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RIDA – Revista de Interação e Debate Acadêmico. Ano 1, n. 04, p. 01-16, Outubro 2009 1 A questão agrária, as Ligas Camponesas e o Golpe de 64 (1955-1964) i Ueber José de Oliveira ii INTRODUÇÃO O presente trabalho se insere nas preocupações de pensar o Brasil e sua ordem agrária, num momento de profundas alterações na relação entre Estado e sociedade, com profundas implicações para o campo. Quanto ao objeto-problema, pretende-se resgatar um dos mais importantes momentos de debates acerca desta questão agrária, considerado também um momento singular do movimento de luta pela terra no Brasil: a trajetória das Ligas Camponesas. Parte-se da premissa de que representavam um movimento mais amplo das classes pobres pela conquista da terra, ante o posicionamento conservador das classes ricas pela detenção continuada da mesma. Quanto ao recorte cronológico, o texto trata do momento em que se dá a fundação oficial da Liga de Pernambuco, no ano de 1955, passando pelo momento em que as Ligas Camponesas realizaram suas primeiras grandes ocupações, fazendo repercutir suas propostas para além das fronteiras da região nordeste brasileiro, ganhando projeção nacional com exigência de que a reforma agrária fosse feita de forma pacífica, sem descartar, no entanto, a possibilidade do uso da força para que fosse feita, até o golpe militar de 1964, marco fundamental da movimentação do Estado autoritário no sentido de reprimi-las. Para tanto, o texto está dividido em quatro partes, além desta introdução. Na primeira, assinalam-se os marcos teóricos da reflexão. Em seguida, na segunda parte, faz-se uma sumária retrospectiva histórica da estrutura agrária brasileira, desde o início do seu processo de colonização. No terceiro item, as preocupações estarão voltadas para uma breve visitação à história dos movimentos sociais no campo, no decorrer da história do Brasil. Na quarta parte do trabalho, analisam-se o surgimento das Ligas camponesas, em meados de década de 1950, as tensões sociais e políticas geradas por tal processo e o acirramento dos conflitos que irão culminar com o golpe empresarial-militar de 1964. E por fim, são tecidos alguns comentários em termos de considerações finais, seguidos das referências bibliográficas. BALIZAMENTO TEÓRICO Ao se propor a elaboração desse artigo, surge a preocupação imediata de elencar um conjunto de referências teóricas identificadas com o cerne da questão colocada. Nesse sentido, não se pode deixar de mencionar um dos pensadores que mais se debruçou

A Questão Agraria as Ligas Camponesas e o Golpe de 64

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    A questo agrria, as Ligas Camponesas e o Golpe de 64 (1955-1964) i

    Ueber Jos de Oliveiraii

    INTRODUO O presente trabalho se insere nas preocupaes de pensar o Brasil e sua ordem agrria, num momento de profundas alteraes na relao entre Estado e sociedade, com profundas implicaes para o campo.

    Quanto ao objeto-problema, pretende-se resgatar um dos mais importantes momentos de debates acerca desta questo agrria, considerado tambm um momento singular do movimento de luta pela terra no Brasil: a trajetria das Ligas Camponesas. Parte-se da premissa de que representavam um movimento mais amplo das classes pobres pela conquista da terra, ante o posicionamento conservador das classes ricas pela deteno continuada da mesma.

    Quanto ao recorte cronolgico, o texto trata do momento em que se d a fundao oficial da Liga de Pernambuco, no ano de 1955, passando pelo momento em que as Ligas Camponesas realizaram suas primeiras grandes ocupaes, fazendo repercutir suas propostas para alm das fronteiras da regio nordeste brasileiro, ganhando projeo nacional com exigncia de que a reforma agrria fosse feita de forma pacfica, sem descartar, no entanto, a possibilidade do uso da fora para que fosse feita, at o golpe militar de 1964, marco fundamental da movimentao do Estado autoritrio no sentido de reprimi-las.

    Para tanto, o texto est dividido em quatro partes, alm desta introduo. Na primeira, assinalam-se os marcos tericos da reflexo. Em seguida, na segunda parte, faz-se uma sumria retrospectiva histrica da estrutura agrria brasileira, desde o incio do seu processo de colonizao. No terceiro item, as preocupaes estaro voltadas para uma breve visitao histria dos movimentos sociais no campo, no decorrer da histria do Brasil. Na quarta parte do trabalho, analisam-se o surgimento das Ligas camponesas, em meados de dcada de 1950, as tenses sociais e polticas geradas por tal processo e o acirramento dos conflitos que iro culminar com o golpe empresarial-militar de 1964. E por fim, so tecidos alguns comentrios em termos de consideraes finais, seguidos das referncias bibliogrficas.

    BALIZAMENTO TERICO Ao se propor a elaborao desse artigo, surge a preocupao imediata de elencar um conjunto de referncias tericas identificadas com o cerne da questo colocada. Nesse sentido, no se pode deixar de mencionar um dos pensadores que mais se debruou

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    sobre os temas relacionados questo agrria. Refiro-me ao terico alemo Karl Kautsky (1986). Os limites dessas linhas no permitem aprofundar suas idias. Para o presente ensaio, besta assinanalar as idias mais gerais de Kautzky, para o qual a expanso capitalista, que beneficia sobretudo as classes dominantes, provoca uma crescente poltica de espoliao das massas trabalhadoras:

    [...] O modo de produo capitalista [...] passou a determinar universalmente as condies de vida da populao rural. Esse processo no chegou ao fim; ele prossegue e atinge progressivamente outras regies e reas cada vez mais extensas da produo agrria de subsistncia, as quais converte em reas da produo mercantil. (KAUTSKY,1986, 22).

    Diante dessas consideraes, parte-se do pressuposto de que a conseqncia mais imediata desse processo, j analisando a realidade brasileira das dcadas de 1950 e 1960, foi a reao por parte dos trabalhadores espoliados da sua tradicional agricultura familiar, os quais, como forma de reao a tal processo, se organizaram nas Ligas Camponesas.

