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IMAGENS DE UM BRASIL MESTIÇO E DESIGUAL Marcos Henrique da Silva Amaral Aluno de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Matrícula: 15/0098855. Trabalho apresentado ao término da disciplina Pensamento Social Brasileiro, ministrada pelo professor Sérgio Tavolaro, durante o primeiro semestre de 2015. INTRODUÇÃO: RELAÇÕES ENTRE RAÇA E NAÇÃO Apesar de não existirem formas de discriminação no corpo da lei, os pobres e, sobretudo, as populações negras são ainda os mais culpabilizados pela Justiça, os que morrem mais cedo, têm menos acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. Marca forte e renitente, a herança da escravidão condiciona até nossa cultura, e a nação se define a partir de uma linguagem pautada por cores sociais. Nós nos classificamos em tons e meio-tons, e até hoje sabemos que quem enriquece, quase sempre, embranquece, sendo o contrário também verdadeiro. Se a fronteira de cor é de fato poroso entre nós, e não nos reconhecemos por critérios só biológicos; se no país a inclusão cultural é uma realidade e se expressa em tantas manifestações que o singularizam ― a capoeira, o candomblé, o samba, o futebol; se nossa música e nossa cultura são mestiças em sua origem e particularidade, não há como esquecer também os tantos processos de exclusão social. Eles se expressam nos acessos ainda diferentes a ganhos estruturais no lazer, no emprego, na saúde e nas taxas de nascimento, ou mesmo nas intimidações e batidas cotidianas da polícia, mestra nesse tipo de linguagem de cor (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 15). Poucos discordariam, hoje, da assertiva “o Brasil é um país mestiço”. Tampouco divergiriam da máxima “o Brasil é um país desigual”. Ambas as afirmações, como aponta a epígrafe acima, integram algumas das imagens mais perenes elaboradas sobre o Brasil, ganhando status de verdades imediatas. É curioso notar, no entanto, que as populações negras que tanto ganham destaque em nossa trama mestiça ― pois delas teríamos herdado o samba, a religiosidade, a culinária e mais um sem número de elementos que compõem a nossa identidade ― ocupam posição de subalternidade em nossa trama desigual. Mestiçagem e desigualdade

A questão racial no pensamento social brasileiro

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Trabalho sobre a questão racial no Brasil

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Page 1: A questão racial no pensamento social brasileiro

IMAGENS DE UM BRASIL MESTIÇO E DESIGUAL

Marcos Henrique da Silva Amaral

Aluno de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília

(UnB). Matrícula: 15/0098855. Trabalho apresentado ao término da disciplina Pensamento Social

Brasileiro, ministrada pelo professor Sérgio Tavolaro, durante o primeiro semestre de 2015.

INTRODUÇÃO: RELAÇÕES ENTRE RAÇA E NAÇÃO

Apesar de não existirem formas de discriminação no corpo da lei, os pobres

e, sobretudo, as populações negras são ainda os mais culpabilizados pela

Justiça, os que morrem mais cedo, têm menos acesso à educação superior

pública ou a cargos mais qualificados no mercado de trabalho. Marca forte

e renitente, a herança da escravidão condiciona até nossa cultura, e a nação

se define a partir de uma linguagem pautada por cores sociais. Nós nos

classificamos em tons e meio-tons, e até hoje sabemos que quem enriquece,

quase sempre, embranquece, sendo o contrário também verdadeiro. Se a

fronteira de cor é de fato poroso entre nós, e não nos reconhecemos por

critérios só biológicos; se no país a inclusão cultural é uma realidade e se

expressa em tantas manifestações que o singularizam ― a capoeira, o

candomblé, o samba, o futebol; se nossa música e nossa cultura são mestiças

em sua origem e particularidade, não há como esquecer também os tantos

processos de exclusão social. Eles se expressam nos acessos ainda diferentes

a ganhos estruturais no lazer, no emprego, na saúde e nas taxas de

nascimento, ou mesmo nas intimidações e batidas cotidianas da polícia,

mestra nesse tipo de linguagem de cor (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.

15).

Poucos discordariam, hoje, da assertiva “o Brasil é um país mestiço”. Tampouco

divergiriam da máxima “o Brasil é um país desigual”. Ambas as afirmações, como aponta a

epígrafe acima, integram algumas das imagens mais perenes elaboradas sobre o Brasil,

ganhando status de verdades imediatas. É curioso notar, no entanto, que as populações negras

que tanto ganham destaque em nossa trama mestiça ― pois delas teríamos herdado o samba, a

religiosidade, a culinária e mais um sem número de elementos que compõem a nossa identidade

― ocupam posição de subalternidade em nossa trama desigual. Mestiçagem e desigualdade

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imbricam-se de forma ambivalente, delineando os vários debates intelectuais que se

empenharam ― e empenham-se ― em definir uma singularidade brasileira. Assim, se a tese

da singularidade brasileira apresenta-se, desde o final do século XIX, como uma das ideias

mais poderosas de nosso pensamento social (TAVOLARO, 2014), é igualmente verdadeira sua

intrinsecabilidade em relação à temática racial. A tese da singularidade, segundo a qual o Brasil

é tomado como nação essencialmente idiossincrática merecedora de esforços analíticos

igualmente específicos capazes de torná-la inteligível, mostra-se, desde seus primeiros

contornos, indissociável das discussões em torno da raça. Tal indissociabilidade entre raça e

nação no pensamento social brasileiro é construída especialmente em função da convergência

entre os processos que delineiam os contornos do Brasil República e a Abolição da Escravatura,

fazendo com que a pergunta “quem somos nós” seja respondida, a partir de então, não apenas

sob o prima de um novo modelo político, a república, mas também sob a perspectiva de uma

novo arranjo populacional cujo guindamento dos negros ― ex-escravos ― à condição de

cidadãos cria um país de maioria negra e mestiça.

A imagem de um “Brasil mestiço” é provavelmente uma das mais recorrentes

representações elaboradas entre os intelectuais brasileiros, desde então. Renato Ortiz, no texto

sugestivamente intitulado Imagens do Brasil, aponta que, no final do século XIX, com a

concomitância da proclamação da República e da abolição da escravatura, a afirmação “o Brasil

é um país mestiço resultado do cruzamento de três raças, o branco, o negro e o índio” ganha

força progressivamente. “Este será o tema central em torno do qual evolui a busca da identidade

nacional” (ORTIZ, 2013, p. 615). Diagnóstico semelhante pode ser encontrado em Schwarcz

(1993) e Trindade (2014), segundos os quais, a partir daquele período, a ânsia por um projeto

nacional coloca como questão central o cruzamento de raças e suas implicações na formação

do povo brasileiro. Destarte, os três autores atentam-se para a ligação inexorável, na passagem

do século XIX para o XX, entre a preocupação dos intelectuais com a construção de uma

identidade nacional e as condições reais de existência do país, ou seja, a Abolição, o

aproveitamento do ex-escravo como proletário, a imigração estrangeira, a consolidação da

república (ORTIZ, 2006, P. 29). Com efeito, é ponto pacífico na literatura a ideia de que o

processo de mudança assistido pela intelligentsia brasileira acaba por pautar os debates

intelectuais daquele período, alçando a questão racial às primeiras linhas do pensamento social

brasileiro e reverberando-a nas gerações subsequentes.

