8
 A re cusa anoréxica I Maisde nove an oréxico s e m dez são menin as . E sco lhi utili zar delil n- r ada - mente, n es s e ca pítul o, () artigo feminino. Dema nda, desej o, nec es sida de A boc a te m dupl a f u n ção: de um la do, alimentar, porta de entrada do obj eto da nec e ss idade; d o outro, lugar de um a c er t a sa tisfa ção, pondo emj ogo um desejo. D esej o e ne c es s idade não oda mesma natureza (La ca n 958a: 627 - 30). Como indica L ac an, o desej o se es boça na ma r ge m em qu e a de manda se r á de du zida da necessida de  (1960a :S 4). É por isso qu e a s ne ce s sidad es es t ão ass uj e itadas à dem a nda (L ac a n 195 Se: 69 0). El as s ão tr a nsforma da s e m raz ão da ne c es s idade d e se r e m formu lada s e m dem a nda, in fl ectid as pelo su- jeito, c ontamina da s po r implica r e m-se e m uma outr a satisfação (La can 1972-3: 49 ). Nã o ex iste, port a nto , uma s olução de sa tis fação da ne cess ida de válida pa r a todos. A di men o do d e sejo se af a sta da dim ensão d a ne c es sidade ao me smo tempo em qu e ne l a se ap óia. Para Freud , as pu l sões se xua is se sa tisfaze m a poiando-se nas fu n ções v ita is. Por ex emplo , a pul são o ra l a poiando-se na fu n ção alime nta r. A inda a ssim, o obj eto da puls á o oral n ão pode ser co nsidera do um primeiro alime nto. O ob- jeto d a pulsâo , ao co nt rári o, ent r a em jo go pr ec isame nte porque  nenhum alimento j a mais p ode rá sa tisfazer verdade ir a mente a pu l o or al, an ão se r c ontornando u m obj e to et e rna me nte faltante (L aca n 1964 : 164 ). O obj e to na pu l são não é sua ca ra cter ística ma i s var iá- vel? E le l: so br etud o  aquil o por m e io do que apulsào p o de atin gir seu a lvo (Fr e ud 19 15b: 1 9). Tal ve z se j a por is so qu e continua mos a nos a lime nta r , qu e o ape tite se ma ntém a lém da fom e. Aa noréxica e nsina (Iu e o alimento não é ap e nas o obj eto de uma n ec e ss idade. Temos assim de di stinguir a fome , que é uma n ec e ssidade , do a pe- tite , qu e põe e m jogo um des e jo. Em s u a r ec usa , a anor éxic a mostr a qu e a b oc a n ão se sa tisfa z ape - na s co m ali mento. Há na an orex ia uma sa tis fação pa rad oxa l, n eg a iva , da pul são or a l por int er médio da re cu s a dealime nt o. A anoré xic a u til iza sua re c usa co mo um des e jo (La ca n 1955 a: 62S). O de sejo se distingu e da ne c es sidade por o poder se r sa c ia do. O de sejo se mpre é opa co , se mpr e de ve se r ref ormulado. O obj eto CAPi TULO 6 Um suj e ito pode se tornar o ar t es ão de se u próprio imp as se. I ss o t realiza do de maneir a evide nte p e lo anoré xico, cujo distúrbio s e lig,\ a um gozo. Na anorexia , a armadilha se fec ha sobr e o suj e ito uma ve z gu e e le enco ntr a ne la uma sa tisfa ção. Em Ainsi soit il lcs  SO jáit5 Gide eXj ximc ess a contracliçâo de ma ne ira ex e mplar, indica ndo o que const itui a princip a l di fi cul d ade de todo tratamu ntn da a no- rcxia: C onhec i uma palavra clu e des igna () e stad o do qu a l sofr o h;í algun s me se s; uma b e la palavra: a nor cx ia. Di ze r  IUC sofr o de ano. rcx ia l: e xa gero; o pior l: qu e ( [u a se n ão so fro di ss o .. . par e ce , tod avia, (llle b as taria eu me a band on ar pal  a deixa r de s er. No (Iu e es c r e vo a(lui, nã o clu c iram ve r dc~ cs pcro, m a s antes satis/- a~ · ão . D e fato,anorux ia l: uma pal av r a ba stante be m esco l hi da par a o distúrhio c lue desig na . Ela /.: f<lrIna da pela partíc ul a de pr i vação a c por  orc xia , do gr ego ore/aos ( IU C si g ni fic a di l-i gi do a, ap e tite , desej o, da qu al deriva ri am ta mlx- rn n: gi lll c , dir c\ ã o, dirigido , di- r o ito ( l{c y 1992).  a norr .xia , pa t ologia do d e~ c jo, se ria também u m a pat ologia da vonta de . Uma vontade C ]u e vai co ntr a um de se jo.  all orc x ia par ece se ongela l- e m uma c ontradição ou , mai s pre c is a- mente , em um par adoxo: ela náo pode (lucreI' o que d es e ja. T oda a fcnomcnol ogia da anorcxiaindi ca e ss a te nsão. Atl: mes mo ,\ des- c arga na pa ssagem ao at o bulímico , gu e , na ve r gonha , rev el a de modo bruta l a tirania (lue o suj eito impõe a si mes mo. 1 8 6  nica da ori gem a c ri ança entr e a medicina c a p S  -nálisc  recusa anoréxica 1 87

A Recusa Anoréxica - François Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011

Embed Size (px)

Citation preview

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 1/8

A recusa anoréxica

I Mais de nove anoréxicos em dez são meninas. Escolhi utilizar delil n- rada-

mente, nesse capítulo, () artigo feminino.

