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A psicologia escolar e a educação inclusiva - visao critica

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PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2010, 30 (2), 362-375

A Psicologia Escolar e aEducação Inclusiva:Uma Leitura Crítica

School Psychology and Inclusive Education: A Critical Reading 

La Psicología Escolar y la Educación Inclusiva:Una Lectura Crítica

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Maria VirgíniaMachado Dazzani

Universidade Federalda Bahia

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 A Psicologia Escolar e a Educação Inclusiva: Uma Leitura Crítica

Maria Virgínia Machado Dazzani

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2010, 30 (2), 362-375

Resumo: Este ensaio elabora uma crítica sobre o lugar e a importância da Psicologia escolar e educacionalno contexto do processo de consolidação de um discurso democratizante da educação brasileira. Nessesentido, seu principal objetivo é articular uma discussão que envolva a referência a três problemas centrais:a) o problema da democracia, dos direitos humanos e da inclusão social nas sociedades atuais; b) a tarefada educação e da escola formal na consolidação da democracia e na defesa dos direitos humanos e c) aimportância do debate sobre o lugar da Psicologia na consecução de uma educação para a democracia.O texto desenvolve um argumento crítico em relação à tendência de simplesmente transferir as teoriasoriginárias da prática clínica para os contextos educacionais, o que levou à  psicologização dos processospedagógicos e ao abandono da investigação dos processos socioculturais. É analisada aqui uma literaturarecente que reflete sobre o papel do psicólogo na escola e no horizonte de políticas públicas de proteçãoà infância e à adolescência, sobre a produção institucional da queixa escolar e do fracasso escolar, e,sobretudo, a idéia da invenção de um novo perfil (competências, habilidades e compromisso ético-político)do psicólogo necessário à realidade social brasileira, além do estabelecimento de um campo de atuaçãoque implica noções como saúde, qualidade de vida e cidadania.

Palavras-chave: Psicologia escolar. Inclusão escolar. Direitos humanos. Democracia.

 Abstract: This essay discusses critically the place and the importance of school and educational psychology,taking into consideration the process of consolidation of a democratic discourse in Brazilian education.Therefore, its main objective is to provoke a discussion about three central problems: a) the problem of democracy, human rights and social inclusion in societies today; b) the role of education and formal schooling in particular in the consolidation of democracy and in the defense of human rights, and c) the importanceof the debate about the place of psychology in the attainment of an education for democracy. The text develops a critical argument regarding the traditional view of school psychology, especially in relation to thetendency to simply transfer theories derived from clinical practice into educational contexts. This has led tothe psychologization of pedagogical processes and to the abandonment of the investigation of socio-culturalprocesses. A broad, but not exhaustive, recent literature dealing with the role of psychologists in schools andin the development of public policies for the protection of childhood and adolescence was analyzed. Theessay also deals with the institutional production of school complaint and school failure and above all with theidea of inventing a profile (competences, abilities, sociopolitical and ethical commitment) for psychologists,a profile that meets the needs of Brazilian social and educational reality and establishes a new field of workfor school/educational psychologists, encompassing notions such as health, quality of life and citizenship.Keywords: School psychology. School inclusion. Human rights. Democracy.

Resumen: Este ensayo elabora una crítica sobre el lugar y la importancia de la Psicología escolar y educacionalen el contexto del proceso de consolidación de un discurso democratizador de la educación brasileña. En esesentido, su principal objetivo es articular una discusión que involucre la referencia a tres problemas centrales:a) el problema de la democracia, de los derechos humanos y de la inclusión social en las sociedades actuales;b) la tarea de la educación y de la escuela formal en la consolidación de la democracia y en la defesa delos derechos humanos y c) la importancia del debate sobre el lugar de la Psicología en la consecución deuna educación para la democracia. El texto desarrolla un argumento crítico en relación a la tendencia desimplemente transferir las teorías originarias de la práctica clínica para los contextos educacionales, lo quellevó a la psicologización de los procesos pedagógicos y al abandono de la investigación de los procesossocioculturales. Es analizada aquí una literatura reciente que refleja sobre el papel del psicólogo en la escuelay en el horizonte de políticas públicas de protección a la infancia y a la adolescencia, sobre la produccióninstitucional de la queja escolar y del fracaso escolar, y, sobretodo, la idea de la invención de un nuevoperfil (competencias, habilidades y compromiso ético-político) del psicólogo necesario a la realidad socialbrasileña, además del estabelecimiento de un campo de actuación que implica nociones como salud,

calidad de vida y ciudadanía.Palabras clave: Psicología escolar. Inclusión escolar. Derechos humanos. Democracia

Democracia, escola e Psicologia: problemas e desafios históricos

se nos últimos 15 anos, principalmente apartir de 1996, tendo como fundo a LDB (DelPrette, 2002). Esse movimento tem oferecidouma importante reflexão sobre a formação ea identidade dos agentes educativos, entreeles o psicólogo, e, em particular, sobresua atuação no contexto escolar (Del Prette,

