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A PROMOÇÃO POR MERECIMENTO E O JUIZ COMPETITIVO
Pio Giovani Dresch – presidente da AJURIS
A concepção de promoção por merecimento que emergiu da Resolução 106, da qual o Assento Regimental nº 1/2013 do TJRS é o modo mais acabado de detalhamento, baseia-se na ideia de apuração do merecimento por critérios objetivos, com preponderância da quantidade sobre a qualidade.
A proposta deste artigo é questionar a possibilidade de apurar merecimento por critérios exclusivamente numéricos e identificar os riscos decorrentes desse procedimento, que aponta para a formação de um juiz competitivo e serial, com efeitos negativos para o nosso sistema judiciário.
I
Pasquale Colagrande, fuzilado por ordem de um tribunal especial, era um daqueles mil
togados que, mesmo nos tempos de terror, prosseguiram com sua obra de cada dia pela
continuidade da justiça. Pasquale Saraceno, cuja obsessão era o erro judiciário, queria ser
encerrado numa prisão, entre delinquentes comuns, para procurar na realidade do cárcere a
justificação da pena. Aurelio Sansoni, que se negou a fazer a vontade dos bandos fascistas que
invadiam as salas dos tribunais, atormentava-se por fazer justiça, e chegava a perguntar ao
bedel Gervasio se o réu merecia ser condenado. Esses três magistrados, admirados por
Calamandrei1, seriam promovidos por merecimento no Brasil de 2014? No Rio Grande do Sul
de 2014? Certamente não. Não pelos atributos que os tornaram dignos de admiração do
célebre advogado e doutrinador italiano.
Evidentemente, no Brasil e no Rio Grande do Sul de 2014 não se vivem tempos
heroicos como os que fizeram tombar dois dos homenageados por Calamandrei, e por isso não
faria sentido buscarmos tais arquétipos para indicar a uma promoção, mas a admiração que o
1 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Calamandrei dedica a terceira edição de seu “Eles, os juízes, vistos por um advogado” a esses três magistrados. Escreve Calamandrei sobre seu livro: O elogio não é às leis, mas à condição humana do magistrado italiano, a essa ordem de ascetas civis condenados, numa sociedade que despreza cada vez mais os valores morais, à solidão, ao isolamento, em certos períodos também à miséria e à fome, e no entanto capazes de permanecer com dignidade e discrição em seu posto, inclusive em tempos de ruína geral, para tentar introduzir nas fórmulas impiedosas das leis a compreensão humana da razão iluminada pela piedade. Por isso, esclarece, sua obra não se restringe a esses três magistrados, já mortos, mas é dedicada também à multidão anônima dos juízes vivos, dignos desses mortos, especialmente aos mais jovens e aos mais obscuros, àqueles que, movidos pela vocação, mal passaram o limiar da Magistratura e aos quais é confiada a tarefa de administrar sempre melhor, isto é, sempre de maneira mais humana, a justiça do futuro.
doutrinador por eles nutria não decorria somente do fato de terem resistido ao fascismo, e sim
da sua dimensão humana, bem refletida na condição de juízes.
E o que aqui se sustentará é que a concepção que orienta a promoção por merecimento
no Brasil e o modo como é operacionalizada não contemplam a possibilidade de beneficiar
magistrado com esse perfil. O regramento ora em vigor indica o juiz que se quer ver
promovido; um tipo de juiz diferente do de Calamandrei, que mudará, para pior, o perfil da
magistratura.
II
Ao longo de 2012 e 2013, o Judiciário do Rio Grande do Sul teve a movimentação na
sua carreira praticamente paralisada, em decorrência de decisões do Conselho Nacional de
Justiça que sustaram promoções, com fundamento na alegada inobservância das diretrizes
referentes às promoções por merecimento, constantes da Resolução 106/20102 do próprio
CNJ.
Foram duas decisões em promoções para desembargador, cuja maior repercussão e
importância estão não só no fato de dizerem respeito ao Segundo Grau, mas também no de,
por impedirem essas movimentações, terem deixado de gerar em cadeia outras promoções, até
a entrância inicial. Em ambos os casos, o CNJ foi provocado, em Procedimentos de Controle
Administrativo, por candidatos alijados das promoções.
No primeiro deles, em julho de 2012, o argumento maior era a ilegalidade da chamada
margem de segurança, mecanismo utilizado pela Corregedoria Geral de Justiça na produção
dos escores submetidos ao Tribunal de Justiça, com a finalidade de evitar que candidatos mais
modernos ultrapassassem mais antigos no merecimento, quando a diferença de escore entre
eles fosse reduzida3. O CNJ anulou a promoção, sob o argumento, consagrado na
jurisprudência, de que no merecimento todos os candidatos aptos devem concorrer em
igualdade de condições, e portanto nenhum favorecimento deve haver aos mais antigos4.
2 O texto da Resolução está em http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-resolucoes/12224-resolucao-no-106-de-06-de-abril-de-2010.
3 Estabelecia a regra referente à margem de segurança que, quando houvesse entre os concorrentes diferença de pontuação inferior a cinco, se presumiria o maior merecimento do candidato mais antigo.
4 Extraio da ementa: A adoção de “margem de segurança”, com a relativização da nota obtida pelos magistrados depois de avaliados os critérios objetivos da Resolução/CNJ nº 106, de 2010, em até cinco pontos, depois de simulada a sua repercussão na formação das listas tríplices, com o desempate em favor dos magistrados mais antigos, não encontra respaldo legal, confere favor à antiguidade nas promoções por mérito não previsto na Constituição e ofende o princípio da impessoalidade. Precedente do STF. O inteiro
No segundo, em outubro de 2013, quando já se encontrava em vigor o Assento
Regimental nº 1/20135, produzido justamente com a finalidade de adequar as regras de
promoção por merecimento às disposições da Resolução 106, a insurgência decorreu
principalmente da inconformidade em relação à sistemática de pontuação das sentenças
prolatadas em regime de substituição6. Após liminarmente suspensa a posse dos promovidos,
a decisão foi alterada pelo plenário do CNJ7.
Embora as mencionadas regras tenham sido produzidas no âmbito da Administração,
sem a oitiva da AJURIS8, ao longo de 2013 a Associação dos Juízes manifestou
reiteradamente seu entendimento de que melhor seria dar curso aos certames que se
realizassem. Essa posição decorreu da certeza de que qualquer regramento que viesse a ser
estabelecido seria imperfeito e teria de ser posteriormente aperfeiçoado, e se fundou na
compreensão de que o prejuízo ao conjunto da magistratura pela falta de movimentação era
maior que os eventuais prejuízos individuais de quem viesse a ser preterido na promoção,
Por esse mesmo motivo, e ainda pendente de decisão definitiva o certame de outubro
de 2013, a AJURIS reiterou sua opção anterior de não se posicionar sobre o mérito das
impugnações, postulando, todavia, uma decisão célere, dado o enorme prejuízo que a
paralisação impõe à magistratura e aos jurisdicionados.
Esse esclarecimento inicial é necessário, porque aqui se fará uma crítica severa da
concepção que orienta as promoções por merecimento, e ainda em grande medida em
processo de consolidação, pelos efeitos deletérios que produz na magistratura, principalmente
por moldar um perfil de juiz competitivo9 e serial, indesejado para qualquer sistema de
teor pode ser conferido em http://www.ajuris.org.br/tmp/impr/DECISAO_CNJ_2012.pdf.5 O inteiro teor está em http://www.ajuris.org.br/tmp/impr/ASSENTO_REGIMENTAL_1_2013.doc.6 A questão é analisada na nota 10.7 O Conselheiro Rubens Curado Silveira concedeu liminar suspendendo a posse dos desembargadores
promovidos, mas o plenário do CNJ, reunido em 17 de dezembro, por margem mínima (oito a sete), revogou a decisão liminar. Em razão disso, em 20 de dezembro de 2013 ocorreu a posse de 13 desembargadores. Todavia, quando escrevo, em janeiro de 2014, ainda não ocorreu a decisão definitiva do CNJ.
8 A regulamentação do certame de 2012 foi elaborada no âmbito da Corregedoria Geral de Justiça, e era tacitamente aceita pelo Órgão Especial. Já o Assento Regimental que regulamentou o certame de 2013 passou num primeiro momento pela elaboração de uma proposta no âmbito da Corregedoria Geral de Justiça, em comissão que teve a participação de um magistrado indicado pela AJURIS, mas a elaboração final ocorreu em comissão constituída pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, na qual a AJURIS não foi ouvida.
