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Problemas e Possibilidades do Anarquismo José Antonio Gutiérrez Danton

A publicação da presente Problemas e Antonio Gutiérrez ... · José Antonio Gutiérrez Danton A publicação da presente compilação de artigos do autor chileno José Antonio

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Problemas e Possibilidades do Anarquismo

José Antonio Gutiérrez Danton

José Antonio G

utiérrez Danton

Creio que o movimento anarquista está em uma encruzilhada: ou dá o salto qualitativo e decide converter-se em uma contribuição para os movimentos populares, cumprin-do dessa maneira seu objetivo como movi-mento revolucionário, ou, pelo contrário, se conforma com a posição de crítico eterno situado além do bem e do mal (ou seja, além da prática): umbiguista, isolado, preocupado somente em manter a pureza dos quatro dogmas. [...] Talvez não estejamos de acordo em tudo o que está dito aqui, mas talvez es-tejamos de acordo no mais importante, que é como fazer do anarquismo revolucionário algo relevante para esses milhões de pes-soas que buscam uma sociedade diferente, mais justa e mais humana.

José Antonio Gutiérrez Danton

A publicação da presente compilação de artigos do autor chileno José Antonio Gutiérrez Danton representa um considerável acúmulo e o amadureci-mento no debate do anar-quismo de orientação espe-cifista latino-americano.

Esses artigos foram pu- blicados, originalmente, na revista chilena Hombre y Sociedad e no site Anarkis-mo.net, que vem cumprindo um papel fundamental, ao reunir diversos indivíduos e organizações anarquistas de todo o mundo, em torno de uma perspectiva de orga-nização específica anarquis-ta e de trabalho social com os movimentos populares, a partir das linhas platafor-mista e especifista.

Publicados originalmente em castelhano, esses textos começaram a chegar a nos-sas mãos e a circular cada vez mais entre a militância anarquista brasileira, ga- nhando espaço na medida em que foram sendo tradu-zidos. Estivemos bastante envolvidos nesse processo de tradução e de difusão dos textos de José Antonio, e nos orgulha muito que este livro esteja agora sendo publicado.

Os artigos aqui reuni-dos são alguns dos muitos trabalhos que este estimado companheiro, que du-rante as relações tornou-se nosso amigo, tem se dedi-cado a produzir, no intuito de gerar um acúmulo do debate teórico, da análise de cenários conjunturais, da reflexão crítica de proces-sos históricos em que nossa corrente teve ou deixou de ter participação e, sobretudo, da reflexão e da proposição para uma consistente e signifi-cativa intervenção no atual cenário, que não se encerre em declarações e contempla-ções abstratas de princípios, mas que seja capaz de forjar em meio ao povo um campo libertário, criando poder popular em meio à luta de classes.

Essa preocupação pode ser detectada em todos os textos aqui publicados. Cada um deles destaca uma questão específica, que sempre nos vem à tona quando estamos envolvidos pela turbulenta re-alidade das lutas cotidianas.

Daniel Augusto A. Alves e Felipe Corrêa

Problemas e Possibilidades do A

narquismo

possibilidadesLivro02.indd 1 1/9/11 5:42 PM

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PROBLEMAS E

POSSIBILIDADES

DO ANARQUISMO

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Projeto de capa

Tagori Mazzone

Diagramação

Felipe Corrêa

Tradução

Felipe Corrêa, Daniel A. A. Alves, F.A.G., Eliane Neves

Revisão

Victor Calejon

Faísca Publicações LibertáriasRua Espártaco, 456 - V. Romana

05045-000 São Paulo - SPTel. 11-3864-3242

[email protected]

[email protected]

(C) CopyleftÉ livre, e inclusive incentivada,

a reprodução deste livro, para fins estritamentenão comerciais, desde que a fonte seja citada

e esta nota incluída.

2011

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PROBLEMAS E

POSSIBILIDADES

DO ANARQUISMO

José Antonio Gutiérrez Danton

Tradução

Felipe Corrêa, Daniel A. A. Alves, F.A.G., Eliane Neves

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SUMÁRIO

ApresentaçãoFelipe Corrêa e Daniel Augusto de Almeida Alves

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Algumas Palavras sobre aRazão de Ser deste Livro

25

A Organização Revolucionária Anarquista33

América LatinaProblemas e possibilidades para o anarquismo

57

Os Problemas Colocados pela Luta de ClassesConcreta e pela Organização Popular

Reflexões a partir de uma perspectiva anarco-comunista67

Considerações sobre o Programa Anarquista81

Sobre a Política de AliançasProblemas em torno da construção de um

pólo libertário de luta99

A Importância da Crítica para o Desenvolvimentodo Movimento Revolucionário

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Para Deirdre Marie e os pequenos

Caoimhín Alberto e Sabina Sofía.

Ainda que as crianças não entendam

esses assuntos, tudo o que escrevi aqui

tem muito mais sentido e urgência

graças à sua chegada em minha vida.

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APRESENTAÇÃODaniel Augusto de Almeida Alves

Felipe Corrêa

A publicação da presente compilação de artigos doautor chileno José Antonio Gutiérrez Danton representaum considerável acúmulo e o amadurecimento no debatedo anarquismo de orientação especifista latino-ameri-cano.1

Esses artigos foram publicados, originalmente, narevista chilena Hombre y Sociedad2 e no site Anarkismo.net,que vem cumprindo um papel fundamental, ao reunirdiversos indivíduos e organizações anarquistas de todo omundo, em torno de uma perspectiva de organizaçãoespecífica anarquista e de trabalho social com os mo-vimentos populares, a partir das linhas plataformista eespecifista.3

Publicados originalmente em castelhano, esses textoscomeçaram a chegar em nossas mãos e a circular cada vezmais entre a militância anarquista brasileira, ganhandoespaço na medida em que foram sendo traduzidos. Esti-vemos bastante envolvidos nesse processo de tradução e

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO10

de difusão dos textos de José Antonio, e nos orgulhamuito que este livro seja agora publicado.

Os artigos aqui reunidos são alguns dos muitos tra-balhos que este estimado companheiro – que durante asrelações, tornou-se nosso amigo – tem se dedicado a pro-duzir, no intuito de gerar um acúmulo do debate teórico,da análise de cenários conjunturais, da reflexão crítica deprocessos históricos em que nossa corrente esteve oudeixou de estar presente e, sobretudo, da reflexão e daproposição de uma consistente e significativa intervençãono atual cenário, que não se encerre em declarações econtemplações abstratas de princípios, mas que seja capazde forjar em meio ao povo um campo libertário, criandopoder popular em meio à luta de classes.

Essa preocupação pode ser detectada em todos ostextos aqui publicados. Cada um deles destaca uma ques-tão específica, que sempre nos vem à tona quando esta-mos envolvidos pela turbulenta realidade das lutas coti-dianas.

Entre as questões refletidas por José Antonio, pode-mos destacar a organização política específica anarquista,como um tema central. No entanto, sua preocupaçãosupera as limitações de se discutir unicamente a neces-sidade desta organização, limitação que, infelizmente,ainda é parte de nossa corrente, por maiores que sejamnossos esforços e êxitos pontuais em superá-la. Suas refle-xões abordam o caráter da organização anarquista, a neces-sidade de um acordo programático que não pode limitar-se a reafirmar questões de princípios e a necessidade deuma sólida compreensão dos problemas postos pela rea-

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APRESENTAÇÃO 11

lidade da sociedade em que vivemos. Problemas comonossa conduta no dia-a-dia das lutas, nossa política dealianças e a necessidade da permanente autocrítica emnosso meio também são devidamente debatidos.

E nestes últimos pontos buscamos focar uma atençãoespecial, haja vista que, de todos os problemas colocados,este é o que menos foi debatido, com a devida seriedade,no anarquismo contemporâneo. Podemos afirmar que,no Brasil, o anarquismo voltou a público, de maneiramais significativa – com o estabelecimento de espaçospúblicos, a realização de eventos e publicações – nos finsdo período da ditadura militar, desenvolvendo-se duranteos anos 1980 e 1990. Nos anos 1980, e até um poucoantes, com iniciativas que agregavam as pessoas em tornodo anarquismo, com todas as suas diferenças; era umaépoca em que havia um interesse por tudo o que fosse“novo” em termos políticos, e que vinha sendo sufocadopela ditadura militar. Iniciativas como o jornal Inimigo doRei na Bahia, a reativação do Centro de Cultura Socialem São Paulo, a fundação do Círculo de Estudos Liber-tários no Rio de Janeiro e da editora Novos Tempos emBrasília contribuíram com este ressurgir do anarquismoque vinha, desde os anos 1930, e mais ainda durante aditadura, bastante reduzido a algumas pessoas e pequenosgrupos, que terminaram conseguindo apenas manter achama do anarquismo acesa durante esses longos anos.4

Durante os anos 1990, diferentes proposições foramsendo aprofundadas e afirmando-se e, se em um períodoanterior era muito comum encontrarmos individualistase socialistas libertários juntos, pessoas e grupos com dife-

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rentes concepções e projetos, isso foi se tornando cada vezmais difícil com o passar dos anos. Foi durante esta dé-cada que nossa corrente (res)surgiu no Brasil, principal-mente pelos contatos com a Federação Anarquista Uru-guaia (FAU), e também por apropriações das tentativas detrabalhos sociais anteriores, como o trabalho sindical emSão Paulo e a atuação comunitária no Rio de Janeiro.

Experiências significativas desenvolveram-se no RioGrande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro e noPará. Os anos 2000, conforme foram passando, permi-tiram que aprofundássemos as posições anteriores e quetivéssemos as experiências mais significativas em termosde trabalho e inserção social e podemos destacar o surgi-mento do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO), emum encontro em Belém no ano de 2002. Surgiram tam-bém grupos e organizações em outras localidades comoAlagoas, Amapá, Bahia, Fortaleza, Goiás, Mato Grosso,Paraná e Santa Catarina. Algumas experiências conti-nuaram, outras não, mas todas contribuíram, ou aindacontribuem, com o anarquismo especifista no Brasil.

Chegamos, neste ano de 2010, a uma situação dife-renciada, que se caracteriza por mais de uma década deespecifismo no Brasil e, com isso, por uma série de acú-mulos teóricos e práticos que nos permitem fazer umanálise e identificar erros e acertos. Neste debate, acre-ditamos que os textos de José Antonio têm muito acontribuir. Não para discutir nossas diferenças com osindividualistas, ou para argumentar que os anarquistasnão são contra a organização. Isso foi necessário no pas-sado e os companheiros que trabalharam neste sentido

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contribuíram significativamente com o nosso caminhar.Hoje, tanto os anarquistas de nossa corrente quanto ou-tros, além de libertários e mesmo pessoas de outros cam-pos da esquerda, já têm muito mais clareza sobre as nossasdiferenças com os individualistas, e com a nossa con-cepção de defesa das lutas populares, da organização anar-quista, de uma posição classista e combativa. Portanto, osartigos deste livro devem contribuir com o ganho qua-litativo que o anarquismo especifista vem tendo desde osanos 1990, mas também, com o ganho que ainda é neces-sário ter e que pode, graças ao trabalho acumulado, nospermitir uma análise crítica.

Se houve algo de produtivo desde os anos 1980 foicertamente o fato de estar cada vez mais evidente que sechamar anarquista já não significa muita coisa. Sob esseamplo “guarda-chuva” que é o anarquismo, encontram-seos mais diferentes projetos, as mais diferentes análises econcepções. Não entraremos aqui em uma discussão paradefinir o anarquismo e julgar essas diferenças. Nossoprojeto tem suas bases fundamentadas e sabemos o quequeremos, embora tenhamos consciência que ainda hámuito por se desenvolver.

Outro ponto positivo, indubitavelmente, foi o acú-mulo de experiências teóricas e práticas que se desen-volveram neste último período. Por um lado, as publi-cações, os documentos, escritos e debates produzidos,traduzidos e difundidos, permitiram que elevássemosnosso nível teórico e que conseguíssemos produzir mate-rial de significativa qualidade e grande valor. Por outrolado, diversas experiências práticas, nas mais diferentes

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formas de lutas populares: sindicais, comunitárias, estu-dantis, dos sem-terra, dos sem-teto, dos catadores, etc.Em suma, experiências teóricas e práticas muito valiosase que foram responsáveis por iniciar essa reinserção doanarquismo no cenário político e nas lutas de nosso país.É nessas experiências, e no contexto político futuro daslutas e dos movimentos populares, que encontramos asmaiores possibilidades para o anarquismo.

No entanto, dentro desse universo tão plural do anar-quismo, em que o Brasil não possui muito de diferentedos outros países, pudemos apreender e ver com nossospróprios olhos muitos problemas. As posições indivi-dualistas, forjadas por stirnerianos e defensores de terapiasalternativas retiraram do anarquismo seu caráter socialistae, assumindo elementos do pós-modernismo, abando-naram a posição classista do anarquismo e encerraram-seem seus pequenos grupos de privilegiados e acadêmicos.Por outro lado, houve um impulso de radicalismo, quese reproduziu única e exclusivamente no discurso, masnão na prática, de anarquistas julgando serem portadoresde uma verdade revolucionária, acima de qualquer imper-feição, acusando todos aqueles que não concordavamcom suas posições de traidores, atacando-os permanente-mente. Como muitas seitas da esquerda, confundiramadversários com inimigos e se fecharam na contemplaçãoabstrata de “verdades revolucionárias”, quase que de for-ma religiosa, dando mais ênfase ao ataque daqueles quenão defendiam suas posições do que na organização daslutas e na denúncia deste sistema. Em diversos casos, essa“violência verbal” foi causada pelo afastamento das lutas

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populares, um fato que continua a proporcionar dis-cursos radicais, porém sem conteúdo real, e afirmaçõesprincipistas sem lastro com a realidade da luta de classes.

O perfil do anarquista como alguém anti-social, comdificuldades de se relacionar com pessoas diferentes, dog-mático e sectário ficou muitas vezes evidente, já que ésomente na luta que podemos conhecer outras pessoas,valorizar outros aspectos para além da nossa ideologia esaber respeitar companheiros e companheiras que pen-sam diferente de nós. Outro problema foi o das posiçõesem relação às lutas populares. O anarquismo não é maisdo que uma expressão dessas lutas e o fato de ele ter sedesligado delas durante muitos anos, colocou diversosanarquistas na posição de “agentes estranhos” a elas, o quefez muitos pensarem que uma reaproximação entre a ideo-logia e os movimentos populares poderia ser algo autori-tário, um tipo de “entrismo”. Posições essas que convi-veram com outras: de que o povo seria naturalmentelibertário, ou que quando não era consciente ou nãoadotava a nossa forma de organização era alienado, nãosabia o que estava fazendo etc. Todas essas posições sóevidenciam, para nós, a falta de prática social e elas sópoderão ser superadas com a reinserção do anarquismonas lutas sociais.

Essa autocrítica, para nós, é fundamental. A dificul-dade de superar esses problemas foi sempre considerarque os outros estavam errados, mas nunca nós. Obser-vando todos os acontecimentos históricos, e a própriaprática anarquista, foi freqüente a avaliação de que pordiversas vezes éramos vítimas, todas as nossas derrotas

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tinham exclusivamente por razão o mal-caráter de fas-cistas, capitalistas, comunistas etc. Não há dúvidas que háuma série de problemas e equívocos fora do anarquismo,tendo eles resultado em graves conseqüências, mas nospreocupa, neste momento, tomar a história e nossa expe-riência de luta para pensar em quais são as nossas limi-tações e, a partir disso, superá-las. Nisso, também, osartigos do companheiro contribuem bastante, ao de-monstrar que o anarquismo teve imensa dificuldade emcolocar-se como uma alternativa real à luta dos oprimi-dos.

Nossa tarefa parece clara: olhar com autocrítica parao que passou e que vem se passando, procurar encontrarmeios de superar os problemas, reproduzir o que vemacontecendo de melhor, caminhar para frente, rumo àspossibilidades reais que o anarquismo nos oferece.

A recusa de fazermos tabula rasa entre aqueles que seencontram em um campo ideológico diferente do nosso,e aqueles que nitidamente são nossos inimigos – o Ca-pital e o Estado – não significa a blindagem de nossosadversários políticos de toda e qualquer crítica contun-dente a seus postulados programáticos e a suas práticas deatuação. A diferenciação entre adversários políticos, aque-les que têm programas distintos, mas que compartilhamum mesmo posto na luta de classes, e os inimigos polí-ticos, aqueles que se encontram em um lado oposto naluta de classes, é fundamental para uma devida interven-ção anarquista nas lutas sociais.

Mais do que nunca, é a hora de o anarquismo fazerjustiça à sua história, reconvertendo-se em uma força

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política e social, capaz de mover a classe à qual histo-ricamente ele esteve a serviço. Ser capaz de dialogar comessa classe, com todos aqueles que honestamente dedicamsuas vidas à sua mobilização e empoderamento, concor-dando ou não conosco. Analisar com a devida seriedadeos problemas de nossa atual sociedade, sem cair em sim-plismos e reducionismos que fazem transposições mecâ-nicas de contribuições teóricas e experiências históricasdo passado. Compreender historicamente tais contri-buições, sempre dentro de seu contexto, e problematizá-las a partir do atual. Estes são os nossos deveres mais doque urgentes.

Longe de serem consideradas respostas finais aos pro-blemas refletidos, os artigos aqui publicados devem serentendidos como um marco inicial para aprofundarmostais questões, tendo a clareza de que a esmagadora maio-ria, para não dizer todas estas questões, nunca terão umaresposta absoluta, seja de nossa parte ou de qualquer ou-tro campo da esquerda, dada a turbulenta e volúvel reali-dade da nossa sociedade. Nossa tarefa, portanto, é estarsempre atentos aos problemas e às possibilidades que oanarquismo e a luta de classes nos trazem, buscando aomáximo uma coerência em torno da superação dos pro-blemas e da exploração mais satisfatória das possibili-dades.

Reproduzimos aqui uma breve, mas extremamentevaliosa, contribuição de Gerardo Gatti que, no artigo“Definições de um Companheiro”, de 1975, refletiusobre alguns dos problemas e das possibilidades coloca-

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dos neste livro. A luta do anarquismo, dizia Gatti, é con-tra o capitalismo e o Estado:

“O poder da burguesia sintetiza-se e funde-seno Estado. Não há possibilidade de transformar asociedade sem destruir esse Estado burguês, ecomo lutamos por uma sociedade sem classes so-ciais, queremos que se elimine todo aparato buro-crático do Estado, toda separação entre governan-tes e governados. [...] Nós acreditamos que, tam-bém no que se refere à administração política dasociedade, se deve acabar com a propriedade pri-vada e terminar com esta ordem em que uns man-dam e outros obedecem.”

Seus meios de luta constituem-se a partir das orga-nizações populares nos espaços de trabalho e de moradia,devendo criar poder popular no caminho das lutas nabusca da revolução social. Essas organizações são confor-madas a partir da lógica da necessidade, quando homense mulheres buscam melhores condições de vida e tentamafastar-se das diferentes opressões.

“Conselhos e federações de comitês operários,de vizinhos de bairro, comunas ou conselhos ru-rais de camponeses são distintas formas através dasquais os trabalhadores vêm se organizando paradefender os processos revolucionários contra acontra-revolução interna ou a agressão externa, epara administrar, ordenar e conduzir o conjunto

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da vida social. A partir destas bases, entendemosque devem estruturar-se os organismos sociais.Efetivo poder dos trabalhadores, maior gestãodireta, menor representação indireta, nenhumtipo de diferenciação salarial, nenhum tipo devantagem ou privilégio. Isso é o que entendemospor poder popular.

Nada disso é algo novo. É por estes ideais queem várias partes do mundo os trabalhadores fize-ram revoluções, celebraram vitórias e sofreramderrotas. […]

Sem conhecer esta história, sem ter lido esteslivros, ainda sem conhecer estas explicações, emtodo o mundo, todos os dias, milhões e milhõesde seres humanos que sofrem a prepotência, que-rem a igualdade; aqueles que têm fome desejamcomer; os que passam frio e não têm teto queremter uma casa e um abrigo; aqueles que sofrem ahumilhação buscam fraternidade; aqueles que sereconhecem ignorantes aspiram a uma escola, pe-lo menos para seus filhos. De forma muitas vezesvaga, dando muitas vezes denominações distintas,a maioria das pessoas que conhece sofrimentos,ditaduras, infelicidades, despotismo, pobreza, as-pira ao bem estar, à solidariedade e ao entendi-mento entre os humanos. A origem primeira e arazão de nossa luta não estão em qualquer razãode alta política de Estado, ou de governo, de par-tido ou de organização, de grupo ou de movi-mento. Essa origem está na dor e no desejo desta

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grande humanidade, da qual nosso povo é umaparte.”

Nessa luta, o objetivo é o socialismo libertário, quetorna possível um sistema de liberdade e igualdade, semexploração e dominação. Socialização econômica e polí-tica, autogestão e federalismo. Enfim, um processo queharmonize socialismo e liberdade.

“Porque sabemos que o homem é um ser so-cial, queremos que desenvolva sua capacidade e acoloque a serviço da sociedade; porque queremosque todas as decisões que digam respeito à socie-dade sejam assumidas e resolvidas de forma social;porque queremos que a riqueza não seja indivi-dual ou de alguns poucos, mas social, de todos, epor isso nos chamamos socialistas.

Porque confiamos mais no acordo que na im-posição, mais no conhecimento que na coerção,mais na liberdade que na autoridade. Por istosomos libertários. Mas já aprendemos que, às ve-zes, as denominações são enganosas.”

Finalmente, Gatti afirma que não devemos nos ater àforma, mas ao conteúdo das propostas e das práticas.Neste sentido, alguns, cujas nomenclaturas e identifi-cações parecem próximas das nossas, podem não ter abso-lutamente nada a ver conosco. Diferentemente, outros,que não utilizam as nossas nomenclaturas e identificações,

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APRESENTAÇÃO 21

podem ter propostas e sentimentos muito parecidos comos nossos.

“Pode haver gente que, denominando-se demaneira parecida, não saiba bem o que quer, e hátambém quem, com outro nome, ou às vezes atésem saber dar um nome, busque o mesmo.

A todos os que lutam por estes ideais, semmesquinharias, à sua maneira e em sua medida,chamamos companheiros.”5

O anarquismo tem, ainda hoje, a possibilidade deimpulsionar as organizações populares rumo a uma trans-formação social revolucionária, num processo que tam-bém pode oferecer conquistas de curto prazo.

Buscar essas possibilidades, resolvendo nossos pro-blemas; eis o desafio colocado.

Militante da FAU desde sua fundação, na década de1950, Gatti militou no movimento sindical uruguaio eparticipou da luta armada contra a ditadura. Hoje, é umdos valiosos militantes que integra a lista de “desapare-cidos” políticos pelos regimes facínoras, promotores doterrorismo de Estado que se abateu em nosso continente.Sua trajetória esteve sempre ligada à busca pelo caminhodo socialismo libertário.

A ele, e a todos os companheiros desta organização,que tombaram para escrever nossa história, dedicamoseste livro.

Que o anarquismo no Brasil possa continuar cres-cendo, em quantidade e em qualidade, podendo cumprir

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seu papel histórico de impulsionar e fortalecer as lutaspopulares de nosso povo. Certamente o livro de JoséAntonio tem muito a contribuir neste sentido.

Boa leitura!

