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Curso anual dos bispos do Brasil - 2017
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2017
A reconciliação:
o sacramento da misericórdia para a Nova Evangelização
D. Rino Fisichella
Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização
“Em cada diocese, dever haver pelo menos um lugar dedicado de modo especial e
permanente à celebração deste sacramento, em que haja sacerdotes sempre presentes, para
possibilitar que os fiéis façam a experiência da misericórdia de Deus. O sacramento deve estar
especialmente à disposição, até diariamente, nos lugares de peregrinação e nas igrejas
especialmente dedicadas a esta finalidade” (XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos
Bispos, Propositio n. 33,)
Desafios para a nova evangelização
Um dos aspetos que qualificam a nova evangelização, conforme sublinhei várias
vezes nos encontros anteriores, é reconduzir a vida cristã a uma unidade. Filhos do nosso tempo,
também nós estamos submetidos, não raro de maneira inconsciente, a pressões culturais de
acentuada visão relativista, com a consequência de separar a unidade entre a profissão de fé e a
vida de discipulado. Várias expressões presentes na linguagem comum mostram com evidência
esta tendência negativa que lentamente, mas de maneira inexorável leva, primeiro, à crise de fé,
depois, à indiferença e, finalmente, ao ateísmo. “Crente mas não praticante” é, provavelmente, a
expressão emblemática desta visão da fé que sobretudo hoje colhe vítimas nas Igrejas de antiga
tradição. Uma visão fragmentária entrou na vida dos crentes e da práxis pastoral. É notória, como
acenei, na multiplicação das iniciativas e experiências que se sucedem rapidamente sem incidir
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em profundidade na vida da comunidade e das pessoas. Deste modo, acontece que facilmente
nos contentamos com o fragmento imediato que possibilita que se veja algum resultado
esporádico, sem apontar para um projeto unitário que saiba conjugar o encontro com Jesus Cristo
e a sua Igreja com uma existência crente que amadurece progressivamente no esforço do
testemunho do dia-a-dia. Na mesma linha, o Papa Francisco recomendava aos Bispos de
nomeação recente: “Recomendo-vos a atenção à intimidade com Deus, fonte da posse e da
entrega de si, da liberdade de sair e de voltar. Deveis ser Pastores capazes também de regressar
a casa com os vossos, de suscitar aquela intimidade saudável que lhes possibilita que se
aproximem, que criem aquela confiança que lhes permite perguntar: «Explica-nos». Não se trata
de uma explicação qualquer, mas do segredo do Reino. É uma pergunta dirigida a vós em
primeira pessoa. Não se deve delegar a resposta a outrem. Não se pode adiá-la, porque se vive
em digressão, num indeterminado «algures», indo para algum lugar ou voltando de algum lugar,
frequentemente pouco seguros de si mesmos”1.
A Igreja fonte da misericórdia
“A Igreja vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia” (EG 24). São estas as
palavras do Papa Francisco para definir a natureza e a própria missão da Igreja. Do mesmo modo
se dirigia ainda aos novos Bispos: “Tornar pastoral a misericórdia consiste exatamente nisto:
conjugá-la com verbos, torná-la palpável e ativa. Os homens têm necessidade de misericórdia;
mesmo inconscientemente, vivem à procura da misericórdia. Sabem bem que estão feridos,
sentem isto, sabem bem que estão «meio-mortos» (cf. Lc 10, 30), por mais que tenham medo de
o admitir. Sede Bispos com o coração ferido por uma misericórdia semelhante, e portanto
incansável na tarefa humilde de acompanhar o homem que, «por acaso», Deus colocar no vosso
percurso. Por onde quer que andeis, recordai-vos que o caminho de Jericó não está distante. As
vossas Igrejas estão cheias desses caminhos. Muito perto de vós não será difícil encontrar aqueles
que esperam não um «levita», que vira a cara para o outro lado, mas um irmão que se faz
próximo”2.
1 Discurso aos participantes do curso de formação para novos bispos, 16 de setembro de 2016. 2 Discurso aos participantes do curso de formação para novos bispos, 16 de setembro de 2016.