Demanda, desejo, necessidade

A boca tem dupla função: de um lado, alimentar, porta de entrada

do objeto da necessidade; do outro, lugar de uma certa satisfação,

pondo em jogo um desejo. Desejo e necessidade não são da mesma

natureza (Lacan 1958a: 627-30). Como indica Lacan, "o desejo se

esboça na margem em que a demanda será deduzida da necessidade"

(1960a :S14). É por isso que as necessidades estão assujeitadas à

demanda (Lacan 195 Se: 690). Elas são transformadas em razão da

necessidade de serem formuladas em demanda, inflectidas pelo su-

jeito, contaminadas por implicarem-se "em uma outra satisfação"

(Lacan 1972-3: 49). Não existe, portanto, uma solução de satisfação

da necessidade válida para todos.

A dimensão do desejo se afasta da dimensão da necessidade ao

mesmo tempo em que nela se apóia. Para Freud, as pulsões sexuais

se satisfazem apoiando-se nas funções vitais. Por exemplo, a pulsão

oral apoiando-se na função alimentar. Ainda assim, o objeto da

pulsáo oral não pode ser considerado um primeiro alimento. O ob-

jeto da pulsâo , ao contrário, entra em jogo precisamente porque

"nenhum alimento jamais poderá satisfazer verdadeiramente a pulsão

oral, a não ser contornando um objeto eternamente faltante" (Lacan

1964: 164). O objeto na pulsão não é sua característica mais variá-

vel? Ele l: sobretudo "aquilo por meio do que a p ulsào pode atingir

seu alvo" (Freud 1915b: 19). Talvez seja por isso que continuamos

a nos alimentar, que o apetite se mantém além da fome. A anoréxica

ensina (Iue o alimento não é apenas o objeto de uma necessidade.

Temos assim de distinguir a fome, que é uma necessidade, do ape-

tite, que põe em jogo um desejo.Em sua recusa, a anoréxica mostra que a boca não se satisfaz ape-

nas com alimento. Há na anorexia uma satisfação paradoxal, negativa,

da pulsão oral por intermédio da recusa de alimento. A anoréxica utiliza

sua recusa como um desejo (Lacan 1955a: 62S).

O desejo se distingue da necessidade por não poder ser saciado.

O desejo sempre é opaco, sempre deve ser reformulado. O objeto

CAPiTULO 6

Um sujeito pode se tornar o artesão de seu próprio impasse. Isso t

realizado de maneira evidente pelo anoréxico, cujo distúrbio se lig,\

a um gozo. Na anorexia, a armadilha se fecha sobre o sujeito uma vez

gue ele encontra nela uma satisfação. Em Ainsi soit-il, lcs r= SOIJI

jáit5, Gide eXjximc essa contracliçâo de maneira exemplar, indicando

o que const itui a principal dif iculdade de todo tratamuntn da ano-

rcxia: "Conheci uma palavra clue designa () estado do qual sofro h;í

alguns meses; uma bela palavra: anorcxia. Dizer (IUC sofro de ano.

rcxia l: exagero; o pior l: que ([uase não sofro disso ... parece, todavia,

( ll le bastaria eu me abandonar pal"a deixar de ser. No (Iue escrevo

a(lui, não cluciram ver dc~cspcro, mas antes satis/-a~·ão".

De fato, anorux ia l: uma palavra bastante bem escolhida para o

distúrhio clue designa. Ela /.: f<lrInada pela partícula de privação "a"

c por "orcxia", do grego ore/aos, (IUC significa dil-igido a, apetite,

desejo, da qual derivariam tamlx-rn n:gilllc, dirc\"ão, dirigido, di-

roito (l{cy 1992). 1\ anorr.xia, patologia do de~cjo, seria também

uma patologia da vontade. Uma vontade C]uevai contra um desejo.

1\ allorcxia parece se congelal- em uma contradição ou, mais precisa-

mente, em um paradoxo: ela' náo pode (lucreI' o que deseja. Toda

a fcnomcnologia da anorcxiaindica essa tensão. Atl: mesmo ,\ des-

carga na passagem ao ato bulímico , gue, na vergonha, revela de

modo brutal a tirania (lue o sujeito impõe a si mesmo.

186Clínica da origem: a criança entre a medicina c a pSJ' -nálisc A recusa anoréxica 187

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 2/8

do desejo é um lugar-tenente do objeto, mesmo quando se trata d"

alimento. Algo é visado para além do objeto proposto.