Nos últimos anos, tornou-se praticamenteconsensual que as investigações em Psicologiasão fundamentais para a compreensão dosprocessos educacionais e escolares. Observa-se que, no Brasil, a literatura sobre Psicologia

e educação se torna mais profícua a partir dadécada de 70 do século passado e intensifica-

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os psicólogos, como categoria profissional, auma reflexão sobre o contexto ideológico,econômico e político, sobre a realidadeconcreta da pobreza e da injustiça e,

sobretudo, sobre os problemas vinculadosaos direitos humanos (Silva, 2005). Podemosverificar, sobretudo, a preocupação e a buscapor uma convergência entre o saber técnicoe o compromisso ético. Assim, a Psicologiaescolar e educacional passa a refletir sobreo seu papel, lançando um olhar crítico sobresua trajetória histórica e seus desafios futuros.

No que diz respeito ao tema específico desteensaio, do ponto de vista político-social,um dos problemas mais graves nas práticasescolares é a inclusão/exclusão social e

escolar.

  A inclusão escolar constitui hoje umdos temas mais debatidos no contextoeducativo. O caráter excludente dasociedade contemporânea, a situaçãoda escolarização no País e as políticas

educacionais em relação à inclusão escolardas pessoas com necessidades educativasespeciais, entre outros, têm constituídoimportantes elementos para incentivaras discussões sobre esse relevante tema.Mesmo com questionamentos, dúvidas eum certo grau de compreensível ceticismo,existem consensos no que diz respeitoà necessidade de trabalhar em prol dainclusão escolar. O debate agudiza-se emrelação a como compreendê-la, quais ascondições que podem favorecê-la e comofazê-la viável. (Martínez, 2005b, p. 95)

Na Declaração de Salamanca (1996),podemos ler:

O princípio que orienta essa estrutura (deação em educação especial) é o de queescolas deveriam acomodar todas as crianças,independentemente de suas condições físicas,intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticasou outras. Aquelas deveriam incluir criançasdeficientes ou superdotadas, crianças de rua etrabalhadoras, crianças de origem remota oude população nômade, crianças pertencentes

a minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e

Os processos deredemocratização

do Brasil e apopularizaçãoda Psicologia

têm levadoos psicólogos,

como categoriaprofissional, a uma

reflexão sobre ocontexto ideológico,

econômico epolítico, sobre a

realidade concretada pobreza eda injustiça e,

sobretudo, sobreos problemas

 vinculados aosdireitos humanos

(Silva, 2005).

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2001; Machado, Veiga Neto, Neves, Silva,Prieto, Ranña, 2005; Martínez, 2005a; Meira & Antunes, 2003; Patto, 1999; Wechsler, 2001).

Considerando esse movimento da reflexãosobre as relações entre Psicologia e educação,este ensaio trata especificamente do tema dainclusão escolar ou educacional (Loureiro,1997; Martínez, 2005b; Patto, 1997, 1999).Note-se que comumente a noção de inclusãosocial e educacional (e de temas próximos,como o da diversidade), assim como o lugarda Psicologia no contexto político brasileiroatual, se reveste não só de aspectos teóricose metodológicos mas também de um fortetom crítico e, em certa medida, militante, queexpressa o surgimento de um discurso sobrea formação e a prática do psicólogo e passa areferir-se explicitamente a um compromissoético-político com a democracia, a cidadaniae os direitos humanos (Padilha, 2007). Umexemplo importante do discurso encontra-sena ação do Conselho Federal de Psicologia eda Associação Nacional de Pesquisa e Pós-

Graduação em Psicologia – ANPEPP (Martinez,2005; Machado et al., 2005; Wechsler, 2001).

Esse discurso – que integra o problemada democracia e dos direitos humanos, atarefa da escola formal na consolidaçãoda democracia e a importância de umnovo perfil da Psicologia no contextoescolar e educacional – coincide com doismovimentos: o processo de redemocratização

do Brasil e a popularização da Psicologia(com a grande expansão dos cursos deformação de psicólogos e a desmistificaçãodo sentido do seu trabalho) que fez comque o profissional estivesse, pela primeiravez, diante das demandas das classes sociaispobres e do sistema público de atendimentoclínico e escolar.

Os processos de redemocratização do Brasile a popularização da Psicologia têm levado

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crianças de outros grupos inferiorizados oumarginalizados. Tais condições geram umavariedade de diferentes desafios aos sistemasescolares. No contexto dessa estrutura, otermo ‘necessidades educacionais especiais’

refere-se a todas aquelas crianças ou jovenscujas necessidades educacionais especiais seoriginam de deficiências ou de dificuldadesde aprendizagem. (p. 3)

O desafio que confronta a escola inclusiva dizrespeito ao desenvolvimento de uma pedagogiacentrada na criança e capaz de educar comsucesso todas as crianças, incluindo aquelasque possuam desvantagens severas.