    Esse processo se deu porque, no caso da realidade estrutural agrria brasileira, observa-se alguns agravantes, tal como sugere a Professora Vnia Valado:

    [...] caracterizado pela propriedade privada de grandes extenses de terras agricultveis por um pequeno grupo que a utiliza como forma de demarcar domnio econmico e poltico. Essas terras, antes de serem ocupadas produtivamente, so mantidas paradas, como reserva de valor. Por outro lado a modernizao da agricultura beneficiou essencialmente a agricultura de exportao, acentuou a heterogeneidade entre produtores agrcolas no que diz respeito ao acesso tecnologia, ao credito e a subsdios oficiais. Da mesma forma, os complexos agroindustriais monopolizam menos o plantio e mais o controle do processamento industrial, da circulao e da comercializao de determinados produtos com alto valor comercial, o que implica ter o controle sobre o valor agregado dos produtos e sobre a prpria definio da remunerao do produtor, por um lado, e sobre os preos que sero pagos pelo consumidor, por outro. (VALADAO, 1999, 25).

    A isso, somam-se os milhares de pequenos agricultores arruinados, incapazes de acompanhar essa evoluo tecnolgica no campo, para dar lugar a outra ocupao produtiva ou empurrados para reas distantes ou para as grandes cidades. Ao mesmo tempo, a crescente mecanizao das lavouras e a expanso do assalariamento, reduziram as oportunidades de emprego e as possibilidades de ocupao estvel da mo de obra, fazendo com que expressivo contingente populacional perdesse espao no processo produtivo agrcola devido perda ou expropriao de seu meio de trabalho, a terra.

    No caso do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, momento marcante aquele que se seguiu concluso da Segunda Grande Guerra (1939-1945) e tal como sugere ANDRADE (1986),

    Essa modernizao teve serias repercusses no setor agrcola, uma vez que provocou a valorizao das terras, quer por torn-las mais acessveis tanto para o mercado de matrias primas quanto ao mercado consumidor, quer porque estimulando o crescimento da capacidade de produo das indstrias de beneficiamento de

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    produtos agrcolas, provocou a expanso da atividade agrcola, aguando a sede de terras por parte das empresas (ANDRADE, 1986, 20).

    Assim elenca-se a hiptese que o texto pretende desenvolver: as Ligas Camponesas surgem em meados da dcada de 1950 para fazer frente a chamada modernizao autoritria da agricultura, e a agitao social decorrente da mobilizao das Ligas, trouxe repercusses fortssimas na esfera poltica, as quais foram canalizadas no golpe militar de 1 de abril de 1964. Em outras palavras, numa conjuntura de expanso das fronteiras agrcolas da cana de acar, ocorreram os conflitos e os movimentos mais expressivos de luta pela terra, uma vez que, para penetrar nas novas reas de cultivo, a cana encontrava como barreira a agricultura familiar de subsistncia praticada por posseiros, moradores e arrendatrios que, ao sentirem-se ameaados de expulso do campo, bem como de suas prticas agrcolas tradicionais, se organizaram em um expressivo movimento social: as Ligas Camponesas.

    ASPECTOS DA ESTRUTURA AGRRIA BRASILEIRA: UMA RPIDA RETROSPECTIVA

    Ao se tentar definir o modelo poltico brasileiro, por seus sucessivos reajustes na histria, seria possvel afirmar que uma de suas caractersticas bsicas a de ter secretado uma classe poltica simultaneamente vinculada aos interesses agrrios e ao desempenho das funes burocrticas do Estado. Uma das conseqncias de tal simbiose, foi a garantia da manuteno do monoplio da terra, acompanhada de um rgido enquadramento poltico das populaes rurais que, a despeito de expressividade numrica, no conseguiram firmar-se enquanto classe, isto , como campesinato autnomo e estvel, tendo sido, pelo contrrio, drasticamente alheados do jogo do poder (MARANHAO, 2004; 123).

    Segundo Alberto Passos Guimares (1981), no clssico Quatro Sculos de Latifndio, [...] embora se repetissem [...] os atos dbios e incoerentes que formaram o lastro jurdico de todo o perodo colonial, viria a surgir uma tomada de posio importante, com o alvar de 1o de abril de 1680. Muito mais incisivo e consistente do que os anteriores, esse documento adquiriu extraordinria significao porque nele foi reconhecido, pela primeira vez, ao indgena, o direito propriedade da terra, ainda que sejam dadas em sesmarias a pessoas particulares [...] (GUIMARAES, 1977; 16)

    O latifndio no Brasil nasce, portanto, sob o signo da violncia contra os indgenas, cujo direito congnito propriedade nunca foi respeitado e muito menos exercido, apesar do pblico reconhecimento da Coroa Portuguesa de que eles eram os legtimos donos da terra, e desse estigma de ilegitimidade, que o seu pecado original, ele jamais se redimir (GUIMARAES, 1977: 32)

    Assim, as instituies econmicas, sociais e polticas que moldariam, em grande medida, a estrutura fundiria do Brasil, foram forjadas no perodo colonial, com a chegada dos portugueses, passando pelo processo de independncia de 1822 e alcanando os dias atuais, isso tudo ocorrendo sem nenhuma grande modificao da ordem agrria.

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    No Brasil Colnia, as estruturas de produo caracterizavam-se por uma rgida especializao e monocultura voltada para o mercado externo, concentrando-se, inicialmente, na regio costeira nordestina, em terras com boa aptido para a produo do acar, produto muito valorizado no mercado europeu. Caio Prado Junior nos esclarece um pouco mais sobre essas estruturas:

    [...] O plano portugus consistia no seguinte: dividiu-se a costa brasileira (...) em doze setores lineares com extenses que variavam entre 30 e 100 lguas. Estes setores chamar-se-o capitanias, e sero doadas a titulares que gozaro de grandes regalias e poderes soberanos; caber-lhe- nomear autoridades administrativas e juizes em seus respectivos territrios [...] (PRADO Jr., 1994, 32)

    s margens dessa economia voltada para o mercado externo, surgiriam outras atividades econmicas, tais como a pecuria, a produo do aguardente, do tabaco, alm de vrias outras atividades que poderiam ser inseridas naquilo que se convencionou chamar de economia de subsistncia, que em decorrncia do modelo de empreendimeno forjado na realidade brasileira, passaram a ser fundamental, ante s necessidades do abastecimento com alimentao e animais de carga.

    Desde o incio, a propriedade da terra foi privilgio de poucos. As sesmarias seriam doadas pela coroa sobretudo s pessoas com posses, privilegiando queles que dispunham de escravos e gado, uma vez que se partia do pressuposto de que somente estes seriam capazes de desenvolver o empreendimento agrcola. Contemplados seriam tambm aqueles que haviam prestado servios para a coroa, distinguidos pelos seus feitos militares.