Com isto, o tema da mestiçagem, extremamente caro à geração da virada do século

― representada por Joaquim Nabuco (2012), Silvio Romero (1980) e Euclides da Cunha (1992)

― perpassa, em maior ou menor grau, interpretações sobre o Brasil que adentram o século XX,

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como o célebre Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre (2006) e os estudos de Florestan

Fernandes (2008 e FERNANDES; BASTIDE, 2008) sobre a posição do negro na história

econômica de São Paulo. Todavia, embora possamos afirmar que a mestiçagem aparece como

emblema nas várias imagens de Brasil construídas no período pós-abolicionista, seria um

equívoco postular qualquer univocidade entre elas, isto porque a noção de mestiçagem ganha

tantos significados quanto a própria multiplicidade de retratos, interpretações, representações

ou imagens que se remetem ao Brasil (ORTIZ, 2013). Inicialmente, fortemente influenciados

pelas teorias raciológicas e racistas europeias, os intérpretes atribuíam à mestiçagem um caráter

de degradação física e moral. Tal interpretação, de cunho determinista e pessimista considerava

a sociedade brasileira fadada ao atraso graças às máculas de raças inferiores, representadas por

negros e indígenas (cf. SCHWARCZ, 1993). Por outro lado, o processo histórico que culmina

com a Abolição da Escravatura faz com que uma visão progressista a respeito da questão racial

ganhe força e, embora o discurso racista a respeito de uma hierarquia entre as raças permaneça

vigoroso ainda durante o século XX ― como é observado na obra de Oliveira Vianna (2005;

1938) ―, há uma mudança dos posicionamentos em torno da mestiçagem brasileira: as soluções

para o “atraso” brasileiro baseadas no “embranquecimento” da população dão lugar,

progressivamente, à mestiçagem como fato inexorável e indissociável de nossa identidade;

processo que se consolida definitivamente com a obra de Gilberto Freyre, na década de 1930

(TRINDADE, 2014). Nas palavras de Mota (2014, p. 70), “se, antes, Oliveira Vianna

considerava de forma negativa a mestiçagem, Gilberto Freyre agora a considera de forma

positiva”.

Os inúmeros significados atribuídos à mestiçagem ― que culminam na ideia

freyreana da mestiçagem como harmonização de contrários étnicos e culturais (FREYRE,

2006) ― endossam as análises que indicam que as respostas oferecidas à pergunta “quem somos

nós” são elucidações das inclinações teóricas, dos interesses políticos, do contexto histórico e,

enfim, do próprio posicionamento dos autores nas situações culturais vividas (ORTIZ, 2013;

MOTA, 2014). Concordando com o diagnóstico acima, a assertiva segundo a qual os

intelectuais em questão não apenas operam uma análise da temática racial no Brasil pós-

abolição, mas, igualmente, desempenham papel de artífices na construção da identidade

nacional também é verdadeira. Nas palavras de Trindade (2014, p. 19), “neste exercício de

imaginação da nação, os intelectuais desempenharam e continuam a desempenhar um papel

destacado, pois são ‘artífices dessa construção de imaginários coletivos’”.

Destarte, os intelectuais brasileiros parecem ter fundamental importância na

formulação dessa “alma mestiça do Brasil” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 15), uma

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imagem substancializada do Brasil-nação que se tornou discurso hegemônico não apenas entre

intelectuais, mas que se difunde entre a população nacional por inteiro. Tornamo-nos um país

definido por uniões, ritmos, artes, música, sentimentos, esportes, aromas, culinárias e outros

referentes simbólicos que, via mistura/ hibridismo, criam a singularidade nacional. Não nos

interessa, aqui, fazer a crítica às abordagens que tomam a ideia de nação e de identidade

nacional como dados a priori, dos quais poucos desconfiam. Tampouco, partimos do

pressuposto de que seja possível elencar uma essência singular brasileira1. Interessa, mormente,

observar o papel de relevo ocupado pelos intelectuais brasileiros ― e suas respectivas

ideologias ― na formulação dessas imagens.

Com efeito, é partir do lançamento e da repercussão da obra de Gilberto Freyre ―

especialmente de Casa-Grande & Senzala, lançado em 1933 ― que elementos “negros” ou

“mestiços” como a mulata, o samba, a capoeira, o candomblé e o futebol, se consolidam

definitivamente como símbolos da identidade nacional (ORTIZ, 2013).

Essa imagem freyreana do Brasil mestiço convive, todavia, com a imagem do Brasil

desigual. A epígrafe extraída da obra Brasil: uma biografia, de Schwarcz e Starling (2015),

indica que, a despeito da posição de relevo ocupado por elementos negros e mestiços ― como

o samba e o futebol ― na construção de nossa identidade nacional, as populações não brancas

seguem ocupando posições de subalternidade, por vezes análogas àquelas ocupadas no regime

escravista. Há, claro, mudanças experimentadas por estas populações no período pós-

abolicionista. Uma delas é, por certo, o seu alçamento à condição de símbolo nacional, além da

própria conquista legal da cidadania, que ocorre em 1888 com a Abolição. Tais mudanças, no

entanto, não representam um incremento imediato nas condições de vida das populações não

brancas no país, de modo que a classificação de nossa sociedade em “tons e meio-tons”

permanece sendo um dos principais mecanismos que atuam na construção social de nossa

desigualdade (AGUIAR, 2008). Retomando a obra que nos serve de epígrafe: “se a escravidão

ficou no passado, sua história continua a se escrever no presente. (…) Último país a abolira a

escravidão no Ocidente, o Brasil segue sendo campeão em desigualdade social e pratica um

racismo silencioso mas igualmente perverso” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 14).

1 Sobre este tema, é válida a leitura do texto Imagens do Brasil, de Renato Ortiz (2013). Sumariamente, o autor

lança olhar sobre alguns intérpretes brasileiros, indicando que, quase sempre, partem de uma mesma suposição:

“o” brasileiro. O uso artigo definido no singular indica a busca quase obsessiva de tais intérpretes por uma

essência brasileira, por identidade totalizadora apta a sumarizar a nação. Partindo-se desse pressuposto ― de que

é possível captar uma essência nacional ―, Sérgio Buarque de Holanda dirá que o brasileiro é “aventureiro”,

“inclinado à desordem” e “cordial”; Fernando Azevedo privilegia a “afetividade”, a “irracionalidade”, a

“imaginação”, a “tolerância”. Há inúmeros exemplos outros em nosso pensamento social que acabam por

substancializar a ideia de nação. Ortiz (2013), indo em outra direção, afirma que a identidade não é um dado

passível de ser elucidado ou descoberto, por tratar-se de representações do que seria o país e seus habitantes.

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O diagnóstico das autoras, publicado em 2015, pode ser considerado eco das

preocupações de gerações anteriores com os traços deixados pela escravidão na mesma

identidade nacional que comporta a mestiçagem como traço singular do Brasil. Assim, ao lado

das interpretações que dão relevo às “novas saídas” proporcionadas pela forma singular com a

qual se misturaram as raças no país, há, notadamente, a preocupação de alguns autores

revisionistas com os processos de exclusão social vivenciados especialmente pelos negros, após

o fim do regime escravocrata. É, aliás, a própria noção de “abolição mal aplicada”2 que norteia

parte dos esforços intelectuais de Florestan Fernandes, segundo o qual as transformações

econômicas e políticas ocorridas após o fim da escravidão teriam sido incapazes de

desorganizar o sistema de relações raciais forjado num contexto de regime escravista e de

dominação senhorial (SEREZA, 2014). Em outras palavras, não haveria, segundo o autor, uma

efetiva integração dos negros na “sociedade de classes”3. Ao contrário, a Abolição e a

República significariam, para os negros, uma nova forma de perversão social, ao marginalizá-

los e mantê-los apartados das benesses do novo regime: o preconceito de cor é ressignificando

na nova ordem para afastá-los ou prejudicá-los na concorrência econômica, social e cultural.

Assim, se é verdade que construímos uma identidade nacional que comporta a

mistura; é também verdadeiro que nossa identidade carrega consigo processos seculares de

separação e de exclusão (SCHWARCZ; STARLING, 2015). Segundo Lilia Schwarcz e Heloisa

Starling (2015), a alma mestiça do Brasil é construída precisamente na fronteira entre mistura

e separação, entre diversidade e discriminação, entre pacifismo e violência. Como ideólogos

artífices na formulação dessa identidade ou como cientistas sociais preocupados com o rigor

analítico de seus trabalhos, os intelectuais que figuram nos debates acerca da interface entre

nação e raça apontam para essa ambivalência que aqui é elencada como objeto de interesse.

O presente texto busca, assim, retomar a imagem ambivalente que comporta as

populações negras como símbolo nacional, a despeito das posições de subalternidade

socioeconômica historicamente ocupadas por tais populações, respondendo ― de forma

parcial ― o problema intelectual referente à contemporização da mestiçagem e da desigualdade

racial no forjamento da identidade nacional. Em outras palavras, interessa saber quais são os

processos sócio-históricos que, a despeito dos estigmas que acompanham as populações

2 O termo “abolição mal aplicada” foi extraído de depoimento da professora Sofia Campos Teixeira que aparece

na obra A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes (2008, p. 107). 3 É precisamente o diagnóstico da desintegração que leva o autor à conclusão de que a “Revolução Burguesa” não

se completa no Brasil, uma vez que não cumpre a promessa de democratização da sociedade. A marginalização do

negro é, assim, elucidação da coexistência de um ideário capitalista e de formas pré-capitalistas de produção, troca

e circulação, ou seja, da permanência do “antigo regime” e suas sequelas no novo regime (SEREZA, 2014).