9 É importante, na medida em que o texto se desenvolve na crítica a um modelo que resultará em um juiz de perfil competitivo, esclarecer que tratarei de um arquétipo, com isso sublinhando, primeiro, que certamente não existe um juiz exclusivamente competitivo e, como seu oposto, um juiz exclusivamente cooperativo e, segundo, que não defendo como ideal um juiz absolutamente desprovido de qualquer traço de espírito competitivo, porquanto amorfo e sem perspectivas. Nesse plano, e também porque o merecimento, por definição, pressupõe a possibilidade de que o mais moderno suplante o mais antigo, registro que a competição circunscrita a alguns limites é de ser vista como salutar.
Justiça.
Não se questiona, portanto, a correção das promoções para desembargador
recentemente havidas no Rio Grande do Sul ou do Assento Regimental com base na qual
ocorreram, que é ora objeto de impugnação no CNJ, por multiplicar por três as sentenças
dadas em regime de substituição10; a questão é que a regulamentação dada pelo CNJ ao
sistema de promoção por merecimento previsto pela Constituição Federal, depois detalhado
com requintes matemáticos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, merece uma crítica
10 Cabe, todavia – e, para evitar a contaminação do texto, o lugar para isso é o rodapé –, fazer algumas considerações críticas sobre o próprio Assento Regimental. Limito-me aqui, porque considero mais relevantes, exigindo correção antes das próximas promoções, a três linhas de crítica, duas das quais decorrem de disposições emanadas da Resolução 106, enquanto a terceira diz respeito especificamente ao Assento Regimental.1) O reduzido tempo de avaliação. Os desembargadores recentemente promovidos no TJRS tinham, em média, 16 anos de entrância final, mas foram avaliados somente por seus dois últimos anos, tempo mínimo previsto na Resolução 106, e dessa forma adotado no Assento Regimental nº 1/2013.Desse modo, uma pequena oscilação na produção de determinado magistrado poderá levar a uma pontuação muito diferente à de sua jurisdição de longo tempo. Pior do que isso, magistrados que estão há muito tempo numa única vara, e ao longo desse período organizaram uma rotina e mantiveram em dia sua jurisdição, tendem a ser prejudicados na avaliação, porque dificilmente conseguirão ter uma produção próxima de quem tenha atuado nos últimos dois anos em vara com resíduo elevado.Além disso, tal critério pode levar a uma significativa oscilação de pontuação entre um certame e outro, seja por força de alterações significativas na jurisdição, como pode ocorrer na alteração de judicância, seja por qualquer acidente temporário na jurisdição, como, exemplificativamente, como o afastamento de uma assessora para licença maternidade, seja mesmo por pequena e temporária oscilação na produtividade.2) O problema dos agrupamentos. A ideia, conceitualmente correta, de que a avaliação da produtividade deve ser feita em comparação com jurisdições semelhantes, leva a um problema quase insolúvel. Com efeito, as semelhanças são meras aproximações, nem sempre bem sucedidas, em que sutis diferenças de perfil levam a resultados significativamente distintos na pontuação.Tome-se como exemplo uma situação hipotética em que se agrupem varas cíveis de determinado tamanho, que tenham volume de 5 mil e 6 mil processos. Evidentemente, nesse intervalo, o juiz titular da vara com 20% a mais de processos tem uma vantagem quase insuperável em relação ao outro. Esse é um problema sem solução, visto que qualquer ajuste mais fino levará a multiplicar os agrupamentos e reduzir as varas que os compõem, até um limite em que não haja mais nenhuma referência possível de comparação.E o exemplo aqui utilizado é de varas semelhantes, que com certeza não estabelecem os limites de enquadramento nos agrupamentos; pelo contrário, para evitar que eles sejam constituídos com poucas varas, o que tornaria menos segura a base de comparação, são incluídas no mesmo agrupamento varas muito diferentes entre si, o que agudiza a disparidade entre os concorrentes.O problema ocorre tanto no que se refere ao volume de processos que tramitam quanto às peculiaridades de cada vara: em algumas situações, os agrupamentos hoje existentes reúnem varas com características muito distintas, como ocorre nas situações em que se agregam no mesmo perfil varas que recebem em grande quantidade demandas repetitivas e varas em que isso não ocorre.Mesmo assim, ainda há situações de varas sem agrupamento ou agrupamentos de duas varas, o que torna absolutamente insegura qualquer avaliação.De qualquer maneira, se muito há a aperfeiçoar no regramento do Rio Grande do Sul, há que se deixar bem registrado que, embora factível reunir jurisdições semelhantes, a apuração comparativa que chega a identificar diferenças de pontuação milimétricas é por definição fonte de equívocos. Não há fórmulas capazes, em qualquer agrupamento de desiguais, de produzir resultados que confiram precisão na pontuação do trabalho de cada um, e, uma vez conhecidos, quaisquer que sejam, já de antemão se pode saber, olhando os extremos dos respectivos agrupamentos, quem será beneficiado e quem será prejudicado. Essa observação não é feita com o objetivo de detratar os agrupamentos, mas de, mais uma vez, alertar contra a ilusão da objetivação.3) A pontuação das sentenças dadas em regime de substituição. A multiplicação por três das sentenças
de fundo, pela concepção a partir da qual se constrói.
III
A sistemática de promoções existente no Judiciário brasileiro, em que se alternam
merecimento e antiguidade, vem de longa data11, mas a modalidade promoção por
merecimento sempre foi motivo de fortes polêmicas, seja por não definido um critério claro
de apuração do mérito, seja porque historicamente se faziam críticas sobre favorecimento a
candidatos em alguns tribunais.
As promoções polêmicas que ocorreram ao longo dos anos – e há inúmeros exemplos,
em diversos tribunais brasileiros, de queixas pelas promoções de jovens magistrados, muitas
vezes parentes de desembargadores, que superavam juízes mais antigos com carreira
exemplar – foram sempre um mote para se buscarem soluções que permitissem uma maior
justiça nos procedimentos.
Ao longo dos anos 90 e 2000, justamente por não confiar na justiça desses certames, a
dadas em substituição se faz pela alteração na fórmula de apuração do escore, que passa de EP=(m-M)/dp para EP=(3m-M)/dp. EP significa escore padronizado, m é a média dos atos praticados pelo candidato à promoção, M é a média do agrupamento, e dp é o desvio padrão do respectivo agrupamento.Há uma justificativa muito forte para a multiplicação: a mera contagem do número de sentenças proferidas em substituição, em cotejo com a média de sentenças do respectivo agrupamento, levaria invariavelmente a escores negativos, porque, salvo em situações excepcionalíssimas, na substituição cumulada com a jurisdição da titularidade, por razões físicas é extremamente difícil manter produção semelhante. A multiplicação por três não é, portanto, desarrazoada.Todavia, desconsiderou o Assento Regimental, ao determinar essa multiplicação, o que fez ao presumir que em regra se dedica à substituição um terço do tempo destinado à jurisdição da titularidade, que isso impunha a inclusão do numeral 3 também no denominador, para reduzir proporcionalmente o peso da substituição no resultado final. Nesse caso, a fórmula ficaria assim: EP=(3m-M)/3dp.Mais que isso, a apuração dos escores demonstrou uma enorme oscilação de produtividade na substituição, o que impunha a adoção de um indicador de desvio padrão próprio para esse tipo de jurisdição. Com essas duas providências se teria chegado a uma redução da pontuação da substituição, sem o risco da temida pontuação negativa, o que certamente teria levado a resultados menos impactantes.O resultado da fórmula adotada configurou claramente uma distorção: considerados todos os candidatos, para tempos muito menores de substituição (como foram considerados 24,4 meses de jurisdição por candidato, os 27 candidatos totalizam 658,8 meses de titularidade; já a soma das substituições foi de 226,7 meses), a soma das pontuações individuais, em números absolutos, portanto desconsiderados os valores negativos, foi de 45,3, enquanto a pontuação na titularidade foi de somente 26 (os dados podem apresentar variações mínimas em relação aos dados oficiais, porque utilizo somente frações decimais, dados de que disponho). Assim, em média, um mês de jurisdição como titular rendeu 0,039 pontos; já um mês de substituição rendeu 0,200 pontos.Um último aspecto a se destacar nesse plano é o de que certamente há substituições cuja natureza é idêntica ao trabalho da titularidade, o que potencializa a produção e cria situações de desigualdade em relação aos competidores, notadamente quando incluem demandas repetitivas. Isso também não foi aferido.
11 No âmbito constitucional, a alternância entre antiguidade e merecimento vem desde 1934, prevista no art. 104, alínea b: investidura, nos graus superiores, mediante acesso por antigüidade de classe, e por merecimento, ressalvado o disposto no § 6º.
