esta

aldeia — resumiu Jade.

—Não há jeito — garantiu Amnhor. — Pensam que já não

tentamos? Uma aldeia selada pelo exército das Trevas está condenada. O

feitiço deles é muito potente.

—Muito bem. Mas vamos tentar assim mesmo. Não podemos ficar

mais do que algumas horas aqui.

—As meninas trocaram um olhar que dizia tudo e pegaram suas

pedras. Amnhor, certo do fracasso, suspirou profundamente. Jade, Opala e

Page 135: A profecia das pedras

Âmbar concentraram-se, mentalizando a fina névoa negra que cercava a

aldeia: o Selo das Trevas. A comunicação estabeleceu-se entre as pedras e as

três transformaram-se em uma só. Um suave calor as envolveu.

— Que se rompa o Selo das Trevas. Que se rompa o Selo das

Trevas — repetiam mentalmente as meninas, com força cada vez mais

intensa.

Mas nada aconteceu. O poder do Selo era forte demais para que

pudessem vencê-lo. Confessaram-se vencidas e, muito decepcionadas,

guardaram as pedras.

— Eu avisei — disse o curandeiro.

Opala constatou que estava trêmula. Sentia-se febril. Percebeu

que, desde que tinha pego sua pedra antes da hora, a dor de cabeça jamais a

havia abandonado completamente. Às vezes, diminuía um pouco, e ela

acabava não lhe dando importância, mas agora, por causa de seu ferimento,

a febre tinha uma intensidade dolorosa.

Amnhor percebeu que Opala não se sentia bem. Perguntou o que

estava acontecendo e foi até um cômodo vizinho para buscar um frasco cheio

de um líquido transparente e um pote de ungüento.

— Essa é a poção mais simples que existe — explicou ele. — Mas

cura todas as febres e dores de cabeça.

Opala tomou um gole da poção fresca e revigorante e,

imediatamente, sentiu-se melhor.

— Fique com esse outro para seu ferimento. É um remédio raro e

muito eficaz — disse Amnhor, estendendo o pote de ungüento para a

menina.

Opala agradeceu e passou a pomada no ferimento.

—Vocês têm sorte por terem saído incólumes da luta contra o Selo.

A magia das trevas é muito poderosa.

—Eu nunca desisto — disse Jade com firmeza. — Preciso ir ver

Oonagh e é isso o que vou fazer.

—Antes disso, é melhor procurarem uma maneira de passar um

ano sem comida — respondeu tristemente o curandeiro.

—Procure você, se isso lhe agrada — retrucou Jade. — Quanto a

mim, vou procurar um modo de destruir o Selo.

—Eu também — apoiou Opala.

Page 136: A profecia das pedras

—Mas... espere! Amnhor, você disse que há muitos feiticeiros aqui

na aldeia, não é? — perguntou Jade, agitada.

—Ah, sim, mas eles utilizam a magia num nível muito superficial

— explicou o homem. — Nenhum deles conseguiria quebrar o sortilégio do

Selo.

— Reuna-os mesmo assim! — exclamou Jade com um ar

autoritário. — Sozinhos, eles não conseguem, mas todos juntos podemos

conseguir.

— É melhor tentar do que se deixar morrer de fome — acrescentou

Opala.

Amnhor partiu e voltou ao fim de uma hora.

— Estão todos reunidos na praça principal. Expliquei a

eles que vocês pretendem destruir o Selo. Não estão convencidos, mas

vieram assim mesmo. Sigam-me.

Na grande praça cheia de homens e outras criaturas reinava um

silêncio aterrador. Uma tensão misturada com a infelicidade e o desânimo

emanavam da multidão. Jade tomou a palavra e falou com a voz bem forte:

— Bem, sei o que vocês sofreram, mas não se pode abandonar a

luta. Podemos tentar destruir o afamado Selo, e vamos conseguir. Sozinho,

ninguém pode nada. Todos juntos, podemos vencer.

As pessoas continuaram em silêncio. Seus rostos mostravam uma

expressão desconfiada.

—Não praticamos sortilégios coletivos — interveio Amnhor. — É

contra os nossos costumes. Ninguém jamais se arriscou a fazer isso.

—Um costume é mais importante do que nossas vidas? — indagou

Jade.

A assembléia nem piscava.

— Tentar destruir o Selo é perigoso e arriscado — continuou

Amnhor.

Jade teve que se esforçar para conter a raiva.

— Eles não me escutam — resmungou em voz baixa.

— Deixe que eu falo como eles — murmurou Âmbar. Deu um passo

à frente, encabulada. Queria mostrar às pessoas que desejava ajudá-las,

compreendê-las, mas não sabia como começar. A multidão a olhava com

severidade. Sua cabeleira ruiva e seu olhar caloroso não lhes inspiravam

Page 137: A profecia das pedras

nenhuma simpatia. Não queriam mais ouvir falar no Selo, tinham medo dele

e não queriam se opor à sua força.

Âmbar esboçou um sorriso, mas sentiu que seu coração não

acompanhava seu rosto.

— Gostaria de ajudá-los — começou titubeante. Inspirou

profundamente, e prosseguiu com a voz mais firme:

— Temos um inimigo comum. Quer ele se chame exército das

Trevas, quer se chame Conselho dos Doze, tenta nos privar da mesma coisa:

liberdade. Não podemos aceitar ser dominados por eles. Sempre existiram

pessoas que ousaram enfrentá-los e combatê-los. Graças a essas pessoas, a

paz pôde durar alguns anos. Agora, é preciso resistir novamente. Eles

mataram suas famílias, mataram a mãe que jamais cheguei a conhecer. É

em nome dessa injustiça, em nome de todos os que sofreram, que peço a

vocês que tentem quebrar o Selo.

Âmbar tinha se inflamado. Quando falou na mãe, uma lágrima

escorreu por seu rosto. A multidão a olhava, tocada por suas palavras e por

sua expressão sincera e apaixonada. Uma voz elevou-se do meio da

multidão:

— Eles vieram uma semana atrás, mataram e saquearam

a aldeia... Depois, voltaram novamente e, há apenas algumas horas,

incendiaram o que restava de nossas casas e selaram a aldeia. Se, por

milagre, conseguirmos romper o Selo, é possível que voltem mais uma vez e,

então, sua cólera será terrível.

Um murmúrio percorreu a praça.

— Mas recusar a luta é o mesmo que recusar a vida! —

disse Âmbar, com entusiasmo.

A assembléia meditou longamente sobre suas palavras. Depois, foi

atravessada por murmúrios.

— Eles as seguirão — afirmou Amnhor.

Agora, a multidão esperava pelas ordens. Jade cochichou para

Âmbar.

—Eu não sabia que sua mãe tinha sido assassinada pelo Conselho

dos Doze. Achei que tinha morrido de doença...

Minha mãe verdadeira, aquela que me colocou no mundo, foi

assassinada pelo Conselho dos Doze. Foi Beah Jardun quem me contou.

Page 138: A profecia das pedras

—E meu pai? E minha mãe? — perguntou Jade. — Também tenho

o direito de saber o que aconteceu. Será que ela sabe alguma coisa sobre

eles?

— Infelizmente, acho que não — sussurrou Âmbar. Em seguida,

voltou-se para a multidão:

— Confesso que não sei como venceremos o Selo — disse ela. —

Vamos experimentar algo que vocês conheçam bem. Se todos unirem suas

forças, alguma coisa acontecerá.

A multidão concordou. As meninas pegaram suas pedras, e

dirigiram seus pensamentos para o Selo. Os magos, de comum acordo,

começaram a recitar um encantamento incompreensível.

— O Alipium — disse gravemente Amnhor. — O sortilégio mais

poderoso, o mais difícil de realizar... E também o mais perigoso.

No entanto, mesmo unida à força das meninas, a potência dos

magos não era suficiente para lutar contra o Selo. Nada aconteceu.

— O que aconteceria se, simplesmente, tentássemos atravessar o

Selo? — perguntou Âmbar.

Um murmúrio de pavor percorreu a multidão. Todos baixaram os

olhos. Amnhor disse, num sopro de voz:

—Nós morreríamos!

—Mas a Morte está em greve! — lembrou Jade.

—Isso não muda nada. O que aconteceria é pior do que a morte.

—Tenho certeza de que é possível romper o Selo — afirmou Âmbar.

— E vocês, todos vocês, não acreditam no impossível? Confiem em vocês,

confiem em mim. Prometo que podemos conseguir.

Âmbar calou-se. As pessoas a olhavam fixamente. Ela prosseguiu:

— Tive uma idéia.

A menina aproximou-se de Amnhor e cochichou alguma coisa em

seu ouvido.

—Isso não vai funcionar — disse ele. — Vai ser uma desgraça!

—Se não fizermos nada, vai ser uma desgraça de qualquer jeito.

Resignado, Amnhor curvou-se a seus argumentos. Assim como a

multidão, ele sabia que a menina tinha razão. Era preciso tentar qualquer

coisa. Mas ele também sabia bem qual era a sorte reservada para os que

tentavam se opor ao Selo.

Page 139: A profecia das pedras

—Você sabe bem o que está fazendo? — perguntou Jade a Âmbar.

—Não.

—Era o que eu imaginava. Bom, vamos lá, não é hora de começar a

questionar nada.

Ao fim de alguns longos minutos, as instruções que Âmbar tinha

dado a Amnhor estavam cumpridas. Todos os moradores da aldeia formavam

uma espécie de roda que incluía as três meninas. Todos deram as mãos, e

elas seguravam as pedras bem firmes em suas palmas.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Jade.

—Nada. Nada de encantamentos, nada de magia. Vamos ficar bem

juntos e atravessar o Selo. E como o campo magnético de Conto de Fadas. Se

temos certeza de que vamos passar, passaremos. Se acreditarmos no

impossível...

—Você tem certeza de que isso também se aplica ao Selo?

—Já vamos ver!

Logo, a cadeia humana avançou até o limite do Selo. Dava para

sentir o cheiro acre que se desprendia dele. Faltavam apenas dois passos

para saírem da cidade, mas entre eles e a liberdade, havia o Selo.

— E preciso acreditar — repetiu Âmbar.

Sua certeza propagou-se. Todos os corações encheram-se de uma

louca esperança e o calor das pedras os envolveu. Eram milhares, mas eram

como uma só pessoa determinada a romper o Selo. Primeiro, todos tiveram

que destruir seus medos, depois, todos, ao mesmo tempo, deram um passo

adiante. Uma nuvem de neblina escura os envolveu e paralisou. Em nenhum

instante duvidaram da vitória. Uma luta invisível começou a ser travada. O

Selo era um sortilégio dotado de terrível poder mágico. Normalmente,

qualquer um que tentasse atravessá-lo morreria fulminado. Mas a Morte

estava em greve. Então, o exército das Trevas tinha criado uma coisa ainda

pior.

Nesse instante, Âmbar julgou compreender o Selo. Teve a

impressão de que ele falava com ela, que confiava sua natureza a ela, mas

nunca pôde saber se era isso mesmo.

— Janelle nos transmitiu seu ódio — pensava Âmbar.

— O Selo nos transmite o mal, os sentimentos daquele que o criou. E algo

que traz em si alguma coisa de terrível, de destruidor: o Dom do Mal. O Selo

Page 140: A profecia das pedras

não passa do reflexo da alma de seu criador...

Sua respiração estava cada vez mais ofegante, e Âmbar sentia que

o ar se tornava diferente, como se estivesse impregnado por um elemento

cruel que invadia a todos. Então, ela viu claramente.

— O Selo insufla o mal naqueles que tentam destruí-lo — disse

para si mesma. — Alguns sofrem até morrer. Mas a Morte está em greve.

Então, em vez de sucumbir, absorvemos a energia nefasta que emana dele.

Ele nos domina até nos transformar, até fazer de nós pessoas habitadas pelo

mal, pessoas a serviço do exército das Trevas. É esse o motivo pelo qual o

sortilégio é tão poderoso!

E, de fato, o mal começava a se infiltrar em cada um. O ódio, o

medo, a inveja, o desejo de poder e, sobretudo, a dolorosa paralisia da

loucura. Mas o combate prosseguia. Como se fossem uma só, as milhares de

pessoas presentes confrontavam suas esperanças, suas convicções, todo o

bem que existia nelas, com o mal que tentava se infiltrar em suas almas.

Jade, Opala e Âmbar começaram a se sentir muito cansadas. O

cheiro pesado e enervante da bruma que as envolvia lhes dava vontade de

abandonar a luta. Suas mãos relaxavam em torno das pedras, suas

pálpebras se fechavam... Mas elas não desistiram, não podiam desistir. O

bem e o mal lutavam bravamente em seus corações, assim como o Selo

lutava contra os habitantes da aldeia. Eram forças iguais. Mas todos

sufocavam, exauridos, e o ataque contra o Selo ameaçava fracassar. A dor

era muito intensa. No entanto, uma centelha de esperança sobrevivia em

cada coração: venceremos o Selo. Não podiam se resignar.

Então, todos concentraram suas últimas forças. O Selo resistiria,

sabiam, mas era preciso tentar. Num mesmo movimento, deram um passo

adiante.

O Selo não resistiu, dissipou-se, rompeu-se num repente. Tinham

acreditado que podiam vencê-lo. E venceram.

Jade, Opala e Âmbar caíram desmaiadas, totalmente esgotadas.

— Olhe, ela está acordando! Até que enfim!

Âmbar abriu os olhos e viu os rostos de Amnhor e Jade sobre o

seu. Tudo rodava. Levou longos minutos para voltar a si. Levantou-se e

perguntou:

—O Selo... ele se rompeu? Conseguimos?

Page 141: A profecia das pedras

—Acalme-se — disse Amnhor.

Ele colocou um pequeno frasco sob seu nariz. Ela o pegou, tomou

um gole de um líquido nojento e sentiu-se mais calma.

—Você esteve desacordada quase um dia inteiro — explicou Jade.

—Um dia inteiro? E a aldeia, ainda está selada? Âmbar não tinha

nenhuma lembrança a partir do momento em que atravessara o Selo.

—Claro que não — assegurou Jade. — Nós vencemos. Como você

disse, era preciso que acreditássemos e lutássemos todos juntos.

—-E você? E Opala? Vocês não desmaiaram quando atravessaram

o Selo?

—Desmaiamos, sim, mas graças aos cuidados de Amnhor,

despertamos em poucas horas.

— Quando o Selo se rompeu, muitas pessoas caíram desacordadas,

esgotadas, e ainda não voltaram a si — explicou Amnhor. — Mas estamos

cuidando delas, estão fora de perigo. Graças a você, tudo voltará ao normal.

Opala entrou no quarto e sorriu ao ver Âmbar acordada.

—Acho que podemos partir à tarde — decidiu Jade.

—Em agradecimento pela libertação da cidade carregamos seus

cavalos com alguns mantimentos — disse Amnhor.

Depois de uma longa conversa, as meninas e o curandeiro fizeram

uma deliciosa refeição.

—O que aconteceu com Beah Jardun e as crianças? — perguntou

Âmbar.

—Ninguém sabe ao certo — respondeu Amnhor. — As crianças

eram órfãs e foram acolhidas por famílias da aldeia. Beah Jardun deve ter

partido, logo depois da ruptura do Selo. Na confusão geral, ninguém prestou

atenção. Não sei de mais nada.

A refeição terminou e as meninas acharam que estava na hora de

partir. Amnhor foi buscar seus cavalos e lhes fez a surpresa de trazer

também um magnífico garanhão, presente dos magos da vila.

— Há também roupas costuradas pelas mulheres da aldeia, em

agradecimento a vocês — disse Amnhor.

Cada uma recebeu um elegante vestido de seda. Em seguida, o

curandeiro lhes estendeu um minúsculo frasco de vidro azulado com o

restinho de um líquido espesso.

Page 142: A profecia das pedras

— Essa poção é presente dos curandeiros. Foi a única

que permaneceu intacta depois da devastação da aldeia. Sua preparação

leva meses de trabalho. Infelizmente, este frasco contém apenas duas doses.

—Obrigada — disse Jade, segurando o frasco. — Para que serve?

—Vocês disseram que iriam ver Oonagh. Essa criatura mágica

habita uma montanha cercada de perigos. Em torno da montanha, há

gigantescas aves de rapina. A presença delas é suficiente para inspirar

terror. Se vocês não sentirem medo, elas não as perturbarão. Mas como

conseguem angustiar e apavorar qualquer pessoa, é muito provável que

vocês se assustem também. No entanto, para sobreviverem, será preciso que

se mantenham impassíveis. É esse o papel da poção. O efeito de uma dose

dura apenas poucos minutos. Infelizmente, uma de vocês terá que ficar sem

a poção.

—E como essa poção conseguirá nos ajudar? — quis saber Jade.

—Ela transformará você em um ser que não é nem humano e nem

mágico — respondeu Amnhor. — Felizmente, sua ação é limitada a menos de

cinco minutos. Nesse lapso de tempo, ela apagará todos os seus

sentimentos, desde o medo até mesmo a sensação de estar viva.

Jade deu de ombros, negligentemente. Opala permaneceu

imperturbável. Só Âmbar arrepiou-se e perguntou:

—Esses seres de rapina são perigosos mesmo?

—Eles se alimentam do medo. Adoram ver as pessoas apavoradas,

deliciam-se com isso. De tão assustadas, as pessoas nem tentam fugir.

Então, eles atiram-se sobre as pessoas, carregam-nas para seu covil e fazem

uma deliciosa refeição.

—Obrigada pela poção — disse Jade, reprimindo um calafrio.

— Cuidem-se bem e não confiem em ninguém.

As meninas despediram-se. O curandeiro disse-lhes adeus com a

voz embargada de emoção.

— Vocês sempre poderão contar conosco.

Jade, Opala e Âmbar sorriram, agradeceram a hospitalidade e

partiram.

De comum acordo, tentaram recuperar o tempo perdido e fizeram

apenas breves pausas para descanso. Não cruzaram com quase ninguém no

caminho. Mais uma vez, atravessaram campos tranqüilos e ensolarados.

Page 143: A profecia das pedras

Passaram por pequenas aldeias e vilas sem perceber sinal do exército das

Trevas. Âmbar ficou intrigada.

—Nem parece que acabamos de deixar um lugar devastado. Tudo

está tão tranqüilo... Afinal, Conto de Fadas não está era guerra?

—Não — respondeu Jade. — Enquanto você estava desacordada,

Amnhor nos contou que nesse momento o exército das Trevas está deixando

um pouco de lado os campos e pequenas aldeias e concentrando seus

ataques nas cidades inimigas. Essas vêm sendo sistematicamente

destruídas. Mas eles estão evitando atacar os lugares onde vivem cavaleiros

ou criaturas que utilizam a magia num nível muito elevado. Aqui, eles são

chamados de hovalyns.

—Mas o que o exército das Trevas pretende? — perguntou Âmbar.

—Dominar Conto de Fadas, evidentemente. Mas ainda não

passaram ao ataque pesado. Estão avançando aos poucos.

—Amnhor acha que eles estão esperando alguma coisa — interveio

Opala. — Mas ele não quis nos dizer o que é.

As meninas cavalgaram o dia inteiro. Falaram pouco e fizeram

apenas refeições frugais. Quando a noite chegou, pararam numa campina.

— Ainda bem que, ontem, dormimos na aldeia. Desse jeito, vou

acabar parecendo uma camponesa suja e desmazelada — comentou Jade.

Âmbar não gostou da comparação. Mordeu o lábio inferior para

disfarçar a irritação e percebeu que o machucado tinha desaparecido, sem

dúvida graças aos cuidados de Amnhor.

A noite estava agradável e destravou a língua das meninas, que se

puseram a conversar animadamente. Âmbar contou mais uma vez o que

Beah Jardun tinha lhe dito. Jade e Opala escutaram atentamente e

começaram a sonhar com seus próprios pais. Quem seriam eles? Ainda

estariam vivos? Por que as teriam abandonado?

Jade queria tanto saber quem eles eram... Mas por outro lado,

pensar em seus pais provocava-lhe uma raiva amarga. Por que teriam se

separado dela quando ainda era um bebê, sem deixar nem ao menos uma

lembrança, um sinal de afeto? Sabia que eles a tinham entregue ao duque de

Divulyon para protegê-la de um "perigo", mas não conseguia evitar de pensar

que, na verdade, não a queriam, não a amavam. No fundo, não queria amá-

los nem odiá-los. Era mais simples acreditar que eles não a tinham amado.

Page 144: A profecia das pedras

Seu pai verdadeiro tinha sido o duque de Divulyon.

Opala nunca tinha se interessado por seus pais. Uma vez, quando

era pequena, perguntou alguma coisa a Eugênia e Gina e elas lhe

responderam com evasivas. Então, não se preocupou mais. Não sabia o que

significava ter pai e mãe. Agora, pela primeira vez, começava a pensar no

assunto. Muitas perguntas vinham à sua mente, mas ela não conseguia

imaginar as respostas.

Quando chegou a hora de se deitarem, Jade não conseguiu pegar

no sono. Não se sentia à vontade naquela campina, perdida num mundo que

ela não conhecia. Sentia falta de sua vida fácil, de seu palácio luxuoso, da

admiração que provocava... Também sentia falta do duque de Divulyon.

Mesmo não sendo seu pai, o duque a amara mais do que qualquer outra

pessoa, cuidara dela. Será que estaria pensando nela? Estaria preocupado

com seu destino?

— Eu estou bem papai. Um dia, vou voltar e dizer como o amo.

Sentiu-se mais tranqüila, como se o duque pudesse ouvir suas

palavras afetuosas. Depois de tudo o que tinha acontecido, quem sabe?

Por outro lado, Jade gostava da aventura. Descobria coisas que

jamais suspeitara que existissem, aprendia a usar poderes que nem sonhava

possuir. Gostava também da sensação de perigo, de encontrar-se diante do

imprevisto.

Tomada por uma fome repentina, Jade levantou-se, sacudiu o

vestido sujo de terra e foi até a cesta de mantimentos. Subitamente, sem

saber o motivo, sentiu-se indisposta, sua vista escureceu e suas pernas

cederam. Estremeceu, mas conseguiu recuperar os sentidos.

Tinha certeza: ao longe, desenhava-se a silhueta imprecisa de um

cavaleiro. Sem hesitar, Jade correu em seu encalço, maldizendo-se por não

ter pego um cavalo. Viu o vulto desaparecer na escuridão e soube que não

conseguiria alcançá-lo.

Na manhã seguinte, contou às meninas sua aventura noturna.

—Você sentiu que iria desmaiar perto dele? — perguntou Âmbar,

pensativa.

—Sim, por um momento, meu estômago ficou embrulhado e não vi

mais nada à minha volta. Senti que ia desfalecer.

—Então, deve ser um inimigo — concluiu Âmbar com amargura.

Page 145: A profecia das pedras

—Mais um — ironizou Jade.

Depois de comer algumas frutas e pães, as meninas retomaram o

caminho. Forçavam os cavalos a correr. Pouco a pouco, cada uma

mergulhou em seus pensamentos.

Âmbar repassava as palavras de Beah Jardun, como se algum

detalhe tivesse ficado esquecido. Lembrava-se do rosto bom e carinhoso de

Jean Losserand. Por que ele não tinha dito nada? Queria tanto que alguém

lhe falasse de sua mãe... Sentia a indignação contra o Conselho dos Doze

crescer dentro de si. Seus pensamentos tornaram-se sombrios e seu rosto se

contraiu. Por que não podia viver normalmente, numa família normal, num

lugar normal, com problemas normais?

Jade e Opala tentaram distraí-la. Não era difícil adivinhar o que a

preocupava. Mas suas tentativas não deram resultado.

Por volta do meio-dia, as meninas fizeram uma parada à sombra de

uma árvore frondosa. Nenhuma delas se sentia muito bem ali. Comeram

pouco, preocupadas em poupar os mantimentos. Na hora de retomar a

estrada, Opala apontou para um bosque distante e disse calmamente:

— Olhem. Parece um cavaleiro...

De fato, uma silhueta vestida de preto desenhava-se, imprecisa.

Sem hesitar, as meninas montaram seus cavalos e partiram em disparada.

Mas o cavaleiro já havia desaparecido.

Jade, Opala e Âmbar retomaram caminho. O inimigo desconhecido

ocupava seus pensamentos. Embora nenhuma ousasse confessar, ele lhes

inspirava um medo terrível, irracional.

O Décimo Terceiro membro sorriu na escuridão. A crueldade

marcava seus traços, um poder terrível, maléfico, impregnava seu rosto. Seu

plano estava funcionando às mil maravilhas. Dessa vez, ele controlara tudo.

