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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Economia A RELAÇÃO SOCIAL DE CAPITAL NO PENSAMENTO DE KARL MARX. Pablo Bielschowsky Dissertação submetida ao instituto de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em economia. Orientador: Prof. Aloísio Teixeira Julho de 2006

A RELAÇÃO SOCIAL DE CAPITAL NO PENSAMENTO DE KARL MARX. · atividades – suas relações com os outros seres humanos e com a natureza – ... A partir de fins do século XVIII,

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Economia

A RELAÇÃO SOCIAL DE CAPITAL NO

PENSAMENTO DE KARL MARX.

Pablo Bielschowsky

Dissertação submetida ao

instituto de economia da

Universidade Federal do Rio

de Janeiro como parte dos

requisitos necessários à

obtenção do título de mestre

em economia.

Orientador: Prof. Aloísio Teixeira

Julho de 2006

2

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Economia

A RELAÇÃO SOCIAL DE CAPITAL NO

PENSAMENTO DE KARL MARX.

Pablo Bielschowsky

Dissertação submetida ao corpo

docente do instituto de economia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro

e professor convidado, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do

título de mestre em economia. Banca

examinadora:

________________________

Aloísio Teixeira

________________________

Carlos Nelson Coutinho

________________________

José Ricardo Tauile

Julho de 2006

3

Resumo

A presente dissertação busca analisar as condições objetivas que as

relações de produção capitalista impõe sobre a sociabilidade humana nas

sociedades capitalistas industriais, segundo o pensamento de Karl Marx.

Parte-se da analise da forma social do processo de produção em uma

sociedade composta por produtores-privados de mercadorias. Em seguida,

são analisadas as condições para o estabelecimento da produção

capitalista. Posteriormente é realizada a analise da forma social do processo

de produção em uma sociedade capitalista industrial.

4

ABSTRACT

The purpose of this test is to analyze the objective conditions that the

capitalist production relations impose over the human sociability in the

industrial capitalist societies, according to the analyses of Karl Marx. It departs

from the analyses of the social form of production process in a society

composed by private producers-owners of goods. In the sequence we will

analyze the condition for establish of capitalist production. Next we will

analyze the social form of production process in an industrial capitalist

society.

5

Agradecimentos:

Agradeço a minha família; aos meus amigos da Pereira da Silva; aos meus

amigos do Lema, especialmente ao Castelo, Fred e Lucas; a Ana Elisabeth,

Ana Lúcia, Haroldo e Raquel; a Beatriz, Ceci, Nivalde, Paulo Passarinho,

Rubens e Stephen; e em especial ao Tauile e ao Aloísio.

6

Dedico esta dissertação ao Gabriel e à Samita.

7

INTRODUÇÃO .......................................................................................... 8

CAPÍTULO1 – MERCADORIA E DINHEIRO............................................ 28

CAPÍTULO 2 - CAPITAL E TRABALHO ASSALARIADO. ........................ 40

2.1 – SUBSUNÇÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL. ............. 45

2.2 - SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL..................... 49

2.3 – REPRODUÇÃO DO CAPITAL..................................................... 54

CONCLUSÃO ......................................................................................... 61

BIBLIOGRAFIA......................................................................................... 70

8

INTRODUÇÃO

Em todas as formas de sociedade, o ser humano desenvolve suas

atividades – suas relações com os outros seres humanos e com a natureza –

dentro de certas condições sociais e naturais alheias a sua vontade. Em uma

dada formação social, porém, a industrialização, ao retirar os trabalhadores

do campo, onde produziam sua subsistência, e integrá-los no mercado

como trabalhadores livres, que vendem sua força de trabalho e compram

meios de subsistência, modifica radicalmente as condições nas quais a

maioria dos seres humanos estabelece suas relações com os outros homens

e com a natureza, e, portanto, as próprias condições da existência humana.

Os processos históricos pelos quais os países ou regiões se industrializam

divergem, não sendo nem mesmo inevitável que um país se industrialize. O

objetivo desta dissertação é saber, uma vez estabelecida a industrialização,

se existe um conjunto de condições sociais nas quais os seres humanos

desenvolvem suas atividades que seja comum a todos os paises capitalistas

industriais. E, caso exista, busca-se saber se estas condições permitem que se

desenvolvam novas formas de sociabilidade nas quais os seres humanos

possam ser senhores de suas relações com os outros seres humanos e a

natureza, e não dominados por estas relações.