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O sacramento da reconciliação
O sacramento da reconciliação entra com pleno direito na obra de nova evangelização,
não apenas pela experiência de fé, que permite experimentar concretamente a misericórdia de
Deus Pai, mas também pela valência antropológica que ele possui. A experiência do Jubileu
permitiu que se verificasse uma grande afluência ao sacramento da reconciliação. Temos dados
segundo os quais, em alguns países, houve um incremento de até 30%. Mesmo as basílicas em
Roma e as Igrejas jubilares foram testemunhas de longas filas nos confessionários. O nosso povo
percebeu com força que a misericórdia de Deus era verdadeiramente palpável neste sacramento
de reconciliação.
Uma atenta análise das várias fases em que se desenvolve o sacramento permite que
se reconduza a uma unidade o despedaçamento que se experimenta na vida. A crise de fé que a
Igreja vive até o sacramento da penitência corroeu. No compromisso da nova evangelização, a
renovação da pastoral deveria contribuir fortemente para voltar a colocar num lugar central o
sacramento da penitência; efetivamente ele requer um compromisso ainda maior, sobretudo
quando se confronta com a exigência de uma nova linguagem para o anúncio e para a profissão
de fé.
São vários os motivos que levaram aos escurecimento do sacramento que, mais que
todos, expressa o valor da misericórdia de Deus. Por mais paradoxal que possa parecer, estamos
diante de uma “consciência esquizofrênica”. Por um lado, de fato, o crente amadureceu a sua
consciência individual no interior da qual julga os seus atos; por outro lado, esta prescinde do
ensinamento da Igreja, que é cada vez menos conhecido e assumido como critério de julgamento.
Há dois aspectos, em particular, que parecem importantes para entrar progressivamente no tema
e verificar a possibilidade de superar a crise.
1. Em primeiro lugar, faltou o anúncio central da pregação de Jesus: a metanoia
enquanto convite a acolher em nós o Evangelho e a mudar de vida. O anúncio tornou-se teórico,
sem uma correspondência concreta, como a apresentação de uma experiência de gratuidade e de
alegria, que vem do ato de se abandonar livremente a Deus com a escolha de fé. É sintomático
que tenhamos de verificar como o não saber “dar razão” da própria fé (1Pe 3,15), determinado
por uma falta de conhecimento dos seus conteúdos, tenha levado à crise da confissão como uma
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das suas primeiras consequências. De fato, chegamos à incapacidade de justificar o sacramento
da penitência como um encontro real com o Senhor no momento da nossa fraqueza, determinada
sobretudo pela sua ausência. Por outras palavras, o anúncio para viver no mundo etsi deus non
daretur, acertou no alvo e levou a experimentar a ausência de Deus como um dado adquirido.
Por isso, esta poderia apenas ser o critério de uma liberdade alcançada e de uma independência
que finalmente levava o crente à sua autonomia de julgamento, sem qualquer ulterior mediação,
até mesmo eclesial.
Se a isto acrescentarmos, por exemplo, o costume de ser cristãos como um fenômeno
cultural, um paternalismo clerical conjugado com um sinuoso pelagianismo revisitado e
corrigido para os nossos tempos (cf. EG 94), uma exasperada visão moralista que reduz tudo ao
sexto mandamento, e uma apresentação parcial do sacramento da eucaristia como portadora de
perdão e de salvação… estes e outros elementos desaguaram no eclipsar do valor da consciência
do pecado e da ausência de Deus na vida pessoal. Se Deus devia ficar de fora da minha existência,
uma vez que, enquanto crente, me tornei adulto e capaz de levar a minha vida de maneira
autônoma e independente, é óbvio que o reconhecimento da sua ausência, mais que difícil, se
torna supérfluo.
Enfim, estamos diante de um homem que se iludiu com a sua própria vida. É objeto
de uma publicidade que tem tanto de insistente como de aborrecido, que lhe impõe uma visão
efêmera da existência, afastando-o da profundidade da sua consciência. Incapaz de encontrar
uma orientação que consiga guiar a sua existência, encontra-se sozinho consigo mesmo,
encerrado num individualismo asfixiante e incapaz de relações estáveis à luz do amor. Enganado
naquilo que a vida tem de mais sagrado, que é o amor, cai facilmente como presa de paixões
passageiras, que se tornam veículo para uma tristeza ainda maior. Instável devido à precariedade
das situações, espera o momento da diversão do fim-de-semana como uma porção de oxigênio
suficiente para recomeçar depois, de novo, com a monotonia imposta pela segunda-feira de
manhã. Enfim, é necessário e urgente reconduzir o nosso homem contemporâneo ao encontro
consigo mesmo, de modo a dar-lhe a possibilidade de redescobrir a verdade acerca da sua vida.
