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A Razão do Poema_Bocage

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Page 1: A Razão do Poema_Bocage

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P E R S P E C T I V A S D O H O M E M

7 Filosofia • História • Geografia • Politica • Sociologia • Antropologia • Economia • Psicologia • Pedagogia • Literatura • Estética • Folclore

CONSELHO DIRETOR Álvaro Lins — Álvaro Vieira Pinto — Anísio Teixeira — Cláudio de Araújo Lima — Domar Campos — Edison Carneiro — Franklin de Oliveira — Luciano Martins — M. Cavalcanti Proença — Moacyr Felix — Nelson Werncck Sodré •— Octávio Ianni — Orlando Valverde — Paulo Francis — Roland Corbisier

JOSÉ GUILHERME MERQUIOR

RAZÃO DO POEMA ENSAIOS DE CRITICA E DE ESTÉTICA

JfâMa 0C9. QOCO^.

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A. RIO DE JANEIRO

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A E S C O L A D E B O C A G E

a MÁRCIO PAULO DE OLIVEIRA DIAS, bocageano convicto.

O que é o obsceno? Para Sartre, é fundamentalmente uma inadaptação, a inadaptação acontecida quando um corpo, uma carne alheia, é percebida por mim como desprovido de graça, nu de movimentos coerentes — e sem que eu deseje êssc corpo. O obsceno é, portanto, por definição, o corpo, a carne que sobra; o físico, que nenhum gesto, nem o meu que não o deseja e não o acaricia, nem o do outro-obsceno que não o veste com a graça, que não adapta seu corpo a uma lei nascida mesmo da sua liberdade, justifica como físico emprestando-lhe um sentido (v. UÊtre et le Néant, pág. 470-72). Realmente, não há corpo que me pareça obsceno se eu o desejo, e, inversamente, mesmo sem eu desejá-lo, nenhum corpo será obsceno a meus olhos se fôr gracioso, isto é: se cu puder perceber seus movimentos den-

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tro de uma estrutura significativa onde nenhuma parte deixará de ter função.

O sexo é a matéria prima da literatura fescenina, da "escola de Bocage", do verso licencioso e da narrativa erótica. Mas c preciso distinguir entre a literatura erótica c a literatura do obs­ceno, porque o sexo só se transforma em obscenidade quando surge despido de graça e da condição de objeto do desejo. Não é possível pôr no mesmo escaninho Lawrence e Bocage; Mellors, "homo eroticus", não pertence à classe do Ribeiro bocageano, insaciável apetite fálico, cuja descrição plástica ocupa um de­cassílabo lapidar: preto na cara, enorme no mangalho. Ninguém confundiria a carne de Lady Chatterley com a pornográfica epiderme da Manteigui, Vénus de inconcebível incontinência, que Bocage cantou em magníficas oitavas reais. O que acontece, caracteristicamente, em Bocage, é a irrupção do obsceno de dentre a situação erótica. Onde seu verso encontra o sexo, transforma-o em obscenidade. O fundamento dessa metamor­fose c um procedimento humorístico. Sc o cómico 6, como quer Bergson, a inserção do mecânico no orgânico, a súbita per­turbação de uma ordem de coisas por um elemento estranho, então o obsceno, interrompendo o curso erótico, representa um atentado à organicidade da esfera sexual, e origina, curto-circuito e surpresa, o riso do leitor até então excitado pelo erotismo servido.

O sexo subitamente mudado em obsceno: aí está o segredo do verso livre (esse, s i m . . . ) . Por isso não é nunca adequado chamar-se a uma página obscena por causa da presença de temas sexuais; por isso, contra essa opinião asnal, contra essa visão puritana, contra essa consideração do sexo como obscenidade em si, nós defendemos a ideia de que uma passagem obscena não o é, a priori, por tratar de sexo, mas antes se torna obscena, conforme degrade, a um dado instante, o seu tema-sexo em ma­téria desgraciosa. A obscenidade não é: aparece, faz-se, brota, e só assim tem vivido em literatura real. Chego mesmo a per­guntar se obscena a priori, se obscenidade prévia, se desgracio-sidade essencial, não será não aquelas letras que a estreiteza puritana classifica assim pelo encontro do sexo, mas, antes, toda e qualquer literatura que não alcance o nível da realização estética? Com efeito, a falta de graça que é o obsceno está para o corpo humano como a falta de valor estético para o corpo das palavras. A literatura começa a ser chata quando as palavras

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não nos excitam; quando não desejamos o texto; quando nossa sensibilidade, intocada por êle, não "acaricia" as suas palavras. Há uma delícia em provar poesia, um sabor que nos sabe numa prosa, quase vizinhos do prazer que busca o desejo e que se impossibilita quando nos surge a dimensão do obsceno.