Julho 2010

Notas:

1. “O especifismo é uma concepção de organização anar-quista. O termo é utilizado e foi difundido pela Fede-ração Anarquista Uruguaia (FAU), que com ele refere-se àcorrente anarquista que historicamente defendeu a neces-sidade da organização específica anarquista. Assim, o espe-cifismo acredita que a organização da luta deve se dar emdois níveis distintos: o da organização anarquista e o dosmovimentos populares – que devem se formar com basena necessidade e não se resumir a uma determinada ideo-logia, como no caso do anarco-sindicalismo. Este mo-delo de organização possui suas bases no anarquismoclássico, tendo sido defendido por Mikhail Bakunin,Errico Malatesta, os russos exilados do Dielo Truda,entre outros. [...] Desde o século XIX, outras concepçõesvêm sendo incorporadas ao que hoje se entende como‘espeficismo’, que é defendido por uma série de orga-nizações anarquistas brasileiras: a compreensão do anar-quismo como ideologia e, portanto, com um vínculonecessário com uma prática política com objetivo detransformação social; a organização como elemento im-prescindível para a luta; a concepção da organização espe-cífica anarquista como uma organização de minoria ativa;

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APRESENTAÇÃO 23

a centralidade da luta de classes e a prioridade no trabalhosocial junto aos movimentos populares (movimentossociais, sindicatos, etc.); a unidade teórica e ideológica; aunidade estratégica e tática; o processo decisório marcadopela tentativa de consenso e, não sendo possível, pelavotação; e a ênfase no compromisso militante. Fora daAmérica Latina, as organizações que defendem posiçõessemelhantes ao especifismo definem-se como anarco-co-munistas, de inspiração plataformista.” Felipe Corrêa.“Especifismo e Síntese/Sintetismo”. In: http://www.a-narkismo.net/article/15043.

2. “Hombre y Sociedad” foi a primeira publicação aber-tamente anarquista que surgiu depois do golpe de Estadode Pinochet no Chile. Foi editada por veteranos anar-quistas e anarco-sindicalistas de décadas passadas. Desdeo 1º de maio de 1985 foram feiras algumas edições darevista, de documentos e declarações, até que, em 1988,a coordenação que sustentava a publicação deixou deexistir. Durante este tempo, essa coordenação tinha umlocal que serviu de ponto de encontro para organizaçõesde jovens, de mulheres e sindicais. Em 1997, a revista foirelançada por um novo grupo editorial, que incluía doisveteranos da primeira época. Desde então, ela vem sendoum espaço de discussão teórica e política de importânciapara o movimento no Chile, de onde se vem tentandocontribuir não só com o campo libertário, mas com todoo conjunto do movimento popular.

3. Anarkismo.net (www.anarkismo.net). Esse site possuiconteúdo em diversos idiomas e apresenta análises deconjuntura, informações sobre lutas populares e lutasanarquistas, documentos programáticos e textos clássicos– tudo o que pode ser útil para o debate entre anarquis-

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tas e também para informar o público geral, gerando inte-resse tanto pelo anarquismo como pelas lutas populares,e apresentando uma leitura da realidade a partir de nossospressupostos teóricos e ideológicos.

4. Para um ótimo artigo sobre o anarquismo no Brasil até1930, incluindo a questão do refluxo, ver: AlexandreSamis. “Pavilhão Negro sobre Pátria Oliva”. In: Históriado Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imagi-nário, 2004. Para uma breve história do “ressurgir” doanarquismo na década de 1980 e um balanço do anar-quismo nos anos 1990 e 2000, incluindo a inf luência daFAU, ver: Felipe Corrêa. “O Anarquismo, a Luta de Clas-ses no Brasil e o Especifismo da FAU”. In: Juan CarlosMechoso. A Estratégia do Especifismo. São Paulo: Faísca,no prelo.

5. Gerardo Gatti. “Definições de um Companheiro”. In:Anarkismo.net (http://www.anarkismo.net/article/13-369).

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ALGUMAS PALAVRAS SOBRE ARAZÃO DE SER DESTE LIVRO

Os artigos reunidos neste livro foram desenvolvidos apartir de discussões orgânicas das quais participei entre osanos de 2002 e 2007. Alguns deles foram elaborados apartir de documentos internos de discussão, dos quaiseliminei referências pessoais ou aspectos internos que nãosão de relevância para uma discussão em círculos maisamplos, enquanto outros foram elaborados para encon-tros libertários ou simplesmente escritos para expressarcerta insatisfação com limitações do movimento liber-tário. Todos os artigos foram elaborados como parte deuma discussão bastante aprofundada que estamos tendonesse momento, em relação a como desenvolver o movi-mento anarco-comunista1, como transformá-lo de umacrítica radical em uma alternativa ao capitalismo. Aindaestamos longe de ter desenvolvido uma proposta revo-lucionária madura, e não creio que alguns documentoscomo estes tenham a última resposta para essa questão.Apesar disso, estes documentos serviram para esclarecer

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certas posições e certos pontos necessários do debate paracomeçar a construir essa alternativa libertária. Por isso, aimportância deles estarem sendo agora publicados juntosneste volume.

Creio que a insatisfação que se evidencia nestes docu-mentos diante de algumas de nossas limitações foi ex-pressa, de maneira muito clara, já há várias décadas, pelamilitante anarquista Lucy Parsons, que escreveu a umamigo:

“Os anarquistas são muito bons para apontaras insuficiências da organização dos outros. Mas,nos perguntamos: o que eles fizeram nos últimos50 anos? Nada para construir um movimento;eles não são outra coisa senão fantasiosos sonhan-do. Conseqüentemente, o anarquismo não atraio público. Este mundo intenso e prático não teminteresse pelas teorias rebuscadas – ele quer fatose também exemplos práticos. Falam muito decooperação. E você me disse que tentou reunir osquatro míseros periódicos que existem para coo-perar impulsionando uma publicação que valha apena, mas não conseguiu nada…”2

Creio que é o momento de dar um salto qualitativocomo movimento, abandonar infantilismos, abandonaro utopismo vulgar como maneira de fugir das dificul-dades objetivas da luta revolucionária, abandonar o idea-lismo como mera declaração de boas intenções sem meca-nismos concretos para torná-las realidade. Isso vem sendo

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feito por um setor importante do movimento libertáriograças à participação em diferentes lutas e experiênciasorganizativas, as quais representam a melhor escola paraos revolucionários. No entanto, é necessário acompanharessa experiência viva de certas reflexões daquilo que temosaprendido.

É importante dizer, sobre esses documentos, que to-dos têm um fio condutor: eles tratam de questões fun-damentais, básicas, de política revolucionária, que poucasvezes são discutidas nos círculos libertários. Quando nãopossuímos uma linguagem comum, correremos atrás dopróprio rabo em discussões intermináveis, e, na realidade,alguns conceitos básicos para o debate vêm sendo enten-didos de maneira contraditória. Por isso, em certa me-dida, este livro é uma espécie de volta ao ABC da políticarevolucionária. O que espero com estes artigos não é dara última palavra sobre todos esses conceitos, mas começaruma discussão a partir dos fundamentos, dos elementosmais básicos, e começar a colocar a necessidade de escla-recer alguns conceitos, um trabalho que não se pode con-siderar concluído com a publicação destes artigos.

Por exemplo: como podemos discutir sobre unidadetática com gente que não sabe o significado preciso dapalavra tática? Como podemos discutir sobre os meios deexercer nossa influência nas organizações sociais comgente que não entende o que é uma organização social,ou qual é sua diferença de um partido, uma rede, umgrupo de afinidade, etc? Como discutir sobre a organi-zação política quando não se entende o que é um partidoou o que não é um partido? Há muitos exemplos e pode-

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ríamos continuar a fazer essas perguntas indefinidamente.Esses exemplos servem simplesmente para dar uma idéiadas dificuldades que certas confusões freqüentes em nos-sos meios colocam para a prática e para a consolidação deuma alternativa libertária.

Afinal de contas, esse exercício de discussão dos ele-mentos essenciais da política revolucionária – que nãoforam suficientemente elaborados no anarquismo – éfundamentalmente um passo para converter o anarquis-mo em um projeto social de transformação, em uma visãopolítica que possa inspirar o conjunto do povo a lutar.Um anarquismo que volte a levar o movimento libertárioao coração das massas que dia após dia luta para melhorarsua condição social e criar um novo mundo. O que nosinteressa é um anarquismo que seja capaz de falar umalíngua de vitória.

Neste sentido, acreditamos ser necessário discutir al-guns elementos fundamentais para ter uma base sólidacomo movimento: elementos relativos à organização;com um pouco mais de detalhe, elementos relativos àsorganizações políticas revolucionárias; temas cruciais paraqualquer movimento revolucionário como alianças e co-mo converter nossas propostas em um programa revolu-cionário coerente. Também acreditei ser importante dis-cutir a importância da crítica no movimento libertário,pois o sectarismo, o extremismo ideológico, o dogma-tismo, a inflexibilidade para entender a complexidade domundo no qual vivemos, o simplismo que acredita quecom algumas fórmulas prontas é possível transformar omundo, são todos grandes obstáculos que impedem,

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muitas vezes, que aconteçam discussões frutíferas emnossos círculos. E onde não há debate, não há desen-volvimento, nem do pensamento, nem da ação revolu-cionária.

Creio que outro problema do anarquismo é ignoraras dificuldades objetivas dos processos de transformaçãorevolucionária. Isso é bastante nocivo, não somente pelosefeitos negativos que eventualmente tem sobre nossa con-tribuição em algum processo revolucionário futuro, maspela contribuição com soluções para os problemas atuais.Assim como nos finais do século XIX, quando a fé nainevitabilidade do comunismo anárquico levou muitoscompanheiros a entender o anarquismo como uma espé-cie de poção mágica que curaria instantaneamente todosos males da humanidade, hoje é freqüente encontrar co-mo resposta mecânica de muitos anarquistas a qualquersituação, a trivial resposta: “a revolução anarquista seencarregará disso”. E dessa mesma maneira são analisadasas revoluções do passado ou os reformistas do presente:se se ajustam ou não aos ensinamentos eternos e dog-máticos do anarquismo. Preferimos um método inverso:aplicar o anarquismo como teoria para entender a rea-lidade em função da transformação social. Por isso, acre-ditei ser necessário insistir, pelo menos em um dos artigos,que com a revolução podemos esperar incontáveis dificul-dades e contratempos que colocarão à prova nossas idéiaspré-concebidas, que farão impossível criar o comunismoanárquico da noite para o dia, que colocarão barreiras queteremos de superar com inteligência e flexibilidade, e nãocom consignas e rigidez doutrinária. Devemos ter essa

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perspicácia para enfrentar os problemas atuais e tambémpara pensar as dificuldades que podem surgir a partir deuma situação revolucionária provável no médio prazo, deacordo com o acirramento das contradições sociais emtodo o mundo.

Creio que o movimento anarquista está em uma en-cruzilhada: ou dá o salto qualitativo e decide converter-seem uma contribuição para os movimentos populares,cumprindo dessa maneira seu objetivo como movimentorevolucionário, ou, pelo contrário, se conforma com aposição de crítico eterno situado além do bem e do mal(ou seja, além da prática): umbiguista, isolado, preo-cupado somente em manter a pureza dos quatro dogmas.Assim, o anarquismo se reduziria a uma seita, a um fenô-meno mais religioso do que político, para o qual a revo-lução seria equivalente ao paraíso da tradição judaico-cristã. Nada daquilo realmente existente em nosso mun-do seria suficientemente “anarquista” para que esses anar-quistas sujassem as mãos: “Nosso reino é de outro mun-do”. Lamentavelmente, o anarquismo se viu reduzido aesta caricatura em muitos casos.

Sei que um livro como este não chegará a todos aque-les que se reivindicam anarquistas e que muitos estarãoperfeitamente convencidos de que não devem fazer nadadiferente, que não há necessidade de dar nenhum salto eque o que precisa ser feito é expurgar do movimento oselementos impuros e os hereges. Eles estão em seu plenodireito de pensar desta maneira e não é meu objetivodirigir o livro a eles. Este livro é dirigido a este setor cadavez mais importante do anarquismo que, a partir de diver-

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sas perspectivas, busca converter-se em um movimentoefetivamente revolucionário, nos fatos e não na retórica.Talvez não estejamos de acordo em tudo o que está ditoaqui, mas talvez estejamos de acordo no mais importante,que é como fazer do anarquismo revolucionário algo rele-vante para esses milhões de pessoas que buscam umasociedade diferente, mais justa e mais humana.

Se este livro conseguir estimular algum debate nessesetor, e se o debate se traduzir em propostas e lutas, medarei por satisfeito.

3 de Julho de 2010

Notas:

1. O autor refere-se aos anarco-comunistas de inspiraçãoplataformista que, junto com os especifistas da AméricaLatina, vêm tentando construir um movimento inter-nacional. Um dos projetos desse movimento é o sitewww.anarkismo.net, do qual o autor é membro.

2. Lucy Parsons. Carta de 27/02/1934. In: Gale Ahrens(org.) Lucy Parsons. Freedom, Equality & Solidarity. Chi-cago: Charles Kerr, 2004, p.161.

* Tradução: Felipe Corrêa.

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A ORGANIZAÇÃOREVOLUCIONÁRIA

ANARQUISTA

“O anarquismo é organização,organização e mais organização...”

Errico Malatesta 

Há um mito bastante difundido, tanto entre a po-pulação em geral, quanto entre muitas pessoas envolvidasnos movimentos populares. Segundo este mito, os anar-quistas são inimigos da organização e preferem, em contra-partida, a ação puramente espontânea; da mesma maneiraafirma-se que somos individualistas fanáticos. Estas duasafirmações são completamente falsas e surgem algumasvezes por ignorância e outras por uma clara má intençãopolítica que existe em certos setores. O trágico é que,muitas vezes, são os próprios “anarquistas” que se encar-regam de difundir este mito. Isto porque, com uma prá-tica inorgânica, estimulam todo tipo de interpretaçõesanti-organizativas, e porque, muitas vezes reconhecendo a

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necessidade da organização no discurso, na prática atuamcontra ela.

Certo é que pouco se escreveu sobre a organizaçãoanarquista, o que é surpreendente, já que o anarquismoconstitui uma crítica aos fundamentos da sociedade declasses, que aponta tanto para seus aspectos de organizaçãoeconômica, como para os aspectos de sua organizaçãopolítica. Neste sentido, nos surpreende que nos clássicos,muitas vezes, o tema da organização esteja simplesmentereduzido a umas tantas frases, explicando, constantemen-te de forma superficial, o caráter que deve adotar a organi-zação anarquista: sua organização de baixo para cima,evitando a excessiva centralização e sem cair no atomismo(contentando-se muitas vezes com descrições que beirama infantilidade, sobre mundos fantásticos, sem nenhumarestrição).

Porém, a forma de organização que os anarquistasdevem adotar para dar corpo ao papel revolucionário quehoje os cabe não aparece de forma clara em nenhum dosclássicos. Bakunin não se aprofunda muito no tema e, naprática, opta pelas sociedades secretas, em voga no séculoXIX, o que está longe de ser uma solução libertária para oproblema da organização revolucionária. Em Kropotkin,chama atenção a ausência do tema, já que a revolução éconsiderada inevitável e aos anarquistas, não nos restaoutro trabalho senão a propaganda. Malatesta faz algumasdeclarações a respeito da construção do anarquismo emum partido revolucionário, mas não dá maior fundamen-tação ao assunto.

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São os anarco-sindicalistas que primeiramente darãouma resposta ao tema da organização revolucionária: massua saída não aponta especificamente para os anarquistas,mas para o conjunto do proletariado enquanto classe.Eles dão resposta ao problema da organização por meiodo sindicato revolucionário, nascido principalmente naFrança, no calor das Bolsas do Trabalho, que posterior-mente darão origem, nos fins do século XIX, à Confédé-ration Général du Travail (CGT). Logo seu exemplo seráseguido pelos Industrial Workers of the World (IWW)dos EUA, que se espalharão pelo mundo, chegando in-clusive ao Chile, e a inúmeras sociedades de resistência,que surgirão em todo mundo: a Federación Obrera Re-gional Argentina (FORA), a Federación Obrera RegionalUruguaya (FORU), o Freien Arbeiter Union Deuts-chland (FAUD) [Sindicato dos Trabalhadores Livres daAlemanha], a Confederación Nacional del Trabajo (CNT)espanhola, etc.. No Chile, as sociedades de resistênciaformarão primeiro o IWW, e logo virão a FederaciónObrera Regional de Chile (FORCh) e a ConfederaciónGeneral de Trabajadores (CGT). No entanto, os anarco-sindicalistas solucionam, em certa medida, o tema daorganização revolucionária para o conjunto do prole-tariado como classe, mas não para o setor do proletariadoque se reivindica anarquista. Para eles, em muitos casos, aorganização anarquista não deveria ser mais que algumaspessoas unidas por afinidade, com o único fim de fazerpropaganda; a organização revolucionária, de fato, ficarianas mãos do sindicato.

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Mas o tema da organização anarquista permanecerápresente, e tentará ser resolvido por duas vertentes: a ver-tente da “síntese” (proposta fundamentalmente por Sé-bastien Faure), que, em certa medida, é herdeira destaconcepção puramente propagandista do grupo anarquistade afinidades. Segundo esta corrente, os anarquistas dasdiversas tendências (ignorando que muitos “anarquistas”não possuem muito mais em comum do que uma sim-ples identificação como anarquistas) deveriam organizar-se em grupos de afinidade e federar-se sem a necessidadede que houvesse nada além do seu reconhecimento comoanarquistas (afinal de contas, são todos inimigos da auto-ridade…).

A outra vertente que dará resposta ao tema da orga-nização anarquista é a corrente herdeira da “Plataforma”,desenvolvida pelo grupo de ucranianos Dielo Truda, logoapós a experiência da Revolução Russa e ao fracassadointento libertário na Ucrânia, sanguinariamente repri-mido pelos bolcheviques. Suas teses sobre a organizaçãoanarquista desenvolveram-se com base em uma profundacrítica da situação de organização do anarquismo e dadebilidade teórica com a qual se contentava um movi-mento em que valia praticamente tudo, contanto quefosse chamado de “anarquista”, e que, muitas vezes, eravazio de qualquer conteúdo. Com base nesta crítica,propõem que a unidade dos anarquistas não poderia sur-gir de uma simples aglutinação de individualidades e gru-pos em torno de um denominador comum (“anarquis-

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ta”), mas de uma unidade ideológica e tática, fruto deprofundas reflexões e discussões, feitas no calor da expe-riência prática, dos métodos e das idéias. A organizaçãodeveria ter coesão a partir de dois eixos principais: a res-ponsabilidade coletiva e o federalismo. É este aporte queconsideramos proporcionar uma resposta real ao tema daorganização revolucionária anarquista.

Acreditamos ser necessário destacar que, na AméricaLatina, especificamente no Uruguai, constituiu-se, em1956, a Federação Anarquista Uruguaia (FAU) que, levan-do em conta a necessidade de dotar os anarquistas de umaorganização político-revolucionária, que fosse além dapropaganda e que pudesse dar conta tanto da ação reivin-dicativa como da ação revolucionária, desenvolveu tesessemelhantes às contidas na “Plataforma”. O que dá maiorriqueza a essa experiência é o fato de ela ser proveniente,sobretudo, de uma análise (fundamentada na prática) darealidade latino-americana.

Analisei as teses da “Plataforma”, de maneira maisdetalhada, na revista Hombre y Sociedad nº 10. Por ora,tratarei propriamente da organização revolucionária anar-quista; creio que só começando um debate e um escla-recimento de posições a respeito do tema, poderemosafirmar de maneira clara a posição dos anarquistas emrelação à organização, afastando, assim, definitivamente,os fantasmas do espontaneísmo e da ação inorgânica.

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PROLETARIADO EMOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO

Existe somente um movimento revolucionário: omovimento do proletariado enquanto classe contra osistema capitalista. É o proletariado que representa, porsua própria condição objetiva, a potencialidade revolu-cionária para negar o capitalismo. Nas palavras de AlbertMeltzer: “só uma classe produtiva pode ser libertária pornatureza, já que não necessita da exploração”.1

Entretanto, o proletariado está longe de constituirum bloco homogêneo e, para dizer a verdade, em termossubjetivos ele apresenta uma fragmentação “objetiva” ine-gável; isto, sem falar da penetração da ideologia burguesaem nossa classe. Desta forma, comprovamos que no seiodo proletariado – explorados e oprimidos – existemdistintas sensibilidades, distintos níveis de consciência ede profundidade na compreensão da questão social. Estasdiferenças no plano subjetivo podem ter ligação comcertas condições objetivas (diferenças entre trabalhadoresmais intelectualizados e trabalhadores manuais) e tambémideológicas. Mas o fundamental é compreender o fato deque ainda que o proletariado apresente, grosso modo,diversas características que objetivamente o constituemem classe (o trabalho assalariado, o fato de não seremproprietários dos meios de produção, etc.), subjetiva-mente há uma notável heterogeneidade, distintos níveisde consciência e distintas formas de se pensar dentro dasociedade.

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Este heterogeneidade subjetiva cristaliza-se nos progra-mas históricos dos diversos setores da classe organizadospoliticamente.2 Não é necessário esclarecer que estes pro-gramas aglutinam ao seu redor distintos setores da classe,pelas razões já expostas; portanto, necessariamente, estesprogramas devem ser estabelecidos de forma organizativa.O anarquismo representa o programa que reúne em tornode si um setor, um movimento histórico dentro da pró-pria classe, que se identifica com os aspectos fundamentaisda prática e do pensamento libertários. É neste sentidoque, assim como Malatesta, afirmamos que o anarquismodeve construir-se em partido revolucionário; ou seja, deveser capaz de agrupar em uma organização determinada umsegmento da classe, que se identifique com os pressu-postos centrais do programa anarquista em seu sentidoamplo (sociedade sem classes e sem Estado, autogestio-nária, federalista, etc.).

Por partido revolucionário não queremos dizer nemuma organização hierárquica nem uma organização queparticipe do sistema democrático burguês pelo jogo elei-toral. O que pretendemos é criar uma organização quenos agrupe, não por nossa exclusiva afinidade em termospessoais (como é o caso do coletivo ou do grupo de afini-dade), nem por nossa posição de classe (como o sindicato)ou pelo pertencimento a algum grupo social determinado(clubes de mães, comitês de desempregados ou qualqueroutra organização de massas do gênero). Referimos-nos auma organização com sólidas bases classistas, mas que nosagrupe em função deste programa anarquista, ou seja,uma organização política revolucionária.

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Ainda que muitos dos clássicos tenham tratado dopartido anarquista – e que muitos os tenham organizado,de fato – hoje esta palavra, por toda uma história políticaque não vale a pena resgatar, caiu em descrédito; sua utili-zação leva a equívocos, ao ser colocada para o público emgeral, em função dos conceitos reduzidos de partido vul-garmente utilizados. No entanto, é necessário, para umadiscussão política mais ampla, o rigor terminológico, e osanarquistas devem prestar atenção para não cair no “tabudas palavras proibidas” e atentar sempre para o conteúdodo que está em discussão.

 A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIAE SEU CONTEÚDO CLASSISTA

 Devemos deixar claro que o enraizamento de uma

determinada organização em uma dada classe social estádado pela sua própria origem e pelos objetivos que alme-ja, assim como pelo público a que dirige fundamental-mente seu discurso. Cabe assinalar que a relação entreclasse e organização é determinada pela origem do progra-ma, pelo meio em que se desenvolve e pelos objetivos quebusca.