AJURIS defendeu que no Estado do Rio Grande do Sul também as promoções por
merecimento se dessem pelo critério da antiguidade. A sistemática foi adotada pelo Tribunal
de Justiça, que, por muitos anos, apenas circunstancialmente, em situações notórias de grande
mérito ou demérito de algum candidato, alterava a ordem de antiguidade, e sempre de modo
comedido, ou seja, com ultrapassagens mínimas.
Essa sistemática propiciou longos anos de paz na magistratura do Estado, sem
impugnações, questionamentos ou rivalidades. A previsibilidade das promoções ensejava um
clima tranquilo, de coexistência pacífica, em que ninguém se preocupava em se mostrar
melhor que os colegas.
Tal solução de bom senso evidentemente só se sustentava num quadro sem controle ou
regulamentação, porque solapava o sistema de alternância consagrado pela própria
Constituição Federal. Na verdade, embora atendesse à aspiração de todos, a sistemática do
Rio Grande do Sul, ao optar pela antiguidade mitigada nas promoções por merecimento, se
mostrava mesmo mais frágil, diante da regra clara da alternância, que a de qualquer outro
tribunal, mesmo onde houvesse acusação de favorecimento indevido, porque neste os
fundamentos da decisão podiam, de qualquer maneira, invocar o maior merecimento.
No plano nacional, a solução encontrada foi outra, a partir do processo de reforma do
Judiciário, consolidado pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Uma das alterações da
Emenda 45 está na redação do art. 93, II, c, da Constituição Federal, na qual, além da inclusão
de novos critérios para o merecimento, foi inserido o vocábulo objetivos, como modo de
qualificar a palavra critérios. Se antes isso não estava claro, a nova redação era expressa em
dizer que os critérios para promoção deviam ser objetivos12.
Na esteira dessa inovação constitucional, o Conselho Nacional de Justiça, criado pela
mesma Emenda 45, editou em 2010 a Resolução nº 106, que traça diretrizes para as
promoções por merecimento, estabelecendo cinco eixos de avaliação: desempenho,
produtividade, presteza, aperfeiçoamento técnico e conduta.13
12 Na verdade, a Constituição limita a aplicação dos critérios objetivos somente à produtividade e presteza (ver nota 16). No âmbito infraconstitucional, a referência a critérios objetivos já estava presente na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Lei Complementar 35/1981, cujo artigo 80 dispõe, no § 1º, inciso II: para efeito da composição da lista tríplice, o merecimento será apurado na entrância e aferido com prevalência de critérios de ordem objetiva, na forma do Regulamento baixado pelo Tribunal de Justiça, tendo-se em conta a conduta do Juiz, sua operosidade no exercício do cargo, número de vezes que tenha figurado na lista, tanto para entrância a prover, como para as anteriores, bem como o aproveitamento em cursos de aperfeiçoamento.
13 Aos quatro critérios constitucionais, do desempenho, produtividade, presteza e aperfeiçoamento técnico, foi acrescido o da adequação da conduta ao Código de Ética da Magistratura, aprovado pelo próprio CNJ em 2008.
É importante assinalar que essa determinação de observância de critérios objetivos
atendeu a um anseio sempre presente na magistratura nacional e nas suas entidades de classe.
A existência de critérios objetivos seria um antídoto para práticas espúrias de favorecimento, e
desse modo asseguraria que as promoções por merecimento efetivamente recaíssem sobre
quem mais merecesse.
Todavia, passado já um tempo razoável desde a edição da Resolução 106, ela própria
já em processo de revisão no âmbito do CNJ14, é importante fazer uma avaliação sobre seus
efeitos. Na verdade, mais do que discutir especificamente a referida Resolução, impõe-se
analisar a objetivação de critérios estabelecida pela Constituição, o modo como essa
objetivação se apresenta na prática e, no limite, questionar até mesmo o instituto da promoção
por merecimento.
Tal debate é cada vez mais necessário, não só porque a objetivação de critérios tem
levado a problemas graves de avaliação, causando, paradoxalmente, uma sensação geral de
insegurança entre os candidatos e de injustiça entre muitos dos preteridos, mas – e muito mais
por isso – porque a prática ameaça forjar um perfil de juiz competitivo.
IV
Antes da análise que farei, em sequência, da Constituição Federal, da Resolução 106 e
do Assento Regimental nº 1, considero importante fixar alguns pontos, que servirão de
pressupostos na discussão. É importante que estejam claros, para evitar incompreensões sobre
o real fundamento da crítica.
Em primeiro lugar, realçando circunstância que já assinalei, reitero que havia uma
justificativa histórica para a adoção de critérios objetivos à promoção por merecimento. A
medida foi vista como solução não só entre os legisladores constituintes, como igualmente na
própria magistratura, que historicamente se insurgia contra promoções injustificadas, com
indícios de favorecimento15. A objetivação foi vista como a solução contra o favorecimento.
14 A Portaria 170, de 23 de setembro de 2013, cria um grupo de trabalho para apresentar sugestões de revisão e aperfeiçoamento da Resolução 106. Entre os considerandos, “a existência de pontos ainda polêmicos e que têm gerado certa perplexidade para os tribunais brasileiros na aplicação da Resolução nº 106, bem como o grande número de procedimentos impugnando os certames de promoção por merecimento neste Conselho.” Para conhecer o teor da Portaria: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/portarias-presidencia/26379-portaria-n-170-de-23-de-setembro-de-2013.
15 Entre as 75 propostas da AJURIS para a Constituinte eleita em 1986, encontrava-se a seguinte: Determinar a fixação prévia de critérios para a promoção por merecimento, por resolução do Tribunal. A justificativa era esta: É preciso acabar com o subjetivismo absoluto nas promoções por merecimento. Havendo critérios
Um segundo aspecto a pontuar é a distinção que farei entre dois tipos de juízes, que de
certo modo refletem os dois lados da eterna tensão processual entre celeridade e segurança
jurídica. Há, com certeza, juízes muito céleres e muito seguros, mas, ainda que a maior
presença de uma característica não afaste a outra, como regra, é possível afirmar que, na
tensão entre essas duas exigências processuais, alguns se caracterizam mais pela celeridade e
outros mais pela segurança. Essa tensão é cada vez mais presente na vida dos juízes, já não só
pelo tempo processual que impõe ora a decisão rápida, ora a segura, mas principalmente pelo
volume crescente de demandas, que permite menos tempo para análise de cada processo. Por
isso, novamente enfatizando que não há uma relação automática ou necessária entre rapidez e
qualidade, mas admitindo que bons juízes tenham diferentes perfis em relação a essa tensão,
qualquer ideia de merecimento não pode ignorar a necessidade de equilíbrio entre os dois
polos.
Nesse ponto cabe ainda esclarecer que essa distinção se faz sem considerar uma
terceira característica, da competitividade, que pode coincidir com a da celeridade – nesse
caso talvez encarnada pela expressão “juiz mapista” –, mas não tem relação automática com
esta.
Ao estabelecer essas distinções, adianto o objeto da crítica que se fará: 1) a absoluta
objetivação da promoção por merecimento reduz o processo a equações matemáticas, próprias
para medir quantidade16, mas impróprias para medir a qualidade; 2) mais que isso, mesmo na
tentativa de pontuar a qualidade, as soluções até agora apontadas privilegiam numericamente
a quantidade, o que praticamente inviabiliza a promoção por merecimento de quem dá ênfase
à qualidade da jurisdição; 3) a tendência é de valorização de um juiz competitivo, perfil que
acabará por se impor na magistratura.
V
A alteração operada no art. 93, II, c, da Constituição Federal, pela Emenda
Constitucional 45, modificou os critérios de promoção: permaneceram a presteza e a
frequência e aproveitamento em cursos, mas houve a substituição do critério da segurança no
exercício da jurisdição por dois outros critérios, o desempenho e a produtividade17.
prévios, eles se objetivam.16 Como se verá adiante, mesmo para medir a quantidade, as fórmulas matemáticas parecem inadequadas,
porque não há solução aparente para medir de modo adequado diferentes tipos de jurisdição.17 Redação dada à alínea c pela Emenda Constitucional 45/2004: aferição do merecimento conforme o
São dois os efeitos visíveis da alteração: o primeiro deles está na inclusão do
desempenho e da produtividade; o segundo, como já assinalado, é a opção do legislador
constituinte pela objetividade na aferição da produtividade e da presteza.
A própria alteração de critérios traz ínsita uma busca de objetivação, com clara
preferência pela produção. Para esse propósito, a expressão segurança no exercício da
jurisdição pecava pela vagueza, e permitia diversas leituras, assim se prestando a
manipulações que certamente o constituinte queria afastar. Já desempenho e produtividade são
mais facilmente aferíveis, reduzíveis a números, e portanto menos suscetíveis a manipulações.