Ora, a exclusão social e escolar é compreendidacomo forma de violação dos direitos humanose do ideal da democracia (do mesmo modocomo outras violações dos direitos humanos,como o que ocorre no sistema prisional e nomanicomial).

Originalmente, a expressão educação inclusiva

surgiu na luta de profissionais da área de

educação especial e na reivindicação doingresso de alunos, chamados de  portadores

de necessidades educativas especiais (anteschamados de  portadores de deficiência) nasescolas regulares, e não apenas nas escolas

especiais (Anache & Martínez, 2007; Mittler,2003), o que exigiu uma luta social por políticaspúblicas de educação que garantissem essedireito (Patto, 1999; Prieto, 2005). Uma outranoção intimamente ligada à educação inclusiva

é a de diversidade e diferença e a exigência

de que a escola seja um espaço que acolhaa pluralidade étnica, social e religiosa (Kassar, Arruda, & Benatti, 2007; Patto, 1999; Prieto,2005). Mas, recentemente, as políticas de ação

afirmativa também configuram um discurso deinclusão (Oliveira, 2005).

Exclusão escolar e social

Consideremos aqui apenas a exclusão escolar.O primeiro aspecto que se deve examinar é

o fato de que, a partir de certos marcos, a  exclusão na nossa sociedade é compreendidanão como um fenômeno isolado, anômalo,acidental, mas, ao contrário, diretamente

ligada a certas formas de organizaçãoinstitucional e de produção do poderque fabricam  engrenagens causadorasdo isolamento, do alheiamento e daestigmatização de determinados cidadãos(Kassar et al., 2007; Mittler, 2003), ou seja,nem sempre a exclusão se resume ao fatode que a criança está fora do espaço físicoda escola, mas fora do espaço simbólico dacultura e da economia.

Porém, até mesmo a ideia de uma promessa

de igualdade e de homogeneidade noprocesso de massificação da educaçãopública no Brasil da década de 70 doséculo passado fez da escola um espaçode exclusão (Oliveira, 2007). Isso se deuem consequência da ideia de que a escolaofereceria as mesmas condições para todosos alunos, sem exceção (e a massificação do

ingresso à escola pública seria um exemplodisso), e o sucesso ou o fracasso seriadecorrência das aptidões e da inteligênciade cada um. Essa falsa promessa de inclusão coloca sob suspeita o indivíduo-aluno e retirado Estado e da escola a responsabilidade depromover a inclusão, outorgando ao alunoa tarefa de incluir-se na massa homogêneaque tem competência, aptidão e inteligênciapara aprender.

Um caso exemplar é a fala de queixa escolar e do fracasso escolar (Machado, 1994;Neves & Machado, 2005). Comumente, adiferença concreta de etnia, religião, classessociais e também as diferenças individuaissão ignoradas nas práticas cotidianas daescola, e a inclusão pela simples agregaçãodo indivíduo no espaço físico da escola pode,em muitos casos, significar a interdição da

diferença (Mittler, 2003). Por isso, muitas

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vezes, a demanda de queixa escolar e o 

fracasso ignoram os processos de integraçãocultural que as crianças vivem na escola. A ideologia do dom, como explica Neves

(2005), já foi uma das explicações dofracasso dos alunos: a escola teria oferecidoas mesmas condições para todos os alunos, eo sucesso ou fracasso seria uma decorrênciadas aptidões e da inteligência de cada um.

Por outro lado, inúmeras pesquisas (Lopes,1997; Malta, Goulart, Lima, & Costa, 1998)procuraram demonstrar que o fracasso seconcentra nas camadas socioeconomicamentedesfavorecidas, o que, de algum modo,contraria essa ideologia, pois coloca à mostraque as diferenças não ocorriam entre osindivíduos, mas, sim, entre grupos. Esse modode explicar, porém, leva a um outro problemaque, do mesmo modo, também pode levantarsuspeitas de ordem teórico-ideológicas, poisimplicam a ideologia da deficiência cultural: ofracasso escolar das classes menos favorecidasseria explicado, nessa perspectiva, pelo

déficit cultural do seu meio (Patto, 1999).Esse outro modo de explicar o fracasso,principalmente o das classes pobres, parteda afirmação central de que, já que a escolatransmite como certos os valores culturais dosgrupos dominantes, as crianças das classesdominadas não encontram, na escola, avalorização de seus padrões culturais. Essescaminhos têm levado a dificuldades teóricase a vícios políticos (Machado et al., 2005).