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negras no Brasil pós-abolicionista, operam a incorporação progressiva de símbolos

imediatamente associados a tais populações ― como o samba e o futebol ― ao panteão de

símbolos nacionais?4 Para responder tal questão, foram detectadas formas de pensamento que

articulassem as categorias raça e nação. A partir daí, foram realizados “recortes” nos textos

que indicassem os usos de tais categorias, no sentido de analisar os temas da mestiçagem e da

desigualdade que, como vimos nesta incursão inicial, se interpenetram na formulação dessa

identidade nacional que se pretende singular. O trabalho não intenciona ser conclusivo; ao

contrário, apresenta-se como esforço incipiente de pesquisa, intentando observar de que forma

autores representativos da temática não apenas tratam analiticamente essa ambivalência, mas

atuam ― efetivamente ― na formulação de imagens sobre o Brasil (ORTIZ, 2013).

A partir do protocolo de pesquisa acima delineado, destacamos as obras A

integração do negro na sociedade de classes (FERNANDES, 2008) e Brancos e negros em São

Paulo (FERNANDES; BASTIDE, 2008) como representativas do esforço de compreensão da

manutenção das relações assimétricas entre brancos e não brancos no Brasil pós-Abolição. Por

outro lado, a obra Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 2006) parece ser emblemática no

tratamento ― e valorização ― da mestiçagem, na medida mesma em que a ressignifica de

forma positiva. A partir, portanto, das obras de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre ―

tomadas como emblemas da ambivalência aqui alçada como objeto de interesse ― e de outros

intérpretes do Brasil que buscaram entender a questão racial, o texto busca demonstrar que a

mestiçagem pode ser tratada não somente como traço singular de uma identidade nacional

hegemônica, mas igualmente como elucidação de uma desigualdade secular.

UMA ABOLIÇÃO MAL APLICADA

Em manuscritos pessoais encontrados no verso do conto O Traidor, Lima Barreto

(2010) lembra-se do dia 13 de maio de 1888, data em que foi sancionada a Lei Áurea, que

extinguia legalmente a escravidão no país. São memórias saudosistas de um escritor negro que,

à época da Abolição, com apenas sete anos de idade, imaginava que a nova lei seria sinônimo

4 Essa investigação tem caráter inicial e é inspirada pelo trabalho de Gustavo Alonso (2011) que busca

compreender a trajetória de ídolos negros como Pelé e Wilson Simonal, apontando que o sucesso de ambos no

futebol e na música é precedido pelo ― e só pode ser entendido em função do ― processo de incorporação da

“ginga”, do “drible” e da “malemolência” “negros” à identidade nacional, especialmente durante as décadas de

1930 e 1940. Seguindo esta direção, este trabalho tem caráter meramente incipiente em um projeto de pesquisa

que ambiciona observar como se constrói a imagem do “herói negro” e suas interfaces com uma suposta

“brasilidade”.

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quase imediato de liberdade: “(…) com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou:

livre! Livre!” (BARRETO, 2010). Mais à frente, confrontando o saudosismo com a realidade

vivida pelos negros nos anos que se seguem à Abolição5, o autor se mostra desiludido: “Mas

como ainda estamos longe disso!”. O momento de desencanto nostálgico encontra consonância

em outros momentos de sua obra, em que critica especialmente os processos de isolamento

vivenciados pela população pobre e nomeadamente negra (cf. BARRETO, 1998; 2010).

Barreto, denunciando o preconceito de cor em seus escritos pessoais publicados na

obra Um longo sonho do futuro, indica que negros e mulatos dificilmente conseguiam fugir do

estigma de subalternidade no período pós-abolicionista. A retomada de seus relatos é

particularmente relevante, não apenas por tratar-se de um dos poucos intelectuais a se definir

como negro àquela época, mas especialmente por fornecer material empírico que corrobora a

tese segundo a qual o preconceito de cor subsiste no Brasil pós-abolicionista, desempenhando

papel crucial na manutenção da apartação entre o mundo dos brancos e o mundo dos negros

argumento que ganhará centralidade na obra de Fernandes e Bastide (2008). Vejamos um trecho

de seu diário pessoal de 1904, seis anos após a Abolição, em que ele, funcionário público lotado

no Ministério da Guerra, reclama ao se ver confundido com um contínuo:

Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me reparo. Ia eu

pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se a mim,

inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a cousa feriu-me um

tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue frio para que não

desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em tomar-

me como tal, e nisso creio ver um formal desmentido ao professor Broca (de

memória). Parece-me que esse homem afirma que a educação embeleza, dá,

enfim outro ar à fisionomia. Por que então essa gente continua a me querer

contínuo, por quê? Porque… o que é verdade na raça branca, não é extensivo

ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre

tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia

desse desgosto e ele far-me-á grande (BARRETO, 1998, pp. 26-27).

As reclamações de Lima Barreto não devem ser interpretadas como mera expressão

de ressentimento pessoal ou como reverberação de sua vaidade. Elas indicam que o período

pós-Abolicionista reproduz estratégias de separação entre dois mundos distintos e

inconciliáveis: o dos brancos e o dos negros. Tais estratégias são encontrada em gestos,

comportamentos, vocábulos e expressões, que externalizam a subsistência do preconceito de

cor. É precisamente sobre estes mecanismos de apartação que Fernandes e Bastide (2008) se

5 Os manuscritos em questão não são datados, mas estima-se ― em função da data de publicação de suas demais

obras e, portanto, de seu período em atividade ― que tenha sido escrito no intervalo compreendido pelas duas

primeiras décadas do século XX.

Page 8: A questão racial no pensamento social brasileiro

debruçam na obra Brancos e negros em São Paulo, em que mostram que o termo “negro”

permanecia sendo algo injurioso ou que ofenderia a pessoa a quem se aplicasse. Isto fica claro

em outro relato de Lima Barreto, quando ― durante uma discussão ― seu interlocutor utiliza

o termo de forma nitidamente ofensiva (BARRETO, 1998, p. 22)6. Uma série de outros usos

cotidianos da linguagem indicavam a persistência do preconceito de cor, como as expressões

populares “coitado, ele não tem culpa de ser negro”; “ele é negro, mas tem alma de branco”; “é

negro, mas é melhor que muito branco”; “sou negro, mas não devo nada a ninguém”; entre

outras (FERNANDES; BASTIDE, 2008).

Segundo o diagnóstico de Florestan Fernandes, subsistia ― no período pós-

Abolição ― uma “desigualdade fundamental irredutível” fundada sobre as antigas

representações sociais em torno do negro, forjadas no contexto do regime escravista. Com a

reprodução de tais representações em torno das relações raciais, havia uma tendência à

eliminação espontânea do negro e do mestiço das oportunidades econômicas, das regalias

políticas e das garantias sociais às quais a população branca tinha acesso (FERNANDES;

BASTIDE, 2008, p. 146). De forma semelhante, a população negra tendia a ser associada

sistematicamente a posições subalternas, como aponta o relato de Lima Barreto, em que é

confundido com um contínuo.

O pano de fundo da argumentação acima é a própria noção de “abolição mal

aplicada”, que Florestan Fernandes extrai de depoimento da professora Sofia Campos Teixeira

(FERNANDES, 2008, p. 107) para referir-se ao processo que culmina com a extirpação legal

da escravidão no Brasil. Mal aplicada porque teria largado o negro “ao seu próprio destino,

deitando sobre os seus ombros a responsabilidade de se reeducar e de se transformar para

corresponder aos novos padrões e ideais de ser humano, criados pelo advento do trabalho livre”

(FERNANDES, 2008, p. 35). Assim, para Florestan Fernandes, o abolicionismo nunca

alimentou efetivamente ideias de emancipação da população negra, já que não o educa para

integrá-lo à nova ordem. Seguindo esta direção, a Abolição teria sido mero episódio da

desagregação do “antigo regime” escravocrata-senhorial e da emergência da ordem social

capitalista, sem alteração real na estratificação social paulistana. A população não branca

permanece na mesma situação de dependência econômica, sem poder beneficiar-se

coletivamente com as novas oportunidades oferecidas pela renovação do sistema de trabalho e

pela livre iniciativa.