Todavia, essa alteração não pode ser vista somente como uma melhor explicitação do
que se desejava na jurisdição, mas já indicava um tipo de juiz a ser valorizado: deveria
apresentar desempenho e produtividade, além da presteza já prevista.
Desempenho, produtividade e presteza são vocábulos afins, e, numa primeira leitura,
de difícil distinção, talvez redundantes. Retiro de Houaiss uma acepção para cada vocábulo
(embora arbitrária, a escolha busca considerar a maior afinidade com o tema): desempenho:
maneira como atua ou se comporta alguém ou algo, avaliada em termos de eficiência, de
rendimento; produtividade: volume produzido; presteza: característica do que é ligeiro para
fazer algo; rapidez, celeridade.
Trata-se, portanto, de uma opção pelo resultado rápido: produzir um grande volume
em curto espaço de tempo e com eficiência. Com alguma concessão ao vernáculo, se poderia
– e o CNJ fez isso na Resolução 106 – tomar desempenho por qualidade. Assim, a eficiência e
rendimento da acepção se afastariam de uma ideia geral de resultado físico, para serem
considerados como qualidade.
De qualquer maneira, ao ser substituído o critério da segurança pelo do volume e da
qualidade, dois dos quatro critérios constitucionais, produtividade e presteza, únicos em
desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento. A redação original era a seguinte: aferição do merecimento pelos critérios da presteza e segurança no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento. Note-se que a redação original, além de não mencionar critérios objetivos, estabelecia só três critérios para promoção: presteza, segurança e aperfeiçoamento técnico. Com a Emenda 45, mantiveram-se a presteza e o aperfeiçoamento técnico; já a segurança no exercício da jurisdição deu lugar ao desempenho e à produtividade.A nova redação atendeu em grande medida a proposta de texto da Associação dos Magistrados Brasileiros, que, todavia, era distinta em alguns pontos: aferição do merecimento, regida por critérios objetivos, em julgamento público e mediante votação individualmente fundamentada, sob pena de nulidade, com avaliação de desempenho funcional, presteza e segurança no exercício da jurisdição e pela frequência, com aproveitamento, em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento. Foi a proposta da AMB, apresentada em Emenda Substitutiva pelos Deputados José Priante e Bonifácio de Andrada, que trouxe a ideia da adoção de critérios objetivos; por outro lado, preconizava também a votação individualmente fundamentada, que poderia ter servido como antídoto à simples redução a fórmulas.
relação aos quais a Constituição determinou a aferição por critérios objetivos, diziam
diretamente com a quantidade da produção. São, todavia, duas faces da mesma moeda: só
produz muito quem é célere; para ser célere, é necessário produzir muito. Há, portanto, dois
critérios que dizem respeito diretamente à quantidade da produção, mais um que diz com a
qualidade e um que diz com a formação.
VI
Quando editou a Resolução 106, o CNJ considerou, como não poderia deixar de fazer,
esses quatro critérios constitucionais e adicionou a adequação ao Código de Ética da
Magistratura, o que parece ser um acréscimo pertinente, se pensada a necessidade de valorizar
um juiz cujo perfil se enquadre nos predicados desejados de um magistrado.
Todavia, ao estabelecer a valoração dos diferentes critérios, a Resolução deu ênfase
justamente aos critérios da produção, ao estabelecer, em seu art. 11, a seguinte pontuação:
desempenho, 20 pontos; produtividade 30 pontos; presteza, 25 pontos; aperfeiçoamento
técnico, 10 pontos; adequação da conduta ao Código de Ética, 15 pontos. Em outros termos, a
pontuação do merecimento consiste em 55 pontos para a quantidade da produção, 20 pontos
para sua qualidade, 15 para a conduta e 10 para a formação, assim privilegiando o concorrente
cuja característica é a agilidade ou quantidade, em detrimento daquele que prima pela
qualidade.
É certo que a presteza foi dividida em dois eixos: a celeridade na prestação
jurisdicional, que envolve questões como observância de prazos, tempo médio para a prática
de atos, tempo médio de duração dos processos, itens claramente quantitativos; e a dedicação,
de natureza mais gerencial, que envolve assiduidade, pontualidade e residência na comarca,
além de ações inovadoras e incentivo à conciliação.
Assim, a natureza mais quantitativa do quesito presteza ficou mitigada, de modo que
se pode mesmo considerar que o aspecto numérico quantitativo fica ligeiramente abaixo de
50% da pontuação. Exemplo disso está no Assento Regimental nº 1/2013, que atribui 18
pontos à celeridade e sete pontos à dedicação. Nesse caso, somados os 30 pontos da
produtividade aos 18 da celeridade, 48 do total de cem pontos serão resultado de ações
quantitativas.
VII
Num terceiro momento, em que as definições gerais da Constituição, já especificadas
pelo CNJ, ingressam num nível de detalhamento maior, é que fica mais clara a armadilha dos
números, pela qual sucumbe um procedimento construído com a ilusão de conseguir apurar o
merecimento por meio de equações matemáticas.
Não parece coincidência que, no quesito presteza, dividido pelo CNJ em celeridade e
dedicação, o TJRS tenha atribuído 18 pontos à celeridade e somente sete à dedicação, numa
proporção de 72% a 28%. A questão se afigura bastante simples, e foi perceptível nos debates
em torno da elaboração dos critérios: tudo o que é objetivo e pode ser reduzido a uma equação
é fácil de fazer18; tudo o que é subjetivo, e portanto envolve julgamentos de valor, é
sobremaneira difícil, e por isso tende a ser subvalorizado.
Essa concretização da prevalência dos critérios quantitativos se apresenta em dois
momentos: primeiro, na elaboração do Assento Regimental; depois, na sua aplicação prática,
por ocasião dos processos de promoção. De outro modo, se pode dizer que, primeiro, se
atribuem menos pontos a aspectos qualitativos, em comparação com os quantitativos, e depois
ainda se retira peso dos qualitativos pela padronização de escores, enquanto os quantitativos
são apreciados em toda a sua amplitude.
Comecemos pelo detalhamento dos pontos previstos no Assento: 1) no desempenho,
doze dos vinte pontos são atribuídos à redação, clareza e objetividade das sentenças, quatro
pontos à pertinência da doutrina e jurisprudência e até quatro pontos para louvores; 2) na
produtividade, metade dos trinta pontos vai para sentenças, mais uma quarta parte vai para
audiências e uma quarta parte para decisões interlocutórias; 3) dos 25 pontos da presteza, dois
vão para assiduidade, pontualidade e residência na comarca, dois para gestão, três para
inovação e engajamento em ações institucionais e 18 pontos à celeridade; 4) dos dez pontos
do aperfeiçoamento técnico, três vão para a frequência e aproveitamento em cursos para
magistrados, cinco para a formação acadêmica e três para a ministração de aulas dirigidas ao
Judiciário; 5) na avaliação da conduta, parte-se de 15 pontos, com redutores para o candidato
que esteja sofrendo processo administrativo ou tenha sido penalizado.
18 A facilidade de converter em números não significa necessariamente que os resultados sejam adequados. O problema que decorreu da multiplicação por três dos resultados obtidos em regime de substituição, que claramente gerou uma distorção, impõe desde logo a necessidade de rever os valores atribuídos a certas ações, mas não afasta a premissa segundo a qual os aspectos quantitativos da jurisdição podem resultar em fórmulas que indiquem merecimento.
Mas, na prática, vários desses pontos não estão em disputa, porque são atribuídos de
igual modo a todos os concorrentes. Analiso cada um dos critérios.
Na sessão do Órgão Especial que definiu a última promoção, o primeiro votante, que
foi acompanhado pelos demais, sustentou, na análise do desempenho, a pertinência de se
atribuir valor mínimo igual a 6 a todos os candidatos nas sentenças, reservando notas
inferiores somente a casos excepcionais de falta de qualidade. Portanto, como todos os
concorrentes tinham seis pontos assegurados, disputaram somente os seis pontos restantes. Já
na pertinência da doutrina e jurisprudência, os quatro pontos foram conferidos indistintamente
a todos os candidatos. Restou a possibilidade de obterem até quatro votos por louvores de
sentenças e decisões. A conclusão é a de que, se dez pontos foram atribuídos a todos os
candidatos, estavam em jogo não vinte pontos, mas somente dez, e este é o peso real do
desempenho.
Já na produtividade, não consideradas as decisões interlocutórias, por não haver dados
disponíveis, a pontuação foi distribuída aos outros dois itens19, aplicando-se uma régua, com
pontuação de zero a trinta, de modo que todo o espectro de trinta pontos foi utilizado.