O ensinamento de Agostinho continua a ser a estrada mestra a percorrer: “Noli foras ire. In te
ipsum redi in interiore homine habitat veritas, etsi naturam tuam mutabilem inveneris trascende
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te ipsum”3. Nesta perspetiva, a confissão é um instrumento eficaz que transforma o homem. Ela
o leva de novo ao silêncio da sua consciência e coloca cada um diante da verdade da sua própria
vida, sem qualquer ilusão. Num período em que o sentido de onipotência invade não poucas
pessoas, em que se confunde sonho com realidade, pensando que se pode comprar tudo com o
dinheiro ou que tudo é de exclusivo domínio individual, voltar a fazer contas com aquilo que
realmente se é, não constitui propriamente um dano, mas uma urgente necessidade. Neste
contexto, adquire um particular valor a educação ao exame de consciência.
Nem se improvisa penitentes, nem confessores. O sacramento se inicia com uma
preparação que imerge o penitente num espaço de silêncio e de solidão. A sós consigo mesmo,
para compreender quem se é. A oração deve permear este momento para se colocar diante de
Deus na sinceridade de coração e de mente. A consciência da sua atual condição de pecador e a
exigência da conversão com as consequências que ela comporta, impõe o silêncio da oração e da
reflexão. A forte solicitação à indiferença moral, que vem do mundo que o rodeia, e o caráter
anônimo em que se vive a existência do dia-a-dia levam a assumir modelos culturais e de vida
social, que, muitas vezes, impedem de chegar ao núcleo essencial da personalidade de cada um.
Ao exame de consciência cabe a gigantesca tarefa de levar a tocar com a mão a verdade acerca
da vida de cada um para se chegar a um julgamento coerente. Não é um momento fácil, porque
cada um está envolvido na ilusão e no engano fornecido pelo viver de cada dia. Por isso mesmo,
o penitente deverá ser ajudado a encontrar-se a si mesmo e a ver o momento do sacramento como
espaço eficaz em que lhe é garantido um genuíno crescimento de maturidade pessoal. Deste
modo o exame de consciência poderá ir para além da composição de uma lista mais ou menos
completa de pecados, para chegar em última análise a individuar a causa que os provoca. Por
outro lado, chego à verdadeira conversão, justamente quando chegar à consciência da causa do
meu pecado e não da sua manifestação.
2. Um segundo elemento sobre o qual refletir vê a causa da crise do sacramento da
reconciliação na perda de sentido de pertença à comunidade. A supremacia do relativismo não é
apenas uma questão de carácter filosófico que pode satisfazer o debate entre os especialistas.
Uma tal forma de pensamento entrou inevitavelmente nos comportamentos das pessoas, criando
3 Agostinho, De vera religione, XXXIX [“Não queiras sair fora de ti, regressa dentro de ti mesmo. A verdade habita no homem
interior; e, se achares que a tua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo.”].
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consequentemente uma cultura. Aquilo que se pode verificar é certamente a ênfase num
subjetivismo que encerra em si mesmo, impedindo a relação interpessoal e, com ela, o sentido
de responsabilidade social. A reconciliação, pelo contrário, dá-se na Igreja, com a Igreja e
mediante a Igreja. Esta é a condição para aceder com inteligência ao ensinamento da Palavra do
Senhor, quando institui o sacramento. Não se esqueça que isso acontece no dia de Páscoa. Voltar
a pegar no texto do evangelista João, não será inútil para redescobrir o laço entre nova
evangelização e sacramento da reconciliação. “Nesse dia, que era o primeiro da semana, à tarde,
trancadas as portas da casa onde se achavam os discípulos, por medo que tinham dos judeus, veio
Jesus, e pôs-se no meio deles, e disse-lhes: «A paz esteja convosco!» Dito isso, mostrou-lhes as
mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se muito ao verem o Senhor. Jesus, de novo, disse-lhes:
«A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou a mim, assim eu vos envio a vós». Dito isso,
soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados,
lhes serão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes, lhes serão retidos»” (Jo 20,19-23). Este
texto tem uma importância capital para a fé e para a vida da comunidade. Após o Ressuscitado
se deixar ver por Madalena, mostra-se agora aos discípulos que ficam cheios de alegria,
justamente por “ver o Senhor” (v. 20). A aparição de Jesus ressuscitado tem como primeira
consequência libertar os discípulos do “medo” e da tristeza. Eles já não estão sozinhos, porque o
Mestre voltou para o meio deles e recolhe-os à sua volta como fazia anteriormente. Dois gestos
de Jesus são determinantes nesta aparição: o primeiro é a missão de anunciar o evangelho; o
segundo é soprar sobre eles para lhes oferecer o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados.