Com esse breve sobrevoo, queremos apenasressaltar que a exclusão social não é apenasum problema social de extrema gravidade,mas que, além disso, também existemdiferentes modos de compreendê-la. Aemergência da confluência entre Psicologiae educação, de certo modo, tenta oferecerleituras sobre esse fenômeno, leiturasessas que envolvem obstáculos teóricos

e ideológicos significativos. Sob muitos

aspectos, um amplo debate se instalou nointeresse de responder às seguintes perguntas:a) do ponto de vista epistemológico e prático,qual a contribuição da Psicologia para a

promoção da democracia e dos direitoshumanos? ; b) qual a contribuição daPsicologia para o entendimento da exclusãosocial e educacional e para enfrentar eresolver os problemas daí decorrentes?

 Alguns teóricos (Neves, 2005; Prieto, 2005)têm optado por não mencionar a expressãoeducação inclusiva, mas simplesmentedemocratização da educação e defesa e

 promoção dos direitos humanos. Isso implicasaber conceber uma escola e uma prática dopsicólogo que possa interpretar, acolher eresponder às demandas de todos os cidadãosem um ambiente que respeite a subjetividade,a diversidade cultural, étnica, religiosa esocial.

Psicologia e invenção dofracasso e da exclusão

 Ao avaliarmos as práticas psicológicas e apresença da Psicologia na sociedade nosúltimos anos e, em particular, na escola,não podemos dizer que a contribuição daPsicologia tenha sido estritamente positiva.Uma vasta literatura revela que a Psicologia,no Brasil, colaborou para a construção de

uma escola que obedeceu a uma lógica daexclusão (Patto, 1984; Romanelli, 2005).  A transposição pura e simples de teoriasoriundas da clínica e do ambiente deconsultório para o contexto educacionalsignifica, de um lado, que há impregnação daprática clínico-terapêutica na educação e, dooutro, que há um profundo desconhecimentoou falta de definição teórica mais adequadae compatível com a realidade dos processose das relações que acontecem no cotidiano

das escolas e na realidade brasileira (Almeida,

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2001). As teorias do desenvolvimento e daaprendizagem, as concepções de infância ede normalidade, no mais das vezes, levama interpretações que criam expectativas de

que os alunos se adaptem aos critérios emodelos da escola (ou da normalidade) que,por sua vez, também está profundamentemarcada por demandas sociais e econômicasespecíficas (como sucesso na profissão, lógicado mercado, valores morais, certas imagensde felicidade, consumo, etc.).

Conceitos como diferenças individuais e 

dificuldades de aprendizagem lançam um

olhar sobre processos individuais e subjetivos,mas não oferecem esclarecimentos sobre ainstituição social da escola. Mas será que nãocompõe o processo psicológico do estudanteo fato de que a escola teria dificuldades de

ensinar ou produziria situações de sofrimentopsíquico?

É claro que não vamos encontrar alguémque defenda a exclusão, a discriminação e

a violação dos diretos humanos (a legislaçãobrasileira, inclusive, penaliza quem o faz).Todos são favoráveis à inclusão e à democracia.Porém, o problema é mais complexo do quesimplesmente usar palavras de ordem, porqueimplica questões éticas e epistemológicas: nonosso campo de saber, devemos desenvolveruma reflexão sobre a questão do próprio papelda Psicologia nos processos de produção dasidentidades e a relação desse fenômeno como contexto cultural.

Se avaliarmos cautelosamente o estado

da arte do debate, os estudiosos quebuscam estabelecer uma reflexão sobre ascontribuições da Psicologia para a educaçãoestão preocupados, principalmente, com oseguinte:

a) Uma crítica ao modelo tradicional daPsicologia escolar/educacional baseado na

concepção da clínica psicológica (Almeida,2001);

b) Uma reflexão sobre os desafios da educaçãono Brasil contemporâneo – o que faz com queo psicólogo aqui se envolva com questões quenão são estritamente psicológicas, mas tambémsociológicas, políticas, culturais e propriamentepedagógicas. Nesse sentido, a Psicologia escolare educacional deve ser concebida no horizontede políticas públicas de proteção à infância e àadolescência (Conselho Federal de Psicologia,1994);

c) Investigação sobre o processo de produçãoinstitucional da queixa escolar e da produçãosocial do fracasso escolar (Neves & Machado,2005);

d) Proposição de um novo perfil (competências,habilidades e compromisso político-social e ético)do psicólogo necessário à realidade educacional

e social brasileira e estabelecimento de umnovo campo de atuação do psicólogo escolare educacional que implique noções de saúde,

qualidade de vida e cidadania (Guzzo, 2001a);

e)Do item d) decorre a necessidade de umareflexão sobre a formação teórico-epistemológicado psicólogo escolar e educacional e suaarticulação com a pesquisa e a prática (Novaes,2001);

f)Busca de novas formas do processo de avaliaçãoe das estratégias de intervenção psicológica(Custódio, 2001);

g)Reflexões sobre o papel da Psicologia naformação docente (nos cursos de Pedagogia,nas licenciaturas e no normal superior) emconsonância com a LDB e com os PCNs (DelPrette, 2002);

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h)Esses elementos elencados acima sugeremum lugar destacado para a pesquisa e aprodução de conhecimento em Psicologiaescolar e educacional, além de alternativas

de atuação do psicólogo como pesquisadore educador (Del Prette & Del Prette, 2001).