6 Segundo tal relato, o seu interlocutor, C.J., acompanhado da esposa, teria dito: “vê, ‘seu’ negro, você me pode

vencer nos concursos, mas nas mulheres não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse

talhe aristocrático” (BARRETO, 1998, p. 22).

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No texto A Sociologia numa era de revolução social, o autor retoma o tema da

mudança social, ressaltando as suas possibilidades de insucesso e indicando que ela pode ter

efeitos negativos, como é o caso da aludida “abolição mal aplicada”. Segundo ele, “a mudança

social não é um bem em si mesma e ela pode produzir efeitos negativos irreparáveis, se as

opções coletivas em jogo não elevarem à esfera da consciência social o que se pretende

conseguir por seu intermédio” (FERNANDES, 1963, p. 219). Assim, sem levar a questão do

preconceito de cor à esfera da consciência social, a Abolição não representa uma mudança

substancial nas relações entre brancos e negros. O preconceito de cor não deixa de existir,

porém é ressignificado de acordo com o novo contexto histórico: se na sociedade escravista,

ele é um demarcador visível das castas, indicando a posição social ocupada pelo indivíduo ―

com o branco imediatamente associado à nobreza e o negro visto como sinônimo de

incivilidade ―, na sociedade capitalista-competitiva em formação, o preconceito de cor atua de

modo a impedir a entrada dos negros nas classes superiores, de maioria branca. Assim, a

permanência do preconceito de cor como efeito negativo do processo de mudança promovido

pela Abolição faz com que as classes sociais em formação apresentem-se como simulacro das

castas forjadas durante o regime escravista em função da classificação da sociedade em tons e

semitons: casta e classe se imbricam na perpetuação do preconceito de cor. Nas palavras de

Fernando Henrique Cardoso:

Florestan ressaltou que na nova sociedade, apesar de a cor deixar de ter a

antiga significação classificatória imediata, tanto o preconceito quanto a

discriminação continuam a existir. Isso embora a contraposição automática de

negro e escravo deixasse de ter equivalência numa sociedade na qual patrões,

empregados e operários não se distinguissem racialmente como no passado,

quando os senhores se distinguiam dos escravos e libertos pela cor. Como não

houve a integração imediata do negro liberto e de seus descendentes ao

mercado de trabalho, eles se mantiveram em posições sociais de franca

inferioridade, semelhantes às ocupadas anteriormente. Assim, as diferenças

raciais continuam a expressar inferioridade social, mantendo-se os

preconceitos e as discriminações, embora com as novas funções sociais de os

afastar ou prejudicar na concorrência econômica, social e cultural

(CARDOSO, 2013, pp. 289-290).

Ainda sobre a problemática da “abolição mal aplicada”, Florestan Fernandes lança

a tese referente à inadequação dos negros e mestiços para o regime do trabalho livre como

justificativa para a sua não absorção imediata no mercado de trabalho capitalista; tese segundo

a qual os ex-escravos não teriam preparação psicodinâmica para lidar com a ordem competitiva.

Como evidência empírica de tal despreparo, o autor apresenta a competição com o imigrante

europeu que, distintamente do negro recém elevado à condição de cidadão, não temia a

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degradação de determinadas ocupações ― que teriam sido rejeitadas pela população negra

numa forma de “revolução muda”7. Ademais, entendia-se ― em função de um forte ideário

eurocêntrico que busca europeizar a cidade de São Paulo ― que o imigrante seria o agente

natural do trabalho livre. Neste quadro de representações, o negro era tomado em função de

supostas irracionalidade, irregularidade e inconstância para o trabalho; traços forjados no bojo

do regime escravista e persistentes no novo regime. Por outro lado, o imigrante era representado

como o agente humano já educado, na Europa, para lidar com o trabalho livre, sistemático e

racional, regido por termos exclusivamente mercantis. Com isto, Florestan Fernandes retoma a

ambivalência formada por tradição e modernidade que seriam personificadas neste sistema de

representações, respectivamente, por negros e brancos.

A tese da inadequação articula-se inevitavelmente à ideia da “abolição mal

aplicada”, porque, por ter sido deixado à sua própria sorte sem receber qualquer educação que

o adequasse ao ethos capitalista, o negro se veria relegado ― novamente ― a posições de

subalternidade. Ora, inadequado ao novo regime, ele não se vê em condições de

competitividade em relação à mão-de-obra imigrante, supostamente melhor preparada de

acordo com os novos padrões, além de disposta a ocupar as posições mais degradantes desse

mercado de trabalho, agora rejeitadas pelo negro que busca se afastar de seu passado de

subserviência. A população negra é, então, preterida; enquanto a população imigrante é

absorvida como força-motriz do novo regime.

Há, como cenário fundamental nessa substituição, para além da base psicodinâmica

do desajustamento dos negros ao novo regime ― referente precisamente à inadequação

estrutural às novas formas de trabalho ― ou da aptidão quase natural do branco para o novo

regime, uma ideologia de embranquecimento (cf. SCHWARCZ, 1993): o elemento branco

surge como elemento civilizador em contraposição à incivilidade dos ex-escravos. Não

obstante, os poucos negros e mestiços que “ensaiam uma ascensão social” na sociedade de

classes, os fazem pela proximidade com o mundo dos brancos: são os “negros de alma branca”.

Na leitura de Cardoso (2013), não se pode falar em “ascensão social” real. Trata-se muito mais

de “infiltrações”, “gotas negras que passam lentamente pelo filtro nas mãos do branco”. Com

7 O processo sócio-histórico da “abolição mal aplicada” deixaria, segundo Fernandes (2008), traços indeléveis nos

aspectos psicodinâmicos da integração do negro na estrutura de classes: sentimento de “falta de preparo”,

“timidez”, “medo”, tendências à subserviência elucidada pela expressão “ficar no seu lugar”. É em função desses

efeitos psicodinâmicos que, com a sua liberdade legal, a população negra ― pensada coletivamente ― operava

uma forma de revolução muda, rejeitando qualquer trabalho que pudesse significar uma nova degradação de sua

condição humana. A “nova” situação do negro, de igual desprestígio em relação à antiga, erige uma espécie de

desilusão social entre a população negra. Assim, a noção de revolução muda trabalhada por Florestan Fernandes

atribui certo voluntarismo das populações negras na manutenção de seu status quo.

Page 11: A questão racial no pensamento social brasileiro

efeito, os negros bem-sucedidos no novo regime são aqueles que conseguem adequar-se ao

padrão civilizatório do mundo dos brancos, adotando comportamentos, cultura e toda estirpe de

hábitos que aprendem em função de alguma proximidade com o elemento branco ―

proximidade típica do negro da casa-grande. Embranquece-se para integrar-se.

Antônio Sérgio Guimarães (2008), autor do prefácio da obra A integração do negro

na sociedade de classes (FERNANDES, 2008), não se furta a elencar a tese da inadequação ―

e da auto-exclusão ― como um dos pontos falhos da obra. Aponta, a partir de outras pesquisas

sobre o mesmo tema, que não só tal inadequação é insustentável sob viés empírico, como

também ela oculta a força das teorias racistas neste processo de exclusão do negro.