Na primeira parte do critério presteza, que conferia dois pontos à assiduidade,
pontualidade e residência na comarca, foi conferida a pontuação total a quem reside na
comarca e retirado meio ponto dos raros candidatos que, tendo autorização para isso, não
residem na comarca; assiduidade e pontualidade não foram consideradas. Já os dois pontos
referentes à gestão e os três pontos referentes à inovação e engajamento em ações
institucionais foram atribuídos nos limites de cada espectro. Quanto aos 18 pontos atribuídos
à celeridade, seis foram dados a todos os candidatos, por inexistir ferramenta capaz de
oferecer os dados estatísticos sobre tempo de duração de processo e sentenças líquidas; nos
outros doze pontos, houve a possibilidade de atribuição de qualquer nota ao longo do
espectro, embora a maior parte dos postulantes tenha atingido nota máxima.
Também no critério aperfeiçoamento técnico os dez pontos possíveis estavam em
disputa.
Por fim, no que se refere à adequação da conduta, todos os candidatos, à exceção de
um, receberam nota máxima, indicando na prática uma igualdade de condições, que neutraliza
o quesito.
19 Neste caso, ao contrário do que aconteceu com outros critérios, em particular os de natureza qualitativa, em que a falta de informações levava ao empate e consequente neutralização do quesito, aqui a redistribuição robusteceu o quesito sentenças, que passou de 15 a 20 e o de audiências, que passou de 7,5 a 10.
Desse modo, dos cem pontos previstos, estiveram efetivamente em disputa 67, assim
distribuídos: 10 para o desempenho, 30 para a produtividade, 17 para a presteza, 10 para o
aperfeiçoamento técnico. Analisado de outra forma, permaneceram em disputa 42 pontos
referentes à produção propriamente dita, e somente 25 para outros critérios, assim
distribuídos: 10 para o desempenho, 5 para aspectos gerenciais e de inovação, 10 para a
formação. As ações quantitativas passam, portanto, de 48 em 100 para 42 em 67.
Isso significa que, de um peso inicial já alto, 48%, passaram para 63%, com
perspectiva de chegar a 66% (48 em 73 pontos) logo que disponíveis os dados sobre tempo de
duração dos processos e sentenças ilíquidas. Essa maior relevância dos critérios quantitativos
sobre os qualitativos fica clara na pontuação efetivamente atribuída, considerados os 27
candidatos concorrentes à primeira vaga do merecimento.
Nos 52 pontos referentes aos critérios qualitativos, a diferença entre o melhor
pontuado e o pior pontuado foi 12,5 (40,5 a 28) e, para uma média de 34,12, o desvio padrão
foi 3,88; já nos 48 pontos referentes aos critérios quantitativos, a diferença entre as
pontuações extremas foi de 31,3 (44,5 a 13,2), sendo a média 27,97 e o desvio padrão 7,33.
Tomados apenas os 30 pontos do quesito produtividade, a diferença entre os extremos foi de
28,8, a média de 11,23 e o desvio padrão de 7,7920. Percebe-se, portanto, a absoluta
prevalência dos critérios quantitativos e, dentre eles, da produtividade.
Esse é o ponto a que se chega ao longo de um processo de detalhamento da disposição
constitucional da promoção por merecimento, passando pela Resolução 106 do CNJ, depois
pelo Assento Regimental nº 1/2013 do TJRS, para chegar à sessão em que foram julgadas as
promoções. À exceção de seis pontos quantitativos que deixaram de ser considerados por falta
de instrumentos de contagem, os quais com certeza logo serão desenvolvidos para que se
chegue a uma solução, todos os demais 27 pontos excluídos da disputa referem-se a dados
dificilmente aferíveis ou cuja subtração dos candidatos pode não ser politicamente correta.
Mais que isso: são pontos cujo questionamento dependeria da subjetividade do julgador, e que
por isso precisam ser exorcizados, inclusive pelo temor de novas quezilas jurídicas.
Esse não é um aspecto irrelevante: o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tantas
vezes acusado de rebelde, teve a máxima preocupação em evitar qualquer possibilidade ver
20 Outros dados que demonstram a prevalência dos critérios quantitativos e, entre eles, da produtividade em relação aos qualitativos: nestes, a diferença entre a maior e a menor pontuação cobriu somente 24% de todo o espectro e o desvio padrão correspondeu a 7,46% dos pontos em disputa; já nos critérios quantitativos e na produtividade, a diferença entre a maior e a menor pontuação cobriu respectivamente 65,21% e 96% e o desvio padrão correspondeu a 15,27% e a 25,97% dos pontos em disputa.
seu processo de promoção alterado ou até mesmo anulado no CNJ. E a melhor maneira de se
precaver nos quesitos qualitativos é evitar ou reduzir ao máximo as diferenças nas notas,
principalmente pelo afastamento das notas desabonadoras.
Vejamos novamente os 27 pontos excluídos do certame: seis decorrem da decisão de
não conferir nota inferior a 6 na análise das sentenças; quatro da atribuição de nota máxima a
todos os candidatos na pertinência da doutrina e jurisprudência; dois pela atribuição de nota
máxima à assiduidade, pontualidade e residência na comarca; 15 pela nota máxima na
adequação da conduta ao Código de Ética.
Cada uma dessas decisões tem razão de ser, e pode perfeitamente ser considerada
justificada. Com efeito, seria vexatório ver as sentenças avaliadas em valor inferior à metade
da nota máxima; mais que isso, seria quase uma invasão da independência judicial buscar com
uma lupa inadequações à doutrina ou jurisprudência; também seria difícil acusar, sem ao
menos um processo administrativo, a falta de assiduidade ou pontualidade, e por isso é mais
adequado limitar-se a verificar se todos os candidatos residem na comarca – e invariavelmente
moram ou estão autorizados a não morar –; mais grave ainda seria deixar de conferir
pontuação máxima na apreciação da conduta do magistrado.
Portanto, nada há a censurar na decisão do Tribunal de Justiça, que deixou de atribuir
pontos em toda a abrangência dos referidos espectros. Mas, se nada há a censurar, não se pode
deixar de registrar que cai na armadilha das equações, na armadilha dos números, em que tudo
o que pode ser contado pode também oscilar do zero ao limite máximo de pontuação21, mas o
que consiste em valores, e não pode ser tão facilmente transformado em números, impede ou
torna tênue toda a diferenciação entre candidatos.
Mais que isso, o processo de quantificação de que necessita a apuração de valores se
dá, em grande medida, por simplificações, cujo resultado é novamente uma redução da
possibilidade de avaliação. Se, por exemplo, no desempenho, há uma possibilidade de
atribuição de até quatro pontos por louvores, o que é de fácil aferição, os seis pontos
efetivamente em jogo na avaliação das sentenças referem-se à análise das até doze sentenças
enviadas pelo magistrado que concorre. A regra permite, portanto, que, de milhares de
sentenças proferidas pelo candidato, ele próprio forme um portfólio das melhores, o que
21 Até mesmo o que não é zero pode em zero ser transformado. É, claramente, o que acontece na apuração da produtividade, em que o candidato que tem menor produtividade fica com escore zero, mesmo sendo inimaginável que um juiz ao longo da carreira não profira sentenças, realize audiências ou profira despachos. Veja-se comparativamente esse quesito com a pontuação das sentenças, em que, por definição, a menor nota eliminou 50% da amplitude de pontuação.
exclui a possibilidade de avaliação mais rigorosa, possível se, por exemplo, ao menos parte
das sentenças a serem avaliadas fosse colhida por amostragem22.
Assim, num dos poucos aspectos em que a qualidade do trabalho do magistrado é
aferível, o que se afere não é a representação do conjunto de sua obra, mas somente o que o
próprio candidato permite que seja visto, e pode não ser o retrato do modo como sentencia,
mas o fruto do empenho em produzir um resultado que lhe seja útil no próprio processo de
promoção.
VIII
A redução do processo de promoções a um conjunto de equações tem um outro efeito:
nenhum integrante do Órgão Especial é mais responsável por seu voto. Assim, por exemplo,
se o desembargador mais antigo leu as sentenças de todos os candidatos – e são centenas –, os
demais desembargadores confiam nas notas por ele atribuídas e o acompanham. O mesmo
ocorre em todos os demais atos de avaliação. Afinal, num processo de objetivação absoluta,
não mais interessa o que pensam os desembargadores sobre determinado juiz; interessam os
pontos que amealhou em cada item desse processo licitatório, já devidamente planilhados.
