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MST
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO MESTRADO
JOS AUGUSTO GUTERRES
A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA E A ATUAO DO MST PARA EFETIVAO
DE DIREITOS LUZ DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI
CURITIBA
2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO MESTRADO
JOS AUGUSTO GUTERRES
A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA E A ATUAO DO MST PARA EFETIVAO
DE DIREITOS LUZ DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI
Dissertao apresentada no C urso de ps-graduao em Direito, do Setor de C incias Jurdicas e Sociais da universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do grau de Mestre, sob orientao da Prof. Dra. Katie Silene Cceres Argello.
CURITIBA
2008
ii
TERMO DE APROVAO
JOS AUGUSTO GUTERRES
A QUESTO AGRRIA BRASILEIRA E A ATUA O DO MST PARA EFETIVAO DE
DIREITOS LUZ DO CONCEITO DE HEGEMONIA EM GRAMSCI
Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre, no Curso de ps- graduao em Direito da Universidade Federal do Paran, pela Comisso formada pelos professores:
ORIEN TADORA: Prof. Dra. Katie Silene Cceres Argello. Pro f. Pro f.
CURITIBA, ______ de ________________ de 2008.
iii
Senhor Deus da Libertao, Pai e me dos pobres e dos oprimidos, ns te bendizemos e te louvamos pela aliana que fizeste com teu povo, sempre mantendo a tua fidelidade, conforme prometeste aos nossos patriarcas e matriarcas. Renova conosco a aliana que fizeste com No sobre as guas do dilvio, dando-lhe o arco-ris como sinal. Renova Senhor com teu Esprito a aliana que selaste com o sangue de teu Filho, e mantenha-nos fiis aos pobres da terra, rumo libertao, que chega com a efetivao da Reforma Agrria, com poltica agrcola, educao e sade gratuita, pblica e de qualidade, condies de produo e comercializao, com proteo das guas, das sementes e da soberania alimentar, valorizando a identidade camponesa e incentivando a organizao dos pobres da terra, lutando contra o trabalho escravo, a violncia e a impunidade no campo. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, agora e sempre, amm! (Orao da 21 Romaria da Terra do Paran, 2006)
iv
SUM RIO
RESUMO .......................................................................................................................................v
INTRODUO .............................................................................................................................1
1 PROBLEMATIZANDO A QUESTO AGRRIA ...............................................................4
1.1 A QUESTO AGRRIA NO PROCESSO DE TOTALIZAO DO CAPITAL ................4
1.2 CONFLITOS NO CAMPO, ESTADO E LUTA DE C LASSES ............................................19
2 INSTRUM ENTAL GRAMSCIANO ......................................................................................30
2.1 GRAMSCI E OS CADERNOS DO CRCERE .................................... .................................30
2.2 TEORIA AMPLIADA DE ESTADO E HEGEMONIA .........................................................36
3 RAZES HISTRICAS DA QUESTO AGRRIA ............................................................49
3.1 A HISTRIA DOS VENCIDOS AT A LEI DE TERRAS E AS O RIGENS DA
REVOLUO BURGUESA NO BRASIL ..................................................................................50
3.2 O NASCIMENTO DA RACIONALIDADE JURDICA PROPRIETRIA E O ADVENTO
DA HEGEMONIA BURGUESA NO BRASIL ............................................................... .............59
3.3 DA REVOLUO PASSIVA DE 1930 REDEMOCRATIZAO INSTITUCIONAL
........................................................................................................................................................69
4 AGRICULTURA E REFORMA AGRRIA NO BLOCO HISTRICO BRASILEIRO
CONTEM PORNEO .................................................................................................................80
4.1 AGRICULTURA SUICIDA GLOBAL E SEUS EFEITOS NO BRASIL .............................83
4.2 A QUESTO MERIDIONAL E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO
........................................................................................................................................................97
4.3 REFORMA AGRRIA NO PROCESSO DE RUPTURA ESTRUTURAL E
HERMENUTICA DOS ARTIGOS 184, 185 E 186 DA CONSTITUIO FEDERAL .........109
5 O M ST E A LUTA HEGEMNICA CONTRA O CAPITAL PARA A CONSTRUO
DE UM A REAL DEMOCRACIA ............................................................................................128
5.1 O MST COMO INTELECTUAL COLETIVO : LEGITIMIDADE E LEGALIDADE DAS
SUAS A ES .............................................................................................................................128
5.2 O PRNCIPE MODERNO E A ORGANICIDADE DO MST (OU SEMENTES DE UM
NOVO BLOCO HISTRICO) ...................................................................................................148
CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................................168
REFERNCIAS .........................................................................................................................175
v
RESUM O
Este trabalho faz uma anlise da questo agrria brasileira e da atuao do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MST de um ponto de vista crtico, nos marcos tericos do marxismo. Problematiza, assim, a questo agrria a partir do princpio da totalidade, e, enfatizando seus aspectos polticos, prioriza algumas categorias do pensamento de Antonio Gramsci. As razes da questo agrria e sua configurao atual, bem como o surgimento, desenvolvimento e forma de atuao do MST so, ento, estudados luz de uma teoria ampliada de Estado e do conceito de hegemonia, principalmente. No obstante, parte significativa do trabalho se debrua sobre elementos jurdicos atinentes aos temas.
RESM EN Este trabajo es un anlisis sobre la cuestin agraria en Brasil y de la actuacin del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin-Tierra MST desde um punto de vista crtico, em los marcos tericos del marxismo. Se problematiza la cuestin agraria a partir del principio de la totalidad, y, enfatizando en sus aspectos polticos, prioriza algunas categoras del pensamento de Antonio Gramsci. Las races de la cuestin agraria y su configuracin actual, as como el surgimiento, desarrollo y forma de actuacin del MST son estudiados a la luz de uma teora ampliada de Estado y del concepto de hegemonia, principalmente. No obstante, parte significativa del trabajo se direcciona a los elementos jurdicos atinentes a los temas. Palavras-chave: QUESTO AGRRIA BRASILEIRA. MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA MST. ANTONIO GRAMSCI. HEGEMONIA.
INTRODUO
"E esta outra gente quem , solta e mida, que veio com a terra, embora no registada na escritura, almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria de Deus, amados filhos, infinita: a est a terra e quem a h-de trabalhar, crescei e multiplicai-vos. Crescei e multiplicai-me, diz o latifndio. Mas tudo isso pode ser contado doutra maneira.1
O pargrafo assinala o momento em que, aps constatar a vastido, beleza e
austeridade das terras portuguesas, divididas do maior para o grande, ou mais de gosto
ajuntada do grande para o maior, Jos Saramago passa a discorrer doutra maneira sobre o
latifndio, qual seja, narrando em forma de romance a dura saga dos desterrados do campo
desde os tempos da Coroa at o momento em que estes, movidos pelos ventos das agitaes
populares na Europa do sculo XX, tomam conscincia de que a penria por que passam no
se alterar a no ser por iniciativa e luta prprias, quando, ento, num gesto de dignidade e
recuperao de sua auto-estima, passam a ocupar as fazendas improdutivas para trabalhar e
sobreviver.
Conferindo especial ateno s geraes de sem-terra da famlia Mau-Tempo, e
assim plasmando a implacvel realidade em bela literatura, dita narrao atravessa temas, a
nosso ver, da mais absoluta importncia, como a concentrao fundiria e a excluso social
dela decorrente, a explorao, as pssimas condies de trabalho e a supresso de direitos dos
lavradores, as justificaes ideolgicas operadas para manter tais abusos, o conluio entre o
latifndio e as autoridades, a corrupo e violncia policial no trato com os trabalhadores,
entre outros, incluindo aquele que nos mais caro, qual seja o da organizao popular para a
conquista/efetivao de direitos e para a emancipao do trabalho.
Como se ver no presente estudo, tratam-se de temas importados para o Brasil-colnia,
agravados pela constante condio de dependncia deste e que chegam aos dias correntes
gozando de renovada pertinncia em face da globalizao econmica neoliberal, das novas
tecnologias para a agricultura aliadas a vetustas concepes de desenvolvimento, e da
politizao da luta pela terra. Portanto, embora longe da maestria artstica do autor de
Levantado do Cho, aqui tambm se pretende, com o mesmo mpeto crtico e libertador,
contar a histria de alguns Maus-Tempos (brasileiros), assim como do latifndio e das
restritas elites que o dominam. A histria, portanto, dos dois vetores da questo agrria
brasileira.
1 SARAMA GO, Jos. Levantado do cho. p. 14.
2
No obstante, nas pginas seguintes esta histria contada doutra maneira ainda,
qual seja, recorrendo-se aos recursos acadmicos disponveis (teorias, documentos histricos,
dados estatsticos) e experincia militante adquirida no cotidiano do que hoje se o maior
movimento social do pas, experincia que nos proporcionou viso mais acurada dos
problemas do campo, revestiu-nos de empatia por aqueles que os sofrem, e, assim,
comprometeu-nos com a incansvel luta pela soluo dos mesmos.
Esta histria, portanto, contada em moldes acadmicos, mas passa ao largo de
qualquer pretenso de neutralidade frente ao mundo, ao histrico e a valores, tanto por este
proceder ser impossvel, quanto por denotar, no dizer de Paulo Freire, no mais do que o
medo que se tem de revelar o compromisso, medo que quase sempre resulta de um
compromisso contra os homens, contra sua humanizao, por parte dos que se dizem
neutros.2
Feitas estas consideraes, convm esboar um panorama do que ser apresentado ao
longo do trabalho, salientando a costura entre cada um dos pontos. O primeiro captulo
dedicado a desvendar por que e sob qual ponto de vista a questo agrria brasileira pode ser
considerada de fato um problema. Para isso, a utilizao redimensionada do conceito de luta
de classes fundamental, assim como outras reflexes oriundas do marxismo, especialmente
a metodologia dialtica e a noo de totalidade. Com isso, pode-se depreender o carter
classista do Estado brasileiro, e, ao mesmo tempo, apesar disso, seu carter de imensa
complexidade.
Vistos os aspectos gerais da atual questo agrria brasileira em referido quadro terico,
o passo seguinte, a dar-se no segundo captulo, consiste na apropriao do instrumental que
ser utilizado para aprofundamento dos objetos de estudo selecionados. Trata-se
principalmente do conjunto de categorias elaboradas por Antnio Gramsci, sobretudo as que
dizem respeito anlise e estratgias de transformao de formaes sociais de capitalismo
avanado, ou, em seu dizer, de tipo ocidental.