Lilia Schwarcz enfatizou o modo como as teorias racistas do final do século

XIX foram eficientes em tecer o senso comum cotidiano que permitiram a

substituição do negro e do mulato pelo imigrante europeu; George Andrews

mostrou muitas evidências de como a preferência pelos imigrantes foi

sistemática e não dependeu de habilidades ou de adequadas personalidades-

status dos imigrantes. Argumentou, ademais, que o negro brasileiro, no final

do século XIX, não estava despreparado para a liberdade. Carlos Hasenbalg

salientou que o capitalismo industrial nem mesmo prescinde do racismo que

Florestan acreditava ter sido herdado da ordem escravocrata (GUIMARÃES,

2008, pp. 14-15)

A despeito das várias críticas que podem ser desferidas à obra de Florestan

Fernandes, especialmente à tese da inadequação psicodinâmica do negro à nova ordem

competitiva, a imagem de Brasil que inevitavelmente é criada pela pesquisa do sociólogo é a

de uma abolição inacabada ― que posteriormente articula-se à tese segundo a qual nossa

revolução burguesa não se completa, uma vez que não cumpre a promessa de democratização

da sociedade, especialmente no tocante à integração do negro à sociedade de classes. Essa ideia

também se encontra presente na obra O abolicionismo de Joaquim Nabuco (2012), escrito às

vésperas da Abolição, em 1883. Observadas as devidas diferenças no tratamento dado ao tema

pelos autores ― com Fernandes preocupado em instaurar padrões sólidos de pesquisa científica,

e Nabuco escrevendo em tom de manifesto ―, é possível notar relação de complementaridade

entre ambos.

Nabuco é um dos primeiros intérpretes do Brasil a conceder ao tema da escravidão

um estatuto central, em sua análise não apenas da formação histórica do país, mas também dos

destinos sociais e políticos da nação. Nas primeiras páginas de O abolicionismo (NABUCO,

2012, p. 12), o autor ressalta que a abolição seria apenas a tarefa imediata do movimento, cuja

responsabilidade muito mais exigente consistiria na reversão dos efeitos nefastos de mais de

três séculos de escravidão. Há congruência quase perfeita entre o prognóstico de Nabuco sobre

Page 12: A questão racial no pensamento social brasileiro

a missão abolicionista no futuro e o diagnóstico feito por Fernandes, mais de cinco décadas

depois. Com efeito, a ideia de escravidão em sentido lato, uma totalidade que perpassa os planos

políticos, culturais, econômicos e psicológicos, mostra sua força, na medida mesma em que a

Abolição em sua face estritamente legalista se mostra incapaz de extirpar os efeitos dessa

escravidão, conforme diagnostica Florestan Fernandes. Assim, a Abolição só teria sucesso ―

na perspectiva de Nabuco ― se a nação tomasse consciência da necessidade de “adaptar à

liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou”

(NABUCO, 2012, p. 12). Do contrário, a escravidão seguiria marcando os destinos da nação,

mesmo quando não houvesse mais escravos.

Assim, Joaquim Nabuco ressalta a abrangência e a profundidade que a instituição

da escravidão deixou no ethos da sociedade, em todas as dimensões:

Assim como a palavra abolicionismo, a palavra escravidão é tomada neste

livro em sentido lato. Esta não significa comente a relação do escravo para

com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital, e

clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a

dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o

Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da

minoria aristocrática, em cujas senzalas centenas de milhares de entes

humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regímen

a que estão sujeitos; e, por último, o espírito, o princípio vital que anima a

instituição toda, sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse

imemorial em que se acha investida, espírito que há sido em toda a história

dos países de escravos a causa do seu atraso e da sua ruína (NABUCO, 2012,

pp. 13-14)

Ora, não é precisamente sobre as reverberações do regime escravista ― e de um

processo abolicionista incompleto ― que nos fala Florestan Fernandes? Não só há congruência

entre o prognóstico pré-Abolicionista de Nabuco e o diagnóstico pós-Abolicionista de

Fernandes, como os argumentos centrais que norteiam as obras de ambos concorrem para

conclusões semelhantes: (i) a Abolição per se não resultaria na emancipação dos negros; (ii) a

lógica da escravidão só seria extirpada efetivamente quando da tomada de consciência de seu

raio de alcance que, longe de limitar-se à relação entre senhor e escravo, está impregnada na

própria lógica das relações entre brancos e negros. A despeito da contradição entre a defesa da

emancipação das populações negras e a atribuição de caráter passivo à participação de negros

e mestiços no movimento abolicionista ― que acabaria por ser operado exclusivamente pelas

castas privilegiadas ―, o que nos interessa de perto, nessa leitura de Nabuco, é precisamente a

indicação do papel central da escravidão na formação da nação brasileira e de seus efeitos sobre

Page 13: A questão racial no pensamento social brasileiro

todas as dimensões da vida social. A amplitude da escravidão é, portanto, totalizante, motivo

pelo qual apenas uma reforma global seria capaz de construir a nação.

Neste ponto, raça e nação se imbricam, e o abolicionismo representaria não apenas

a reabilitação da raça negra, mas equivalentemente a reconstituição completa do país

(NABUCO, 2012, p. 27). Se a nação é ponto seminal entre os objetivos do abolicionismo de

Nabuco, reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade imporia uma

nova agenda de metas cujo termo consensual seria a elevação da raça negra como elemento de

considerável importância nacional, na medida em que a doação de valor mediante o trabalho

estivera a seu encargo ao longo dos séculos no país. Do contrário, enquanto não houvesse uma

reabilitação completa da raça negra, a escravidão permaneceria sendo a principal variável

explicativa do atraso brasileiro. Mais uma vez, a argumentação de Nabuco assemelha-se àquela

feita por Florestan Fernandes, segundo a qual alguns dos mecanismos que davam força ao

regime escravista ― especialmente o preconceito de cor e as representações da personalidade-

status das populações negras ― são transpostos para a ordem competitiva. É a perpetuação de

tais mecanismos que atua como elemento impeditivo, verdadeiro obstáculo à formação de uma

sociedade capitalista-competitiva e uma estrutura de classes; ou seja, fator de atraso. Assim,

não seria errôneo afirmar que a incompletude da Abolição ― tomada em sentido lato e,

portanto, não se resumindo a seu caráter legalista ― aparece em ambos como marca na

formação de nossa nação.

Assim, a imagem de um país desigual em função de uma abolição mal aplicada é

forjada mesmo antes da própria Abolição, com manifestos como o de Joaquim Nabuco;

perpassa os relatos de Lima Barreto no início do século XX; é corroborada pela sociologia

acadêmica de Florestan Fernandes; e adentra as interpretações sobre o Brasil no século XXI,

caso de Schwarcz e Starling (2015, pp. 14-15) que afirmam que “se a escravidão ficou no

passado, sua história continua a se escrever no presente” e que a “a herança da escravidão

condiciona até nossa cultura, e a nação se define a partir de uma linguagem pautada por cores

sociais”.

O BRASIL É UM PAÍS MESTIÇO

De forma paralela à construção da imagem do Brasil desigual que se constrói desde

antes da Abolição com prognósticos que indicavam a perpetuação da lógica escravista na nova

Page 14: A questão racial no pensamento social brasileiro

ordem competitiva que se instauraria, há a formulação de inúmeras interpretações outras que,

ao tratarem da interface existente entre raça e nação, dão relevo à mestiçagem como traço

singular brasileiro. Interessa observar, no entanto, que os usos e significados da noção de

mestiçagem são tão diversos quanto a multiplicidade de interpretações acerca do Brasil e

respondem a inclinações teóricas, aos interesses políticos, ao contexto histórico e, enfim, do

próprio posicionamento dos autores nas situações culturais vividas.

Na obra O espetáculo das raças, Lilia Schwarcz (1993) revisita as teorias

evolucionistas e raciológicas europeias que ganham força e se difundem pelo círculo acadêmico

do Brasil, notadamente entre os membros das faculdades de direito, na segunda metade do

século XIX. O credo evolucionista e raciológico de autores como Gobineau, Darwin, Le Play e

Spencer ganha força especialmente na década de 1870, criando uma versão determinista e

pessimista acerca da miscigenação de raças, que eram hierarquizadas e divididas em termos da

postulação de uma linha evolutiva civilizatória. Eis, portanto, a sumarização do clima

intelectual narrado por Schwarcz: o Brasil, na versão da chamada geração de 1870, consistiria

em uma sociedade fadada ao atraso, graças à presença de raças inferiores.

Assim, a mestiçagem era significada por autores como Nina Rodrigues e Sílvio

Romero, presos àquelas teorias raciológicas, como fator de degeneração da nação. Cria-se a

ideia de que o brasileiro seria a mistura de uma raça superior e duas inferiores ― o negro e o

índio (ORTIZ, 2013, p. 615) ― de modo que a mestiçagem conduzia a nação a um atraso

indissolúvel, daí o fortalecimento do ideal de embranquecimento como estratégia de

modernização. Essas teorias raciológicas ― bem como o ideal de embranquecimento ― são

hegemônicas no Brasil pelo menos até a segunda década do século XX.