Também por isso, as inspeções feitas pela Corregedoria com a finalidade justamente
de produzir material de consulta para a avaliação dos candidatos, é ignorada, resultando em
trabalho inútil23.
Na prática, tendo poucos desembargadores lido o extensíssimo material que orientava
o procedimento24, outro não podia ser seu comportamento que não o de concordar com o que
estava posto.
Este é mais um dos efeitos perversos do sistema de objetivação: a promoção já não se
dá por ato humano; é mero resultado de equações. Sob esse aspecto, é notável constatar que
22 Esta foi uma das propostas da AJURIS na fase inicial dos estudos, quando ainda ao encargo da Corregedoria Geral de Justiça.
23 Um integrante do Órgão Especial, quando pessoalmente questionado a respeito, alegou que era necessário retirar o poder da Corregedoria na condução do processo. A afirmação é compreensível, seja sob o ponto de vista das diretrizes da Resolução 106, seja como crítica da prática anterior do Órgão Especial, mas é impertinente, porque não se trata de permitir que a Corregedoria tenha o controle do processo, e sim de valorizar o rico material informativo colhido nas inspeções.
24 Este é outro dos efeitos colaterais da sistemática: uma quantidade infinita de dados e informações que torna praticamente impossível sua leitura, de modo que a solução aos integrantes do Órgão Especial é confiar em quem relata o processo, em quem profere o primeiro voto e, sobretudo, em quem tem o conhecimento técnico para manipular as complexas fórmulas matemáticas ou, de outro modo, confiar nas próprias fórmulas, como definidoras das promoções, sem a necessidade do voto.
praticamente não haja votos divergentes na apuração das notas25. Nessa sistemática, não é
imaginável, por exemplo, um desembargador, após ouvir as notas dadas às sentenças, dizer, de
um candidato que teve atribuída nota 6, lançando voto divergente: “Há quinze anos tenho
julgado recursos de processos por ele sentenciados, e ele tem revelado sempre uma leitura
atenta dos autos e dado a solução adequada à demanda, e por isso lhe atribuo pontuação 9.”
Contudo, seja por temor ao CNJ, seja pela fé cega na objetividade do processo, seja
ainda pelo receio de que votos individualizados dessa forma causem desconforto no colegiado
ou demora excessiva na sessão, isso é inconcebível.
IX
A essa demissão do voto pessoal corresponde outro aspecto do processo de
objetivação: se ele permite aferir, com alguma facilidade, dados quantitativos, como
produtividade e presteza, e com dificuldade os dados qualitativos, essa possibilidade se
restringe aos qualitativos aferíveis numericamente. Desse modo, é possível contar somente o
número de louvores, o número de certificados, o número de projetos de que participou o
candidato, em resumo, tudo o que possa ser averbado na ficha funcional do magistrado.
Todavia, é da essência desse processo que ele ignore um conjunto de qualidades do
candidato, que muitas vezes são o seu diferencial, porque se tornaram inavaliáveis nessa
sistemática. O juiz trata bem a parte ou a testemunha? Recebe o advogado? Demonstra ter
lido adequadamente os processos? Busca solucionar adequadamente os conflitos? Isso não
pode ser medido, e portanto não será avaliado.
Poderia alguém redarguir que essas questões são excessivamente subjetivas, e, ao
serem admitidas, o processo de avaliação se tornaria aleatório, mas não se trata de cair no
extremo oposto em relação à avaliação objetiva, e sim dar um peso, ainda que relativo, a
elementos importantes, que provavelmente não caibam nos autos de um processo de
promoção, mas integram qualquer arcabouço de avaliações dos juízes no âmbito da
comunidade jurídica.
É interessante ressaltar esse aspecto: a sociedade sabe avaliar seus juízes, os
advogados avaliam os juízes, os próprios juízes emitem conceitos sobre seus pares, mas essas
avaliações passam muito longe da instância que os avalia para fins de promoção, justamente
25 Houve um único voto divergente, relativamente a um candidato e em um quesito.
porque muitos dos valores pelos quais são considerados bons ou maus juízes não são
avaliáveis em um processo de quantificação26.
X
Desde 2010, ano da Resolução 106, as promoções por merecimento voltaram, como há
muitos anos não se via no Rio Grande do Sul, a produzir entre os magistrados sentimentos
generalizados de injustiça. E não se trata só do compreensível sentimento de injustiça que
acomete quem foi alijado da promoção, muitas vezes por alguém bem mais moderno na
carreira; trata-se também de um sentimento geral entre juízes, que não compreendem certas
ultrapassagens, designadas de “pulo do canguru”.
Essa ideia de injustiça se apresenta sob duas variantes: uma, de quem compara
magistrados promovidos com outros preteridos, e muitas vezes não consegue compreender o
mérito que havia para que tal promoção ocorresse; outra, resquício dos tempos de paz, em que
se sabia que o mais antigo seria promovido também por merecimento, de quem, presumindo
algum tipo de preferência do mais antigo, não vê razão para que seja ultrapassado por quem
está 50 posições atrás, principalmente quando, como tem ocorrido, não há uma diferença
notória na qualidade ou quantidade das duas jurisdições.
E a ideia de injustiça se nutre da percepção clara de que, não só em relação ao Assento
Regimental em vigor, mas principalmente em relação à concepção que sustenta a objetivação
absoluta, é ilusória a ideia de que a jurisdição de cada um possa ser reduzida a escores
confiáveis.
Esta é uma inconformidade por ora restrita aos magistrados, porque convivem com os
colegas que concorrem, e por isso não tem repercussão externa; mesmo assim ela mina a
confiança no sistema de promoções e até mesmo na boa fé que o deve orientar. Certamente,
trata-se de um sentimento ruim para o Judiciário: é como se os juízes deixassem de acreditar
na Justiça.
26 Nesse ponto, sou tentado a traçar um paralelo com o conceito de bens ou ativos intangíveis, tão bem conhecido no mundo empresarial. Os bens intangíveis, que não se podem tocar, são, exemplificativamente, as marcas e patentes, direitos autorais, recursos humanos, direitos de exploração, fundo de comércio. São, portanto, um conjunto de bens imateriais, de difícil quantificação e que, no entanto, contemporaneamente, representam peso muito maior que os bens tangíveis na avaliação de qualquer grande empresa. Um dos grandes desafios à contabilidade é a quantificação segura desses bens, justamente por conta da sua imaterialidade, mas ninguém nega seu peso preponderante na avaliação da empresa.
XI
Os dois procedimentos de controle administrativo no CNJ tiveram um duplo efeito de,
internamente, interromper por dois anos as movimentações na carreira e, externamente,
submeter o TJRS à interferência do CNJ e, mais do que isso, expô-lo de modo vexatório à
opinião pública, como o órgão que, embora fale sobre a lei, não consegue fazer nada certo.
A busca do CNJ é apenas uma exteriorização de uma inconformidade, recurso legítimo
de quem se sente prejudicado num processo, e por isso ainda não pode ser vista, por si só,
como a demonstração do efeito deletério da sistemática de promoções por merecimento.
Por outro lado, é também o retrato de uma nova realidade, em que o acirramento de
disputas leva cada vez mais à sua resolução pelo conflito. Este é o grande problema de fundo,
que mudará o perfil da magistratura: a emergência do juiz competitivo e, no limite, da sua
versão exacerbada, o juiz carreirista, como subprodutos da sistemática da promoção por
merecimento, que são por ela moldados e que por ela passarão a se destacar no cenário da
magistratura, acabando por marcar o próprio perfil do magistrado brasileiro.
O processo é simples. Num primeiro momento, conhecidas as regras do jogo, que
privilegiam a produtividade e aproveitam, dos aspectos qualitativos da jurisdição, somente
aqueles facilmente reduzíveis a números, o juiz competitivo passa a orientar sua jurisdição
para a produção de números. O mapa é essencial, e ganha relevo a figura do juiz mapista,
antes visto com algum desdém por seus pares.
No limite da competitividade, os mapas podem até ser maquiados por mil artifícios,
nem sempre lícitos, como na sua forma mais grosseira, de devolver ao cartório, sem despacho
ou decisão, autos de processo que estava concluso.
Mas, o juiz carreirista não se limitará a cuidar de seu próprio mapa; passará a cuidar
também do mapa dos colegas concorrentes à mesma vaga, à procura de algo impugnável.