Era bem verdade que Opala não tinha morrido. As três pedras da Profecia

tinham se refugiado em Conto de Fadas, onde não podiam ser alcançadas

por telepatia. Mas nada disso o aborrecia mais. Tinha encontrado uma

solução muito melhor.

Uma risada de escárnio atravessou o silêncio da sala.

Fez um gesto com a mão e uma placa dourada, flutuando no ar,

emitiu um zumbido antes de fazer surgir a imagem de um homem de rosto

duro, marcado por cicatrizes. Os olhos azuis e a cabeleira negra davam a seu

Page 146: A profecia das pedras

rosto um ar decidido. Vestia-se com um luxuoso uniforme negro.

—Ah, é você, Décimo Terceiro membro? — disse com a voz

cortante. Enviei um de meus homens. Não se preocupe, tudo está indo muito

bem.

—Confio em você, encantador. Mas um de seus homens... será

prudente?

—Não é apenas um homem. É um soldado das Trevas. Não falhará.

—Muito bem.

—Ele as está vigiando. Até agora, tudo se passa como o previsto.

—Não esqueça: o momento decisivo se aproxima.

—Não esquecerei, Décimo Terceiro membro. Esteja atento para

quando o momento chegar. Nossa vitória depende do senhor.

—Não é você quem tem que me lembrar disso.

O Décimo Terceiro membro fez um gesto e interrompeu a

comunicação. As novidades eram boas. Mas não gostava desse cavaleiro das

Trevas. Era o único que ousava lhe falar de igual para igual. No momento,

não podia fazer nada contra isso. Precisava dele para destruir as pedras e

para assegurar a vitória do Conselho dos Doze...

Dessa vez, iria funcionar. Seu plano não fracassaria.

Paris, 2002 Acabava de dizer para mim mesma que eu podia viver, que tinha

esse direito. Sabia que era impossível ordenar à Morte que recuasse, que me

deixasse em paz, mas gostava de acreditar que podia. Minha realidade

misturava-se com o sonho. Ingenuamente, achava que se suplicasse à Morte

que me deixasse ficar, ela, como qualquer criatura dotada de sentimentos,

me escutaria e seguiria seu caminho. Além disso, ela não poderia estar em

greve? Não poderia se comover com meu desespero? Eu deixava as lágrimas

escorrerem. Quando não estava dormindo, estava chorando — de raiva, de

desespero, de tristeza, de medo... Tentava acreditar que um dia eu não

acordaria mais, que mergulharia no sonho e viveria ali feliz para sempre. Se

quisesse verdadeiramente, se acreditasse intensamente, não era possível que

esse desejo insensato se realizasse e me deixasse entrar num conto de

fadas?

Page 147: A profecia das pedras

A cada noite, eu voltava para o universo mágico de meu sonho. Eu

vivia à minha maneira. As imagens e sentimentos me pertenciam tanto

quanto as personagens daquele mundo irreal.

Passava os dias à espera de que a noite trouxesse a continuação do

sonho da noite anterior. Uma voz mesquinha e desagradável insinuava que

eu criava uma ilusão. Eu sabia disso, mas não ligava. O sonho não era

mesmo real.

No entanto, eu esperava. Novamente. Como nunca tinha me

permitido fazer antes. Lembranças surgiam do fundo de minha memória.

Tinha tido tanto trabalho para relegá-las ao esquecimento. Agora, estavam

de volta, arrogantes, mas também esplêndidas e perigosas como sempre.

As imagens vieram à tona. Tentei afastá-las, devolvê-las ao nada

no qual achava que estavam guardadas. Mas estavam ali, vivas, coloridas,

rodopiando à minha volta. Compreendi que a única maneira de me livrar

delas era aceitá-las. Lembro-me de ter começado a chorar. Depois, olhei para

elas, para os fantasmas do passado.

Os primeiros eram meus pais. As lágrimas inundaram meus olhos

avermelhados. Eles estavam mortos e eu não podia fazer nada. No entanto,

sua imagem continuava a se impor, sorridente, carinhosa, encantadora.

Parecia real e eu chorava ainda mais. Ali, meus pais riam, brincavam

comigo, me faziam carinho. Eu era novamente Joa.

Lembro-me de ter gritado para afastar as imagens. Elas foram

embora, perturbadas, assustadas, mas eu sabia que voltariam, que

continuariam a me atormentar...

23 Os Ghibduls levaram o Eleito e Elforhys para visitar a cidade, que

era modesta e curiosa. As construções eram feitas de madeira e não muito

sólidas. Algumas estavam desabando.

— Não somos um povo de artesãos — explicou humildemente um

Ghibdul. Somos bons na luta e na telepatia, mas não em outras coisas.

Nossa civilização é bastante rudimentar.

Ainda assim, o Eleito e Elforhys estavam impressionados. Os

Ghibduls revelaram-se muito hospitaleiros e, por trás de sua feiúra e

Page 148: A profecia das pedras

maneiras ameaçadoras, conseguiam ser bastante agradáveis. O hovalyn foi

tratado com um respeito que nunca tinha encontrado antes. Na rua, todos o

saudavam com deferência e admiração.

Já estava ali havia uma semana, a pedido das criaturas mágicas,

que lhe rogaram insistentemente para prolongar sua permanência.

Ele e Elforhys foram alojados em uma das mais bonitas cabanas,

enfeitada com entalhes de madeira. Dormiam em camas forradas de musgo e

cobriam-se com lençóis tecidos de folhas.

A comida era deliciosa. Cada refeição era um banquete organizado

em torno do Eleito. Serviam-lhe carne fresca, legumes e frutas que ele não

conhecia. Para agradá-lo, os Ghibduls traziam a melhor caça da floresta. As

mulheres cozinhavam favas e traziam as frutas e legumes mais saborosos de

seus quintais.

O Inomeado estava mudado. Seus traços estavam mais definidos e

seu olhar tinha perdido um pouco da melancolia. Ainda que continuasse

ignorando seu nome e sua origem, agora sabia que era o Eleito. Tinha uma

identidade. Sabia que era esperado por milhares de pessoas. Tinha um lugar

no mundo. No entanto, ainda desejava recuperar a memória para se tornar

uma pessoa inteira.

Ao fim do dia, um pensador Ghibdul veio encontrá-lo.

—Hovalyn, não podemos mais retê-lo. Você deve realizar grandes

coisas. Mas, para encontrar a si mesmo, você deve ir ver Oonagh.

—Eu sei — respondeu o cavaleiro.

—Perto da gruta dos cristais, onde mora Oonagh, existem

perigosos rapinantes do medo. Leve isso para se proteger.

—O Ghibdul estendeu-lhe dois cipós verdes, na ponta dos quais

estava pendurada uma pequena bola preta.

—São dois amuletos, um para você e outro para seu amigo.

Quando os rapinantes se aproximarem, basta pendurá-los no pescoço. Esse

pingente enfeitiçado os protegerá do medo durante uma hora. Depois

desaparecerá.

—Obrigado — disse o hovalyn pegando o amuleto.

—Você ainda não sabe qual será seu verdadeiro papel — continuou

o Ghibdul num suspiro. — Mas não esqueça. Basta que você diga que é o

Eleito para despertar tanto o ódio quanto a felicidade.

Page 149: A profecia das pedras

O Inomeado balançou a cabeça.

— Alguns de nossos guerreiros vão acompanhá-lo até a

floresta — continuou o Ghibdul. — E também lhes daremos dois cavalos

selvagens. Infelizmente, não são mágicos, mas são muito vigorosos.

O Eleito exprimiu toda a sua gratidão e, naquele mesmo dia, partiu

acompanhado de Elforhys. As mulheres lhes deram mantimentos para a

viagem e eles embrenharam-se na floresta, escoltados por guerreiros

Ghibduls que voavam à sua volta.

Os viajantes precisavam parar freqüentemente para que os

Ghibduls descansassem. Quanto mais entravam dentro da floresta, mais

precisavam prestar atenção ao caminho. Galhos secos arranhavam seus

rostos. Os Ghibduls tentavam tornar a viagem mais agradável, mas eles não

podiam mudar a floresta.

—A casa de Oonagh ainda está muito longe — disse um dos

Ghibduls. — Depois de sair da floresta, ainda terá que viajar duas semanas.

—Conheço mais ou menos o caminho — disse o Inomeado.

—Não é muito perigoso. É a parte mais inofensiva de Conto de

Fadas, a menos afetada pela magia.

—Mesmo assim, é preciso estar atento — disse outro Ghibdul. — O

exército das Trevas está de volta. Não se pode ignorar seu poder e sua

crueldade.

Quando o sol já se punha, chegaram ao limiar da floresta.

— Nossos caminhos se separam aqui — disse um Ghibdul. — Não

se esqueça, Eleito: esperaremos pelo seu retorno.

Um dos guerreiros tirou de sua sacola o estojo, enfeitado de

pérolas, que o hovalyn tinha esquecido de pedir de volta.

— Isso é seu.

O Eleito olhou para o estojo com uma curiosidade renovada. Ainda

não sabia exatamente para que servia aquilo.

—Adeus — disse ele aos Ghibduls. — Obrigado por tudo.

—Até breve.

Elforhys e o Inomeado atravessaram o limite da floresta. Cansados

da viagem, deitaram-se sobre a relva fresca e adormeceram.

Assim que acordaram, comeram, desamarraram os cavalos e

partiram a galope.

Page 150: A profecia das pedras

—E então, Inomeado, agora que você já sabe que é o Eleito, no que

está pensando?

—Sei que tenho um dever a cumprir, mas ainda não sei qual é.

Sinto-me diferente. Agora, minha vida passa a ter sentido.

Elforhys sorriu, com um ar cúmplice.

A campina ainda estava adormecida. Muito longe, podia perceber

os cumes nevados onde morava Oonagh.

O Eleito e Elforhys conversaram bastante. Lembraram-se da

espantosa estada com os Ghibduls e conversaram sobre o futuro incerto que

os aguardava.

Logo, estavam amigos. Mas, repentinamente, o Inomeado

interrogou Elforhys, com uma expressão inquieta:

— Agora me diga: o que você está procurando? Por que está me

ajudando?

— Acho que agora já posso contar — respondeu Elforhys. — Muita

gente já está desesperada em busca do Eleito. Você é importante. Você é

esperado. Então, decidi encontrar você e ajudá-lo a descobrir quem é. E

consegui!

—Mas... — balbuciou o Eleito, perturbado. — O que esperam de

mim, exatamente?

—Isso, só Oonagh poderá revelar. Está escrito na Profecia que você

não pode saber de nada antes da hora. Neophileus, o autor do livro, era um

Clorhyun como eu, e acredito nas palavras dele.

—Mas já faz séculos que ele morreu, não se pode seguir suas

palavras ao pé da letra! — protestou o Inomeado.

Elforhys sorriu, mas manteve a boca fechada. Ao fim de algumas

horas, uma aldeia modesta surgiu no horizonte. Um véu de neblina negra a

envolvia.

—Uma aldeia selada pelo exército das Trevas — murmurou

Elforhys.

—Precisamos ir até lá e salvar as pessoas!

—Não — disse Elforhys calmamente. — Não podemos fazer nada

por elas. É tarde demais. Não se pode quebrar um Selo. Conheço esse lugar,

é uma aldeia de mercadores. São gente corajosa, simples e honesta. O

exército das Trevas só ataca aqueles que são frágeis demais para se

Page 151: A profecia das pedras

defender.

Elforhys deteve o Inomeado, que queria a todo custo correr em

direção à aldeia. Mas logo o rapaz compreendeu que não poderia fazer nada

por seus habitantes. Sentiu-se inútil, culpado. Elforhys tentou reconfortá-lo,

mas foi em vão.

Cavalgaram por mais uma hora quando perceberam, ao longe, os

contornos de um castelo, de onde se elevava uma nuvem de fumaça. Dessa

vez, de comum acordo, eles meteram as esporas nos cavalos e correram em

socorro dos moradores.

Chegando lá, constataram, tarde demais, que a fumaça negra não

era causada por um incêndio. Tratava-se de um Selo das Trevas em

formação.

Diante deles, perfilavam-se centenas de cavaleiros vestidos de

preto, montados sobre cavalos igualmente negros. Eles rodeavam o castelo e

pareciam unidos pela mesma força, pelo mesmo pensamento. Seus lábios

mal se moviam enquanto recitavam o encantamento do Selo.

O Eleito tinha, diante de si, uma parte do exército das Trevas. Nem

pestanejou. Elforhys deu um grito apavorado quando ele desembainhou sua

espada. O Inomeado pegou apressadamente o estojo em sua sacola, lançou-

se contra um dos soldados das Trevas e decepou sua cabeça, que rolou no

chão e ficou olhando para ele com ar de reprovação.

Alguns soldados desviaram sua atenção do Selo, que,

imperceptivelmente, começou a se dissipar.

—Como ousa atacar um dos nossos? — rugiu uma criatura de

rosto disforme.

—Como ousa destruir a vida de pessoas inocentes? — respondeu o

Eleito.

—Quem é você?

—Sou o Eleito.

Logo, uma dezena de soldados atirou-se sobre ele. Elforhys

também atirou-se à batalha. Mas o estojo dava ao Eleito uma força

impressionante. Sempre tinha sido bom lutador, mas agora manejava sua

espada com rara habilidade. Seus gestos eram precisos e sua espada

penetrava a carne dos inimigos com eficácia e rapidez. Além disso, os golpes

mal o atingiam e não deixavam em seu corpo mais do que cortes

Page 152: A profecia das pedras

superficiais.

Ainda assim, os soldados das Trevas eram fortes, bem treinados e

numericamente superiores. Acabariam levando vantagem, mas um homem

de estatura imponente ordenou que interrompessem o combate. Os soldados

guardaram as espadas e fizeram um círculo em torno do Eleito e de Elforhys.

O recém-chegado, de autoridade incontestável, era humano.

Montava um garanhão negro enfeitiçado, cujas narinas soltavam chamas.

Vestia um luxuoso uniforme cor de azeviche e a bainha de sua espada era

incrustada de safiras.

Ele tinha um ar implacável, impressionante, e seu rosto, de traços

duros, era marcado por numerosas cicatrizes. Os olhos eram dois pedaços

de aço azulado, impiedosos, e brilhavam sob as espessas sobrancelhas.

Tinha o queixo forte, voluntarioso, nariz reto e lábios finos. Seus cabelos

eram negros.

— Venha até aqui — ordenou ao Eleito, com uma voz grave.

O Eleito não se moveu. O homem não pareceu impressionado com

aquilo.

— Você luta melhor do que os mais fracos de nós, o que já é uma

proeza.

O Eleito não respondeu.

— Sou um encantador das Trevas, comando esse regimento de

incapazes.

Elforhys lançou um olhar inquieto para o Inomeado, que

mantinha-se calado.

— Sem nenhuma dúvida, você é um hovalyn. Onde aprendeu a

lutar?

O Eleito continuou em silêncio. Montado sobre seu cavalo, tinha os

olhos fixos no olhar duro de seu inimigo.

—Por que está contra nosso exército? Ninguém se arrisca assim.

Você é um bocado corajoso.

—Ele disse que é o Eleito — interveio um soldado.

—O Eleito? — repetiu o homem com um ar glacial.

—Eu mesmo — afirmou tranqüilamente o hovalyn.

—Ora, você é tão eleito quanto eu!

Com um gesto, o homem levantou o Eleito a poucos metros do

Page 153: A profecia das pedras

solo. O jovem hovalyn não demonstrou medo.

— Você conhece o signo do exército das Trevas? — perguntou o

encantador.

Sem esperar pela resposta, ele desnudou seu tornozelo esquerdo. A

marca de uma lua negra, encimada por alguns números, estendia-se sobre

sua pele. Com um novo gesto seu, o Eleito avançou no ar até que seu

tornozelo esquerdo estivesse à altura do homem. Com um estalar de dedos,

levantou a ponta da calça do Inomeado. Não havia nenhum sinal ali.

— Oh! — exclamou o encantador, sarcástico. — Então, temos aqui

um desertor...

Com a ponta de sua espada, roçou a pele do tornozelo do rapaz.

Para surpresa geral, um filete de sangue negro escorreu e formou a lua

acompanhada por alguns números em código.

— Eu tinha razão. Um desertor — constatou o encantador das

Trevas.

Difícil saber quem estava mais aterrado, se Elforhys ou o

Inomeado.

— De acordo com esse código, faz dois anos que você

abandonou o exército.

O Inomeado não conseguia acreditar no que ouvia.

— Ah... Agora estou me lembrando — disse o homem. — Sua

história ficou conhecida naquela época. Seus pais tinham morrido poucos

anos antes e você vivia com seus avós. Uma noite, você partiu, queria deixar

para trás aquela existência sem graça. Ficou errando de aldeia em aldeia até

que o encontramos e recolhemos, embora você não tivesse mais do que

dezesseis anos. Mas, ao fim de poucos meses, você desertou. Nós o

capturamos rapidamente. Normalmente, quem deserta é morto. Mas, como

você era muito jovem, apenas apagamos sua memória. Integralmente. Você

foi anulado como gente.

Com um gesto, deixou que o Inomeado caísse ao chão. Mortificado,

o rapaz levantou-se, reprimindo a custo lágrimas de dor e desespero.

O homem gargalhou sarcasticamente.

— Eu deveria matar você. Mas a maldita Morte está em

greve. Então, deixarei que viva sua existência insignificante.

Vivo, o Inomeado estava condenado à própria vergonha. Aonde

Page 154: A profecia das pedras

chegasse, a esperança se apagaria, os olhares se desviariam. Sua existência

seria vagar pelo mundo, sem sentido, desonrado.

O encantador das Trevas sabia que tal existência era muito pior do

que a morte. E começou a rir novamente:

— E você queria me convencer de que é o Eleito?

Em seguida, fez sinal para que o Inomeado e Elforhys fossem

embora.

Eles obedeceram.

24 As três meninas não voltaram a ver o estranho cavaleiro. Tinham

cavalgado através dos campos sem encontrar nenhum obstáculo. Passaram

o dia dedicadas a avançar na direção das montanhas nevadas e só pararam

para pedir informações às criaturas de longos cabelos prateados. A noite,

apearam numa campina acolhedora. Não tinham visto mais nenhuma aldeia

selada pelo caminho. Tudo à sua volta parecia próspero e tranqüilo.

À medida que os dias passavam, as plantações tornavam-se mais

raras, e as aldeias espaçavam-se. Ao fim de uma semana de viagem, numa

manhã as meninas chegaram ao sopé das montanhas de cumes eternamente

nevados. Mais próximas de seu objetivo, começaram a perguntar onde

poderiam encontrar Oonagh. Felizmente, vinha passando um velho montado

num burro.

—Por favor, poderia nos dizer onde fica a casa de Oonagh? —

perguntou Âmbar.

—Estou vindo de lá — disse o homem com um sorriso desdentado.

— Tive um bocado de trabalho para escapar dos rapinantes, mas consegui.

—Como é que se chega até lá? — perguntou Âmbar.

O homem mostrou uma montanha cujo pico se perdia nas nuvens.

— É naquela montanha, mas não lá em cima — garantiu ele. —

Basta seguir uma trilha que existe ali. Vocês vão ver. A única dificuldade é

escapar dos rapinantes. Felizmente, eles só perturbam quem está subindo, e

deixam em paz quem está voltando, como eu.

As meninas agradeceram e dirigiram-se para a montanha indicada.

Uma trilha conduzia pelo lado menos escarpado. Primeiro, elas atravessaram

Page 155: A profecia das pedras

um bosque denso. O caminho sinuoso desdobrava-se por entre as árvores.

Até ali, nenhum rapinante tinha aparecido. Mas, quando o caminho se

tornou mais íngreme e imponentes pinheiros substituíram a agradável

floresta, os cavalos começaram a ficar nervosos, a se agitar e relinchar em

pânico. Âmbar tentou ler os pensamentos de seu cavalo. Sentiu seu medo,

mas não percebeu o motivo.

Depois de muitas tentativas, conseguiu entrar em contato com o

animal.

— O que há com você? — perguntou.

O cavalo só conseguiu responder alguns minutos depois. Sob efeito

do terror, tinha esquecido suas habilidades. Finalmente, anunciou com toda

a clareza:

— Não vou conseguir ir muito longe. Se prosseguir, sucumbirei aos

rapinantes. Vá você. Esperarei aqui.

Âmbar percebeu que não adiantava insistir. Explicou a situação a

Jade e Opala, que concordaram em subir à pé.

— Vamos carregar apenas o essencial, só a comida —

decidiu Jade. — O resto, pegaremos mais tarde.

Cada uma pegou um pequeno saco com mantimentos. Depois,

recomeçaram a subida.

Viajando a pé, o cansaço chegava mais rapidamente. Ainda assim,

fizeram o menor número de paradas possível. Subiram em silêncio,

economizando fôlego. Jade queimava de curiosidade à medida que se

aproximavam da casa de Oonagh e as outras partilhavam de sua ansiedade.

Estavam quase chegando a seu objetivo e isso fazia com que redobrassem os

esforços. Só tinham pensamentos para a criatura mágica e para as

revelações que ela lhes faria. Âmbar lembrou-se do símbolo que as pedras

haviam transmitido e de Jean Losserand, que o tinha traduzido dizendo que

elas precisavam ir ver Oonagh. Lembrou-se de tudo o que tinha vivido nos

últimos tempos, desde que tinha cruzado o caminho de Jade e Opala.

Finalmente, a noite caiu sobre a floresta de pinheiros. Jade achou

que era impossível continuar na escuridão e as meninas instalaram-se numa

ampla clareira. Quando começaram a jantar, a tensão se fez sentir. A

floresta, mergulhada na escuridão, parecia ainda mais ameaçadora e hostil.

Âmbar julgou escutar gritos terríveis ao longe. Lobos, talvez. Começou a

Page 156: A profecia das pedras

tremer. As sombras debruçavam-se sobre todos os lugares. Âmbar achava

que um par de olhos amarelos cintilava atrás das árvores. Seu brilho cruel,

maligno, dirigia-se diretamente para ela.

Quando Jade deixou cair uma maçã de sua sacola, Âmbar deu um

grito, pois estava com os nervos à flor da pele.

—Acalme-se — disse Jade com a voz ligeiramente trêmula. —

Desse jeito, você me assusta.

—Fique tranqüila, Âmbar, está tudo bem — disse Opala para

deixá-la mais segura.

—Mas... e se os rapinantes aparecerem durante a noite, quando

estivermos dormindo? — balbuciou Âmbar.

—Essa idéia gelou o sangue de Jade e até mesmo Opala sentiu um

calafrio.

—Não podemos nos privar de sono — argumentou Jade.

—Nada vai acontecer — afirmou Opala, com a voz bem menos

segura do que antes.

Sem apetite, as meninas deitaram-se e respiraram profundamente,

procurando o sono. Ninguém conseguia dormir. Uma angústia desmedida

estava tomando conta delas. O silêncio era insuportável. Finalmente, Jade

propôs conversarem para relaxar um pouco. Âmbar e Opala acharam ótima

a idéia.

A noite dissimulava as expressões dos rostos e era propícia para

confidencias. As palavras vinham com facilidade. Jade falava de sua vida no

palácio de Divulyon. Assim como as outras, ela esquecia sua aflição e

confessava a saudade e o desamparo que sentia. Âmbar contou pela

primeira vez como tinha sido a morte daquela que julgava ser sua mãe.

Contou como a revelação de Beah Jardun a tinha perturbado. Depois,

narrou em detalhes a traição de Janelle.

Quando chegou a vez de Opala falar, Jade e Âmbar imaginaram

que ela fosse ficar calada. Mas, primeiro hesitante, quase tímida, acabou

contando como era sua antiga vida sem surpresas. Depois, mais animada,

disse que, apesar de parecer indiferente, gostava bastante de sua nova vida.

Umedeceu os lábios, fez uma pausa, e encerrou comentando como tinha

"apreciado" a companhia de Adrien.

Jade e Âmbar foram gentis: fizeram de conta que jamais tinham

Page 157: A profecia das pedras

percebido nada.

Quando as pálpebras começaram a pesar, a angústia já havia

abandonado as meninas.

À revelia delas, alguma coisa tinha mudado naquela noite. Depois

de terem falado tão abertamente de seus sentimentos, não poderiam nunca

mais ser inimigas. As pedras e a aventura em comum já as tinham

aproximado, mas foi essa conversa que as ligou definitivamente.

As meninas continuaram a jornada na ampla floresta de pinheiros.

O ambiente entre elas estava mais leve do que o habitual. Volta e meia, um

acesso de riso quebrava o silêncio. Jade, Opala e Âmbar contavam piadas e

brincavam umas com as outras. O cansaço as fazia sofrer e a subida

continuava íngreme. Mas, até o momento, parecia não haver perigo à vista.