Munido desse arsenal gramsciano, no terceiro captulo o estudo pode ento se deter
com mais acuidade no imprescindvel resgate histrico de alguns aspectos importantes da
questo agrria brasileira, que continuam a influenciar o presente, com nfase na formao da
oligarquia rural e burguesia agrria, assim como na passagem de uma mentalidade jurdica a
outra no que tange questo da propriedade, sem olvidar, ainda, o surgimento da classe
trabalhadora especialmente a do campo no cenrio poltico brasileiro, e sua trajetria.
2 FREIRE, Pau lo. Educao e mudana. p. 19.
3
J, no quarto captulo, dedicar-se- a investigar os reais beneficirios da atual
configurao agrria e agrcola vigente no Brasil. Isso nos conduzir discusso sobre
diferentes noes e projetos de desenvolvimento nacional, bem como sobre os meios para se
atingir aquele que nossas anlises tendem a apontar como o mais adequado para soluo dos
problemas sociais, discusso esta que envereda tambm para o campo jurdico, que possui
destacada importncia dentro das anlises aqui empreendidas.
Finalmente, o quinto captulo dedicado ao estudo de um dos maiores frutos gerados
pelos embates polticos da histria recente brasileira, que o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra MST. Juntamente com a observao emprica de seu funcionamento, que
tivemos a oportunidade de realizar, e com a leitura de vrios de seus documentos, verificou-se
que algumas categorias gramscianas tm especial relevncia para a anlise deste movimento
social e de suas aes, pois atravs delas procedemos investigao acerca da consistncia do
projeto poltico do MST, da medida mesma em que este pode ser inserido nas teorizaes de
Gramsci, e, ainda, de que maneira concreta.
Em apertada sntese, tais so os assuntos contidos no trabalho que segue. Como visto,
ele decorrente de uma averso s injustias sociais agravadas pelo cinismo de uns e
alienao ou desalento de outros, assim como de uma contumaz vontade de compreender os
mecanismos de funcionamento do real, no intuito de, qui, contribuir para sua
transformao.
4
1 PROBLEMATIZANDO A QUESTO AGRRIA
1.1 A QUESTO AGRRIA NO PROCESSO DE TOTALIZAO DO CAPITAL
A fim de estabelecer semanticamente o que se pretende expressar com o uso do termo
questo agrria, considere-se que ele aqui utilizado como o conjunto de interpretaes que
procura explicar como se organiza a posse, a propriedade e o uso das terras na sociedade
brasileira,3 valendo considerar que os mais diferentes campos do saber tm muito a contribuir,
cada qual sua maneira.
Entre eles, cumpre observar tambm como a literatura poltica aborda a questo, vez
que principalmente sob este vis que a questo agrria aqui estudada: Na literatura
poltica, o conceito questo agrria sempre esteve mais afeto ao estudo dos problemas que a
concentrao da propriedade da terra trazia ao desenvolvimento das foras produtivas de uma
determinada sociedade e sua influncia no poder poltico.4
H que se trazer tona, alm disso, uma diferenciao entre questo agrria e questo
agrcola, pois importante que no sejam confundidas. Enquanto a primeira, como visto,
constituda por indicadores relativos posse das terras, e tambm organizao do trabalho e
da produo, nvel de renda dos trabalhadores rurais, produtividade das pessoas ocupadas no
campo etc., a segunda teria mais a ver com o equacionamento de variveis acerca das
quantidades e preos dos bens produzidos no campo, dizer, com questes de abastecimento.
Pode-se dizer, em outras palavras, que a questo agrcola est preocupada com a produo
em si mesma, e a questo agrria com as relaes de produo.5
Entretanto, como adverte Jos Graziano, tal separao se trata simplesmente de um
recurso analtico, vez que ela no se confirma na realidade objetiva, onde os problemas
aparecem intimamente relacionados entre si:
(...) a questo agrria est presente nas crises agrcolas, da mesma maneira que a questo agrcola tem suas razes na crise agrria. Portanto, possvel verificar que a crise agrcola e a crise agrria , alm de internamente relacionadas, muitas vezes ocorrem simultaneamente. Mas o importante que isso no sempre necessrio. Pelo contrrio, muitas vezes a maneira pela qual se resolve a questo agrcola pode servir para agravar a questo agrria.6
3 STEDILE, Joo Pedro (org.). A questo agrria no Brasil: o debate tradicional: 1500-1960. v. 1. p. 15. 4 STEDILE, J. P. (o rg.). Obra citada. v. 1. p. 15. 5 GRAZIANO DA SILVA , J. O que questo agrria. p. 10-11. 6 GRAZIANO DA SILVA , J. Ibidem.
5
Como se perceber mais frente, esta ltima assertiva com grifos do prprio autor
bastante acertada. Antes de analisar esta ordem de fenmenos, porm, ainda parece
essencial problematizar, ou esmiuar um pouco mais, dita questo agrria. Melhor dizendo,
cumpre especificar em que medida ela se constitui em problema para o Brasil contemporneo.
Em busca de uma resposta a esta questo, depara-se com uma constatao que no
deve ser posta de lado: muitas vezes o que se constitui em problema para determinados
indivduos, no se constitui para outros (ao menos para estes no assim percebido ou no se
evidencia diretamente), pelo que se faz necessria uma determinada tomada de posio e
esprito crtico, no se podendo perder de vista um dos determinantes mais significativos da
sociedade atual, que a existncia da luta de classes.
Cabe o registro de que no foi Marx quem primeiro utilizou tal expresso, tampouco
foi o primeiro a tratar deste assunto,7 porm referimo-nos aqui concepo de luta de classes
peculiar ao marxismo, cuja expresso mais famosa a contida no Manifesto do Partido
Comunista,8 que por ora serve de sntese. Isso no deve implicar, porm, um dogmatismo na
leitura dessa categoria de modo a estancar sua re-significao com o decorrer do tempo. No
se pode refutar imediatamente, dessa forma, polmicas decorrentes de sua anlise, como a que
questiona sua efetiva existncia em sociedades ou situaes em que no haja uma
conscincia de classe consolidada. Na mesma esteira, merece ainda uma maior relativizao
a simplicidade da luta de classes exposta no Manifesto, bastante defasada atualmente, em face
do atual contexto de imensa complexificao da sociedade capitalista global.
Contudo, apesar de todas as ressalvas possveis, a negao veemente da existncia de
uma estratificao social na atual sociedade em diferentes classes econmicas tanto em
nvel nacional quanto global, com interesses irreconciliveis entre si (por maiores que sejam
os perodos em que elas no tenham esclarecido este fato) pode resultar num erro terico,
vale dizer, numa teoria social irremediavelmente incompleta, que certamente no ser til a
um projeto social emancipador contrrio ao sistema hegemnico. Mais que isso, na prtica se
revelar como um cinismo tpico dos que mantm seus privilgios sociais atravs da
7 Conforme exp lica Leandro Konder, Marx no inventou a luta de classes: limitou-se a reconhecer que ela existia e procurou extrair as conseqncias da sua existncia. Antes de Marx, diversos autores j tinham enxergado a questo. James Madison, ex-Presidente dos Estados Unidos, por exemplo, escreveu em 1787: Proprietrios e no proprietrios sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade (...). (KONDER, Leandro. O que dialtica. p. 31-32.) 8 A histria de toda sociedade at hoje a histria de luta de classes. (...) opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposio uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformao revolucionria de toda a sociedade, ou com o declnio comum das classes em luta (...) A moderna sociedade burguesa, surgida das runas da sociedade feudal, no eliminou os antagonismos entre as classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condies de opresso, novas formas de luta em lugar das antigas. (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. p. 66-67.)
6
manuteno das desigualdades. Mostram-se vlidas, portanto, as consideraes de Tom
Bottomore acerca da atual configurao da luta de classes:
(...) tambm nos pases do Ocidente, nas ltimas dcadas, os conflitos sociais envolveram no s, ou nem mesmo principalmente, as classes, mas igualmente grupos nacionais, tnicos ou religiosos, bem como vrios movimentos sociais de carter amplo femin istas, ecolgicos, antinucleares. A tarefa da anlise marxista hoje enquadrar essas diversas lutas em uma teoria coerente e determinar empiricamente a importncia especfica das lutas de classes em condies estruturais e histricas diversas. Isso exige tambm, como demonstram vrios estudos marxistas recentes (por exemplo Poulantzas, 1974), um reexame da luta de classes no final do sculo XX, no mais em termos de uma confrontao exclusiva entre burguesia e proletariado, mas antes em termos de alianas entre grupos sociais que, de um lado, dominam e dirigem a vida econmica e social e, de outro, so subordinados e dirig idos.9
J Ricardo Antunes,10 sem olvidar o relevante papel de movimentos sociais
constitudos sem um recorte de classe declarado, refuta as teses (especialmente a da ao
comunicativa de Habermas) que, retirando a centralidade da lgica do capital, negam a
existncia de classes na contemporaneidade. A partir da anlise da atual ordem do trabalho
mundial, marcada pela passagem do taylorismo/fordismo11 para a fase do toyotismo12
(difundido como resposta crise estrutural por que passava o capitalismo no incio da dcada
de 1970, aps as lutas travadas entre capital e trabalho nos anos 1960, que no foram capazes
de instituir um projeto hegemnico do trabalho contra o capital),13 Antunes demonstra que
bem ao contrrio de o sistema do capital contemporneo ter extinto a classe trabalhadora,
ele a ampliou significativamente, motivo pelo qual prope um termo mais abrangente para
design- la: classe-que-vive-do-trabalho.
Tal conceito que, como dito, expressa a contemporaneidade da categoria marxista14
de classe trabalhadora, adequando-a s caractersticas atuais do sistema do capital mais 9 BOTTOMORE, Tom. Luta de classes (verbete). In: BOTTOMORE, T. (ed.). Dicionrio do pensamento marxista. p. 224. 10 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. 11 Processo de trabalho voltado para uma produo homognea de larga escala, marcado pela estrita especializao de tarefas musculares repetitivas que demandava amplas massas de trabalhadores no cho de fbrica, estas inseridas num organograma extremamente verticalizado e cuja relao com o capital era intermediada pelo Estado. 12 Processo de trabalho que, com vistas nas alteraes das demandas do mercado, volta-se a uma produo mais heterognea e em boa parte terceirizada, sendo caracterizado principalmente pelo trabalho em equipe e aproveitamento polivalente do trabalhador, inclusive mediante seus caracteres de personalidade e intelectualidade, implicando desemprego em massa, flexib ilizao de d ireitos, precarizao de vnculos, fragmentao da classe trabalhadora, destruio ou docilizao do sindicalismo etc., efeitos catalizados por uma menor p resena do Estado na relao entre capital e trabalho. 13 ANTUNES, R. Obra citada. p. 36. 14 A fim de deixar claro quando se est a fazer referncia ao pensamento de Karl Marx especificamente, e quando se trata do pensamento de outros autores do marxis mo, optou-se por utilizar ao longo de todo o trabalho o termo marxista para o primeiro caso, e marxiano para o segundo.