    Nesse sentido, o solo foi, desde o incio, monopolizado e controlado por sditos portugueses previamente escolhidos atravs de um sistema especfico de doaes, conforme assinala Guimares (1981):

    [...] Estruturavam-se, assim, tanto a propriedade como o Estado, sob os mesmos moldes e princpios que regiam os domnios feudais: grandes extenses territoriais entregues senhores dotados de poderes absolutos sobre as pessoas e as coisas [...] (GUIMARAES, 1981, 46).

    Mantido inclume at a independncia, este sistema constituiria o fundamento sobre o qual economia e a sociedade rural brasileira se constituiriam, isto , baseada na grande propriedade monocultora, voltada para o mercado externo.

    O carter da formao fundiria no Brasil se caracteriza, nesse sentido, desde o perodo colonial, por uma forte ligao com o poder pessoal e uma ausncia quase completa do poder do Estado, a ponto de a sociedade reconhecer o poder pessoal como representante do poder do Estado (JANOTTI, 1992).

    Diante da excluso total da terra e da ausncia de meios para a obteno de algum terreno que possibilitasse a edificao de um estabelecimento permanente, o campons livre ficava vagando de lugar em lugar, segundo o favor e o capricho dos proprietrios de terras.

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    Durante quase quatrocentos anos o latifndio colonial e o sistema que permitia a sua existncia, lanaram de todos os subterfgios para impedir que as massas oprimidas tivessem acesso a terra. Quando aqui e ali o fizeram, longe do ncleo principal das plantaes e ao seu derredor eram, mais cedo ou mais tarde, expulsas com a dilatao dos grandes cultivos.

    O exemplo mais notvel disso , sem dvida, a Lei de Terras estabelecida em 1850, talhada sob medida pelo figurino dos grandes latifundirios do caf, que visava fundamentalmente trs objetivos:

    1) Proibir as aquisies de terras por outro meio que no a compra (Art. 1o) e, por conseguinte extinguir o regime de posses; 2) Elevar os preos das terras e dificultar sua aquisio (Art. 14 determinava que os lotes deveriam ser vendidos em hasta pblica, com pagamento a vista, fixando preos mnimos considerados superiores aos vigentes no pas); 3) destinar o produto da vendas de terras importao de colonos (imigrante). (GUIMARAES, 1981,134).

    Essa lei extinguiu, definitivamente, o antigo sistema de distribuio de terras - de sesmarias -, e da possesso pura e simplesiii. Sem adentrar nos detalhes analticos da questo, a mesma Lei, tendo sido criada num Brasil j independente, tornou a terra um domnio pblico, patrimnio da nao. Entretanto, sendo o Estado era controlado por uma classe dominanteiv, essa lei naturalmente no se destinava a desenvolver o pas, e sim resguardar os interesses e privilgios de uma minoria . Havia muita terra de domnio pblico, mas o Estado e aqueles que controlam a mquina administrativa no estavam interessados na sua utilizao para o desenvolvimento social e econmico.

    Assim, firma-se a idia de que a Lei de Terras de 1850, em outras palavras, alm de perpetuar, concentrou ainda mais as terras nas mos de poucos beneficiados, pois

    Todos os interessados em novas terras deveriam adquiri-las de forma legal, ou seja, por via da compra (...). A legalizao territorial foi importante sobretudo para os posseiros de maior porte que transitaram dessa condio para o patamar de uma classe social cujo trao distintivo passou a ser a grande propriedade rural. Para eles, a nova legislao significou obter o reconhecimento jurdico de um status social anteriormente adquirido (MOREIRA, 2001, 158).

    A lei colocada nestes termos exclua, portanto, a maioria da populao da posse da terra, que s poderia ser comprada por preo mnimo estipulado, pois geralmente, e nesse ponto que est o grande problema, o valor estipulado para os lotes, era muito maior que o de mercado, favorecendo somente queles que j possuam propriedades, ou seja, os grandes latifundirios, que detinham capital para adquiri-las.

    Alm disso, um dos artigos da Legislao de 1850, destinava-se a estimular a imigrao de europeus, que substitua, naquela conjuntura, a mo de obra escrava. A Lei aparece no mesmo perodo em que lanado o sistema de parceria cujo pioneiro no processo foi Nicolau Vergueiro nos idos de 1847. Diante disso, constata-se que mais uma vez foram excludos os negros, principalmente ex-escravos, alm de brancos e mestios pobres do sistema agrrio. Alm disso, mais uma vez a elite agrria implementa um golpe contra os setores menos favorecidosv.

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    Podemos concluir, nesse sentido e de forma inequvoca, que esta lei foi elaborada para reafirmar a grande propriedade rural no Brasil mantendo, assim, os privilgios de que gozavam seus proprietrios.

    O Brasil entrou no sculo XX com uma economia calcada no modelo agroexportador e sem alterar sua estrutura fundiria. O acesso terra continuou sendo um grande problema para as massas despossudas, uma vez que foram criados, no decorrer do tempo, diversas formas no sentido da manuteno da ordem rural. Com a proclamao da Repblica em 1889 e a promulgao da constituio de 1892, houve a consagrao do princpio federativo, permitindo a descentralizao administrativa e concedendo vrias prerrogativas aos Estados e resguardando a autonomia municipal. Todavia, importante frisar que o princpio federativo no foi exercido na prtica devido poltica das oligarquias que dele se utilizavam de acordo com seus interesses. A interveno federal nos estados foi uma constante na histria republicana, mais comum nos perodos eleitorais em que se decidia a distribuio do poder entre as oligarquias (JANOTTI, 1992, 32).

    Essa ponderao entre a centralizao das decises e os poderes estaduais e municipais, inerente prpria estrutura econmico-social brasileira na Primeira Repblica (1889-1930), firmou-se por um compromisso de poderes cuja base se assentava no Coronelismovi que, segundo FAORO (1975), no um fenmeno novo, mas que toma uma conotao estadualista, mais liberto das peias e das dependncias econmicas do patrimonialismo central do imprio.