Responder a estas questões significa romper com especificidade da

ideologia liberal-burguesa: a defesa da autonomia do individuo burguês,

supostamente livre por natureza para determinar a causa final de sua ação,

cuja vontade comum se realiza em uma suposta causa final da sociedade

burguesa. Ao eternizar a sociedade burguesa que buscavam consolidar,

9

apresentando-a como realização da natureza humana, os filósofos

iluministas e a economia política clássica não compreenderam que na

sociedade burguesa, a causa final da ação dos indivíduos é parte das

causas eficientes que regem a sociedade, de modo que o resultado da

ação coletiva dos indivíduos não é finalidade subjetiva que os impulsiona, e

a finalidade subjetiva que os impulsiona não é expressão da liberdade ao

desenvolvimento da natureza humana. Por isso, os filósofos iluministas

também não compreenderam que as condições materiais e sociais que se

impõem sobre as relações de produção são produzidas pela própria

atividade do ser humano, abrindo-se a possibilidade de uma causa final livre

por parte dos seres humanos, a possibilidade de que o processo de

produção seja “obra de homens livremente associados, submetida a seu

controle consciente e planejado”1.

A partir de fins do século XVIII, alguns pensadores ligados às classes

trabalhadoras e camadas médias urbanas começam a defender a abolição

da propriedade privada capitalista dos meios de produção. De um lado,

como movimento político, surge a partir da fusão da tradição Babovista

presente nas sociedades Blanquistas com os métodos de luta do Cartismo2.

Por outro lado, enquanto visão crítica da realidade, o socialismo surge nos

anos de 1830 como designação de um conjunto de intelectuais 1 (MARX, 1975 [1867]: 88). 2 “a história sem solução de continuidade do comunismo, enquanto movimento social moderno, tem inicio com a corrente de esquerda da Revolução Francesa. Uma direta linha descendente liga a conspiração dos iguais de Babeuf, através de Felipe Buonarotti, às associações revolucionárias de Blanqui dos anos 30; e essas, por sua vez, se ligam – através da liga dos justos, formada pelos exilados Alemães inspirados por eles – e que depois se tornará a liga dos comunistas, - a Marx e Engels, que redigiram sob encomenda da liga o manifesto do partido comunista (...) O comunismo que, nos anos 30, nasceu da tradição babovista francesa, essencialmente política e revolucionária, fundiu-se com as novas experiências do proletariado na sociedade capitalista nos inícios da revolução industrial. Foi isso que fez dele um movimento proletário, embora pequeno.” (Hobsbawn, 1983: 40/41).

10

descendente direto do iluminismo, que no entanto destacava a contradição

entre o programa individualista-liberal e os ideais da razão nos quais este

programa se justificava 3.

Marx foi o pensador a fornecer a análise mais profunda das

determinações sociais que se impõem sobre o ser humano na sociedade

capitalista industrial, tal como se consolidava na Europa na segunda metade

do Século XIX. A partir de seu método sociológico profundamente marcado

pela influencia da filosofia clássica alemã, expresso por sua teoria do

fetichismo na qual concebe o ser humano como social e historicamente

determinado, Marx supera a tradição naturalista do liberalismo burguês ao

realizar a ‘critica da econômica política’, recolocando a questão central do

pensamento socialista – a abolição da propriedade privada – sob uma base

objetiva, cientifica; com isso, forneceu ao movimento comunista uma base

teórica que aponta para a possibilidade real de superação do capitalismo.

Por este motivo o presente trabalho tomará como referência a obra de

Marx, tal como ele a expôs em sua obra máxima – O Capital, Critica da

Economia Política.

3 Devemos destacar três pensadores conhecidos como socialistas utópicos: Owen, que a partir da análise do capitalismo fundamentada na economia política, concluía que a industria moderna é incompatível com a propriedade-privada; Saint-Simon, criticava o individualismo baseado na anarquia do mercado, destacando suas conseqüências nefastas sobre o bem-estar dos trabalhadores; e Fourrier, que partindo de uma concepção individualista-libertária, destacava o trabalho como realização da essência humana. No entanto, estes autores, seguindo a tradição iluminista, não levavam em conta as condições objetivas da luta de classes como ‘motor’ das transformações sociais, fundamentando suas propostas de modo apolítico –como propostas destinadas ao bm de todos - na razão. Devemos destacar também o pensamento de Proudhon, que, embora de modo pouco rigoroso, analisava a propriedade privada capitalista, realizando uma ‘critica da economia política’; no entanto, o fazia segundo a perspectiva da pequena burguesia que desejava conservar a pequena propriedade que considera natural.