A teoria anarquista – e, portanto, a organização revo-lucionária fundamentada em seu programa – não é umateoria externa ao proletariado; esta se desenvolveu comouma força viva e orgânica nas primeiras associações declasse, em suas primeiras experiências de luta, caracte-rizando o anarquismo como uma prática real de combate,

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como uma interpretação dos desejos e aspirações da classediante de um sistema de opressão, e ao mesmo tempocomo uma crítica à institucionalidade burguesa e estatal.Estas origens do anarquismo, arraigadas na própria lutade classes, foram interpretadas e sistematizadas pelos clás-sicos do anarquismo, principalmente por Bakunin e Kro-potkin. O anarquismo não nasceu como fruto de “pro-fundos” estudos das ciências sociais; ainda que os clássicostenham utilizado os progressos nas ciências sociais doséculo XIX, colocando-os a serviço deste movimento quese desenvolvia no segmento mais lúcido do proletariado.É por este trabalho que devemos tanto aos clássicos, quederam forma e coerência a essa teoria que crescia no calordas greves e das insurreições, que se expressava instintiva eradicalmente na imprensa operária da época.

Nas palavras do próprio Kropotkin: “Como o socia-lismo em geral e como qualquer outro movimento social,o anarquismo nasceu do povo. E só conservará sua vitali-dade e sua força criadora enquanto permanecer popu-lar.”3 Podemos, então, dizer com propriedade que o anar-quismo é fruto da experiência acumulada pelo prole-tariado na luta de classes.

O anarquismo também desenvolve seu classismo namedida em que identifica, claramente, qual é o sujeitoprincipal a quem dirige sua atenção e seu discurso: a classeproletária. Não poderia ser de outra forma, já que estepúblico é determinado, em grande medida, pela origemdo anarquismo, assim como pelos objetivos estabelecidosem seu programa. Ademais, como já expusemos, é pelaclara compreensão de que as contradições sociais que

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tanto atacamos não existem por si só, mas se encontramconcretamente expressas nas classes. Assim, a potencia-lidade revolucionária fundamenta-se na classe produtiva,na classe que não necessita explorar nem oprimir paraexistir enquanto tal. Na classe explorada e pisoteada. Porela estar acorrentada, é a única que pode destruir estascorrentes. Não se trata de ser mecanicista e supor que todomembro do proletariado é claramente consciente da ne-cessidade da revolução; no geral, este setor não está isentoda ideologização da burguesia e pode, de fato, possuir va-lores profundamente reacionários e conservadores. Trata-se da existência de um potencial, que se vincula sensi-velmente às condições objetivas de sua existência – queem determinadas circunstâncias impulsiona o despertarda consciência de classe4 – e ao fato de não ter privilégiosa defender em relação à burguesia. Seus poucos privilégiosnunca estão seguros e sempre podem ser perdidos emtempos de crise. Do mesmo modo, é necessário esclarecerque falamos do proletariado como classe, e não do tra-balhador como sujeito.

É óbvio que o sujeito trabalhador assalariado estácontido na classe, mas a classe em si abarca um númeromuito maior de sujeitos, que são todos aqueles que, emmaior ou menor medida, dependem do trabalho assa-lariado (seja o estudante que se locomove com os parcosrecursos de seus pais, a dona de casa, o aposentado querecebe parte do que lhe roubaram em anos de trabalho, odesempregado que consegue algo por favor ou de algumparente, etc.), e que no final das contas também têm seu

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papel no aparato produtivo, seja desvalorizando a mão deobra, como no caso do desempregado, contribuindocom a reprodução da força de trabalho, como no caso dadona de casa, ou sendo a reserva do futuro investimentode mão de obra, como no caso do estudante.

Ainda que a classe para a qual o anarquismo direcionaseu discurso seja o proletariado, há, certamente, indi-víduos provenientes de uma condição social mais abas-tada que abraçam esta doutrina. O genial pai do anar-quismo, o russo Mikhail Bakunin, é claro ao referir-se àconstituição do movimento revolucionário, situando demaneira correta o aporte destes setores. Referindo-se àprogressiva aceitação das idéias socialistas e revolucionáriaspela pequena-burguesia européia, que presenciava a piorana sua condição de vida dia após dia, em razão da concen-tração do capital nas mãos dos monopólios, ele afirmava:

“Mas não devemos nos iludir: a iniciativa donovo desenvolvimento não pertencerá a ela [a pe-quena-burguesia], mas ao povo, ao Ocidente, aosoperários das fábricas e das cidades; entre nós, naRússia, na Polônia, e na maioria dos países eslavos,aos camponeses. A pequena-burguesia tornou-semuito medrosa, muito tímida, muito cética paratomar, ela mesma, uma iniciativa qualquer; ela sedeixará arrastar, mas não arrastará ninguém, poisao mesmo tempo que é pobre de idéias, falta-lhea fé e a paixão. Esta paixão que quebra os obstácu-los e que cria novos mundos encontra-se exclusiva-

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mente no povo. Desta forma, caberá ao povo, semcontestação nenhuma, a iniciativa do novo mo-vimento.”5

 Em outros de seus escritos podemos encontrar a mes-

ma lucidez ao abordar as camadas médias, da pequena-burguesia e de indivíduos de classes mais abastadas nomovimento revolucionário:

“[...] concluo que se um homem nascido ecriado no ambiente burguês deseja tornar-se sin-cera e profundamente amigo e irmão dos traba-lhadores, ele deve renunciar a todas as condiçõesde sua existência passada e superar todos os seushábitos burgueses. Ele deve romper com as suasrelações de sentimento com o mundo burguês,com a sua vaidade e sua ambição. Ele deve virar ascostas a isso e tornar-se seu inimigo; proclamar-lheguerra irreconciliável; e lançar-se sinceramente nomundo e na causa dos trabalhadores.”6

“[...] os socialistas revolucionários, inimigosde toda combinação e toda aliança equívocas,pensam, ao contrário, que eles só poderão alcan-çar esse objetivo [a libertação] pelo desenvolvi-mento e pela organização [...] das massas operáriastanto das cidades como do campo, inclusive to-dos os homens de boa vontade das classes supe-riores que, rompendo com todo o seu passado,desejarão francamente associar-se a eles e aceitarintegralmente seu programa.”7

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Fica claro que estes indivíduos devem adotar o progra-ma revolucionário anarquista e colocar suas posições declasse em favor da materialização político-revolucionáriado movimento operário. Isto, em relação aos elementosprovenientes da burguesia, fica claro por seu próprio anta-gonismo; em relação aos elementos provenientes das clas-ses médias, isso se deve à falta de um projeto próprio declasse. Em virtude disto, a classe média ou se deixa ar-rastar pelo proletariado, ou pela burguesia (como afirmaBakunin em relação à pequena-burguesia). Não tem auto-nomia, precisamente por sua própria condição interme-diária. É um erro, portanto, acreditar que seja possívelganhar as classes médias para nossa causa suavizando odiscurso e a prática. Pelo contrário, é necessário demons-trar clareza e decisão, força com a qual conseguiremos estesetor da população para nosso lado.

Agora, é necessário esclarecer a relação do conteúdoclassista do anarquismo e seu objetivo social, em outraspalavras, do objetivo finalista de seu programa. Qualquerprograma político tem seus fins condicionados à classe aqual se dirige e pela classe que lhe serve de ambiente degestação. Portanto, é evidente que os programas elabo-rados pelos patrões jamais terão como objetivo a melhoriadas condições da classe trabalhadora (se isto ocorrer rela-tivamente – o que quase sempre acontece às custas deoutros grupos de trabalhadores, como nas relações impe-rialistas – deve ser considerado um efeito colateral e, emnenhuma medida, como o objetivo final do programa),já que o objetivo que buscam é aumentar os lucros dosempresários. Um programa proletário deverá apontar,

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necessariamente, para a superação definitiva desta classeda condição de explorada e de oprimida.

Qualquer programa que não tenha como finalidade aabolição das classes (e, com isso, não me refiro às fórmulaspara uma “amenização” momentânea e instável delas, masà supressão revolucionária das condições que as originam)não pode ser considerado um programa revolucionáriodo proletariado. Assim, temos os objetivos finalistas doprograma anarquista: coletivização e autogestão dos meiosde produção e distribuição, com a conseqüente aboliçãoda propriedade privada destes; fim das vantagens relativasdo trabalho intelectual sobre o manual, assim como,mediante a educação e o desenvolvimento dos conselhostécnicos de gestão, promover sua respectiva integração;buscar otimizar, sob controle operário, a produção eorientá-la em função das necessidades da população, paraalcançar a abolição do trabalho assalariado e a satisfaçãoplena dos indivíduos, em função de suas necessidades einteresses; reorganização do aparato político de baixo paracima, tendo por base a comuna livremente federada, quepossibilite a plena participação de todos seus membros,o que equivale à abolição do Estado, como algo buro-crático, vertical e que aliena o poder das massas.

Os objetivos do programa anarquista têm por fimalcançar a libertação da classe proletária de seus grilhões,que impedem sua liberdade e sua igualdade; nesse sen-tido, ele se opõe aos programas da burguesia, cujo fim é aconservação de seus privilégios – seja em suas variantesmais radicais e neoliberais, ou em suas variantes de supos-ta ruptura, da social-democracia, as quais conservam as

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causas da exploração intactas, mas aplicam algumas refor-mas cosméticas aqui e ali, com um discurso de ajuda ao“honesto e sacrificado” pequeno empresário (que podesurgir graças à exploração impiedosa e sem nenhumaregulamentação dos seus sacrificados empregados, muitasvezes em posição mais desfavorável que seus companhei-ros de condição das empresas maiores).

É necessário contestar a falácia semeada pela Demo-cracia Cristã (DC) sobre ela ser um partido com umprojeto das “classes médias”, falácia que é repetida hojepela Concertação. As classes médias e a pequena-bur-guesia, como já vimos, não podem ter um projeto autôno-mo. Devido à instabilidade a que o capitalismo as sub-mete, com a ameaça constante da proletarização, que ascondena a uma espécie de purgatório, em que oscilamfreqüentemente entre o céu e o inferno, entre a burguesiae o proletariado. À pequena-burguesia não resta mais queduas alternativas: ou se soma ao proletariado e luta comele contra o sistema, ou se soma à defesa da propriedadeindividual e seu estímulo, ou seja, passa definitivamentepara o lado da burguesia. No geral, os discursos falaciososque dizem representar a classe média não fazem mais doque defender o grande capital. Mas o fato de não assumi-lo explicitamente lhe vale, na prática, uma contradiçãopermanente em suas bases cada vez mais diminuídas.Recordemos que na crise do sistema nos anos 1970, a DCdivide-se em Esquerda Cristã (setores que optam pelarevolução e pelo socialismo) e o que resta da DC se con-verte em direita.

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É necessário sempre levar em conta a natureza e a raizclassista dos programas para não cair em alianças equí-vocas, já que em toda aliança poli-classista, a corda ar-rebenta sempre do lado mais fraco: as alianças com setoressupostamente “progressistas” da burguesia significou, his-toricamente, postergar os objetivos do proletariado, e setraduziram em uma nova forma de subordinação. É neces-sário compreender que o proletariado não pode con-tinuar somando-se às posições de Frentes Populares coma burguesia nacional; o proletariado deve alcançar a matu-ridade suficiente para conseguir independência progra-mática e não fazer mais que frentes de classe, nas quaisseus interesses de classe sejam hegemônicos.

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIANÃO É CORREIA DE TRANSMISSÃO

Das afirmações que fazemos em relação ao conteúdoclassista da organização revolucionária, pode-se extrair aconclusão, errônea e daninha, de que ela não é mais doque uma simples correia de transmissão para qualquerinquietude ou posição no interior da classe. Isto seria cairem um tipo de populismo, no qual consideramos quenossa organização existe a margem do mundo popular ede que não temos um papel ativo e dinâmico no interiordele. Do mesmo modo, supõe-se que na classe não exis-tem influências burguesas; as conclusões, as inquietudesou os pensamentos que nela podemos encontrar, podemser muitas vezes errôneos em conseqüência da influência

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burguesa ou da inexperiência, por imediatismo ou porqualquer outra razão. Fontenis nos dirá que tal posição écair em uma nova forma de misticismo, supondo que otrabalhador possui todas as virtudes e nenhum defeito.8

Nós não somos populistas. A organização revolucio-nária anarquista não tem por que repetir mecanicamentequalquer idéia presente no seio da classe, pois ela repre-senta, em seu próprio direito, as opiniões de um setordesta classe. E temos o dever de expressar nossa opiniãono interior da classe e de participar ativamente da orga-nização popular para enfrentar o capitalismo e lutar pelonovo mundo de liberdade que tanto almejamos. Porqueestamos convencidos de que a organização do setor liber-tário do proletariado, que não pretende inserir nada deforma artificial na classe, mas pretende desenvolver astendências libertárias que já estão presentes nela, é umanecessidade para o êxito do povo em suas lutas. A classesem a organização revolucionária que agrupe as tendênciaslibertárias em torno do programa anarquista, estará con-denada ao espontaneísmo, às suas conseqüências equi-vocadas e casuais, ou a suportar novas formas de auto-ritarismo. Do mesmo modo, a organização, sem umaretroalimentação com a classe, estará condenada à redu-ção em uma seita e à prática política alienada. Vemos queé necessária a existência desta relação, a qual, consideradaem seus justos termos, só pode enriquecer nossas expe-riências de luta e assegurar uma melhor posição para avitória.

É necessário insistir na posição de Fontenis9, de queo objetivo desta interação com o povo deve ser conseguir

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO50

que estas tendências libertárias que representamos desen-volvam-se até que sejam predominantes, e conseguir quenossa influência adquira o caráter mais amplo possível atéque o povo e sua organização anarquista confundam-seem um só corpo.

 

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIANÃO É COMPOSTA DE ILUMINADOS

Nós não só representamos um setor da classe, comominoria ativa em direito próprio, mas também não pode-mos, sob qualquer circunstância, acreditar que estamosfora do mundo popular e que somos iluminados – o queàs vezes acontece com alguns de nossos companheiros queacreditam estar alheios aos defeitos da classe. Nós, longede todo elitismo, temos os defeitos de nossa classe, mastambém suas virtudes. E devemos trabalhar duramente eem estreita relação com o povo para ir forjando umasuperação moral de nossos defeitos, nesta sã e necessáriainteração.

A organização anarquista deve potencializar, a partirde seus militantes e deles para o resto do povo, o desen-volvimento de uma autêntica moral revolucionária, quepotencialize os aspectos positivos e as virtudes do povo(as práticas solidárias, por exemplo) e combata seus de-feitos (os vícios, por exemplo). Não se trata, portanto, dedeixar esse assunto somente aos militantes em nível indi-vidual; a organização deve ser capaz de produzir a supe-ração de seus militantes em todos os sentidos. Do mesmo

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modo, não se trata simplesmente de aceitar os defeitos domundo popular e deixá-los intocados (o machismo, porexemplo). Trata-se de compreender que o processo desuperação do mundo popular, indissociável de seu cres-cimento na luta, é um processo muito dinâmico e ricoque nos envolve de maneira direta, já que não somosalheios a estes problemas, e devemos estar dispostos acompreender que só por meio do trabalho no meio po-pular – ombro a ombro, e não como extraterrestres quechegam do espaço com a verdade – sem sectarismo e semrechaços preconcebidos, conseguiremos êxitos no com-bate aos defeitos populares.

PARA QUE SERVE AORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA?

Como já afirmei em ocasiões anteriores, a principalfunção da organização revolucionária anarquista é agru-par, em torno de um programa libertário, diversos setoresda classe, setores mais conscientes e com ímpeto revo-lucionário, no intuito de desenvolver as tendências liber-tárias no seio do povo.

Por outro lado, a organização revolucionária é encar-regada de manter viva e atualizada a experiência que oproletariado vai adquirindo ao longo de suas lutas, e deveser capaz de traduzi-la em um plano prático. Nada podeficar na improvisação, já que nossa história foi feita àscustas de inúmeros sacrifícios e dores. A organização revo-lucionária deve ser capaz de extrair os aspectos positivos

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de nossos êxitos, assim como de avaliar as derrotas eextrair delas as lições da história. Somente assim nossasderrotas de ontem serão nossos futuros triunfos. A orga-nização revolucionária deve ser um órgão de preparaçãopara a revolução, em todos os sentidos; é este o caráterfundamental que deve distingui-la do restante dos par-tidos e das organizações funcionais do sistema. Aquelesque, por vício espontaneísta ou por dogmatismo, deixamde lado a necessidade de aprender com as nossas experiên-cias e o trabalho preparatório da organização, deixandoum terreno fértil à improvisação, atuam de forma irres-ponsável, já que, podendo poupar sofrimentos do povo,não se “previnem” de repetir erros passados ou de cair empráticas que, sabe-se facilmente, conduzirão ao fracasso.Nossos inimigos, a burguesia e o Estado, encontram-sesempre preparados para combater qualquer sinal de sub-levação; diante de tais inimigos, devemos estar igualmentepreparados e atentos. Dessa forma, o papel da organizaçãorevolucionária, nesse sentido, assim como em seu com-bate à simples improvisação, é fundamental.

Outra utilidade da organização revolucionária é queela permite manter um trabalho regular em meio ao po-vo. É importante dizer que a organização, ainda que seja,de fato, afetada pelos vaivens da militância e da atividadepopular, é mais regular e pode ter mais continuidade quemuitas organizações sociais que são, no geral, bastantedependentes da conjuntura. Assim, é possível manter la-tentes as condições que facilitam o ressurgimento dasorganizações sociais depois dos períodos de refluxo (co-mo o que hoje vivemos). Do mesmo modo, ela representa

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um referencial para aqueles que começam a questionar oatual estado de coisas.

Além disso, a organização revolucionária permite co-nectar as distintas realidades da luta em uma perspectivaglobal e unificadora. Todos sabemos que as realidades dosmovimentos sindical, estudantil, comunitário, assim co-mo a de distintos grupos de militância que possam surgir,não possuem sempre o mesmo ritmo, e nem funcionamde maneira harmoniosa. Cada um destes movimentos,com seus distintos graus de desenvolvimento, representauma visão particular, sobre um campo limitado, de umarealidade social que lhes é transversal e que os une en-quanto classe. Se nos perdermos em um destes únicossegmentos de classe (entendendo que onde há sujeitos dediferentes classes, como nos setores comunitários e estu-dantis, nos interessam fundamentalmente os setores pro-letários), não teremos uma visão total, unificadora, que éa única que pode nos orientar por uma linha correta.

Generalizar a partir de uma situação particular podenos levar a conclusões errôneas e a uma prática equi-vocada. As práticas equivocadas, muitas vezes, são apro-veitadas pela burguesia para fragmentar a classe e paraexplorar as contradições secundárias em nosso interior,que fragmentam nossa unidade contra o inimigo comum(trabalhadores peruanos contra trabalhadores chilenos,homens contra mulheres etc.). Desta forma, nos sub-metem a um atomismo, que se produz graças à exaltaçãode nossas diferenças que terminam por se sobrepor aosnossos pontos de unidade. A organização revolucionária,precisamente por nos agrupar enquanto classe e não como

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sujeitos (e em torno de claros eixos políticos), permiteque haja esse espaço de convergência dos distintos setoresda classe, das diferentes realidades particulares em funçãode um único projeto que abarque as demandas e as aná-lises de todos. Ela conecta as distintas realidades dentroda classe, agrupando-as em uma corrente coerente, com aqual se torna possível a formulação de um programaestruturado que responda às necessidades da classe deforma global. Além disso, ela serve como uma escola, naqual aprendemos uns com os outros, a partir de nossasdistintas experiências.

Essa questão relaciona-se a outro ponto de grandeimportância para a organização revolucionária: é que elapermite superar o imediatismo das lutas. Faz com quesuperemos o “aqui e agora”. Isto significa que ela en-riquece nossa prática e nossa compreensão dos fenômenosà luz das experiências históricas e das experiências desen-volvidas em outros locais, que estão além dos lugares emque temos presença. É essencial afirmar a importânciadesta questão para o desenvolvimento de uma linha po-lítica correta.

A organização revolucionária é, por excelência (nãosendo qualquer outro espaço da mesma maneira), o pon-to de convergência entre a teoria e a prática. Por sua uni-dade e coesão teórica, e também por levar adiante tarefasde caráter reivindicativo, de organização, de ruptura e deluta, é ela que permite, melhor do que qualquer outrainstância, a aplicação de nossos postulados na realidade.

Desde modo, conseguimos, operacionalmente, quenosso anarquismo, que nossa teoria revolucionária, sirva

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de fato, com resultados concretos e palpáveis, para a trans-formação social, para a transformação de nossa realidadede opressão.

Trabalhamos para que ela seja, realmente, uma fer-ramenta de libertação. Por sua vez, é o contraste com arealidade que permite que nossa doutrina revolucionáriase supere, que melhore seus postulados, que refine suasimprecisões, que supere seus erros. É nesta relação mútuaentre teoria e prática que superamos a contradição entrese “afirmar” e “ser” anarquista.

Além disso, a compreensão da organização anarquistacomo uma escola vai além do simples contato com pes-soas provenientes das diversas experiências populares, oque, certamente, é de fundamental importância e muitoenriquecedor para o conjunto da organização e seu pro-grama. Ela também passa pela formação doutrinária emoral dos militantes. A organização é o espaço em que sedeve exaltar e desenvolver, em solidariedade e em ver-dadeiras relações de fraternidade e companheirismo, asfaculdades intelectuais e morais dos companheiros. É umespaço para potencializar as virtudes dos militantes e parasuperar seus vícios e defeitos.

A organização é um espaço em que o processo deaprendizado nunca pode ser dado como finalizado; nela,todos têm algo a contribuir, algo a ensinar, e por sua vez,todos têm algo a aprender.

Escrito em outubro de 2002,publicado em maio de 2003

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Notas:

1. A. Meltzer, “Anarchism: arguments for and against”.

2. Compreendendo “política” em um sentido mais am-plo, como a participação nas questões sociais de formaorganizada.

3. P. Kropotkin, “La Ciencia Moderna y el Anarquismo”.

4. Ou seja, a clara consciência de sua condição socialobjetiva, de seus interesses (portanto, membro desta con-dição social, desta classe) e os passos necessários parasuperar tal situação.

5. M. Bakunin, “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”.

6. Idem, “El Imperio Knuto-Germánico y la RevoluciónSocial (Primera Entrega, 1871).”

7. Idem, “A Comuna de Paris e a Noção de Estado”.

8. George Fontenis, “Manifiesto Comunista Libertario”.

9. Ibidem.

* Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves.* Revisão/edição: Felipe Corrêa.

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AMÉRICA LATINA

PROBLEMAS E POSSIBILIDADESPARA O ANARQUISMO

Antes de tudo, em nome do Workers Solidarity Mo-vement (WSM) da Irlanda, gostaria de agradecer o conviteque nos foi feito para esta conferência e de dizer que valo-rizamos enormemente os esforços realizados pela comis-são organizadora. Certamente, espaços de encontro ereflexão como este, para nós, são extremamente neces-sários para compartilhar experiências e pensar que tipo demovimento necessitamos para enfrentar os desafios que aluta nos impõe.

O significado de um encontro como este adquire lu-zes novas ao ser realizado em um lugar como o México –país que no contexto latino-americano teve um vibrantemovimento libertário por mais de um século e que hojevê renovados ares libertários em um movimento popularque desafia o sistema, demonstrando grande heroísmopor parte das massas anônimas. Houve um trabalho deconstrução do mundo popular que não deixa de des-

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pertar simpatias em todo o mundo, e por isso, um encon-tro desta natureza adquire uma urgência e uma impor-tância muito maior.