7
abrangente na medida em que, apesar de manter a centralidade dos assalariados que direta e
manualmente produzem a mais-valia (trabalho produtivo), estende-se a todos os demais
assalariados que intelectualmente produzem valor ou mesmo aqueles cujo trabalho no produz
riqueza (trabalho improdutivo), dizer, cujo trabalho consumido como valor de uso e no
como valor de troca,15 alm, claro, dos que indiretamente esto subordinados ao capital
(que compem a chamada economia informal) e dos desempregados, produto tpico da atual
fase de gesto do trabalho, principalmente devido ao fenmeno da liofilizao
organizacional (termo usado por Antunes para designar o incremento na produo a despeito
da drstica reduo no nmero de trabalhadores nas empresas de hoje).
Para os fins da presente pesquisa, ressalte-se que na classe-que-vive-do-trabalho
inclui-se o proletariado rural, ou seja, os trabalhadores rurais que vendem, sob os mais
diversos ttulos (diria, parceria, arrendamento, meao etc.) sua fora de trabalho para o
capital. Ainda, embora Antunes no o evidencie, logicamente a est tambm o campesinato,
classe que com dificuldades cada vez maiores ainda possui focos de resistncia ao avano do
capital, classe esta caracterizada, em linhas gerais, pela produo familiar de subsistncia,
com baixa integrao ao mercado. Por outro lado, da classe-que-vive-do-trabalho, diz
Antunes, deve-se excluir os gestores do capital, seus altos funcionrios, que detm papel de
controle no processo de trabalho, de valorizao e reproduo do capital no interior das
empresas e que recebem rendimentos elevados (...), assim como aqueles que vivem da
especulao de juros, os pequenos empresrios, a pequena burguesia urbana e rural
proprietria.16
Na esteira deste raciocnio, Antunes investiga a atual complexidade da classe
trabalhadora, enveredando pelos seguintes campos: 1) da diviso sexual do trabalho, notando
a que o trabalho feminino fruto de uma emancipao parcial da mulher, que o capital
transformou em fonte de maior precarizao do trabalho ao explorar- lhe duplamente (por um
lado, quando do trabalho produtivo da mulher no espao pblico isto , fora de casa; e por
outro, a de, no mbito privado, manter a mulher no papel de garantir a reprodutibilidade do
capital atravs de tarefas no diretamente mercantis, porm indispensveis reproduo
cotidiana da fora de trabalho); 2) dos assalariados no recente setor de servios, do terceiro
setor e das novas formas de trabalho em domiclio, todos decorrentes tambm do cmbio
organizacional do mundo do trabalho, marcado pela privatizao de servios pblicos,
flexibilizao de direitos e precarizao de vnculos trabalhistas, sendo que cada um cumpre
15 ANTUNES, R. Idem . p. 102. 16 ANTUNES, R. Idem . p. 104.
8
um papel de funcionalidade em relao ao sistema, inclusive o chamado terceiro setor, a
despeito de seu direcionamento resoluo de problemas sociais e ausncia de finalidade
lucrativa; e 3) da transnacionalizao do capital e do mundo do trabalho, propiciada
principalmente pela descentralizao e mesmo desterritorializao das atividades produtivas,
mundialmente divididas em etapas diversas e interconectadas graas ao atual estgio de
desenvolvimento tecnolgico.17
Diante dessas anlises, e principalmente pelo fenmeno da transnacionalizao do
capital (que altera a configurao no s do espao, mas tambm do tempo do trabalho), longe
do fim da luta de classes, Antunes constata uma nova dimenso da mesma, por exigir uma
resposta internacional por parte da classe trabalhadora que ainda se mantm
predominantemente em sua estruturao nacional e cujos organismos sindicais internacionais
mostram-se incapazes de oferecer um desenho societal alternativo e claramente contrrio
lgica do capital.18 E dentro deste desafio de internacionalizao das aes da classe
trabalhadora, outro que se impe, de suma importncia, o de unificar, partindo de dentro de
cada pas, as inmeras clivagens entre os trabalhadores (estveis e precrios, homens e
mulheres, jovens e idosos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e
desqualificados, includos e excludos)19 em torno de um projeto contrrio lgica
destrutiva do capital.
A percepo da luta de classes no mundo contemporneo, portanto, obriga o
pesquisador a uma tomada de posio quando da anlise de seu objeto de estudo, ou seja,
impele-o a uma reflexo diante da qual no pode deixar de fazer uma escolha entre duas
opes, que so, em ltima anlise, opes de classe. De um lado, o pesquisador pode se
colocar ao lado da classe privilegiada com a configurao social posta, de modo que seu
trabalho ser voltado a algum tipo de ocultao ou justificao das desigualdades constatadas.
De outro, o pesquisador se colocar ao lado das classes subordinadas, na perspectiva de
alterao da configurao social posta, o que resultar num trabalho cujo intento seja o de
explicitao das situaes de desigualdade, compreenso de seus mecanismos, e proposio
de solues, para o que sero imprescindveis as categorias elaboradas no mbito de um
conjunto terico crtico, no qual
(...) as categorias crticas interpretam a realidade mas, fazendo parte dessa mesma realidade, com ela interagem como categorias transformadoras. E o tempo e espao
17 ANTUNES, R. Idem . p. 104-117. 18 ANTUNES, R. Idem . p. 116. 19 ANTUNES, R. Ibidem.
9
histricos a que se referem o mundo atual, com toda sua carga de sofrimento, a exig ir a tomada de posio por parte das pessoas que dele tomam conscincia e no se deixam seduzir pela seduo reacionria a uma ordem social que precisa ser transformada; e nem permaneam naquele estado de inconscincia social, em que o sujeito se deixa levar pela manipulao das idias em benefcio dos grupos privilegiados (...).20
Uma vez que o presente trabalho se insere na segunda opo apresentada e procura
fazer uso desse conjunto de categorias crticas, a questo agrria aqui conceituada a partir do
ponto de vista do trabalho e no do capital, compartilhando da seguinte viso:
Para este [o capital] inexiste no campo qualquer questo a resolver que lhe dificulte a acumulao. Ao contrrio, para as populaes exp loradas e empobrecidas do meio rural, expulsas ou no, a questo existe. No mundo gerado pelo capitalismo financeiro, marcadamente aqui na periferia subordinada do sistema global, no h lugar para a grande maioria dessas pessoas so as sobras do processo meros efeitos colaterais do progresso capitalista. Para elas a questo agrria real e significativa sobrevivncia.21
Assentado, portanto, que s h sentido em se investigar a questo agrria partindo do
ponto de vista do trabalho, dos povos marginalizados do campo, fica ainda mais evidente a
necessidade de paut-la no mbito de um conjunto terico crtico, conjunto que, vale notar,
no constitudo de simples negaes das teorias tradicionais. Tal como sempre empreendido
por Marx, a teoria crtica nasce quando os resultados da teoria tradicional, o mais das vezes
reconhecidos como pertinentes, so submetidos a dois crivos de avaliao: o da totalidade e o
da historicidade, de modo que assim se pode (i) relacionar dialeticamente os objetos
elaborados pela cincia particular com a totalidade social, mediatizando e desfetichizando tais
objetos, fazendo com que deixem de ser meros fatos e se convertam em processos ou
momentos de processos,22 bem como (ii) perceber que a totalidade que se tem em vista no
uma totalidade fechada e definitiva, mas antes um processo de totalizao, no qual o todo
compreendido como algo aberto e altamente dinmico, sendo que, com isso, os objetos
analisados perdem a sua aparente naturalidade, convertendo-se assim em estados transitrios
de um devir ininterrupto.23
20 COELHO, Lu iz Fernando. Teoria crtica do Direito. p. 54. 21 CARVA LHO FILHO, Jos Juliano. A nova (velha) questo agrria e o agronegcio. In: SIDOW, Evanize; MENDONA, Maria Lu isa. Direitos humanos no Brasil 2007: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 24. 22 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e poltica: a dualidade de poderes e outros ensaios. p. 99. 23 COUTINHO, C. N. Obra citada. p. 100.
10
Diante disso, o conjunto terico que mais se mostra hbil a proceder criticamente o
cotejo entre a totalidade e a historicidade dos fenmenos que se pretende analisar o
marxismo, vez que este cotejo dialtico sua prpria essncia.
No Prefcio Contribuio Crtica da Economia Poltica, Marx sintetiza suas
incurses tericas realizadas at ento. Segundo ele, a partir de uma reviso crtica do
pensamento de Hegel, a concluso a que chegou que a anatomia da sociedade burguesa
deve ser procurada na Economia Poltica. Em outras palavras, so as relaes econmicas
de produo e circulao de riquezas o principal determinante de todo o modo de ser da
sociedade (incluindo a conscincia que tem de si mesma), que se transforma na medida em
que se agudizam as contradies entre as foras produtivas sociais e as relaes de produo.
Isso o que se v, aps tantos outros, no modo de produo burgus-moderno, que para ele
seria a ltima etapa antagnica do processo social, pois portadora do embrio de um novo
modelo produtivo apto a resolver as contradies do antigo. O centro das concluses de Marx,
em suma, a existncia de uma infra e de uma superestrutura sociais, aquela determinante
desta em ltima instncia.24
Quanto a este ltimo ponto, preciso aclarar, por ser alvo de crticas muitas vezes
infundadas, que isso no confere a seu pensamento um mecanicismo ou automatismo. A
sociedade dividida por ele, no plano terico, por uma infra-estrutura, que o lugar onde
ocorrem as relaes econmicas (produo e circulao), e por uma superestrutura, que seria a
viso de mundo dessa sociedade, viso que se constitui em grande parte graas ao tipo de
relaes econmicas que so travadas na infra-estrutura em grande parte mas no
inteiramente, vez que os infinitos elementos e instncias da superestrutura podem se
relacionar entre si sem qualquer relao com a infra, a qual nem por isso deixa de ser uma
fonte constante de abstraes da superestrutura. Dentro da superestrutura estariam, assim, a
religio, as artes, a filosofia, o direito, o conhecimento cientfico, o senso-comum etc.