Ao recusar o objeto da necessidade, a anoréxica demanda"

amor: que o objeto não seja tão-somente objeto de uma necessidad.,

mas também signo de amor. Não podemos confundir os cuidado:

exigidos pela criança, em particular a alimentação, com o dom d "

amor, ainda que eles passem pelos mesmos gestos. No amor, damos

também o que não temos, ao menos em termos de objeto: o ali

mento não é suficiente por si só. "No entanto nunca lhe faltou nada",

{ comum esse tipo de comentário a respeito da anoréxica. E se esse

nada tiver sido justamente o que faltou, esse nada "que constitui ;1

base da demanda de amor" (Lacan 1958a: 629)7 Esse nada seria,

então, () cluCa criança come quando não come nada (Ménard 1985).

A anorcxica demanda amor recusando ()objeto da necessidade.

Mas um alçapão se fecha sobre ela. Quanto mais recusa para salvar

seu dcsejo, mais respondemos a ela no registro da necessidade. A

dimcnsão do desejo e do pedido é rebatida sobre a dimensão daIwccssidade (Mcnard 1985). Só se fala de pesos, calorias, sobrevi-

vência. Todos se encontram pn:sos na armadilha, tanto a anoréxica

<llIanlo sua família ou os CJuedela se ocupam. Quanto mais nos

()hst inamos em salvá-Ia, mais ela recusa o clue lhe CllICI"CI11OSar.

'Tu rccuxo () (IUC VOC(: me oferece ponpJc não (: isso" (Ménard

I ()9S). De fato, não se trata de alimento. Trata-se de outra coisa,

cujo lugar c .. : ocupado pelo alimento. A demanda é di.-igiJa para

outra coisa clue não o objeto chamado por ela, é demanda de urna

presen\-~, sempre uma demanda de amor, Desse modo, a demanda

anula a particularidaclc de tudo o que pode SéT concedido, trans-

[ormandor. em prova de amor (Lacan 1958c: 690).

dos esclarecimentos trazidos por essa patologia, à questão da cons-

tituição subjetiva.

Podemos partir do paradigma da fome, tal como formulado

por Freud em A interpretação dos sonhos (1900: 481).

Freud insiste que há um hiato, um corte, entre a experiência

da satisfação - por exemplo, a saciedade após a absorção do objeto

da necessidade no recém-nascido -- e o vestígio mnêmíco da satis-

fação. Há uma perda de objeto e uma subtração de gozo no caminho

que vai da experiência de satisfação ao traço mnêrnico. A partir

daí, como escreve Freud, o desejo "se transforma em alucinação"

(ibid.: 481) e "o pensamento não passa ele um substituto do desejo

alucinatório" (ibid.: 482).

Dito de outro modo a partir de Lacan, é justamente com base

em uma tal operação subtrativa que o sujeito é engendrado. Uma

perda de objeto produz o sujeito. Entramos assim na dimensão da

demanda e do desejo, para além da estrita necessidade: "É necessário

que à necessidade [... ] se acrescente a demanda para que o sujeitofaça sua entrada no real" (1961 : 654).

A demanda implica o Outro. O sujeito, já inserido no discurso

do Outro, é encoberto pelos significantes da demanda impostos

1 ) c 1 0 Outro. O sujeito é um pólo de atributos, como retoma Lacan

ao comentar o relatório de Danicl Lagache: "Um pólo ele atributos,

eis o que é o sujeito antes do seu nascimento (e talvez seja sob ()

acúmulo destes que ele sufocará)" (ibid: 652). Lacan responde a

Lagache que o sujeito emerge por meio de um passo negativo, ou

melhor, um passo que decorre da negativação. É sobre a base de

um "não" que o sujeito pode criar o espaço para realizar o ato de

sua própria assunção. O sujeito não é um dado. Sua realização passa

por um corte instaurador: um "não" original necessário ao ato de

sua fundação.

A anoréxica cai na armadilha de um simples não, sem poder se apoiar

no que o precede, um não sem abertura para o possível. O nascimento

cio sujeito é também um sim baseado em um não. A criança está

A anorexia na perspectiva da anorcxia do recém-nascido

Gostaria de retomar a questão da anorexia na adolescência à luz do

que ensina a anorexia precoce. A anorexia precoce assinala um

impasse na emergência do sujeito; é necessário um retorno, a partir

18 8Clínica da origem: a criança entre a medicina c a psicanálise A recusa anoréxica 189

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 3/8

diante do Outro. Diante do que o precede, o sujeito se constitui

pelo ato de sua assunção subjetiva, que de uma só vez desorganiza

e reorganiza o que era. Em outras palavras, o sujeito se constitui a

partir de um vazio, que oferece as condições de sua emergência.

Ele emerge de um lugar onde não existe significante, por meio de

uma clisão do significante. Como escreve Lacan, "o modo original

de clisào significante [... 1 afirma o sujeito sob o aspecto do negativo,

instalando o vazio em que ele encontra seu lugar" (1961: 665-6).