Âmbar acabou se convencendo de que os uivos que escutara eram fruto de

sua imaginação. Chegaram a se perguntar se os rapinantes existiam

mesmo...

Assim, o dia transcorreu tranqüilamente.

A noite as encontrou sob uma clareira onde, exaustas,

mergulharam no sono.

No dia seguinte, Opala levantou-se de madrugada. Tinha tido um

pesadelo horrível. Embora não se lembrasse direito dele, o medo ainda

estava bem forte. Seu rosto estava molhado de lágrimas e ainda sentia o

coração disparado. Levou longos minutos para se recuperar.

Jade e Âmbar acordaram em seguida. Também tinham um ar

assustado.

— Não estou me sentindo bem — disse Âmbar. — Estou enjoada,

com calafrios... E não sei o motivo.

Jade pensou um pouco e depois falou, num tom fatalista:

— Acho que estamos nos aproximando dos rapinantes.

Amnhor disse que eles emitem ondas que provocam o terror. Mas não devem

estar muito perto, já que ainda não estamos em pânico.

Âmbar achou que ia desmaiar. Tinha acreditado que era capaz de

enfrentar os rapinantes. Mas, agora, que estava quase na hora de enfrentá-

los, sua determinação ia por água abaixo.

As meninas levantaram-se e trocaram olhares apreensivos.

— Vamos voltar? — propôs Âmbar de repente.

Page 158: A profecia das pedras

Jade e Opala pensaram um pouco. Era uma proposta tentadora.

Quase concordaram. Mas Jade suspirou:

— Lutamos tanto para chegar até aqui! Desde a libertação de

Nathyrnn até hoje, arriscamos nossas vidas tantas vezes só para ver

Oonagh. Agora, que estamos tão perto de conseguir, não podemos

simplesmente abandonar tudo e dar meia volta.

As outras duas tiveram que reconhecer a justeza de suas palavras.

—Bom, de qualquer maneira, temos a poção...

—Mas só podemos usá-la em último caso — lembrou Jade.

E assim prosseguiram viagem. Dessa vez, nervosas, não

conseguiam nem sequer entabular uma conversa. Avançavam lentamente,

oprimidas pela imagem que faziam dos predadores. Opala guardava o frasco

de Amnhor em sua sacola. Pegou-o, olhou-o e tornou a colocá-lo no mesmo

lugar, tranqüilizada pelo contato com o vidro liso.

Os minutos pareciam mais longos, como se o tempo tivesse ficado

preso em algum lugar, e cada momento trazia uma angústia mais

insuportável do que o anterior. As meninas esperavam o ataque dos

rapinantes a qualquer instante. Eles surgiriam do nada, rasgariam o ar e se

atirariam sobre elas. No entanto, nenhum deles apareceu.

Quando o sol já estava a pino, deixaram a floresta. Arbustos

substituíram os pinheiros e a subida tornou-se ainda mais escarpada. Pouco

a pouco, os arbustos tornaram-se mais raros, e, finalmente, deram lugar a

uma vegetação rasteira, salpicada por algumas flores mirradas. Âmbar

olhava ansiosamente para o céu. Ofuscada pela claridade do sol, esfera de

fogo no meio de um oceano de intenso azul, não viu nem sombra dos

temidos predadores.

Mesmo assim, as meninas sentiam o medo crescer dentro delas.

Pouco tempo depois, mal conseguiam suportar o terror que as sufocava.

Caminharam ainda por uma hora, mas seus passos tornavam-se cada vez

mais lentos.

Subitamente, Âmbar percebeu silhuetas ameaçadoras com

imensas asas abertas recortadas contra o céu claro. Os rapinantes voavam

muito alto, mas era fácil identificá-los. Quando as meninas os viram,

sentiram-se envolvidas por um turbilhão de pavor.

Eles não pareciam ter percebido a presença delas e continuavam a

Page 159: A profecia das pedras

planar no céu. Mas seu poder logo se fez sentir. Opala conseguiu, por

milagre, manter alguma calma. Mesmo arrepiada, tentava se convencer de

que não podia deixar que o medo tomasse conta dela.

Jade cerrou os punhos, jogou os cabelos negros para trás e se opôs

firmemente ao terror que a assaltava. Ela tremia, seu coração batia

furiosamente, mas ainda era dona de si.

Âmbar, no entanto, estava aterrorizada. Não conseguia parar de

imaginar que os rapinantes iriam atacá-la e devorá-la. Seus joelhos tremiam,

seus membros eram percorridos por tremores convulsivos. Não conseguia

tirar os olhos dos rapinantes.

— O frasco... — conseguiu balbuciar. — Preciso dele, Opala.

Mas Opala não cedeu. Os rapinantes ainda não estavam atacando

e Amnhor recomendou que só utilizassem a poção no último momento.

Os rapinantes iniciaram uma lenta descida. Eram mais de

cinqüenta, uma nuvem que cobria o céu. Já era possível perceber sua

plumagem acinzentada e, sobretudo, seu porte assustador. Eram duas ou

três vezes maiores do que um homem.

Âmbar gritou, certa de estar vivendo seu pior pesadelo.

Até mesmo Opala se sentiu fraquejar.

Os rapinantes concentraram-se, unindo suas forças. Eles

alimentavam-se do medo. Por isso, era preciso que o terror de suas presas

atingisse o paroxismo. E, para isso, existia um meio quase infalível.

As meninas não demoraram em descobrir qual era. Os rapinantes

mergulharam a cerca de dez metros de onde elas estavam. Desde que eles

tinham se aproximado, elas já não conseguiam mais caminhar. No entanto,

agora, diante de seus longos bicos curvos e das garras afiadas, o pânico

tomou conta delas.

Mas o pior ainda estava por vir. Os rapinantes despertaram os

medos mais apavorantes que existiam dentro de cada uma, aquilo que elas

mais temiam. Agora, a maior parte deles estava a uma distância de apenas

cinco metros. Seus olhares agudos refletiam a concentração, a avidez e a

vontade de vencer.

Page 160: A profecia das pedras

A imagem de Adrien à beira da morte atingiu brutalmente a mente

de Opala. Parecia que ela estava vendo o rapaz morrer. Tinha o torso

ensangüentado, os olhos revirados e ela não podia falar com ele, nem fazer

nada. A dor e a raiva invadiram seu coração.

Jade foi confrontada com o nada, com a eternidade infinita. A

menina vacilou, cegada pelo abismo escuro, sem fundo. Em seguida, surgiu

a imagem de seu pai adotivo, velho e doente, sobre seu leito de morte. As

lágrimas inundaram seus olhos quando a menina o viu tão magro e

vulnerável. Logo, a imagem se desvaneceu e o Conselho dos Doze

materializou-se diante dela, com todo o seu maléfico poder. Eles planejavam

sua morte em detalhes e enviavam o exército das Trevas em seu encalço.

Jade deixava-se vencer sem reagir.

Âmbar viu surgiram tantas imagens, tantos sentimentos, que tudo

se confundiu. Sentia que era impossível ir até onde estava o horror.

Então, milagrosamente, sentiu que o medo a abandonava. E teve

presença de espírito suficiente para lembrar que os rapinantes absorviam

todo o medo de suas vítimas antes de atacá-las. Debilmente, conseguiu

pedir:

— Opala, a poção...

A voz de Âmbar sobressaltou Opala e a levou a recuperar seus

sentidos. Vasculhou nervosamente sua sacola, encontrou o frasco de vidro

azul e jogou-o para Âmbar. A menina o segurou com firmeza. Percorrida por

um espasmo de terror, destampou o vidro e bebeu um gole do líquido. Mas

tremia tanto que o vidro escapou de suas mãos, caiu no chão e partiu-se em

mil pedaços. O gole que restava perdeu-se na vegetação.

Opala lançou um olhar desesperado na direção de Âmbar. A única

chance que tinham de se salvar estava perdida.

O efeito da poção foi imediato. Os rapinantes sentiram que a presa

lhes escapara. Pouco a pouco, todos os sentimentos de Âmbar

desapareceram. Ela ficou de pé, com o rosto sem nenhuma expressão,

observando os arredores com indiferença. Viu os rostos convulsionados de

Jade e Opala, mas a idéia de ajudá-las não passou por sua cabeça. Não

pensou em ir embora, nem em se refugiar em algum lugar, nem sequer

percebia o perigo que corria.

— As pedras! — gritou Opala. — Peguem as pedras!

Page 161: A profecia das pedras

Jade obedeceu maquinalmente. Âmbar a seguiu por reflexo. Mas,

como ela não estava realmente humana, nem exatamente viva, nada

aconteceu. Sem sentimentos, ela não era uma pessoa real.

No entanto, do fundo de seu torpor, Âmbar percebeu uma brecha

no solo. Aproximou-se e viu um caminho estreito, que mergulhava na

direção das entranhas da terra. Opala a viu embrenhar-se pela passagem

subterrânea e abandoná-las. Sentiu que o pânico a invadia, mas tentou

afastar o medo com todas as suas forças.

Olhou para Jade e percebeu que o medo da menina tinha sido

absorvido pelos rapinantes. Jade sorria com um ar beatífico. Um predador,

que se mantinha mais afastado dos outros, lançou-se sobre a menina com

uma velocidade estonteante. Opala não hesitou nem um segundo. Sentiu

que triunfaria sobre seu medo, que o esqueceria, caso se concentrasse em

salvar Jade. Jogou-se sobre a companheira a tempo de evitar que as garras

do rapinante a capturassem. Com o forte empurrão, as duas

desequilibraram-se e caíram. Opala levantou-se e mandou que Jade a

seguisse.

Mas a menina não escutava mais nada. Não entendia por que

precisava fugir. Opala jamais soube como conseguiu carregá-la nos braços.

O predador, no entanto, havia retomado altitude, como se a cena o

divertisse muito e quisesse aproveitar melhor o espetáculo. Não admitiria

perder uma presa. Os outros permaneceram imóveis. Apenas o líder tinha o

direito de ficar com a caça, os outros contentavam-se com o medo de suas

vítimas. Mal Opala havia avançado alguns passos, percebeu que o rapinante

iria atacar novamente. Dessa vez, ele não se deixaria enganar.

Ela não tentou correr. Continuou a caminhar com dificuldade e

criou um vazio dentro de si. Não procurou o cálido contato com sua pedra.

Contava apenas consigo mesma, numa derradeira tentativa. Pouco lhe

importava que os outros entregassem os pontos e achassem que não

adiantava resistir. Ela lutaria. Concentrou-se e reuniu todas as suas forças.

Os rapinantes não podiam vencê-la, repetiu-se em silêncio e com crescente

convicção. Uma esperança louca começou a crescer em seu coração. Pouco a

pouco, um suave calor a envolvia. Parecia que estava em contato com sua

pedra. Sentiu as garras afiadas cravarem-se em sua carne, feri-la, e viu-se

lentamente erguida no ar. Continuou a segurar Jade com firmeza. Não tinha

Page 162: A profecia das pedras

mais medo. Pelo contrário, um sorriso espalhava-se pelo seu rosto. Seus

cachos louros embaraçavam-se, ela sentia-se mal, o sangue jorrava de sua

pele pálida onde o rapinante tinha cravado suas garras, mas ela não se

preocupava. Impassível, fechou seus olhos de um azul mais puro do que o

céu e continuou a esperar.

O rapinante começou a perder altitude. Opala não reagiu, nem

manifestou nenhum tipo de alegria. Apenas a esperança ocupava seu

coração. Quando reabriu os olhos, o rapinante estava parado a cerca de dois

metros do solo. A contragosto, muito lentamente, afrouxou a pressão que

suas garras exerciam sobre Opala e deixou que a menina caísse no chão,

juntamente com Jade, que continuava a não esboçar nenhuma reação.

Tomados por um mal-estar inexplicável, pouco a pouco, os

rapinantes começaram a desaparecer no céu. Jade voltou a si. Opala

indicou-lhe o caminho por onde Âmbar havia enveredado. Antes de segui-la,

Opala lançou um último olhar para o céu agora tranqüilo e esboçou um

sorriso.

25 Jade e Opala avançaram tateando pelo túnel escuro. Mal tinham

atravessado alguns metros, esbarraram com uma forma encolhida. Apesar

da escuridão, imediatamente reconheceram Âmbar, sentada no chão, com os

joelhos dobrados e a cabeça entre as mãos. Seus soluços ecoavam pelo

subterrâneo.

— Âmbar! — exclamou Jade. — Está tudo bem com você?

Âmbar levantou-se num salto.

—Vocês estão aqui! — gritou a menina, secando as lágrimas. — Eu

abandonei vocês! Achei que as tinha perdido para sempre!

—E por que não voltou para nos ajudar quando passou o efeito da

poção? — inquiriu Jade.

—Não consegui — choramingou Âmbar. — Só agora voltei ao

normal e achei que já seria tarde demais para salvá-las. Como conseguiram

chegar até aqui?

Jade contou o que tinha acontecido desde que Âmbar as tinha

abandonado. Opala completou o relato, sem conseguir explicar o motivo pelo

Page 163: A profecia das pedras

qual os rapinantes tinham fugido.

Jade agradeceu imensamente a Opala por ter salvo sua vida.

Âmbar, ainda sob efeito da emoção, abraçou as companheiras, aliviada por

tê-las encontrado.

—E agora, o que vamos fazer? — perguntou Jade, preocupada. —

Se os rapinantes voltarem...

—Eles não podem nos atacar duas vezes — lembrou Opala. — Mas

gostaria de seguir por esse caminho subterrâneo. Ele deve levar a algum

lugar e estou curiosa para saber qual é.

Depois de uma rápida discussão, decidiram seguir a opinião de

Opala e, ainda perturbadas pelos acontecimentos recentes, as meninas

embrenharam-se nas profundezas da terra. Estranhamente, em vez de ficar

mais escuro, o túnel tornava-se cada vez mais claro. Era possível enxergar

claramente tudo o que as cercava. Não era apenas uma brecha que deixava

passar um raio de sol. Forte, potente, sobrenatural, a luz parecia emanar de

todos os lugares ao mesmo tempo.

Ao fim de uma longa caminhada, as meninas pararam,

apavoradas. Um som de passos, cada vez mais próximos, ressoava pelo

túnel. Com o coração disparado, esperaram ver surgir uma criatura terrível,

mas quem apareceu foi uma menina. Não devia ter mais de cinco anos, e o

fato de não ser humana não a tornava menos encantadora. Uma candura

refrescante emanava da menina. Tinha a pele de um azul muito pálido; o

vestido branco, rodado, deixava seus graciosos braços e as perninhas curtas

à mostra. Imensos olhos violeta destacavam-se em seu rosto sério e inocente.

Uma cascata de cabelos louros derramava-se sobre seus ombros e ia até os

pés descalços.

—Bom dia — disse a menina, com uma voz cristalina.

As meninas sorriram para ela.

—Quem é você? — perguntou Âmbar gentilmente.

— Você mora aqui?

A menininha contentou-se em rir alegremente, deixando à mostra

dentes de um branco imaculado.

— Como é o seu nome? — tornou a perguntar Âmbar

com sua voz suave.

Mas a menina teimava em manter-se calada, com um ar

Page 164: A profecia das pedras

desembaraçado e misterioso.

—Estamos à procura de Oonagh — disse Jade. — Sabe dizer se

estamos no caminho certo?

—Oonagh, Oonagh — repetiu a menina com um ar malicioso. —

Posso ajudá-las.

—Obrigada — disse Âmbar. — Mas como vai nos ajudar?

—Basta me seguir. Conheço Oonagh. Venham.

Com essas palavras, a menina saiu saltitando. Sem hesitar, Jade,

Opala e Âmbar seguiram-na. Ela cantarolava alegremente uma musiquinha

cuja letra era apenas "Oonagh, Oonagh", como se fosse o nome mais

engraçado do mundo. De vez em quando, lançava olhares divertidos na

direção das meninas, que a seguiam, curiosas.

O túnel subdividia-se em muitas passagens, mas a menina andava

por ali com segurança, tomando caminhos que lhe eram visivelmente

familiares. Enfim, uma hora mais tarde, chegaram diante de um muro muito

pouco comum, que resplandecia de tanta luz. Jade, Opala e Âmbar,

ofuscadas, escutaram a voz límpida da menina convidar:

— Podem entrar na luz. Ela não fará nenhum mal a vocês.

Dito isso, a menina atravessou o muro de luz.

—O que vamos fazer? — perguntou Âmbar, alarmada.

—Não temos escolha — disse Jade. — Ou voltamos sobre nossos

passos, sem a menina, e corremos o risco de nos perder, ou a seguimos e

tentamos atravessar o muro.

Âmbar nem teve tempo de protestar. Jade avançou e desapareceu

na luz. Opala tentou segui-la, mas Âmbar a reteve:

—Ninguém sabe o que existe atrás dessa passagem! Acho que não

devemos entrar!

—Não podemos abandonar Jade — retrucou Opala. — Se ela

estiver em perigo, deveremos estar com ela.

Resignada, Âmbar avançou e a luz a engoliu, ao mesmo tempo que

engolia Opala.

Atravessaram o muro como se ele fosse impalpável. Do outro lado,

um espetáculo inacreditável as esperava. As paredes eram forradas de

cristais multicoloridos, cujas luzes e cores resplandecentes iluminavam o

ambiente.

Page 165: A profecia das pedras

Opala e Âmbar viram Jade, que estava tão maravilhada quanto

elas.

— E daqui que vem toda a luz que ilumina o túnel — observou

Âmbar, encantada.

Olharam em volta, procurando a menina que as tinha trazido até

aquele lugar feérico, e a viram atrás de uma árvore.

— Oonagh, Oonagh, é aqui que ela mora.

— É mesmo? — entusiasmou-se Jade. — E onde está ela?

A menina caminhou em sua direção, com o olhar subitamente sério:

— Oonagh sou eu — disse ela simplesmente.

Era impossível duvidar de suas palavras. Sua voz era franca e

direta. As meninas a olharam de um modo diferente e perceberam melhor a

expressão refletida em seu sorriso infantil. Jade olhou dentro de seus olhos e

logo compreendeu que ela não mentia. Nos grandes olhos violeta refletia-se

um turbilhão de anos, pensamentos, alegria, sabedoria, experiência,

felicidade e infelicidade... Jade achou que poderia se perder nesse olhar de

quem tanto viveu. Compreendeu que, sob a aparência frágil e infantil,

Oonagh tinha visto passar mais tempo do que ela jamais chegaria a ver.

— Já estava na hora de vocês aparecerem — disse a criatura

mágica. — Eu estava esperando por vocês.

Os corações das três meninas começaram a bater como tambores.

Subitamente, Jade tomou a palavra:

— Quem são nossos pais? Por que fomos expulsas de nossas

casas? Que perigo nos ameaça? Por que o Conselho dos Doze está à nossa

procura?

Com o rosto em fogo, ela preparava-se para continuar quando seu

olhar encontrou-se com o de Oonagh. Jade calou-se.

Então, a voz clara de Oonagh elevou-se e encheu a sala inteira:

Das trevas surgirá o Eleito

Para unificar o Reino

E conduzi-lo à luz.

O rei que não reinará

Será consagrado em nome do Dom

Três pedras, três meninas

Page 166: A profecia das pedras

Uma descobrirá o Dom

Uma reconhecerá o Rei

Uma convencerá as outras a morrer

De três pedras restará apenas um destino.

— Já faz séculos que as pessoas repetem esse trecho da Profecia —

acrescentou Oonagh. — Esperamos pacientemente por vocês. Seu destino

está traçado. Só o seu fim é que é incerto.

Um calafrio percorreu as três meninas.

—Não entendi nada — disse Âmbar.

—Uma convencerá as outras a morrer — exasperou-se Jade. — O

que quer dizer isso? Que uma de nós vai levar as outras à morte?

Perturbada por suas próprias palavras, Jade calou-se. Um silêncio

pesado abateu-se sobre o ambiente. Então, era por isso que deveriam ser

inimigas: uma delas trairia as outras e as levaria à morte.

— Que horror! — exclamou Jade. — Isso não pode ser verdade!

— Nenhuma de nós vai fazer isso!

Oonagh permaneceu em silêncio.

—Quem é o Eleito? — perguntou Opala para mudar de assunto.

—Daqui a menos de duas semanas, haverá uma grande batalha —

explicou Oonagh. — Neophileus fixou a data. O mal e o bem irão se

confrontar nos campos de Lá Fora, diante do campo magnético de Conto de

Fadas. De um lado, estará o exército das Trevas, acompanhado pelo

Conselho dos Doze e pelos cavaleiros da Ordem. De outro, estará o exército

da Luz.

—Quem faz parte desse exército? — perguntou Âmbar.

—Todos os que querem lutar pela liberdade. Cavaleiros, homens,

criaturas... O exército da Luz está prestes a reunir-se. Mas não poderá

combater enquanto o Eleito não aparecer. É ele quem deverá conduzir o

exército da Luz à vitória e, se preciso, dar sua vida para isso. No entanto, o

Eleito ainda não apareceu. Ninguém sabe quem ele é, talvez nem mesmo ele

saiba... Vocês devem ir ao Palácio de Yrianz de Myrnel. Uma parte do

exército está lá, esperando pelo Eleito. Está dito na Profecia que uma de

vocês o reconhecerá. Talvez, ele já esteja lá. Se não estiver, procurem-no e

encontrem-no!

—Como vamos chegar até esse palácio? — quis saber Jade.

Page 167: A profecia das pedras

—Não se preocupe. Um homem de confiança guiará vocês. Seu

nome é Rockdar. Ele é um dos conselheiros da Morte.

As meninas trocaram olhares espantados.

— E preciso que vocês procurem a Morte — declarou Oonagh. —

Para que a batalha ocorra, ela precisa encerrar sua greve. E só vocês são

capazes de trazer essa criatura teimosa à razão.

Enquanto Oonagh procurava alguma coisa num canto da sala, as

meninas permaneciam inquietas. Procurar a Morte? Trazê-la de volta à

razão? Como conseguir uma coisa dessas? Oonagh voltou trazendo um mapa

para guiá-las até o sombrio país da Morte.

De repente, Jade falou, com a voz estranhamente séria:

— Toda essa história de Eleito e de batalha é muito bonita, mas

gostaria de saber o que eu tenho a ver com isso. Quero saber quem sou eu.

— Vocês são as três pedras da Profecia — explicou Oonagh. — São

aquelas que farão o mundo inclinar-se para o lado do bem ou para o lado do

mal. Enquanto os dois exércitos estiverem se confrontando, vocês irão a

Thaar, a cidade das Origens, onde ocorrerá seu último combate.

— E também é lá que uma de nós vai levar as outras à morte? —

perguntou Jade com um tom agressivo. — Pois para mim chega! Por que eu

deveria ir conversar com a Morte e depois procurar o Eleito? Por que ir a

Thaar para me bater no "último combate", o que significa, falando

claramente, me deixar massacrar? Por que eu não poderia simplesmente

voltar para minha casa? O que me obriga a arriscar minha vida desse jeito?

Não quero mais ter medo! Estou cansada de me fazer perguntas sem

resposta!

Ela parou para recuperar o fôlego.

—Agora — disse ela mais calma — diga o que me impede de

retornar tranqüilamente a meu palácio, de rever meu pai e viver em paz.

—Jade, o exército da Luz precisa de vocês três para vencer o

combate. Se não lutarem, o mal vencerá.

—E daí? O que é que eu tenho a ver com isso?

—Você tem que ir a Thaar — prosseguiu Oonagh — porque seus

pais sacrificaram-se por você. Eles deram a vida para protegê-la porque

sabiam que, um dia, você lutaria contra as Trevas. Você não tem o direito de

traí-los.

Page 168: A profecia das pedras

—Eles morreram? — gritou Jade. — Estão mortos?

—Eles deixaram você num lugar seguro antes de serem executados

pelo exército das Trevas, ou pelo Conselho dos Doze. Pelo Mal.

—Mas quem eram eles? Como se chamavam?

—Do que adiantaria saber agora? Você não deve viver no passado.

Não sofra pelo que é irremediável. Dedique sua energia àquilo que ainda

pode mudar. Você não tem o direito de renunciar ao combate.

—E meus pais? — perguntou Opala.

—Infelizmente não foram poupados — murmurou Oonagh. —

Foram obrigados a fugir para esconder você. O exército das Trevas e o

Conselho dos Doze eram muito fortes e os perseguiram. Seus pais não

conseguiram escapar. Tinham adivinhado qual seria o destino deles. Por

isso, entregaram você a pessoas nas quais eles depositavam inteira

confiança.