Por ora, é importante firmar que o problemada inclusão/exclusão escolar (e todos osaspectos que orbitam ao seu redor, comoas diferenças culturais, as barreiras sociaise econômicas) não é apenas um fato quepode ser constatado pelas estatísticas. Há,

por assim dizer, uma construção conceitualda inclusão/exclusão, e tal construção temcertos contornos de ordem epistemológicae histórica que devem ser destacados: areflexão específica sobre a relação entre ascrianças e a escola e sobre os processos deaprendizagem como um fenômeno que sedá no sujeito psicológico ou indivíduo estárelacionada com um determinado momentoda história da Psicologia e da história daeducação, mesmo porque a ideia de um

 sujeito como indivíduo portador de traços  psicológicos, subjetividade, consciência,

autorreferência e autodeterminação, como

agente humano, self , é uma invenção daModernidade (Taylor, 1997). Isso pode sertudo, menos um truísmo: o cruzamento dospercursos da ciência do sujeito psicológico e da educação forma o nosso quadro dereferência, o fundo conceitual contra o qualtemos avaliado, psicólogos da educação ou

não, especialistas em educação ou não, aquestão dos problemas de aprendizagem edas demandas de queixa escolar.

Mesmo sem o rigor na reconstrução histórica,ressaltemos que a educação escolar comoinstituição concernente a todas as esferassociais (e não apenas à educação dospríncipes) é uma invenção relativamenterecente na história geral das sociedades,

remontando ao século XIX, e ainda mais

recente em relação à sociedade brasileira(Romanelli, 2005). O ideal republicano eburguês de igualdade de oportunidades de

 partida incluiu a necessidade também da

educação para todos como condição para aformação do cidadão.

 As transformações do mundo da cultura e,principalmente, do trabalho em uma sociedadecada vez mais tecnicizada, produziram novasexigências físicas, éticas e intelectuais. Ainvenção desse ideal republicano fez nasceruma nova patologia: o fracasso escolar. Osucesso e o fracasso são valores ligados a umideal construído social e culturalmente. Ofracasso escolar, como patologia social, surgiuno século XIX exatamente com a instauração daescolaridade obrigatória: as crianças de todasas classes e ambientes eram obrigadas a cursarvários anos de escola, e passaram a enxergar asua realização humana e sua felicidade com osucesso na escola: ser bem-sucedido na escolaera ter a perspectiva de ter, mais tarde, uma boasituação, de ter acesso, portanto, ao consumo

de bens. Significava também ser alguém, istoé, ser considerado, respeitado (Cordié, 1996).

No Brasil, principalmente a partir damassificação da educação pública e dosprogramas de combate ao analfabetismo nasdécadas de 60 e 70 do século passado, ostemas do fracasso e da exclusão escolar setornaram preocupações centrais de educadores

e do Estado (Freitag, 1986). É nesse contexto,quando a educação não se realiza, quandoa escola não consegue cumprir sua tarefa,quando a aprendizagem não se dá, é aquiprecisamente que o discurso e os saberes da

Psicologia surgem com uma força especial.Os educadores, teóricos e políticos se veemobrigados a compreender os mecanismosinternos da prática pedagógica para, daí,encontrar os caminhos de superação – postoque o desafio educacional é visto como um

desafio civilizacional.

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Sem que entremos em detalhes sobre ahistória das ideias educacionais no Brasil,podemos afirmar que as teorias psicológicas daeducação (que sustentam que a aprendizagem

é algo que se dá no sujeito individual eestá relacionada com seus mecanismos,disposições e capacidades psicológicas)representaram um paradigma nos estudos emeducação (Gadotti, 1987). Em quase todas assuas acepções, o conceito de aprendizagem,de fracasso, de adaptação, são conceitospsicologicamente construídos, ou melhor, sãoconceitos tributários das teorias psicológicas.Esse é o problema.

Partindo de um esquema que foi sugeridopor Patto (1984), em um estudo pioneiro,podemos identificar quatro momentos darelação entre Psicologia e educação no Brasil:

a)o período da 1a República(entre 1906 e 1930),que, inspirado por influências europeias, secaracterizou pelo desenvolvimento de estudos

em laboratório, realizados por um númeroreduzido de profissionais, e que provocarampouca ou nenhuma interferência no contextoescolar da época;

b) o período de consolidação do modo de

 produção capitalista (de 1930 a 1960), noqual, sob influência preponderante dosestudos e tendências norte-americanas, a

Psicologia assume nitidamente um perfilpsicométrico, experimental e tecnicista;

c) o período de 1960 a 1980, quando aPsicologia escolar passa a ser praticadasistematicamente nas escolas com objetivosmarcadamente adaptat ivos. Muitosprofissionais da educação e outros a elarelacionados têm procurado diminuir aincidência desses problemas com intervenções

de caráter remediador ou terapêutico. E esse

é, em quase todos os casos, o lugar reservadoà Psicologia no seio da escola (Guzzo, 2001a);

d) o período de debate em torno da propostade uma Psicologia educacional engajada com

os desafios da educação no Brasil (de 1980 aodias de hoje), caracterizada por uma críticaao modelo clínico e pela proposição de umaPsicologia escolar crítica; marca importantedesse período é a nova LDB e os PCNs quesituam um lugar específico para a atuação dopsicólogo.