“Como o Pai me enviou a mim, assim eu vos envio a vós”. Com estas palavras inicia
agora realmente a missão dos discípulos que Jesus lhes tinha anunciado repetidamente em
momentos anteriores. Cria-se assim uma verdadeira continuidade entre a missão de Jesus,
recebida do Pai, e a dos seus discípulos, oferecida por Cristo com o poder que lhe é dado pela
sua ressurreição. Não esqueçamos, contudo, que a missão de Jesus engloba não apenas o anúncio
do Evangelho mas, juntamente com ele, a salvação mediante o perdão dos pecados: “Deus não
enviou o Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo
3,17). Logo a seguir vem a ação do Ressuscitado de “soprar” sobre os discípulos, que é explicada
com as palavras de receber o Espírito para o perdão dos pecados. É um ato único no Novo
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Testamento4 e significa transmitir a vida: Jesus torna os discípulos participantes da sua própria
vida como ressuscitado. Ao transmitir o poder de perdoar os pecados, o evangelista se coliga
com toda a tradição sinótica. Desde o próprio vocabulário utilizado, João mostra com toda a
evidência a unidade do ensinamento de Jesus que faz da sua Igreja uma comunidade, onde os
pecados são perdoados, mais, para traduzir literalmente o verbo, seria “apagados”. Disso está
bem convicto Santo Agostinho quando, num comentário a esta passagem, diz: “A caridade que,
por meio do Espírito Santo, é derramada nos nossos corações, perdoa os pecados daqueles que
fazem parte da comunidade eclesial; retém, porém, os pecados daqueles que não fazem parte
dela. É por isso que conferiu o poder de perdoar os pecados logo depois de ter dito: Recebei o
Espírito Santo”5. A tudo isto se deve acrescentar a saudação de paz “shalom”, repetida duas
vezes. Agora Jesus dá aos discípulos a sua paz como experiência concreta para a vida futura
deles, quando já não estiver fisicamente com eles. A partir deste momento, a paz deixa de ser
apenas uma saudação genérica ou um voto de bênção; torna-se, antes, uma realidade, um dom
concreto, um verdadeiro estilo de vida, do qual ser responsáveis. Enfim, o dom da paz é a vida
de amor e de comunhão que deverá possibilitar que se reconheça os seus discípulos no futuro.
Como se pode observar a partir deste breve excursus, a vida da Igreja está marcada
por um percurso que encontra o seu coração pulsante no tríduo pascal. De fato, na quinta-feira
santa, quando Jesus institui a santa eucaristia, está presente também Judas. Voltam à mente, a
este respeito, as palavras de don Primo Mazzolari: “Pobre Judas! É um dos personagens
mais misteriosos que encontramos na paixão do Senhor. Contento-me em pedir piedade
para o nosso irmão Judas. Não vos envergonheis de assumir esta irmandade! Disso, eu não
me envergonho, porque sei quantas vezes traí o Senhor: ninguém se deve envergonhar dele.
E ao chamá-lo «irmão» estamos na linguagem do Senhor” (O nosso irmão Judas).