— Até agora, você não respondeu à minha pergunta — interveio

Jade. — Quem somos nós? Por que temos tantos inimigos?

—O Eleito e vocês... são os encantadores da Luz — explicou

Oonagh, muito seriamente.

Um profundo silêncio acompanhou a revelação.

—Sei! — disse Jade, por fim. — E daí?

—Escutem. Vocês já nasceram com essas pedras nas mãos. Elas

lhes conferem um poder considerável, mas só pertencem a vocês, fazem

parte de vocês. Até completarem catorze anos, o Dom estava adormecido.

Ainda não estava pronto para ser revelado. Era fundamental que vocês só o

descobrissem na hora certa e, sobretudo, que o descobrissem juntas.

Sozinhas, vocês são vulneráveis e seu Dom não lhes serve para nada.

Opala estremeceu. Tinha encontrado sua pedra antes da hora, mas

jamais tinha pensado que aquilo teria alguma conseqüência. Oonagh franziu

as sobrancelhas.

— Opala, seu coração me revela o que você está tentando esconder.

O que eu vejo é ruim, muito ruim. Se você tiver pego sua pedra cedo demais,

seguramente atraiu a atenção do Conselho dos Doze. Talvez eles tenham

conseguido acesso a seu espírito por telepatia...

Oonagh suspirou profundamente:

—Paciência. O que está feito, está feito. Então, eu dizia que, desde

Page 169: A profecia das pedras

o dia em que completaram catorze anos, seu Dom vem se desenvolvendo.

Mas era preciso que passassem por diversas provas para amadurecê-lo. Vir

até aqui foi a última etapa necessária para que ele chegasse à sua plenitude.

Se vocês tivessem descoberto seu papel cedo demais, seu poder pararia de

crescer.

—Resumindo — disse Jade — , fomos expulsas de nossas casas

porque, aos catorze anos, nosso pretenso Dom deveria se manifestar e

precisaríamos estar juntas para descobri-lo. Em seguida, precisávamos viver

uma aventura apavorante para, no fim, decidir o destino do mundo. Você

não acha que é um pouco demais? Ainda mais porque o fim da história não

parece lá muito feliz, já que duas de nós devem morrer.

—É assim — disse Oonagh.

—É mesmo? — berrou Jade. — Você acha que somos malucas?

Não vamos viajar até Thaar, para, deliberadamente, nos deixar matar!

—Você tem alguma outra escolha? Se preferir, volte para casa.

Tanto o Conselho dos Doze quanto o exército das Trevas a encontrarão e

matarão. Vocês três são capazes de mudar muitas coisas. É questão de

decidir se vale a pena ou não. Mas, saiba, Jade, que se você não for a Thaar

e sobreviver, talvez não seja odiada pelos outros, mas terá vergonha de si

mesma.

Jade não pôde contestar Oonagh. Sabia que ela dizia a verdade,

mas tentara se persuadir do contrário.

— E esse famoso Dom, o que é? — quis saber Opala.

— Uma descobrirá o Dom — respondeu Oonagh. — São as

palavras de Neophileus. Não sou eu quem deve explicar o que uma de vocês

deve compreender.

A despeito da avalanche de perguntas das meninas, Oonagh não

disse mais nada. Voltou a seu sorriso inocente de menina e começou a

cantarolar:

Das trevas surgirá o Eleito

Para unificar o Reino

E conduzi-lo à luz.

O rei que não reinará

Será consagrado em nome do Dom.

Três pedras, três meninas

Page 170: A profecia das pedras

Uma descobrirá o Dom

Uma reconhecerá o Rei

Uma convencerá as outras a morrer

De três pedras restará apenas um destino.

Jade, Opala e Âmbar compreenderam que Oonagh não diria mais

nada e, movidas por uma vontade comum, fizeram o caminho inverso e

atravessaram o muro de luz que as levaria a seu destino.

Paris, 2002 Acordei ofegante, ainda perturbada pelo sono agitado da noite

anterior. Lembrava-me em detalhes das revelações da criatura mágica de

olhos violeta, e as emoções de Jade, Opala e Âmbar me atingiam como se eu

as estivesse vivendo.

Novamente, o sonho interrompeu-se, devolvendo-me ao universo

frio e sombrio que era o meu. Lembro de ter chorado, revoltada contra a

injustiça que sofria, porque o sonho jamais conseguia me arrancar da

desesperada realidade em que eu vivia. Minhas lembranças escolheram esse

momento para voltar à superfície, enganosas e sofridas por trás de sua bela

aparência.

Dessa vez, eu me sentia desamparada demais para afastá-las. Elas

me invadiram, cintilando com uma alegria amarga. Eu me via como Joa.

Lembrava como era admirada. Era rica, pretensiosa. Minhas roupas faziam

todas as outras meninas morrerem de inveja. Todos toleravam meus

caprichos; eles eram obedecidos como se fossem ordens. Joa tinha péssimo

caráter, mas era mais sensível do que parecia. Recordava-me claramente dos

olhares fascinados que acompanhavam meus gestos, mas me lembrava

também dos poucos que zombavam de mim. Quando isso acontecia, eu me

refugiava num canto escuro e chorava No fundo, embora dissimulasse, eu

era muito frágil. Adorava me divertir à custa dos outros e é verdade que

estava longe de ser sensata e madura. Mas, às vezes, acontecia de conseguir

pensar seriamente, de me mostrar atenta. Eu era pura vitalidade, mas meu

coração era tenro. Só demonstrava minhas emoções quando não havia

ninguém por perto, quando estava bem longe da efervescência que eu

mesma suscitava.

Page 171: A profecia das pedras

Tinha acreditado na felicidade eterna. Os amigos que me rodeavam

pareciam sinceros e apegados a mim. Mas seus sorrisos só tinham a

aparência do mel. Quando a doença destruiu minha vida perfeita, eu achava

que encontraria apoio e companhia entre eles. Todos fugiram covardemente.

Estendida sobre um leito de hospital, com o corpo destruído pelo mal que me

devora, que interesse tenho eu para eles? Só meus pais continuaram a

cuidar de mim, mas a vida julgou que até mesmo esse consolo era supérfluo

e um acidente de carro os fez desaparecer para sempre. Que meus amigos

tivessem me abandonado, pouco a pouco aceitei. Mas entre eles encontrava-

se aquele que eu amava e que me amava. Também desapareceu. Eu não

sabia o que significava amar. Mas isso não me impedia de gostar dele, de

amá-lo à minha maneira, com minha inconsistência de então. Ele era

parecido com o Eleito do meu sonho, mas, como ele, não passava de um

desertor, um traidor que queria a luz quando só servia às trevas. Visitou-me

uma vez, uma única vez, e depois se foi para nunca mais voltar. Para mim,

isso é inaceitável.

26 Ao lado de Elforhys, o Inomeado cavalgava, arrasado pela horrível

notícia que acabara de receber. Ainda não compreendia como tinha podido

entregar sua alma ao mal. Até onde conseguia lembrar, sempre tinha

considerado as Trevas um inimigo temível, mas também repugnante. E, no

entanto, ele tinha feito parte das Trevas! O sinal do sombrio exército estivera

marcado em seu tornozelo esquerdo, e seu sangue ainda formava,

claramente, a lua encimada pelos números.

Por mais vis que fossem as intenções do cavaleiro das Trevas, sabia

que ele não tinha mentido. Agora, tinha saudades do tempo em que

desconhecia seu passado. A certeza de ter servido ao mal o atormentaria até

o fim de seus dias.

Profundamente perturbado com a revelação do encantador das

Trevas, Elforhys não conseguia dirigir palavra ao Inomeado. Continuaram o

caminho, abatidos e silenciosos. Finalmente, ao fim do terceiro dia de

entristecida cavalgada, ao cair da noite, Elforhys decidiu falar.

— Como é possível que um homem que eu julgava ser meu amigo

Page 172: A profecia das pedras

tenha sido um soldado das Trevas? Como é possível que tenha as mãos

sujas com o sangue de gente inocente?

O Inomeado não respondeu. Elforhys lançou-lhe um olhar oblíquo

que deixava à mostra todo o seu desespero. A voz da criatura mágica tornou-

se ligeiramente mais suave:

— Sei que você não se lembra de nada, mas eu acreditei em você.

Estava certo de que você era o Eleito. E, no entanto, você destruiu as vidas

que deveria salvar. Como posso crer que você mudou, que sua alma,

alimentada pela escuridão, acabou sendo inundada pela luz?

O Inomeado sustentou o olhar acusador de Elforhys, que

prosseguiu:

— Agora, que sentido existe em procurar Oonagh? O que ela

poderá ver dentro de seu coração cruel? Acho que nossos caminhos se

separam aqui. Espero nunca mais ouvir falar de você. Se um dia eu voltar a

cruzar seu caminho, espero que sua imagem já tenha desaparecido da

minha memória.

Com essas palavras, Elforhys deu meia volta e partiu a galope. Mas

o Inomeado chamou-o com voz rouca e gritou:

— Antes de decepcionar você, eu traí a mim mesmo. Nunca

imaginei ter servido às Trevas. Não tenho a menor idéia de como isso

aconteceu, mas posso assegurar que hoje eu preferiria morrer a me juntar a

esse tenebroso exército. Não sei se minha alma mudou de repente do mal

para o bem, mas o sangue que suja minhas mãos me faz sofrer mais do que

qualquer coisa que você possa imaginar.

Ao ouvir essas palavras, Elforhys voltou-se. Perscrutou os olhos

azuis-safira do hovalyn com seus olhos negros. Por trás de sua imensa

tristeza, podia-se perceber a força e a nobreza.

—Vamos admitir que isso seja verdade — disse secamente

Elforhys. — Por que eu deveria segui-lo? Você não é o Eleito e devo continuar

a procurá-lo. Para mim, é impossível estar perto de você sem pensar nas

atrocidades que deve ter cometido. Você é um assassino, não posso

esquecer.

—Segundo a sua opinião, portanto, devo carregar o peso de meus

erros até a morte?

—Você merece mesmo morrer.

Page 173: A profecia das pedras

—Mas eu mudei! — exclamou o hovalyn. — E não vou passar o

resto da minha vida carregando a vergonha do passado. Tenho remorsos, me

arrependo de tudo o que fiz, mesmo sem lembrar do que foi. Por que não

teria o direito de superar as faltas que cometi?

—Porque seu arrependimento não devolverá as vidas dos que

suplicaram não ser mortos por você — retrucou Elforhys, com desprezo. —

Ninguém muda da noite para o dia. As mortes que você provocou atrairão

sua própria morte!

—Então, deverei sofrer até o fim de meus dias?

—Não será mais do que justo.

O Inomeado se viu sozinho e abandonado ao próprio desespero.

Cavalgou assim por mais uma hora. Por fim, viu os contornos de uma casa

imponente, que se recortava contra a escuridão, e decidiu pedir abrigo ali

durante a noite. Apeou do cavalo e bateu à porta. Uma mulher robusta e

jovial o atendeu.

— Sou um hovalyn pobre e faminto e peço humildemente que me

dê abrigo.

—Seja bem-vindo — exclamou a mulher. — Está escuro demais aí

fora. Dormir ao relento numa noite dessas é perigoso. Entre e sente-se à

mesa, enquanto levo seu cavalo para a estrebaria.

O Inomeado agradeceu e sentiu-se melhor no ambiente acolhedor

que reinava na casa. Seguiu por um corredor de paredes brancas, repletas

de retratos, e escutou o barulho alegre que parecia vir de uma sala. Guiado

pelo som, foi parar num cômodo amplo, onde acontecia um animado

banquete. Cerca de cinqüenta pessoas riam e conversavam, enquanto

criados lhes serviam apetitosos pratos. Quando os convidados perceberam

sua presença, foram se calando pouco a pouco. Finalmente, um homem de

rosto largo e simpático, vestido com simplicidade, levantou-se e falou com

bonomia:

—Temos um convidado de última hora! Deixe que eu me apresente,

sou Tivann de 1'Orleys. Seja bem-vindo, sente-se conosco. Você não é um

hovalyn?

—Sou — respondeu o Inomeado.

— Ora, mas que interessante! Aproxime-se, sente-se. Vamos

conversar um pouco!

Page 174: A profecia das pedras

O Inomeado sentou-se ao lado de Tivann de 1'Orleys e serviu-se.

Naquele ambiente descontraído, tentava esquecer sua infelicidade.

—Então, você é um hovalyn — repetiu o homem que, visivelmente,

era o dono da casa.

—Sou — respondeu novamente o rapaz.

—Então, veja. Temos aqui uma coisa que, seguramente, chamará a

sua atenção — prosseguiu Tivann, com um ar misterioso. — Na minha

família, ele é transmitido de pai para filho... Trata-se de um anel encantado,

que não tem nada de original além de... Tivann de 1'Orleys interrompeu a

frase, saboreando seu efeito. Depois, baixando a voz, prosseguiu:

— Além de ser capaz de...

Mas o homem pareceu lembrar-se de alguma coisa e interrompeu o

que ia dizer.

— Amanhã você saberá — concluiu.

Intrigado, o Inomeado terminou de comer em silêncio, enquanto

observava os outros convidados. A sua frente, estava uma moça frágil e

delicada, mais elegante do que o resto dos hóspedes. Um longo vestido azul

celeste moldava graciosamente seu corpo. Seu rosto pálido era iluminado por

olhos de um verde muito claro, quase irreal. Seus lábios finos abriam-se

num vago sorriso. Seu olhar cruzou com o do Inomeado. Ela o examinou

com atenção e sorriu.

— Esta é minha filha, Orlaith — disse o dono da casa

ao hovalyn. — É a mais jovem de meus filhos, e também a mais sensível. Ela

é meu orgulho e também meu desespero. Uma tradição ancestral reza que

sua mão deve ser dada àquele que está destinado a possuir o tal anel

encantado de que lhe falei, a não ser que o dono do anel não a queira. Mas

duvido muito que isso aconteça. Orlaith é uma pérola.

O Inomeado calou-se, sem saber o que dizer. Quando acabou de

comer, confessou a Tivann que estava muito cansado e o anfitrião conduziu-

o até seu quarto. O Inomeado vestiu uma roupa de dormir muito bem

passada, deitou-se e sentiu o cheiro dos lençóis limpos. Mergulhou a cabeça

em um travesseiro de plumas e tentou pegar no sono, mas seus problemas

não o deixavam repousar. Sonhou com Tivann de l'Orleys, que lhe dizia "É

um anel encantado, capaz de... É um anel encantado, capaz de...". Depois, o

rosto de Orlaith aparecia e Tivann repetia: "É uma pérola".

Page 175: A profecia das pedras

Ao clarear do dia, o Inomeado foi acordado por vigorosas

sacudidas. Abriu os olhos e viu o rosto de Tivann de 1'Orleys debruçado

sobre o seu.

—Acorde, hovalyn — disse o homem animadamente. Aguardamos

sua presença na sala em dez minutos.

O rapaz vestiu-se apressadamente. Pegou sua espada encantada e

pensou em enterrá-la no coração. Não podia suportar o peso de seu passado.

Mas a curiosidade o salvou. Recolocou a lâmina na bainha e dirigiu-se

rapidamente à sala onde Tivann o aguardava. O que iria ele revelar? Seria

alguma coisa relacionada ao estranho anel?

Chegando ao salão, o Inomeado não pôde reprimir a surpresa. A

grande mesa de madeira retangular estava rodeada de pessoas, humanos e

criaturas mágicas. Alguns portavam imponentes armaduras, outros traziam

cicatrizes de feridas de guerra. Todos tinham uma expressão solene e

traziam a espada embainhada. Rapidamente, o Inomeado percebeu que

aquela era uma assembléia de hovalyns. A bela Orlaith também estava

presente. Parecia ainda mais frágil e luminosa no meio de todos aqueles

soldados.

A um sinal de Tivann, o Inomeado aproximou-se e tomou seu lugar

entre os homens. Perguntava-se o que aconteceria ali. Mas não demorou a

saber. Com seu rosto alegre e a voz calorosa, Tivann declarou:

—Amigos, essa assembléia reúne o número exato de hovalyns que

é necessário para perpetuar o costume que se transmite nesta casa há

muitas gerações. Cada um de vocês terá a oportunidade de experimentar o

anel encantado. Mas devo lembrá-los de que esta é uma empreitada

arriscada. Depois de uma pausa, Tivann prosseguiu:

— Há muitos séculos, desde que o primeiro voluntário se propôs a

experimentar o anel de 1'Orleys, a tradição pede que se faça uma reunião de

hovalyns, de acordo com ritos precisos. Hoje, o jovem corajoso que se

arriscará primeiro será Arthur de Farriéres.

Um jovem hovalyn, com ar auto-suficiente, apresentou-se.

— Se ele conseguir, terá a mão de minha filha e meu afeto. Se

fracassar, o voluntário que estiver ocupando o lugar seguinte na mesa

tentará sua sorte.

Cada vez mais intrigado, o Inomeado observava Tivann

Page 176: A profecia das pedras

atentamente. Este pigarreou e fez sinal à filha. Orlaith mergulhou a mão em

seu decote e tirou dali uma corrente de prata, onde cintilava um anel.

— Orlaith é a única pessoa que pode encostar este anel na pele

sem sofrer terríveis queimaduras. De acordo com a tradição, só a mais pura

das filhas de Orleys tem o privilégio de guardar o anel.

Depois, jogou um olhar para Arthur de Farriéres, que o sustentou

com fanfarronice.

—Hovalyn, está mesmo decidido a experimentar este anel

enfeitiçado por encantadores de tempos imemoriais? Aceita o risco que isso

envolve? Pense bem antes de responder, pois uma vez anunciada nessa

assembléia sua decisão será irreversível.

—Eu assumo o risco — respondeu Arthur de Farriéres, com um

sorriso orgulhoso dirigido a Orlaith, que desviou os olhos com um ar

intimidado.

—Antes de começar a prova, devo algumas explicações aos poucos

hovalyns aqui presentes que ainda não foram advertidos das propriedades

do anel de 1'Orleys. Neste anel reside um sortilégio muito poderoso: ele sabe

distinguir as almas impregnadas pelas trevas dos corações que só acolhem o

bem. Quanto mais as trevas tomarem conta de um homem, mais o anel se

mostrará impiedoso com ele, pois esta é uma jóia que só tolera a inocência e

a justiça. No entanto, mesmo homens honestos e de vida irrepreensível

podem ser submetidos a danosas conseqüências. Por isso, é preciso refletir

bastante antes de se candidatar a experimentar o anel de 1'Orleys.

Uma sombra misteriosa passou pelo olhar de Tivann:

— Este anel foi forjado com uma única finalidade: reconhecer

aquele que esperamos ao longo dos séculos. Quando encontrá-lo, o anel

desaparecerá. Trata-se de um anel encantado. Ele é capaz de encontrar o

Eleito.

O Inomeado sentiu um calafrio. Pensou em fugir da sala, mas suas

pernas se dobraram sozinhas, sua visão escureceu. Mas conseguiu se

recompor e sua fraqueza passou despercebida.

Orlaith tirou o cordão de prata de seu pescoço e colocou o anel na

palma da mão.

— Eu sempre soube que sou o Eleito — disse Arthur de Farrières.

—Jamais me considerei um simples hovalyn. A prova não me assusta nem

Page 177: A profecia das pedras

um pouco.

Orlaith botou o anel no dedo de Arthur. O aro de ouro branco,

habilmente cinzelado, logo se liquefez num turbilhão que começou a girar em

torno do dedo do rapaz. Seu rosto mostrava um pavor crescente. Seus olhos

arregalados traiam a dor que sentia. Pouco a pouco, o anel se transformou

num círculo de chamas prateadas com reflexos nacarados. Com os traços

contorcidos pelo sofrimento, o hovalyn gritou, segurando a mão:

—Tirem esse anel de meu dedo! Não suporto mais! Piedade, eu

suplico, ajudem-me!

—Impossível — murmurou Tivann, decepcionado.

As chamas poderosas continuaram a multiplicar-se, lambendo

avidamente a mão do rapaz. Pedaços de carne calcinada começaram a cair

do dedo mutilado. O Inomeado estava fascinado pelo espetáculo. Era

repulsivo, mas ele não conseguia desviar os olhos.

— Raros são aqueles que o anel pune com tanta crueldade —

suspirou Tivann.

Finalmente, a tortura cessou. O dedo do hovalyn não passava de

um monte de cinzas enegrecidas. O anel, tão perfeito como quando pendia

do cordão de Orlaith, caiu no chão com um ruído cristalino. A menina

apressou-se em pegá-lo de volta. Arthur de Farrières retornou a seu lugar,

gemendo de dor.

—Alguém mais deseja se arriscar a experimentar o anel? —

perguntou Tivann de 1'Orleys.

—Eu quero.

—Se esse é seu desejo — aprovou Tivann. — Você tem muito

mérito, Gohral Keull. Se você não for o Eleito, ninguém mais será digno de

sê-lo.

—Gohral Keull manteve a expressão impassível. Estendeu a mão

cheia de cicatrizes à Orlaith e o horrível fenômeno repetiu-se. A chamas

contornaram seu dedo num círculo frenético. O rapaz não emitiu um grito

sequer. Pelo contrário, parecia feito de pedra, como se o sofrimento não

tivesse nenhuma importância. Apenas seu olhar turvo deixava transparecer

uma sombra de dor. Logo, o anel tilintou no chão e Orlaith recuperou-o,

rapidamente. Estupefatos, todos os hovalyns observaram o dedo que tinha

estado envolto em chamas: estava intacto.

Page 178: A profecia das pedras

— O anel julgou que você não é o Eleito, mas é um homem de valor

— explicou o anfitrião.

Gohral Keull não manifestou nenhuma reação diante do

cumprimento.

—Algum outro voluntário deseja experimentar o anel de 1'Orleys?

— perguntou Tivann, certo de que ninguém se apresentaria.

—Eu quero — respondeu o Inomeado, surpreendendo-se a si

mesmo.

—Você? Mas você ainda é muito jovem! Como é seu nome?

—Não tenho nome — respondeu o hovalyn, sorrindo com a

pergunta que o tinha atormentado por tantos anos.

Um murmúrio percorreu a assembléia.

—O Inomeado — murmurou Arthur de Ferrières com desprezo. —

Então é você! E quer nos fazer crer que é o Eleito?

—Não — respondeu o Inomeado. — Só quero saber se minha alma

pertence ao bem ou ao mal.

Os olhos de Gohral Keull franziram-se com severidade.

Desconcertado, Tivann respondeu:

— De acordo com a tradição, não posso lhe negar essa chance.

Mas, se eu fosse você, retiraria a candidatura.

—Pois eu a mantenho — replicou o jovem hovalyn, com firmeza.

Os cavaleiros que cruzaram seu olhar perceberam ali a

determinação e o poder. O Inomeado dirigiu-se para Orlaith e pousou sua

mão de dedos longos e ágeis na palma gelada da moça. Observou o anel. Era

simples, porém belo. A primeira vista, parecia feito simplesmente de ouro

branco. De perto, porém, percebia-se que a textura lisa, cintilante, era

incrustada de minúsculos brilhantes. Lentamente, Orlaith botou o anel no

dedo do Inomeado e dirigiu-lhe um olhar de encorajamento.

O anel de 1'Orleys transformou-se num líquido prateado que corria

cada vez mais rapidamente em torno do dedo do rapaz. Ele conseguiu

reprimir um gemido. No entanto, a dor era terrível. Em pouco tempo, as

chamas prateadas devoravam impiedosamente sua carne. O rapaz quis

gritar, quis fugir, mas resistiu, reprimindo sua fraqueza, a despeito do cheiro

de carne queimada que se espalhava pelo ambiente.

Os hovalyns o olhavam com comiseração. A tortura durou mais

Page 179: A profecia das pedras

tempo do que a de Arthur e Gohral juntos. O Inomeado obrigava-se a manter

a cabeça erguida, sem olhar para o dedo ferido. Era a confirmação do que ele

se recusava a admitir: uma dor tão forte, tão insuportável, era sinal de que o

anel tinha visto o mal em seu coração e queria puni-lo.

Sentiu todos os olhares sobre si, sem ousar encará-los. Um

murmúrio elevou-se do meio do silêncio e foi seguido de outros, que o

Inomeado interpretou como uma forte repreensão. Tomou a palavra, com a

voz fraca e cheia de amargura:

— Vocês tinham razão. Eu fracassei, o mal penetrou em meu

coração. O anel de 1'Orleys confirmou o julgamento de vocês. Está na hora

de Orlaith pegar seu anel e passa-lo a outro candidato. Por favor, esqueçam-

me, esqueçam a desfeita que fiz a vocês, esqueçam até do meu rosto...