O ato de emergência do sujeito passa, portanto, por uma sub-

tração dos significantes propostos pelo Outro. É assim que, se reto-

mamos () exemplo da anorcxia primária cio recém-nascido , podemos

considcrá-]a um momento crucial de emergência do sujeito. Tam-

bém acerca da anorcxia precoce, trata-se ele um não por meio do

qual o nascimento elo sujeito se dá.

I~ isso o clllc temos de ouvir nas situaçócs de anorcxia precoce

c que amiúde não ouvimos, tal a gravidade dessas situações no plano

vital. Ela ocupa tocla a cena (sonda nasogástrica, rcanirnacáo , irn-potônc-ia ctc.), deixando pais e cCluipt' medica siclcradox.

A anorc-xia pl'CCOCCnão l: apenas um c l i x t úrbio. (; tamlicm a cons-

titui<;ão do sujeito que está em jogo em uma recusa primordial.

A psicopatologia distingue duas Formas de anorcxia plTcoce:

anorcxia ativa (' anorcxia passiva. Na anorcxia at iva, encontramos

a tentativa, por meio da recusa, o não, de uma instauração suhjetiva.

A anorcxia passiva l~dilcrcnte. A criança não está na recusa. De

saída, pan~cc não ter nenhuma apettl1cia. Ela permanece passiva

ao seio. Nada acontece, como xc : existisse sobretudo uma inape-

tência , chegando à impossibilidade de aceder ao objeto da necessi-

dade. Um apetite da morte (Lacan 1938: 33), demonstração con-

ereta e dramática da pulsâo ele morte. A falta incide mais sobre o

desejo de viver que sobre o alimento.

A anorexia precoce passiva suscita uma questão sobre a mctapsi-

eologia frcudiana. Para Freud, a dimensão do desejo se apóia nas

funções vitais. Para Lacan, por sua vez, as dimensões da demanda e

do desejo se separam das funções da necessidade. Ora, a anorexia

precoce passiva parece mostrar o contrário. Sem apetência primária,

sem desejo desde o início, a criança parece não poder se alimentar,

nem aceder ao objeto vital da necessidade e à primeira experiência de

satisfação. Surge assim a questão: a demanda e o desejo se separam da

necessidade ou, ao contrário, nutrimo-nos porque existe um desejo?

Podemos mensurar a que ponto a possibilidade de uma demanda

ao Outro está suspensa na emergência do sujeito. Desse modo,

seria possível situar a anorexia precoce passiva elo lado do autismo

primário , do impasse absoluto de qualquer constituição subjetiva,

chegando mesmo à 111.orte.

A anorexia precoce suscita a questão do ser vivo a partir do

qual surge o sujeito (Miller 1981). Isso nos faz perguntar o gue é °ser vivo para a psicanálise. Para Freud, o sujeito nasce com uma

"fOl-ça constitucional das pulsôcs" (19 37a: 239). Para a psicanálise,

contudo, essa questão continua em aberto.

Resta lembrar ainda na estruturaçâo da criança o tempo dodesmame. Para Lacan, a imagem materna aparece por intermédio

da recusa do desmame: "uma tensão vital se resolve em intensão

mental" (1938: 27). Esse é o tempo fundamental da frustração . aque-

le em clue a mãe recusa dar a criança um objeto real: por exemplo,

o seio ou amamadeira. No ITIeSmOmovimento, () objeto, além ele

seu valor nutritivo, passa a ter o valor ele dom, o dom de sua mãe.

Esse dom permanece ligado a algo que não está no objeto, a um

nada clLlesela seu valor de dom. Como indicamos, esse "nada" é a

dimensão do dom que está além da nutrição. O nada pelo qual o

objeto é afetado transforma-o em objeto de dom, testemunho do

amor da mãe na relação de nutrição.

A partir ele então, a criança demanda à sua mãe, por meio de

sua recusa, um signo de amo!'. Toda demanda é fundamentalmen-

te demanda de amor. Nesse nada que marca o objeto, o nada que

Lacan situa em série com os objetos pulsionais (1 966b: 817), não

se trata somente de alimento. Entra em jogo um dom, um signo de

190 Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise A recusa anoréxica 191

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 4/8

amor. É o nada que permite que o objeto da necessidade se

transforme em objeto de dom. A anorexica tenta salvá-Ia não co-

mendo nada. Quando essa operação fracassa, permanecemos no

registro da necessidade, enrijecendo a problemática anoréxica, seja

ela precoce ou, mais tarde, na adolescência.

A anorcxia precoce pode, portanto, constituir um paradigma

que esclareça o que está em jogo na anorexia do adolescente: nesse

momento da vida- segunda fase do desenvolvimento sexual, corno

se diz· . é a assuncão cio sujeito que está em questão, por meio da

recusa que a anoréxica clracteriza tão marcadamente.