11

Faz-se portanto necessário destacar na introdução desta dissertação,

ainda que de modo muito breve, alguns aspectos da relação entre o

método de Marx e o método da economia política clássica.

Marx, em sua teoria do fetichismo da mercadoria, mostra-nos que

devemos distinguir as características sociais do processo de produção (as

relações de produção), das características materiais do processo de

produção (as forças produtivas). Estas duas determinações necessárias do

processo de produção, embora intimamente relacionadas (pois um

determinado conjunto de relações de produção pressupõem determinado

grau de desenvolvimento das forças produtivas), são distintas.

Para Marx, nas sociedades em que o processo material de produção é

organizado previamente pela sociedade, as relações sociais de produção

entre pessoas estabelecem-se imediatamente no processo de trabalho

concreto. Por outro lado, nas sociedades em que o processo material de

produção é realizado por produtores privados independentes, porém

interdependentes como elementos da divisão social do trabalho cujo

produto destina-se à sociedade, as relações sociais de produção entre os

produtores-proprietários privados estabelecem-se apenas por meio da troca

do produto do trabalho como mercadoria; deste modo as coisas adquirem

uma forma-social por meio da qual se expressam e se realizam as relações

de produção. Por sua vez, as formas sociais das coisas passam a determinar

as relações de produção entre os indivíduos, que só se relacionam como

proprietários de mercadorias e têm na mercadoria a motivação do processo

de produção.

12

Para Marx, o objeto da economia política clássica é, em ultima

instancia, as relações sociais de produção em uma sociedade mercantil-

capitalista. Estas relações, no entanto, só se realizam e se expressam na

troca. Segue-se que o objeto da econômica política é a conexão entre as

relações sociais de produção e sua expressão material, em uma sociedade

mercantil-capitalista. Por outro lado, como nos mostra Teixeira, a gestação

da economia política, enquanto estudo das relações de produção

burguesas, decorre da necessidade de explicar os fenômenos econômicos

para fundamentar as recomendações de políticas públicas4. Finalmente, no

período de gestação da economia política, o cercamento dos campos

resultou na emigração de grandes massas de população para as cidades,

colocando um grande desafio para os estados nacionais; a acumulação de

capital, na medida em que resultava no crescimento da ocupação em

atividades mercantis (e assim na generalização das relações de produção

burguesas), foi o objetivo principal das políticas públicas; por isso, explicar a

acumulação do capital era o principal problema dos primeiros pensadores a

tratar das relações de produção burguesas. Após estas considerações,

vejamos agora em linhas gerais, o processo de gestação da economia

política.

4 Segundo Teixeira: Os processos “da formação dos estados nacionais e da generalização das relações mercantis. (...) colocaram, de forma renovada, o problema da gestão das políticas públicas” [atraindo o interesse por um numero crescente de pensadores nos séculos XVII e XVIII, cujo objetivo era] “a discussão e a formulação de políticas concretas (...). As teorias foram uma conseqüência do desenvolvimento de suas formulações: a teoria quantitativa da moeda, as teorias das vantagens de comércio, a (ou as) teoria(s) do valor e tantas outras surgiram como uma necessidade de dar uma base mais rigorosa às medidas de política que estavam sendo propostas, relacionadas à gestão de moeda, à liberdade de comércio, à prática da tributação, à formação dos preços etc. Tais autores estavam criando o fundamento de uma nova ciência, que só vem a ganhar o status de um ramo autônomo do conhecimento com Adam Smith.” (Teixeira, 1999: 10/11)

13

Dado o caráter marginal da manufatura na produção mercantil na

Inglaterra e França até meados do século XVIII, os ‘primeiros intérpretes do

capitalismo’, os mercantilistas, destacavam apenas o capital comercial e

usurário como meios de produzir lucros e, através da capitalização destes,

aumentar a ocupação de mão de obra. Vemos assim que os mercantilistas

analisavam a sociedade burguesa com o objetivo de compreender os meios

de elevar a taxa de lucro e assim acelerar acumulação do capital

comercial; no entanto, atendo-se às aparências na circulação nesta análise,

consideravam que o valor é apenas o valor-de-troca (o preço é

determinado apenas pela oferta e procura), o que resultou na concepção

do lucro decorrente da circulação; ou seja, atendo-se a forma social das

coisas como determinantes do estabelecimento das relações de produção

entre os produtores, terminaram por atribuir características sociais às coisas.