    Os primeiros governos da Repblica Velha foram extremamente conturbados, em especial o de Prudente de Morais, o qual enfrentava uma situao interna abalada pela Revoluo Federalista, pelo movimento de Canudos e pela superproduo cafeeira, acompanhada pela queda do produto no mercado internacional. Toda essa situao gerava um aumento substancial da dvida externa e muita insegurana das autoridades brasileiras sobre aquilo que o pas pudesse sofrer no cenrio macroeconmico.

    nesse contexto que o Brasil, representado pelo recm eleito, mas ainda no empossado campos Salles consolida o acordo com o Banco Rothschild denominado Funding Loan que estabelecia, dentre outras coisas, o escalonamento do pagamento da dvida externa brasileira, e de seus juros, a longo prazo. Como garantia, concederia a receita da Alfndega do Rio de Janeiro e, se esta no fosse suficiente, a dos demais portos, ao controle britnico (JANOTTI, 1992: 34).

    Diante da aparente e momentnea resoluo do problema econmico externo, o governo tratou de consolidar a repartio dos poderes na Repblica. Nesse sentido, Campos Salles sacramentou o pacto do poder pela aplicao da poltica dos governadores , uma espcie de toma l, da c entre o governo central e os mandatrios estaduais, que se comprometiam mutuamente visando garantir vitrias nas eleies. A poltica dos governadores tinha como objetivo, portanto, harmonizar os interesses dos estados mais ricos, fortalecer as situaes estaduais e assegurar, nas urnas, resultados eleitorais favorveis (JANOTTI, 1992:36)

    Os coronis, grandes proprietrios de terra, que tinham a tutela eleitoral sobre parcelas da populao em termos locais e regionais (JANOTTI, 1992: 7), tinham a funo de

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    garantir os votos para aqueles candidatos considerados convenientes a cada momento, pois eram eles que possuam foras repressivas privadas, tropas de jagunos ou capangas prontas para sufocar toda e qualquer tentativa de modificao do status quo. Usavam de todos os artifcios como presses, intimidaes junto s urnas, destruio de documentos eleitorais, anulao de urnas que continham votos desfavorveis, entre outras prticas, para garantir a vitria do patro ou do candidato do mesmo.

    Segundo CAMARGO (1997),

    Assim transcorre a primeira fase da jovem Repblica, a do triunfalismo oligrquico, embalado pela aliana do caf com leite, segundo acordo bem traado pelo seu artfice Campos Salles. [...] A Poltica dos Governadores que apressa a integrao dos estados ao Estado, verticaliza tambm as relaes socias: consolida de tal forma a liderana do chefe regional, nos Estados, e do Coronel, nos municpios, atravs das bens montadas mquinas polticas, que praticamente feudalisa o campesinato, tornando-o totalmente dependente de uma poltica de clientela [...]. (CAMARGO, 1997; 131).

    Portanto, como se pode observar, mudam os personagens, mas o cenrio continua o mesmo. Os bares do caf sucederam aos senhores de engenho, os trabalhadores livres aos escravos, mas a populao rural continuou submetida ao poder dos grandes latifundirios, que detm, de maneira ainda mais slida, o controle das terras e do Estado.

    No perodo subseqente - 1930 / 1964 - o que se convencionou chamar genericamente de oligarquia, expressa por sua dupla referencia monoplio da terra e controle do voto, permaneceu imbricada nos centros de poder (CAMARGO, 1997;126).

    Esse o momento em que assume contornos definidos, no Brasil, o fenmeno do populismo (LOPES, 1980; 65) vii, que surge num momento de transio, no mbito do declnio das oligarquias, no qual cessou a existncia de um elemento intermedirio entre povo e governo, passando este a tratar diretamente com aquele (LOPES, 1980; 66). O governo, portanto, nesse perodo se aproximava das massas, fazendo-lhe concesses, como leis trabalhistas e defendendo os interesses nacionais, com o objetivo de us-lo como base de sustentao.

    O Golpe de 64, e esse o nosso objetivo aqui mostrar, foi exatamente para conter o avano desta conjuntura poltica marcada pela aproximao de polticos ou do Estado com as massas, que ameaava, na tica da elite conservadora da sociedade brasileira, quebrar os privilgios tradicionais do capital estrangeiro em nosso pas, em favor do nacionalismo econmico.

    A manuteno da ordem agrria, na Era Vargas e nos demais governos at Juscelino Kubitschek, revelou-se providencial, pois permitiu a formao de um centro estabilizador que possibilitasse a implementao de medidas que, em longo prazo, minariam a hegemonia do setor agrrio. Nesse sentido, a formao do parque industrial brasileiro teve como contrapartida manuteno do monoplio da terra e o controle das populaes rurais (CAMARGO, 1997: 127).

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    UMA BREVE HISTRIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO CAMPO. A histria brasileira registra movimentos marcantes da luta e resistncia camponesa contra os latifndios e as formas de violncia e poder que dele emanam. Foi assim com as revoltas indgenas e os Quilombos, ainda no perodo colonial, com os movimentos de Canudos, do Contestado e do Cangao, na fase da Repblica Velha, com as Ligas Camponesas, nas dcadas de 50 e 60, e mais recentemente com o MST. Todos esses movimentos, que aconteceram em tempos e espaos diferentes, com caractersticas de organizao e formas de representao tambm distintos, mas que representaram o descontentamento campons diante das mazelas existentes no setor rural brasileiro. Tais movimentos mostram, acima de tudo, quo antiga a aspirao dos trabalhadores do campo pela conquista da terra bem como so antigas as modalidades de resistncia ao jugo do latifndio que so criadas em cada contexto histrico. Os cronistas do sculo XVI j afirmavam que os colonos que aqui chegavam montavam engenhos quando tinham posses. Os mais pobres que se estabeleciam em lugares distantes dos engenhos, plantavam mantimentos e criavam animais. Estes dariam origem aos camponeses nordestinos. O nmero deles iria aumentar com o crescimento populacional, aumentando a leva de expropriados pelos grandes senhores: esses grupos eram formados por brancos pobres e por mestio. No inicio do sculo XIX, os expropriados constituam um grupo bastante numeroso, que vivia nas terras marginais dos engenhos e das fazendas, cultivando produtos alimentares para o prprio sustento e pagando ao proprietrio um foro em servios ou em mercadorias produzidas. Muitos cronistas da poca, como Tollenare e Koster, relatam que havia muita hostilidade entre estes excludos e os grandes latifundirios (ANDRADE, 1986: 16).