Entretanto, como se dizia, essa relao entre a infra e a superestrutura no capaz de
imprimir em Marx traos de mecanicismo. E isso, como reiteradamente ressaltado por
Gramsci, se d por causa do modo que dessas categorias Marx faz uso, dizer, segundo a
metodologia dialtica, atento s mtuas implicaes entre as estruturas, valendo lembrar que o
prprio Marx fazia aluso, por exemplo, ao carter objetivo (de efetivas foras materiais) que
as crenas podiam tomar quando amplamente difundidas entre as massas.
24 MARX, Karl. Prefcio Contribuio Crt ica da Economia Poltica. In : MARX, K. e ENGELS, F. (org. Florestan Fernandes). Histria. p. 231-235.
11
Cumpre observar que o conceito de estrutura que confere um carter cientfico
teoria do marxismo, pois atravs de tal conceito que se pode distinguir os fenmenos
principais dos secundrios, o que causa e o que efeito, bem como o que se pode constatar
com reiterabilidade. Isso fundamental pois todo o conhecimento cientfico pautado neste
critrio, o qual vai permitir a previsibilidade de fenmenos futuros. Com a reiterabilidade
proporcionada pelo conceito de estrutura se abre a possibilidade de formulao de um modelo
terico, uma abstrao cientfica, ou, no dizer de Marx, determinao abstrata, que ser o
ponto de partida para compreender o concreto e para reproduzir na prpria conscincia a
multiplicidade desse concreto.25
No mais, Lnin j destaca que Marx percebe no ser suficiente a investigao da
estrutura para se compreender o funcionamento de uma formao econmico-social, embora
dela (da estrutura) se deva comear. A partir dela se consegue explicar os demais
componentes, no de modo estanque, mas como coisa viva: a estrutura serve para explicar a
riqueza da formao social, para dar coerncia a seus elementos no estruturais, que devem
ser explicitados; caso contrrio, a estrutura encerra-se em si mesma e se torna um conceito
idealista.26
De fato, Marx demonstra em vrias oportunidades compreender a extrema
complexidade que esta relao dialtica entre as estruturas confere sociedade, fazendo com
que os acontecimentos no devam ser explicados por razes econmicas diretamente
identificveis, sem mediaes. Quando ele prprio, em vez de expor seu mtodo, utiliza-o
para realizar a anlise poltica de determinados contextos histricos, como o fez em As Lutas
de Classe na Frana de 1848 a 1850, O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte e A Guerra
Civil na Frana, por exemplo, torna-se insustentvel atribuir- lhe o rtulo de mecanicista ou
economicista. Em tais escritos, seu interesse analisar sobretudo o carter autnomo que o
Estado adquire em determinada etapa do capitalismo na Frana.27 V-se que, sem deixar de
considerar as bases econmicas como determinantes para as relaes polticas e para a forma
de enxergar o mundo, ele no olvida a complexidade e a grande parcela de autonomia das
relaes polticas, movimentadas por uma srie de interesses das diversas foras sociais
atuantes, de modo que se torna lcito afirmar que a superestrutura tambm pode exercer
influncia na infraestrura, muito embora em menor escala do que o inverso.
25 GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. p. 25. 26 GRUPPI, L. Obra citada. p. 25 -27. 27 SADER, Emir. Estado e poltica em Marx: para uma crt ica da filosofia polt ica. p. 61-62.
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Como em vrios outros perodos histricos, incluindo o atual, naquele em que Gramsci
vivia era fundamental desmitificar a ilao comumente realizada entre marxismo e
economicismo/mecanicismo. O trecho seguinte, ento, ilustra este seu intento e corrobora a
ordem de idias exposta acima:
(...) A pretenso (apresentada como postulado essencial do materialis mo histrico) de apresentar e expor qualquer flutuao da poltica e da ideologia como uma expresso imediata da infra-estrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilis mo primitivo, ou deve ser combatida, praticamente, com o testemunho autntico de Marx, escritor de obras polticas e histricas concretas. Para este aspecto, so importantes notadamente o 18 Brumrio e os escritos sobre a Questo Oriental, mas tambm outros (Revoluo e contra-revoluo na Alemanha, A guerra civil na Frana e menores). Uma anlise destas obras permite fixar melhor a metodologia histrica marxista, complementando, iluminando e interpretando as afirmaes tericas esparsas em todas as obras. Poder-se- observar quantas cautelas reais Marx introduz em suas investigaes concretas, cautelas que no poderiam encontrar lugar nas obras gerais (...).28
Parece adequado, enfim, acenar que no pensamento de Marx vigora uma
preeminncia ontolgica das bases econmicas sobre a esfera das representaes, dando
consistncia ao chamado materialismo histrico, que sem dvida um dos mais profcuos
mtodos de anlise existente nas cincias sociais.
No obstante, nenhuma teoria teve a sua morte tantas vezes anunciada como o
marxismo.29 Por bvio, os corifeus dessa morte dizem-se porta-vozes do conhecimento, da
ilustrao, da verdade, do progresso social, ou, ainda, da imparcialidade da cincia.
Porm, como analisado por Michael Lwy, uma grande contribuio de Gramsci denunciar
justamente este tipo de falcia. Gramsci investiga a fundo a articulao entre ideologia e
conhecimento cientfico, notando que ambos integram a superestrutura da sociedade a
ideologia por motivos bvios, e a cincia porque em ltima anlise sempre revestida de
ideologia, na medida em que a unio do fato objetivo com uma hiptese ou um sistema de
hipteses que ultrapassam o simples fato objetivo.30
28 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do crcere. v. 1. p. 238. Em determinada passagem, Gramsci identifica um relacionamento muito maior do economicis mo (que ele denomina tambm de sindicalis mo terico) com o liberalismo, do que com o marxis mo (a filosofia da prxis), pois (...) inegvel que, neste ltimo [no economicismo], a independncia e a autonomia do grupo subalterno que ele diz exprimir so sacrificadas hegemonia intelectual do grupo dominante, j que o sindicalismo terico no passa de um aspecto do liberismo [sic], justificado com algumas afirmaes mut iladas e, por isso, banalizadas da filosofia da prxis (...). (GRAMSCI, A. Obra citada. v. 3. p. 48.) A respeito, cf. GRAMSCI, A. Idem. v. 1. p. 266-267; e v. 3. p. 46-55; 67-68; 104-105. 29 Ed itorial Crt ica Marxista. Manifesto. In: Crtica marxista, n 1, ano 1994. 30 LW Y, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxis mo e positivis mo na sociologia do conhecimento. p. 135.
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A propsito, em recente obra, Giovanni Semeraro31 tambm ressalta este ponto do
pensamento gramsciano. Segundo ele, Gramsci demonstra que a cincia uma categoria
histrica, um movimento em contnuo desenvolvimento,32 de modo que no campo cientfico
o que se verifica uma voraz luta pela objetividade, dado que se a um tempo a cincia recorre
a representaes e teorias para se expressar, a outro, essas mesmas representaes so
produtos humanos, construes histricas que nascem de prticas cientficas, sociais e de
interesses polticos.33 Esse embate no campo cientfico mais bem visualizado mediante as
palavras do prprio Gramsci, citado por Semeraro: Toda cincia est vinculada s
necessidades, vida, atividade do homem. Sem a atividade do homem, criador de todos os
valores, inclusive cientficos, o que seria da objetividade?.34 Diferentemente, portanto, de
Weber e Durkheim, que separam fatos e valores, Gramsci defende uma relao dialtica
entre eles (no uma identificao), uma vez que toda objetividade implica sempre uma
subjetividade.35
Considerando tais pressupostos epistemolgicos, observa-se claramente a
superioridade da filosofia da prxis em face das demais concepes de cincia, por dois
motivos principais, destacados por Lwy com base em Gramsci:
1) As outras ideologias visam consolidar interesses opostos e contraditrios, sua historicidade curta, porque aps algum tempo as contradies aparecem superfc ie e se tornam irreconciliveis. A filosofia da prxis, pelo contrrio, precisamente a teoria das contradies, que ela assume integralmente. 2) A filosofia da prxis no o instrumento de grupos dominantes para assegurar a hegemonia sobre as classes subalternas o que implica necessariamente ocultao da verdade. precisamente a expresso destas classes subalternas que tm necessidade de conhecer todas as verdades, mesmo as mais desagradveis, para se educar e adquirir a arte de se governar. (...)36
Posto isso, pode-se agora passar a fazer uso de alguns instrumentos dessa filosofia da
prxis, mostrando-se pertinente destacar, por ora, o conceito de totalidade, a partir do qual
ser possvel desvelar o carter funcional da questo agrria na formao econmico-social
brasileira e no metabolismo de controle social global dirigido pela lgica do capital.
Considere-se, assim, que o conceito de totalidade um dos pilares da metodologia
dialtica marxiana, ou seja, da maneira de pensar elaborada em funo da necessidade de
31 SEMERARO, Giovanni. Gramsci e os novos embates da filosofia da prxis. 32 SEMERARO, G. Obra citada. p. 27. 33 SEMERARO, G. Ibidem. 34 GRAMSCI, A. Apud: SEMERARO, G. Obra citada. p. 27. 35 SEMERARO, G. Idem. p. 27-28. 36 LW Y, M. Obra citada. p. 136.
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reconhecermos a constante emergncia do novo na realidade humana,37 ou ainda, da cincia
das inter-relaes das diversas partes da realidade, instrumento de compreenso das suas
dinmicas e contradies.38
De acordo com Lukcs, citado por Coutinho,39 a distino entre o marxismo e a
cincia burguesa no o predomnio de motivos econmicos na explicao do social, mas
sim o princpio da totalidade. De acordo com este princpio, recolhido da filosofia hegeliana,
predominantemente dialtica, a realidade um todo complexo, formada por mediaes,
contradies e processos,40 no devendo ser entendida, todavia, como um todo no qual as
partes no sejam explicitadas e bem definidas, mas como uma totalidade constituda a partir
da autonomia relativa de seus mltiplos momentos parciais (...) [e] por diferentes nveis,
sendo assim uma totalidade hierarquizada, com momentos que possuem um peso ontolgico
mais marcante do que outros.41
Unindo tais concepes filosficas hegelianas com o materialismo, Marx destaca
como possuidor de um maior peso ontolgico o momento material da sociedade (infra-
estrutura), onde residem as foras produtivas e se travam as relaes de produo, que
implicam, por sua vez, a diviso social do trabalho e, em conseqncia, a diviso de classes
sociais. Segundo ele, os pensadores que se situam do ngulo de determinadas classes sociais,
em determinado contexto histrico, tm mais possibilidades de assumir essa perspectiva
globalizante, ou seja, de compreender a sociedade como um todo.42
Isso fica bem claro ao se analisar a revoluo burguesa. Os tericos da burguesia
colocavam-na como representante de toda a sociedade que se encontrava abaixo da nobreza e
do clero. Suas reivindicaes eram apresentadas como as de todos. Uma vez feita a revoluo,
permitiu-se uma liberdade e igualdade que antes era totalmente desconhecida. No obstante,
do ponto de vista econmico, a diviso em classes continuou existindo, agora com a burguesia
no ponto mais alto. Para defender seus interesses de classe, ento, os intelectuais burgueses j
no podiam mais adotar o ponto de vista da totalidade, isto , apresentar suas demandas como
universais; precisavam, sim, afirmar a naturalidade daquela situao social ento estabelecida.