Notemos, então, que o debate intelectual brasileiro na virada do século tem as

teorias raciológicas como uma espécie de “regime de verdade” (FOUCAULT, 2007)8 cujos

epígonos têm voz ainda na década de 1920, como é o caso de Oliveira Vianna, que postula a

impossibilidade de uma perfeita integração interétnica e faz considerações sobre a

potencialidade do branqueamento da população, via imigração europeia (VIANNA, 1938). Para

o autor, a “miscigenação confusa” e o “caos étnico” aparecem como um empecilho à formação

da nação, e uma integração interétnica perfeita seria tarefa irrealizável. Aqui, o tema da

mestiçagem é observado sob uma perspectiva fatalista, e as raças são vistas como agregados

8 Em Foucault (2007), a noção “regime de verdade” refere-se a discursos produzidos pela circularidade entre

verdade e poder: poder que produz a verdade e a sustenta, verdade que produz efeitos de poder. Destarte, se

podermos afirmar que o poder concentrado nas mãos de nossas elites intelectuais alça as teorias raciológicas à

condição de verdade; também podemos fazer um movimento interpretativo inverso, indicando que a verdade

instaurada acerca da questão racial perpetua a poder das populações brancas.

Page 15: A questão racial no pensamento social brasileiro

humanos cujas diferenças irredutíveis as fariam inassimiláveis entre si. Este “regime de

verdade” passa a conviver progressivamente com as explicações de cunho sociológico que

ganham força na Europa e que renegam a centralidade da raça como fator explicativo

fundamental, dando relevo à cultura (ORTIZ, 2006, p. 29).

É durante este período que encontramos explicações ambíguas como a de Joaquim

Nabuco (2012). A despeito da permanência das ideias racistas que postulam a superioridade da

raça branca em seu pensamento ― como fica claro em sua defesa , ele advoga em favor da

integração do negro à nação, indicando que o problema do atraso brasileiro não se encontra na

questão racial ― como querem os epígonos de Gobineau ― mas sim na escravidão: “a raça

negra não é, para nós, uma raça inferior (…). Para nós, a raça negra é um elemento de

considerável importância nacional (…), parte integrante do povo brasileiro” (NABUCO, 2012,

p. 23). Em sua obra, é possível encontrar inúmeros trechos em que a mestiçagem é apontada

como o fio da meada para a construção da nação, e a forma singular com que ela acontece no

país ― que, a despeito da escravidão e, diferente do que poderia ser verificado na América do

Norte, teria operado habilmente a mistura entre brancos e negros ― é tomada como um traço

de nossa singularidade (NABUCO, 2012, pp. 134-136).

Joaquim Nabuco representa, assim, uma agenda de debates sobre o projeto nacional

em que se reconhece a urgência em incluir traços não-europeus, já apreendidos como traços

inalienáveis da realidade do país, a despeito de manter-se viva uma metodologia classificatória

baseada na distinção das raças brancas superiores em oposição às populações negras e indígenas

incivilizadas. Lilia Schwarcz (1993), revisitando os intérpretes contemporâneos a Nabuco,

aponta o quão oscilante eram os postulados que aludiam a questão racial. Silvio Romero, um

dos autores observado por Schwarcz, também parte do suposto inicial que ao branco cabia um

papel de destaque no processo civilizador, mas, em vez de lamentar a incivilidade de negros e

indígenas, postulou que estaria na mestiçagem e no mestiço ― produtos locais que melhor se

adaptariam ao meio ― a saída para a situação deteriorada do país (cf. ROMERO, 1980;

SCHWARCZ, 1993).

A articulação feita entre a questão racial ― o homem ― e o determinismo

geográfico ― a terra ― também define o pensamento de Euclides da Cunha, segundo o qual a

mestiçagem do sertanejo, a despeito de trazer consigo os estigmas das raças inferiores,

estabelece uma relação de simbiose com a terra que o fortalece, criando uma espécie de

“Hércules-Quasímodo”, par de personagens que fazem alusão à ambivalência formada pelas

deficiências, mas também pela força da mestiçagem (CUNHA, 1992, p. 95). É essa adequação

perfeita em relação à terra que minimiza os efeitos degradadores da mestiçagem, mantendo a

Page 16: A questão racial no pensamento social brasileiro

integridade psíquica do sertanejo, uma subcategoria étnica tipicamente brasileira tributária do

isolamento e da inospitalidade do sertão. Curioso notar que, como em Romero, as opções

metodológicas de Cunha privilegiam o cientificismo e os determinismos geográfico e biológico,

mantendo a classificação da sociedade em raças e sub-raças; mas eles não o impedem de olhar

para um tipo de mestiçagem que, em vez de degenerada como aparece nas teorias raciológicas

do século XIX, é retrógrada e, portanto, apta se modernizar e fabricar a nação.

A incursão feita até aqui indica a força das teorias raciológicas entre a segunda

metade do século XIX e a década de 1920, período em que são transubstanciadas em regime de

verdade. Como elucidação da potência de tais ideias, basta constatar que elas eivam

indiscriminadamente as obras que procuram integrar as populações negras e mestiças ao projeto

nacional ― como nos casos observados de João Nabuco e Sílvio Romero. O período que

compreende as décadas de 1920 e 1930 corresponde àquele que seria ponto de inflexão nas

abordagens sobre a temática racial no Brasil. Inflexão porque, enfim, as teorias raciológicas

perdem seu vigor explicativo, abrindo espaço para as explicações culturalistas em que a

mestiçagem deixa de ser vista como inevitável degeneração da nação.

Parece ser ponto pacífico na literatura que o movimento modernista no segundo

decênio do século, com revalorização da cultura popular, e as ideias de Gilberto Freyre na

década seguinte têm papel de destaque na incorporação da mestiçagem de forma definitiva e

positiva à identidade nacional. Não obstante, Carlos Guilherme Mota classificará este momento

da produção intelectual brasileira como “redescobrimento do Brasil” (MOTA, 2014, p. 69)9.

Renato Ortiz corroborará com a importância da produção desse período, afirmando que autores

como Freyre operam uma “mudança de sinais, do negativo para o positivo”, no tangente ao

tema da mestiçagem. Dirá que “a mestiçagem é ressignificada, seu aspecto negativo transmuta-

se em positivo” (ORTIZ, 2013, p. 615). Ou ainda, na perspectiva de Trindade:

Com a publicação de seu Casa-Grande & Senzala, em 1933, Freyre reeditou

a temática racial e a identidade nacional, constituindo-as em chave para a

compreensão do Brasil. Contudo, não as faz a partir do critério racista, ou

raciológico, como na abordagem de Oliveira Vianna. Tampouco elegeu o

Estado como o agente central do processo de formação social. Ao contrário,

9 Segundo Mota (2014), este momento seria marcado pelo surgimento das obras de Caio Prado Júnior, Gilberto

Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Simonsen que acabariam por lavrar o terreno temático e

epistemológico das ciências sociais no Brasil. Indo na esteira de Luciano Martins (1987), diríamos que estes

esforços de “redescoberta do Brasil” conformam uma intelligentsia nacional modernizadora, atentando-se para os

seguintes aspectos na conduta deste grupo de obras: (i) conteúdo utópico do seu pensamento; (ii) a auto-atribuição

da liderança moral da nação e/ou a representação dos direitos de camadas sociais afônicas; (iii) visibilidade devido

mais à posição individual de seus membros do que propriamente à sua constituição como stratum social; (iv)

sentimento de impotência, que só é suplantado por um ato de vontade; (v) vazio social.

Page 17: A questão racial no pensamento social brasileiro

Gilberto Freyre opera uma dupla inversão de termos: ao invés da raça, pensa

a cultura; ao invés do Estado, pensará a sociedade (TRINDADE, 2014, p. 33).