Neste momento, o Mestre promete que permanecerá sempre com os seus, até beber
de novo daquele cálice no reino do Pai no fim dos tempos (cf. Mt 26,29). No dia de Páscoa, por
sua vez, o dom do Espírito para o perdão dos pecados encontra purificado o rebanho dos
discípulos. O Espírito oferecido para o perdão já permitiu que o pecado da traição de Judas e de
Pedro e da fuga de todos fosse perdoado. O Espírito reúne os dispersos, purifica os traidores, dá
4 É mais fácil encontrar a sua presença no AT: Gn 2,7; 1Rs 17,21; Ez 37,9; Sb 15,11. 5 Agostinho, In John., 121,4.
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força aos tímidos e coragem aos amedrontados. A reconciliação é a comunhão plenamente
restituída; a presença do Ressuscitado no meio deles é a mais evidente confirmação disso mesmo.
O Espírito que desliga e liga está impresso como um selo no corpo do colégio apostólico; isto é
uma comunidade de discípulos, não uma soma de indivíduos. O perdão é um evento comunitário,
porque o pecado traz consigo a separação da comunidade.
Por isso, para o projeto da nova evangelização, isto significa que é vinculante manter
intacta esta relação mediante uma práxis pastoral que consiga encarregar-se de conjugar anúncio
e perdão dos pecados na sua unidade substancial que encontra correspondência na vida
sacramental da reconciliação. Sem o anúncio da metanoia, não se poderá ter consciência do seu
próprio pecado, e sem o sacramento da reconciliação, não se poderá ter uma eficaz ação
evangelizadora capaz de levar a perceber a profundidade do amor de Deus, que chega até à
misericórdia.
O valor do sacramento
A situação que o penitente encontra é estranha. Até se confessar, parece-lhe que é
livre no seu modo de se expressar; pode falar ou calar-se sobre tudo o que quiser. Na confissão,
pelo contrário, deve admitir a verdade sobre a sua existência; não pode esconder nada a si mesmo.
É óbvio que cada um de nós sabe que é pecador, e não é propriamente isto que preocupa. Como
se costuma dizer em italiano: “mal comum, meia alegria”; ninguém pode alhear-se desta
condição e, por isso, sentimo-nos absolvidos pelo fato de termos em comum a mesma sorte. Já
reconhecer diante de outra pessoa aquilo que eu pessoalmente sou, aí a situação muda. Na
confissão não me posso calar; tenho que dizer tudo acerca de mim. Tal como não me posso
apresentar à frente do médico, escondendo a patologia, também não posso apresentar-me ao
confessor mentindo acerca da minha existência. Aqui entro no específico, no concreto, no
pessoal… a escolha que faço me envergonha e me humilha, mas é condição necessária para que
a terapia possa surtir efeito. Enfim, tudo o que eu sou, tudo o que constitui a minha existência no
bem e no mal, a minha relação com Deus e com os outros, tudo se torna manifesto na confissão.
Pede-se que eu seja transparente para que me possa tornar realmente transparente como sinal de
ter descoberto a verdade sobre a minha existência pessoal. Contudo, será bom que, neste
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contexto, se esclareça mais ainda que o confessionário não é consultório do psicólogo. Lá não se
conversa com argumentos de autoconsciência e de complexos variados; o objeto da confissão é
o desejo da proximidade de Deus, do qual me afastei com o pecado. Somente se eu reconhecer
realmente quem sou, posso rever a sua face e viver de novo na sua presença que garante a
grandeza do seu amor. Aqui a fé é chamada a expressar-se da melhor forma, porque devo
perceber que o que me é dito tem a ver comigo e só comigo. É a voz de Deus que torna a minha
estrada plana e que me restitui a alegria da sua presença. É a mesma experiência de Paulo quando
escreve: “Dou graças àquele que me fortaleceu, a Cristo Jesus, nosso Senhor, pois me julgou fiel,
pondo-me no ministério, porque eu era, outrora, blasfemo, perseguidor e injuriador. Mas agora
foi-me dada misericórdia” (1Tm 1,12-13).