Agora, se quisermos concretizar essas teses, localizemos essa literatura "maudite" nas áreas de nossa língua, ou ali na Espanha companheira. Um Quevedo, um Gregório de Matos, um Bocage . . . os palavrões de Cervantes e a crueza de Gil Vicente; e tantos outros que não nos vêm agora: o motivo do obsceno perpassa a literatura ibérica. Em grande parte, porque integra a notável corrente libertina dessas culturas, esse uso re­belde que tantas vezes o escritor faz das letras quando o quadro em que vive não lhe permite ser revolucionário. Os libertinos são coerentemente anticonvencionais. Na França, não se pode considerá-los mais do que céticos ou "naturistas", rebeldes sub­terrâneos do século XVII, opositores do Grand Siècle e da sua ordem moral. Mas, na Península, os libertinos são gradualmente arrastados ao obsceno, e conservando uma ambivalência básica, mesmo exaltando os instintos naturais, tendem a comprazer-se no escabroso. Os últimos libertinos "puros" são renascentistas; quanto a Bocage, autor hipotético de mil piadas sem maior gosto, mas autor garantido de dois mil versos licenciosos de altíssima qualidade, é o mais típico dentre os rebeldes sádicos, utilizadores do obsceno como força de dissolução social cons­ciente. O anticlerical, o antidonzelal, o anticontinências — Bo­cage, o antifamiliar, o homem ambíguo que desce lúcido ao escatológico, por descobrir que onde habita a moral é só fa­chada, o amor jamais se eleva além do vício, e quando uma vez o faz, é miseravelmente traído — Entre nós ser amante é ser cornudo. Bocage priapista, Bocage hiperbólico, autor carinhoso de tantas palavras que a música de seu verso consagrou por fora dos pudicos dicionários. Mas — e isso nos interessa ver­ticalmente, não só por interesse literário, mas pelo que tem de revelação de nós mesmos, brasileiros tão herdeiros de safadeza — Bocage grande poeta obsceno (maior, nessa qualidade, que cm qualquer outra) porque decidiu, rebelde sem revolução re­belde iluminista vivendo na sede da reação, constatar com toda a coragem a moral só de aparência de uma das mais desbragadas coletividades modernas, o seu Portugal da decadência. Onde,

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como êle disse, era plena verdade que isto de virgo e honra é tudo peta.

Em Bocage, não poucas vezes, o humor de que deflui a obsecnização do sexo se avizinha perigoso do puro e simples humor negro. O sadismo, aliás, deve seu nome a um grande contemporâneo de Bocage, o não menos obsceno (embora in­finitamente menos pornográfico na linguagem) Marquês de Sadc. Por outro lado, essa carne-em-excesso que é o tema do obsceno não deixa, só porque dela sorrimos, de fazer-nos a incómoda revelação de uma matéria que, devendo ser, pela proximidade, a mais carregada de significação (o corpo sendo o espaço na­tural da transição entre a consciência estruturadora das signi­ficações e a matéria que as recebe), na dimensão do obsceno comparece como coisa sem sentido, como sobra excremental, expulsa da digestão da consciência erótica de forma equivalente ao que o bolo fecal representa para a nutrição. O aparecimento do corpo como uma insignificação é altamente constrangedor. Aqui, a obscenidade passa de cómica a grotesca. Ao perceber a torpeza dessas ações, a morta sensualidade dessa carne não mais humana, não podemos deixar de sentir seu fedor ontológico, que denuncia a sem-razão do mundo, a absurdidadc da existên­cia. Em Bocage, libertino em desespero, sufocado pelo mofo de uma sociedade enrijecida, frequentemente perpassa a sombra agourenta desse humor-terror. O grotcsco-cscatológico é nêlc a recuperação, para uso dessa visão, do sentido originário da pa­lavra obsceno — sentido no qual ela é sinónimo de funesto.

Porém o simples humor já resgata para o obsceno a dimen­são do valor humano. A comicidade é uma manifestação emi­nente da consciência livre. O cómico é distância entre a cons­ciência e seu objeto; distância que mostra o espírito mais livre do que nunca. Nada é mais interessante do que verificar como a presença do humor, na literatura erótica, desagrada ao leitor robotizado, que nela procura o mero excitante, sem nenhuma penetração crítica e sem nenhuma identificação rebelde. Mau-rice Girodias,1 o famoso editor da Olympia Press, conta que não há nada que esse leitor odeie mais, nos livros licenciosos, que o ingrediente humorístico relacionado à temática sexual. É porque o cómico rompe o "encantamento". Elemento distancia-dor, êle impede o sexo de seduzir dirctamente, omitindo a vi­gilante mediação do espírito. Se imoralidade, para a mente con­temporânea, é sobretudo a inércia bestializante da consciência,

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então a verdadeira literatura do obsceno é francamente moral, toda vez que consegue sacudir o homem de seus torpores — e do maior deles, essa abjeta lassidão a que o erotismo-de-con-sumo da sociedade moderna o reduz. Santa Teresa, outubro de 1964.

1 MAURICE GIRODIAS, Advance Through Obscenity?, artigo no Times Literary Supplement de 6 de agosto de 1964.

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C O P P E L I U S O U A V O N T A D E A L I E N A D A

A JOSÉ JERÔNIMO MOSCARDO DE SOUZA, Amigo fraterno e hoffmanniano existencial.

Todos conhecem Der Sandmann ("O Homem da Areia"), o conto fantástico de E . T . A . Hoffmann em que aparece o vulto sinistro do Doutor Coppelius. Vamos relembrá-la: Natanael, jovem estudante em Gotinga, escreve a seu amigo Lotário, irmão de sua noiva Clara, contando o horror que o assaltou quando, procurado por um tal Coppola, vendedor de barómetros, nele reconheceu a figura fatídica de Coppelius. Coppelius, narra Natanael, foi o génio mau de sua infância, o homem repugnante que, para tristeza da esposa e dos filhos, mantinha sob sua maléfica influência a seu pai. Em criança, nosso estudante apre­ciava intensamente as horas passadas entre a família reunida, logo após o jantar, na companhia do pai. O aconchego do lar só era perturbado pela chegada de um personagem odioso, cuja presença a mãe evitava sempre às crianças, a quem dizia tratar-se

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