Internacionalmente, atravessamos um momento dereajustes e crises dentro do sistema capitalista que se abriufrancamente há aproximadamente uma década. Esta crisee este esgotamento expressam-se no movimento popularque ressurgiu na América Latina, que se vê favorecido poruma série de condições circunstanciais, como a queda dosmal-chamados “socialismos reais” e, conseqüentemente,o desgaste da esquerda tradicional; o esgotamento daspossibilidades de abertura neoliberal impulsionada desdeo fim dos anos 70 pelas classes dominantes como res-posta à crise iniciada nos anos 60 e, em grande medida, adesintegração dos sujeitos tradicionais de luta, o quesupôs a recomposição de sua forma original.

Contudo, ainda que as circunstâncias mencionadastenham tido um impacto ao facilitar uma revitalização domovimento libertário, é responsabilidade dos própriosanarquistas transformar este potencial em uma possi-bilidade real de transformação. E é precisamente essa agrande falha do movimento ácrata na atualidade, que nãosoube aproveitar completamente a potencialidade do no-vo despertar de lutas nas terras americanas. Desde a quedado muro de Berlim, o movimento contentou-se com umaatitude muito pouco autocrítica, em que não nos dei-xamos de assinalar o “fracasso do modelo soviético” semser capazes de reconhecer que o século XX também signi-ficou o fracasso do anarquismo em todas as suas tentativasrevolucionárias. Assumir esta situação não significa igno-

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rar a potencialidade que tem o movimento – essa é a razãopela qual nos encontramos hoje reunidos – mas utilizar acrítica como uma ferramenta de superação revolucionária.Se o movimento não é capaz de superar seus próprioserros e se seguimos obstinados para trabalhar da mesmamaneira de sempre, como se espera poder superar de ma-neira revolucionária o capitalismo?

O estudo, acompanhado da prática, assume entãouma dimensão crítica nas tarefas de libertação. Jamaisdeixarei de insistir neste ponto, pois, muito freqüen-temente, encontramos uma falsa dicotomia entre os “prá-ticos” e os “teóricos”. Quando a verdade é bem outra: nãohá prática revolucionária sem teoria revolucionária e nãohá teoria revolucionária sem prática revolucionária. Per-mitam-me indicar alguns dos problemas fundamentaisque o nosso movimento enfrenta na luta pela libertaçãona nossa América:

1. O ressurgir do movimento popular com característicaslibertárias gerou, de uma maneira ou outra, uma situaçãode espontaneísmo no movimento libertário. Uma situ-ação semelhante de otimismo foi vivida diante da Revo-lução Russa de 1905; confiamos no puro instinto domovimento popular e acreditamos que o povo é “natu-ralmente” libertário. Ainda que as respostas de caráterlibertário por parte do povo diante de situações de crisedo sistema ou diante das necessidades da luta sejam umarealidade – mesmo com a ausência de um movimentoanarquista propriamente dito – elas são respostas quase“naturais”. Também não é menos certo que no seio do

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povo também coexistam tendências autoritárias nadadesprezíveis. E ao desprezar sua importância, permitimosa reconstituição do setor autoritário no campo popular,ou a legitimação do Estado e do capitalismo. Um casomuito claro (existem outros em toda a América Latinadurante a década) é a situação da Argentina, onde o “Quese vayan todos” [Que saiam todos] passou rapidamente a“Se quedaron todos” [Ficaram todos], e tanto o capita-lismo como o abatido Estado puderam recompor-se dacrise de maneira relativamente fácil, enquanto a esquerdalibertária não foi capaz de criar uma alternativa estratégica.O nível de consenso social por parte do próprio povo queformou as assembléias espontaneamente em torno dasfiguras burguesas da recomposição, como Kirchner, éassustador – incluindo direitistas como Macri, que ga-nharam muitíssimo espaço. Não podemos confiar muitonos impulsos libertários espontâneos, considerando-os“suficientes”: é necessário um argumento político claro,programático, para além da conjuntura. Devemos com-preender que o papel político dos anarquistas é insubs-tituível e se nós não estivermos presentes para impulsionarnossas tarefas, ninguém fará isso por nós.

2. Do anterior, do caráter insubstituível do movimentoanarquista, conduz à necessidade da organização políticarevolucionária dos libertários, na qual é possível discutiruma análise coletiva da problemática da construção dopoder popular. Tal organização necessita de premissasclaras para cumprir seu papel – unidade teórica, unidadetática, disciplina, ação coletiva e democracia interna. Tais

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são as premissas que devem sustentar a organização, se sedeseja que ela tenha a consistência mínima para lhe darum sentido. O papel da organização anarquista está insu-ficientemente desenvolvido na grande maioria dos paíseslatino-americanos, ainda que tenham havido esforçossérios de construção, principalmente na América do Sul.Não basta dizer que os anarquistas não são contra a orga-nização: isto deve ser demonstrado na prática, e é na prá-tica que está o nosso mais sério problema. Os meroscoletivos ou grupos conjunturais não bastam: eles nãoservem para acumular experiência para além da expe-riência que pessoalmente podem acumular aqueles quefizeram parte deles, nem têm capacidade de organizar oucanalizar forças a nível nacional, nível em que se dá amaioria das grandes lutas contra o poder burguês. É neces-sário superar personalismos, localismos e uma visão pro-vinciana do anarquismo para assumir as amplas tarefas deregeneração que são necessárias nestes momentos.

3. Assim como há uma organização revolucionária, devehaver espaços de convergência com outros setores, poisestamos convencidos que os anarquistas não farão a revo-lução sozinhos. Há organizações sociais e populares nasquais também temos de realizar nosso trabalho e nasquais necessitaremos, com critério, convergir com setoresda outra esquerda, assim como com pessoas distantes doanarquismo ou inclusive da política. A pergunta impor-tante aqui é: como conquistar o máximo de influência?Pois ainda que muita gente nestas organizações talvez nun-ca se converta ao anarquismo, queremos que os métodos,

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os princípios e as políticas libertárias influenciem o desen-volvimento destes movimentos. Aí entra em jogo a ques-tão da organização política revolucionária como o instru-mento para chegar nestas instâncias com políticas coe-rentes e coletivamente discutidas. Às vezes, entre a orga-nização política e a organização social, haverá espaçosintermediários de organização, os chamados espaços polí-tico-sociais, que podem ser correntes ou frentes. Porexemplo: pode haver uma, duas ou três organizações polí-ticas anarquistas, que diferem em certas políticas geraissobre a sociedade. Mas podem ter uma linha sindicalcoletiva: então, formarão uma frente sindical. E a linhacoletiva dessa frente será aplicada em diversas federaçõessindicais. Este modelo de organização e de inserção socialnos proporciona ótimos níveis de unidade na ação. Aunidade, que sempre deve ser produzida pela base e naluta, deve ser buscada sempre que for possível e provei-tosa. Com uma política clara e discutida de organizaçãopara os três níveis diferentes em que ela atua, podemosvoltar a desenvolver um anarquismo do povo para o po-vo, e romper com as lógicas do grupo alienado que fazpolítica para si mesmo de maneira completamente ego-cêntrica e sem reparar no que ocorre ao redor.

4. Muitas vezes o anarquismo foi reduzido a uma espéciede “receita” de organização. Pensa-se freqüentemente quea única contribuição que os anarquistas devem ter nomovimento popular é em termos de organização: assem-bléias, delegados revogáveis, democracia direta, autono-mia do Estado e de partidos, etc. Mas o anarquismo não

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é somente uma proposta orgânica, de democratização apartir da base, mas é também conteúdo. O anarquismotem uma grande contribuição em termos de um programarevolucionário, de propostas concretas sobre o quê bus-camos e não somente sobre como iremos buscar. Esteprograma deve ser debatido, discutido e impulsionadopor todos os anarquistas organizados em seus distintosespaços de base. Não basta organizar assembléias popu-lares se elas carecem de um projeto social que vá maisalém. Precisamos ser mais do que tática e nos converterem estratégia. O anarquismo requer um programa, umprojeto de sociedade, não somente para o glorioso dia darevolução, mas também para o aqui e agora. Precisamosdesenvolver uma alternativa que se transforme em umpólo de atração para aqueles que queiram ver uma trans-formação em sua vida, não para daqui a um século, maspara agora. Devemos entender a transformação que po-demos realizar em curto, médio e longo prazo como umaunidade programática. Falta dizer que este processo dediscussão e elaboração requer, necessariamente, uma orga-nização sólida, permanente no tempo e ativa na luta.

5. Tal programa revolucionário, tal projeto social, nãopode ser uma cópia de outros programas revolucionários.Este deve responder às necessidades locais, ao conhe-cimento dos problemas nacionais e regionais, às tradiçõesde luta locais. Nosso anarquismo deve ser isso: o encontrooriginal de uma tradição de luta internacional, universal,válida onde quer que esteja, com um espaço local e con-creto onde ele seja levado à prática. Somente assim pode-

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mos desenvolver um internacionalismo real, autêntico,de todas as raças, que se nutra da experiência de luta emtodas as partes e que por isso mesmo, seja uma ferramentade transformação mais eficaz. Podemos nos inspirar eextrair linhas e teses centrais da teoria clássica, das expe-riências estrangeiras ou históricas; mas elas não subs-tituem o imperativo da reflexão própria.

6. É necessário, além disso, conhecer as profundas di-ficuldades que enfrentará um processo revolucionário dequalquer tipo na América Latina. Muitas vezes, as maioresdificuldades da revolução acontecem quando a burguesiafoi derrotada. O anarquismo, então, deve assumir todasas complexidades de uma alternativa construtiva. Terá queestudar as dificuldades enfrentadas por outros processosrevolucionários no passado, seja na Nicarágua, na Bolívia,nos movimentos revolucionários desde o Rio Bravo até aTerra do Fogo. Não bastam as teses de Kropotkin de re-correr à abundância, já que, para ele, o comunismo seriaaplicável imediatamente após a revolução. Como vamosenfrentar o isolamento inicial? O embargo? Como vamosreconstruir uma economia em ruínas? Supondo que nãoherdamos um país em ruínas, como faremos funcionar asociedade de maneira coletiva? Como nos relacionaremoscom o mundo exterior? Nada disto pode ser deixado parao improviso, pois quando improvisamos, é quando opeso do costume se faz sentir. Sem um programa cons-trutivo alternativo, as pessoas tenderão a recorrer, muitasvezes, à única maneira (capitalista) que conhece de fazer ascoisas.

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O anarquismo possui ferramentas de análise e pro-postas que devemos discutir e debater de antemão, a fimde evitar as improvisações e todos os riscos que isto impli-ca. Devemos estar conscientes de que, como a realidadenem sempre é previsível, certos níveis de improvisação sãonecessários. Isto requer, portanto, um programa comflexibilidade. Pois ainda que da teoria geral possamosextrair algumas respostas certas, estou convencido de quea revolução social na Irlanda será diferente da do Chile, eesta será diferente da do Japão, ainda que as teses fun-damentais e o espírito sejam idênticos. Portanto devemosentender a teoria como um guia para a resolução práticadas realidades específicas a enfrentar. Poucas vezes colo-camos suficiente ênfase nestes problemas construtivos ecomo dissemos é esta fase, precisamente, que apresenta omaior desafio para o movimento revolucionário.

Esses são alguns dos problemas. Sem dúvida, algunscompanheiros identificarão outros que não apontei ouencontrarão outros novos no caminho da luta. A trocade informação e a prática da organização são os meca-nismos para começar a elucidar muitas destas questões.Cabe indicar que não há respostas fáceis para nenhumadestas questões, mas é necessário começarmos a pensarseriamente em todas estas questões visando a transfor-mação.

A questão da organização assume, portanto, uma pri-oridade fundamental, não por meras considerações teó-ricas ou por uma obsessão fetichista com ela, mas porqueé este o espaço em que se compartilham diretamente e searmazenam estas experiências. E é essa experiência acumu-

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lada que garante, da melhor maneira, a superação práticadas concepções e práticas errôneas. É certo que o fato deexistir a organização política revolucionária não garanteque nos transformemos em uma alternativa; mas tambémé certo que sem a organização, a alternativa jamais terá apossibilidade de concretizar-se. Depende de nós o papelque o pensamento e as práticas libertárias terão nos even-tos de transformação que começam a sacudir a AméricaLatina.

Agradeço a atenção dada pelos camaradas e saúdonovamente a Comissão Organizadora desejando-lhes êxi-to nos objetivos que foram colocados para este encontro.

* Este documento foi elaborado por ocasião do Encon-tro Anarquista da Cidade do México e foi apresentadoem 7 de julho de 2007. Ele tenta sintetizar alguns dosproblemas que enfrenta o desenvolvimento de uma alter-nativa libertária para as lutas populares na América La-tina, sobretudo aspectos em que estamos debilitados eque devem ser aprofundados.

* Tradução: Eliane Neves.* Revisão: Felipe Corrêa.

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PROBLEMAS COLOCADOSPELA LUTA DE CLASSES

CONCRETA E PELAORGANIZAÇÃO POPULAR

REFLEXÕES A PARTIR DE UMAPERSPECTIVA ANARCO-COMUNISTA

Nos momentos em que os anarquistas começam adiscutir as perspectivas da atividade anarquista de médioprazo, evidencia-se melhor a conexão que existe entretática e estratégia, ou seja, entre aquilo que consideramosnosso objetivo, a sociedade libertária, e os meios pelosquais buscamos alcançá-la. Levando em conta que o anar-quismo tradicional tendeu a rechaçar de maneira contun-dente a distinção artificial entre “fins” e “meios”, é sur-preendente a enorme desvinculação entre uns e outrosque freqüentemente se apresenta na prática anarquista.Isso se deve, em grande medida, à falta de planejamentoestratégico, que deveria criar a ponte para unir aquele“distante futuro” e as questões que surgem no dia-a-dia.

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Na realidade, é verdade que, muitas vezes, não hágrandes diferenças em relação ao que devemos fazer no dia-a-dia e aquilo que queremos para esse “futuro distante”(ainda que se encontre de tudo na “selva anarquista”), anão ser, claramente, as perspectivas de médio prazo, emque surge a maior parte dos desacordos. Isso acontece,porque é nesse ponto que se começa a tratar do problemade qual é a via revolucionária que temos de seguir paraconseguir a derrubada da velha sociedade e o nascimentoda nova. É somente quando tomamos posição em relaçãoa certas perspectivas de médio prazo que as lutas tornam-se uma realidade “revolucionária”. É assim que essas lutascomeçam a contribuir com um objetivo claro, que pode-mos tomar uma iniciativa política e que aquele distantefuturo deixa de ser um sonho utópico para converter-seem um programa revolucionário.

Sabemos que com as nossas lutas particulares pre-cisamos conseguir mais do que um espaço nos noticiáriosou alguns novos militantes. Sabemos, além disso, queprecisamos criar certos mecanismos para verificar que,efetivamente, estamos indo para algum lugar. Isso supõea criação de vínculos orgânicos de caráter permanenteque, de uma maneira ou de outra, sobrevivam aos ciclospassageiros de revoltas, dando um sentido de continui-dade a essas revoltas. Ao mesmo tempo, precisamos teruma série de objetivos que nos direcionem, já que elesservirão de guia para nossas atividades e como mecanismode avaliação para mensurar nossa efetividade.

Em relação aos vínculos orgânicos entre as distintaslutas e os diferentes “capítulos” no desenvolvimento his-

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tórico da luta de classes, devemos, primeiro, analisar anatureza dos atores que lutam para saber como tratar, apartir de uma perspectiva libertária, o problema das dife-rentes organizações que existem na sociedade.

OS SUJEITOS POPULARES

Antes de qualquer coisa – e claramente não há a neces-sidade de argumentar isso em detalhes para os anarquistasde tradição classista e revolucionária – a base da lutarevolucionária é a contradição entre duas classes funda-mentais: a classe trabalhadora e a burguesia. Como colo-cou o camarada Mac Giollamóir, na edição nº 86 de Wor-kers Solidarity:

“a classe trabalhadora é um dos pólos de umarelação social que define o capitalismo. Essa rela-ção é a relação do empregador com o empregado.É a relação entre o capitalista, que compra a habi-lidade do trabalhador, que vive livremente, para otrabalho, e o trabalhador que deve entregar-lheessa habilidade, a fim de, simplesmente, poderviver.”

A classe trabalhadora é parte de uma relação dinâmica,dialética, e não um conjunto de personagens imutáveis.Suas principais características são: sua dependência dosistema salarial; sua condição subordinada na organizaçãohierárquica do trabalho (na qual todos terminamos sem-

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pre tendo alguém sobre nós); sua condição de geradorade mais-valia, que é apropriada pelos capitalistas; e porconseguinte, o fato de ser explorada.

Essa é a realidade que está por trás da sociedade (capi-talista) moderna, e que lhe dá forma. É uma realidade,mas refere-se a uma relação – é a descrição de um processo– com um modelo teórico útil para compreender umarealidade que é muito mais complexa do que a visãoesquemática desses dois pólos antagônicos. Se fosse as-sim, a revolução não nos traria qualquer problema. Sefosse somente uma questão de número, a classe dominan-te já teria sido expulsa do poder há muito tempo. Entreestes dois pólos existe uma ampla gama de intermediáriose, além disso, o conflito de classes assume expressõesconcretas em sujeitos concretos. Quem são estes sujeitos?Essa é uma pergunta da maior importância para qualquerrevolucionário, porque é a definição desses atores em lutaque determinará, em grande medida, as táticas escolhidas.

Podemos classificar estes sujeitos da luta segundovários indicadores:

1. Seus problemas e interesses imediatos;2. Sua tradição de luta e organização, que surge desseconjunto de problemas e interesses;3. Um lugar ou atividade comum na sociedade.

Ainda que esses sujeitos estejam passivos, seu po-tencial para converter-se em um gatilho da luta de classespode existir, ainda que esteja hibernando.

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Além do mais, é necessário mencionar que esses su-jeitos populares não necessariamente representam umaclasse em si mesmos; tomemos, por exemplo, os sujeitostradicionais: estudantes, trabalhadores urbanos, mora-dores de comunidades e camponeses. Somente os tra-balhadores podem ser considerados como uma classe“pura”, enquanto em todos os outros sujeitos, há mem-bros de diferentes classes e de todo tipo de escalas (peque-na-burguesia, burguesia, a nebulosa classe média, elemen-tos marginais e classe trabalhadora). A natureza classistados sujeitos populares, em geral, demanda uma tendênciaclassista, de raízes proletárias, que se expresse como forçapolítica, com capacidade de ganhar outros segmentos dasociedade para a causa revolucionária e para seu programa.

Estes sujeitos, por sua vez, são categorias que nãoexistem isoladas umas das outras. Os filhos do operáriosão estudantes, e todos moram em uma determinadacomunidade. Mas sua identificação fundamental com umdeterminado sujeito popular intensifica-se na presença daluta e articula-se em função de uma tradição organizativaespecífica. Para citar um exemplo, no Chile, em 1983,surgiram manifestações massivas contra a ditadura dePinochet; e, ainda que os chamados para a luta tenhamvindo originalmente dos sindicatos mineiros, a debilidaderelativa dos sindicatos em um contexto de semi-clandes-tinidade1 fez com que o principal foco de protesto fosseas comunidades populares – onde viviam os trabalha-dores, mas onde também viviam outros setores sociais,como os pequenos lojistas, que freqüentemente se uni-ram aos protestos junto com os trabalhadores, com as

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contradições de classe que isso às vezes implicava.2 Mas aidentidade dessas lutas constituiu-se em torno de certasorganizações e de lutas localizadas em um espaço concreto– as comunidades, nesse caso. Quem lutava, fazia isso pormeio de movimento comunitário. Mas muitos deles eramas mesmas pessoas que, dez anos antes, haviam articuladosua identidade em torno dos Cordões Industriais, duran-te o período da Unidade Popular (1970-1973). Isto refle-te a natureza dinâmica dos sujeitos populares, assim comode sua identidade. A criação de tal identidade, ancoradaem problemáticas, experiências, assim como em deman-das comuns, é o solo onde a luta germina. Ela não ger-mina em declarações teóricas vagas e abstratas sobre oconflito social, ou sobre demandas utópicas de trans-formação social.

Uma vez definidos os sujeitos populares em dadosmomentos e espaços, podemos começar a pensar em de-mandas concretas de luta de médio prazo, no marco deum programa revolucionário de longa duração. É essepasso que nos permite recuperar a iniciativa política. Mastambém podemos começar a pensar as formas de orga-nizar esses setores de acordo com nossas próprias con-vicções que sustentam movimentos guiados pela base,antiautoritários e fundamentados na democracia direta.Ao menos, podemos ver como influenciar essas própriasorganizações de maneira saudável e libertária. Mas nesteponto devemos ter muito cuidado para não confundir osdiferentes espaços e tipos de organizações, se o que que-remos gerar é unidade e não discórdia. O melhor exemplode como não fazer as coisas, é o estilo tipicamente trots-

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kista que confunde os domínios do partido com os domovimento popular. Esta miopia política leva à retraçãoe ao divisionismo no seio do movimento popular – o queé uma constante em todas as iniciativas que eles conse-guem dominar – que se reduz e se divide até que sejaimpossível distinguir essa “frente de massas” da respectivafração política que a tutela. O sectarismo é a única conse-qüência lógica que decorre dessa prática, e isso debilita asforças populares. Os anarquistas não têm estado imunesa tendências semelhantes, particularmente no anarco-sin-dicalismo (ao menos, em suas versões contemporâneasmais sectárias). Ele vem, tradicionalmente, confundindoo que é uma “organização política” (ou partido) com oque é um “sindicato”. O resultado é que poucas vezesatuam como uma força propriamente política, sem nemmesmo atuar como uma força propriamente sindical. Istotem feito com que, salvo algumas exceções, essa correntetenha tido um breve auge, mas que, rapidamente, tenhadeclinado em quase todas as partes.

Devemos então explicar a que nos referimos quandofalamos de organizar o povo para a luta, já que existe umainfinidade de tipos de organização, e devemos, como liber-tários, ter políticas específicas para cada um dos diferentesâmbitos de organização do povo.

TRÊS ÂMBITOS DE ORGANIZAÇÃO

Levando em consideração aquilo que já foi mencio-nado (isto é, a natureza da classe trabalhadora e dos

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sujeitos populares como expressão concreta da luta declasses), podemos então entrar no assunto dos três âm-bitos em que se organiza o povo e a maneira de construirum movimento de natureza libertária e revolucionária.Deve ser dito que não existem fórmulas mágicas paranenhum desses problemas, e que a descrição que faremosdos três âmbitos da organização do povo é, talvez, tãogenérica e teórica como a definição abstrata e descon-textualizada do proletariado. Existe um modelo teóricogeral, mas ele se expressa de maneiras concretas e espe-cíficas também.