O rapaz não sabia mais o que dizia. Por sorte, suas palavras,

pronunciadas num fio de voz, não tinham sido ouvidas por ninguém. Ele

procurou o anel no chão e não o viu em parte alguma. Olhou cada canto da

sala à procura de seu brilho prateado. Nada. Então, arriscou um olhar

hesitante na direção de sua mão machucada.

Não havia ali nenhum ferimento.

Orlaith sorria-lhe, radiante. Os cavaleiros o observavam com

humildade e admiração, embora alguns deles lhe lançassem olhares

invejosos.

— Não há nenhuma dúvida, Inomeado, você é o Eleito, aquele que

todos sonhamos encontrar um dia! — declarou Tivann de 1'Orleys,

emocionado até as lágrimas.

A assembléia ovacionou o Inomeado, que ainda não acreditava no

que tinha acontecido.

Então ele era mesmo o Eleito, homem cujo nome fazia palpitar a

esperança no coração do mundo?

27 As três meninas faziam o caminho de volta por dentro da caverna,

para chegar até onde estavam seus cavalos. Ainda estavam perturbadas

pelas revelações de Oonagh. Âmbar e Opala estavam preocupadas. Saber

que eram tão importantes as apavorava e fascinava ao mesmo tempo. Jade,

Page 180: A profecia das pedras

angustiada demais com a conversa, não sabia mais o que sentia. Antes de

tudo, estava revoltada com um futuro tão sombrio. As novas

responsabilidades eram pesadas demais. Mas precisava ir até o fim. Afinal,

as pessoas tinham passado os últimos séculos à espera delas... Não podiam

abandoná-las sem mais nem menos. No entanto, como aceitar caminhar

direto para o perigo, sabendo o que iria acontecer? Embora não admitisse,

estava morrendo de medo. De repente, ela quebrou o silêncio:

—Juro que jamais trairei vocês. A Profecia só pode ser falsa.

Nenhuma de nós vai conduzir as outras à morte. Nunca!

—Juro que jamais farei tal coisa. Prefiro morrer a matar vocês! —

disse Âmbar.

—Também juro — disse Opala. — Esse Neophileus enganou-se. Já

faz muitos séculos que ele morreu. Não há nenhuma razão para fazermos

tudo o que ele escreveu.

—Não consigo acreditar — murmurou Jade. — O que está

acontecendo é tão...

—Esquisito, inimaginável, imprevisível — completou Âmbar. — E

dizer que estamos indo ao encontro da Morte!

—É apavorante, mas também é excitante — disse Jade.

—Além disso, centenas de pessoas estarão com os olhares fixados

em nós — observou Opala, pensativa. — Oonagh disse que somos esperadas

há muitos séculos!

—Eu tenho medo — confessou Âmbar. — Como podem nos pedir

para decidir o destino do mundo? Não faz o menor sentido. Eu adoraria fazer

de conta que não sei de nada e voltar para minha vidinha tranqüila.

—Eu também. Não quero, não posso ir a Thaar... Sabendo o que

vai acontecer quando chegarmos. Mas sei que tenho que ir — acrescentou

Opala, deprimida.

—Se você for, eu vou com você — prometeu Âmbar.

—Eu também — declarou Jade, muito séria. — Temos que ficar

juntas. É impossível adivinhar o próximo horror que nos acontecerá. Mas, se

tantas pessoas dependem de nós, não podemos decepcioná-las. Se nossos

pais deram suas vidas por nós, se realmente somos capazes de mudar

alguma coisa, de enfraquecer o Conselho dos Doze ou as Trevas, devemos

fazer isso.

Page 181: A profecia das pedras

Jade calou-se. Não podia abandonar Âmbar, Opala e todos aqueles

que acreditavam nela. Âmbar, nostálgica, lembrava-se dos dias

despreocupados que tinha vivido até seus catorze anos, sem saber que

deveria enfrentar aquele inacreditável destino.

Opala mantinha seu ar misterioso e impassível, mas seus

sentimentos e pensamentos estavam em ebulição. Antes de encontrar Jade e

Âmbar, sua vida corria lentamente e sem surpresas. Levava uma existência

rotineira, sem paixão nem aventuras. De tanto ver os dias se repetirem,

sempre iguais, tinha se esquecido de sonhar, de rir, de chorar, de se

emocionar. Tinha rejeitado a amizade, o amor, para se fechar em si mesma.

Ao cruzar o caminho de Jade e Âmbar e, mais tarde, de Adrien, tinha

descoberto um novo mundo: espantoso, belo, suave e rude ao mesmo tempo.

E agora que essa vida recém-descoberta parecia ameaçada, cada um de seus

momentos tornava-se ainda mais precioso.

—Como é que Oonagh acha que vamos convencer a Morte a não se

suicidar? — choramingou Jade, de repente. — Por que é que seríamos mais

capazes do que qualquer outra pessoa de trazê-la de volta à razão?

—O simples fato de ir ver a Morte já é... terrivelmente anormal! —

espantava-se Âmbar.

As meninas conversavam sobre suas dúvidas. Também não

conseguiam compreender direito o episódio dos rapinantes. Por que eles

teriam soltado Jade e Opala? E por que fugiram, expulsos por uma força

desconhecida que parecia feri-los?

A descida era mais fácil, quase agradável. Em menos de dois dias,

as meninas encontraram seus cavalos, que as esperavam pacientemente.

Âmbar acarinhou demoradamente seu animal, contente por revê-lo. Ele

tinha adotado a pelagem branca preferida da menina e a olhava com alegria.

Antes de seguirem caminho, Jade estudou atentamente o mapa

que Oonagh lhes tinha dado.

Se entendi direito, os campos que atravessamos pertencem a uma

região chamada Hornimel, que é cheia de bosques e florestas. A cadeia de

montanhas onde estamos agora não é muito importante. Chama-se Irog e,

segundo o mapa, marca os limites de Hornimel. Adiante, se encontram os

planaltos e as montanhas mais antigas, que se estendem por uma região

chamada Ellrog. Por ali, aparentemente, não há nenhuma aldeia.

Page 182: A profecia das pedras

—Deixe-me ver o mapa — pediu Âmbar, aproximando-se de Jade e

dirigindo um olhar interessado ao pergaminho.

—Era o que temia — suspirou. — Conto de Fadas é imenso!

—Mas estamos perto do território da Morte — replicou Jade. —

Olhe bem, basta seguir esse rio, o Tanathos, que atravessa Ellrog... Ele

conduz a uma grande planície, e margeia um imenso lago onde, muito

estranhamente, deságua. Basta atravessar a planície ou o lago que

chegaremos lá.

Jade apontou uma inscrição feita com tinta preta e letras bem

traçadas: Okdrull, país da Morte.

— Se pretendemos mesmo ir até lá, temos que partir

imediatamente!

— Okdrull — repetiu Âmbar. — Que nome horroroso!

As meninas retomaram a viagem e voltaram pela mesma floresta por onde já

haviam passado. De repente, um pensamento desagradável atravessou o

espírito de Opala.

—Quando estivermos ao pé da montanha, atravessando Ellrog,

pode ser que nossos inimigos estejam à nossa procura...

—Sei disso — respondeu Jade, arrepiada diante da idéia.

— Mas eles não sabem onde estamos, nem como somos...

— Sim, mas e aquele cavaleiro que apareceu tantas

vezes? Chegamos à conclusão de que era um inimigo. E se

ele fizer parte do exército das Trevas? E se for um espião? — continuou

Opala.

—Acho melhor nem pensar nisso — disse Âmbar.

—Mas e se for isso mesmo? — insistiu Opala.

—É provável — disse Jade. — Além disso, diversas pessoas que

não conhecíamos pareceram nos reconhecer com facilidade. Acho que temos

uma espécie de sinal que permite aos outros nos identificar... E que nos põe

em perigo.

—Calaram-se, cada vez mais angustiadas. Se o exército das Trevas

as encontrasse, quem sabe a que tipo de tortura as submeteria?

—Se, pelo menos, eu tivesse uma espada me sentiria mais segura

— disse Jade. — Temos nossas pedras, mas será que elas bastam para nos

defender?

Page 183: A profecia das pedras

—Ainda assim — insistiu Opala — , não entendo uma coisa. Se

somos tão facilmente reconhecidas e temos tantos inimigos, por que eles

ainda não nos atacaram?

O dia passou sob a ameaça de um assalto do exército das Trevas.

Âmbar esperava que, a qualquer momento, os cavaleiros negros se atirassem

sobre elas com suas cintilantes espadas em punho.

— Se o pior acontecer e o exército das Trevas nos encontrar, será

que terei coragem para lutar ou serei medrosa como fui diante dos

rapinantes — perguntava-se Âmbar, trêmula.

Percebendo seu nervosismo, seu cavalo tentou acalmá-la com

suaves ondas telepáticas. Mas Âmbar continuava ansiosa.

A noite caiu quando as meninas já deixavam a montanha para

trás. Olharam por um instante para a cadeia de montanhas de Irog, que

tinham acabado de atravessar na saída de Hornimel. Tinham seguido o

Tanathos, um rio de águas turbulentas, através da floresta. Agora, as colinas

de Ellrog estendiam-se à sua frente a perder de vista. Confusamente,

perceberam que aquela região abandonada lhes era hostil.

Cansadas, Jade, Opala e Âmbar sentaram-se às margens do rio,

que corria com um barulho cristalino. Jantaram frugalmente, sem ousar

beber da água turva do rio. Em seguida, deitaram-se sobre a relva. Apesar

da tranqüilidade reinante, estavam preocupadas. Não precisavam de

palavras para se comunicar. Contemplavam um espetacular céu estrelado,

sabendo que estavam sentindo a mesma coisa: que a natureza, imensa e

generosa, atenuava seus tormentos, as unia em um mesmo

deslumbramento, uma mesma poesia. Ninguém ousava emitir um som, de

medo de quebrar a magia daquele momento. Jade, Opala e Âmbar estavam

segurando suavemente suas pedras...

Na manhã seguinte, estavam transbordantes de vitalidade e

voltaram à estrada logo depois da aurora. Enquanto cavalgavam,

observavam a paisagem desolada de Ellrog: colinas cobertas por um mato

raso, seco e amarelado. Uns poucos arbustos raquíticos, espalhados aqui e

ali. Raríssimos cumes, destruídos pela erosão, pouco mais altos do que as

colinas ao redor.

No início, a viagem transcorreu tranqüilamente. O ar matinal,

fresco, trazia o perfume que se desprendia das flores e o canto alegre dos

Page 184: A profecia das pedras

pássaros. Um animal atravessou correndo o caminho e as meninas

admiraram sua pelagem aveludada. Acabaram espantadas por achar Ellrog

tão agradável. Empurrando a imagem de seus inimigos para o fundo de seus

pensamentos, começaram a falar de amenidades.

Âmbar observava o Tanathos que, graças a numerosos afluentes,

tinha se tornado largo e imponente. O rio serpenteava com rapidez. Suas

águas, agora mais claras, pareciam prateadas à luz do sol. No entanto,

movidas pelo instinto, as meninas não relaxaram.

O sol subiu no céu e o calor ficou mais forte. As meninas pararam

de falar. Um estranho mal-estar começou a tomar conta delas. De repente,

Âmbar falou o que nenhuma das outras duas estava ousando admitir:

— Esse lugar não é normal.

Pouco a pouco, a paisagem se transformava. As flores tinham

desaparecido. Os cavalos mostravam-se mais tensos e nervosos. Um silêncio

total, inquietante, tinha se abatido sobre a terra. Não havia mais nenhum

animal. À medida que avançavam, toda forma de vida parecia fugir de Ellrog.

—Talvez isso queira dizer que estamos nos aproximando de

Okdrull, o país da Morte — arriscou Jade.

—Será que devo ficar feliz por isso? — ironizou Âmbar. — Estou

com medo. Sei que vocês são corajosas, e jamais confessariam que estão

com medo. Mas eu não tenho nenhuma vergonha de dizer que estou com

medo. Não tenho a menor vontade de ir ver a Morte e essa região me deixa

meio apavorada.

—Pois não fique — assegurou Opala. — Não corremos risco

nenhum.

—É mesmo? — exclamou Âmbar, com a voz trêmula. — Bom,

tirando o risco de sermos destroçadas pelo exército das Trevas ou por outro

inimigo louco pela nossa pele, de fato, não há perigo nenhum. Se

sobrevivermos, depois de fazer uma visitinha à Morte, podemos seguir até

Thaar, de onde não temos a menor chance de sairmos ilesas.

Jade e Opala tentaram acalmar Âmbar, mas sem muita convicção.

Felizmente, nenhum cavaleiro vestido de preto estava à vista naquele

instante. E as meninas começaram a falar muito para evitar o medo. Agora,

toda a paisagem lhes parecia ameaçadora. Até mesmo o sol tinha sido

absorvido por nuvens cinzentas, e o ar tinha se tornado frio e úmido.

Page 185: A profecia das pedras

Quando a noite caiu sobre Ellrog, as meninas pararam às margens

do Tanathos, cujas águas tinham se tornado sujas, escuras e barrentas.

Na escuridão, Âmbar, angustiada, procurou as mãos frias de

Opala.

— Quando eu era pequena, minha mãe sempre segurava minha

mão para que eu dormisse — disse ela. — Quando ela estava a meu lado, eu

tinha a certeza de que nenhuma sombra malévola, nenhum pesadelo

chegaria perto...

Âmbar calou-se, mas Opala, compreensiva, apertou suavemente

sua mão e não a soltou mais. As meninas acabaram dormindo.

No dia seguinte, acordaram sem a menor vontade de prosseguir.

Era penoso seguir o curso do rio cavalgando pela paisagem sombria e hostil.

Os cavalos relinchavam assustados e progrediam muito lentamente. As

meninas sentiam-se cada vez mais cansadas e abatidas. Ao fim de algumas

horas, foram envolvidas por uma bruma que de início era leve, mas que se

tornou cada vez mais pesada e sufocante. As viajantes não conseguiam ver

mais nada, nem mesmo umas as outras. Agora, só o Tanathos,

estranhamente brilhante, podia ser visto. Jade, Opala e Âmbar se forçaram a

continuar, falando num tom tranqüilo, para não se perderem de vista. Não

tinham mais a noção do tempo. Cegas pelo nevoeiro, geladas pelo vento seco,

elas tremiam.

Finalmente, o nevoeiro se dispersou. Perceberam que estavam

diante de uma planície florida, margeada por um imenso lago.

—Já sei onde estamos! — disse Jade, entusiasmada. — Agora,

temos apenas que atravessar essa planície para chegar a Okdrull!

—Já? — espantou-se Âmbar.

—Ellrog é uma região pequena. Não vamos discutir por isso.

Apressaram-se a atingir a planície quando uma voz de homem,

forte e potente, as reteve. No entanto, não viam ninguém por perto.

—Pela planície ou pelo lago?

—Dois caminhos levam a Okdrull.

—Se seguirem pela planície, os sonhos as perseguirão até a morte.

Se escolherem a barca, o lago mostrará o seu passado.

A voz calou-se. Após uma breve discussão, as meninas resolveram

prosseguir pelo lago do Passado. Âmbar mandou que os cavalos as

Page 186: A profecia das pedras

esperassem ali com a bagagem. Não levariam mais do que o necessário.

Instalaram-se em uma barca de madeira, que parecia estar ali a esperá-las.

A embarcação era precária e vacilava sob o peso das meninas. Mas deslizou

sobre as águas límpidas e azuladas, movida por uma força que ninguém

sabia de onde vinha. As meninas trocaram olhares desconcertados. Os

contornos do rio já se perdiam na bruma de Ellrog. De repente, Âmbar

gritou. As águas claras tinham se tornado sanguinolentas. Jade,

horrorizada, também não conseguiu conter um berro. Em seguida, uma

forma sombria surgiu das águas turvas. Âmbar foi a primeira a percebê-la. A

barca parou. Mas o susto da menina logo deu lugar à alegria. A sombra

tomou a forma de uma jovem de olhar doce e amoroso e ela soube que estava

vendo sua mãe. A mulher acariciou seus cabelos afetuosamente.

— Venha comigo — disse a mulher com uma voz melodiosa. —

Sinto tanto a sua falta. Junte-se a mim, Âmbar.

A mulher estendeu a mão e Âmbar a segurou, encantada com sua

presença e doida de vontade de obedecê-la. No entanto, a aparição era

invisível para Jade e Opala. Quando viram Âmbar levantar-se, pronta para

se jogar na água escura, deram um grito e a puxaram para trás com toda a

força. Âmbar caiu sobre elas, fazendo o barco virar. Agora, as três estavam

dentro d'água. Jade e Opala seguraram-se nas bordas da embarcação

enquanto Âmbar, com os olhos perdidos no vazio, submergia. Jade hesitou.

Olhou para Opala, que murmurou:

— Me sinto fraca demais... Não consigo procurá-la.

De fato, Opala sentia a cabeça rodar. As sombras que a envolviam

formavam o teatro da cruel morte de seus pais. Viu o sangue jorrar do

coração de sua mãe, ouviu-a pedir misericórdia, e distinguiu o rosto

impiedoso de um encantador das Trevas.

Jade afundou e acabou engolindo um pouco da água

sanguinolenta. Conseguiu ver onde estava Âmbar e tentou salvá-la. Mas a

imagem perturbadora de milhares de rostos sorridentes a assaltou num

repente. Quem seriam? Parecia que queriam lhe dizer alguma coisa.

Abandonando Âmbar, aproximou-se deles, escutou seus murmúrios: "Nós

vivemos para que você viva... Nós combatemos para que você lute a última

batalha... Nós estamos em você, estamos com você... Se você estiver lá,

também estaremos lá...".

Page 187: A profecia das pedras

Jade começou a sentir falta de ar, mas estava consciente. De

repente, sentiu que segurava sua pedra. Uma voz no fundo de si lhe dizia:

"Essas sombras pertencem ao passado. Agora, você deve salvar Âmbar, deve

continuar viva!". Então, desviou-se dos rostos sorridentes e nadou o mais

rápido que conseguiu na direção de Âmbar, com os pulmões a ponto de

estourar. Acreditava que conseguiria, que salvaria Âmbar. Acreditava que a

companheira, num último esforço, também havia pego sua pedra... Mas não

podia mais. Já estava resignada a abandonar a luta e a se deixar levar para

o fundo do lago do Passado, quando uma nova energia a atravessou e ela

percebeu que Opala também tinha pego sua pedra. "Você está viva", disse a

voz de Âmbar ou de Opala, não conseguia mais saber qual das duas. "Você

está viva, e ainda viverá muito."

Só então Jade encontrou forças para levar Âmbar até a superfície.

Respirou avidamente. Âmbar voltou a si, mas Jade percebeu que ela ainda

estava fraca demais para nadar e continuou a segurá-la.

Sua cabeça rodava. Sua vista se embaralhava. Exausta, Jade

estava quase se deixando novamente engolir pelas águas rubras do lago do

Passado.

Subitamente, sentiu dois braços fortes segurá-la, puxá-la, e teve a

certeza de que seu corpo encontrava-se em terra firme.

Paris, 2002 Abri os olhos perturbada. Meu coração batia depressa demais,

forte demais. Dessa vez, eu tinha certeza de que o sonho pertencia à ficção,

que não passava de produto de minha imaginação desvairada.

Eu tinha me deixado levar pela ilusão, estava quase convencida de

que o sonho existia mesmo em algum lugar longe daqui. Mas agora eu sabia,

tinha me enganado. Meus esforços tinham sido em vão.

Nas águas profundas do lago do Passado, entre todos os rostos que

se dirigiam a Jade, estava o meu. Ou melhor, o de Joa. Joa, mais bonita e

sorridente do que nunca. Essa visão acabou comigo. No entanto, era eu

quem a criava, tinha achado necessário colocar minha própria imagem

dentro do sonho para me lembrar de que ele não passava de reflexo da

minha imaginação... E Joa continuava a sorrir para mim com complacência,

Page 188: A profecia das pedras

seus cachos ruivos emoldurando seu rosto, seu olhar verde-azulado

luminoso, vibrando com uma alegria desmedida. Ela estava calada. No

entanto, seus lábios fechados pareciam murmurar até que ponto eu tinha

sido ingênua.

Então, o sonho era nada. Eu o controlava, eu o inventava... Não

era nada, nada... além de uma tentativa de continuar viva. A verdade surgia

brutalmente diante de mim. Por que eu teria feito questão de me mostrar

minha própria credulidade? Por que fiz questão de destruir a única chance

que me restava?

A Morte, que eu esperava afastar, me espreitava novamente. Desta

vez, era impossível escapar dela. O sonho, minha última defesa, tinha se

desfeito covardemente. Eu não sentia mais nada além de uma dor infinita. A

Morte conhecia muito bem o seu ofício e costumava executá-lo sem demora.

Trêmula, fechei os olhos, mas a visão da tenebrosa criatura, vestida de

preto, me perseguia cada vez mais nítida. Real.

Eu queria que o sol dispersasse as nuvens pesadas de meu

coração. Queria ouvir o vento murmurar sua doce melodia. Queria sentir o

cheiro revigorante da primavera e o odor pesado do verão. Queria gostar da

vida como nunca tinha conseguido antes.

Eu tinha acreditado que seria corajosa quando chegasse a hora da

partida. Mas não era isso o que acontecia. E como ser corajosa? Existiam

tantas coisa que eu não tinha feito quando ainda era capaz de fazê-las.

Agora eu me arrependia por tudo o que não tinha realizado. As lágrimas

turvavam minha visão, mas eu não me sentia chorar. Se meu sonho teve a

audácia de acabar, de me dar um último prazo... "Eu suplico", falei para a

Morte, "me dê um pouco mais de tempo. Só mais uma noite."

28 Jade e Âmbar não tardaram a voltar a si. Opala estava a seu lado.

—Que coisa inacreditável — disse ela. — Quando peguei minha

pedra, senti uma força poderosa tomar conta de mim e consegui nadar até

aqui. Estávamos no meio do lago, mas pareceu que eu mal tinha atravessado

alguns metros quando cheguei em terra firme.

—Já estamos em Okdrull? Do outro lado do lago do Passado? —

Page 189: A profecia das pedras

perguntou Jade, sem conseguir acreditar.

—Estamos — respondeu Opala.

—Como é que saímos do lago? — perguntou Âmbar, ainda tonta.

Eu cheguei logo — disse Opala. — Estava me perguntando como

iria salvá-las, quando vi vocês duas. Âmbar estava inconsciente nos braços

de Jade. Quando chegaram a menos de um metro da margem, vi que Jade

não agüentava mais. Vocês estavam ao alcance de minha mão e eu as puxei

até aqui.

—Mas como é que saímos do meio do lago? — perguntou Jade.

—Este lago é encantado — respondeu uma voz grave que vinha de

trás das meninas. — Uma vez vencidas as imagens do passado, chega-se

facilmente a Okdrull.

As três meninas voltaram-se num sobressalto. Diante delas

encontrava-se um homem vestido de preto, com uma expressão lúgubre,

montado num cavalo negro.

— Cuidado! — gritou Âmbar. — Um soldado das Trevas!

— Não temos medo de você — disse Jade com um tom

inseguro, porém orgulhoso. — Nós lutaremos!

O homem deu um sorriso divertido.

—Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, mas não é o caso.

Sou Rockdar, conselheiro da Morte, e estou aqui para conduzi-las até ela.

—Ah, sim! Oonagh nos falou a seu respeito — disse Jade. — Ela

também disse que você nos levaria ao palácio de Yrianz de Myrnel.

—Por hora, é até a Morte que levarei vocês... Enfim, isso é apenas

um jeito de dizer.

Com alegria e surpresa, Âmbar viu seu cavalo pastando

calmamente a alguns metros dali. Rockdar seguiu seu olhar e explicou:

— Tomei a liberdade de trazer seus cavalos até aqui. Podem

montar. O castelo da Morte não é longe. Vou levá-las até lá.

Ainda desconfiadas, as meninas montaram seus cavalos em

silêncio. O conselheiro da Morte partiu a galope e elas o seguiram. A

paisagem era espectral e desértica, com poucos arbustos nascidos na terra

negra e seca. Por fim, um imponente palácio surgiu das sombras de Okdrull.

— E aqui que mora a Morte — murmurou Rockdar.

As meninas levantaram os olhos e viram uma construção escura,

Page 190: A profecia das pedras

rodeada de torres tão altas que seu cume perdia-se no céu. O castelo

emanava uma impressão de sinistro poder. A sua volta, reinava um silêncio

macabro. Era protegido por um regimento de soldados vestidos de preto, que

reconheceram Rockdar, saudaram-no e abriram passagem. Ele entrou,

seguido pelas meninas. Criados, também vestidos de preto, apressaram-se

em levar os cavalos à estrebaria, enquanto Jade, Opala e Âmbar seguiam os

passos de Rockdar por corredores intermináveis, escuros e inquietantes.