Diante disso, Marx percebe que a classe social portadora de uma perspectiva globalizante
deixou de ser a burguesia e passou a ser o proletariado, o qual no defende apenas os seus
interesses particulares enquanto classe, mas tem como misso histrica a construo de uma 37 KONDER, L. Obra citada. p. 39. 38 SEMERARO, G. Obra citada. p. 33. 39 COUTINHO, C. N. Obra citada. p. 91-92. 40 COUTINHO, C. N. Idem . p. 92. 41 COUTINHO, C. N. Ibidem. 42 COUTINHO, C. N. Idem . p. 93.
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sociedade sem classes, efetivamente igualitria, capaz de produzir a verdadeira emancipao
humana.43
Totalidade, portanto, traz a idia de que qualquer indivduo, objeto ou ao jamais
esto isolados. Ao contrrio, esto inexoravelmente interligados ao todo; qualquer problema
interligado a vrios outros, sempre havendo mltiplos fatores a serem considerados. Assim,
tanto mais completo ser determinado estudo quanto mais fatores da realidade e suas
interconexes ele analisar, embora seja sempre provisrio o conhecimento que se tem da
realidade, dada sua riqueza.44 Da a necessidade de, para solucionar um ou mais problemas,
ter uma viso de conjunto deles. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: A verdade
o todo. Se no enxergamos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade
limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreenso de uma verdade
mais geral.45
Destaque-se, ainda, que a totalidade mais do que a mera soma de suas partes
constituintes. Por exemplo, o produto do trabalho de dez pessoas trabalhando juntas
diferente do de dez pessoas trabalhando isoladamente,46 o que demonstra a necessidade de se
considerar a interatividade entre os elementos da totalidade. Tambm, atente-se para a
existncia de diferentes nveis de totalizao, mais ou menos abrangentes. Dependendo da
anlise que se quer empreender, pode-se aument-la ou restringi- la, sendo o nvel mximo da
totalizao dialtica a abstrao filosfica, que aspira apreenso do todo dinmico da
realidade humana. E de forma menos abrangente, h as totalidades jurdico-poltica, scio-
econmica e do modo de produo, sendo que cada uma delas possui um processo peculiar
de alterao quantitativa e qualitativa.47
Entretanto, na prtica no possvel separar inteiramente as questes que se
apresentam num desses nveis das questes que se manifestam nos outros dois; afinal,
43 COUTINHO, C. N. Idem . p. 94. 44 KONDER, L. Obra citada. p. 37. 45 KONDER, L. Idem. p. 36-37. 46 KONDER, L. Idem. p. 37. 47 Isso fica bastante claro com o exemplo do golpe militar contra Joo Goulart em 1964 e da edio do AI-5 em 1968. Nestes casos, nota-se que a totalidade jurdico-poltica sofreu uma significat iva mudana qualitativa. No entanto, essa alterao qualitativa da totalidade jurdico-poltica no foi acompanhada pela scio-econmica, vez que a estrutura de classes no Brasil no sofreu alteraes sensveis devido queles fatos; depois de decorrido muito tempo que se consegue hoje verificar a lgumas alteraes nesta totalidade, inclusive qualitativas, segundo Konder, alteraes que ocorrem, portanto, num ritmo muito mais lento que o da totalidade jurdico-poltica. E com relao totalidade do modo de produo, por sua vez, pode-se dizer que neste mbito as alteraes so ainda muito mais lentas que nas duas anteriores, no tendo havido, a despeito de todas as alteraes jurdico-polticas e scio-econmicas, uma alterao qualitativa nela, seguindo, por outro lado, com contnuas alteraes quantitativas que, por enquanto, vm fortificando cada vez mais o capitalis mo. (KONDER, L. Idem. p. 41-42.)
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concretamente, elas so elementos de uma mesma realidade global (...).48 No caso da questo
agrria isso por demais evidente, posto que os problemas sociais que lhes so intrnsecos
refletidos tambm no plano legal decorrem, seno diretamente, em ltima instncia, do
modo de produo vigente e de suas alteraes quantitativas.
O que se pretende frisar, diante dessa breve explanao sobre a totalidade, que esses
seus trs nveis que correspondem ao todo da realidade, interao dialtica entre as
instncias materiais e imateriais, cuja compreenso pode ser buscada, em compasso com
Gramsci, atravs da noo de bloco histrico so eminentemente esculpidos, como j
afirmado, pelo sistema do capital, devendo-se advertir que o uso desta categoria (capital),
aqui, no se resume ao significado que lhe empresta a economia clssica ou uma leitura
obtusa da obra de Marx, isto , no se resume a uma riqueza ou a um bem que pode gerar um
fluxo de renda para seu dono,49 tampouco simplesmente ao modo de produo capitalista.
Muito alm disso, ou de outras leituras decorrentes de um marxismo vulgar,50 deve-
se considerar tal sistema como um fenmeno complexo historicamente localizvel e que,
segundo os estudos de Istvn Mszros, mais adequadamente denominado como uma
forma incontrolvel de controle sociometablico, tendo a ver com um certo tipo de
racionalidade que, a partir de um determinado perodo histrico, dada uma srie de condies
objetivas, passa a permear praticamente todas as relaes sociais. Perante a centralidade dessa
reflexo de Mszros sobre o carter totalizante do capital para o presente estudo vez que a
estrutura agrria brasileira irremediavelmente continua sendo uma pea-chave de tal
metabolismo social , segue um significativo trecho em que ele discorre sobre essa idia.
(...) preciso insistir que o capital no simplesmente uma entidade material tambm no (...) um mecanis mo racionalmente controlvel, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro mecanismo de mercado (...) mas , em ltima anlise, uma forma incontrolvel de controle sociometablico. A razo principal por que este sistema forosamente escapa a um significativo grau de controle humano precisamente o fato de ter, ele prprio, surgido no curso da histria como uma poderosa na verdade, at o presente, de longe a mais poderosa estrutura totalizadora de controle a qual tudo o mais, inclusive seres humanos,
48 KONDER, L. Idem. p. 40. 49 MOHUM, Simon. Capital (verbete). In : BOTTOMORE, T. (ed.) Obra citada. p. 44. 50 Segundo Eric Hobsbawn, o marxis mo vulgar abarca vrias concepes equivocadas quanto ao pensamento de Marx, em geral decorrentes de uma relao simplista de dominncia e dependncia entre a base econmica e a superestrutura. (HOBSBAWM, Eric. Sobre histria: ensaios. p. 159-160.). No mes mo caminho, Luciano Gruppi trata da crtica gramsciana ao materialismo vulgar, que consiste numa reduo esquemtica da teoria marxista a relaes diretas de causa e efeito entre a base econmica e as demais instncias sociais em detrimento do mtodo dialt ico e da riqueza de mediaes que existem dentro das totalidades. Em certos momentos pode at ser til, por exemplo, para acalentar as massas aps uma derrota, caso em que se assemelha a uma religio, porm via de regra merece ser duramente combatido, j que geralmente se torna fonte de imobilis mo, na med ida em que leva concluso de que a histria caminha inexoravelmente ao socialis mo, a despeito da vontade e firme ao humanas. (GRUPPI, L. Obra citada. p. 76-78.)
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deve se ajustar, e assim provar sua viabilidade produtiva, ou perecer, caso no consiga se adaptar. No se pode imag inar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente e, neste importante sentido, totalitrio do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questo da sade e a do comrcio, a educao e a agricultura, a arte e a indstria manufatureira , que implacavelmente sobrepe a tudo seus prprios critrios de viabilidade, desde as menores unidades de seu microcosmos at as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais ntimas relaes pessoais aos mais complexos processos de tomada de deciso dos vastos monoplios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos. (...) o sistema do capital , na realidade, o primeiro na histria que se constitui como totalizador irrecusvel e irresistvel, no importa quo repressiva tenha de ser a imposio de sua funo totalizadora em qualquer momento e em qualquer lugar em que encontre resistncia.51
Com efeito, o capital se constitui numa fora totalizante de organizao e controle do
metabolismo societal porque tende a expandir-se e acumular-se infinitamente, na medida em
que sua lgica ultrapassa o atendimento das necessidades sociais, conferindo, portanto,
centralidade ao valor de troca, e no ao valor de uso, dos bens. Essa lgica se revela
altamente destrutiva na medida em que, se a produo no est mais ligada a necessidades, ela
no possui limites, desencadeando uma taxa de utilizao decrescente do valor de uso das
coisas (produzindo, consumindo e destruindo as mercadorias com rapidez cada vez maior),
atravs da qual, junto com o ciclo reprodutivo do capital, aceleram-se a explorao do
trabalho e, o que vem passando a ameaar no somente determinadas classes, mas toda a vida
no planeta, a degradao da natureza.52
Expansionista, (...) mundializado, (...) destrutivo e, no limite, incontrolvel, o sistema
de metabolismo social do capital vem assumindo cada vez mais uma estruturao crtica
profunda. Sua continuidade, vigncia e expanso no podem mais ocorrer sem revelar uma
crescente tendncia de crise estrutural que atinge a totalidade de seu mecanismo.53 Com base
nesta ordem de idias, pretende-se apresentar ao longo desta pesquisa algumas mediaes que
relacionam dialeticamente a questo agrria, a formao econmico-social brasileira (vista
luz do conceito gramsciano de bloco histrico) e o metabolismo social global dirigido pelo
sistema do capital isto , metabolismo regido pela lgica descrita acima e estruturado no
trip capital, trabalho e Estado. Neste primeiro captulo, tem-se por suficiente a exposio
dessas bases, assim como a demonstrao de que a questo agrria analisada de um
determinado ponto de vista consiste efetivamente num problema para o povo brasileiro.