De um modo geral, ao atravessarmos a obra de Gilberto Freyre ― mas também o

conjunto das obras modernistas ―, o que se verifica é uma metamorfose em relação aos termos

do que se entendia por mestiçagem e, portanto, uma reconfiguração na interface formada entre

raça e nação. Passou-se do pessimismo nos esforços de detectar, para glorificar, os elementos

singulares à especificidade brasileira. Ao autor é atribuído o pioneirismo na perspectiva otimista

sobre o país e as potencialidades da mestiçagem, daí a ideia de que vivia-se o “redescobrimento

do Brasil”. Embora tal pioneirismo mereça questionamento (cf. AGUIAR, 2008), uma vez que

as tentativas de incorporar as populações negras e mestiças ao ideário nacional datam do século

XIX ― como é observável na obra de Joaquim Nabuco ― e a própria noção de que a mistura

das raças teria sido operada entre nós de forma idiossincrática já estava presente nos autores da

geração da virada de século, interessa notar que, nas décadas de 1920 e 1930, tal discurso de

valorização e glorificação da mestiçagem brasileira consegue suprimir ― não integralmente,

por certo10 ― o regime de verdade fundado sobre as teorias raciológicas do século anterior.

Daí a comparação recorrente entre as obras de Oliveira Vianna e de Gilberto Freyre

para assinalar esse movimento de “redescoberta”. Lima (2014, pp. 154-155) confronta, de um

lado, a sócio-antropologia de Vianna, com forte influência do biologismo e uma concepção

racial que o levava a defender a teoria do embranquecimento, e, de outro lado, a obra de Freyre

cuja grande contribuição teria sido a de “destruir o mito” da superioridade racial de brancos

sobre negros e índios. Segundo Lima, a visão de democracia étnica associada ao Brasil de hoje

é, em grande parte, tributária das elaborações teóricas de Gilberto Freyre; indicando o papel de

destaque da intelligentsia nos processos de forjamento da identidade nacional.

Sumariamente, em sua interpretação sobre o Brasil, Gilberto Freyre sistematizou

um projeto de identidade nacional fundado sobre uma mestiçagem que conciliaria as

contradições políticas, culturais, sociais e econômicas e que, por isso mesmo, não comportaria

formas de discriminação e racismo como as existentes nos Estados Unidos. Tal perspectiva

analítica ― já esboçada por Joaquim Nabuco no século anterior ― acabaria por fundamentar o

10 A refutação às teorias raciológicas não se completa na obra de Gilberto Freyre, na medida mesma em que o

autor admite a persistência de certos determinismos raciais, supondo hierarquias e especificidades entre as raças.

Ele admite a hereditariedade de caracteres adquiridos, isto é, a possibilidade de raças artificiais ou históricas.

Trindade (2014) exemplifica retomando a alusão feita por Freyre à experiência colonial portuguesa no Brasil,

atribuindo ao brasileiro o caráter de ser “quase outra raça”, com apena um século de distância da península ibérica.

Além disso, parece supor uma hierarquia, não mais racial, mas cultural, tendo como parâmetro objetivo para defini-

la maior ou menor grau de complexidade cultural; “permanece a distinção entre maior e menor capacidade

intelectual” (cf. TRINDADE, 2014).

Page 18: A questão racial no pensamento social brasileiro

chamado “mito da democracia racial” (AGUIAR, 2008), situada em posição diametralmente

oposta em relação às análises operadas por Florestan Fernandes, anos depois. O postulado

fundamental da “mestiçagem freyreana” aponta que a forma absolutamente singular ―

harmônica e relativamente branda ― com que se dá a miscigenação entre negros, portugueses

e indígenas produziu um Brasil “híbrido”, capaz de aproximar Casa Grande e Senzala. Neste

contexto, a família patriarcal aparece como intermediação que contemporiza dominantes e

dominados, brancos e não brancos, criando uma unidade nacional híbrida.

Diferente da sociobiologia raciológica que até então propagara a noção de

mestiçagem como degeneração e como fator desintegração nacional, a miscigenação, na obra

de Freyre, teria levado à formação de uma sociedade em que os extremos aproximar-se-iam,

corrigindo a grande distância social entre eles, como ele explicita logo nas primeiras páginas

de sua obra mais celebrada:

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social

que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata-

tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e

escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade

brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de

gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte

contrariado pelo efeito social da miscigenação (FREYRE, 2006, p. 33).

Aqui, ao misturarem-se, as raças não criam máculas umas às outras. Ao contrário,

a mistura cria um “elemento eugenicamente superior”, o mestiço (cf. TRINDADE, 2014). O

mestiço aparece, portanto, como signo último da nação brasileira; traço singular e inovador

da colonização portuguesa no Brasil. Adentrando os processos históricos que dão forma a este

elemento ímpar de nossa nacionalidade, ele indica que, em função do passado étnico

indeterminado da península ibérica ― zona fronteiriça entre Europa e África11 ―, o português

seria aclimatável e propenso à hibridez. O índio, a despeito de sua incapacidade ténica-cultural,

ganha, nos escritos de Freyre, indiscutível importância na formação da cultura brasileira,

adicionando a ela hábitos de alimentação, higienização, sociabilidade etc. Por fim, e de crucial

importância à discussão proposta por este trabalho, o negro ganha protagonismo como elemento

civilizador, dotado de superioridade cultural e material diante das outras raças e de uma

predisposição biológica e psicológica para a vida nos trópicos. Note-se que a despeito de

pretender operar uma “virada culturalista” no pensamento social brasileiro ― uma vez que

11 Sérgio Buarque de Holanda (1995) retoma o argumento em que a península ibérica aparece como zona

fronteiriça ― “à margem das congêneres europeias” ― e, por isso, é híbrida. Tal característica, assim como na

interpretação de Gilberto Freyre, deixa traços indeléveis da formação da identidade nacional.

Page 19: A questão racial no pensamento social brasileiro

intentaria dar ênfase à cultura e não aos fatores raciais, na sua análise da formação da nação ―,

ele não deixa de se utilizar de explicações deterministas e biológicas, como se nota no relevo

dado ao clima, à mesologia e à raça, e em ideias como aclimatação e hierarquia cultural, que

eivam sua obra.

Porém, para além das ressalvas que possam ser elencadas em relação às opções

metodológicas de Freyre, interessa observar que ele ― se não cria ― sistematiza uma imagem

de Brasil, para nos apegarmos à terminologia utilizada por Ortiz (2013), que insere

definitivamente as populações negras e mestiças no panteão de símbolos nacionais. O discurso

de Freyre é consonante à incorporação positiva de referentes simbólicos associados a essas

populações como o samba, o carnaval e o futebol, à identidade nacional. Dali em diante, Renato

Ortiz assinala que a mestiçagem ganha outro significado, positivo, o que possibilita seu

alçamento a traço singular e inovador da nacionalidade brasileira.

O mestiço é o ideal harmônico no qual se espelha o “segredo do sucesso do

Brasil”. Esta mudança de sinais, do negativo para o positivo (…), possibilita

uma releitura da história, do desenvolvimento e da modernização, virtudes

antes incompatíveis com o espírito nacional, e agora viáveis e factíveis

mediante a atuação coordenada do Estado. É neste contexto que os novos

símbolos da identidade ― mulata e samba ― se consolidam, liberados da

ganga das interpretações raciológicas, [quando] eram marcados pela mácula

de inferioridade, são alçados à categoria de brasilidade (ORTIZ, 2013, p. 615).

Ortiz chama a atenção para o imbricamento entre o pensamento de Freyre e o

contexto político, entre intelligentsia e Estado, que se interpenetram, moldando a identidade

nacional. Não nos interessa, aqui, discorrer a respeito de tal relacionamento12, mas é válido

observar que neste momento de inflexão, marcado pela convergência de processos de longa

duração sócio-histórica tais quais a urbanização, a industrialização e a consolidação de um

Estado centralizador com a Revolução de 1930, Gilberto Freyre, assim como seus

predecessores modernistas na década de 1920, parecem sintetizar as buscas por uma identidade

cultural que pululam neste contexto de mudança. Destarte, se os modernistas dão um passo

importante ao incorporar a fala cotidiana, os ritmos afro-brasileiros e as figuras do povo à sua

12 Sobre este assunto, sugere-se a leitura de Ortiz (2013), Martins (1987), Miceli (2001). Renato Ortiz, por

exemplo, dirá que o contexto nacional incide diretamente nos debates sobre a identidade nacional. Durante o

governo Vargas, a esfera da cultura é elemento central da propagando política governamental, atuando como

elemento catalisador na formação de uma versão de brasilidade apta a vincular os diferentes setores da sociedade

em tornos dos rumos da revolução de 1930. Neste sentido, a educação e os meios de comunicação (rádio e cinema,

especialmente) tornam-se instrumentos de construção da nacionalidade. Durante a ditadura militar, o quadro

funda-se na reinterpretação das ideias de sincretismo e mestiçagem, tentando acomodá-los à perspectiva autoritária

do Estado. Neste momento, a esfera cultural tinha caráter funcional de criar uma imagem de Brasil autóctone,

harmônico e cordial.