Podemos, assim, pôr em série a anorexia e os comportamentos

adictos (Jeammet 1984-). Anorexia, bulimia, alcoolismo, toxicoma-

nia formariam a saída patológica do mesmo tipo de impasse, que se

pode compreender como uma clínica da descarga por meio do ato,

uma série à qual acrescentaríamos as repetidas tentativas de suicídio

que visam à realização de um apetite de morte incoercível, em

uma paixão de autcdestruiçào.

Comportamento ativo de restrição alimentar, luta contra a fo-

me, atitude distorcida diante do alimento, ritos alimentares, con-

trole do que é eliminado, vômitos, abuso de laxantes, de diuréticos,

vontade de se esvaziar, de eliminar impurezas: trata-se de uma ne-

gação sistemática das necessidades do corpo, considerado unica-

mente como instrumento de gozo. Essa negação atinge a outras

funções que não a função alimentar. Hiperativicladc, desconsidcra-

ção pelo cansaço, insônia, ascese, insensibilidade ao frio, hiperin-

vcstimcnto intelectual, rejeição elavicia afetiva, a negação elas ne-

cessidades mais elementares chega à negação da própria doença.A tendência em manter a distância tuelo o que é ela ordem do desejo

c a submissão do sujeito aos imperativos ele sua vontade se deslocam

também para seus relacionamentos: domínio e desafio acabam se

exercendo do lado tanto da anoréxica quanto ele seu entorno.

A magreza se faz acompanhar de uma fobia elas formas cio corpo.

Com a anorexia, na recusa da d iferença sexual, os caractercs sexuais

sccundários , marcas simbólicas ele corpo feminino, desaparecem.

A arnenorréia ocupa lugar central. Em muitos casos, ela precede a

anorcxia. É de hábito é o último sintoma adesaparecer (Fries 1977).

O distúrbio anoréxico não forma uma estrutura psíquica em si.

É mais o resultado de um impasse , uma defesa contra um sofri-

mento. Encontramos assim, de modo subjacente à anorexia, as gran-

des estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Muitas vezes,

na evolução do tratamento de anoréxicos, a estrutura psíquica sub-

jacente aparece de maneira evidente, levando a um prognóstico

diferente, conforme se trate do registro neurótico ou psicótico.

Clínica

Definimos a anorcxia a partir da anorexia precoce como uma tentativa

de assun~:ão subjetiva concomitante a um impassc dessa assunção.

Isso nos faz considc,-ar a anorc x ia não se ) uma patologia ardilosa

em seu processo, como também Lima tentativa de salvação, de uma

desesperada instaura\:ão subjetiva. Temos de ver a anorcxia comopaltcrtl da patologia e t;:lInl><':111orno UIlI processo tcrapêutico. Lase-

['"IIC o intuiu no Iim do stculo XIX ao definir as anorcxicas como mé-.. .' ,

dicas de si mesmas. Na íaltn de algo melhor, elas se tratam (ao mes-

mo tempo em (IUC caem em sua própria armadilha) pela anorexia.

Isso não imJlede (IUC a anol-l,xica se organize pn)grcssi vamcrite

em torno de seu impassc, «orno se sua pc,·sonalidade se crisializassr,

em torno do distúrbio alimentar.

Termina-se passando da ordem do sintoma, com seu aspecto

conflituoso, seu valor linguagciro, seu sentido vivo, para um com-

portarnonn, congelado, do qual o sujeito goza cerradamente. A ano-

róxica acaba caindo na arrnadüha do gozo de seu distúrbio, orgas-

mo ela fome para Kestembc:rg (Kcstemberg et al . 1972), toxicoma-

nia sem tóxico para Fénichcl, uma toxicomania do nada. Mais, mais

ainda, sempre mais, nada, como testemunha uma paciente que, à

sua maneira, andava com uma fórmula paradoxal inscrita em sua

camiseta: "Nunca tenho o bastante!"

192Clínica da origem: a criança entre a medicina c a psicanálise 193recusa anoréxica

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 5/8

Por vezes, surge também um distúrbio depressivo de aspecto me-

lancólico, contra o qual o sujeito parece ter tentado desesperada-

mente se defender por intermédio do sentimento ilusório de eficácia

que o controle al imentar lhe dá.

Um fato epidemiológico testemunha desse aspecto defensivo.

Podemos observar muitas vezes que, no momento em que (] com-

portamento anoréxico é abandonado, surge o risco suicida, a s vezesconcomitantemente a tendência bulímica. Um estudo catamnésico

indica que existe 7% das mortes decorrentes de anorexia, a metade

delas por suicídio, ocorrem após o tratamento, em uma fase em

que a anorexia não é mais sintomática (jcammct 1991: 381-444).

COITIO se o aspecto defensivo do comportamento anoréxico tivesse

cessado seu papel protetor em relação ao drama que habita o sujeito.

ciente, os primeiros dados coletados por ele se referem a uma ina-

petência, "distúrbio no qual , após outras observações, tenderia a

ver, mas com reserva, o resultado de um processo surgido na área

sexual". E acrescenta: "Fui levado a considerar como a primeira

organização sexual manifesta o que chamamos fase canibalística ou

oral, fase em que a excitação sexual se apóia no inst into de nutrição

ainda dominante". E, assim, é levado a interpretar a um só tempoos sintomas anoréxicos de seu paciente e o medo de ser devorado

pelos lobos: "Fomos obrigados a traduzir esse medo desta maneira:

o medo de servir ao coito paterno".