— Não duvido do poder de vocês — disse o conselheiro. — Mas,

ainda assim, tomem cuidado. Trazer a Morte à razão não é tarefa das mais

simples.

Um som de soluços fez as meninas inquietarem-se. Agora que

estavam tão perto de seu objetivo, sentiam-se perto de desfalecer. Rockdar

parou diante de uma porta de ébano, de onde vinham os lamentos. Entrou

sem bater e foi seguido por Jade, Opala e Âmbar. O ambiente era muito

amplo e totalmente mobiliado de preto. Pesadas cortinas de veludo impediam

a luz de entrar pelas estreitas janelas. Dez homens, com ar muito sério e

vestidos como Rockdar, estavam em volta da cama. Deitada sobre os lençóis,

uma forma negra chorava de um jeito que faria partir o coração de qualquer

pessoa.

— Visita para a senhora — anunciou Rockdar.

As meninas fecharam os olhos aterrorizadas, esperando ver surgir

uma criatura saída de seus piores pesadelos. Quando os abriram, uma moça

olhava-as e soluçava ao mesmo tempo. Tinha os cabelos castanho-claros e

lisos, cortados bem curtos; sua pele era de uma palidez extrema. Seus olhos

amendoados brilhavam de tristeza. Seu rosto era redondo, e os lábios finos e

rosados. Era um pouquinho gorda e vestia uma saia preta, rodada, até os

joelhos, e uma bonita blusa da mesma cor. No conjunto, era até bonita, mas

de seu rosto transbordava um desespero absoluto, que traía a dura tarefa

que há tanto tempo ela cumpria.

— Vocês têm medo de mim, todas vocês — disse ela, com uma voz

clara, entrecortada de soluços. — E me jogam pragas, suplicando noite e dia

para que eu não apareça na frente de vocês...

Jade, Opala e Âmbar, desconcertadas, não sabiam o que dizer.

— O que é que estão fazendo aqui? Minha greve agrada

todo mundo. Você mesma, Opala, sabe muito bem que já era para termos

Page 191: A profecia das pedras

nos encontrado há algum tempo. Você acha que estar viva é um milagre, não

é mesmo? Ninguém gosta de mim. Só alguns suicidas desesperados, mas até

mesmo alguns deles tentam fugir de mim quando chega a hora.

Em seguida, com um gesto nervoso, a jovem ordenou:

— Saiam todos. Quero ficar sozinha com as três meninas.

Os conselheiros da Morte obedeceram. Jade, Opala e Âmbar

ficaram sozinhas com a Morte.

— Realmente, não sei por que todo mundo me detesta tanto. Até

mesmo os privilegiados, aqueles que me dou ao trabalho de procurar, saem

berrando quando me encontram

pela frente. Os outros, aqueles que me buscam em pensamento, ficam ainda

mais apavorados de ver o fim chegar.

—Para onde você leva os mortos? Existe alguma vida depois da

morte? — atreveu-se a perguntar Âmbar.

—Quando chegar a sua vez, você verá — respondeu a Morte. — A

vida, a vida! Vocês só pensam na minha irmãzinha querida, paparicada por

todo mundo! Mas não esperem que eu lhes revele para onde vão os que

morrem. Vocês podem ser as três pedras do destino, mas nem por isso eu

deixo de ser a criatura mais misteriosa, a mais temida pelos homens. Não

posso revelar a vocês os segredos que o mundo vem tentando desvendar há

tanto tempo...

—Eu queria tanto saber notícias de minha mãe... — suspirou

Âmbar — minha mãe que você roubou antes que eu pudesse conhecer...

—Pronto! É sempre a mesma lengalenga. Todo mundo diz que sou

cruel, todos querem rever seus pais... Mas não tenho nada a ver com isso,

apenas cumpro o meu papel. Desde que o mundo é mundo, muito antes de

as criaturas mágicas aparecerem na face da Terra, os homens dedicam-se a

matar uns aos outros. Foram eles que criaram o mal, eles o alimentaram

com sangue. Não fui eu que mandei que se matassem. Limito-me a levar o

repouso àqueles que agonizam. Tudo o que fiz foi seguir os caminhos

traçados pelo homem.

—Mas por que a senhora resolveu entrar em greve? — perguntou

Jade. — Nós precisamos da senhora. Sem a sua presença, não existe mais

vida, o mundo fica perdido na eternidade...

—Ah! Obrigada! — respondeu a Morte, lisonjeada e esboçando um

Page 192: A profecia das pedras

frágil sorriso. — Há um bocado de tempo que ninguém reconhece meu valor.

Todos escrevem poemas em louvor à vida, mas eu só recebo pêsames. Por

quê? Acham que sou horrível? Respondam!

—Ninguém a detesta — explicou Opala. — O que acontece é que

temos medo, nós nos perguntamos quem é a senhora e o que é que nos traz.

Nós a rejeitamos porque não a conhecemos. Tudo que é desconhecido

provoca medo.

—A senhora nos separa de nossa família, de nossos amigos —

prosseguiu Âmbar. — E por isso que a maldizemos. Achamos que isso é

injusto, que é cruel. Mas, no fundo, sabemos que, cedo ou tarde, a senhora

tem que vir. A morte é uma etapa incontornável, mas é o que nos permite

avançar, refletir.

—Mas, então, por que me consideram uma desgraça, uma

fatalidade? — gemeu a Morte secando as lágrimas.

—Porque gostaríamos de manter nossos entes queridos perto de

nós para sempre — respondeu Jade tristemente.

— Sabemos que isso é impossível, mas o desaparecimento

das pessoas que amamos nos faz sofrer muito.

—Então, minha greve é boa. É como eu dizia: ninguém me quer por

perto.

—Isso não é verdade — insistiu Âmbar. — Muitas pessoas a

aguardam para encontrar repouso, mesmo sem saber o que você lhes

reserva para o futuro. E você deve continuar a cumprir sua tarefa para que o

mundo consiga sobreviver. Você colabora com a vida, faz parte dela!

— É mesmo? — entusiasmou-se a Morte, mais segura. — Por que,

então, todos se apavoram tanto quando apareço? Talvez seja essa roupa

preta... Vocês acham que fico bem de preto? Bom, não tem jeito. Se vestir

outra cor, perco a credibilidade.

Jade, Opala e Âmbar começaram a rir, divertidas.

— Acho que estou gorda demais — disse a Morte repentinamente.

— Talvez seja esse o problema. Tentei fazer um regime, mas não funcionou.

Sou gulosa. Mas preciso mesmo emagrecer um pouco...

As meninas deram uma gargalhada. Surpreendida por uma alegria

que nunca tinha provocado antes, a Morte também começou a rir.

—Não se preocupe — disse Jade. — Acho que, mesmo gordinha,

Page 193: A profecia das pedras

você está muito bonita.

—É mesmo? Você me acha bonita? E simpática também?

—Eu acho — disse Âmbar.

—Mas que coisa incrível... Ninguém nunca me tinha dito uma coisa

dessas antes. E olhem que fazia séculos que eu esperava por isso!

A Morte, agora feliz da vida, batia palmas e ajeitava o cabelo,

enquanto um largo sorriso iluminava seu rosto ainda jovem e bonito.

—Bom, então agora você vai acabar com a greve, não é? —

perguntou Jade.

—Claro que não. Se eu voltar ao trabalho, em três dias todos

estarão me odiando novamente.

—Mas as pessoas estão agonizando, padecendo todo o tipo de

sofrimento enquanto esperam por você — lembrou Âmbar. — É gente que

estava quase morrendo quando você entrou em greve, e que precisa muito da

sua presença.

—Precisam muito de mim? — repetiu a Morte, surpresa. — Então,

está certo. Se eles querem que eu vá, eu vou. Voltarei ao trabalho. Mas com

uma condição.

A Morte dirigiu seu olhar profundo para as três meninas.

— Nunca nenhum mortal veio me procurar antes. Só suspenderei a

greve se vocês me prometerem que, quando nos encontrarmos novamente,

talvez daqui a muitos anos, vocês me seguirão sem lamentar nem chorar.

Será como um alegre reencontro de amigas, que irão juntas para um lugar

agradável.

—Está prometido — disseram as três ao mesmo tempo.

— Então, agora, não vou mais retê-las aqui. Posso ler seus

pensamentos e sei que estão com pressa. Rockdar conduzirá vocês até as

fronteiras de meu reino. Mesmo sem saber ler o futuro, pressinto que o

perigo está rondando vocês. Saberei esperar com paciência o momento de

revê-las e espero que a vida lhes ofereça longos e felizes anos.

A Morte fez uma pausa e depois prosseguiu, muito séria.

— Sempre fui associada ao mal e, no entanto, estou muito longe

dele. Não pertenço nem ao bem, nem ao mal, e não julgo nem um nem outro.

No entanto, eu os conheço, vejo, sinto. Saibam que seu poder atingiu seu

ponto máximo e que a luta está muito próxima. Ou um ou outro será

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provisoriamente derrotado, mas ambos são fortes demais para abandonar

completamente o mundo. Esses dois inimigos coabitarão o coração do

homem por toda a eternidade.

De repente, a Morte mudou de assunto e sua voz tornou-se

inquieta:

—Vocês têm certeza de que não preciso mesmo de um regime?

—Claro que temos! — respondeu Jade com firmeza, antes de

começar a rir de novo.

Depois de carinhosas despedidas, as meninas deixaram a Morte,

que sorria tristemente:

— Fico desolada de vê-las partir. Se o destino não fosse sempre tão

apressado, tentaria retê-las aqui por mais tempo. Mas sei que voltarão...

29 Era óbvio, mas o Inomeado não conseguia aceitar. Como poderia

ser o Eleito, logo ele, que tinha servido às Trevas? Impossível. O anel de

1'Orleys tinha se enganado. Durante o dia inteiro, Tivann tinha organizado

festas em sua homenagem. Mas, apesar da insistência dos hovalyns, tinha

ficado trancado em seu quarto, pensativo.

A noite chegou. Alguém bateu à sua porta e, a despeito de sua

recusa em abrir, meteu a mão na maçaneta e entrou. Era Gorhal Keull, com

sua expressão dura e seu olhar destemido.

— Eu sei o que está atormentando seu coração — disse o hovalyn.

— Procure Oonagh. Ela vai ajudá-lo.

O Inomeado não respondeu. Estava perdido em seus pensamentos.

—Tivann de 1'Orleys já está preparando seu casamento com

Orlaith, mas sinto que você não a ama.

—Vou embora daqui — disse o Inomeado. — Vou procurar Oonagh.

Todas as pessoas nesta casa acreditam em mim. Não mereço tamanha

confiança. Preciso sair daqui.

O Inomeado parou, depois completou:

— Eu não sou o Eleito.

— Sei disso — declarou Gorhal Keull. — Conheço o seu passado.

Surpreso, o Inomeado ergueu seus olhos azuis na direção do

Page 195: A profecia das pedras

hovalyn.

—Você sabe quem eu era? — murmurou.

—Sim. E também sei que você mudou. Se permitir, vou

acompanhá-lo até a casa de Oonagh. Sei de muitas coisas a seu respeito que

você mesmo ignora.

O Inomeado hesitou um instante.

—Vou partir assim que a noite estiver bem escura. Fugirei

covardemente. Se quiser me acompanhar, pode vir comigo.

—Eu vou com você — garantiu Gorhal Keull.

Na hora seguinte, os dois hovalyns prepararam a bagagem. Em

seguida, se esquivaram discretamente da casa de Tivann de 1'Orleys.

Procuraram seus cavalos na estrebaria como dois ladrões protegidos pela

noite, montaram e fugiram a galope. O Inomeado lançava olhares curiosos

para Gorhal Keull, que se contentava em respirar o ar revigorante da noite

sem abrir a boca. Por fim, Gorhal disse:

—Conheço um caminho que nos levará mais rapidamente até

Oonagh. Quando chegar lá, você compreenderá o seu destino e terá que se

submeter a ele.

—O que é que você sabe a meu respeito? Conhece meu verdadeiro

nome?

—O que faz com que você exista não é seu nome. É o que você é, o

que faz, o que sente — respondeu Gorhal Keull. — Já atribuíram muitos

nomes a você, mas não sei qual foi o que seus pais lhe deram.

—Diga o que você sabe sobre o meu passado.

—O presente é muito mais importante.

Gorhal Keull calou-se e recusou-se a falar por horas a fio. Os dois

hovalyns cavalgaram em silêncio pelo Hornimel durante toda a noite.

Quando chegou a aurora, resplandecente com as cores de um novo

dia, o Inomeado perguntou em voz baixa:

—Você sabe o que eu era, antes... Sabe que já servi às Trevas?

—Sei — confirmou Gorhal Keull.

—E não me odeia por isso? Mesmo sem ter nenhuma lembrança

desse tempo, minhas mãos estão sujas de sangue. Sou um criminoso.

—Você é um homem. Eu também. Quem sou eu para julgá-lo?

—Antes de me tornar um homem, fui um monstro. Eu era um

Page 196: A profecia das pedras

soldado das Trevas!

—Mas não é mais. Quando desertou, você renunciou ao mal.

Quando perdeu a memória, tornou-se outro homem. Agora, você é o

Inomeado, um hovalyn a serviço do bem. Você sofreu, você combateu. Hoje,

ainda que o mal esteja em seu coração — ele está em cada um de nós — o

bem venceu.

—O que é que você sabe? O que sabe a meu respeito?

—Encontrei você alguns anos atrás. O que sei... Nunca vi seus

pais, mas você disse que eles tinham morrido quando você era criança.

—Morreram — repetiu lentamente o rapaz.

— Você vivia com seus avós — prosseguiu Gorhal Keull,

imperturbável. — Nunca quis falar muito a respeito dessa época, nem

mesmo seu nome de batismo queria dizer para a gente. Com dezesseis anos,

saiu de casa, estava louco para descobrir o mundo. Foi aí que o encontrei.

Você irradiava uma força tamanha, uma coragem que me deixou

impressionado. Queria lutar, combater a injustiça, e não se importava em

arriscar a vida por isso. Surpreso, o Eleito bebia as palavras de Gohral Keull.

— Você era audacioso, demonstrava tanta bravura, que todos os

que o encontravam o chamavam de Elyador: "o que foi eleito". Mas você

achava graça. Não estava em busca de glórias.

O Inomeado não conseguia acreditar. O tom de Gorhal Keull era

sincero, mas a marca em seu tornozelo esquerdo ainda estava bem fresca em

sua memória.

— E foi então que seu caminho se cruzou com o do

exército das Trevas.

Depois disso, Gorhal Keull calou-se novamente, recusando-se a se

lembrar dos soldados das Trevas. O Eleito ardia de curiosidade, queria saber

porque tinha escolhido o lado das trevas. Queria, enfim, conseguir lançar

um olhar claro sobre seu passado, deixar de lado as dúvidas, as perguntas,

conhecer as faltas que tinha cometido, para conseguir pagá-las.

Durante o dia inteiro, os viajantes percorreram o Hornimel. As

montanhas onde vivia Oonagh surgiam no horizonte. Só pararam para

descansar tarde da noite, quando o cansaço já tornava a viagem impossível.

Dividiram a comida e falaram pouco. Depois, deitaram-se para dormir. O

Inomeado não tinha mais coragem de fazer perguntas ao companheiro.

Page 197: A profecia das pedras

Sentia que ele só voltaria a falar quando estivesse com vontade. Será que

conseguiria descobrir tudo sobre seu passado?

Finalmente, os dois hovalyns chegaram à cadeia de montanhas de

Irog e começaram a subir a imponente montanha onde vivia Oonagh.

Fizeram uma parada na floresta de pinheiros. A noite escura envolvia-os e já

começavam a sentir a angústia provocada pelos rapinantes. O Inomeado, no

entanto, não se deixou intimidar. Trazia consigo os amuletos dados pelos

Ghibduls e sentia-se protegido. Já estava quase mergulhando no sono

quando Gohral Keull decidiu falar:

—Ninguém sabe por que você se bandeou para o lado do mal.

Naquela época, eu era seu amigo, éramos inseparáveis. Um dia, nossos

caminhos cruzaram com os do exército das Trevas... Não sei o que deu em

você. Ficou fascinado pela potência daqueles soldados tenebrosos, alguma

coisa o atraiu para o Mal... Então, você, que era tão bom como voltou a ser

agora, engajou-se no exército das Trevas. Ainda tentei dissuadi-lo da idéia,

mas você não queria escutar ninguém. Por quê? Você era tão jovem, ainda

tão inocente. Por que será que o Mal é tão tentador? Uma vez que se prove

do seu gosto, uma vez que se tenha conhecido seu ódio, é muito difícil voltar

para a luz... As Trevas carregaram você para suas profundezas e eu perdi

você de vista.

Mortificado por essas revelações, o Inomeado disse:

—Se eu era tão bom, e ainda assim me tornei um soldado das

Trevas, isso quer dizer que, mesmo agora, o Mal pode voltar a me tentar. Se

já cedi uma vez, quem me garante que resistirei agora?

—Esse é um combate que todos nós travamos o tempo todo.

Jamais estamos totalmente livres das Trevas.

—Por que você resolveu vir comigo até Oonagh?

—Em memória daquele que você foi, daquele que chamávamos de

Elyador. Você não é o Eleito. Mas também você não é mais um soldado das

Trevas. Todo mundo sabe o que aconteceu com você. É uma história que

corre de boca em boca. Você acabou desertando. Por quê? Talvez por não

suportar mais matar. Talvez porque desejasse voltar à luz. Mas eles o

pegaram. Como castigo, apagaram sua memória e você voltou a ser o que

sempre tinha sido: um hovalyn.

— Mas como poderei expiar as faltas que cometi? O sangue que

Page 198: A profecia das pedras

derramei? Você acha que as pessoas poderão confiar em mim quando

souberem quem fui?

Gorhal Keull não respondeu nada.

Com um nó na garganta, o Inomeado fixou o olhar no céu sem

estrelas. Então, o encantador das Trevas tinha dito a verdade. Tinha sido um

criminoso, depois um desertor... Mas uma coisa continuava a intrigá-lo.

Tirou da sacola o estojo que as sereias do lago dos Tormentos tinham lhe

dado e mostrou-o a Gorhal Keull.

—Tem idéia do que seja isto?

—Não. Não mesmo. Mas pergunte a Oonagh. Ela poderá dizer

alguma coisa.

O Inomeado concordou. Passou uma noite tempestuosa, sonhou

com sangue e violência.

Na manhã seguinte, os cavaleiros retomaram caminho. Assim que

perceberam os rapinantes, que lotavam o céu azul de verão, colocaram os

amuletos dos Ghibduls no pescoço e o medo desapareceu imediatamente.

Gorhal Keull, que já tinha ido antes à casa de Oonagh, dirigiu-se para o

caminho certo com segurança. O Inomeado seguiu-o, melancolicamente,

pelos meandros do túnel. Levaram mais de uma hora até chegar à parede

luminosa que ocultava a passagem da gruta de Oonagh. Atravessaram-na

sem medo e entraram na ampla sala dos cristais.

—Ah! Então é você que chamam de Inomeado — disse uma vozinha

fina.

O rapaz voltou-se e encontrou-se diante de Oonagh.

—Ajude-me, por favor — pediu ele com a voz calma. — Diga qual é

o meu nome. O que estou destinado a fazer?

—Quer se redimir? Muito bem. Apresse-se. Vá ao castelo de Yrianz

de Myrnel. E lá que os mais bravos hovalyns estão se reunindo para lutar

contra as Trevas, no dia do solstício do verão, e se tornarem soldados da

Luz.

—Mas... não compreendo — confessou o Inomeado. — O que farei

lá?

—Você serviu às Trevas. Agora serve à Luz. Engaje-se como

soldado. Quando o tão esperado momento chegar, lute. Será daqui a menos

de duas semanas.

Page 199: A profecia das pedras

—Mas as pessoas do castelo... Jamais me aceitarão. Quando

souberem quem sou, terão ódio de mim.

—Se você quer enfrentar as Trevas, comece por enfrentar o ódio

dos homens.

—Eu vou com você — disse Gorhal Keull. — Também quero me

alistar no exército da Luz. E todos os que tiverem forças para tanto se unirão

a nós. Conto de Fadas aguarda esse combate há muito tempo. Finalmente, o

Conselho dos Doze e o exército das Trevas estarão diante de nós. E nós os

venceremos. No dia do solstício do verão, milhares de pessoas estarão lá.

Eles virão de todas as partes e lutarão pela Luz!

—Sim, mas não se esqueça de que o Eleito ainda não apareceu —

disse Oonagh com sua voz doce. — É ele quem tem de conduzir o exército da

Luz. Sem ele... temo que não haja combate. O Inomeado baixou os olhos. O

Eleito não era ele.

— Vá ao castelo de Yrianz de Myrnel — insistiu Oonagh. — Talvez

você encontre lá o Eleito. Ou talvez encontre a você mesmo.

— O que isso quer dizer? Lá, vou descobrir meu nome? Ou o que

devo ser?

— Só leio os corações, não o futuro — respondeu Oonagh.

O Inomeado desistiu de saber mais. Tirou lentamente o estojo de

sua sacola e estendeu-o a Oonagh.

— Eu estava esperando por isso — disse a criatura mágica. — Já

faz muito tempo, quando você não passava de uma criança, seus pais

sentiram que seu destino seria ameaçado por perigos e trevas. Guiados pelo

instinto, souberam que o mal espreitava você e temeram por sua vida.

Então, vieram me procurar e contaram o que pretendiam fazer. Tentei

impedi-los, mas não me escutaram. Foram até o canto mais profundo da

floresta e encontraram o lago dos Tormentos.

O Inomeado tremia, quase sem fôlego.

— Chegando lá, pediram às sereias, que são poderosas

feiticeiras, para fazer um sortilégio que só elas poderiam executar. "Está

certo", disseram elas, cruelmente. "Mas vocês terão que pagar com a vida." E

seus pais aceitaram.

O Inomeado achou que iria sufocar.

—Que sortilégio era esse? — perguntou, com a voz trêmula de

Page 200: A profecia das pedras

emoção.

As sereias prometeram que, quando você passasse pelo lago dos

Tormentos, lhe entregariam esse estojo. Aí dentro, elas guardaram todo o

amor que seus pais tinham por você. O Inomeado sentiu que as lágrimas

escorriam de seus olhos. Seus pais tinham se sacrificado por ele... Tomou o

estojo das mãos de Oonagh e o acariciou com as mãos trêmulas.

—Cada vez que você abrir essa caixa, será protegido pelo amor

infinito de seus pais — disse a criatura mágica.

—Que coisa incrível! — murmurou Gorhal Keull.

—Olhe, Inomeado, não lamente a escolha que seus pais fizeram —

disse Oonagh com uma voz tranqüilizadora. — Eles não estão mortos, não

estão verdadeiramente mortos. A cada vez que abrir essa caixa, o amor deles

reviverá. Eles estarão sempre a seu lado.

O hovalyn deu um sorriso triste.

—Agora, você precisa partir — disse Oonagh. — Atravesse o Ellrog

e contorne o País da Morte. Nem mesmo o exército das Trevas ousa

aventurar-se por ali. Vá à casa de Yrianz de Myrnel. Se você encontrar as

três pedras da Profecia pelo caminho, convença-as a ir a Thaar. A luta que

elas enfrentarão por lá será decisiva para todos nós.

—Mas... — começou a falar o Inomeado.

—Boa sorte — interrompeu Oonagh. —Talvez nos vejamos na

batalha final!

—O quê? — espantou-se Gorhal Keull diante da criatura tão frágil.

— Você também vai lutar no solstício do verão?

—Não confie tanto nas aparências — disse Oonagh, secamente. —

A magia é uma arma poderosa...

A menina interrompeu o que iria dizer. Em seguida, concluiu:

— Não percam tempo.

O Inomeado e Gorhal Keull fizeram meia volta em direção à parede

de luz.

30 Rockdar conduziu as três meninas até os limites de Okdrull e

prosseguiu até perto da casa de Yrianz de Myrnel. Então, uma tarde, o

Page 201: A profecia das pedras

palácio onde eram esperadas ergueu-se diante delas e Rockdar despediu-se.

Depois que ele partiu, as meninas esconderam-se atrás de uma árvore e

vestiram os belos trajes de gala que tinham ganho das mulheres da aldeia de

Amnhor. Lavaram as mãos e o rosto num riacho e Âmbar pediu aos cavalos

que as esperassem ali.