    Os primeiros movimentos de contestao espoliao no Brasil ocorreram j nos sculos XVI e XVII, a exemplo de diversas lutas indgenas contra a espoliao e expropriao de suas terras. De norte a sul, Potiguares, Tamoios e Guaranis lutaram contra a invaso de seus territrios e contra a escravido. Em meados do sculo XVII, o trabalho indgena perde espao para cativos oriundos da frica e data desse perodo o registro dos primeiros quilombos. O maior deles, Palmares, reuniu em torno de 20 mil pessoas, que viveram neste territrio de resistncia sob a liderana de Zumbi. Diversos outros quilombos se formaram por todo o Brasil e todos eles foram duramente reprimidos e muitos destrudos de forma violenta e com requintes de crueldade.

    Aps a Independncia e abdicao de D. Pedro I, seguiu-se o chamado Perodo Regencial (1831/1840), contexto no qual se verifica o enfraquecimento do poder central. Nesse perodo houve uma srie de revoltas em todo o territrio nacional, com objetivos e motivaes diversas. O processo de independncia do Brasil, realizada por um elemento portugus no foi acompanhado e nem apontava para possveis transformaes da ordem estabelecida, principalmente, para os menos favorecidos.

    Esse descontentamento gerou diversos movimentos populares, entre os quais podemos destacar a Guerras dos Cabanosviii (1832-1835), que dominou grandes reas de florestas de Pernambuco e Alagoas, sendo iniciada sob a chefia de um pequeno proprietrio do Agreste, Antonio Timteo que, aps sua morte, se estendeu sob a liderana de um autntico lder popular, Vicente Ferreira de Paula, um sargento desertor do Exrcito. Desenvolvendo um sistema de guerra de guerrilhas e tendo grande apoio da populao

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    pobre local, resistiu durante vrios anos s investidas da Guarda Nacional, at que, em 1836, diante de um cerco que lhe fora imposto e vendo-se abandonado pelos comandados, fugiu com cerca de 80 escravos para o interior, permanecendo por mais de 20 anos nas matas das cabeceiras do Rio Jacupe (ANDRADE, 1986; 11).

    Outro importante conflito, esse de maior envergadura, pela rea abrangeu, foi a Balaiada (1838-1841), ocorrido no Maranho e no Piau. Esse movimento conquistou, no referido perodo, diversas cidades. Apesar de ser encarado como nico, a Balaiada era formada pela conjuno de trs movimentos: um, liderado pelo vaqueiro Raimundo Gomes, originrio no Piau; outro, pelo Preto Cosme, escravo fugido e chefe de alguns Quilombos; e ainda aquele formado por um arteso no Vale do Itapecuru, Manoel Francisco dos Anjos, o Balaio, cujo nome advinha de sua profisso. O despotismo, a espoliao, as injustias, a expropriao e as iniqidades impostas s massas foram as grandes causadoras dessa revolta, que se estendeu por trs anos e s foi vencida diante da entrega do governo da Provncia do Maranho e do comando das operaes militares ao Gen. Luiz Alves de Lima e Silva, o mesmo que a posteriori fora condecorado com os ttulos de baro e Duque de Caxias, o qual contando com maior apoio logstico e financeiro, conseguiu pacificar a Provncia (JANOTTI,1987: 67).

    Grande importncia tambm teve a Revolta dos Negros mals na Bahia em 24 de janeiro de 1835, que conflagrou a cidade de Salvador por varias horas, provocando numerosas mortes e ferimentos entre as duas partes em conflito. Reprimido o movimento, muitos negros foram mortos e torturados.

    Ainda no perodo regencial, deve-se assinalar aquela agitao ocorrida na Provncia do Gro-Par, entre os anos de 1834-1840. Trata-se da Cabanagem, movimento nitidamente popular, com a participao preponderante e ativa das camadas mais baixas da sociedade, chefiadas por elementos da camada mdia que se caracterizavam pela radicalizao de suas posies (WERNET, 1982).

    Mesmo durante o Segundo Reinado (1840-1889), foram inmeras as revoltas de negros, ndios e brancos pobres em vrios pontos do Brasil e principalmente do nordeste, local onde se verifica altos ndices de excluso da terra e de pobreza. Na prpria Revoluo Praieira (1848/49), verificamos a participao popular, como o Capito Caetano, ex- partcipe da Cabanagem que, acompanhando Pedro Ivo, interiorizou a ao revolucionria. Ainda no Segundo Reinado, no se pode excluir as revoltas eminentemente populares, como a do Ronco da Abelha (1851-1854) e a do Quebra Quilos (1874-1875), que assolaram grandes reas do nordeste, a partir do territrio paraibano (ANDRADE, 1986:13).

    A abolio da escravatura ampliou a massa formada pelos pobres do campo, uma vez que nas terras apropriadas e povoadas do Nordeste, os ex-escravos, por no disporem de reas para onde se transferir, tornaram-se moradores de engenhos e fazendas. (ANDRADE, 1986:16) Por outro lado, a mesma abolio lanou o restante da mo de obra no mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempregados. Alm disso, provocou um grande xodo rural, contribuindo para um crescente processo de favelizao dos Grandes Centros.

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    J no contexto da Repblica Velha verificamos diversas revoltas camponesas e populares, principalmente ligadas ao messianismo e ao banditismo. Esses fenmenos so uma boa amostra do grau de excluso imposta ao homem do campo que, buscando melhor condio de vida, se insere em outras vias mais radicais. Significa, em outras palavras, um grito desesperado de uma parcela da sociedade que se v desprovido de qualquer assistncia do Estado, espoliado da posse da terra e do produto de seu trabalho, sem vislumbrar qualquer possibilidade de mudana, buscando, nesse sentido, um caminho alternativo.

    Os principais movimentos de cunho messinico que eclodem nessa transio entre Imprio e a Repblica foram os de Canudos, com Antnio Conselheiro e os de Juazeiro, com Padre Ccero. Esses msticos refugiam-se na religio e se organizam em comunidades sob a direo de um beato e passam a viver sob a vontade de Deus, em funo da salvao, da morada que tero no paraso, junto ao Pai Celestial. Outros, por sua vez, mais enrgicos quando vtimas de injustias, vingam-se de seus opressores e passam a viver como marginais, como foras-da-lei, roubando, depredando e matando. Entre os Cangaceiros, tornaram-se famosos Antnio Silvino e Virgulino Ferreira, vugo Lampio (este ultimo cognominado o Rei do Cangao, em virtude de sua fama).