Em seguida, Freud pontua, de maneira mais geral, os indícios

dos objetivos eróticos da organização oral no auge do paroxismo

amOI"OSO,seja nas preliminares sexuais, seja nas frases próprias ao

discurso amoroso ("Eu poderia te comer"; falar cio objeto de amor

como "apetitoso"; dizer da amada que ela é "doce", vestígios da

fase oral que pel"maneCem na linguagem corrente).

A anoréxica a um só tempo sabe e recusa isso, transformando-

() em uma neurose sexual, construída sobre uma relação traumática

com a sexualidade. Isso nos leva novamente ao debate sobre histeria

e anorexia, mesmo se, como anrmanlos, a anorexia é certamente

um comportamento trans-cstrutural.

A recusa da sexualidade

Falar de anorcxia na puberdade nos obriga a passal" pela questão da

sexualidade.Para a anorcxía que sUI"ge na puberdade, traIa-se não somente

de lima rr-cuxa de alimento, mas também de urna recusa da femini-

dade. Na anorcxia, () corpo, luga," da diferença sexual, IlIga." de

expressão de desejo, torna-se objeto de uma tentativa de controle

(' de anuiaçâo , em lima bus.:a de submissão tolal ao poder da vem-

tadc. Fohia do pl"aZCr, impossibilidade do desejo, horror da sexuali-

dade, ch(~gando ao ódio de si, esse distúrbio, como afirma r;reud a

propósito dos distúrbios alimentares do Homem dos Lobos, é tarn-

b l:11 l "uma neurose Cjueexprime a recusa da sexualiclade" (1928: 407).

E interessante constatar que esse exemplo extraído da clínica

freudiana conccrnc a um homem, levantando a Clucstão da preva-

lência feminina na anorcxia: a escolha do distúrbio alimentar no

destino da sexualidade masculina ou feminina se mantém uma ques-

tão em aberto. Frcud, referindo-se ao Homem dos Lobos, correia-

ciona a anorexia de seu paciente com a sexualidade infant il . Quando

procura traçar "o quadro sintético da evolução sexual" de seu pa-

A questâo dos cuidados

A relação anorexia-histeria é uma hipótese a ser levada em consi-

dcração a fim de compreendermos a difícil relação da anoréxica

com os que se ocupam dela. A anoréxica , como a histérica, faz

Fracassar aquele que quer algo dela. Se estamos do lado daquele

que quer seu bem, daquele de quem ela sabe o que quer dela, se

queremos que ela, a qualquer preço, coma alguma coisa, alimento

ou sentido , se diante dela queremos encarnar a posição do mestre,

pois bem, ela nos fará fracassaL

Esse poder bastante conhecido que a anorexica tem de fazer com

que o OUITO fracasse vai ao encontro da posição histérica no que ela

194 195Clínica da origem: a criança entre a rrrcdicma c a psicanálise A recusa anorúxica

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 6/8

tem de m;}Ísradical: procurar um mestre para demonstrar sua im-

potêllcia. O confronto com aanoréxica pode levar a reações negativas

semelhantes àquelas suscitadas pela histérica. A anoréxica, indomável

(Raill1Vault,Eliachef 1989), insiste asemanter à margem daexistência.

Nesse sentido, a anoréxica representa uma posição típica da

histetia moderna em relação ao discurso damedicina. Efetivamente,

parece insúportável para a medicina a existência de sujeitos como aanoréxica que não querem que outros queiram seu bem.

A anoréxica diz para a equipe médica: vocês são impotentes, não

cntclldem nada do meu problema. Isso deve ser reconhecido, embora

seja 0xata[11ente isso o que existe de mais difícil para quem cuida

dcla, seja ele quem for. Trata-se de uma inversão em relação à posição

médica habitual, que induz a todos os tipos de resistência, em um

excesso corlf1ituoSoque pode chegar à rejeição. Ou então é o fascínio

mortífero que atodos congela nanegaç:ãodos efeitos físicos da anore-

xia. A austncia de demanda e de desejo pode levar ao desespero

t(TapcSutico. Paradoxalmente, no entanto, essas dificuldades tera-pêuticas podem abrir caminho para que um encontro enfim aconteça.

PodemOS tomar como exemplo um fl-agmento da hi stóri a de

lima <lnon::xica que, como tantas outras, submetida à tirania (Iue

impõ(.~a si IJ1eSma,e da qual mesmo assim goza, se recusa aqualquer

I1lUdarlç:a,seja ela qual for. Ela ó mais apegada a seus distúrbios que

a seu ser. Quando os pediatras se vêem ohrigados a rcalimcntá-la

por Sonda nasogástrica em razão da perda de peso, ela imobiliza

seus rl.)elTIbrosinferiores,mantcndo-os dobrados sob seu corpo,

em pOsição Ictal. Uma fisioterapia indicacla implica as mesmas ten-

sões que a realimentação. Não há dúvidas de que estamos na re-

petição: os tratamentos podem ser impostos à anoréxíca da mesma

maneira que ela se impõe sua restrições.