Os âmbitos de organização estão determinados pelocruzamento de um programa de ação e da natureza dossujeitos populares, com aqueles que realizamos a luta.Antes de prosseguir, permitam-nos, primeiramente, escla-recer um dilema fundamental de qualquer movimentorevolucionário: o reconhecimento de que só a unidade daclasse trabalhadora pode derrotar a classe capitalista, masque, ao mesmo tempo, a classe trabalhadora não é umbloco homogêneo – ela apresenta diferentes níveis deconsciência de classe e política, diferentes opiniões, idéiase tendências, algumas mais inclinadas para o pólo liber-tário, e outras mais inclinadas para o pólo autoritário.Portanto, a unidade é necessária, mas uma unidade com-pleta é impossível. Para isso, precisamos determinar osníveis de unidade que devemos alcançar nos diferentesâmbitos de organização.3 Não é possível dividir esta ques-tão sobre a natureza de cada âmbito de organização esobre sua definição em termos suficientemente precisos.Os diferentes âmbitos são:

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1. O âmbito das organizações sociais, populares e demassas – o âmbito social

Este âmbito compõe-se daquelas organizações queagrupam um único sujeito popular de luta, independentede suas posições políticas (sindicatos, conselhos estu-dantis, organizações comunitárias, etc.). Nelas, a unidadedeve ser tão ampla quanto possível, e devemos lutar con-tra todo sectarismo. A maneira de conseguir influenciarnelas é por meio da agitação em torno de demandas con-cretas, por meio de nossas práticas e da denúncia cons-tante, em seu seio, das contradições sociais. É nesse tipode organização que a unidade do mais amplo conjuntodo povo é possível, e é esse o objetivo que essas orga-nizações devem buscar. E ainda que não tenham umanatureza “política” (entendido não no sentido mais am-plo do termo “política”, mas no sentido de que não seconstituem a partir de um marco doutrinário e um dadoprograma social, reunindo gente de espectros diversos),essas organizações podem politizar-se no curso da luta eno natural curso da luta de classes. Sem importar o quãopolitizadas estão essas organizações, elas não podem ja-mais confundir-se com um grupo político ou com umatendência. E devemos deixar sempre claro que nossoobjetivo é que nossas idéias influenciem amplamente,mas que devemos evitar impor etiquetas ideológicas sobreessas organizações, e evitar os expurgos ideológicos – par-ticularmente dos setores minoritários.

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2. O âmbito das tendências, redes, correntes ou frentes– o âmbito político-social

Este âmbito representa um nível intermediário emque se aglutinam elementos de um sujeito popular espe-cífico, mas que têm em comum certas linhas políticas.Este último ponto marca a diferença mais sensível emrelação ao âmbito social. Esta inclinação política não po-de ser, em todo caso, tão definida como àquela requeridapara o pertencimento a um partido ou grupo político.Certos militantes ou ativistas que compartilham umamesma visão e que compartilham políticas em relação aoponto específico que lhes une (seja a atividade sindical,estudantil ou comunitária), organizam-se para formaruma certa tendência no seio de um movimento ou orga-nização maior. Um bom exemplo poderia ser a formaçãode uma tendência em uma organização sindical: seus inte-grantes podem estar em desacordo sobre várias questõespolíticas, podem ter diferentes perspectivas doutrinárias,mas estão de acordo, por exemplo, em desenvolver umsindicalismo classista e combativo, que se oponha aopacto social. Não é necessário estar de acordo em tudo;seria um erro confundir esta confluência com um “casa-mento”, e isso colocaria em risco a realização das tarefasmais urgentes. Estas organizações seriam mais específicas,falando em termos políticos, do que o sindicato em ques-tão; mas não se corresponderiam com uma força políticahomogênea. Outro bom exemplo são as experiências deconstrução de “frentes libertárias” na América do Sul –que agrupam estudantes, membros de comunidades e

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trabalhadores que compartilham uma posição libertáriada política, naquilo que diz respeito às questões orga-nizativas e aos métodos de luta, e que compartilham umconjunto específico de propostas referentes a seus pro-blemas específicos no lugar de trabalho, de residência oude estudo. Mas aqueles que compõem essas frentes po-dem estar em desacordo sobre muitas outras questões quenão afetam a luta específica nem o trabalho cotidiano daorganização da qual são membros e que, por isso, sãoirrelevantes para o nível de unidade requerido nestes es-paços.

3. O âmbito da organização ou partido revolucionário –o âmbito político-revolucionário

Este âmbito é o mais específico de todos, e compõe-se de pessoas provenientes de diversos setores populares(estudantes, trabalhadores, etc.), que compartilham umaorientação política e um programa (que em nosso caso élibertário e revolucionário). Por serem provenientes dediversos espaços sociais, é evidente que esse âmbito po-derá referir-se, primordialmente, à transformação de todaa sociedade. A unidade, neste âmbito, é muito mais res-trita, envolvendo níveis superiores de unidade tática eideológica. A unidade não teria maior sentido diante daincapacidade de ter acordo em relação a um programacoletivo de intervenção na sociedade, pela própria hete-rogeneidade de seus componentes, o que impossibilitariao trabalho em reivindicações mais cotidianas. Estes com-ponentes heterogêneos somente se unem por questões

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transversais. Aqui se refletem mais claramente as posiçõessobre a luta de classes e sobre as diversas opções classistasassumidas pelas diferentes forças políticas, pois é o espaçotransversal em que se evidencia a natureza policlassistados sujeitos em função de um dado projeto.

É necessário esclarecer que, da forma como conce-bemos este modelo, todos os âmbitos são autônomos emrelação aos outros, na medida em que as decisões devemser tomadas pelas bases de cada um desses âmbitos. Emnossa concepção libertária, não basta saber que organi-zação faz o que, ou qual é sua natureza e seu alcance, mastambém é necessário ressaltar que, a fim de que cada tipode organização realize plenamente seu potencial e o poten-cial de seus membros, a democracia direta e a participaçãode base são requisitos fundamentais. Rechaçamos radi-calmente o velho modelo leninista segundo o qual as or-ganizações sociais são o “quintal” das organizações políti-cas, assim como também rechaçamos o extremo oposto,que converte as organizações políticas em meras correiasde transmissão das organizações populares.

Dito isto, é legítima a interação entre os diferentesâmbitos organizativos: assim como é legítimo que a orga-nização política revolucionária agite seu programa e seuspostulados no seio de todas as organizações populares emque tenha membros, com o objetivo de popularizar suasidéias e tratar de ganhar respaldo e influenciar de maneirasaudável as massas. É também perfeitamente legítimo quea organização política revolucionária mostre-se permeávelaos aportes realizados pelo movimento popular e por suasexpressões sociais e político-sociais.

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Esta é uma breve passagem pelo problema dos su-jeitos populares em luta, das classes e das organizações. Oartigo não pretende ser mais do que um esqueleto paracomeçar a discussão sobre nossas perspectivas de médioprazo, e sobre como solucionar os problemas que tere-mos adiante quando tratamos de definir uma rota revo-lucionária para nossa respectiva região no século XXI.

15 de Julho de 2005

Notas:

1. Os sindicatos eram permitidos, mas sua atividade esta-va fortemente restringida.

2. Recordo das assembléias comunitárias argentinas, emque eram particularmente evidentes as tensões e con-tradições expressas nas diversas aproximações políticasdos diversos participantes. Enquanto os setores de tra-balhadores mostravam uma disposição mais radical, ospequenos lojistas locais, técnicos ou profissionais, mos-travam, como tendência geral, muito mais cautela.

3. É mérito de Bakunin e da “Plataforma Organizativapara uma União Geral de Anarquistas”, oferecer algunselementos bastante interessantes sobre estas questões.

* Tradução: Federação Anarquista Gaúcha.* Revisão/edição: Felipe Corrêa.

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CONSIDERAÇÕES SOBREO PROGRAMA ANARQUISTA

Durante os últimos setenta anos, o anarquismo viu-se reduzido em quase todo o mundo a uma expressãomínima, salvo notáveis exceções em que ainda conservouum certo peso, até o início da década de 1970 (o Uruguaié o caso mais notável na América do Sul), em que houve,com altos e baixos, uma certa continuidade, como nocaso espanhol. Muitos fatores contribuíram com seu de-clínio e não vem ao caso, neste artigo, realizar uma ava-liação dos fatores que contribuíram para isso. O certo éque, durante esta época, a maioria das expressões liber-tárias, muito minoritárias, viu-se limitada em seu raio deação para a propaganda. De tal maneira, as grandes orga-nizações de caráter libertário foram reduzindo-se até ter-minarem convertidas em grupos de afinidade ou coletivos,que mantinham, de uma ou outra maneira, a chama ace-sa, por meio de uma publicação ou alguma outra formade divulgação.

Rodrigo
Note
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Foi nas últimas duas décadas que houve um novodespertar do interesse no anarquismo e que, novamente,os ensinamentos de Bakunin e as lições deixadas pelosantigos sindicalistas revolucionários encontraram um no-vo eco no movimento popular. O anarquismo, mais umavez, encontrou-se com as massas. Os primeiros indíciosdeste renascer libertário deram-se nas jornadas do Maiode 68 na França, e durante toda a década de 1990. De-pois da queda do Muro de Berlim e do colapso dos cha-mados “socialismos reais”, o campo foi novamente abertopara o movimento anarquista, que, por um lado, opu-nha-se enfaticamente à (velha) “Nova Ordem”, e por ou-tro, proporcionava, principalmente à juventude, novasformas de organização, de luta e de canalização de suarebeldia, formas estas que se distanciavam radicalmentedas fórmulas do marxismo-leninismo clássico. Os novosmovimentos populares desta década (particularmente des-de a emergência do movimento zapatista em 1994) reto-mavam, em seu discurso e em suas práticas, muitos ele-mentos que marcavam um claro rompimento com a es-querda que se desmoronava com o muro em Berlim,enquanto, algumas vezes, retomavam certos elementos datradição libertária. A prática do próprio povo reivindicavao velho Bakunin.

No ritmo destas transformações sociais e destas novasresistências, agrupamentos anarquistas floresceram portodo mundo, às vezes surgindo de alguma publicação,outras de um movimento mais amplo (como o zapatis-mo) e às vezes com a intenção definida de reconstruir o

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movimento anarquista. Contudo, os problemas que to-dos estes grupos enfrentaram foram notáveis: a falta dereferências organizacionais foi um dos mais graves, já queas únicas referências conhecidas eram de caráter históricoe só podiam ser conhecidas nos livros de história ou pelosrelatos de um ou outro militante da velha guarda quesobreviveu às transformações da segunda metade do sé-culo XX. Que o anarquismo é organização, como diziamtodos os panfletos, ninguém discutia, porém, surgiamoutras questões. Como se organizar? Que aspectos teriauma organização libertária? Como chegar a acordos semcair nos modelos tradicionais dos agrupamentos de es-querda? Todas estas perguntas rodearam vários de nós, quetratamos então de levantar alternativas libertárias. Com afalta de referências fomos encontrando as respostas demaneira muito empírica, em parte pegando elementosdaquilo que conhecíamos, em parte pegando elementosde alguns dos novos movimentos populares, em parteimaginando como as velhas organizações ácratas haviamchegado a acordos e, em grande parte, improvisando.

Desta forma fomos crescendo, atraindo novo sanguepara a causa libertária. Porém, as limitações começaram aaparecer de maneira clara, conformes as coisas começarama andar. Notávamos que a maioria das organizações con-tinuava reproduzindo o modelo dos grupos de propa-ganda. Estes grupos de propaganda tiveram um trabalhoimportante quando o anarquismo era um movimentominoritário, e é graças a eles que as idéias libertárias sobre-viveram até nossos dias. Mas diante das exigências do

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presente e diante de um movimento que já havia crescidobastante para ainda conformar-se com as tarefas de propa-ganda, esta lógica de organização mostrava-se insuficiente.

Muitos de nós tínhamos cada vez mais consciência danecessidade de dar o salto qualitativo dos grupos depropaganda para organizações de caráter político-revo-lucionário. Como dar este salto? Por muito tempo, acredi-tamos que iríamos encontrar a resposta para esta perguntaem certos formalismos: a organização como mera estru-tura, o número de militantes ou a quantidade de áreas emque nossos militantes estavam inseridos. Na realidade,nada disso era o fundamental e, além disso, podíamosaspirar ser grupos de propaganda maiores ou menores,com secretariado nacional ou não, ou com áreas de pro-paganda mais ou menos diversificadas. No entanto, nofim das contas, continuávamos sendo grupos de pro-paganda. E com a limitação que isso representa para odesenvolvimento do movimento.

Era necessário, então, ir para além dos formalismos:o salto dos grupos de propaganda para a sólida organi-zação política revolucionária requer uma transformaçãopolítica de fundo, que permita um crescimento em ter-mos políticos e que permita a transformação do movi-mento libertário em um movimento de massas. Estatransformação é a tradução da prática e do pensamentolibertário em um programa revolucionário concreto deação. E é esta a fase atual em que muitos movimentoslibertários a nível global encontram-se hoje, tratando dedefinir um projeto libertário para o presente e o futuroimediato.

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NOSSA POSIÇÃO NA TRADIÇÃO ANARQUISTAE A NECESSIDADE DO SALTO POLÍTICO

Para abordar a questão do programa revolucionário,o que realizaremos com mais profundidade neste artigo,é necessário partir de preceitos políticos muito básicos,já que ainda que todas as expressões do movimento liber-tário tenham de dar este salto ao plano programático, issoé particularmente sensível para a tradição anarco-comu-nista da qual somos parte. O lugar exato que ocupamosna tradição anarquista é algo que devemos ter presente atodo momento. Ser parte da tradição anarco-comunista(que se desenvolve a partir da Plataforma) não é algo quedeveríamos fazer sem pensar e nem algo que devemostransformar em um mero artigo de fé. Tal opção não éuma decisão simplesmente de capricho, nem foi escolhidapor excessivo zelo ideológico. Tal opção expressa, sen-sivelmente, a vontade de construir um certo tipo de orga-nização, a fim de contar com um certo tipo de ferramentapara transformar nossa realidade opressiva e exploradoraem uma sociedade livre e justa. Com este propósito emmente, consideramos que o marco revolucionário e aaproximação organizacional colocados na Plataforma pos-suem elementos centrais de muito valor. Sem ser umareceita para seguir de maneira cega, seus elementos funda-mentais são concretos e úteis, a julgar pela própria expe-riência que construímos internacionalmente, pelo estudodos movimentos revolucionários que nos precederam edas causas de seu fracasso.

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O essencial da Plataforma é como construir umaorganização que reúna os anarquistas de idéias afins emfunção de propostas e táticas concretas – ou seja, uma“organização política” em oposição àquilo que é umgrupo puramente ideológico. Estando nesta tradição, éperfeitamente justo que nos perguntemos quantas denossas organizações, deixando de lado qualquer tipo depretensões, conseguiram realmente alcançar um nível dedesenvolvimento próprio de uma organização política.No presente, a maioria destas agrupações são somentegrupos de propaganda. A principal diferença entre umaorganização política e um grupo de propaganda não é seunúmero de militantes e nem sequer o nível de militância,ou de inserção política de seus membros. A principaldiferença é a simples resposta à pergunta: o que podemosoferecer ao povo? Enquanto os grupos de propaganda nãopodem mais do que oferecer uma visão política e ideo-lógica e, no melhor dos casos, algumas palavras de ordem,a organização política revolucionária pode oferecer umalinha de ação, um programa, uma linha tática, uma estra-tégia, objetivos de curto, médio e longo prazo.

A partir deste ponto de vista, deveríamos superar alimitação básica do anarco-sindicalismo ortodoxo emrelação à organização anarquista, uma limitação que osseguidores da Plataforma combateram, mas da qual, hoje,freqüentemente não temos como escapar. Esta limitaçãoé a crença de que o grupo anarquista é uma entidadepuramente ideológica, alheia às pequenas lutas diárias, eimaculada em relação à luta por reformas. As reformas,

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em sua opinião, são tarefa dos sindicatos, das frentespolíticas e sociais ou das organizações sociais.

A partir da nossa concepção, rechaçamos completa-mente esta maneira de entender o papel das agrupaçõesanarquistas, e é isso o que nos faz ser, antes de tudo, anar-co-comunistas. O que significa defender a necessidade queos anarquistas que possuem afinidades em termos polí-ticos unam-se, mas também que se organizem como taispara enfrentar as lutas cotidianas. Que desenvolvam suaspropostas sociais, não somente em vista da pouco pro-vável eventualidade de uma revolução que ninguém sabequando será, mas para o presente. Depois de tudo, asrevoluções não acontecem magicamente, mas são impul-sionadas. Se não começarmos a transformar o presente,nunca chegaremos a conclusões satisfatórias no futuro.Na teoria todos estão de acordo com isso, mas o queocorre na prática?

FAZENDO O ANARQUISMO RELEVANTEPARA TODOS

A questão, então, nos é colocada de frente, sem pos-sibilidade de evitá-la: podemos estar sinceramente satisfei-tos com a propaganda? A propaganda, já admitimos, foinecessária para construir um movimento como o quetemos hoje em dia. Mas não pode continuar sendo o focoexclusivo de nossos esforços atuais – a propaganda nãopode determinar as necessidades da organização; são as

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necessidades da organização que devem determinar a pro-paganda. Podemos estar satisfeitos, com toda honestida-de, indo de luta em luta divulgando nossos princípios?Nesta altura, deveríamos estabelecer algo mais para nós,deveríamos buscar uma linha de ação e de pensamentoestratégico, que dê coerência à nossa participação (ou nãoparticipação) em uma ou outra luta. É hora de assumirresponsavelmente a importância que nosso movimentoconseguiu e deveríamos começar a nos comportar de acor-do com esta circunstância.

Hoje em dia, simplesmente não é suficiente fazer de-clarações sobre a sociedade que queremos nos próximos500 anos ou depois da revolução. Entre as lutas que tra-vamos hoje e a sociedade ideal do futuro que aspiramosexiste um enorme abismo. Somos utópicos no pior sen-tido da palavra. Ou reformistas, na medida em que a lutapelas reformas não se liga (para além de nossos desejos) auma estratégia revolucionária. Entre nosso utopismo enosso reformismo é onde devemos encontrar o caminhopara a política revolucionária, que unifique nossa par-ticipação nas lutas por reformas e transformações nopresente, com aquelas grandes aspirações que nos ins-piram.

É hora de pensar que tipo de sociedade, de país,queremos nos próximos, digamos, cinco anos. Ou emqualquer espaço de tempo concreto. Esta é a grande per-gunta que devemos nos fazer no momento, cuja respostaserá de grande proveito para nosso movimento e para fazernosso anarquismo relevante para o povo hoje. Não em

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teoria, mas na prática. O economista libertário MichaelAlbert, em uma fala em Dublin, fez um comentário cer-teiro afirmando que o povo em sua imensa maioria estáde acordo conosco em nossa crítica aos vícios do capi-talismo. Muitos, inclusive, estarão de acordo com aquiloque é almejado em uma sociedade anarquista, quandoisso é explicado corretamente. Mas enquanto não formosuma alternativa prática, com propostas muito concretase factíveis para o presente, que demonstrem que o projetolibertário é viável, não há muitas oportunidades paranosso movimento aumentar seu círculo de influência.

PARA QUE SERVE MILITAR EM UMAORGANIZAÇÃO ANARQUISTA?

Então, deveríamos nos perguntar o que nos impedede crescer como organização. Às vezes, pessoas próximasa nossos grupos colocam como razão para não se soma-rem à militância em nossas estruturas orgânicas, o fato denão verem motivo para estar em uma organização anar-quista se podem participar de organizações sociais e fazero mesmo – ou mais – nelas. Alguns outros dizem que osanarquistas, assim como boa parte da esquerda, passamtodo o tempo correndo atrás do próprio rabo. É que semum programa e uma estratégia, é fácil sermos levados àderiva pelos eventos, e ao terminar uma luta virarmos apágina e começarmos de novo outro novo círculo. Preci-samos deixar de dar voltas em círculos e começar a acumu-

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lar seriamente em nossas lutas, para um projeto concretoque tenha continuidade no tempo.

Freqüentemente nos deparamos com companheirosexcelentes, próximos, que militam conosco em espaçosde luta ou organizações populares. Por que estes compa-nheiros deveriam ser militantes anarquistas? Por que parti-cipar de um grupo que não lhes dá mais do que pers-pectivas que a luta nos espaços em que, de todo modo, jáestão participando? O que um companheiro ganha, emtermos políticos, ao unir-se a uma organização libertária?A organização anarquista tem de ser mais que um soma-tório de espaços ou frentes de luta se ela deseja ter algumsentido.

A principal razão de ser de uma organização políticalibertária é a capacidade de desenvolver uma linha políticaque dê direção à ação coletiva, que lhe dê uma orientaçãopara um conjunto maior do que um determinado setorsocial (por exemplo estudantes, trabalhadores, etc.) oupara o povo em uma determinada localidade. A orga-nização é um espaço de convergência em que se acumulapara um projeto de sociedade. Ser membros de umaorganização anarco-comunista deveria representar umadiferença qualitativa para nossa atividade política em ter-mos não somente de presença organizativa, mas tambémde direção política. Esta direção constitui-se nas bases deuma linha de intervenção concreta e explícita nos con-flitos sociais.

A pura fé no anarquismo, ainda que necessária, nãobasta: é necessário desenvolver um projeto político con-creto. Não se pode, diante de cada uma das lutas, voltar a

Rodrigo
Highlight
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debater do zero, voltar a inventar a roda; é necessário terpolíticas claras, fruto de um acúmulo de experiências,com uma linha de ação igualmente clara, que facilite aavaliação e a intervenção nos processos sociais à medidaque se desenvolvam, tendo a capacidade de enfrentar ahistória.

Esta linha de ação clara é de maior importância, jáque o problema real não é se triunfamos ou fracassamosdiante de uma luta específica, mas o que faremos para acontinuidade da luta, independente de ganharmos ouperdermos. O problema é como esta ou aquela luta podeser útil no processo de acúmulo de experiências, de ganhode confiança e de aumento de poder que pode ser utili-zado nas lutas vindouras e na elaboração de um projetosocial.

A capacidade de ter esta linha de ação e um programanascido desta experiência acumulada, que uniformizenossas propostas para enfrentar o presente com nossosobjetivos de longo prazo, é o que faz a diferença em umaorganização política revolucionária. Ninguém tem motivopara unir-se a uma organização anarquista para, por exem-plo, fazer sindicalismo. Para isso basta unir-se a um sindi-cato. Da mesma forma, as idéias sobre o futuro podemser muito interessantes, mas são insuficientes para a maio-ria das pessoas como um argumento para unir-se a umainiciativa política. É necessária uma visão prática da pos-sibilidade de transformação do conjunto da sociedade emmédio prazo. Se sou uma esposa maltratada, se sou umimigrante, se sou um trabalhador mas estou desempre-gado, se detesto meu trabalho e todos os trabalhos que

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eu poderia conseguir, que diferença faz na minha vida serum anarquista? Esta é a pergunta que deveríamos nos fazerpara entender nosso anarquismo como uma força viva nasociedade e como projeto de transformação, ou seja,como programa revolucionário.

POR QUE UM PROGRAMA REVOLUCIONÁRIO?

Já falamos muito da necessidade de uma visão estra-tégica, de concretizar nosso anarquismo, do programarevolucionário. Mas o que queremos dizer exatamentecom tudo isso? Devemos especificar bem o que queremosdizer para não confundir o que nós, anarco-comunistas,entendemos por programa revolucionário, com o queentendem as correntes dogmáticas. Seu programa não émais do que algo sem validade, escrito há cinco décadas eem nada modificado (como se o mundo não tivesse mu-dado desde então). Também não podemos confundir oprograma com uma panacéia que magicamente vai superartodos os equívocos de nossa prática política.