Esse último ponto é o estado atual em quese encontra a maior parte da produção sobrePsicologia escolar e educacional (e é no seuinterior que devemos considerar o tema dainclusão). Não é um jogo dogmático – quala melhor Psicologia? – mas um momento derico debate.

Lembremos que, mesmo considerando os

equívocos da psicologização, é prudente nãocair na tentação de sociologizar as demandasde queixa e o fracasso escolar. Devemosencontrar a justa medida para a atuação dopsicólogo, com seus saberes e fazeres, naescola. Tanto uma psicologização quanto uma sociologização parecem renunciar à tarefade se investigar, compreender e intervir narealidade concreta da instituição escolar.Podemos verificar que alguns trabalhospublicados na área educacional apresentamuma aguda crítica ao fato de a educaçãocomumente recorrer a saberes de diversasdisciplinas (Sociologia, Economia, Psicologia)para construir seu discurso sobre os fenômenospeculiarmente educacionais (Fialho, 1998;Patto, 1984). O reducionismo não é umacaracterística privativa da Psicologia emrelação à educação, ao contrário: o saber sobreeducação é difuso, impreciso e atravessadopor discursos que focam objetos construídos

em outras ciências e os transportam para

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o fenômeno da   sala de aula. Não haveriaum discurso autônomo e singular quecaracterizasse o objeto da educação.

Psicologia escolar edemocratização da escola

Podemos sinalizar três aspectos que podemcaracterizar a contribuição da Psicologiaescolar e educacional para a democratizaçãoda educação: a formação do psicólogo, aPsicologia na formação do professor e apesquisa na Psicologia. Tudo isso, porém,

só poderá ter sucesso no ambiente de umainstituição interdisciplinar, onde vozesdiferentes se fazem ouvir (e o psicólogo secoloca na posição de ser mais uma voz).

a) A formação do psicólogo: pesquisa einterdisciplinaridade

Boa parte do debate sobre Psicologiaescolar e educacional trata diretamente do

problema da formação do psicólogo e, maispontualmente, da formação do psicólogo queatua na escola. Podemos ver, em Del Prette(2002), que

 As alternativas de atuação do psicólogo naeducação supõem uma formação ampla emsubáreas da própria Psicologia e nas ciênciasda educação. No primeiro caso, pode-sedestacar o conhecimento sobre os processospsicológicos básicos (motivação, percepção,emoção, aprendizagem, desenvolvimento,

grupos) associados à Psicologia dodesenvolvimento, da aprendizagem,social, organizacional, clínica, comunitária,etc., ou seja, considerando a formaçãobásica como referência da competênciatécnica e da identidade do psicólogoescolar e educacional. Os conhecimentosem ciências da educação incluem osda Sociologia, da filosofia e história daeducação, sociolingüística, psicolingüísticae outras, cuja atualização constante,especialmente com relação às políticaseducacionais, é indispensável para umaatuação profissional socialmente relevante.

(p. 26)

O ponto crucial está na elaboração de umprojeto acadêmico nos cursos de graduaçãoe pós-graduação em Psicologia que privilegieuma formação ampla, com rigor técnico

e interdisciplinar, cultivando uma atitudeintelectual crítica e não dogmática e permitindoo envolvimento prático dos estudantes comsituações diretamente vinculadas à realidadeda escola.

É importante que os cursos de formação depsicólogos construam uma proposta capaz dehabilitá-los a atuar com políticas e instituiçõespúblicas, a lidar com situações concretas dodia a dia das classes pobres, a intervir nacomunidade educacional. Conteúdos nocampo das ciências sociais e da Filosofia nãopodem estar em um segundo plano. Do mesmomodo, a formação para a pesquisa (para ainvestigação de problemas concretos a partirde procedimentos metodológicos rigorosos,assim como a investigação conceitual) deveocupar um destaque nesse modelo.

b) A Psicologia na formação do professor

  As teorias psicológicas, se ensinadas demodo crítico, podem contribuir tanto paraa formação de professores (licenciaturas,Pedagogia e normal superior) quanto para aformação continuada de professores. Aindasegundo Del Prette,

O conhecimento psicológico disponívelsobre os fundamentos da educaçãoe dos processos de ensino, sobrerelações humanas e sobre alternativasconstrutivas na promoção de recursosprofissionais e para-profissionais,aliado ao conhecimento das questõespedagógicas, culturais e políticas quecaracterizam os atuais desafios daeducação, conferem ao psicólogo umahabilitação particularmente desejávelpara a atuação efetiva nessa área.