Pode acontecer que o penitente ache que o confessor é incapaz de compreender em
profundidade o seu pecado e o seu estado de ânimo. Não é isto que conta. Ele deve, sobretudo,
compreender que, ao aproximar-se da confissão, está percorrendo o mesmo caminho que Jesus
percorreu até ao Calvário. Cada um carrega sobre si mesmo o peso do pecado, vivendo com a
certeza que este mesmo pecado será descarregado sobre as costas do Filho de Deus e com ele
pregado na cruz. Não se pede a ninguém que seja crucificado. Isso só foi pedido a Jesus que
podia carregar o pecado do mundo. Nós devemos carregar o peso somente até ao Gólgota e aí
esperar que seja hora de noa, o momento da absolvição, quando tudo será literalmente destruído
e Deus nunca mais se recordará do pecado cometido (cf. Is 55,8-9). O véu do templo se rasga e
a via da reconciliação com o Pai se encontra verdadeiramente e coerentemente correspondida na
pessoa do Filho que, por causa dos nossos pecados, se entrega à morte como redenção.
Também é verdade que, do outro lado, o confessor também pode dar conta que é
incapaz de saber dar uma resposta. Frequentemente, o sacerdote se acha incapaz de saber
responder ao que lhe é confessado, ou pedido como é o caso de um conselho e de uma expectativa
de ajuda. Em outros momentos, ele vive uma espécie de solidão diante da profundidade do mal
que escuta e que é chamado a carregar sobre si mesmo. Em todo este estrondo de sentimentos,
esquece-se o valor da graça que age, do Espírito que atua e da misericórdia que não conhece
limites. Por outro lado, o poder de tirar os pecados, que lhe foi confiado, não é menos
compreensível que o outro de poder transformar, com as suas palavras, o pão e o vinho no corpo
e no sangue de Cristo. As palavras de Jesus: “O que é mais fácil? Dizer ao paralítico: Perdoados
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são os teus pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda?” (Mc 2,9), dirigem-se também
ao confessor que percebe o valor do sacramento como o valor do poder da misericórdia de Deus,
que vai de encontro a cada um. Na eucaristia, tal como na confissão, ele age in persona Christi.
Como diz o Catecismo da Igreja Católica: “O confessor não é dono, mas servidor do perdão de
Deus. O ministro deste sacramento deve unir-se “à intenção e à caridade de Cristo”. Deve ter um
conhecimento comprovado do comportamento cristão, experiência das coisas humanas, respeito
e delicadeza para com aquele que caiu; deve amar a verdade, ser fiel ao Magistério da Igreja, e
conduzir o penitente com paciência para a cura e a maturidade plena. Deve rezar e fazer
penitência por ele, confiando-o à misericórdia do Senhor” (CCC 1466). É verdadeiramente um
programa de vida, que me dá a possibilidade de afirmar que o confessor da nova evangelização
deverá recuperar uma espécie de saudade, para voltar a sentar-se no confessionário, porque está
consciente que é apenas instrumento da graça que oferece amor. A sua força é a de Cristo que o
habilita para perdoar em seu nome e para se tornar instrumento ativo do Espírito que consola.
Isto, porém, deve se conjugar com um estilo de vida coerente e digno de crédito que permita
colher no penitente a transparência da sua própria existência sacerdotal. O Papa Francisco
exprime-se assim na Misericordia et misera: “Nós, confessores, temos experiência de muitas
conversões que ocorrem diante dos nossos olhos. Sintamos, portanto, a responsabilidade de
gestos e palavras que possam chegar ao fundo do coração do penitente, para que descubra a
proximidade e a ternura do Pai que perdoa. Não invalidemos estes momentos com
comportamentos que possam contradizer a experiência da misericórdia que se procura; mas,
antes, ajudemos a iluminar o espaço da consciência pessoal com o amor infinito de Deus (cf. 1Jo
3,20)” (MM 11). Com demasiada frequência, os sacerdotes, envolvidos nas muitas coisas a fazer,
correm o risco de descuidar e mesmo de deixar de ter um tempo dedicado à confissão. Por isto
mesmo, o Santo Padre afirma: “O sacramento da Reconciliação precisa voltar a ter o seu lugar
central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do
«ministério da reconciliação» (2Cor 5,18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido
seja impedido de aceder ao amor do Pai que espera o seu regresso e, ao mesmo tempo, a todos
seja oferecida a possibilidade de experimentar a força libertadora do perdão” (MM 11).