Radiantes com a nova aparência, as meninas atravessaram um

portão dourado e entraram no palácio de Yrianz de Myrnel. Os vestidos

tinham ficado lindos. Embora elas não soubessem, as costureiras tinham

enfeitiçado as roupas, que as deixavam ainda mais bonitas do que já eram.

Passaram por um caminho de seixos brancos, que atravessava um imenso e

bem cuidado jardim. Flores coloridas, com detalhes sutis, inebriavam as

passantes com seu perfume raro e envolvente. Árvores carregadas com

frutos maduros rodeavam a alameda.

As meninas riam alegremente. Tinham esquecido o perigo. Jade

parecia mesmo a filha do duque de Divulyon, com o vestido de seda azul-

petróleo ondulando em torno de suas pernas. Seus cabelos negros e revoltos

emolduravam o rosto altivo, onde brilhava seu olhar de jade. No entanto,

nem todos a reconheceriam. A aventura a havia transformado. Não tinha

mais o jeito orgulhoso, nem os modos pretensiosos. Seus traços estavam

mais maduros e sérios, mas o brilho rebelde não tinha abandonado seus

olhos verdes.

As meninas bateram à porta. Uma criada abriu e ficou

boquiaberta. Diante dela, estavam três criaturas envolvidas numa luz

brilhante.

— Vocês vieram... — murmurou a mulher, admirada. — As três

pedras... Entrem!

A criada conduziu-as até um salão imenso, iluminado por

imponentes lustres de cristal, onde centenas de convidados, com espadas na

cinta, conversavam animadamente. Entre eles, encontravam-se muitos

homens, mas também criaturas mágicas e mulheres que tinham se alistado

no exército da Luz. Nem todos os futuros combatentes estavam ali.

Mensageiros tinham sido enviados aos quatro cantos de Conto de Fadas

para reunir o exército e conduzi-lo à batalha anunciada na Profecia. Os mais

corajosos e respeitados hovalyns já estavam na casa de Yrianz de Myrnel,

prontos para a luta contra as Trevas. Todos aguardavam a chegada do Eleito

Page 202: A profecia das pedras

e que as pedras, enviadas por Oonagh, conseguissem identificá-lo.

Neophileus tinha escrito que o Eleito era um encantador da Luz, assim como

as três meninas. Jade, Opala e Âmbar deveriam seguir até Thaar. Restaria

apenas o Eleito para se opor aos encantadores das Trevas. Nenhum outro

poderia fazer tal coisa. Sem ele, não haveria combate.

Assim que as três meninas entraram no salão, fez-se um silêncio

imediato. Todos se imobilizaram, maravilhados. Alguns admiravam Jade,

cujos olhos irradiavam o brilho das estrelas. Outros não tiravam os olhos de

Âmbar, envolta em um flamejante vestido de musselina vermelha. Outros,

ainda, impressionavam-se com Opala, resplandecente em um vestido de tule

branco, como a própria encarnação da pureza. Sua aparência frágil e os

olhos sempre baixos tinham dado lugar a uma expressão segura. Agora,

mantinha a cabeça erguida, mas o ar frio e distante tinha desaparecido.

Gritos e saudações elevaram-se:

— Salve as três pedras da Profecia Viva a liberdade! Viva o exército

da Luz!

Jade, Opala e Âmbar sorriram.

Neste momento, duas silhuetas surgiram na porta. A primeira era

a de um cavaleiro de ar severo e destemido. A segunda, a de um jovem mal

vestido, com cabelos castanhos em desalinho e rosto todo arranhado, mas

que irradiava uma força indefinível. Embora ele dirigisse à multidão seu

olhar grave, podia-se imaginar que não via nada à sua frente. Sua expressão

parecia devastada por um dor indecifrável. Uma melancolia profunda

emanava de seus olhos.

Um hovalyn que tinha estado na casa de Tivann de 1’Orleys o

reconheceu e exclamou:

— E o Eleito! Este homem é o Eleito!

Um outro, que também tinha assistido à cerimônia do anel, gritou:

— Viva Elyador, aquele que foi eleito! Combaterei a seu lado!

Suas palavras foram seguidas por um verdadeiro tumulto. Gritos

de alegria ecoaram. Mas uma voz alertou:

— Este homem não é o Eleito! E um soldado das Trevas!

Um pesado silêncio caiu sobre a sala. Todos os olhares voltaram-se para a

criatura de cabelos louros, olhos negros e pele prateada que tinha feito tal

declaração. Era Elforhys. Ele dirigiu-se ao Inomeado:

Page 203: A profecia das pedras

— Vamos, diga a eles quem é você. E um assassino!

A multidão esperava que o rapaz negasse as acusações. Mas ele

disse:

—É verdade. Fiz parte do exército das Trevas. Fui um assassino,

mas não sou mais. Eu mudei. E gostaria de me tornar um soldado da Luz.

—E acha que vamos confiar em você? — gritou um hovalyn, cheio

de ódio. — Como saber se você mudou mesmo? Não se pode passar das

trevas para a luz! Você derramou sangue...

—Agora, é o seu sangue que deve ser derramado — apoiou outro.

A multidão começou a vaiar o rapaz e a cobri-lo de injúrias. Jade

juntou-se aos cavaleiros. Opala concordava com eles, mas ficou calada.

Âmbar olhava para o jovem, penalizada. Pálido e digno, ele

mantinha-se em silêncio. Não tentava se defender. Embora seu rosto

estivesse marcado pela tristeza, limitava-se a olhar para a multidão com um

ar ausente. Num determinado momento, seu olhar cruzou com o de Âmbar.

Uma compreensão mútua estabeleceu-se imediatamente. Tinham a

impressão de que se conheciam desde sempre, como se toda a vida deles

tivesse sido uma espera pelo momento daquele reencontro. O Inomeado só

tinha olhos para Âmbar e seu vestido de fogo. Ele a via, enxergava seu

coração e soube imediatamente que ela ocuparia o seu. Só existia uma

palavra para descrever aquilo. Trêmulo e assustado, apoderou-se dessa

palavra. Impalpável, mais forte e louco do que qualquer outro sentimento, a

palavra que repousava em seu estojo estava agora em seu coração,

despertada pelo olhar de Âmbar. Essa palavra era Amor.

Das trevas surgirá o Eleito

Para unificar o Reino

A voz de Oonagh ressoava na memória de Âmbar.

Das trevas surgirá o Eleito

Pensativa, Âmbar baixou os olhos. Esse rapaz... Ele tinha

derramado sangue... Certo, tinha mudado... Certamente, queria esquecer

seu passado, expiar suas faltas... Mas, ainda assim... Seria mesmo um

assassino?

Page 204: A profecia das pedras

Uma reconhecerá o Rei

A voz de Oonagh ocupava sua mente.

—"Das trevas surgirá o Eleito" — murmurou Âmbar, sem prestar

muita atenção no que dizia. Depois, subitamente, compreendeu o sentido

daquelas palavras e gritou:

—Das trevas surgirá o Eleito!

A assembléia, estarrecida, calou-se.

— Você está se sentindo bem? — perguntou Jade. Âmbar ignorou-

a. Foi até o Inomeado e, então, dirigiu-se à multidão.

— O homem que foi eleito, Elyador, o Rei, aquele que todos vocês

aguardam... É ele. Esse assassino, o desertor que vocês tanto desprezam. É

justamente porque vem das trevas que é o Eleito.

Jade e Opala olhavam-na, impressionadas. Âmbar tinha

transformado-se completamente: sua voz vibrava de maneira apaixonada e

seu olhar estava inflamado.

— Isso é impossível — gritou Elforhys. — Um soldado das Trevas

não pode ser um encantador da Luz.

Um murmúrio de aprovação percorreu a multidão.

— Está escrito na Profecia: "Das trevas surgirá o Eleito" — repetiu

Âmbar. — Este homem fez parte do exército das Trevas, mas teve forças para

abandoná-lo. Quem de vocês teria sido capaz de sair da escuridão para ir ao

encontro da Luz?

A assembléia ainda não estava convencida.

— Este homem merece a admiração de vocês e não suas injúrias.

Ele ousou vir até aqui para se alistar no exército da Luz. Não tentou mentir.

Confessou ter servido às trevas. Sabia que ninguém acreditaria nele, que

seria odiado. Mas veio assim mesmo. Quem mais faria uma coisa dessas?

Âmbar interrompeu-se antes de concluir, gravemente:

— Aqueles que sempre estiveram do lado da luz são bons. Mas

aqueles que conheceram a escuridão, que sofreram, que suportaram olhares

de desprezo... E que continuaram a caminhar na direção da luz... Esses são

grandes.

Um silêncio seguiu-se a essa declaração.

Subitamente, um som metálico fez a multidão estremecer. Elforhys

tinha tirado sua espada e caminhava na direção do Inomeado. Âmbar, que

Page 205: A profecia das pedras

estava ao lado do rapaz, quis gritar, mas nenhum som saiu de seus lábios.

Diante do Inomeado, Elforhys fez uma coisa que espantou a assembléia.

Dobrou um dos joelhos e depositou sua espada aos pés do jovem:

—Elyador, àquele que foi meu amigo, apresento minhas desculpas.

Aquele que é meu Rei apresento minhas homenagens.

—Levante-se, Elforhys. Não sou Rei. Sou apenas um homem. E

perdôo você.

Elforhys levantou-se lentamente. Ergueu sua espada e gritou:

— Juro lutar contra as Trevas! Juro servir à Luz e a seu Rei!

Todos os homens ergueram suas espadas e disseram, numa só voz:

—Eu juro!

—Não fui feito para ser Rei — disse o Eleito, debilmente.

Mas só Âmbar o escutou.

— Até poucos minutos atrás, você era um assassino. Agora é Rei. É

melhor assim, não é? Não se lamente. Aceite as homenagens.

Elyador sorriu. Agora, ele tinha um nome. E sua vida tinha um

objetivo. Olhou para Âmbar, depois para a multidão. Oonagh tinha razão.

Naquele castelo, ele encontraria o Eleito. E, na mesma ocasião, encontraria a

si próprio.

— Nós venceremos — prometeu ele à assembléia. — O exército das

Trevas e o Conselho dos Doze são poderosos. Mas podemos ser ainda mais

poderosos do que eles. Basta acreditar. Reunidos na Luz, nós os

venceremos.

Gritos entusiasmados ecoaram pela sala. Opala, que não tinha

lembrança de ter derramado uma única lágrima em toda a sua vida, chorava

de felicidade.

—Hoje é dia! — constatou Jade, quando a viu chorando. Primeiro,

Âmbar. Agora, você. O que está acontecendo?

— Eu compreendi — disse Opala entre dois soluços. — Eu

compreendi!

A menina interrompeu o choro e, com o rosto banhado em

lágrimas, e disse:

— Como conseguimos quebrar o Selo? Você se lembra? É porque

acreditamos. Tínhamos certeza de que conseguiríamos. E os rapinantes? Não

tínhamos nenhuma chance, mas eu acreditei que sairíamos ilesas dali... Eu

Page 206: A profecia das pedras

acreditei nisso. E o lago? Foi a mesma coisa! E será assim com a batalha, é

assim que venceremos! E evidente!

Jade olhou para Opala, preocupada:

—Opala, você não está em seu estado normal.

—Você não compreende!

—Não compreendo o quê? Que basta acreditar? Bom, se você fizer

muita questão...

—Não! — irritou-se Opala. — Isso é o Dom!

—Que história é essa, Opala?

— É o que nos permite acreditar. O que pode transformar qualquer

homem. Fazer de um assassino um Rei. Você não percebe?

— Não. O que eu percebo é que você não está nada bem.

Opala respirou profundamente antes de dizer, de um só fôlego:

— Nosso Dom... é a Esperança.

Uma descobrirá o Dom

Uma reconhecerá o Rei

Uma convencerá as outras a morrer.

31 Âmbar e Elyador permaneceram juntos a noite inteira. Falaram de

tudo e de nada, partilharam seus temores com relação ao futuro. O Eleito

arriscaria sua vida no campo de batalha, Âmbar arriscaria a sua em Thaar.

Prometeram se reencontrar quando tudo estivesse terminado. Orgulhosa, a

menina conteve as lágrimas.

Na manhã seguinte, Elforhys chamou Elyador para acompanhá-lo

à floresta. Os Ghibduls tinham dito que queriam se juntar à causa. Assim, o

Eleito foi forçado a abandonar Âmbar. Com o coração apertado, eles fizeram

de conta que nenhum dos dois corria perigo, e que em breve se reveriam.

Jade, Opala e Âmbar partiram à tarde. Thaar ficava muito longe, a

muitos dias de viagem, e era preciso que se apressassem. As meninas

retomaram caminho. Dessa vez, sabiam que o fim de sua aventura estava

perigosamente próximo. Opala contou a Âmbar sobre sua descoberta.

—Então, nosso Dom é a Esperança? — espantou-se Âmbar. — Que

coisa incrível. Como você conseguiu descobrir?

Page 207: A profecia das pedras

—Estava evidente. E você, como conseguiu saber quem era o

Eleito? Como adivinhou que era aquele rapaz?

Âmbar não respondeu. Jade dirigiu a elas um olhar dolorido.

Durante toda a noite, a frase da Profecia tinha assombrado seus sonhos:

Uma convencerá as outras a morrer. Âmbar tinha reconhecido o Rei. Opala

compreendera o Dom. E ela parecia evoluir dentro de um pesadelo.

Impossível, era impossível! Nunca conduziria Opala e Âmbar para a morte.

No entanto, até o momento, a Profecia tinha se revelado verdadeira.

Um silêncio embaraçado acompanhava as meninas. Opala e Âmbar

adivinhavam os pensamentos de Jade. Sem saber como ajudar, não

ousavam tocar no assunto. Sabiam que Jade jamais as conduziria à morte.

Mas, diante do silêncio delas, Jade suspeitava do contrário.

Cavalgaram através de planícies monótonas, parecidas com as do

Hornimel, mas pontuadas por aldeias e pequenas vilas que atravessaram

sem parar para descanso. Aquela região chamava-se Lioneral.

Uma tarde, Jade não agüentou mais e disse, de repente:

—Nunca trairei vocês. Acreditem no que quiserem, mas nunca...

—Nós sabemos disso — interrompeu Opala.

—Deve haver algum erro na Profecia — disse Âmbar com sua voz

tranqüilizadora. — Deve ser isso.

Jade explodiu em soluços.

— Não tem erro nenhum e vocês sabem muito bem disso. Ainda

assim, não posso nem imaginar... Enfim, eu nunca...

A menina calou-se, sacudida pelos soluços.

— Vamos desistir de ir a Thaar — disse Jade num repente. —

Prefiro ser odiada por todos do que ficar com essa frase martelando minha

cabeça: Uma convencerá as outras a morrer.

—Elyador vai arriscar a vida à frente da batalha — disse Âmbar,

suavemente. — Não tenho o direito de deixar de ir a Thaar. Seria como se eu

o abandonasse, como se eu o traísse. Se lutarmos, estaremos unidos no

mesmo combate contra o Conselho dos Doze, contra o exército das Trevas...

—Como é que é? — espantou-se Jade.

—Deixe para lá, Âmbar está apaixonada — interveio Opala. —

Mas ela tem razão. Depois de tudo o que passamos, não faz sentido desistir

tão perto do fim. Se precisam de nós para vencer o mal...

Page 208: A profecia das pedras

—Sim, mas pelo menos Elyador sabe o que deve fazer — objetou

Jade. — Ele vai combater, liderar seu exército. Mas, e nós? O que faremos

em Thaar?

—Você tem razão — concordou Âmbar. — Por mais simpática que

seja a Morte, eu preferia não ter que encontrá-la tão cedo. Ainda me restam

tantas coisas para fazer... Tenho muito medo de ir a Thaar. Mas vou assim

mesmo.

—Está bem — disse Jade, resignada. — Mas... se a Profecia for

verdadeira...

—Você não nos trairá — disse Opala. — Sabemos disso.

As meninas tiveram a sensação de que, se estivessem realmente

unidas, nada de mal lhes aconteceria. E talvez tivessem razão.

Atravessaram o Lioneral. Por toda parte, o exército da Luz reunia-

se, sob o comando dos mensageiros, e essa visão deixava-as mais seguras e

dava-lhes coragem para prosseguir.

Uma vez, Âmbar julgou perceber um vulto, como um cavaleiro

negro. Fechou os olhos, amedrontada. Quando os abriu novamente, o

homem tinha desaparecido. Contou o que tinha visto para Jade e Opala,

mas, como a sombra Não tornou a aparecer, esqueceram-se do assunto.

Na manhã do solstício do verão, depois de terem cavalgado a noite

inteira, as meninas chegaram a Thaar. Ao ver a cidade das Origens, elas

pararam, estupefatas. Imponente, a cidade erguia-se entre imensas

muralhas, que rodeavam edifícios ainda mais altos, com incontáveis janelas

que resplandeciam sob o pálido sol da manhã. As meninas jamais tinham

observado espetáculo parecido. Até aquele dia, jamais tinham visto um

edifício.

Avançaram na direção das muralhas, apearam dos cavalos e os

deixaram lá. O grupo de soldados que antes cercava a cidade — do qual

Adrien fazia parte — tinha abandonado o lugar para se juntar ao exército da

Luz. Percebendo que um dos portões, que se recortava na muralha, estava

entreaberto, as meninas esquivaram-se para dentro da cidade de Thaar,

tentando controlar a angústia.

Naquele mesmo momento, o exército da Luz atravessava o campo

magnético que cercava Conto de Fadas. Elyador à frente, com sua espada

cintilante, abriu seu estojo. Imediatamente, sentiu uma energia invisível

Page 209: A profecia das pedras

envolvê-lo e fortalecê-lo. Pensou em Âmbar. A seu lado, Gohral Keull e

Elforhys ficaram surpresos de vê-lo, repentinamente, mais majestoso do que

jamais tinha sido. Atrás do Eleito, o exército da Luz cobria todo o Hornimel,

tão longe quanto a vista podia alcançar, e até além. Os Ghibduls, seus

amigos Bumblinks, os curandeiros e feiticeiros da vila de Amnhor, os

camponeses de cabelos prateados, Owen d'Yrdhal, Adrien... Tanta gente

pronta para o combate. Um pouco atrás, vinham poderosos feiticeiros, entre

os quais encontrava-se Oonagh, prontos para recitar seus encantamentos.

Quando Elyador avançou, todos o seguiram com igual bravura.

Assim que o exército da Luz saiu de Conto de Fadas, encontrou-se diante do

terrível exército das Trevas, acompanhado de milhares de cavaleiros da

Ordem e comandados por uma dezena de tenebrosos encantadores. O mal

expandia-se dissimuladamente sobre suas faces. O número deles era tão

impressionante quanto o de seus adversários. Os dois exércitos encararam-

se um momento, antes de se atacarem ferozmente.

— Venceremos! — gritaram, numa só voz, Elyador e seus homens.

Um silêncio opressor reinava sobre a cidade das Origens. As três

meninas seguraram suas pedras e a angústia que as afligia cedeu

ligeiramente.

— Aconteça o que acontecer, nós venceremos — disse Jade.

Âmbar e Opala concordaram, invadidas pela Esperança. No

entanto, naquele exato momento, sentiram alguma coisa maligna invadir

seus espíritos. Sem que tivessem o menor controle sobre a própria vontade,

dirigiram-se a um edifício e entraram por um corredor fortemente iluminado.

Estavam totalmente conscientes de que o Conselho dos Doze havia se

apoderado de seus sentidos, mas não conseguiam resistir. Sem poder reagir,

subiram por uma escadaria interminável, até o último andar, onde

encontraram-se numa sala espaçosa, rodeada de janelas sem vidraças. Um

homem, com um cruel sorriso sobre os lábios, estava sentado numa poltrona

de couro. Vestia uma ampla túnica púrpura bordada de ouro e dele emanava

um terrível e absoluto poder.

— Bom dia. Sou o Décimo Terceiro membro do Conselho dos Doze.

Petrificadas de terror, as três meninas apertaram suas pedras com

toda a força.

— Vejo que estão assustadas, e também que se fazem perguntas...

Page 210: A profecia das pedras

Não sou um homem, é verdade, sou um espírito. O espírito dos doze

membros do Conselho reunidos.

As meninas não podiam reagir.

— Ah, como vocês foram ingênuas! Chegaram a Thaar com tanta

facilidade e nem desconfiaram de nada! O exército das Trevas segue seus

passos desde que vocês entraram em Conto de Fadas. Meus soldados

chegaram ao ponto de velar por sua segurança... E sabem para quê? Para

que chegassem até aqui. Sou o único capaz de aniquilá-las. Aliás, o esforço

valeu a pena. Vocês fizeram todo o trabalho em meu lugar.

Os dois exércitos confrontaram-se ferozmente. Os encantadores

das Trevas recitavam seus feitiços maléficos, que os encantadores da Luz

encarregavam-se de destruir. Combatentes enfrentavam-se em todos os

lugares. Gritos dilacerantes ecoavam por Lá Fora. Elyador batia-se com uma

força sobre-humana. Gorhal Keull e Elforhys estavam sempre a seu lado.

“Aposto que Âmbar e as duas outras duas meninas conseguiram

vencer o mal em Thaar — dizia para si mesmo o Eleito”. “Aqui, não sei se

conseguirei destruí-lo.”

O exército da Luz lutava com valentia, mas faltava treinamento a

seus combatentes e, pouco a pouco, eles iam perdendo terreno.

*

—Milhares de anos atrás, a violência e o ódio tomavam conta do

mundo — explicou o Décimo Terceiro membro do Conselho. — As criaturas

mágicas escondiam-se, amedrontadas, e os homens nem suspeitavam de

sua existência. Mas, um dia, elas resolveram ajudar os homens a resolver

seus conflitos e surgiram diante deles. Durante alguns séculos, a paz

prevaleceu. Diga-se de passagem, essa foi a época do nosso caro

Neophileus... No entanto, a baixeza da natureza humana recuperou o espaço

perdido e o mundo foi novamente tomado pela guerra. Foi nessa época que o

Conselho dos Doze foi eleito, com o objetivo de transformar o mundo em um

só país... Um país pacífico.

—Isso não é verdade — contestou Jade. — O Conselho dos Doze foi

instaurado numa época em que reinava a paz entre os homens e as

criaturas, com o único propósito de destruir a paz.

Foi isso o que Jean Losserand dissera às três meninas.

Page 211: A profecia das pedras

— Não — retrucou o Décimo Terceiro membro. — Não

estou tentando enganar vocês. Aliás, nem valeria a pena.

Fez uma pausa antes de prosseguir:

— Quando o Conselho dos Doze chegou ao poder, havia armas

demais, tecnologia demais para que a paz fosse possível. Para evitar as

guerras, pouco a pouco o mundo moderno foi sendo varrido do mapa. Tudo

regrediu. As cidades de antigamente desapareceram. Thaar é a única que

guarda lembrança de seu passado glorioso. Trêmulas, as meninas o

escutavam.

— O poder do Conselho dos Doze foi passado de pai para filho. A

despeito de todas as mudanças promovidas, ainda existiam revoltas, gente

que semeava a discórdia. Mas, pouco a pouco, o Conselho dos Doze foi

dominando o espírito do povo por telepatia e subtraindo sua liberdade, sem

que ninguém percebesse... Era tão melhor assim! A calma e a prosperidade

reinavam. No entanto, as criaturas mágicas também sabiam praticar a

telepatia. Perceberam o que estava acontecendo e rebelaram-se. E, as

sim, Conto de Fadas foi criado. Foi nosso único fracasso

em todos esses anos.

O Décimo Terceiro membro fez uma pausa.

— De geração em geração, o Conselho dos Doze assegurou seu

reinado. Por fim, sua força tornou-se cada vez mais incontestável. Com o

povo controlado pelo Conselho, o mundo antigo foi esquecido e deu lugar a

um modo de vida sem revoltas e sem guerras...

As meninas sentiram seu sangue gelar.

— Thaar é a única que permaneceu tal como era há milênios. Nós a

chamamos a cidade das Origens, mas já teve muitos nomes. Por muitos

séculos, quando os homens se julgavam sós sobre a terra, também era

chamada de Paris.

*

A batalha seguia seu ritmo furioso. A vista do sangue excitava o

exército das Trevas, ávido pelo mal, enquanto Elyador, coroado de amor,

encorajava o exército da Luz a continuar sua luta. Mas começavam a

fraquejar. Rios de sangue corriam pela terra, cadáveres mutilados

espalhavam-se pelo campo de batalha, centenas de feridos agonizavam,

Page 212: A profecia das pedras

padecendo de atrozes sofrimentos. O sangue corria de todas as partes, a

espada de Elyador estava vermelha, mas, ainda assim, continuava a cintilar.