Page 20: A questão racial no pensamento social brasileiro

versão de “cultura Brasileira”, Gilberto Freyre advoga para si, ao incorporar positiva e

definitivamente a mestiçagem ao ideário nacional, o papel de “herói modernizador” que

“confere aos brasileiros uma carteira de identidade” (MARTINS, 1987; ORTIZ, 2013). Nas

palavras do próprio autor: “Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da

nossa maneira de resolver problemas seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me

inquietasse tanto como o da miscigenação” (FREYRE, 2006, p. 10).

A resposta encontrada para o tema das relações raciais certamente não passa

incólume das críticas. Muitos autores não se demoram em duvidar do caráter racista da obra na

valorização dos traços mestiços da população: Freyre cria uma imagem de mistura harmônica

que omite a perpetuação da assimetria e da violência no relacionamento entre populações

brancas e não brancas, uma vez que a verticalidade das relações de dominação mantida entre

senhores e escravos seria suplantada pela horizontalidade conciliatória. Daí decorrem inúmeras

críticas à leniência com que ele trata as relações de dominação durante o período escravista,

eclipsando as contradições de classe e de raça. Tanto Mota (2014) quanto Schwarcz e Starling

(2015) criticam a eliminação, no discurso da “mestiçagem freyreana”, das contradições reais

do processo histórico-social, das classes e dos estamentos em seus conflitos mediados pela

violência, que tenderia a fortalecer um “sistema ideológico” no qual se perpetua uma identidade

nacional fundada sob a ideia de harmonia, união e cordialidade. Assim, se de um lado pode-

se atribuir parcialmente aos esforços interpretativos de Freyre a incorporação definitiva de

elementos negros e mestiços à identidade nacional como mulata, o samba, a capoeira, o

candomblé e o futebol ― abrigados pela sua imagem de Brasil mestiço ―, as críticas desferidas

à sua obra elucidam um processo de naturalização das desigualdades operado pela

incorporação das populações não brancas a esta identidade mestiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DESIGUALDADE E MESTIÇAGEM

Inicialmente, lançamos o problema intelectual referente à contemporização da

ambivalência formada por desigualdade e mestiçagem nos processos de construção da

identidade nacional brasileira. Em última instância, o percurso intelectual desenvolvido

buscou subsidiar o entendimento da posição das populações negras nessa trama mestiça e

desigual: ora, como explicar o papel de subalternidade ocupado por tais populações quando

olhamos o país sob o prisma da desigualdade e, simultaneamente, admitir o papel de destaque

Page 21: A questão racial no pensamento social brasileiro

atribuído às mesmas populações quando se trata do processo de construção da idiossincrasia

nacional? Certamente, o recurso à pesquisa bibliográfica não é suficiente para dar resposta

satisfatória à questão, que só pode ser sanada a partir de uma sociologia processual capaz de

apreender a convergências de processos sócio-históricos de longa duração, como a

urbanização, a industrialização, a consolidação de uma intelligentsia nacional e as várias

nuances de nossa história política, incluídas aí não apenas a esfera governamental, mas

igualmente as reivindicações populares.

Todavia, o esforço intelectual aqui empreendido tem valor ao apresentar o papel

destaque dos intelectuais brasileiros na formulação do que habituou-se chamar de identidade

nacional e uma correlação entre os significados atribuídos ao par desigualdade/ mestiçagem e

as ideias de tais intelectuais. Com efeito, o trabalho indica que há uma relação de proporção

inversa entre o relevo dado às teorias raciológicas e racistas no debate acerca da mestiçagem e

a incorporação das populações não brancos ― negras e mestiças ― à identidade nacional.

Assim, enquanto as ideias de Gobineau, Darwin, Le Play, Spencer e seus epígonos têm

centralidade no clima intelectual brasileiro, formando uma espécie de regime de verdade, as

populações negras se encontravam ainda mais marginalizadas no processo de construção da

identidade nacional. As evidências empíricas que ratificam essa correlação podem ser

encontradas nas obras de Fernandes (2008), Barreto (1998) e Alonso (2011) que apontam que

a República do Café com Leite ― nos decênios posteriores à Abolição da escravidão ― nada

fez para a inclusão do negro e ainda perseguiu práticas culturais associadas a essa raça, como a

capoeira, o samba etc. Isto nos leva a crer que as reverberações das teorias raciológicas tem

implicações diretas no âmbito da sociabilidade e do poder, tornando-se fundamento para a

prática sistemática da intolerância em relação à população negra e elucidando o movimento de

circularidade entre verdade e poder que norteia a noção de regime de verdade.

Neste sentido, é inevitável a associação entre este regime de verdade raciológico e

as pesquisas de Florestan Fernandes que indicam a persistência do preconceito de cor no

período pós-Abolicionista. Um dos mais incisivos dados trazidos pelo autor trazem à luz as

“providências policiais” no sentido de dispersar e impedir a “revivescência” da cultura negra

na cidade de São Paulo, sob pretexto de manutenção da ordem e da “moralidade dos costumes”

(FERNANDES, 2008). Não seria errôneo vislumbrar nessa noção de “moralidade” e de

“ordem”, a proposta de embranquecimento daquela sociedade. Proposta esta imediatamente

atrelada ao ideário raciológico que eivava o nosso debate intelectual.

Seguindo esta direção ― e nos atendo à correlação encontrada entre os significados

atribuídos ao par desigualdade/ mestiçagem na formação da identidade nacional e o debate

Page 22: A questão racial no pensamento social brasileiro

intelectual em torno da temática racial ―, verificou-se uma relação de proporção direta entre a

reverberação das ideias de Gilberto Freyre junto aos seus imediatos predecessores modernistas

e a incorporação das práticas vinculadas às populações negras e mestiças à identidade nacional.

Aquelas mesmas práticas que tentou-se suplantar via repressão, tais como a religiosidade, a

capoeira e o samba ― outrora associadas à incivilidade e tomadas em função de sua não

consonância com o ideário modernizador da urbanização ― são ressignificadas e alçadas à

condição de símbolos nacionais. O samba, um dos mais emblemáticos exemplos ― que merece

análise posterior ― é tributário desse movimento que faz com que se consolide, entre a década

1950 e 1960, como música “autenticamente” nacional. E só é assim considerada, tudo indica,

em função de seus enraizamentos nas populações negras e mestiças.

Há que se ressaltar, todavia, que o processo de guindamento desses símbolos,

parcialmente tributário da valorização da mestiçagem nos debates intelectuais que

“redescobrem” o Brasil, não acontece de forma unívoca, como apontará o “revisionismo” de

Florestan Fernandes e seus pares, em meados do século XX (Mota, 2014). Para uma análise

panorâmica acerca do assunto ― esforço aqui empreendido ―, interessamo-nos em observar

Gilberto Freyre e Florestan Fernandes mais como emblemas das perspectivas inúmeras que

buscam situar as populações negras e mestiças na história do Brasil, do que como respostas ao

problema intelectual que aqui elencamos. Ou seja, participam da construção de imagens sobre

o Brasil que Schwarcz e Starling (2015) tentam sintetizar, ao imbricarem as ambiguidades

mistura e separação; integração e exclusão; diversidade e discriminação; pacifismo e

violência. Mais do que análises, as obras aqui retomadas de Nabuco a Schwarcz ― passando

por Freyre e Fernandes ― parecem participar ativamente na formulação da nação e, neste

processo, a questão racial ganha centralidade.

Neste sentido, se uma conclusão é possível, ela certamente diz respeito à

possibilidade de atribuirmos valor heurístico à população negra no sentido de desvelar a trama

mestiça e desigual que inexoravelmente compõe as várias imagens construídas em torno da

nação brasileira.

Page 23: A questão racial no pensamento social brasileiro

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