Quem se aproxima do sacramento da reconciliação é um homem adulto, consciente
do seu pecado e responsável pelos seus atos; não se pode apresentar diante do confessor, como
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se o tempo tivesse parado na sua primeira confissão, apesar de os anos terem passado. O que ele
realiza deve possibilitar que se veja nele um homem livre que, evidenciando o seu pecado,
reconhece que está construindo cada vez mais a sua existência à luz da verdade. Conforme se
disse, é verdadeiramente homem, porque sabe reconhecer a verdade da sua própria vida. No fim
das contas, é o desejo de Deus e da sua proximidade que conduz à confissão. O pecador sente a
distância e a ausência de Deus; por isso, experimenta que não pertence à comunidade, porque o
seu estilo de vida se encontra em contradição com ela. Neste sentido, é bom que não esqueça
que, além de ser um ato comunitário, a reconciliação é também um ato público. Não é às
escondidas que me aproximo do confessionário, mas na igreja que é pública, onde toda a
comunidade pode me ver. A este ponto, contudo, já não se cria a distinção entre os fiéis, porque
todos têm sabem que são pecadores e que necessitam de misericórdia. A participação no pecado
e a necessidade da misericórdia acomunam diante de Deus e dos homens. Tal como ninguém
pode dizer que é justo diante de Deus, do mesmo modo também ninguém pode se eximir de se
apresentar como pecador diante dos irmãos.
Para concluir
Gostaria de concluir estas breves considerações recorrendo ao belo discurso do Papa
Francisco por ocasião do Jubileu, quando se encontrou com os Missionários da Misericórdia e
os enviou. Para compreender o valor de ser penitente e confessor, pode ser muito significativo o
episódio em que Noé se embriagou: “Noé, na Bíblia, é considerado um homem justo; e, no
entanto, não está sem pecado: a sua embriaguez faz com que compreendamos como era frágil, a
ponto de perder a própria dignidade, fato que a Escritura exprime com a imagem da nudez.
Contudo, dois dos seus filhos cobrem-no com a manta para que a sua dignidade seja protegida
(cf. Gn 9,18-23). Este trecho leva-me a verificar como o nosso papel na confissão é importante.
Diante de nós apresenta-se uma pessoa «nua», uma pessoa que não sabe falar nem o que dizer,
com a sua fragilidade e os seus limites, com a vergonha de ser um pecador, e muitas vezes não
consegue dizê-lo. Não nos esqueçamos: diante de nós não está o pecado, mas o pecador
arrependido, o pecador que gostaria de não ser assim, mas não consegue mudar. Uma pessoa que
sente o desejo de ser acolhida e perdoada. Um pecador que promete já não querer afastar-se da
casa do Pai e, com as poucas forças que ainda tem, quer fazer de tudo para viver como filho de
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Deus. Portanto, não somos chamados a julgar, com um sentimento de superioridade, como se
fôssemos imunes ao pecado; pelo contrário, somos chamados a agir como Sem e Jafé, filhos de
Noé, que pegaram uma coberta para proteger o próprio pai da vergonha. Ser confessor segundo
o coração de Cristo equivale a cobrir o pecador com a manta da misericórdia, para que não se
envergonhe e possa recuperar a alegria da sua dignidade filial e saber onde se encontra”.
É significativo, a este respeito, o sucesso que vem tendo a iniciativa “24 horas
para o Senhor” que, já desde há quatro anos, no IV domingo de Quaresma, em cada diocese
do mundo, vê promover iniciativas relacionadas justamente com o sacramento da
reconciliação (cf. MM 11).
Como se vê, o sacramento da confissão, com a valência antropológica que contém,
exige que compreenda a verdade acerca da minha própria vida, relacionando-me com uma
comunidade que, no bem e no mal, considera que eu faço parte dela. A vida, feita de idealismos
e de contradições, precisa do perdão enquanto experiência de amor e de misericórdia. A confissão
possibilita que se colha tanto um como o outro aspecto, na medida em que permite que a pessoa
se torne instrumento de perdão. Uma sociedade como a nossa, que parece ter esquecido o perdão
e que suscita cada vez mais reações como violência, rancor e vingança, precisa de testemunhas
de perdão e de sinais de misericórdia. A nova evangelização conjuga-se, por isso, com a
experiência da reconciliação, em que o amor, que vai até ao ponto de perdoar, se torna anúncio
concreto do modo de amar de Deus e de como ele vai ao encontro de quem se abandona a ele na
fé.