Cria-se, assim, um clima exacerbado de competição na promoção por merecimento, no
qual já se estabelece o primeiro critério de exclusão de promoção: todos os que não se
dispuserem a jogar esse jogo preferirão abrir mão da promoção por merecimento, concorrendo
somente pela antiguidade.27
27 Foi o que ocorreu na mais recente promoção para desembargador, em que oito magistrados optaram por concorrer somente pela antiguidade. Evidentemente, haverá sempre a possibilidade de que um certo número de candidatos não concorram por merecimento por acharem que suas possibilidades são reduzidas ou por não quererem se submeter à avaliação, mas nesse pleito era perceptível a rejeição entre potenciais candidatos a se submeterem a tal nível de disputa.
Assim, para superar a barreira do merecimento, o juiz deverá se submeter a um duplo
requisito: apresentar um resultado elevado nos quesitos numéricos (produtividade e presteza),
porque são os decisivos, e submeter-se a um processo competitivo, de disputa com seus
colegas, em que o objetivo final é superá-los.
O resultado disso no perfil da magistratura não tardará a aparecer. Um primeiro efeito,
comportamental, será a pressão do meio para que os magistrados se tornem todos
competitivos, moldando-se ao que os critérios de promoção por merecimento dizem ser um
bom juiz. Quem não se adequar a esse jogo se retardará na carreira e breve será considerado
um juiz não merecedor. Assim, independentemente de seu temperamento, o magistrado será
compelido a disputar com seus colegas, a superá-los, conforme a receita apresentada pela
Resolução 106 e pelo Assento Regimental nº 1.
Isso, evidentemente, moldará a própria jurisdição, porque, se a mensagem emitida
pelas regras de promoção por merecimento diz que você deve ser um juiz que cuida
fundamentalmente de não ter processos conclusos e de sentenciar o máximo possível, a
qualquer custo, ainda que seu perfil seja outro, a tendência é de que tente ser um juiz com esse
perfil.
Num segundo cenário, a figura do juiz competitivo se fortalecerá pela ocupação de
cargos de desembargador: se os promovidos por merecimento são os juízes mais competitivos
e que organizam sua jurisdição pelo prisma da máxima produção, num curto espaço de tempo
a composição dos tribunais será majoritariamente de desembargadores com esse perfil, porque
se adequaram aos critérios assim postos.
São duas faces da mesma moeda: de um lado, como condição para o merecimento, os
magistrados serão compelidos a se moldar a um perfil competitivo; de outro, os premiados por
terem atingido o melhor desempenho nesse perfil, darão feição ao tribunal, que pela própria
jurisprudência reforçará esse novo juiz. É o advento da jurisdição fordista.28
28 A expressão “jurisdição fordista” foi cunhada por Eugênio Couto Terra, em artigo publicado no jornal Correio do Povo (http://www.ajuris.org.br/2013/12/17/jurisdicao-fordista/). É necessário novamente ressaltar que não há moldes acabados nos quais se enquadrem rigorosamente os perfis de juiz. Não há um padrão único de juiz humano, de juiz competitivo, juiz da segurança jurídica, juiz que prima pela agilidade, etc. Todavia, podemos trabalhar com arquétipos, que não são falsos, e podem ser mais ou menos valorizados. E “juiz fordista” é uma expressão feliz para designar o que está sendo favorecido nos critérios de merecimento, e por consequência terá o perfil reforçado no corpo da magistratura.
XII
Não sei se Colagrande, Saraceno e Sansoni, os homenageados de Calamandrei, se
submeteriam a esse processo. Provavelmente continuariam a judicar de modo anônimo em
alguma vara, até serem colhidos pela aposentadoria ou chegarem ao tribunal já em final de
carreira.
A questão é justamente esta: a partir da louvável ideia de, para evitar favorecimentos,
estabelecerem-se critérios objetivos para a promoção por merecimento, abriu-se a caixa de
Pandora. O juiz que dela sai já não é o juiz de Calamandrei, ou aquele juiz vocacionado de
que antigamente falavam os desembargadores aos jovens concursados.
O magistrado que se bate pela solução dos conflitos, pela paz social, se afasta, por
definição, das disputas, que são o campo de ação das partes e de seus advogados. O juiz
levado a ser parte de processos classificatórios, em que disputa uma melhor colocação com
seus pares, em que, para ser promovido, deve suplantar seus colegas de profissão, e fazê-lo
fundamentalmente pela produção, é um juiz de outro mundo e de outro Judiciário. Será um
Judiciário novo e pior.
O novo juiz não será muito diferente de um funcionário de balcão, cujo principal
objetivo seja o de carimbar o máximo possível de papéis e terminar o dia sem papéis a serem
carimbados. Mais que isso, porque seu colega ao lado não pode carimbar mais e nem terminar
sua pilha antes, o novo juiz cuidará permanentemente do trabalho deste, para descobrir o
documento mal carimbado ou a folha que se extraviou, porque na guerra pela promoção isso
também será necessário.
Nesse cenário, também cessará o estímulo a práticas colaborativas, ainda frequentes,
como os esforços de juízes com jurisdição semelhante para a busca de soluções comuns ou o
compartilhamento de decisões novas sobre assuntos instigantes.
Infelizmente, essa competição está instaurada. O prêmio não irá a quem analisar
criteriosamente cada documento, mas a quem primeiro lançar seu carimbo; já não irá para
quem se esmera em solucionar conflitos, mas a quem, com ou sem solução, resolva antes dos
outros o conflito que lhe foi levado. E, fundamentalmente, o prêmio irá para quem tem o
espírito aguerrido, tão destoante do que se deve esperar do magistrado apaziguador.
XIII
A partir desse quadro, impõem-se formular alguns questionamentos. Antes de tudo, é
de se perguntar se é justificável continuar a existir a modalidade de promoção por
merecimento. Em superada esta pergunta, é de se questionar ainda se o merecimento deve ser
absoluto, ou seja, se a promoção por merecimento deve afastar por definição qualquer
preferência a quem tem maior antiguidade. Uma terceira questão diz respeito à manutenção de
uma sistemática absolutamente objetiva na apuração do merecimento. Em quarto lugar, põe-se
a pontuação atribuída, mais especificamente a proporção de pontos que vai para a quantidade
e a proporção que vai para a qualidade. Uma quinta questão é saber como serão consideradas
aquelas qualidades às quais não se pode conferir valor.
Preliminarmente, é de se avaliar o instituto do merecimento: interessa valorizar-se a
promoção alternadamente com a antiguidade? Isso agregará valor ao Judiciário, em particular
aos tribunais?
Os defensores do merecimento costumam argumentar que é um modo de dar destaque
aos mais capazes e dedicados, cuja ascensão, mais que ser um prêmio individual, resultará em
ganhos ao Judiciário. Além disso, a simples existência da sistemática seria um modo de evitar
a acomodação, que acabaria por instaurar um clima de letargia, decorrente da certeza de que a
dedicação ao trabalho não teria o menor efeito na carreira. Se bons e maus juízes fossem
inevitavelmente promovidos ao final de uma longa carreira somente por ter chegado a sua
vez, ninguém mais se sentiria estimulado a se esforçar para ser um bom juiz.
O argumento da melhora qualitativa ao Judiciário é respeitável; o da acomodação
parece partir do conceito de que todo um universo de pessoas, no caso os magistrados,
somente se dedica ao trabalho pela expectativa do prêmio do merecimento. Certamente não é
o que acontece com a grande maioria dos juízes. Todavia, é de se ver, com preocupação, que
tal raciocínio reforça a ideia que aqui se rejeita, da competição entre magistrados como motor
de impulso da carreira.
De qualquer maneira, essa discussão não se pode fazer abstraindo as dificuldades da
sistemática. Com efeito, ainda que por argumentos racionais se chegue à certeza de que a
alternância entre antiguidade e merecimento é a mais adequada, isso não afastará a
dificuldade em se chegar a critérios minimamente confiáveis para apurar o merecimento.
E, uma vez constatado, como parecem indicar as presentes críticas, que a deficiência
dos critérios leva a promoções que não correspondem a um juízo comum acerca do
merecimento dos promovidos, pode-se concluir que a conveniência dessa modalidade de
promoção deduzida num plano teórico não resiste à impossibilidade de chegar a um
entendimento comum sobre quem merece mais e, por consequência, as promoções por
merecimento passem a ser disfuncionais, na medida em que não cumprem com sua finalidade
e geram sentimento generalizado de injustiça.
Por esse motivo, mesmo se positiva a resposta sobre ser desejável a promoção por essa
modalidade, da conclusão sobre a dificuldade ou até inviabilidade de se definir critérios
reconhecidamente justos, se chegaria à mesma inconveniência acerca de promover por
merecimento.
XIV
Uma solução possível para compatibilizar o desejo de promover por merecimento com
a necessidade de assegurar uma segurança mínima na sua apuração, embora contrária à
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e às decisões do próprio CNJ29, é a de, em
situações nas quais o merecimento não se afigure evidente, promover-se o mais antigo,
presumindo-se-o mais merecedor.