    Cangaceiros e fanticos, ambos os movimentos conseqentes do poder econmico e poltico do latifndio, deixaram como maior expresso o trato sempre rude das elites com a questo agrria. Para o governo oligrquico a questo social era caso de polcia, e quem se mobilizasse para resolv-la, era sempre aguardado pela prontido da bota e do porrete, marcas indelveis da crueldade dos donos do poder (FERREIRA, 2003; 154). Tais movimentos foram tratados a trabuco pelos governos estadual e federal e eliminados em nome da ordem estabelecida, ao passo que o causador de tais fenmenos o latifndio continuou e ainda continua ileso.

    Na Era Vargas (1930/1945), alterou-se as bases de mobilizao em torno da questo social por meio da articulao com processo bem sucedido de incorporao, institucionalizao e controle, por parte do Estado, no mbito da relao capital/trabalho. A Consolidao das Leis Trabalhista (CLT) foi responsvel pela difuso da imagem populista do Estado Protetor, que passava a atender uma parcela importante de reivindicaes do movimento operrio, medidas que no so capazes de atingir aos trabalhadores rurais.

    Durante o Perodo Democrtico (1945/1964), que trataremos com mais vagar nas linhas que seguem, observa-se a reorganizao dos movimentos sociais, com base em aes dos trabalhadores vinculados ao movimento operrio, por meio da articulao exercida por suas confederaes e centrais sindicais, das Ligas Camponesas, da ao de estudantes, entre outros. A amplitude da bandeira polticas das Reformas de Base mexeu com todo o pas e a ao intensa dos movimentos sociais, em todas as reas da sociedade, alargou os fundamentos e os contedos do conjunto de demandas que vinham sendo reprimidas desde longa data.

    Ao longo da histria do Brasil verificam-se, portanto, diversas manifestaes, movimentos, revoltas e presses de trabalhadores rurais pelo acesso terra. Entretanto,

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    durante muito tempo a historiografia tradicional, a histria oficial, escrita pelos dominadores procurou mostrar um pas sem lutas, sem contradies, o que inibe, portanto, o real significado e fora dos movimentos sociais de resistncia. Esta mesma historia oficial considera agentes transformadores somente os elementos que esto frente das esferas de deciso, deixando os segmentos populares como meros coadjuvantes ou simplesmente bestializados, reproduzindo aqui a fala de Aristides Lobo, tornando-se essencial ao trabalho do historiador, o resgate desses momentos de mobilizao social e efervescncia poltica.

    MOVIMENTO CAMPONS NOS ANOS 1950 E 1960: AS LIGAS CAMPONESAS, A QUESTO AGRRIA E O GOLPE DE 64. Desde a segunda metade do sculo XIX, quando foi extinto o trfico de escravos, muitas reas de domnio da produo da cana de acar j usavam o trabalho livre como parte de sua mo de obra (ANDRADE, 1986:17). Assim, havia os trabalhadores que, junto com suas famlias, cultivavam pequenas pores de terra e na poca de moagem forneciam dois teros da produo ao proprietrio do engenho, como pagamento. Havia, tambm, os foreiros que pagavam o camboix, que eram dias de trabalho pagos ao grande proprietrio, o qual passou a ser bastante divulgado aps 1950, quando as Ligas Camponesas transformaram-no em smbolo de movimento contrrio dominao injusta. O desenvolvimento dessas formas de relao de trabalho deve-se, em grande medida, a uma sociedade em que os proprietrios rurais possuam reas superiores suas capacidades de produo. Alm disso, no dispunham de valores em espcie para pagar salrios. Com a expanso das usinas de cana a partir do final do sculo XIX e, de modo especial, na segunda metade do sculo XX, amplia-se o trabalho assalariado. Esses trabalhadores, entretanto, no tinham direito a frias, repouso remunerado, dcimo terceiro salrio e salrio mnimox.

    Essa expanso das relaes capitalistas em direo ao campo, materializada na formao e instalao das agroindstrias, em especial da cana, que beneficia, sobretudo, s classes dominantes, provocou uma ainda maior espoliao das massas rurais. Isso porque, as fronteiras agrcolas desta monocultura encontraram pela frente, especialmente no Nordeste, uma ainda forte agricultura do tipo familiar, de camponeses. A expropriao destes trabalhadores estimulou a sua reao com a formao de Ligas Camponesas e Sindicatos rurais.

    neste contexto que um grupo de foreiros do Engenho Galilia, em Vitria de Santo Anto, no Estado de Pernambuco, decide criar, em 1955, a Sociedade Agrcola e Pecuria dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), uma associao de ajuda recproca, cujo propsito era dar suporte aos trabalhadores em momentos de dificuldade (MONTENEGRO, 1993). Esse grupo de trabalhadores, apesar de convidarem o dono do engenho Galilia, o Sr. Oscar Beltro para o cargo de Presidente Honorrio da entidadexi, passou a ser muito perseguido pelas autoridades locais.

    Diante desse incio de conflito, os trabalhadores do Galilia, partem em busca de um advogado ou de um poltico que os defendesse. Depois da especulao de diversos nomes, escolhido Francisco Julio que, alm de suas atividades advocatcias, cumpria,

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    na poca, mandato de deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Julio acaba aceitando e se une aos camponeses e em um curto espao de tempo, o movimento de transforma em uma grande frente pela reforma Agrria. Segundo Montenegro (1993),

    [...] deste encontro fortuito dos trabalhadores com o advogado Francisco Julio, as Ligas Camponesas, criadas pelo partido Comunista desde a dcada de 1940 mas com a atuao pouco expressiva, embora bastante vigiadas pela polcia, ganham uma nova dinmica. Transforma-se, segundo grande parte da imprensa, dos polticos e mesmo da sociedade civil, numa grande ameaa ordem social e, sobretudo a paz agrria dos latifundirios... (MONTENEGRO, 1993).

    No referido perodo (1955/1964), as Ligas Camponesas implementaram uma verdadeira cruzada pela reforma agrria e contra as pssimas condies de vida daqueles excludos da terra. Dentro de pouqussimo tempo desde o seu surgimento oficial, as Ligas foram capazes de ampliar de tal forma o debate sobre a reforma agrria a ponto de levar a demanda mesa dos presidentes da Repblica Jnio Quadros e Joo Goulart, respectivamente, conforme revelam os escritos do Professor Antnio Torres Montenegro (1993):

    O perodo (1955/1964) que compreende a transformao das Ligas Camponesas em um amplo instrumento de organizao e luta dos trabalhadores at o golpe militar, tornou o Nordeste objeto de incontveis reportagens na imprensa nacional e mesmo internacional (MONTENEGRO, 1993; 07).