Em contraposição aos primeiros mercantilistas, diversos pensadores

buscaram, a partir da análise dos fenômenos da circulação de mercadorias,

explicá-los como decorrentes de fenômenos ligados à produção de

mercadorias. Segundo Marx: “Economia política clássica é toda a economia

que desde W. Petty, investiga os nexos causais das condições burguesas de

produção”5. Em seu período de gestação, a economia política clássica, ao

analisar a produção mercantil, não a concebia como produção capitalista,

indicando apenas que o desenvolvimento da manufatura acelera a

acumulação de capital comercial; podemos por isso classificá-la como um

sistema mercantilista avançado.

5 (MARX, 1975 [1867]: 90)

14

Quesnay, em seu Tableau (1758), apresenta a primeira análise da

conexão entre o processo de circulação e o processo de reprodução do

capital; dando inicio à escola Fisiocrata. Ao analisarem a mais-valia na

agricultura, único ramo em que o excedente aparece em sua dimensão

material, os Fisiocratas reduzem a mais-valia diretamente a seu conteúdo

material, ao excedente físico do produto sobre seus custos de produção,

criando assim o conceito de excedente produzido na esfera da produção, o

qual denominam ‘produto líquido’. Por outro lado, reduzem o capital e seus

elementos a seu conteúdo material de custo em cereal consumido na

produção (em meios de produção e meios de consumo dos trabalhadores

produtivos) que resultam na criação de excedente; criando assim o conceito

de capital-produtivo, o qual denominam ‘adiantamento’. Finalmente, os

Fisiocratas identificavam o valor do trabalho com o valor que o trabalho

produz (medidos em cereal); por isso, consideravam a terra (não o trabalho)

a origem do excedente, e afirmavam que só o capital e trabalho

empregados na agricultura produzem excedente.

Vemos assim que, em virtude da necessidade de compreender a

sociedade burguesa para formular recomendações de política econômica6,

os Fisiocratas, partindo dos fenômenos ligados à circulação, das formas

sociais complexas das coisas (mais-valia, capital), as quais consideravam

dadas, buscavam explicá-las como conseqüência de fenômenos ligados à

6 A partir da conclusão teórica de que a produção agrícola é a origem do excedente, os Fisiocratas defendiam que uma ampla renda da terra deve ser estimulada; formulando diversas recomendações de política pública para esse fim. No entanto, estas recomendações (a extensão total do capitalismo na agricultura, o laissez faire e a tributação exclusivamente sobre os proprietários de terra), em verdade, eliminavam o domínio da nobreza proprietária sobre a sociedade. A capa feudal com que cobre as categorias burguesas evidencia as contradições entre a nobreza e a burguesia que o programa Fisiocrata buscavam resolver, e que só foram resolvidas pela Revolução Francesa.

15

produção de mercadorias, obtendo assim o conteúdo técnico-material

destas formas sociais (excedente, custo), os quais identificavam de modo

imediato com as formas das coisas na circulação; deste modo, terminavam

por naturalizar os fenômenos ligados à produção, eternizando a produção

burguesa.

Para os mercantilistas, como vimos, o valor é apenas valor-de-troca, o

que resulta na concepção do lucro como decorrente da circulação.

Segundo os Fisiocratas, os trabalhadores agrícolas produzem sua subsistência

e o excedente, sua subsistência (os adiantamentos de capital ou custos) no

entanto é composta por produtos agrícolas e manufaturados. Como, para

determinar quantitativamente o excedente, torna-se necessário

homogeneizar os insumos (custos) e o produto, os fisiocratas reduzem a

produção manufaturada à cereal, aceitando os preços de mercado. Deste

modo, embora coloquem o excedente como origem da mais-valia, adotam

o procedimento de supor que, na troca entre agricultura e manufatura, os

valores são apenas os preços. Coloca-se então a questão: o que determina

estes preços que permitem a determinação do excedente? Vemos assim

que os Fisiocratas não apenas buscaram explicação para formas sociais

complexas das coisas (mais-valia, capital) em seu conteúdo técnico

(produto excedente, custo em cereal), como também perceberam que,

para atingir seu objetivo, era necessário reduzir analiticamente as formas

complexas às formas sociais simples das coisas (preços); no entanto, não

buscaram uma explicação para estas formas sociais simples, o que equivale

a renunciar à busca de uma explicação teórica do excedente.