51 MSZROS, Istvn. Para alm do capital. p. 95-96. 52 ANTUNES, R. Obra citada. p. 20-28. 53 ANTUNES, R. Idem. p. 27.
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De fato, outra concluso no possvel ao se cotejar dados que demonstram a
instalao de uma verdadeira guerra no meio rural: milhares de pessoas assassinadas e
escravizadas; milhes exploradas em condies subumanas, ou obrigadas a deixar seus lares,
passando fome e sofrendo com a mais absoluta misria; no tendo outra opo alm da
migrao para bolses de pobreza nos grandes centros, implicando aumento da violncia
urbana. Somando-se a isso, impactos ambientais e a ameaa soberania alimentar de um pas
de propores continentais. Tudo com o agravante de retroalimentar o processo de totalizao
do capital.
Para fins de ilustrao, o caso da monocultura da cana-de-acar (principalmente na
regio sudeste do pas) bastante eloqente e proporciona a visualizao de todas essas
mazelas. Trata-se de um caso bastante atual e que tende a se expandir cada vez mais devido
ao novo ciclo da cana instalado sob a insgnia da crise energtica a ser solucionada com
os agrocombustveis. Focalizemos, por enquanto, o problema da explorao intensiva da mo-
de-obra: recente relatrio54 informa que alm de as condies de trabalho neste ramo serem
marcadas pela exigncia de uma altssima intensidade de produtividade (no caso do corte,
uma mdia de 10 toneladas por dia de cada indivduo), os trabalhadores praticamente no tm
controle de sua produo, recebendo das usinas, via de regra, muito menos do que o
combinado se as contas fossem efetuadas corretamente o que j seria nfimo, pois em mdia
se paga R$ 2,20 por tonelada cortada , de modo que essas 10 toneladas na verdade so de 20
a 30. Tanto na atividade de corte como de plantio, o dispndio de energia enorme, numa
jornada que remonta aos primrdios da industrializao no sculo XIX. Os chamados
profissionais do podo trabalham de 8 a 9 horas dirias normalmente sob sol forte e
temperaturas acima dos 35 graus. Descrevendo o cotidiano desses trabalhadores, diz a autora:
Logo pela madrugada, comeam a preparar a comida, pois h apenas um fogo para muitas marmitas. Por volta das 6h, os nibus partem em d ireo aos canaviais, numa viagem que pode durar mais de uma hora. (...) A cana deve ser abraada e cortada o rs-do-cho para facilitar a rebrota. Esta atividade exige total curvatura do corpo. (...) para cortar 10 toneladas de cana o trabalhador desfere quase 10 mil golpes. A elevao continuada da mdia induz ao sofrimento, dor, doenas e at mesmo morte. H ainda registros de uso de drogas, como maconha e crack, para o aumento da capacidade de trabalho durante o corte da cana. A frase No d para acompanhar o campo de cara limpa reflete a crueza e a brutalidade destas relaes de trabalho.55
54 MORAES SILVA , Maria Aparecida. Trabalho e morte dos Severinos nos canaviais paulistas. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 53-60. 55 MORA ES SILVA, M. A. Obra citada. p. 57.
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Na medida do necessrio, alguns dos elementos citados acima (violncia,
marginalizao, xodo etc.) voltam a ser debatidos enquanto integrantes do problema agrrio
brasileiro, sem, contudo, a inteno de exaurir o estudo sobre cada um. Por ora, como
mencionado, basta evidenciar a relao dialtica entre a questo agrria e o metabolismo
social do capital, assim como, principalmente, demonstrar que h um srio problema no
mago de tal questo, o que implica a necessidade de anlise de suas mediaes e a
proposio de solues.
A respeito desse problema, Paulo San Martin afirma que
(...) o Brasil foi enfiado num beco de horror. Mud-lo agora representa bem mais do que aparar arestas e atenuar tragdias: um modelo agrcola profundamente integrado a lgicas transcendentes de poder se implantou por todos os poros, intervindo diretamente na fragmentao da cultura e do processo social do Pas.56
Tais palavras foram escritas h cerca de vinte anos, porm tiveram continuamente
reiterada sua validade at os tempos presentes, em que foram preenchidas praticamente todas
as lacunas que ainda existiam. No tpico seguinte, essa situao traduzida em nmeros e
exemplos.
1.2 CONFLITOS NO CAMPO, ESTADO E LUTA DE CLASSES
Como aludido, no possvel refutar a severidade do problema agrrio brasileiro ao se
deparar com alguns dados, que, entre outras coisas, revelam quem (ou que classe social) no
cessa de perder essa verdadeira guerra instalada no campo: de 1985 a 2005 ocorreram 1.063
conflitos com morte. Foram assassinadas 1.425 pessoas entre trabalhadores, lideranas
sindicais ou de movimentos, agentes de pastoral e outras pessoas que apiam a luta e a causa
dos trabalhadores. Entretanto, somente 78 destes homicdios foram julgados, com 67
condenados, dentre os quais apenas 15 eram os mandantes.57
A Comisso Pastoral da Terra CPT, que uma ao pastoral da Igreja Catlica com
raiz e fonte no Evangelho e que tem como destinatrios de sua ao os trabalhadores e
trabalhadoras da terra, registra com rigor cientfico e denuncia os conflitos do campo
ocorridos no ano anterior, por fidelidade ao Deus dos pobres, terra de Deus e aos pobres
56 SAN MA RTIN, P. Agricultura suicida: um retrato do modelo brasile iro. p. 9. 57 Centro de Estudos Bblicos CEBI. Os pobres possuiro a terra: pronunciamento dos bispos e pastores sinodiais sobre a terra. p. 35.
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da terra.58 Seus cadernos, uma das poucas fontes sobre o assunto, portam informaes muitas
vezes infelizes porm preciosas. E tambm muito precisas.59 Os dados estatsticos de todo o
pas so minuciosos, especificando, por exemplo, cada uma das reas em conflito, sua
situao jurdica, nmero de mortos, de feridos, tipo de violncia praticada, nmero de
famlias envolvidas, expulsas, despejadas ou ameaadas, se h casas, roas e outros bens
destrudos, tamanho das reas etc. Demais disso, os conflitos so classificados em cinco eixos
principais: conflitos por terra, gua, trabalhistas, por violncia contra as pessoas, e decorrentes
de manifestaes. Para os fins desta pesquisa, vale pr em relevo a tabela de Comparao
dos Conflitos no Campo de 1997 a 2006, apresentada no Caderno referente ao ano de 2006.
Com relao a este ltimo ano apenas, cite-se que foram registrados pela CPT 1.212
conflitos de terra, com 384 ocupaes, 67 acampamentos, 35 assassinatos, 703.250 pessoas
envolvidas. Conflitos pela gua foram 45, com 13.072 pessoas envolvidas. Esses dois tipos de
conflitos, somados com outros, resultam num total de 1.657, com 39 assassinatos, 783.801
pessoas envolvidas, em 5.051.348 hectares.60
Por suas dimenses, o Massacre de Eldorado dos Carajs, no Par, que completou 10
anos em 17 de abril de 2006, talvez seja o caso mais emblemtico da violncia recente no
campo brasileiro. Nele se encontram os ingredientes tanto da truculncia da elite agrria,
como da criminalizao da pobreza e movimentos sociais por parte do governo, e, ainda, da
conivncia do Poder Judicirio. Nesse dia, na curva do S da rodovia PA-150, uma
manifestao pacfica de trabalhadores rurais sem-terra foi brutalmente reprimida pela Polcia
Militar, que assassinou 19 pessoas e feriu 69. A magnitude do caso fez com que a data fosse
considerada pelos movimentos camponeses do mundo todo como o Dia Internacional de Luta
pela Terra. A impunidade, ponto comum de crimes como esses, no foi aqui excepcionada:
nenhum dos 155 policiais que participaram da chacina foi preso; um coronel e um major
foram condenados a 228 e 154 anos de priso, respectivamente, mas os grandes responsveis
polticos sequer foram indiciados, que seriam o ento governador Almir Gabriel e o secretrio
de segurana, Paulo Sette Cmara.61 Alm disso, as duas condenaes podem ser
58 CANUTO, Antnio et al (coord.). Conflitos no Campo Brasil 2006. p. 9. 59 A CPT desde sua criao se defrontou com os conflitos no campo e o grave problema da violncia contra os trabalhadores e trabalhadoras da terra. Esta violncia que saltava aos olhos comeou a ser registrada sistematicamente j no final dos anos 1970. Desde 1985 os dados comearam a ser publicados anualmente em forma de cadernos. (...) em 2002 comeou a registrar os conflitos pela gua. A CPT tornou-se a nica entidade a realizar to ampla pesquisa da questo agrria em escala nacional. (...). (CANUTO, A. et al (coord.). Obra citada. p. 9.) 60 CANUTO, A. et al (coord.). Idem . p. 14. 61 SYDOW, Evanize. Massacre de Eldorado dos Carajs completa 10 anos e movimentos lutam contra a impunidade. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 31-32.
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consideradas pura pirotecnia para aplacar a opinio pblica, vez que at hoje o processo
criminal perambula pelos tribunais do pas e os condenados continuam livres.62
Apesar de o massacre de Eldorado dos Carajs ter trazido tona o debate, em nvel
internacional, sobre a violncia no campo, esta se manteve constante nos 10 anos seguintes, a
despeito da troca de governos. Em referido perodo houve o assassinato de 170 lideranas de
trabalhadores rurais no estado do Par, onde, ademais, so registrados os maiores nmeros de
casos de utilizao de mo-de-obra escrava. E dos 770 assassinatos de trabalhadores e de
pessoas que os apoiavam ocorridos nos ltimos 34 anos (dados de 2006), somente em trs
casos houve o julgamento dos mandantes dos crimes.63
Foi no Par, tambm, na cidade de Anapu, que pistoleiros, a mando de grileiros e de
grandes proprietrios de terra da regio que mantm milcias privadas armadas, assassinaram
a missionria estadunidense Dorothy Mae Stang, que contribua na causa dos povos
tradicionais da regio por terra e contra a degradao da Amaznia. Aton Fon Filho,
advogado que atua como assistente de acusao no caso, em 2005 advertia para a grande
possibilidade de que aquele brbaro crime se mantivesse impune graas s conhecidas e
esprias manobras de defesa dos advogados dos latifundirios, manobras que cotidianamente
encontram guarida num Poder Judicirio sensvel s causas de seus pares, integrantes da
mesma elite. Constatando em 2006 que infelizmente sua profecia havia se cumprido, Fon
inicia seu artigo64 repetindo o que havia inutilmente afirmado um ano antes:
Advogados dos latifundirios tm recorrentemente traado como estratgia em casos de assassinatos de defensores de direitos humanos atuar com vistas a desmembrar os processos, de modo que os pistoleiros sejam ju lgados separados dos mandantes, e de que os julgamentos destes sofram a mxima delonga possvel. Com isso, encontram sempre algum magistrado, em alguma instncia que conceda habeas corpus aceitando a alegao de excesso de prazo, ainda que, jurisprudencialmente, essa alegao no se sustente quando os prazos so ultrapassados por culpa da prpria defesa.65
Com efeito, a manobra de desmembramento dos processos foi levada a cabo, tal como
previsto. E, tal como previsto, a estratgia tradicional dos defensores dos fazendeiros
mandantes de assassinatos no Par, buscando postergar os julgamentos por meio da suscitao
de incidentes e interposio de recursos processuais, mostrou-se ainda uma vez eficaz diante
62 SAMPAIO, Plnio de Arruda; COMAPRATO, Fbio Konder; SILVA , Jos Afonso da. Uma justia de classe. 63 SYDOW, E. Obra citada. p. 32. 64 FON FILHO, Aton. Profecias no modificam o futuro. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 33-37. 65 FON FILHO, A. Obra citada. p. 33.