Em outras palavras, além da formação inicial,a formação continuada de professorespode ser um campo importante da atuação

do psicólogo. De fato, as teorias do

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 A Psicologia Escolar e a Educação Inclusiva: Uma Leitura Crítica

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desenvolvimento psicológico e as teorias daaprendizagem são referências indispensáveispara a compreensão do processo ensino-aprendizagem e da dinâmica das relações

no interior da instituição escolar. Do mesmomodo, a compreensão das relações familiares,da constituição de redes de apoio e daresponsabilização familiar pode contribuirpara a constituição de estratégias pedagógicasmais eficientes.

c) A pesquisa em Psicologia

 A pesquisa deve deixar de ter um caráterpuramente acadêmico e dialogar maisintensamente com os desafios do cotidiano daescola (Martinez, 2001). Como pesquisador, opsicólogo deve contribuir para o crescimentoe o acúmulo de informações no campo dasrelações institucionais, da subjetividade eda aprendizagem; ajudar na compreensãoda criança e do jovem, sem reduzi-los àcondição de alunos; avançar na explicaçãodos diversos tipos de interação que seinstalam como parte constitutiva do processoeducacional e, finalmente, estudar em todasua complexidade os vários fenômenos quesão próprios da instituição escolar.

Entre outras consequências, isso demandaque os cursos de graduação e pós-graduaçãoassumam grande responsabilidade no quediz respeito à formação dos novos psicólogosque atuarão nos meios educacionais. Novosmodelos de atuação estão sendo criados,mais compatíveis com o tipo de organizaçãosocial no qual nascem e se desenvolvem ossujeitos da educação, sejam eles professores,

alunos, pais ou técnicos. Cabe em grandeparte à pesquisa que se faz nos cursos depós-graduação em Psicologia contribuir paraos avanços do conhecimento e da prática naárea da Psicologia educacional (Maluf, 2001).

 A Psicologia, o psicólogo e aeducação inclusiva

Para podermos indicar positivamente asestratégias e ações da Psicologia educacionalno sentido de promoção cr ít ica da

democratização da escola e da defesa dosdireitos humanos, é importante, de partida,afirmar que a escola é um espaço vivamenteplural e interdisciplinar. Há uma convergência

e conflitos de saberes dos professores, dostécnicos, dos alunos, dos pais, da comunidadee, frequentemente, das vozes de outrosprofissionais envolvidos na ação educativa.

Mesmo diante de todas as críticas à história dasrelações entre Psicologia e educação, devemosinsistir que o conhecimento produzido pelasciências psicológicas pode contribuir coma prática educativa, ou seja, consideramos

que o psicólogo pode e deve se envolverdiretamente com a ação educacional.Pensando assim, as estratégias do psicólogoeducacional devem ser concebidas comoum dos modos de interpretar a realidadeeducacional objetiva (social e politicamenteobjetiva) sem reduzi-la a um fenômenopuramente psicológico. Mas não podemosnos esquecer de que também a própriaprática educativa constitui espaço importantede produção de conhecimento psicológico,

principalmente como atividade que possibilitaa construção de hipóteses sobre aspectosrelevantes do funcionamento humano eque representa cenário de investigação e deprodução teórica (Martinez, 2001).

Sobretudo, devemos fazer aqui umaaproximação entre epistemologia e ética. Osmanuais de Filosofia normalmente colocamesses dois campos como áreas de saber que

tratam de problemas totalmente diferentes(uma da natureza do conhecimento ooutro da natureza da ação). Em outro lugar,desenvolvemos um estudo sobre temas emFilosofia da educação e em pragmatismo(Dazzani, 2000, 2003), no qual concluímosque não é possível estabelecer uma linhadivisória clara entre nossas crenças (teóricas)e nossas ações (práticas). Uma crença é ummodo de orientar e justificar nossas ações, euma ação fora do quadro de referências deuma crença é simplesmente incompreensível.

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Sempre que agimos, estamos, desde já,orientados por alguma forma de justificação,de arranjos de crenças, conhecimentos,teorias e conceitos (Dazzani, 2004).  Do

mesmo modo, somos seres profundamenteinteressados, ou seja, nossas teorias e discursosvisam a fins, metas, realizações. Uma teoriaeducacional e psicológica, do mesmo modo,é sempre interessada, e orienta nossas ações.Se inscrevermos a dimensão da democraciae dos direitos humanos, as nossas teorias eações podem se desenvolver de outro modo.