Um programa revolucionário é, em breves palavras,um conjunto de propostas muito precisas e concretaspara avançar até transformações sociais profundas. Nãoé a teoria revolucionária, mas sim a aplicação desta teoriapara compreender e transformar a sociedade concreta.Ele parte de uma análise da sociedade atual, estuda ascondições atuais do terreno para a luta de classes, iden-tifica os problemas mais urgentes e as condições paradesenvolver um movimento; estuda potenciais aliados e

Rodrigo
Note
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inimigos; e propõe uma série de transformações, assimcomo um caminho para alcançá-las por meio da luta. Emtodos estes momentos da elaboração do programa, a teo-ria serve de guia. A teoria, não entendida como dogma,mas como uma ferramenta para compreender melhor omundo.

Este programa nos orienta na ação e nos entrega pro-postas claras com as quais podemos converter o anar-quismo de uma “linda idéia que é impraticável” em umaalternativa clara para o presente de opressão e exploração.Os programas revolucionários não devem ser conside-rados “tábuas de Moisés”, mas devem ser reavaliados,atualizados ou modificados constantemente. O programadeve conservar, a todo momento, sua relevância, sua atua-lidade, e sobretudo, deve ter um vínculo concreto pormeio de uma prática coletiva e definida.

Certamente, esta aproximação programática requerpassar das palavras de ordem para as propostas; e requerpassar da crítica da realidade ao estudo crítico da reali-dade. Se o anarquismo quer alcançar a maioridade comomovimento político, não podemos nos contentar comfórmulas fáceis nem com a ausência de propostas quereina em nossos círculos. Em um artigo esclarecedor, opensador libertário Camilo Berneri assinalava neste sen-tido o seguinte:

“O inimigo está aí: é o Estado. Mas o Estadonão é somente um organismo político, um instru-mento de conservação das desigualdades sociais;é também um organismo administrativo. Como

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estrutura administrativa, o Estado não pode serabolido. Ou seja, é possível desmontá-lo e remon-tá-lo, mas não negá-lo, porque isso paralisaria oritmo de vida da nação, que pulsa nas artérias fer-roviárias, nas veias telefônicas, etc.

Federalismo! É uma palavra. É uma fórmulasem conteúdo positivo. O que nos oferecem osmestres? A premissa do federalismo: a concepçãoantiestatal, a concepção política e não a funda-mentação técnica, o medo da centralização e nãoos projetos de descentralização.

Aqui está, ao contrário, um tema de estudo:o Estado em seu funcionamento administrativo.Aqui está um tema de propaganda: a crítica siste-mática do Estado como órgão administrativo cen-tralizado e, portanto, incompetente e irrespon-sável. Cada dia a notícia de sucessos nos ofereceassuntos para esta crítica: milhões desperdiçadosem más especulações, em lentidões burocráticas;poeira nos ares por negligência dos gabinetes‘competentes’; latrocínios em pequena e grandeescalas, etc. Uma campanha sistemática deste tipopoderia atrair sobre nós a atenção de muitos quenão se comoveriam, em absoluto, lendo Deus e oEstado.

Onde encontrar os homens que podem ali-mentar regularmente esta campanha? Os homensexistem. É necessário que eles dêem sinais de vida.É necessária uma mobilização! Profissionais, em-pregados, professores, estudantes, trabalhadores,

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todos vivem em contato com o Estado ou ao me-nos com as grandes empresas. Quase todos podemobservar os danos da má administração: os desper-dícios dos incompetentes, ou roubos dos pregui-çosos, os empecilhos dos organismos mastodontes.

[...] Devemos voltar ao federalismo! Não paradeitar no divã da palavra dos mestres, mas paracriar o federalismo renovado e fortalecido peloesforço de todos os bons, de todos os capacitados.”

Pagine Libertarie, Milão,20 de novembro de 1922.

Em suas palavras está clara a necessidade de superar oanarquismo discursivo, autocomplacente e começar apensar com toda a seriedade nos problemas sociais emtoda sua complexidade, sem simplificações e nem aprio-rismo teórico. Esta necessidade, transversal a todas asexpressões do movimento libertário, explica porque énecessário dar o salto para o estabelecimento de pro-gramas revolucionários. Porém, o pensamento progra-mático não serve somente como uma maneira de enfren-tar com propostas construtivas os problemas sociais epara ampliar o círculo anarquista, mas, além disso, per-mite-nos acabar com duas características do movimentolibertário: primeiro, com a política de satélite em tornodo resto da esquerda, que nos converte em meros contra-ditores ou seguidores de outras alternativas, sem umdesafio próprio e sem ser, por conseguinte, uma alter-nativa em direito próprio. Por outro lado, ele também

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nos ajuda a superar os desvios sectários, já que muitasvezes o sectarismo e a incapacidade de assumir correta-mente uma política de alianças deve-se à falta de clarezados próprios libertários em todos de seus próprios obje-tivos imediatos. O desenvolvimento de programas con-cretos, em conclusão, fortalece nossa presença nas lutaspopulares, com força própria à nossa bandeira.

POR ONDE COMEÇAR A DISCUSSÃODO PROGRAMA?

Voltamos, então, a repetir a pergunta: o que eu ganhoao unir-me a uma organização libertária? Não deveríamosresponder esta pergunta de maneira assistencialista. Nãohá obras de caridade que possamos ou queiramos fazer.Certamente, unir-se a um grupo libertário não lhe permi-tirá ascensão e não há, muito menos, a remota possibili-dade de tornar-se um político profissional. A respostadeveria surgir do quanto podemos transformar e mobilizara sociedade em seu conjunto. Enquanto a direita e ocentro apóiam-se, para atrair base de apoio, nos benefíciosimediatos mas inconsistentes (a prática do clientelismo),nossa posição é que, para haver melhorias, é necessáriolutar. Por este motivo, os benefícios imediatos são difíceis(com exceção da satisfação própria do apoio mútuo entrecompanheiros, da solidariedade e do sentimento de ga-nho de poder que vêm junto com a luta), mas as melho-rias que conquistarmos, serão definitivamente mais con-sistentes.

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Portanto, somos organizações de luta. Mas se somosorganizações de luta, a estratégia e a tática devem ser apli-cadas. Devemos conhecer bem nossos objetivos de longoprazo e fazer com que nossas posições avancem, a fim deenfraquecer nosso inimigo de classe, fortalecendo assimnossa base de apoio (na classe trabalhadora) e dando ospassos táticos concretos que nos aproximem de umaposição de rompimento com a (atual) velha ordem.

Para começar uma batalha é necessário saber, exata-mente e com precisão, a natureza e as características docampo de batalha. Devemos desenvolver análises políti-cas, econômicas e sociais, tanto em nível nacional comointernacional. Descrever e identificar as principais tendên-cias no desenvolvimento global do capitalismo. Esta aná-lise deve ser atualizada regularmente.

Uma vez conhecido o terreno em que se pisa, a tarefaseguinte é identificar os aliados em potencial; não tantoem nível teórico (algo que já deve estar definido), mas emtermos muito concretos. Como está estruturada a classetrabalhadora hoje em dia? Que tipo de contradições inter-nas ela apresenta? Onde está o potencial para a luta? Queconflitos se apresentam? Quem são os outros atores emluta?

Uma vez que sabemos com quem podemos contar,devemos saber como atraí-los. Devemos começar, por-tanto, a discutir os assuntos mais urgentes do momento:saúde, moradia, educação, recursos naturais, relaçõestrabalhistas, etc... Não de maneira abstrata, mas concreta.Em nosso país, hoje, ou no futuro imediato. Essas neces-sidades mais urgentes requerem uma visão de conjunto, a

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO98

fim de dar respostas coerentes a problemas particulares,em relação aos quais tenhamos algo mais a oferecer do quepalavras de ordem. Temos que discutir sobre o trans-porte, a distribuição, as estruturas democráticas de base,a troca, etc. Desta maneira, devemos traduzir o anarquis-mo, de uma “ideologia” para um sistema de propostassociais, de alternativas de luta.

Com esta aproximação, nos afastamos daquela visãomilenar de revolução, como se ela fosse uma espécie demomento apocalíptico no qual podemos, então, e so-mente então, estabelecer magicamente nosso programaconstrutivo. A história nos ensina que as revoluções sãoresultado de um processo prolongado no tempo; nãoacontecem da noite para o dia, pois a ruptura crítica dasclasses em conflito pode ocorrer depois de um períodorelativamente grande de concessões, conquistas, tensões edisputas em torno de demandas sociais colocadas. Algoque pode parecer uma reforma irrelevante hoje tem comose converter na faísca que acenderá o fogo revolucionário.O dever dos revolucionários é impulsionar nosso pro-grama na resistência e na construção, desde o presente, enão esperar aquele distante dia da revolução, em umdistante amanhecer. Ao trabalhar desta maneira estamos,na realidade, fundamentando as bases práticas da socie-dade em que queremos viver.

Outubro-Novembro de 2006

* Tradução: Felipe Corrêa

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SOBRE A POLÍTICADE ALIANÇAS

PROBLEMAS EM TORNO DA CONSTRUÇÃODE UM PÓLO LIBERTÁRIO DE LUTA

Este artigo surge da necessidade de retomar certasdiscussões que ficaram esquecidas nos finais dos anos 90,em nosso esforço de construir uma alternativa anarco-comunista. Creio que, neste processo, deixamos muitasdiscussões pela metade, deixamos muitos argumentos nãoestabelecidos, o que hoje significa que, provavelmente,muitas das questões que acreditamos estarem superadas eabsolutamente claras, talvez não estejam. Creio sernecessário, portanto, retomar algumas destas discussõesque, por mais básicas que possam parecer, não são menosimportantes. Na realidade, este mesmo artigo encontrousua estrutura original na resposta a um de nossos“próximos”, em um debate a respeito da atitude que oslibertários devem ter em relação à esquerda “autoritária”.

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO100

Retomamos estas discussões, não com os mesmosargumentos que provavelmente utilizaríamos há umadécada atrás, ainda que o espírito continue sendo o mes-mo. Nestes dez anos, tivemos alguns avanços, talvez nãotantos como gostaríamos, mas eles estão aí. Armadoscom nossos acertos e, sobretudo, com nossos equívocose erros, retomamos estas discussões. Contudo, apren-demos e ganhamos experiência.

Creio que o assunto das alianças em raras vezes recebea devida atenção nos meios libertários. Como muitosoutros aspectos ainda insuficientes em nosso movimento,as alianças são algo que ocorrem ou não ocorrem, deixan-do em raras vezes o registro do porquê foram tomadascertas decisões e não outras. Acontece que as geraçõesmilitantes mais novas se vêem forçadas a deixarem-se guiarpor suas próprias intuições quando se trata desta questão.Isso aconteceu conosco, e com base nestas experiências,que foram boas e más, podemos tirar algumas conclusões.

Por isso, considerei necessário escrever um pequenodocumento sobre este tema. Porém, no decorrer da es-crita, me dei conta que era impossível tratar da questãodas alianças sem ao menos tratar três outros assuntos queinteragem intimamente com ele: o problema do forta-lecimento interno do movimento e seu programa revolu-cionário; o problema da hegemonia política no movi-mento popular em seu sentido mais amplo; e o problemada crítica e da autocrítica. Este breve documento, por-tanto, deve ser entendido como uma contribuição para aquestão das táticas e estratégias do movimento, com ênfa-se no problema das alianças.

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 101

AS ALIANÇAS E O PROGRAMA ANARQUISTA

Um dos aspectos mais fracos do anarquismo, emgeral, é quando se trata da questão das alianças políticas.Tendo a acreditar que uma política de alianças corretarequer, primordialmente, uma visão programática sólidapor parte do movimento anarquista. Um programa revo-lucionário não é somente uma acertada e incisiva críticaao capitalismo e ao Estado; é, além disso, como estacrítica se aplica a uma situação histórica concreta e comoela se traduz em um conjunto construtivo de propostaspara superar as contradições existentes que infestam umadeterminada sociedade.

A carência de tal programa e análise deixa o anar-quismo como um ator frágil diante do curso dos eventos(como uma boa idéia, mas impossível de ser aplicada),uma vez que impede de nos convertermos em uma alter-nativa para conquistar o coração do povo em luta. Estaincapacidade de nos converter em uma alternativa emdireito próprio, refletida na ausência do programa revolu-cionário, significa que terminamos definindo nossa polí-tica em função de “terceiros” – freqüentemente, os parti-dos mais numerosos da esquerda –, seja por proximidadeou rechaço.1 E esta debilidade é o que se encontra subja-cente à nossa inepta política de alianças que, com fre-qüência, consiste em duas posturas maniqueístas: ourechaçamos toda possibilidade de trabalho com outrosgrupos da esquerda ou nos convertemos em seus incon-dicionais seguidores.

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO102

Sabemos que os anarquistas não farão a revoluçãosozinhos. E sabemos também que nossa teoria políticanos distingue do resto do movimento revolucionário:não podemos esperar que outras correntes de esquerda,que com toda segurança estarão nas lutas e nos processosde transformação, pensem e atuem como anarquistas;afirmar isso faz com que a organização dos anarquistas, ea própria definição do anarquismo, sejam redundantes.Como já disse anteriormente2, o papel dos anarquistas nomovimento revolucionário é insubstituível e se não im-pulsionarmos nosso programa, ninguém mais o fará –ainda que haja em determinadas ocasiões setores do movi-mento popular que se aproximem espontaneamente denossas posições, ou que desenvolvam linhas políticas simi-lares, o anarquismo tem uma responsabilidade como por-tador específico de uma série de experiências, conteúdose reflexões que deve ser traduzida em um programa deação concreto.

SECTARISMO

Freqüentemente, os anarquistas estarão em meio aum movimento popular, revolucionário ou de luta, queem sua imensa maioria não almejará a destruição doEstado e que, ao contrário, almejará sua conquista. Fre-qüentemente estamos em meio a uma classe trabalhadoraque muitas vezes não aspira mais que a mudança de gover-no como última solução à sua situação. Podemos, então,adotar duas posturas frente a esta questão: a primeira é

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 103

assumir uma posição elitista e rechaçar todo contato comestes trabalhadores e com estes setores do movimentopopular para não manchar nosso imaculado movimento.Isto, na realidade, não é uma posição política, senão algode caráter quase religioso, que em lugar de favorecer aação, no melhor dos casos, a paralisa em favor do res-guardo da fé. E, no pior dos casos, transforma-se em umnocivo sectarismo.

O sectarismo é a incapacidade de tolerar posiçõesteóricas ou práticas diferentes das suas. O sectarismocaracteriza-se pela ignorância, tanto das idéias alheias, co-mo de suas próprias3, assim como pela nula intenção dese transformar a sociedade. Os sectários entendem a polí-tica como uma questão de identidade, de um grupelho,como uma torcida de um time de futebol e não comouma atividade transformadora da realidade. O sectarismocaracteriza-se pelo “estrabismo político”, ou seja, por suaincapacidade de reconhecer o inimigo político ou de clas-se. O sectarismo também se caracteriza pela “miopia polí-tica” que o impede de distinguir as diferenças que sãoessenciais daquelas que não são. Nos casos patológicosmais extremos, o sectarismo alimenta-se de um complexode inferioridade, da obsessão e da fixação com o que osdemais fazem ou dizem4, de uma arrogância complexadae da vaidade, e de uma atitude de plena amargura frente àexistência.

O sectário é incapaz de reconhecer os méritos alheiose carece de inteligência ou de critério para discernir, emuma discussão, com o que está de acordo ou do quediverge: sua atitude é de aceitação ou rechaço absolutos.

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O sectário carece de honestidade e sentido crítico paradebater, e limita-se a denunciar e a cair em diálogos desurdos. No geral, a visão de mundo do sectário é tãorígida, tão inflexível, tão fanática, tão amarga, tão inde-sejável e pouco atrativa que acaba mais por espantar opovo do que por atraí-lo à causa revolucionária. Em certoscírculos anarquistas, estupidamente, exalta-se o sectaris-mo como uma virtude, quase o convertendo em um“princípio fundamental” do anarquismo. Porém, o sec-tarismo é de espírito autoritário e nada tem de libertário.

A respeito do sectarismo em relação a outros mo-vimentos, nos diz Luigi Fabbri:

“Aqueles partidos, que aspiram chegar ao po-der, quando o conseguem, indubitavelmente, se-rão inimigos dos anarquistas, mas como isto estáum tanto longe, como sua intenção pode ser boae muitos dos males que pretendem eliminar nóstambém pretendemos, e como temos muitos ini-migos comuns e, em comum, teremos, sem dúvi-das, de nos livrar de mais de uma batalha, é inútil,quando não prejudicial, tratá-los violentamente,já que neste momento o que nos divide é umadiferença de opinião, e tratar violentamente al-guém porque não pensa ou não trabalha comonós é uma prepotência, é um ato anti-social. (...)Certamente, muitas de suas doutrinas são errô-neas, mas para demonstrar seus erros não são ne-cessários insultos; alguns de seus métodos sãonocivos à causa revolucionária, mas se trabalhar-

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 105

mos diferentemente e se realizarmos a propagandapelo exemplo e pela demonstração adequada, osensinaremos que nossos métodos são melhores.”5

O sectarismo é daninho e prejudicial. Exemplos his-tóricos nos são abundantes: no Chile, depois do golpe dePinochet, a primeira reação do PC foi jogar a culpa dogolpe nos “ultra-esquerdistas” (o MIR) a quem chegou adefinir como “cavalos de Tróia do imperialismo”; certosmaoístas apoiaram o golpe a Chávez em 2002 e hojefestejam entusiasmados as mobilizações da direita emSucre e em toda a Bolívia, chegando a defini-las comomobilizações de massas e de esquerda; no Chile, vergo-nhosamente, alguns anarquistas, muito minoritários, a-plaudiram o golpe de Pinochet que derrotou o “regimemarxista”, enquanto seus companheiros mais conseqüen-tes eram perseguidos ou participavam da frágil resistência;outros anarquistas na Argentina apoiaram o golpe militarque derrubou Perón; e, mais recentemente, recordamoso 1º de Maio de 2003 no Chile, em que anarquistas ecomunistas terminaram confrontando-se em um vergo-nhoso incidente, enquanto a polícia, com a confusão,aproveitava-se da situação. O movimento anarquista ale-mão, dividido entre as correntes de Joseph Peukert eJohann Most, durante o século XIX, viveu um dos episó-dios mais tristes da história de seu sectarismo, quandoPeukert delatou Johann Neve à polícia, militante alemãoque estava na clandestinidade e pertencia ao Freiheit, ogrupo de Most, morrendo mais tarde nos cárceres prus-sianos.6 O sectarismo está repleto de histórias de delação

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em meio a sua cegueira fanática. É necessário recordar essahistória de injúrias para se ter sempre presente a que levao sectarismo.

A segunda posição é assumir as diferenças e, apesardelas, decidir trabalhar com esses setores para a trans-formação social. Quem assume essa segunda posição de-ve, necessariamente, suscitar o problema do que é umapolítica de alianças correta. Pois, também, não podemosnos converter em aliados incondicionais de uma esquerdaque se distancia muito de nosso pensamento, nem nosconverter em fiéis seguidores das “massas”. Devemos sercapazes de confluir, onde se deve, com o conjunto domovimento revolucionário, mas como anarquistas. Sem-pre como anarquistas, sempre difundindo nosso pro-grama e agitando nossas bandeiras, sempre conservandoo direito a uma crítica madura e construtiva diante dodesacordo. E também sempre tendo em mente que, comoanarquistas, representamos um setor específico do povo,tanto como outros setores políticos também representamum setor e tendências no seio do povo. Sustentar que osanarquistas são o único setor legitimamente representantedo povo é sinônimo de elitismo, e uma opinião que nãodeixa nada a desejar à teoria leninista do partido único.7

HEGEMONIA NO SEIO DO POVO

Outro problema, nesse caso, que está ligado ao pro-blema das alianças, é, como conseguir gerar uma certahegemonia libertária no movimento popular; como con-

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 107

seguir que nosso pólo antiautoritário pese mais e deter-mine majoritariamente o desenrolar dos eventos em rela-ção ao pólo autoritário. Pois devemos recordar que opovo não é “libertário” e nem “autoritário” por natureza.Ambas as tendências existem igualmente no seio da classetrabalhadora, e têm encontrado sua expressão políticamais ou menos difundida na esquerda jacobina e na es-querda libertária. Trabalhar o tema das alianças, por-tanto, sem prestar suficiente atenção ao problema dahegemonia no seio do povo, é realizar um trabalho incom-pleto, é iniciar bem uma tarefa sem saber como concluí-la.

NECESSIDADE DO PROGRAMA

Como já dissemos anteriormente, toda essa questãovincula-se ao problema do programa, pois para poderestabelecer alianças nas quais sejamos um ator em direitopróprio, devemos ser um ator fortalecido, com visão,com propostas, com tática e estratégia claras. Devemosarticular muito bem nosso pensamento com os proble-mas atuais e com a saída que queremos. Isso é a alma deum programa revolucionário. Além disso, se queremos serum fator de peso no movimento popular, para além doespectro de nossas alianças, também devemos aparecerbem armados de análises, de propostas e de um método eum estilo de trabalho social corretos. Para tudo isso,também, é necessário um programa e não somente pala-vras de ordem vagas ou teoria abstrata.

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É, então, a questão do programa que devemos terresolvido, ao menos em termos amplos e gerais, antes depensar nas alianças. Pois para saber com quem e como nosunir, transitória ou permanentemente, devemos saberpara que queremos fazê-lo, e isso só é possível se sou-bermos, com toda certeza, o que queremos concreta-mente – disso também depende a influência que conse-guiremos alcançar no movimento de massas: de nossaclareza política e do quão acertada é nossa política.

MENOS AUTOCOMPLACÊNCIAE MAIS AUTOCRÍTICA

As debilidades internas do anarquismo são o princi-pal “calcanhar de Aquiles” que deveríamos buscar superarse quisermos ser um ator de peso nas lutas sociais e assimdesenvolver um programa político que possa aglutinarimportantes setores do povo e dar golpes de alguma im-portância no sistema dominante. Exigimos menos auto-complacência e mais autocrítica. Isso foi expressado, elo-qüentemente, pelos companheiros do Dielo Trouda, ex-veteranos da insurgência makhnovista na Ucrânia que,analisando o fracasso do anarquismo na Revolução Russae o surgimento da ditadura leninista afirmaram:

“Adquirimos o hábito de culpar a repressãoestatal do Partido Bolchevique pelo fracasso domovimento anarquista na Rússia entre 1917 e1919. Isso é um grave erro. A repressão bolche-

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 109

vique dificultou a expansão do movimento anar-quista durante a revolução, mas foi somente umdos obstáculos. Antes disso, foi a incapacidadeinterna do próprio movimento anarquista uma dasprincipais causas deste fracasso, uma incapacidadeemanada da imprecisão e da indecisão que carac-terizaram suas principais afirmações políticas emrelação à organização e às táticas. (Esperamos de-monstrar e desenvolver esta afirmação em um es-tudo especial, comprovando com fatos e docu-mentos).

O anarquismo não tinha uma opinião firmee concreta sobre os principais problemas da revo-lução social, opiniões que eram necessárias parasatisfazer as massas que faziam a revolução. Osanarquistas enalteciam a tomada das fábricas, masnão possuíam uma concepção precisa e homo-gênea sobre a nova produção e sua estrutura. Osanarquistas defendiam o princípio comunista: “decada um segundo suas capacidades, a cada umsegundo suas necessidades”, mas nunca se preo-cuparam em aplicar este princípio na realidade.Foi assim que permitiram que elementos sus-peitos transformassem este grande princípio emuma caricatura do anarquismo (somente recor-dando como muitos escroques aproveitaram-sedeste princípio para açambarcar bens coletivos emproveito próprio durante a revolução). Os anar-quistas falavam muito da atividade revolucionáriados próprios trabalhadores, mas foram incapazes

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de indicar às massas, nem mesmo aproximada-mente, as formas que tal atividade deveria assu-mir; demonstraram-se incapazes de regular as re-lações recíprocas entre as massas e seu centro ideo-lógico. Incitavam as massas a livrar-se do jugo daautoridade, mas não indicavam como consolidare defender os ganhos da revolução. Careciam deopiniões claras e de programas de ação precisosem relação a tantos outros problemas. Isso os afas-tou da atividade das massas e os condenou à im-potência social e histórica. Nisso devemos ver aprincipal causa de seu fracasso na Revolução Rus-sa. Nós, anarquistas russos que vivemos a prova darevolução em 1905 e 1917, não temos a menordúvida a respeito disso.