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dos clamores pela cessao da impunidade.66 Isso apesar de, no processo que culminou na
condenao de dois executores, ter restado suficientemente estabelecida a ligao entre eles e
os fazendeiros. No obstante a presso exercida por vrios movimentos sociais e as vrias
diligncias de comisses de defensores de direitos humanos e representantes polticos, os
entraves processuais deliberadamente postos pelos procuradores dos rus e aceitos pelos
juzes, desembargadores e ministros continuam impedindo o regular julgamento dos acusados
de mandar matar Irm Dorothy.
Os intentos de tais entidades foram, contudo, baldados, porque no apenas a mesma lentido se manteve, como as instncias superiores a ela aderiram, de modo que ainda hoje passeiam em Braslia recursos ajuizados visando nica e exclusivamente produo de mais delongas. (...) Ainda que os recursos interpostos recurso especial e extraord inrio pelas defesas de Bida e Tarado no tenham efeito suspensivo, isto , no impeam o julgamento de ambos pelo Tribunal do Jri de Belm, as autoridades judicirias dali se tm esquivado de designar data para os julgamentos de ambos os rus, no que no se pode sequer acus-las por aquiescerem vontade destes, uma vez que no chegou a ser formulado pedido com esse objetivo.67
Indicando que os casos citados no so fatos isolados, tampouco a impunidade que os
reveste, h considervel bibliografia relatando a opresso que mesmo em perodos recentes
vem sendo perpetrada no campo brasileiro. Alm do j citado levantamento anual publicado
pela CPT dos conflitos agrrios, separados por temtica, outro interessante instrumento de
pesquisa de dados dessa ordem o relatrio vencido (graas a ardis da bancada ruralista) da
CPMI da Terra, editado em forma de livro.68 J a obra Desterro,69 tambm publicada pela
CPT, e os anais do Tribunal Internacional dos Crimes do Latifndio70 centram foco no estado
do Paran, retratando a forma com que o governo Jaime Lerner tratava a questo agrria
nos anos 1990, dizer, quando a violao dos direitos humanos dos trabalhadores rurais,
principalmente os integrantes de movimentos populares, se apresentava como uma deliberada
poltica de Estado. Entre vrias outras, merecem destaque tambm as publicaes da
66 FON FILHO, A. Idem. p. 35. O autor re lata tambm a disputa entre os grandes escritrios para serem contratados para defender esses milionrios casos: A quantidade de advogados se oferecendo, quase se digladiando para assumirem as defesas de Rayfran, Clodoaldo e Tato [acusados da execuo do crime], gerou mes mo cenas deprimentes de trs ou quatro profissionais, no dia do julgamento, aguardando serem escolhidos pelos rus, como pretendentes s portas do castelo das princesas nbeis. (FON FILHO, A. Idem . p. 34.) 67 FON FILHO, A. Idem . p. 35 68 MELO, Joo Alfredo Telles (org.). Reforma agrria quando? CPI mostra as causas da luta pela terra no Brasil. 69 OLIVEIRA, Jelson; NUNES, Rogrio; BORGES, W ilton. Desterro: uma cronologia da vio lncia no campo no Paran na dcada de 90. 70 Associao Brasileira de Reforma Agrria; Associao Direito e Cidadania; Comisso de Direitos Humanos da Cmara Federal et al. Anais do tribunal internacional dos crimes do latifndio e da poltica governamental de violao dos direitos humanos no Paran.
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Associao Brasileira de Reforma Agrria ABRA, instituio que desde 1969 trava dura
luta contra a injusta concentrao fundiria brasileira, principalmente atravs de estudos
bastante qualificados sobre a questo agrria brasileira.
O Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IPEA, por sua vez, aps apontar o
quadro geral de conflitos agrrios no perodo de 1996 a 2005, constata que O resultado mais
evidente dos conflitos os assassinatos tambm no arrefeceu71 e, como casos mais
expressivos, destaca Corumbiara,72 Eldorado dos Carajs, Felisburgo,73 Dorothy
Stang e Chacina de Una.74 Ao final, conclui que Os casos relatados constituem uma
pequena parcela da violncia que ainda grassa no campo. A demora para que os culpados
sejam levados a julgamento gera uma cultura de impunidade que s faz alimentar a lei dos
mais fortes.75
preciso ter claro que ao se fazer referncia impunidade que reveste os crimes
contra a classe trabalhadora rural certamente no se pretende aqui advogar a idia de que o
direito penal deva ser invocado como mecanismo de resoluo deste problema. Pelo contrrio,
a inocuidade de tal medida patente. O intento restringe-se a demonstrar a disparidade do
tratamento direcionado aos de cima e aos de baixo por parte de praticamente todas as
esferas do poder pblico, saltando aos olhos a seletividade perpetrada pelo Judicirio, que
71 INSTITUTO DE PESQUISA ECONMICA APLICA DA IPEA. Polticas sociais: acompanhamento e anlise. p. 331. 72 Em julho de 1995, um grupo de sem-terra ocupou uma rea da Fazenda Santa Elina, em Rondnia, municp io de Corumbiara, perto da div isa com o Mato Grosso e da fronteira com a Bo lv ia. Dias depois, foi exped ida liminar de reintegrao de posse, por presso de ruralistas da regio. Estabeleceu-se impasse nas negociaes pela desocupao da rea. Na madrugada de 9 de agosto, comeou o despejo pela PM de Rondnia e jagunos contratados por fazendeiros. Os acampados foram violentamente atacados. Segundo relatam lideranas dos trabalhadores sem terra, homens foram executados sumariamente, mulheres foram usadas como escudo humano pelos atacantes. O acampamento foi completamente destrudo. Pelo menos 12 pessoas foram mortas, 350 pessoas foram presas, dezenas foram feridas e inmeros casos de tortura e espancamentos foram registrados. Ningum foi responsabilizado pelos crimes e abusos cometidos. (IPEA. Idem. p. 332.) 73 Minas Gerais, 2004. As famlias que ocupam a Fazenda Nova Alegria, Municpio de Felisburgo, no Vale Jequitinhonha, em Minas Gerais, desde 1 de maio de 2002, foram surpreendidas em 20 de novembro de 2004 por rajadas de balas disparadas por 18 pistoleiros, trs deles encapuzados, fortemente armados, que assassinaram cinco trabalhadores e balearam outros vinte. Alm dos disparos, atearam fogo em todas as barracas. O Instituto de Terras de Minas Gerais (ITER) por meio do levantamento da cadeia dominial, constatou que a fazenda devoluta e, por morosidade do Poder Judicirio, o processo de assentamento das famlias continuava inconcluso. Depois de tanto tempo, apenas trs envolvidos esto presos. O mandante do crime continua em liberdade, assim como outros sete jagunos j identificados pelas vtimas. Eles convivem diariamente com os sem-terra atacados, mantendo o clima de terror na regio. (IPEA. Idem. p. 333.) 74 Em 28/01/2004, trs auditores fiscais do trabalho, ligados ao departamento regional de Belo Horizonte, e o motorista que os acompanhava foram mortos na rodovia vicinal MG-188, a 55 km de Una (MG). Os quatro receberam tiros na cabea. O objet ivo dos fiscais mortos era v istoriar as condies de trabalho, remunerao e acomodao das pessoas arregimentadas para colherem a safra de feijo, que acontece de janeiro at o fim de fevereiro na regio. Apesar de um dos fiscais ter recebido ameaas de morte, o grupo no tinha proteo policial. (IPEA. Idem. p. 334.) 75 IPEA. Ibidem.
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apesar da relatada ineficincia e lentido no julgamento de crimes de polticos e latifundirios,
rpido em atender a pedidos de reintegrao de posse contra coletividades marginalizadas
(mesmo quando se est a tratar de reas com grave descumprimento da funo social do
imvel), assim como volta lentido habitual quando se trata de processos de desapropriao
de imveis para fins de reforma agrria, e assim por diante.
Ainda com relao aos conflitos no campo, o relatrio de Antnio Canuto76 relativo a
2007 aponta que apesar de estatisticamente o nmero de mortes ter diminudo em comparao
com o mesmo perodo analisado (janeiro a outubro) do ano passado, os registros no do
conta de todos os casos. Com relao ao trabalho escravo, por exemplo, de cada fato
visibilizado, outros quatro jamais chegaro a conhecimento pblico. Sua concluso a de que
a violncia no campo, longe de estar sendo vencida, tende a aumentar, dada a voracidade
com que o capital se lana para ampliar seus lucros, estimulado pela prioridade reservada ao
agronegcio na poltica do governo para o campo.77
Estes dados gerais e exemplos provam o acerto do argumento desenvolvido, no
sentido de a questo agrria ser um problema central no Brasil, ainda nos dias de hoje, cuja
soluo passa pelo fortalecimento de uma teoria crtica a respeito e, principalmente, por uma
prxis efetivamente contra-hegemnica da classe trabalhadora organizada.
Mas para uma melhor compreenso dos conflitos no campo no basta sua exposio.
Uma srie de elementos devem ser sistematicamente analisados para se vislumbrar sua gnese
e, com isso, algumas possveis solues. Somando s estatsticas e exemplos explicitados,
ento, parecem imediatamente essenciais os seguintes dados: estrutura e concentrao
fundiria, trabalho escravo, e comparao entre as polticas de crdito destinadas
agricultura familiar, de um lado, e aos grandes proprietrios, de outro. Com isso se pode
perceber as pssimas condies em que so mantidos a classe trabalhadora do campo e os
pequenos produtores, pelas classes dominantes, com o largo uso do aparelhamento estatal.