 Assim, podemos ler:

 As práticas psicológicas que orientama atuação profissional devem ser res-significadas e apoiadas não em umateoria, mas em uma epistemologiaque enfatize os fatores objetivos esubjetivos do processo ensinar-aprender,as condições do contexto socio-cultural,a importância das relações inter e intra-subjetivas professor-aluno, o aprendizcomo sujeito do conhecimento e o papelsocial da escola na formação do cidadão. A res-significação da atuação profissionalpassa, portanto, pela apropriação de

referenciais teóricos que levem emconsideração os processos interativos,conscientes e inconscientes, constitutivosdos sujeitos em processo de ensino, dedesenvolvimento e de aprendizagem,em uma perspectiva psicodinâmicae sociohistórica, cujo foco não é oindivíduo, mas os sujeitos em relação

(Almeida, 2001, p. 48). 

Por isso, à luz dessas reflexões, a escolainclusiva não poderá ser só uma escola

que acolhe as pessoas com necessidadeseducativas especiais, mas uma escolademocrática. Como justificar essa práticademocrática? A teoria política, a Sociologia,podem nos explicar? De certo modo, sim,mas não estamos suspeitando, desde oinício, de reducionismos? Não estamosafirmando que existe a necessidade deum espaço legitimamente plural? Ora, háum saber peculiar à Psicologia que deve

desempenhar um papel decisivo; de algummodo, a Psicologia

pode in ter fer i r ana l i t icamente,observando os processos sociais, oscontextos sociais, os processos deprodução de identidade e a forma

como, na produção de identidade,a sociedade de certo modo produztambém o constrangimento, a violênciae o sofrimento para muitos, seja naquestão étnica, seja na questão sexual enas questões que envolvem as diferenças(Silva, 2005, p. 13).

Por fim, acreditamos que o psicólogo, atuandona escola, deve buscar novas formas de levarem conta os processos de avaliação, deixandode tratar a queixa escolar como um fato em simesmo e passando a buscar a compreensãoda história escolar como um processo. Issoexige uma compreensão mais rigorosa dofuncionamento das relações e do contextono qual ocorre a produção de um motivopara o encaminhamento de alunos para oatendimento (Guzzo, 2001b; Machado, 1994;Meira, 2000). Tal ação, é claro, não dependeda iniciativa individual ou, simplesmente, deimplementações no currículo da formação dopsicólogo: há aqui um espaço de ação política,pois não basta apenas ter conhecimento danecessidade de uma mudança na atitude dopsicólogo, posto que sabemos que muitasvezes não foi possível sair do mero discursoda mudança e da conscientização. Diantedisso, o psicólogo que escolha trabalhar nessarealidade deverá compreender as demandaspor justiça e direitos e forjar suas ações nosentido de contribuir criticamente e situar-se

também como ator comprometido com essasdemandas.

O psicólogo deverá estar preocupado com aprevenção e a promoção da saúde e do bem-estar subjetivo, envolvendo-se em atividadesque permitam aos estudantes obterem sucessoem suas atividades da vida, diminuindoas situações de risco, do fracasso escolar ede outros fatores que possam ameaçar suasanidade e inibir suas potencialidades.

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Esse psicólogo estará preparado para integrarequipes, comissões e grupos de trabalhomultidisplinares, no sentido de interferir nodesenvolvimento da criança, sobretudo com

a família, a escola e a comunidade.

 Alguns elementos devem ser considerados notrabalho do psicólogo educacional:

1- o estudante deve ser concebido como umsujeito inscrito em um sistema social, o queimplica uma atenção às influências sistêmicasque o cercam quando se procura entenderos problemas que está apresentando e se

planejam intervenções;2- os problemas, dificuldades e queixas devem ser considerados no interior de umaordem institucional e social onde a criançavive, e não um problema exclusivo da própriacriança. Essa compreensão pressupõe umaavaliação não somente das variáveis própriasdo estudante mas também de aspectos doambiente institucional, social e familiar;

3- os embates e conflitos que ocorrem nainstituição escolar devem ser ressignificados

no horizonte de um processo de diferença,contestação, reação e interação, no qualo sujeito estudante expressa algumasexpectat ivas e interesses que não

se harmonizam com as demandas ouexpectativas institucionais;

4- a meta da atuação do psicólogo deve sera de fazer com que as relações institucionais,demandas sociais e expectativas do estudantese dos outros atores educacionais sejamexplicitadas, compreendidas e enfrentadasdiretamente.

O tema da inclusão escolar é objeto deum debate em movimento, e esse debatereúne muitas das nossas expectativas sobreum ideal de vida democrática mas tambémmuito de nossa ignorância e da fragilidadedas nossas referências e teorias. No fundo,não temos uma teoria acabada e definitivaque resolva, de uma vez por todas, nossosdilemas. O mais desafiador é precisamenteesse casamento entre reflexão política,investigação científica, ação prática e uma

pitada de esperança.

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Maria Virgínia Machado DazzaniDoutora em Educação. Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador,BA – Brasil.

Endereço para envio de correspondência:Rua Rodrigo Argollo, n. 251/501 Rio Vermelho - Salvador, BA – Brasil - CEP 41940-220.E-mail: [email protected]

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