    Neste mesmo trabalho, este mesmo autor seleciona algumas reportagens acerca do Nordeste, visando apreender a maneira pela qual a imprensa expressou o movimento de luta pela terra. Essas reportagens foram resultantes de visitas de profissionais da imprensa regio: a primeira trata-se do Jornalista Antonio Callado, para um jornal do Rio de Janeiro, Correio da Manh, publicadas entre os dias 10 e 23 de setembro de 1959. A outra reportagem foi realizada pelo jornalista americano Tad Szulc para o jornal da cidade de Nova Iorque, The New York Times, publicada entre os dias de 31 de outubro e 1 de novembro de 1960. Para o presente artigo, basta destacar somente as primeiras. Sobre elas, assim se posiciona o autor:

    Na srie de reportagens que realizou Callado, denuncia a Indstria da seca, ou seja, os mecanismos atravs dos quais os latifundirios transformaram os problemas decorrentes da seca em um grande negcio. Denuncia tambm como os audes construdos com verbas pblicas, para beneficiar toda uma populao rural, acabam atendendo a uns poucos latifundirios. Em seguida, ao visitar Pernambuco, relata a luta dos moradores de Galileia [...] e de como os moradores esto mobilizados na expectativa do desfecho de um pedido de desapropriao [...] (MONTENEGRO, 1993; 06).

    As reportagens de Antonio Callado, publicadas no Correio da Manh, adquiriram uma grande repercusso nacional. Foram transcritas nos anais da Cmara Federal e da Assemblia Legislativa de Pernambuco, como tema de diversos discursos favorveis e desfavorveis. Outros rgos de imprensa tambm se manifestaram sobre as reportagens, alternando-se em elogios ou ataques ao Nordeste descrito por Callado.

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    Dentro de pouco tempo a indstria da seca, a criao da SUDENE e a luta das Ligas Camponesas se transformaram em temas centrais e de grande polarizao no cenrio poltico nacional (MONTENEGRO, 1993;07).

    Pelo grau de importncia dada pela imprensa e por outros setores da sociedade ao movimento do Engenho Galilia, ele acabou se tornando, nos ltimos anos da dcada de 1950, um smbolo de resistncia para uma importante parcela da sociedade. Por outro lado, para uma outra parte de cidados brasileiros, representava o avano do comunismo e a ruptura da pax rural. Aps a criao da SAPPP, em 1954 e sua regulamentao em 1955, nota-se a proliferao de Ligas por todo o pas, gerando uma onda de acusaes e ameaas sempre acusando as Ligas de subverso ordem e desrespeito ao santo e/ou sagrado direito propriedade privada.

    Em novembro de 1959, os moradores de Galilia decidiram fazer uma manifestao de solidariedade ao prefeito de Vitria de Santo Anto, eleito com a ajuda do movimento. Nesse contexto, Callado testemunhou mais uma violncia contra os moradores do Engenho Galilia. O prefeito que a SAPPP ajudara a eleger Jos Ferrer impediu, a cano de fuzil, que os trabalhadores de manifestassem, relatou o jornalista do Correio da Manh. E sentenciou que para solucionar o problema do Engenho Galilia, era imprescindvel promover a desapropriao em favor dos trabalhadores.

    Diante dessas reportagens de Antonio Callado, o proprietrio do engenho reagiu prontamente. Atravs de seu advogado acionou o jornalista e tambm Francisco Julio como incursos na Lei de Segurana Nacional, com o argumento de que estariam incitando os foreiros do Engenho a no cumprirem o mandato de despejo, que havia sido decretado pelo juiz de Vitria de Santo Anto dias antes. A imprensa, ao divulgar amplamente o fato, provocou indignao em parte da Cmara Federal, que assinaram uma moo de apoio a Callado. O tema Ligas Camponesas e, acima de tudo, o debate sobre a reforma agrria deixa de ser regional ou estadual e passa a ser nacional (MONTENEGRO, 1993; 09).

    No mesmo ano, em 1959, tomou posse o governador Cid Sampaio eleito por uma frente ampla que ficou conhecida como Frente do Recife, composta pelos partidos legalmente constitudos PSB, PTB, PST e UDN e com o apoio das Ligas, vencondo a candidatura do PSD, no poder desde 1930. Esse fato contribuiu para o aumento da mobilizao das Ligas Camponesas, que em 1959, organizaram mais de 80 atos pblicos no Recife. Entretanto, no mesmo perodo foi divulgado o despacho do juiz de Vitria de Santo Anto autorizando o cumprimento de desocupao das terras do Engenho, daqueles moradores em atraso com o pagamento do foro. Este fato contribuiu para o acirramento da tenso entre a SAPPP e o dono do Engenho .

    Diante do aumento das presses dos trabalhadores, o governador acabou cedendo e assinou a desapropriao. A repercusso em todo o Brasil foi imediata, conforme nos revela Montenegro:

    O jornal O Estado de So Paulo, editorial no dia 18 de fevereiro de 1960, afirmava: Ao criticarmos, no faz ainda muitos dias, a absurda iniciativa do Governador Cid Sampaio, de desapropriar as terras do Engenho Galilia para, num ilcito e violento golpe no principio da propriedade, distribu-las aos empregados daquela empresa, prevamos o que disso poderia resultar. A

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    violncia seria, como foi, considerada uma conquista das Ligas Camponesas, e acenderia a ambio dos demais campesinos assalariados, desejosos de favores idnticos (MONTENEGRO, 1993; 08).

    A reportagem acima citada estava certa, uma vez que, a partir de ento, se proliferou pelos quatro cantos do pas, em praticamente todos os Estados, focos de Ligas Camponesas. No Estado da Paraba o movimento tomou fora com a formao das Liga Camponesa de Sap, liderada por Joo Pedro Teixeira, assassinado em 1962 aos 39 anos, fato que assinalou o crescente paroxismo na regio (YOUNG, 1973). No Esprito Santo, tambm existiu um foco de Liga Camponesa na Regio de Cotax, no norte do Estado, liderado por Enas Pinheiro, desaparecido pela represso do regime militar. Assim ocorreu em outros diversos estados da federao.