O ndice de Gini, medida estatstica organizada internacionalmente, a metodologia
utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE para analisar a
concentrao fundiria no Brasil. Quanto mais prximo de 1 (um), mais concentrada a
propriedade; quanto mais prximo de 0 (zero), melhor distribuda a terra. Em um estudo no
ano 2001,78 o IPEA utilizou a tabela de Evoluo do ndice de Gini de 1950 a 1995. L se
76 CA NUTO, A. O agronegcio avana sobre novos territrios e a limenta a vio lncia. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. Direitos humanos no Brasil 2007: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 31-38. 77 CANUTO, A. O agronegcio avana... p. 38. 78 IPEA. Acompanhamento de polticas e programas governamentais.
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encontram os ndices separados por regio e tambm a mdia nacional. Desta, segue a
evoluo de 1950 a 1995: 1950 0,840; 1960 0,839; 1970 0,843; 1975 0,854; 1980
0,857; 1995 0,856.
Constata-se, portanto, que no perodo abarcado pela pesquisa, no houve alterao
substancial na estrutura fundiria brasileira, havendo, inclusive, uma leve tendncia a uma
maior concentrao. O mesmo estudo citado (do IPEA) relata que no incio do ano de 2001, o
Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MDA afirmava efetiva reduo do ndice de Gini,
de 0,848 para 0,802. Entretanto, o prprio IPEA (que um rgo ligado ao Poder Executivo)
refutou os clculos do MDA, uma vez que a metodologia utilizada por este na poca
implicava a retirada da base de clculo, no ano 2000, de grandes reas supostamente em
mos de grileiros e, como essa imensa rea integrava a base anterior (1992), a comparao de
resultados fica prejudicada. Alm disso, dizia que o MDA alterou, tambm, sua base
cadastral com o fim de imputar os novos assentados e excluir as terras pblicas. Tpica do
perodo de governo de Fernando Henrique Cardoso, quando a questo agrria e a insurgncia
popular eram duas de suas grandes pedras no sapato, a maquiagem nos nmeros relativos s
polticas agrrias continua infelizmente sendo prtica comum no Governo de Luiz Incio Lula
da Silva, vez que a realidade do campo mantm-se predominantemente excludente.
Pode-se ter uma noo da concentrao fundiria no Brasil por outras medidas
tambm. Por exemplo, consta do II Plano Nacional de Reforma Agrria PNRA,79 de 2003,
informao de que os 3.896.025 imveis com menos de 200 hectares, considerados de carter
familiar, somam uma rea de 123 milhes de hectares, correspondentes a 29% da rea rural
brasileira; enquanto isso, os 342.422 imveis com mais de 200 hectares, considerados de
carter patronal, somam 297 milhes de hectares, o que equivalente a 71% da rea rural
brasileira. Segundo informaes do Censo Agropecurio de 1995-96 realizado pelo IBGE,
As propriedades com mais de 1 mil hectares eram 49 mil, representavam 1% do total e
ocupavam 45% da rea.80
79 Ministrio do Desenvolvimento Agrrio MDA; Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INCRA. II plano nacional de reforma agrria: paz, p roduo e qualidade de vida no meio rural. 80 MORISSAWA, Mitsue. A histria da luta pela terra e o MS T. p. 115.
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Sobre a existncia de trabalho escravo no campo em dias atuais,81 vale ter em conta
que desde a criao do Grupo Especial de Fiscalizao Mvel do Ministrio do Trabalho
MTE, em 1995, at o mais recente levantamento deste Ministrio, realizado em junho de
2007, 23.405 trabalhadores escravos no Brasil haviam sido libertados, em 1.753 propriedades
fiscalizadas.82 No Plano do MDA/INCRA para erradicao do trabalho escravo,83 so
trazidas algumas caractersticas do trabalho escravo no campo de hoje, assim como seu
mecanismo de funcionamento, que consiste normalmente na prtica da penoagem:
Passados mais de 100 anos do anncio da Lei urea, a escravido continua sendo uma das maiores expresses de degradao humana e social que assolam o Brasil. Expressa de diversas formas e intensidades, a escravido em tempos recentes caracteriza-se pelo cerceamento da liberdade, pela degradao das condies de vida, pela vinculao financeira , pelo autoritaris mo nas relaes sociais e, fundamentalmente, pelo desrespeito e violao aos direitos humanos. Os dados mais recentes, segundo a Comisso Pastoral da Terra (CPT), indicam que podem existir no Brasil 25 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais vivendo em regime anlogo ao trabalho escravo, em d iversos estados do pas, com nfase aos estados da Regio Norte. A escravido contempornea to perversa quanto a que existia at o final do sculo XIX (...). Para a escravido atual no existem cores, apenas miserveis. Independentemente de suas raas, todos so descartveis, pois laboram sob condies degradantes, em troca apenas de comida, sem o reconhecimento de seus direitos trabalhistas e de sua prpria condio de ser humano. Com uma taxa de desemprego alarmante e uma farta mo-de-obra, a forma de trabalho escravo mais freqente no Brasil a da servido (ou penoagem) por dvida (no dia do pagamento, a dvida do trabalhador maior do que o que ele teria a receber pelos servios prestados).84
Sobre este assunto ainda, Ricardo Rezende Figueira traa o perfil dos novos senhores
de escravos proprietrios de imveis rurais, denunciados em 2006 ou em anos recentes.
81 Importa a esta pesquisa o trabalho escravo do campo no Brasil, porm necessrio registrar sua existncia tambm nas cidades, e, ainda, em outros pases. Ricardo Rezende Figueira traz o exemplo dos imigrantes bolivianos ilegais que so mantidos em condies de escravos no setor txt il de So Paulo, principalmente. Em nvel internacional, Figueira cita o informe Una alianza global contra el trabajo forzoso, da OIT, que revela a existncia de 12,3 milhes de pessoas em trabalho forado em todos os continentes. Alm disso, trata da interligao entre estes casos na economia g lobalizada: O t rabalho escravo repercute alm das fronteiras do estado ou do pas; envolve mo-de-obra nacional e estrangeira. A carne produzida no Brasil em condies de trabalho escravo poderia estar sendo comercializada e vendida na Gr-Bretanha; a confeco feita em So Paulo por bolivianos poderia estar sendo comercializada por fornecedores da multinacional holandesa C&A, como alertou o Ministrio Pblico do Trabalho; parte da cana-de-acar mato-grossense, fruto de mo-de-obra escrava alic iada em quatro estados do Nordeste, era vendida para destilaria de lcool e entrava no circu ito das redes de combustvel. (FIGUEIRA, Ricardo Rezende. A escravido por dvida: novidades e persistncias. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 63.) Para um relato mais minucioso do trabalho escravo nas cidades brasileiras: BA SSEGIO, Luiz; UDOVIC, Luciane. Migraes e Senzalas do sculo 21. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2006: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 137-146. 82 FIGUEIRA, R. R. O trabalho escravo e a promiscuidade de autoridades. In: SIDOW, E.; MENDONA, M. L. (org.). Direitos humanos no Brasil 2007: relatrio da Rede Social de Justia e Direitos Humanos. p. 57. 83 MDA/INCRA. Plano do MDA/INCRA para a erradicao do trabalho escravo. 84 MDA/INCRA. Obra citada. p. 9.
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Segundo ele, tais senhores so predominantemente ligados ao agronegcio, misturando assim,
a tecnologia de um mundo informatizado e globalizado com formas degradantes e
coercitivas de trabalho.85 Demais disso,
So empresrios modernos e, entre estes, alguns exercem ou exerceram, quando o fato se deu, cargos pblicos, especialmente no legislativo estadual e federal , incluindo o Senado. H, a inda, entre os denunciados, membros de outros poderes prefeito, min istro, secretrio de estado, juiz de direito e, recentemente, houve a denncia contra um reitor de uma universidade particular.86
No relatrio de 2007, Figueira informa que a situao continua inalterada, vez que as
fiscalizaes e libertaes evidenciam apenas uma parte do problema. O que marcou esse ano,
porm, foram as articulaes de autoridades governamentais principalmente deputados e
senadores ligados chamada Bancada Ruralista do Congresso Nacional voltadas a
inviabilizar os trabalhos do Grupo Mvel de Fiscalizao, basicamente mobilizando o maior
nmero de congressistas para questionar a seriedade dos trabalhos do Grupo e pressionando
para que as penalidades nesses casos sejam as mais brandas possveis, alm de procurarem
barrar quaisquer projetos de normas que prevejam medidas contrrias ao trabalho escravo.87
A despeito do avano alcanado mediante vrias aes de enfrentamento realizadas
pelo Estado, sociedade civil organizada e classe patronal nos ltimos tempos, avano
reconhecido pela Organizao Internacional do Trabalho OIT, esta mesma entidade aponta a
persistncia de velhos impasses, como a impunidade, a indefinio de competncia para se
julgar os aspectos criminais, e a no aprovao da PEC 438/2001, relativa perda da
propriedade nos casos de trabalho escravo.88 Figueira ressalta ainda mais duas falhas da
poltica de combate ao trabalho escravo: falta de medidas ousadas de gerao de renda para a
populao mais vulnervel ao aliciamento, e falta de implementao de medidas eficazes de
reforma agrria.89
Finalmente, preciso ter em conta uma comparao entre as polticas de crdito
destinadas pequena agricultura (familiar e camponesa), de um lado, e aos grandes
proprietrios, de outro. Dos quase R$ 60 bilhes de crdito rural anunciados no II PNRA,
15% so destinados s pequenas propriedades (familiares), de at 200 hectares; 48%, s
85 FIGUEIRA, R. R. A escravido por dv ida... p. 62. 86 FIGUEIRA, R.R. Ibidem. 87 FIGUEIRA, R. R. O t rabalho escravo... p. 54-56. 88 FIGUEIRA, R. R. A escravido por dvida... p. 65. At o encerramento desta pesquisa, tal Projeto de Emenda Constitucional ainda no foi aprovado. Seu trmite pode ser acompanhado em: lt imo acesso em: 17 de janeiro de 2008. 89 FIGUEIRA, R.R. Ibidem.
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mdias propriedades, de 200 a 2000 hectares; e 37% s grandes propriedades, tpicas do
agronegcio, com mais de 2000 hectares. Na safra 2005/2006, o crdito rural oferecido s
mdias e grandes propriedades (acima de 200 hectares), que empregam 2,2 milhes de
pessoas (13,4% da populao ativa do meio rural), foi de R$ 44,3 bilhes. Enquanto isso, no
mesmo perodo, pequena agricultura, que emprega 14 milhes de pessoas (86,6% da
populao ativa do meio rural), for