Se os tr~tamentos forem apenas substitutos das opressões carac-

terísticas da anorexia, permaneceremos em um impasse, sem que

um desejo ouuma demanda qualquer entre em jogo. Essa paciente

dirá utn dia, de maneira surpreendente, que ela não queria mudar

porque não podia mudar. Por meio dessa primeira emergência de

um desejo que se funda na impotência, ela se tornará a intérprete

da impotência dos diferentes membros da equipe médica que se

ocupava dela, os mesmos que queriam que ela mudasse sem conse-

guir mudá-Ia. Não podemos mudá-Ia, ela não pode mudar. Essa

coincidência abre, de maneira imprevista, o espaço de uma possível

demanda. O que ela quer? O que se quer dela? Um conflito podesurgir também para os que dela se ocupam. É preciso, contudo,

que possam suportá-Ia. Um encontro inesperado daquele que cuida

consigo mesmo leva a um questionamento radical de suas motiva-

côes e da representação que tem de sua profissão.

Na anorexia, o sujeito tenta se salvar querendo seu próprio

mal. A fobia do prazer, a impossibilidade de acesso ao desejo, o

ódio de si, todas essas dimensões com as quais a anorcxia nos con-

fronta podem levar a equipe a um questionamento radical de suas

motivações e da representação que seus membros têm elesuas pro-

fissões. Abre-se uma falha para aquele que cuida da anoróxica: para-

doxalmente, é apartir dessa falha que ele eventualmente encontT;:u-á

o caminho para um encontro possível com a anorcxica.

Diante elaanorcxica, ternos de sair elaposição elemédico, de

psic<)logo, de enfermeiro, parar elequerer seu bem, abandonar toda

e qualquer perspectiva ele poder, renunciar ao registro potência-

impotência. Trata-se de inventar uma posição que não seja deter-

minada por essas dimensões.

Tornar a si mesmo um enigma para o outro, a fim de que a

anoréxica possa se interrogar, se perguntar o que quer dela aquele

que não quer apenas curá-Ia.

Lembro-me de uma apresentação de Serge Zlatine1 sobre seus

encontros com uma anoréxica em seu quarto de hospital. Em um

desses encontros, o analista, quase sem querer, começa amordiscar

2 Conferência pronunciada nas "Prcmicrcs Journées d'Étudc de I'École ele

la Cause Frcudienne". Paris, 1981.

(

, J.1 '. t...'rf:' 196 Clínica da origem: a criança entre a medicina c a psicanálise A recusa anoréxica

l i .·

Il i I. . I

197

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 7/8

os chocolates que ela tinha sobre sua mesinha de cabeceira. Ele es-

tava com muita vontade de comê-Ias, apesar de ... A anoréxica ficou

muito intrigada e começou a se interrogar o que, a6nal de contas,

aquele analista queria dela e q ue não se resumia a vontade de tratá-Ia.

Freud inventou a psicanálise a partir das histéricas, que, por

estrutura, questionam o saber do mestre. Elas o fazem trabalhar, o

fazem falar. Depois, fazem-no fracassar. A anoréxica faz a mesma

coisa. Diante dela, assim como diante da histérica, temos de mudar

de registro, renunciar à insistente vontade de fazê-Ia sair de seu

problema. Ter um desejo que ela não possa saber qual é, que seja

um enigma para ela. De fato, quando descobrem o que () outro

(Iucr, acabou. Temos, assim, de nos constituir sobretudo como

enigma, em vez de partir para a conquista da anoréxica ou do saber

nela contido.

Essa t: uma condição previa, prcliminm-, construçáo de urna

dClllanda posxivcl, Cjucvai alem ele sua redução à necessidade ape-

sar do risco de morte. C<lSOcontrario , podemos ficar plTSOS à mes-ma I'\gica (Iue a da ano rcxica. COIllO testemunha, algumas t-()rInas

de 1rataruc.ntn cluC chegam a reproduzir em sua concep<;ão, de ma-

neira cluase mirnctica , o próprio jll-occsso anorc:xico.

TI-ata-se ele sair de urna posição imaginária de médico impotente

ou onipotente. Para isso, ele precisa estar a pal- de seu desejo, para

alc"m d(~ suas necessidades narcisicax. t a partir ela experiência da

impossibilidade (jue ele poderá, eventualmente, achar o caminho

para cncorru-ar- a ano rcx ica . Nessa clínica , trata-se de passa I· do

necessár-io ao contingente, do quadro rcpctitivo da anorcxia ao par-

ticular; mesmo (ILle o quadro clínico seja repetitivo , entramos e

salmos dele a cada vez de um modo particular. Essa saída implica

um efeito de surpresa.