O modo mais prosaico de fazê-lo é o do modelo utilizado no Rio Grande do Sul antes
da Resolução 106: embora aplicada a regra da promoção por merecimento, presumia-se o
maior merecimento do mais antigo, exceto em duas situações que exigiam notoriedade: um
merecimento amplamente reconhecido, que permitisse a promoção do candidato mais
moderno, ou um desmerecimento igualmente notório que levasse à preterição do candidato
mais antigo.
Há, ainda, outros modos de introduzir um tempero de antiguidade nas promoções por
merecimento. Um deles é o retorno da margem de segurança antes existente no Rio Grande do
Sul, que impedia ultrapassagens na antiguidade quando a diferença de pontuação era
pequena30. Também é possível acrescentar à pontuação dos vários critérios previstos na
29 Veja-se a decisão do CNJ mencionada na nota 4, que invoca jurisprudência do STF. Nela é transcrita decisão prolatada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 189, da qual destaco: É inconstitucional a cláusula constante de ato regimental, editado por Tribunal de Justiça, que estabelece, como elemento de desempate nas promoções por merecimento, o fator de ordem temporal - a antiguidade na entrância -, desestruturando, desse modo, a dualidade de critérios para acesso aos tribunais de segundo grau, consagrada no art. 93 da Lei Fundamental da Republica. Veja-se que é tão radical o entendimento, que nem ao menos no desempate se admite a prevalência do mais antigo.
30 Ver nota 3.
Resolução 106, uma pontuação pela própria antiguidade31.
Embora as possibilidades referidas se voltem contra a jurisprudência, seriam maneiras
simples de evitar o chamado pulo do canguru, que tanto solapa a convivência pacífica entre
magistrados e põe em dúvida o sentimento de justiça que deve cercar as promoções. Ademais,
não parece evidente a inconstitucionalidade dessa solução, porque o descarte total de qualquer
possibilidade de precedência do mais antigo no merecimento parte da ideia, que não me
parece correta, de que necessariamente, numa lista de candidatos ao merecimento, seja
possível fazer uma ordem serial, do mais merecedor ao menos merecedor, e portanto inexista
a possibilidade de se presumir méritos equivalentes entre dois juízes.
Ainda que tal entendimento seja justificável numa leitura literal da disposição
constitucional, resulta numa avaliação classificatória, própria da administração, mas
inadequada para avaliar quem tem como atribuição precípua solucionar conflitos humanos.
XV
Num outro plano, e considerando que é improvável vir a ocorrer uma alteração no
entendimento de que a promoção por merecimento não admite qualquer traço de antiguidade,
impõe-se rever, com urgência, a ideia de que o merecimento possa ser simplesmente reduzido
a uma planilha.
Como já assinalado, o processo de objetivação decorreu de uma reação a processos de
promoção aleatórios, em que não raro se identificavam favorecimentos. Todavia, essa medida
republicana, de valorização do princípio da impessoalidade, trouxe uma outra ordem de
problemas, talvez mais graves, na medida em que, traçando uma regra geral, imposta como
padrão único a todos os tribunais, substituiu as injustiças pontuais e ocasionais de antes por
um método racional que reduz os magistrados a números e privilegia quem apresenta elevada
produtividade.
Essa redução a números foi potencializada no Rio Grande do Sul, na ilusão de que a
objetivação absoluta pudesse tornar mais seguro o processo. Ademais, em grande medida por
temor ao intervencionismo exagerado do CNJ, caiu-se na armadilha das equações, pela qual
tudo se reduz a números e o que a números não pode ser reduzido precisa ser ignorado. Desse
31 Exemplifico: num espectro total de cem pontos, dez poderiam ser atribuídos à antiguidade, numa escala em que o mais antigo tivesse dez pontos e o mais moderno zero ponto. Desse modo, qualquer ultrapassagem exigiria um plus de vantagem, que seria crescente na mesma proporção da diferença de antiguidade.
modo, a própria ideia de que um integrante do Órgão Especial deduza voto destoante daquele
já devidamente equalizado soa estranha, porque significa opor-se à verdade já emanada do
computador.
A dúvida que se impõe é se, feita a crítica sobre a concepção hoje em vigor, é possível
estabelecer outro modo de apurar o merecimento que consiga superar o privilégio aos juízes
que se notabilizam pela produção elevada e, em qualquer circunstância, se é mesmo possível,
com a redução total ou parcial da avaliação a uma quantificação numérica, atingir escores que
obtenham um reconhecimento geral acerca de sua justeza.
XVI
Acaso superado também esse óbice, certamente se imporia uma alteração na
pontuação, de modo a pontuar de maneira mais equilibrada juízes com diferentes perfis, assim
superando a preponderância quase absoluta dos critérios quantitativos sobre os demais.
Além disso, é fundamental ponderar que há um sério problema na quantificação dos
critérios qualitativos, que, por isso, acabam por não se refletir na pontuação. A dificuldade –
constrangimento até – de atribuir pontos à qualidade leva a uma padronização da pontuação
(empate no critério conduta, empate na adequação à doutrina e jurisprudência, redução à
metade do espectro de pontuação das sentenças, etc.), de modo a reduzir significativamente o
peso desses critérios, já subavaliados.
Somado a isso o fato de que muitos valores não são suscetíveis de pontuação, chega-se
à necessária conclusão de que deve haver outro modo de fazer a avaliação desses quesitos.
Nesse ponto, cumpre lembrar que o art. 93, II, c, da Constituição Federal, ao referir-se à
apuração objetiva, limita-se aos critérios da produtividade e presteza, não fazendo a mesma
exigência em relação aos demais critérios.
A se dar relevância a essa omissão constitucional, há que se concluir que o próprio
constituinte anteviu a dificuldade em fazer a apuração objetiva dos demais quesitos, de modo
que é de se cogitar uma sistemática em que coexistam avaliações numéricas dos dados
quantitativos com avaliações apenas qualitativas do que qualitativo é.
Importa saber que, se há valores que não cabem em planilhas ou, em cabendo, tendem
a apresentar resultados distorcidos pela padronização e decorrente subavaliação, nada impede
que esses valores sejam considerados nos votos, o que implica, ainda que nesse caso
investidos de função administrativa, ocuparem os integrantes do Órgão Especial seu lugar de
julgadores. Trata-se de decidir aplicando os valores que de outro modo não podem ser
sopesados, o que evidentemente deve ocorrer com a observância do princípio constitucional
da fundamentação das decisões, modo de afastar ou ao menos dificultar sobremaneira a
possibilidade de ocorrer favorecimento a candidatos.
A própria Resolução 106, numa disposição que emerge paradoxal ao seu viés
quantificador, estabelece já no art. 1º que a votação deve ser nominal, aberta e fundamentada.
Lançada essa diretriz como mandamento inicial de um texto que tudo quantifica, há que se
sublinhar que a única hipótese de se dar efetividade a votos assim lançados é a de que não
sucumbam às formulas matemáticas, porquanto, se estas se impuserem de modo cogente, será
impositivo igualmente descartar o voto.
Nesse ponto, é de recordar a proposta de redação do art. 93, II, c, da Constituição
Federal, apresentada pela AMB quando se discutia a reforma do Judiciário. A ideia, naquele
momento não aproveitada, de exigir a fundamentação individual dos votos, tem um efeito
semelhante, se não maior, que a apuração objetiva, na busca de soluções justas e justificadas32.
Ouso dizer que, nessa dialética entre objetivação e justificação, e com preponderância desta,
se chegaria a uma solução mais adequada que a ilusão da objetivação33.
XVII
A reflexão aqui posta busca sensibilizar a magistratura para a necessidade de um
debate que permita a promoção dos Colagrande, Saraceno e Sansoni, pelos méritos que os
tornaram grandes juízes, admirados por Calamandrei. É fundamental conseguirmos realizar
esse debate, sob pena de, pelo merecimento que só vê os elementos quantitativos, acabarmos
por moldar e consagrar, para prejuízo do Judiciário e da jurisdição, o modelo da jurisdição
fordista.
Esse é o nosso desafio.
32 O justificado é um passo para o justo, porque ao menos se apresenta uma tentativa de persuasão racional, que não cabe em fórmula matemática.
33 Uma alternativa que talvez possa apontar uma solução é a de substituir as notas por conceitos, sistemática que já de início resultaria no fim da ilusão das equações e na sua substituição pela necessidade da persuasão racional, na medida em que se estaria a tratar de critérios valorativos mais fluidos, que exigiriam do julgador um esforço acessório de avaliação, diferente da mera e automática dedução numérica.