    Essa efervescncia poltico-social no campo ganhou ainda mais repercusses se pensarmos na complicada conjuntura global das dcadas de 1950 e 1960, marcada pela Guerra Fria, conflito poltico ideolgico no qual, as duas potencias do ps-guerra, EUA e URSS, disputavam reas de influncia baseando-se nas suas respectivas capacidades blico-nucleares. E neste contexto de extrema tenso e polarizao, que os governos Jnio (1961) e Jango (1961-1964), diante da grande mobilizao das Ligas Camponesas, direcionam para reformas na estrutura social brasileira. Nesse sentido, aos olhos dos grandes latifundirios, se processava profundas transformaes na ordem agrria, e agora tambm no mbito do governo, sendo necessrio fazer frente a tal processo. Produziu-se, assim, o cenrio para uma mobilizao das elites no sentido de reagir e isso se materializou na instaurao do golpe empresarial-militar de 1964.

    CONSIDERAES FINAIS. O Brasil acumula uma longa histria de mobilizao e luta de movimentos sociais que remontam aos perodos colonial e imperial, pr e ps-independncia. Entretanto, poucos perodos dessa riqussima histria brasileira, apresentam uma mobilizao to intensa dos movimentos sociais, em especial do campo, como o que foi tratado no presente trabalho. A ao do movimento rural surgido em Pernambuco nos anos 50 pautou, como j dito, centenas de outros movimentos rurais em todo Brasil aumentando a zona de atrito entre esses e os grandes latifundirios, exigindo que Estado interviesse na resoluo dessa tenso. Porm, quando este Estado se aproxima das propostas reformistas, tudo levava a crer que profundas mudanas ocorreriam.

    Conclui-se, nesse sentido, que o Golpe militar instaurado no Brasil em 1964, veio para interromper o ciclo democrtico existente desde 1945 e tambm para minar a grande mobilizao dos movimentos sociais, sobretudo do campo, com as Ligas Camponesas.

    Observaremos durantes os 21 anos seguintes a afirmao da brutalidade no trato com a questo social, que se deu pela necessidade de setores vinculados ao grande capital monopolista de calar os movimentos que naquele momento se tornavam cada vez mais fortes.O amplo processo de desarticulao militar dos movimentos sociais, feito em nome da segurana nacional e do anticomunismo a partir de 1964, atendeu a essas e outras necessidades mais escuras, que justificaram a represso, a tortura e os assassinatos polticos daqueles que lutavam por causas distintas s definidas e impostas pelo Regime Militar.

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    No obstante, a grande concluso que podemos tirar de toda essa anlise, que os movimentos sociais so peas integrantes e fundamentais para a sociedade, devendo, portanto, serem vistos e analisados como fenmenos internos aos processos de mudana e conservao dos sistemas e estruturas sociais. Se as tentativas de busca de soluo pela via revolucionria esto historicamente esgotadas, por serem parte integrante dos paradigmas de uma modernidade que se exauri em si mesma a cada passo (FERREIRA, 2003; 156), a ao constante do questionamento vigoroso da prpria estrutura social revele-se cada vez mais necessria nesse momento, uma vez que do alto, dos que esto a frente das esferas de deciso, parece no haver o que esperar.

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    i Este texto parte integrante da minha monografia de final de curso, apresentada em 2005, ao Departamento de Histria da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito para a obteno do ttulo de Graduado em Histria. ii Mestre em Histria Social das Relaes Polticas UFES. Contato email: [email protected]

    iii A resoluo de 17 de julho de 1822 extinguiu o regime de sesmarias no Brasil. Entretanto, a ocupao

    passou das terras sem titulo de propriedade passou a ser uma constante. A Lei de Terras veio para evitar isso e manter a terra como um privilgio de poucos. iv importante notar que com a independncia, a classe social economicamente dominante os grandes

    latifundirios foram paulatinamente adquirindo o controle do aparelho burocrtico, a forte campanha contra D Pedro I, culminando na abdicao, tinha como meta o controle do Estado pelos latifundirios brasileiros. Isso que ser mais perceptvel no perodo da Repblica Velha. v O prprio Nicolau dos Santos Vergueiro, um dos pioneiro no processo de importao de braos

    estrangeiros , poucos anos antes de sua morte, ocorrida em 1859, brada no Senado contra as doaes de terras a imigrantes, sustentando ser injusto dar-se a estrangeiros o que se negava aos nacionais (GUIMARAES, 1981). vi O conceito de Coronelismo aqui utilizado o de Maria de Lourdes M. Janotti, que no livro: O

    Coronelismo; uma poltica de compromissos o define da seguinte forma:poder exercido por chefes polticos sobre parcela ou parcelas do eleitorado, objetivando a escolha de candidatos por eles indicados, ou ainda: Representantes da oligarquia agrcola-mercantil que controla o poder pblico e orienta suas decises no sentido de afastar as demais classes do poder e de manter seus privilgios. vii

    O conceito de populismo aqui utilizado, o mesmo de Jacob Gorender, que no o reduz a demagogia e manipulao, aspectos secundrios no contexto: O populismo se define pela associao ntima entre trabalhismo e projeto de industrializao. O trabalhismo como promessa de proteo dos trabalhadores por um Estado paternalista no terreno litigioso entre patres e empregados. O projeto de industrializao como interesse comum entre burgueses e operrios (GORENDER, 1987; 16). viii

    No devemos confundir essa revolta com a Cabanagem, levanta ocorrido entre os anos de 1834 e 1840, na Provncia do Gro-Par. ix

    Cambo designa um imposto que o campons destitudo da terra, deveria pagar ao grande proprietrio em forma de dias de trabalho. x importante que se faa uma observao: embora a sindicalizao rural estivesse prevista j na

    Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT), implementada ainda na Era Vargas, e que fosse compatvel com os termos da constituio de 1946, a qual fora anunciada como meta em diversos governos, era sempre barrada pelos grandes latifundirios e suas representaes na Casas Legislativas. xi

    Segundo Antonio Torres Montenegro (1993), essa atitude da SAPPP, nos remete a diferentes analises: pode ter sido mais uma ttica de despiste dos trabalhadores, para que o senhor de engenho no visse naquela sociedade um rgo contrrio aos interesses patronais, j que os prprios trabalhadores o convidaram para um cargo de honra. No entanto, pode-se ainda ler a carta no propriamente como um convite, mas como uma provocao (MONTENEGRO, 1993).