O fenômeno anoréxico é um comportamento. Resta reconstruir

o sintoma que está na base de seu processo. O sujeito não abre a

boca para falar nem para comer (Menard 1995). Para que um com-

portamento se transforme em sintoma, um sintoma analítico ClIor-

tiori , é preciso que ele se enderece a um Outro que possa extrair o

particular do quadro universal e repetitivo da anorexia: em suma,

passar de uma clínica médica- à qual a anoréxica, amiúde, nos

obriga .. ··para uma clínica do sujeito. Só podemos nos orientar a

partir do que o sujeito diz. É muito difícil ter acesso a esse ponto

de enunciação enquanto o sujeito está completamente preso nesse

comportamento. Um trabalho preliminar, que às vezes necessita

uma hospitalização, uma separação. Não sabemos ainda se é possível

abrir mão desse trabalho inicial.

Em defesa de uma saída

O sujeito, seja qual for sua estrutura, termina caindo na armadilha

extraordinariamente repetitiva em que se pode entrar ele várias

maneiras. Vale o mesmo para a saída.

Tendo saldo da armadilha anoréxica, encontramos as coorde-

nadas específicas elaestrutura própria ao sujeito. A respeito da anore-

xia, podemos falar ele uma generalidade da armadilha, mas não da

histori» por meio da qu al se a deixa.

O trabalho preliminar no tratamento da anorcxia deve visar à

saída do un i verso anoréxico ; tocar no único, restitui 1- o sujeito como

exceção. É esse, aliás, o momento interessante, sempre renovado,

do encontro corri a anorcxica.

Pai-a terminar com um ponto de suspensão, farei referência a

um mito. Penso na figura de Baub ó (Freuel 1916: 131 -3) . Baubó

acolhe Derncter chorando inconsolavclrncnte a perda de sua filha

Pcrséfonc, Demétcr se recusa a comer. Deixa de se alimentar e de

ingerir de[iquiclos,

Baubó salvar Demétcr fazendo-a rir, levantando

sua saia para mostrar sua barriga, lembrando seu poder infinito ele

ter filhos.

Em escavações feitas em Pircne , na Ásia Menor, foram encon-

tradas figuras ele terracota representando Baubó como divindade

com corpo de mulher, sem cabeça nem peito e com seu vestido

levantado mostrando um rosto em suabarriga. Esse rosto, emoldurado

198 Clínica da origem: a criança entre a medicina c a psicanálise A recusa anoréxica 199

~

' I '1lil i"! I

5/16/2018 A Recusa Anor xica - Fran ois Ansermet - TEXTO PARA SER LIDO PARA A AULA DO DIA 24-09-2011 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-recusa-anorexica-francois-ansermet-texto-para-ser-lido-para-a-aula-do-dia-24-09-2011 8/8

por uma coroa de cabelos, personifica o sexo feminino. Poderia

ser um avatar da Medusa. Mas há uma oposição entre Medusa e

Baubó. Medusa inspira pavor epetrifica, como aanoréxica, ao passo

que Baubó, ao suscitar o riso, liberta; Baubó retira Deméter de sua

anorexia, exibindo seu ventre e esse rosto sob seu vestido que faz

rir, reanimando o sujeito, salvando-o, lembrando-lhe que reside

ali a fonte da vida.

Paranão concluir

Sorrir para os anjos

Retornemos à criança que acaba de nascer. Ela confronta aqueles

que a conceberam ou a recebem com uma dimensão inabordávcl ,

com algo de impensável, irreprcsentávcl , que, para alguns, chega a

ter um efeito traumático. Notem, contudo, que, desde muito cedo,

a criança sorri. Um encontro se dá. Uma história começa. Para

quem ela sorri? Dizem que ela primeiro sorri para os anjos. Isso

quer dizer que ela não sorri somente para quem está diante dela?

O (Iue, então, a faz sorrir? Ela sorri para seu destino ou, ao contrá-

rio, para a possibilidade de escapar dele? Sorrir para os anjos; gos-

taria de fazer desse suposto instante de desapego o paradigma de

uma liberdade possível ou, ao menos, o signo de um enigma quanto

ao vir a ser da criança.

o enigma do sorriso

Frcud falado sorriso como um enigma. Ao menos, é essaamaneira

pela qual aborda o sorriso de Gioeonda. Ele descreve o enigma do

sorriso da Mona Lisa,que não cessade interrogar aqueles cluea con-

tcmplam > esse sorriso imóvel sobre lábios estirados, com as co-

missuras pal-acima, "um sorriso estranho, enfeitiçante e enigmático"

(FreucI19IOc: 132). Ninguém ainda foi capaz de decifrá-lo.Leonardo Da Vinci, em seu tratado sobre a pintura, lembra o

objetivo do retrato: "Todos os sentidos, ao mesmo tempo que o

olho, gostariam de possuí-Ia, e parecem querer rivalizar com ele.

Aboca parece querer incorporá-Ia pela mastigação" (a pu d Lombardí

1993: 125). Essa precisão sobre o prazer da boca, nas palavras de

200Clínica da origenl: a criança entre a medicina e a psicanálise

201

IIil

li :: 1

11