O Eleito só pensava em Âmbar. Era a imagem dela que o encorajava a

continuar lutando.

De repente, um de seus adversários conseguiu desequilibrá-lo. O

Eleito caiu de seu cavalo e sua espada escapou-lhe. O medo deixou-o gelado.

Ergueu os olhos na direção do soldado que estava prestes a matá-lo a tempo

de vê-lo cair, trespassado por uma espada. Elyador recuperou sua arma e

agradeceu a seu salvador. Era um rapaz muito jovem, de cabelos castanhos,

olhos escuros e ar determinado. Chamava-se Adrien de Rivebel.

O Eleito tinha perdido Elforhys e Gorhal Keull de vista, e

continuou a combater ao lado de Adrien, que lutava com uma agilidade

surpreendente. Nenhum de seus adversários tinha conseguido feri-lo ainda.

No entanto, a vitória do exército das Trevas parecia inevitável. Seus

soldados, movidos pelo ódio e treinados para matar, atiravam-se contra os

adversários com selvageria, ao contrário dos numerosos camponeses e

burgueses do exército da Luz, que não sabiam lutar.

— Preciso rever Opala — dizia-se Adrien. — Não tenho o direito de

morrer.

Elyador estava no limite de suas forças. Mas não desistiria jamais.

*

—Então, vocês, as três pedras da Profecia, ousaram ameaçar a

supremacia do Conselho dos Doze! — prosseguiu o Décimo Terceiro membro.

— Por causa de vocês, e desse maldito Neophileus, a revolta germinou no

coração das pessoas, e muitos espíritos escaparam ao nosso controle... No

entanto, vocês não são nada! Eu poderia acabar com vocês agora mesmo.

Mas, primeiro, quero aproveitar melhor sua derrota.

— Você nunca nos vencerá! — exclamou Jade. — Nosso Dom, a

Esperança, é mais forte do que tudo.

O Décimo Terceiro membro teve um acesso de riso, que reverberou

pelo aposento.

— E mais forte do que o quê? — perguntou ele entre duas

gargalhadas.

Page 213: A profecia das pedras

Com um gesto, ele apontou para uma larga janela, de onde se

podia observar toda a batalha. As meninas deram um grito de horror. O chão

estava forrado com milhares de cadáveres. Os cavaleiros da Ordem e os

soldados das Trevas estavam vestidos de preto e cinza. Os do exército da Luz

traziam armaduras prateadas. Em meio a uma massa negra, formada por

milhares de combatentes das Trevas, os soldados da Luz não passavam de

uma pequena mancha clara, composta por poucas centenas de pessoas.

—O que é que vocês acham? — perguntou o Décimo Terceiro

membro com sua voz glacial. — Vocês não podem vencer o mal. Ele está em

toda parte: no coração de cada um, no ar, na vida.

—O bem também — replicou Âmbar.

Mas quando a menina olhou para o campo de batalha, seu coração

disparou. Será que Elyador ainda estaria vivo? O fim da batalha estava

muito claro agora: a Luz seria derrotada.

—Obrigado, meninas, muito obrigado — continuou o Décimo

Terceiro membro. — Sem vocês, o Eleito não teria sido reconhecido e essa

batalha não teria acontecido. Eu jamais teria conseguido acabar com todos

os meus inimigos de uma só vez. Foi muita gentileza de vocês reuni-los e

enviá-los para a morte. Matarei todos, não restará nenhum. Como é que

puderam imaginar que venceriam meus cavaleiros da Ordem e o exército das

Trevas? A partir de amanhã, e por toda a eternidade, o poder do Conselho

dos Doze será absoluto. Nenhuma ameaça voltará a nos fazer sombra.

Nunca mais.

As meninas olharam para o Décimo Terceiro membro

desesperadas. O que poderiam fazer?

Os soldados da Luz sabiam que estavam perdendo a guerra. Quase

não lutavam mais. Os encantadores das Trevas continuavam murmurando

seus sombrios feitiços, mas, graças aos esforços concentrados de Oonagh e

de outros feiticeiros, eles não faziam efeito. No entanto, apenas cerca de cem

valorosos hovalyns ainda lutavam com energia, acompanhados de uns

poucos guerreiros. Elyador, Elforhys, Gorhal Keull e Adrien eram os que

mais trabalho estavam dando para os soldados das Trevas. Para surpresa

geral, os Ghibduls revelaram-se ardorosos combatentes. Voavam a poucos

metros do chão, escolhiam um soldado das Trevas e caíam sobre ele com

suas garras afiadas, antes de voltar ao ar e escolher uma nova vítima. O

Page 214: A profecia das pedras

exercito das Trevas só havia conseguido ferir poucas dessas criaturas. Mas,

infelizmente, não havia Ghibduls suficientes para causar um estrago real

nas hostes inimigas.

O Eleito ainda combatia, mas já fraquejava. Sabia que não

agüentaria muito tempo. De repente, viu-se cercado por um numeroso grupo

de inimigos. Reunindo suas últimas forças, preparou-se para a luta.

—Então o Eleito é você? — riu uma das criaturas das Trevas. —

Parece que, antes, era um dos nossos, não?

—Antes de desertar — debochou outro soldado. — O exército da

Luz pegou justamente o mais covarde de nós para transformar em Rei.

—Um Rei, isso aqui? — perguntou um homem de ar cruel. —

Então, vamos matá-lo logo. Pelo menos, poderemos dizer que derramamos

sangue de um Rei. Aposto que não é muito diferente do nosso. Seja Rei ou

Eleito... vai morrer do mesmo jeito!

Vendo Elyador em perigo, os Ghibduls reuniram-se rapidamente e

voaram em seu socorro. Impiedosos, destroçaram os soldados que o

ameaçavam. Depois, um por um, pousaram em terra firme. Tinham decidido

combater a pé para poupar forças, mesmo sabendo que assim seriam mais

facilmente atingidos.

— E agora, o que vou fazer com vocês? — perguntou o

Décimo Terceiro membro. — Devo matá-las?

A criatura fez de conta que refletia sobre a questão antes de

prosseguir.

— Não. Tenho uma idéia melhor. Podem ir embora. As meninas

tiveram um sobressalto e trocaram um olhar espantado.

—Sim, podem partir — disse o Décimo Terceiro membro com um ar

vitorioso. — O que existe de pior do que uma Esperança derrotada? Vocês

não entenderam nada, guardaram seu Dom para si próprias. Quando o Mal

tiver triunfado, quando vocês afundarem na amargura, seu Dom

afundará junto com vocês. A Esperança se transformará em desesperança. A

simples visão de vocês provocará o desencorajamento. Todos as desprezarão

por terem fracassado. O desespero as seguirá por onde quer que vocês

forem... Até que a Morte as liberte.

Page 215: A profecia das pedras

Âmbar sentiu as lágrimas subirem a seus olhos. Mas Jade gritou:

— Você disse que não tínhamos entendido nada, que tínhamos

guardado nosso Dom só para nós... Isso quer dizer que bastaria oferecê-lo

aos outros para ganhar a guerra? Deveríamos ter-lhes dado a Esperança que

está em nós?

O Décimo Terceiro membro mal conteve a irritação. Em seu

entusiasmo, tinha falado demais. Mas, de todo modo, agora isso não

mudaria mais nada.

—É tarde demais para compreender — disse ele a Jade.

—Não acredito nisso — interveio Opala.

Como Jade e Âmbar, ela estava com sua pedra na mão. As

meninas dirigiram-se à janela sem vidraça, sem que o Décimo Terceiro

membro tentasse impedi-las. Quando as pedras ficaram devidamente

energizadas, apressaram-se em atirá-las ao campo de batalha. Tentaram

ignorar a dor. Mas logo perceberam que alguma coisa as impedia de lançá-

las. Sentiam uma espécie de ligação invisível entre as pedras e elas mesmas,

um laço que não podia ser rompido.

O riso lúgubre do Décimo Terceiro membro ressoou:

—Ainda não compreenderam? Suas pedras fazem parte de vocês.

Elas representam o seu Dom. Jamais poderão se separar delas. Estão

ligadas a elas como estão ligadas entre si. Se uma de vocês morrer, a

Esperança se extinguirá. Sabem como isso aconteceu com vocês? Desde a

noite dos tempos, sempre houve quem detivesse este poder que vocês agora

possuem. No começo, era frágil, mas à medida que o tempo foi passando, ele

foi se fortalecendo.

—Os rostos... Os rostos no lago do Passado... Então, eram as

pessoas que nos transmitiram o poder que temos hoje — pensou Jade.

—A cada geração, uma única pessoa detinha o Dom — prosseguiu

o Décimo Terceiro membro. — Dizem que essa pessoa tinha uma cicatriz em

forma de sol na palma da mão. E seu poder acabou atingindo a plenitude e

dividindo-se em três. A cicatriz transformou-se em pedra. Depois de tanto

tempo, a Esperança escolhia quem a carregaria, e essa pessoa estaria

encarregada de transmiti-la aos outros por toda a sua vida. Se essas pessoas

tivessem falhado em sua missão, se tivessem guardado a Esperança para si,

ela se extinguiria. Mas, à custa de grandes esforços, ela chegou até vocês. E

Page 216: A profecia das pedras

dizer que tudo isso não serviu para nada, porque vocês fracassaram! Seu

Dom só as abandonará quando morrerem, mas quem sabe no que vai

transformar-se agora... Com certeza, a Esperança se extinguirá. Ou,

transformada em desespero, se abaterá sobre o mundo. Nesse caso, vocês

me terão feito dois grandes favores: reuniram meus inimigos para que eu

pudesse acabar com eles tranqüilamente, e garantiram o reinado do Mal por

toda a eternidade.

Um sorriso cruel espalhou-se sobre o rosto da criatura.

—Agora, vão embora.

As meninas não disseram nada. Sabiam que tudo estava perdido,

mas não conseguiam admitir a derrota.

Então, apertaram suas pedras com mais força. Âmbar pensava em

Elyador, porque apenas a imagem dele poderia ajudá-la. Opala via a imagem

de Adrien desenhar-se à sua frente.

Jade, preocupada, escutava a voz de Oonagh, cada vez mais clara:

Uma convencerá as outras a morrer. E, pouco a pouco, compreendeu que

não teria escolha. Se obedecesse ao Décimo Terceiro membro e partisse, o

Mal triunfaria. Seu Dom se transformaria em desespero e, quando ela

morresse, provavelmente se espalharia pelo mundo. Era preciso dar a

Esperança, imediatamente, ao exército da Luz. Mas não podia se separar de

sua pedra. Só quando morresse...

Jade tentou desviar-se da verdade que começava a emergir de seus

pensamentos. Mas não conseguia. Respirou profundamente e depois

confessou a si mesma: se morresse agora, num sacrifício voluntário, talvez

seu Dom se derramasse sobre o exército da Luz e o Mal seria vencido. Mas

talvez também se extinguisse com ela. Como saber? E como aceitar morrer?

Não tinha o direito de partir sem fazer nada. O que seria de sua

vida? O Mal estaria em toda parte. Os raros sobreviventes da Luz a

detestariam e, deprimidos, não poderiam fomentar novas revoltas. Ela

carregaria o peso de seu fracasso pelo resto da vida. Se arrependeria de não

ter agido enquanto era tempo. Não podia partir covardemente. Seria bem

mais simples. Mas já sentia o remorso a espreitá-la.

Dirigiu um olhar resignado a Âmbar e Opala. Sozinha, não era

nada. Sua morte não serviria para grande coisa. Se tivessem que transmitir

seu Dom, teriam que fazer isto juntas. Mas isso Jade era incapaz de aceitar.

Page 217: A profecia das pedras

Jamais pediria a Opala e Âmbar para sacrificar suas vidas, mesmo que

estivesse prestes a sacrificar a sua.

Jade caminhou decididamente até a janela sem vidraça, ainda

segurando sua pedra. Um brilho estranho cintilava em seus olhos. Parecia

um soldado que fosse lutar sua última batalha, ou melhor, um encantador

da Luz diante de seu pior inimigo: o medo. E tinha tanto medo de pular, de

rever a Morte e de deixar a vida...

Embora sem compreender o motivo, Opala e Âmbar adivinharam

suas intenções e correram em sua direção.

O Décimo Terceiro membro não interveio. Tinha certeza de que

meninas de catorze anos não teriam coragem suficiente para se sacrificar.

Depois, isso não mudaria nada. Estava certo de ter ganho a batalha.

—Ganhou a batalha, mas não a guerra — murmurou Jade para as

duas outras.

—Você não está pensando em pular, está? — perguntou Âmbar em

voz baixa.

—Estou — respondeu Jade reprimindo um arrepio.

—Ontem, você disse que eu não estava no meu estado normal —

disse Opala. Mas agora, é você que não está bem.

—Centenas de pessoas viveram com o único objetivo de nos

transmitir o Dom — replicou Jade. — Milhares de outras aguardaram que

trouxéssemos a Esperança para vencer o Mal. Nossos pais foram

assassinados. O exército da Luz foi dizimado diante de nossos olhos. A

liberdade e felicidade vão desaparecer da face da Terra. Até agora, ainda

existia uma chance de que as coisas mudassem. Amanhã, não existirá mais.

Diante disso tudo, nós vamos ficar de braços cruzados?

—Não seja tão fatalista — disse Âmbar. — Nada disso é razão para

pular da janela.

—Você não entendeu nada — cochichou Jade. — A guerra não

acabou. Ainda não. Nós três estamos aqui, e tudo depende de nós. Ou

escutamos esse monstro e aceitamos a derrota, ou oferecemos nosso Dom

aos outros, à Luz. Se fizermos isso, eu garanto: a vitória é certa.

— Tudo isso é muito bonito — disse Opala no mesmo tom. — Mas

não podemos nos separar de nossas pedras!

Jade olhou pela janela.

Page 218: A profecia das pedras

— Eu sei — respondeu ela.

Opala e Âmbar seguiram seu olhar, horrorizadas.

—Você não está querendo dizer... — começou Âmbar.

—A única maneira de abandonar as pedras é morrendo —disse

Jade. — Então, talvez nosso Dom derrame-se sobre o campo de batalha.

Com um sorriso amargo — ela completou:

—Com isso, a Profecia se cumpre...

—Pelo menos, a Morte ficará contente de nos rever — ironizou

Opala.

Mas elas ainda não conseguiam decidir-se pelo sacrifício.

Elyador não tinha mais forças. No entanto, não podia aceitar a

idéia de baixar as armas. Seus pais o tinham amado e o amariam para

sempre. Âmbar o amava, ele a amava e o Amor o sustentava, dava-lhe forças

para continuar.

Subitamente, o céu escureceu. Todos os combatentes olharam

para cima. Imensos pássaros de plumagem cinzenta planavam sobre o

campo de batalha. Eram os rapinantes. Ao sentir as torrentes de medo que

emanavam do combate, correram para deleitar-se e acabar com os últimos

sobreviventes.

Âmbar e Opala deram um grito agudo quando viram os rapinantes.

Se Elyador e Adrien tivessem sobrevivido até aquele momento, certamente

sucumbiriam aos monstros.

Olharam para Jade. As três seguraram firmemente suas pedras.

Nunca tinham sentido tanto medo. Nunca tinham sido tão determinadas.

Esboçaram um sorriso crispado. Em seguida, sob o olhar incrédulo do

Décimo Terceiro membro, jogaram-se no vazio.

Então, as pedras desapareceram de suas mãos, o Dom

desprendeu-se delas. Uma luminosidade intensa as ofuscou. Sentiram-se

cair, cair...

A Esperança que tinham, enfim, dado aos outros, transformou-se

numa chuva de ouro que se derramou sobre o mundo, inundando o coração

de cada ser vivo. Tanto os soldados das Trevas quanto os da Luz pararam de

lutar e elevaram seus olhos em direção ao céu, deixando que seus rostos

fossem banhados pela felicidade.

Page 219: A profecia das pedras

As três meninas já se encontravam a poucos metros do solo, do

fim. Tinham se sacrificado, tinham perdido o Dom... E no entanto estavam

mais repletas de Esperança do que jamais tinham estado antes.

Subitamente, sentiram que poderosas garras penetravam sua

carne. Os rapinantes as tinham pego no ar. Mas não sentiam medo. Pelo

contrário, todas as suas angústias desapareceram e perceberam, aliviadas,

que estavam bem vivas. A chuva da Esperança tinha tingido de dourado a

plumagem dos pássaros e os tinha transformado. Jade, Opala e Âmbar

sentiram que eles não lhes fariam mal. Estavam apenas salvando suas

vidas.

Os pássaros planaram até o campo de batalha e ali depositaram

suavemente as três meninas, antes de alçar vôo novamente.

Jade, Opala e Âmbar não conseguiam compreender o que tinha

acontecido. Elyador, Adrien e Oonagh vinham em sua direção. Ao redor

deles, todos os adversários haviam parado de lutar e pareciam tomados por

uma repentina beatitude.

Opala e Âmbar estavam explodindo de felicidade. Correram para os

dois rapazes, emocionadas. Jade dirigiu-se a Oonagh.

—Conseguimos? — perguntou ela. — Vencemos o mal?

—Sim — respondeu a criatura mágica. — Vocês expulsaram o mal.

Mas, um dia, ele voltará. Não é possível exterminá-lo definitivamente.

—Mas então tudo o que fizemos não adiantou nada! — balbuciou

Jade.

—Graças a vocês, o mal foi afastado. Agora, a paz reinará durante

alguns séculos. Se continuarmos a lutar, a cada momento, contra o ódio, o

medo e a intolerância que habitam nossos próprios corações, talvez ele

jamais consiga voltar.

Jade estava quase chorando. Tinha acreditado ter varrido as

Trevas da face da Terra.

—E agora, o que vai acontecer?

—Lá Fora e Conto de Fadas serão unificados em um só país: o

Reino.

—E o Eleito será nosso Rei?

Ouvindo falarem seu nome, Elyador aproximou-se, seguido de

Âmbar.

Page 220: A profecia das pedras

—Não — disse ele com doçura. — Não quero ser rei. Não quero

governar.

—Dizem que, no começo, antes do surgimento do Décimo Terceiro

membro, o Conselho dos Doze queria realmente instaurar a paz — explicou

Jade. — Mas, pouco a pouco, os membros do Conselho, seduzidos pelo

poder, acabaram tirando a liberdade do povo. Não sei se isso é verdade,

mas...

—É verdade, sim — disse Oonagh. — E é precisamente por isso

que Elyador tem razão. Ele foi Rei durante a batalha e o será até a unificação

do Reino. Depois, dará a liberdade a todos aqueles que jamais a conheceram.

Não é preciso repetir o erro do Conselho dos Doze. O poder transforma os

homens. Elyador não será Rei.

—E eu? E Âmbar e Opala? O que será feito de nós? — perguntou

Jade.

—Vocês farão o que quiserem — disse Oonagh. — Agora, estão

livres para decidir o seu destino.

—Jade queria reencontrar seu pai, o duque de Divulyon.

De repente, uma pepita de ouro caiu aos pés de Elyador. Parecia

uma semente. Ele a mostrou a Âmbar e perguntou:

—Essa é a sua pedra?

—Não — respondeu a menina rindo. — Nossas pedras não existem

mais. Transformaram-se na chuva de ouro.

Opala e Adrien aproximaram-se.

—O que está acontecendo — perguntou Opala.

—Encontramos isso aqui — disse Adrien mostrando a semente de

ouro. Oonagh observou a pepita com um ar pensativo.

—Ponha-a dentro do seu estojo — disse ela a Elyador.

—O que é isso?

—Uma semente de Esperança — murmurou Oonagh.

Elyador seguiu suas recomendações.

— Agora, enterre o estojo — continuou Oonagh.

Cada vez mais intrigado, Elyador obedeceu.

Imediatamente, uma árvore começou a crescer. Seu tronco tinha a

cor da prata. Em poucos minutos, brotaram longos galhos, nos quais

balançavam-se cintilantes folhas de ouro.

Page 221: A profecia das pedras

— Graças a esta árvore, a lembrança do combate travado aqui

atravessará os séculos — explicou Oonagh. — Enquanto ela resplandecer, o

Reino estará em paz. Quando seu tronco ressecar e suas folhas caírem, as

Trevas estarão próximas. Hoje, o bem foi vencedor. Alegremo-nos.

Jade, Opala e Âmbar olharam a árvore da Esperança, que

resplandecia em sua aura de gotas douradas.

Paris, 2002 Acordei. Agora, sei que é o fim. A Morte virá me buscar. No

entanto, é preciso que eu viva. Para que meu sonho transforme-se em

realidade.

Olho, pela última vez, para minha mão direita. No centro da palma,

um pequeno sol exibe seus raios majestosos. A Esperança. Guardei-a só

para mim. Deixei que a doença me vencesse. Vou morrer, a Esperança se

extinguira. Fecho os olhos. E tão difícil partir.

Aí vem ela. Já escuto os passos da Morte. Seu hálito frio gela meu

rosto. Tenho vontade de chorar, mas não tenho lágrimas. Tenho vontade de

gritar, mas não tenho mais forças.

Gostaria de partir sem medo, sem arrependimentos. Impossível.

Estou sufocando. Tudo se desfaz ao meu redor. Só existe a Morte

em mim. Ela me estende a mão. Sinto-me muito mal...

As enfermeiras entram correndo no quarto, seguidas pelo Dr.

Arnon. — O que está acontecendo? — ele pergunta.

—É a menina órfã — responde uma das enfermeiras.

—Está muito mal.

O Dr. Arnon vai até o leito onde está deitada a doente. Seu corpo

descarnado é sacudido por espasmos, gemidos escapam de seus lábios

secos.

—É o fim — diz o médico gravemente.

Subitamente, um clarão de lucidez atravessa o espírito da

moribunda e ela grita:

— O telefone!

Em seguida, com a voz hesitante, murmura:

— Preciso... falar... com uma... pessoa.

Page 222: A profecia das pedras

O Dr. Arnon faz um sinal para as enfermeiras.

— É seu último pedido — cochichou ele. — Não podemos recusá-lo.

Não tenho o direito de morrer! Preciso transmitir a Esperança. E se

ainda não for tarde demais? A Morte está aqui, mas continuo a acreditar no

meu sonho, no impossível. Só me resta a Esperança. Deveria tê-la dado aos

outros. Não fiz isso. Mas por que não acreditar nela? Enquanto a Esperança

estiver em mim, será que a Morte pode me levar?

O médico e as enfermeiras saíram do quarto. A doente pegou

febrilmente o telefone e discou um número que sabia de cor. A mesma voz

que assombrava seus sonhos e pesadelos atendeu.

— Vou morrer — disse ela debilmente. — Eu perdôo você. Agora,

você escolhe. Ou me esquece ou... Você sabe o que precisa fazer.

— Joa? É você, Joa?

Mas a doente já tinha desligado.

Agora, está feito. Chamei Eli Ador, aquele que eu amava e que me

abandonou. Por que fugiu da primeira e última vez que veio me ver? Achei

que não tinha mais importância para ele. Mas talvez ele simplesmente

estivesse com medo. Medo de hospital, da Morte que ronda seus corredores,

daquilo que me tornei.

Agora, nada mais importa.

O Inomeado saiu das Trevas. O sangue que manchava suas mãos

não o impediu de transformá-lo no Eleito. Se as pessoas conseguiram

perdoá-lo, fazer dele um Rei... por que eu não perdoaria Eli?

Minha respiração está cada vez mais ofegante. Quase não ouço

mais os batimentos de meu coração. A Morte me espera, impaciente.

—Ela está muito fraca — disse a enfermeira. — Esses são

provavelmente seus últimos momentos.

—Mas não pode me impedir de entrar! — insistiu o rapaz. —

Preciso estar ao lado dela! É preciso que ela viva!

— Temo que seja tarde demais — replicou a enfermeira. Ela

observou o rapaz. Tinha os cabelos castanhos em desalinho, um olhar

desesperado.

—Você já veio vê-la alguma vez? — perguntou a enfermeira.

—Só uma vez — disse o rapaz com amargura. — Deixe-me vê-la —

implorou.

Page 223: A profecia das pedras

A enfermeira pensou um instante.

—Então vá. Mas seja breve.

Não sei se Eli virá. Mas olho para o sol na palma da minha mão e

acredito. Acredito no impossível, acredito no meu sonho. Acredito em

Elyador. Eu espero. Simplesmente.

A Morte está aqui perto. Pior para ela. Que me espere...

Eu vou viver. Porque é preciso. Porque eu quero. Porque sonhei.

Agora, prefiro viver, ainda que tudo dê no mesmo.

Meu sonho me devolveu a vida. Agora, eu tenho que devolver o

sonho à vida.