A obviedade da incapacidade interna do anar-quismo nos obrigou a buscar meios para alcançaro triunfo.

Em mais de vinte anos de experiência, de ativi-dade revolucionária, vinte anos de esforços nas fi-leiras anarquistas e de esforços que nada conse-guiram, senão fracassos do anarquismo enquantomovimento organizador: tudo isto nos convenceu danecessidade de um novo partido-organização anar-quista baseado em uma teoria, uma política e umatática homogêneas.”8

Porém, essa opinião não era somente compartilhadapelos redatores da Plataforma, do grupo Dielo Trouda. Osanarco-sindicalistas russos não se expressavam em termosmuito diferentes:

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Nós, anarquistas e sindicalistas – de fato, to-dos aqueles que crêem que a libertação dos traba-lhadores é obra dos próprios trabalhadores – está-vamos muito pouco organizados e éramos muitofracos para manter a revolução rumo ao socia-lismo. Não é necessário dizer que o socialismonão cairá do céu, e que uma única concepção desocialismo não é suficiente.

(...) Havia uma necessidade urgente de orga-nização sistemática e de coordenação de ativida-des. A revolução as buscou, mas pouquíssimoselementos estavam conscientes da necessidade e dapossibilidade da organização federalista. E a revo-lução, não a encontrando, lançou-se nos braçosdo velho tirano, do poder centralizado, que agorasufoca seu respiro vital. Nós estávamos muitodesorganizados, éramos muito frágeis, e por isso,permitimos que isto ocorresse.”9

Este artigo foi escrito por M. Sergven no periódicoanarco-sindicalista russo Vol’nyi Golos Trouda, de setembrode 1918. Este, segundo o historiador Paul Avrich, nãoseria nem mais nem menos que um pseudônimo de Gri-gori P. Maximov, alguém que estava certamente muitodistante das teses dos plataformistas. É muito signifi-cativo que tanto os plataformistas como Maximov, a par-tir do anarco-sindicalismo, tenham compartilhado umaanálise similar sobre as causas da fraqueza do anarquismorusso, assim como as de sua derrota, independentementede terem optado por soluções distintas para essa fraqueza.

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Esta autocrítica está muito distante da autocomplacênciaque nas décadas posteriores viraria regra em nossos cír-culos libertários.10

CRÍTICA E AUTOCRÍTICA

Ainda hoje, estamos acostumados a culpar os auto-ritários, os burocratas e os reformistas por nossas derrotas,e, assim, lavamos nossas mãos das responsabilidades quenos cabem por não termos sido capazes de imprimir umaorientação diferente aos movimentos. Devemos, antes deser críticos, ser autocríticos. Pois se não somos capazes dereconhecer a porção de responsabilidade que nos cabe,primeiramente, isso significa que não seremos capazes deaprender as lições que nos dizem respeito para poder avan-çar. Mas também significa que assumimos nossa impo-tência e nossa irrelevância nas lutas populares. Pois, se aculpa sempre é dos outros, estamos assumindo que nossapresença, como anarquistas, não faz nenhuma diferença,não tem nenhum efeito. Então, a autocrítica deve semprepreceder a crítica na hora de avaliar os fracassos e derrotas.E podemos ir jogando a autocomplacência pela janela:sempre há algo que poderíamos (ou que podemos) fazermelhor. Negar isso não tem nada de revolucionário, massim de conservador e de reacionário.

O fato de que a esquerda autoritária tenha, no geral,estado melhor organizada que a libertária e que tenhacontado com um programa político claro, com uma me-lhor compreensão dos problemas imediatos das massas

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 113

oprimidas, significa que eles se converteram na força hege-mônica na maioria das experiências revolucionárias (comas notáveis exceções da Ucrânia e da Espanha – e ainda,em último caso, souberam impor-se política e não mili-tarmente). Mas tal coisa não foi um fato inevitável nemfatal.

PROGRAMA, PROPOSTAS E ESTRUTURA

Disso deduz-se que, se queremos nos assegurar quenos movimentos revolucionários vindouros, a ala liber-tária do povo tenha mais importância que a ala auto-ritária, devemos começar por tornar claro, primeiro, nos-so próprio programa, nossas propostas construtivas enossa estrutura organizativa. Questões para as quais nãoexistem receitas mágicas, ainda que possamos nos inspirare buscar guias na experiência e na reflexão teórica dopassado. Mas nestas experiências ou reflexões não está,nem de perto, a resposta às necessidades que a própriahistória em movimento nos vai colocando.

APONTAMENTOS PARA UMAPOLÍTICA DE ALIANÇAS

Voltemos então ao problema das alianças. Temos deser muito claros que não existem respostas fáceis paraquestões como esta. Cada situação é única e deve ser anali-sada e estudada como tal pelos companheiros que quei-

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ram vivê-las. É impossível ter uma fórmula universal eatemporal sobre as alianças, que se aplique de maneiraidêntica em todos os locais e momentos. A política nãose escreve nem com um papel carbono nas mãos, nemcom um molde na cabeça. Mas, repetindo, acreditamosser possível encontrar certos apontamentos gerais pos-síveis de serem adaptados e que podem ser úteis a outroscompanheiros no momento de ponderar a questão dasalianças em seu respectivo trabalho de base, ou em suaprópria luta.

Em nossa própria experiência de uma década de tra-balho, lutas e reflexões em torno destas questões, noChile pós-ditadura, pudemos extrair algumas conclusõessobre a questão das alianças que podem ser úteis paracompanheiros em outras localidades ou em outros mo-mentos. Insistimos: estas são somente algumas conclu-sões, algumas reflexões fundamentais que podem ser úteispara o movimento em geral. Não acreditamos que estesapontamentos, muito gerais, possam, e nem devam, serconvertidos em “tábuas de Moisés”. No entanto, que-remos compartilhá-las com o intuito de trocar experi-ências com o restante do movimento, um hábito que,talvez, devêssemos ter com maior freqüência para apren-dermos uns com os outros. Assim, com o intercâmbio eo diálogo construtivo, podemos ir gerando um movimen-to com maturidade e com dinamismo que se alimente desuas experiências (no lugar de simplesmente vivê-las) e queavance das “intuições compartilhadas” para as “reflexõescompartilhadas”.

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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS 115

O desenvolvimento de uma política correta de ali-anças depende, em nossa opinião e baseados em nossaexperiência, de uma série de fatores, a saber:

1. Que o primeiro passo para uma política de aliançascorreta é o fortalecimento do anarquismo; sem um pro-grama revolucionário, não há possibilidade de nos con-vertermos em um ator forte em meio a qualquer movi-mento popular. Somente um programa próprio nos con-verte em alternativa, retirando-nos do eterno ciclo decondenar ou aclamar terceiros.

2. Que a unidade com outros setores do movimentopopular, ainda que muito necessária e de primordial im-portância – já que não derrotaremos sozinhos o capi-talismo –, não deve ser buscada a qualquer custo; somenteentraremos em discussões com outras forças políticas namedida em que isso seja relevante para avançar em nossopróprio programa e em nossas próprias iniciativas. Pro-grama e iniciativas que, além disso, longe de serem hermé-ticos, se retro-alimentam constantemente de nossa expe-riência e do intercâmbio com outros atores do mundopopular. Conseqüentemente, as alianças se convertem naconclusão de nosso próprio desenvolvimento político enão em seu ponto de partida.

3. Que a unidade de ação e a coordenação de iniciativasnão signifiquem postergar ou submeter a nosso próprioprograma revolucionário.

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4. Que a necessária unidade dos setores revolucionáriosnão signifique um “matrimônio” por toda a vida, mas quetenha sentido em função de objetivos precisos, os quaispodem ser de curto, médio ou longo prazo. A unidadecom outros setores revolucionários deve ser entendida,antes de tudo, como uma unidade de ação, ainda que nãodescartemos compartilhar certas análises ou discussõesquando isso for pertinente.

5. Que tal unidade dos setores revolucionários, impres-cindível para avançar contra o bloco dominante, deveacontecer “de baixo para cima e na ação”. De baixo paracima, pois somente coordenaremos espaços concretosonde, efetivamente, nossos respectivos militantes con-fluam (organizações sindicais, por exemplo) e, sempre equando compartilharmos certos objetivos mínimos. E naação, pois acreditamos que é a prática concreta que servepara deixar claros os objetivos e as posições corretas, emvez do debate político abstrato; ademais, como já dis-semos, não nos interessam os matrimônios; buscamos aunidade pelas necessidades concretas da luta e para a ob-tenção de certas vitórias para o campo popular.

6. Que, ainda que no marco das alianças, sejamos capazes,em todo momento, de buscar ampliar nosso marco deinfluência, de conseguir influenciar a política e os pro-gramas de outros setores o quanto for possível, buscandoconverter o movimento libertário em um pólo hege-mônico do movimento popular. Isto é extremamenteimportante, pois devemos compreender que, ainda quecheguemos a ser uma força política de peso, com bons

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argumentos e capacidade de mobilização, nunca estare-mos sós e sempre haverá outras forças lutando para impul-sionar idéias diferentes e até opostas às nossas (para nós,como libertários, a supressão de outras correntes políticasnão é sequer uma opção a se levar em consideração). Oque não significa a renúncia em defender um movimentopopular e um projeto social de baixo para cima, comdemocracia de base, o mais libertário possível, que sejacapaz de abolir o Estado de maneira revolucionária.

FORTALECER AALTERNATIVA REVOLUCIONÁRIA

Diante disso, os anarquistas não podem perder devista o panorama geral. Devemos ter claro que qualquerpolítica de alianças deve buscar, antes de tudo, o forta-lecimento e o crescimento de uma alternativa revolu-cionária. Nem o isolamento, nem as más companhias nosservem. Uma aliança que nos cria mais problemas do queoutra coisa, não tem nenhuma razão de ser, ainda quenossos aliados reivindiquem-se “revolucionários”, “anar-quistas” ou o que quer que seja.

E devemos também ter claro que tal política de alian-ças deve ser refletida a cada instante, para assegurar queela seja coerente com nossas posições políticas e que assimseja proveitosa. Estas coisas não podem ser deixadas aoacaso, pois ainda que possamos estar improvisando, po-demos estar certos de que o restante da esquerda e a bur-guesia não estarão.

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CONCLUSÃO

Estas são algumas idéias básicas e alguns apontamen-tos muito gerais sobre a política de alianças. Não temosmaiores pretensões em torno delas, salvo que sejam deutilidade para outros companheiros. E de nenhuma ma-neira representam algum tipo de substituição para o pro-cesso original de reflexão que diz respeito a cada orga-nização e em cada situação específica. Cada contexto éparticular e único.

Mas, ainda diante da singularidade de cada contexto,felizmente, não queremos fazer o papel dos marinheirossem bússola; a história e a teoria nos fornecem apoio eorientação. Contudo, não devemos esquecer que o lemeestá em nossas mãos e que depende de nós não ir à deriva.Antes de tudo, somos nós os últimos responsáveis pelasnossas ações.

11 de dezembro de 2007

Notas:

1. Isto é o que chamamos anteriormente de “política desatélite”, na qual os grupos anarquistas aparecem comosatélites, orbitando ao redor de outros partidos ou movi-mentos políticos.

2. Ver “América Latina: problemas e possibilidades parao anarquismo”, publicado neste livro.

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3. Ou o que é igual, pela falta de inteligência para com-preendê-las.

4. Quando não, na fixação obsessiva por pessoas desta-cadas de outros movimentos ou partidos.

5. Luigi Fabbri, Influencias burguesas en el anarquismo, ed.Solidaridad Obrera, Paris, 1959, pp. 56-57.

6. Não é de se surpreender, portanto, que quando EmmaGoldman se une ao grupo de Peukert nos EUA, compleno conhecimento do caso de Neve, Most não tenhalhe voltado a dirigir a palavra.

7. Ainda há muitos anarquistas iluminados que quandoa classe trabalhadora faz algo que não se alinha à sua pró-pria visão ou quando apóia tal ou qual partido da es-querda, sustentam que ela não passa de marionete, que émanipulada, que é ignorante. Ou quando o povo realizaqualquer luta que não tenha por objetivo “a revoluçãosocial universal”, então é composto de cordeiros, resig-nados. Em seu elitismo, acreditam que somente o anar-quismo (em sua versão mais purista e dogmática) real-mente representa os trabalhadores. Esta visão demonstraa incapacidade de compreender dois fatores de granderelevância para qualquer política revolucionária correta.Primeiro, que a classe trabalhadora, que o povo, é muitocomplexo e é um emaranhado de diversas visões e inte-resses que nem sempre se harmonizam com uma linha“ideológica” pura. Segundo, que a criatividade das mas-sas, aquele fator tão caro a uma política revolucionária elibertária, manifesta-se ainda quando os trabalhadoresexpressam idéias com as quais não concordamos. Deve-mos tratar de entender em que medida essas idéias e ações

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expressam um comodismo ou uma resposta à sua con-dição. E mesmo que estejamos em desacordo, devemostratar de compreender o papel ativo que as massas cum-prem nos processos sociais, em vez de crer, teimosamen-te, que só estão corretas ou que atuam independente-mente somente quando estão de acordo conosco.

8. “Respuesta a los Confusionistas del Anarquismo”,Grupo Dielo Trouda, agosto de 1927. Artigo reprodu-zido em Facing the Enemy, Alexander Skirda, ed. AK Press,2002, pp. 224-225. * (N.E.) Este trecho foi revisado apartir da tradução original do russo para o francês apre-sentada por Skirda em Autonomie Individuelle et Force Col-lective.

9. “Los Caminos de la Revolución”, M. Sergven, Vol’nyiGolos Trouda, Moscou, 16 de setembro de 1918. Artigoreproduzido em The Anarchists in the Russian Revolution,editado por Paul Avrich, ed. Thames & Hudson, Lon-dres, 1973, pp. 124-125.

10. Hoje em dia encontramos, freqüentemente, anarquis-tas que enchem a boca falando sem parar do fracasso daesquerda latino-americana, do marxismo, etc. Qualquerum que escutasse isso pensaria, ingenuamente, que ahistória do anarquismo é, ao contrário, a história de umasérie incrível de vitórias que fazem tremer os governantese os capitalistas de todo o mundo. Mas até o anarquistamais alucinado se envergonharia de dizer tal absurdo. Ainsistência no fracasso dos “outros”, sem analisar pri-meiro nosso próprio fracasso, é como “o sujo falando domal-lavado” e não nos ajuda, em absoluto, a sair doscírculos marginais dentro dos quais se confinou o anar-quismo em muitos países por décadas. Se é verdade que

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com os erros e fracassos alheios também se aprende, isso étotalmente inútil se primeiro não se aprendeu com ospróprios erros e fracassos.

* Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves.* Revisão/edição: Felipe Corrêa.

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A IMPORTÂNCIA DA CRÍTICAPARA O DESENVOLVIMENTO

DO MOVIMENTOREVOLUCIONÁRIO

Este artigo foi escrito no intuito de dar conta de umvelho mal-estar que sinto no movimento libertário. Estemal-estar é a falta de discussão nos meios anarquistas,somado ao fato que o pouco que há é freqüentementemarcado por insultos e por um ânimo mais competitivodo que construtivo. Este equívoco, que se converteu emalgo crônico, tem remédio e pode ser superado comvontade e maturidade. As idéias aqui articuladas come-çaram a desenvolver-se a partir de um documento dediscussão para a revista chilena Hombre y Sociedad em2006, já que nesta publicação temos tentado superar estasituação, ainda que reconheçamos as limitações e a mo-déstia de nosso esforço.

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Espero que as idéias aqui defendidas sirvam para irdeixando de lado os vícios do movimento e possamosconstruir um edifício de bases sólidas e com ar fresco apartir do qual possamos trabalhar pela futura revolução.

* * *

A QUESTÃO DO DOGMATISMO

Não raramente escutamos, quando se fala das dife-renças entre o anarquismo e as demais correntes da es-querda, que o anarquismo é uma corrente “livre de dog-mas”, “que não é fechada em si mesma” e “que é aberta aodesenvolvimento por meio da livre crítica”. Isto tem sidorepetido exaustivamente, incansavelmente, e de maneirahabitual assume-se tal fato como uma virtude suprema doanarquismo. No entanto, o menor contato dos círculosanarquistas com a realidade nos mostra uma realidadebem diferente destas declarações autocomplacentes. Ain-da que muito se fale sobre a falta de “dogmatismo” noanarquismo, o que encontramos freqüentemente é umafalta de reflexão sistemática, misturada com o mais recal-citrante dos dogmatismos, em que a análise serena darealidade é substituída por uma série de categorias aprio-rísticas e incompatíveis com a realidade. Longe de encon-trar um ambiente favorável ao desenvolvimento da crítica,encontramos um movimento paranóico, que tende aentender a crítica como um ataque, o que é muito aca-

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nhado para discutir em termos efetivos as diferenças reaisem seu seio. E encontramos um movimento que, longede aceitar as diferenças, discutindo-as com maturidade,está sempre prestes a excomungar. Isto não é um defeitode uma ou outra publicação, de um ou outro perso-nagem no movimento (ainda que claramente haja quemleve esta tendência a níveis patológicos), mas é um defeitoprofundamente engendrado no movimento libertárioque permeia praticamente todos seus setores e correntes.

Na verdade, o anarquismo ainda possui muitas debi-lidades. Como um movimento, sofremos de diversas de-las, somos ainda um movimento em gestação, apesar denossa longa história. Pois uma das carências que maissentimos é a ausência de uma tradição autêntica de de-bate. Pois onde não há discussão, há dogmatismo, e ondehá dogmatismo há ignorância. Onde a discussão não sedá livremente, o que impera é a falta de dinamismo nasidéias e a defasagem em relação à realidade. Em um am-biente deste tipo não é possível o desenvolvimento de ummovimento sadio, com ambições de transformar estemundo.

DISCUSSÃO E DEBATE CONSTRUTIVOS

Carecemos de uma tradição de discussão. Estamosmuito acostumados a “denunciar” em vez de discutir. Hámuitos em nosso movimento mais próximos do espíritode Torquemada do que do espírito de Bakunin. Há mui-tos que preferem desperdiçar seu tempo “vigiando” os

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passos de outros anarquistas e denunciando aquilo queconsideram um desvio, ao invés de contribuir com a cons-trução concreta de um movimento. O anarquismo apa-rece assim, mais do que uma ferramenta de transformaçãodo mundo, como um conjunto de dogmas elementares,de rudimentos políticos mal digeridos, de palavras deordem vagas e gerais que substituem a reflexão políticaséria. O simplismo não deixa espaço para um pensamen-to articulado. Temos muitos autoproclamados defenso-res da fé e muito poucos anarquistas dispostos a desafiaro presente para explorar novos caminhos para o anar-quismo diante de um mundo que não deixa de girar.

Em vez de aceitar as diferenças de opinião como tais eproceder a debater respeitosamente, energicamente, massempre com espírito construtivo, denunciamos e desqua-lificamos. Não sabemos debater; freqüentemente nossasdiscussões entravam-se em questões de princípios e todasas divergências táticas são elevadas à categoria de discus-sões de princípios eternos do anarquismo. Pierre Monat-te, o velho anarquista sindicalista francês, queixava-se noCongresso de Amsterdã (em 1907!) que “existem camaradasque, por tudo, inclusive pelas questões mais fúteis, sentem anecessidade de levantar questões de princípio”1. Com isso, pa-rece que a cada diferença estamos julgando a razão de seranarquista e as posições divergentes são caricaturadas co-mo “autoritárias”, “totalitárias”, “marxistas”, “reformis-tas”, etc. Rótulos bastante úteis para evitar abordar asdiscussões de maneira política e não-histérica. Em nossomovimento, lamentavelmente, tende-se a adornar qual-quer argumentação com inúmeros adjetivos qualificativos

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que nada aportam, absolutamente nada, ao esclarecimen-to do assunto em debate. Assim, cada debate em tornodo anarquismo termina em uma polêmica para ver quemé o “mais” anarquista, quem é o que conserva a linhasagrada... e não quem tem razão à luz da realidade.

Parece que neste ambiente de “denúncias” e de au-sência de debates, a própria realidade não é senão umaspecto secundário, que pouco ou nada contribui comqualquer assunto que está em discussão.

QUANDO UM ATACA O OUTROE ESQUECE DA LUTA

Estes sectarismo e dogmatismo também se vêem refle-tidos em nossa propaganda. Inclusive chegamos ao ex-tremo de publicações inteiras do anarquismo gastaremuma quantidade enorme de tinta e papel para atacar ou-tros anarquistas, em vez de discutir de maneira saudávelou atacar àqueles que realmente “fodem” a vida de mi-lhões de pessoas neste mundo.2 Quem trabalha desta ma-neira causa um enorme prejuízo ao movimento: não so-mente alimenta as tendências centrípetas no anarquismo,mas persuade os leitores não familiarizados com nossasidéias de que o anarquismo é um movimento de espíritomesquinho, estreito e pequeno, deslumbrado por suaspróprias vaidades e insensível aos verdadeiros problemasdo nosso tempo. Para quê unir-se a um movimento queestá muito ocupado com tarefas inquisitoriais ao invés deocupar-se da problemática cotidiana do conjunto dos

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oprimidos, dos pobres, dos explorados e dos margina-lizados?3

Esta virulência nos ataques a quem pensa ou trabalhade forma distinta e este sectarismo têm atingido o paro-xismo com as possibilidades abertas pela internet e pelacomunicação virtual. Qualquer um pode, hoje em dia,insultar gratuitamente e covardemente, da comodidadede sua casa e com a proteção oferecida pelo anonimato,organizações ou referentes do movimento libertário queatuam abertamente nas lutas. Qualquer um pode darvazão a seus ânimos destrutivos e a seu espírito miserávelpara depreciar os esforços realizados, muitas vezes comenormes sacrifícios, por companheiros que estão suandoa camisa para desenvolver uma alternativa libertária. Comtodas as possibilidades abertas pela internet para trocarexperiências e discutir, é desolador que a maioria dosfóruns seja tão pobre e que onde há mais comentários,eles são somente para insultar ou para desqualificar. Istoé uma realidade extremamente triste e dolorosa para qual-quer um que seja honesto em sua luta.

Isto é próprio de movimentos distantes da realidadee, na verdade, ainda nas fileiras do anarquismo, há muitosque carecem de contato – em um sentido orgânico, obvia-mente – com o mundo popular, ou carecem de qualqueresforço para realizar um trabalho construtivo em meio aosexplorados. Não basta conhecer a luta pelos livros dehistória; ela deve ser promovida realmente em nosso dia-a-dia. Com gente desligada das lutas e das organizaçõespopulares, acreditamos que é difícil um debate efetiva-mente construtivo, pois, com a falta de experiência prá-

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tica, estas pessoas são incapazes de manter a discussão noplano da realidade e são facilmente arrastadas para o pân-tano das abstrações principistas. E disto vêm as denúnciasde “traição ao anarquismo”. Esse é seu verdadeiro terreno,e por isso, diante das diferenças, sua reação natural érefugiar-se na segurança de seu próprio grupelho, umpunhado de guardiões da fé.

CONSCIÊNCIA DE PARTIDO

Estes problemas a que faço referência não são umassunto novo. Há 85 anos já eram assinalados por CamiloBerneri em um artigo cujo tom, a qualquer um que já estáhá um tempo militando no movimento anarquista, soarátristemente atual e familiar:

“Somos imaturos. Isso é demonstrado peloque foi discutido na União Anarquista fazendosutilezas sobre as palavras partido, movimento,sem entender que a questão não é de forma, masde substância, e que o que nos falta não é a exteri-oridade do partido mas a consciência de partido.

O que entendo por consciência de partido?Entendo algo mais que o fermento passional

de uma idéia, que a genérica exaltação de ideais.Entendo o conteúdo específico de um programapartidário. Estamos desprovidos de consciênciapolítica, no sentido de que não temos consciênciados problemas atuais e continuamos difundindosoluções adquiridas em nossa literatura de pro-

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paganda. Somos utópicos e basta. O fato de havereditores nossos que continuam reeditando os es-critos dos mestres sem nunca incluir uma notacrítica, demonstra que nossa cultura e nossa pro-paganda estão nas mãos de gente que pretendemanter em pé o próprio palanque, em vez de im-pulsionar o movimento a sair do que já foi pen-sado e esforçar-se na crítica, do que ainda está porse pensar. O fato de haver polemistas, que tentamengarrafar o adversário em vez de buscar a verdade,demonstra que entre nós há maçons em sentidointelectual. Agregamos os grafômanos, para quemo artigo é um desafogo ou uma vaidade, e teremosum conjunto de elementos que perturbam o tra-balho de renovação iniciado por um punhado deindependentes que prometem.

O anarquismo deve ser amplo em suas con-cepções, audaz, insaciável. Se quer viver e cumprirsua missão de vanguarda deve diferenciar-se e con-servar alta sua bandeira, ainda que isso possa iso-lá-lo e restringi-lo ao seu próprio círculo. Mas estaespecificidade de seu caráter e de sua missão nãoexclui um maior enraizamento de sua ação nasfraturas da sociedade que morre, e não nas cons-truções apriorísticas dos arquitetos do futuro.Semelhante às investigações científicas, a hipótesepode iluminar o caminho da indagação, mas estaluz se apaga quando resulta falsa. O anarquismodeve conservar aquele conjunto de princípios ge-rais que constituem a base de seu pensamento e o

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alimento passional de sua ação, mas deve saberafrontar o complicado mecanismo da sociedadeatual sem óculos doutrinais e sem excessivos ape-gos à integridade de sua fé. [...]

Chegou a hora de acabar com os farmacêu-ticos das formulinhas complicadas que não enxer-gam além de seu nariz; chegou a hora de acabarcom os charlatões que embriagam o público combelas frases altissonantes; chegou a hora de acabarcom os simplórios que têm três ou quatro idéiascravadas na cabeça e exercem como senhores dofogo sagrado do ideal, distribuindo excomunhões. [...]

O que tenha um pingo de inteligência e deboa vontade que se esforce com seu próprio pen-samento, que trate de ler na realidade algo alémdo que lê nos livros e periódicos. Estudar osproblemas de hoje significa erradicar as idéias nãopensadas, significa ampliar a esfera da própria in-fluência como propagandista, significa dar umpasso adiante, inclusive um bom salto de lon-gitude a nosso movimento.

É preciso buscar as soluções enfrentando osproblemas. É preciso que adotemos novos há-bitos mentais. Da mesma forma que o natural-ismo superou a escolástica medieval lendo o gran-de livro da natureza em vez dos textos aristoté-licos, o anarquismo superará o pedante socialis-mo científico, o comunismo doutrinário fechadoem suas casinhas apriorísticas e a todas as demaisideologias cristalizadas.

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO132

Entendo por anarquismo crítico um anarquis-mo que, sem ser cético, não se contente com asverdades adquiridas, com as fórmulas simplistas;um anarquismo idealista e ao mesmo tempo rea-lista; um anarquismo, em definitivo, que enxertenovas verdades no tronco de suas verdades fun-damentais, que saiba podar os ramos velhos.

Não um trabalho de simples demolição, deniilismo hipercrítico, mas de uma renovação queenriqueça o patrimônio original e lhe agregue for-ças e belezas novas. Temos de realizar este trabalhoagora, porque amanhã deveremos reemprender aluta, que não se encaixa bem com o pensamento,especialmente para nós que nunca podemos nosretirar das trincheiras quando recrudesce a batalha.”

Camillo BerneriPagine Libertarie, Milão,

20 de novembro de 19224

As palavras de Berneri ferem-nos por serem cortantes,mas, antes de tudo, por serem dolorosamente atuais.Ainda prima, na discussão, a vontade de derrotar o adver-sário mais do que a de avançar e aprender. Ainda prima oespírito de seita sobre o espírito de partido. Isto faz comque, com a menor diferença, os grupos se dividam. Não éque sejamos partidários da unidade a todo custo; a uni-dade somente tem sentido quando há práticas e idéiasfundamentais que são convergentes (não idênticas, já queas diferenças são fundamentais para o desenvolvimento deuma linha política). Mas somos inflamados adversáriosdo sectarismo e da divisão por questões insignificantes.

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A IMPORTÂNCIA DA CRÍTICA... 133

O DESENVOLVIMENTO DOPENSAMENTO CRÍTICO

O artigo citado de Berneri é importantíssimo, nãosomente pela crítica que faz ao movimento, mas por dar adevida importância ao desenvolvimento do pensamentocrítico em nosso movimento. Acredito que nosso mo-vimento ainda não se dá conta da importância do desen-volvimento da crítica e da discussão em seu seio.

Há uma relação direta entre o nível de discussão emum movimento político e seu dinamismo. E somente ummovimento dinâmico toma a iniciativa política e sabeincidir sobre a realidade. Este fator, o dinamismo, deixabastante a desejar nos meios anarquistas. Estamos muitoacostumados a tratar a divergência de opiniões de duasmaneiras aparentemente opostas: ou nos insultamos,acusando aqueles que pensam diferente de não seremverdadeiros anarquistas, ou ignoramos as diferenças dizen-do que no anarquismo vale tudo (até a idéia mais absur-da). O resultado destes dois mecanismos para enfrentar odissenso é idêntico e, todavia, no final das contas não hádiscussão. Ou nos fechamos em guetos diferentes, ouarmamos um único grande circo onde todos coexistem,mas onde ninguém toca nos temas divergentes para nãoferir as “sensibilidades”.

Ainda que superficialmente pareçam extremos dia-metralmente opostos, o “vale tudo” no anarquismo e osectarismo dogmático são idênticos pelo fato de queambos impedem a discussão e o avanço das idéias.

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO134

OS DEBATES COM OUTROS SETORESDA ESQUERDA E COM O POVO

Acredito que, se não soubermos discutir entre nós,sequer conseguiremos então discutir com outros setoresdo mundo popular e, como resultado, trocaremos a lutapolítica (a troca e o questionamento de idéias e práticas)por uma incansável e insuportável pregação entre os con-vencidos. É muito sintomático que a grande maioria daspublicações de “divulgação” anarquista pareça estar diri-gida mais a outros anarquistas do que àqueles aos quaisdeveríamos divulgar nossas idéias: a essa ampla massa depessoas que não pensam nem atuam como anarquistas.5

Da mesma forma que, entre nós, as diferenças de opi-nião ou de prática são sinônimo de anátema, para o res-tante do movimento revolucionário e da esquerda, ouinclusive do povo, mostramos o mesmo rechaço. “Refor-mistas”, “fascistas vermelhos”, “autoritários” são termosutilizados em abundância que significam pouco ou nadaa essa altura, precisamente por estarem tão desgastados.Termos que, em vez de nos ajudar a esclarecer as diver-gências e fazer pontes na discussão, nos isolam sem nosajudar a persuadir nem a esclarecer os pontos reais emdiscussão. Todos os problemas de métodos e concepções,com o resto da esquerda, são reduzidos à simples fórmula:“vocês querem o poder e nós não”. Sempre pensei noabsurdo desta afirmação: qualquer um que esteja cegopela obsessão de ter poder, faria isso muito melhor alian-do-se aos partidos do governo ou da burguesia, em vez demilitar em um partido comunista ou de inspiração socia-

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lista, o que indubitavelmente pode trazer-lhe mais proble-mas do que benefícios materiais, em termos imediatos.Outra coisa é o que acontece quando estes partidos che-gam a ter algum poder em suas mãos, ou quando con-seguem desenvolver uma burocracia com alguns membrosdentro de algum movimento influente. Mas insisto, istoé um problema de métodos, mais que de intenções ori-ginais sinistras.

Isto não exclui que na esquerda, como em qualquerparte, não haja gente desonesta, gente oportunista, gentecom espírito pequeno e incapaz de entender a realidadepara além de suas limitadas lentes ideológicas, ou, piorainda, gente que coloca os interesses de sua seita à frentedos interesses do conjunto do povo. Porém, há umaenorme diferença entre aceitar isso e supor que somos oúnico setor revolucionário bem intencionado, puro ouabnegado.

INFLUÊNCIAS BURGUESAS NO ANARQUISMO

Luigi Fabbri, em seu fundamental artigo “InfluênciasBurguesas no Anarquismo”, já em 1918 queixava-se doproblema da linguagem utilizada entre os anarquistas paradiscutir, mas também dos anarquistas para com outrossetores populares ou da esquerda. Sua queixa é particular-mente relevante em tudo o que tratei de expor. Nos dizFabbri:

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO136

“O objetivo da propaganda e da polêmica éconvencer e persuadir. No entanto, não se con-vence e não se persuade com violência na lingua-gem, com insultos e ataques, mas com cortesia eeducação.”6

E continua:

“[...] Mas a violência da linguagem na polê-mica e na propaganda, a violência verbal e escrita,que algumas vezes resultou tristemente em atos deviolência material contra as pessoas, a violênciaque, sobretudo, deploro, é a que se emprega con-tra outros partidos progressistas, mais ou menosrevolucionários – já que isto pouco importa –que são compostos de oprimidos e exploradoscomo nós, de gente que como nós está animadapelo desejo de transformar a situação política esocial atual em algo melhor. Aqueles partidos queaspiram chegar ao poder, quando chegarem, semsombra de dúvidas serão inimigos dos anarquis-tas, mas como isto está um tanto distante, comosua intenção pode ser boa e muitos males que elespretendem eliminar nós também queremos, e co-mo temos muitos inimigos em comum e juntosteremos, sem dúvida, de lutar em mais de umabatalha, é inútil, quando não prejudicial, tratá-losviolentamente, visto que agora o que nos divide éuma diferença de opinião, e tratar violentamente

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A IMPORTÂNCIA DA CRÍTICA... 137

alguém porque não pensa ou trabalha como nós éuma prepotência, é um ato anti-social.

A propaganda e a polêmica que fazemos entreos elementos dos demais partidos deveriam, paraatraí-los, persuadi-los do mérito de nosso racio-cínio. O que já dissemos em linhas gerais, ou seja,que se persuade mal a quem se trata mal, é bemaplicável a elementos assimiláveis: operários, jo-vens, mentes já despertas, homens que já estão nocaminho da verdade. A violência os detém em vezde impulsioná-los neste caminho. Alguns de seuslíderes podem trabalhar com má-fé, mas diga-me:estamos seguros de que entre nós não há tambémpessoas que trabalham da mesma maneira? De-vemos atacar a todos eles, generalizando, quandoo que queremos é atacar aqueles que realmentepossuem má-fé, e não todos no partido? Certa-mente, muitas de suas doutrinas são errôneas,mas para demonstrar seu erro não são necessáriosos insultos; alguns de seus métodos são nocivos àcausa revolucionária, mas trabalhando diferente-mente, de nossa própria maneira, e utilizando oexemplo e a demonstração razoada, demonstra-remos que nossos métodos são melhores.

Todas as considerações deste trabalho foram-me sugeridas pela constatação de um fenômenoque observei em nosso campo. Acostumamo-nostanto a sempre gritar que fomos perdendo gradu-almente o valor das palavras e de sua relatividade.

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Os mesmos adjetivos depreciativos nos servem, damesma maneira, para atacar diretamente o padre,o monarquista, o republicano, o socialista e até oanarquista que não pensa como nós. E isso é umdefeito primordial. Se surge alguma diferença, issoacontece em benefício de nossos piores inimigos.Pode-se dizer que os anarquistas e os socialistasnunca insultaram os padres e os monarquistas co-mo os republicanos, e que os anarquistas nuncainsultaram os burgueses como o fizeram com ossocialistas. Mas, todavia, direi: especialmente nosúltimos tempos, houve anarquistas que trataramoutros anarquistas que não pensavam exatamentecomo eles como jamais trataram os clericais, osexploradores e os policiais juntos.

[...] Eu acredito que seria melhor que pro-curássemos nos conhecer e, sobretudo, trabalharsem nunca perder de vista que temos o inimigoem frente de nós, o verdadeiro inimigo que ob-serva o momento de nossa fraqueza para nos ata-car. Nunca – em meio aos partidos para os quais aação é a única razão de existência – se poderiadizer com mais razão que o ócio é o pior dosvícios e o primeiro destes é a discórdia.”7

Não se pode ser mais perfeito e certeiro do que estaopinião. E, novamente, isso nos demonstra que em 90anos aprendemos extraordinariamente pouco e que aindanos falta muito para avançar na construção de um espaçosaudável de debates, em que possamos aprender e avançar.

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A RELEVÂNCIA DA PRÁTICA

Para nós, a crítica e o debate devem ser ferramentaspara a construção, antes de tudo. Não nos interessa deba-ter para demonstrar “quem tem razão”, nem debater “poresporte”, senão para tratar de buscar o melhor caminhopara enfrentar os problemas que af ligem nosso movi-mento e dentro de um espírito verdadeiramente cons-trutivo. Certamente, tal forma de discussão deve ter porponto de partida a prática, pois acreditamos que a discus-são deve estar firmemente ancorada na realidade paraevitar assim as distorções próprias do desconhecimentoprático ou do conseguinte idealismo. Além disso, so-mente a discussão que se fundamenta em experiênciasequivalentes pode gerar uma linguagem comum e produ-tiva. Pois se criticamos uma organização por sua maneirade fazer as coisas, certamente devemos ser capazes de mos-trar que há outra maneira de realizá-las ou que ao menospodemos sugerir alternativas. Ainda que seja necessário terem mente, a todo momento, que em raras vezes umaposição é completamente acertada e que, afinal de contas,é a própria prática, o desenvolvimento da realidade, quese dedica a separar as posições mais corretas das menoscorretas.

Então, outro ponto importante é que se a críticarevolucionária não estiver acompanhada de uma prática,ela torna-se irrelevante. Pois, que sentido tem uma críticaque se entende revolucionária se ela não está disposta aconverter-se em realidade, na ação imprescindível para quehaja um efetivo movimento revolucionário e não um

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puro diletantismo intelectual? O revolucionário, diferentedo politiqueiro, não fala da platéia, da condição de espec-tador: o revolucionário deve falar sempre a partir da açãoe do esforço, por humilde que isso possa parecer, deconverter-se em uma alternativa para o presente. Tendo aser bem mais cético com os hipercríticos e com os ultra-revolucionários que nunca são vistos em uma experiênciaconcreta e que nunca sujaram as mãos. Esta é uma visãoconstrutiva da crítica: uma que seja forjada no calor daconstrução concreta e não do mero ânimo de destruir oesforço alheio.

A discussão deve, além disso, ser posta a serviço daprática, pois o dinamismo que ela gera deve servir paraenriquecer nossas experiências. E vice-versa, a prática logoentrega novos elementos para poder avançar na teoria, ecomo dizia Berneri, para um anarquismo que saiba podaros ramos velhos, que saiba inserir novas verdades em suasverdades fundamentais e que saiba renovar-se, pois o imo-bilismo intelectual é o principal fator de nossa incapa-cidade de compreender a complexidade dos fenômenosde um mundo que esta em permanente transformação.

Porém, a crítica não tem somente a função de nosajudar a compreender melhor nossa realidade e a desen-volver conceitos, ensinamentos e propostas mais acertadasàs necessidades de nossa época. A discussão também éimportante para avançarmos e nos desfazermos das idéiaserrôneas, mal-formuladas ou insuficientes. Como medisse uma vez um companheiro: “com nossa discussão,você não conseguiu me convencer, mas pelo menos elaserviu para eu descobrir minhas próprias fraquezas e refor-

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çar minhas idéias”. Isso não é cair em um diálogo desurdos, na medida em que respondemos e escutamos osargumentos do outro. Mas é uma ajuda crucial para avan-çar, pois dá solidez às idéias que aparecem melhor argu-mentadas, mas convincentes e mais acabadas. A cada vezque nos desfazemos das idéias errôneas ou disparatadas.

Para finalizar, a crítica e o debate são importantíssimospara fazer pontes com outras correntes. Com seu desen-volvimento podemos nos aproximar daqueles que se a-traíram por outras correntes, podemos ganhar para asnossas posições outras organizações ou podemos apren-der com elas e nos dar conta que, em algum aspecto deter-minado de nossa política, estamos equivocados. Somenteonde se estabelece esta ponte de discussão saudável, pode-se acontecer uma prática livre de sectarismo que, respei-tando as diferenças, seja capaz de envidar esforços ondehouver unidade de critérios.

EM CONCLUSÃO

Estas palavras não foram escritas com o objetivo dedenunciar ou acusar tal ou qual companheiro de sectário.Nem acredito que haja corrente livre de vícios, que seconverteram em costumes, em nossos círculos. Muitasvezes é tão culpado quem provoca como quem se deixaprovocar e segue a corrente. Todos sabemos que há “ma-çons em sentido intelectual” no movimento; todos sabe-mos que há devotos do “Santo Ofício”; mas não nosimporta o que eles pensam. Não lhes damos bola, como

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se diz, pois sabemos que nada do que é fundamental parase chegar a uma sociedade livre se consegue desta maneira.Mas o que é de se preocupar, é que eles consigam arrastaroutros companheiros ou organizações que são valiosospara o nosso campo. E o que é pior: que a cultura dedebate tenha seu referente comum traçado por este espí-rito mesquinho. Finalmente, o que é ainda pior: que oscompanheiros que, a partir de distintas vertentes ou pers-pectivas, estejam presentes na luta e na construção nãotenham ainda aprendido a ter estas dinâmicas de inter-câmbio saudável. Isto é o que verdadeiramente preocupa.

A esquerda tradicional tem sido sectária, dogmática etem freqüentemente ignorado a realidade ao seu redor.Não acredito que os anarquistas, no geral, tenham sidomuito melhores. É hora de dar o exemplo. Devemosapontar para a construção de espaços de discussão e mu-dar os hábitos maléficos em nosso movimento, que nãocontribuem com o debate e que mais entorpecem o de-senvolvimento do necessário espírito crítico que o movi-mento revolucionário tanto necessita para fazer frente àsdifíceis tarefas de regeneração social que temos adiante.

12 de Novembro de 2007

Notas:

1. Em “‘Anarchisme & Syndicalisme’ Le Congrès Anar-chiste International d’Amsterdam (1907)”, ed. Nautilus-Monde Libertaire, 1997, p. 161.

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2. Esta debilidade pela denúncia tem atingido, lamenta-velmente, extremos mórbidos nos meios argentinos eespanhóis.

3. Luigi Fabbri, o famoso anarquista italiano, disse que aprimeira vez que leu os periódicos anarquistas, estes nãoo persuadiram e que, se fosse pela propaganda escrita dosanarquistas, ele jamais haveria se aproximado do movi-mento. Lamentavelmente, muito de nossa imprensa hoje,em sua virulência contra o restante do anarquismo e daesquerda, cumpre um papel mais de contrapropagandado que de propaganda propriamente dita.

4. Em “Camillo Berneri: Humanismo y Anarquismo”,ed. por Ernest Cañada, ed. Los libros de la Catarata,1998, pp. 43-46.

5. Obviamente, há artigos (como este próprio que euescrevo) ou publicações que estão dirigidas principal-mente ao público libertário, sendo esta sua verdadeiraaudiência. Certamente não me refiro neste artigo a estetipo de publicações, mas àquelas que explicitamentedizem ser de “propaganda”, de “difusão” e de “divulgação”.

6. Luigi Fabbri, “Influencias Burgesas en el Anarquismo”,ed. Solidaridad Obrera (Paris), 1959, p. 53.

7. Ibid. pp. 56-59.

* Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves.* Revisão/edição: Felipe Corrêa.

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Problemas e Possibilidades do Anarquismo

José Antonio Gutiérrez Danton

José Antonio G

utiérrez Danton

Creio que o movimento anarquista está em uma encruzilhada: ou dá o salto qualitativo e decide converter-se em uma contribuição para os movimentos populares, cumprin-do dessa maneira seu objetivo como movi-mento revolucionário, ou, pelo contrário, se conforma com a posição de crítico eterno situado além do bem e do mal (ou seja, além da prática): umbiguista, isolado, preocupado somente em manter a pureza dos quatro dogmas. [...] Talvez não estejamos de acordo em tudo o que está dito aqui, mas talvez es-tejamos de acordo no mais importante, que é como fazer do anarquismo revolucionário algo relevante para esses milhões de pes-soas que buscam uma sociedade diferente, mais justa e mais humana.

José Antonio Gutiérrez Danton

A publicação da presente compilação de artigos do autor chileno José Antonio Gutiérrez Danton representa um considerável acúmulo e o amadureci-mento no debate do anar-quismo de orientação espe-cifista latino-americano.

Esses artigos foram pu- blicados, originalmente, na revista chilena Hombre y Sociedad e no site Anarkis-mo.net, que vem cumprindo um papel fundamental, ao reunir diversos indivíduos e organizações anarquistas de todo o mundo, em torno de uma perspectiva de orga-nização específica anarquis-ta e de trabalho social com os movimentos populares, a partir das linhas platafor-mista e especifista.

Publicados originalmente em castelhano, esses textos começaram a chegar a nos-sas mãos e a circular cada vez mais entre a militância anarquista brasileira, ga- nhando espaço na medida em que foram sendo tradu-zidos. Estivemos bastante envolvidos nesse processo de tradução e de difusão dos textos de José Antonio, e nos orgulha muito que este livro esteja agora sendo publicado.

Os artigos aqui reuni-dos são alguns dos muitos trabalhos que este estimado companheiro, que du-rante as relações tornou-se nosso amigo, tem se dedi-cado a produzir, no intuito de gerar um acúmulo do debate teórico, da análise de cenários conjunturais, da reflexão crítica de proces-sos históricos em que nossa corrente teve ou deixou de ter participação e, sobretudo, da reflexão e da proposição para uma consistente e signifi-cativa intervenção no atual cenário, que não se encerre em declarações e contempla-ções abstratas de princípios, mas que seja capaz de forjar em meio ao povo um campo libertário, criando poder popular em meio à luta de classes.

Essa preocupação pode ser detectada em todos os textos aqui publicados. Cada um deles destaca uma questão específica, que sempre nos vem à tona quando estamos envolvidos pela turbulenta re-alidade das lutas cotidianas.

Daniel Augusto A. Alves e Felipe Corrêa

Problemas e Possibilidades do A

narquismo

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