16

Nas Conferencias de Glasgow (1763), quando apresenta a primeira

versão de sua mão invisível, Smith analisa uma sociedade de produtores

independentes de mercadorias em que não existe o capital. Após entrar em

contacto com os Fisiocratas, Smith passa a analisar a produção capitalista

em A Riqueza das nações (1776). Nesta obra, Smith buscava uma teoria que

explicasse a origem do excedente - e portanto a possibilidade de

acumulação - servindo deste modo para fundamentar recomendações

práticas de política econômica que dinamizassem a acumulação de

capital7.

Quando se propõe a analisar as causas que afetam a distribuição do

produto entre as três classes (capitalista, trabalhadora e proprietária de

terras), Smith parte do problema deixado pela teoria fisiocrata: a

necessidade de desenvolver uma teoria do valor que explicasse a

determinação dos preços, tornando homogêneos insumos (custos) e

produtos, e permitisse explicar a origem do excedente no contexto de uma

teoria da distribuição. Uma vez que reduz o valor de todos os insumos a

salário, ignorando o capital constante, o trabalho útil aparece como único

insumo da produção, logo, o salário-mercadoria aparece como único custo

de toda produção. Por isso, Smith considera o trabalho comandado por uma

mercadoria como a medida do valor desta mercadoria, servindo de

7 Para Smith, a liberdade de comercio e a acumulação de capital, ao permitirem o aprofundamento da divisão do trabalho e aumento da ocupação da mão de obra, resultam no aumento do nível de produção, aumentando a renda para o ‘povo’ e para o estado. Segundo Hunt: “Smith concluiu que as intervenções, as regulamentações, as concessões de monopólio e os subsídios especiais do governo – tudo isso tendia a alocar mal o capital e a diminuir sua contribuição para o bem estar econômico. Além do mais, estes atos do governo tendiam a restringir os mercados, reduzindo, assim, a taxa de acumulação de capital e diminuindo o grau de divisão do trabalho e, com isso, o nível de produção social.” (Hunt, 1981: 81)

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instrumento para homogeneizar insumos-mercadoria (custo) e o produto-

mercadoria e assim para determinar o excedente.

Coloca-se então a questão: o que determina a quantidade de

trabalho físico comandada por uma dada quantidade de mercadoria? Para

Smith, em uma sociedade mercantil simples o trabalho contido nas

mercadorias determina o trabalho comandado pelas mercadorias. No

entanto, ao tratar da sociedade capitalista, Smith considera que os

capitalistas apenas adiantam os meios de subsistência aos trabalhadores

(economia de crédito) e que os trabalhadores assalariados apenas trocam

seu trabalho de modo direto por dinheiro, o que leva Smith a concluir que a

troca entre capital e trabalho viola a lei do valor: o trabalho contido em uma

mercadoria torna-se diferente do trabalho vivo comandado por esta

mercadoria; o trabalho contido em uma mercadoria permite que esta

mercadoria comande uma quantidade maior de trabalho na produção.

Deste modo, a troca entre capital e trabalho (entre o produto social e o

trabalho comandado pelo produto social), por violar a lei do valor, permite a

produção do excedente e assim o crescimento da ocupação de mão-de-

obra, quando o excedente é acumulado; por isso, mesmo violando sua

própria teoria do valor, Smith atém-se à categoria de trabalho comandado

como medida do valor e, mais especificamente, como medida do valor

excedente que possibilita o aumento da ocupação.

Smith percebe então que, quando a composição orgânica do capital

é diferente nos distintos ramos de produção, as mercadorias produzidas pelo

trabalho não se trocam na mesma proporção que o trabalho nelas contido,

18

o que o leva a abandonar a teoria do valor que buscava no processo de

produção a explicação dos fenômenos da circulação. Ao considerar que os

meios de produção são por natureza capital, e que o trabalho é por

natureza trabalho assalariado, Smith termina por autonomizar as partes

componentes do valor, considerando estas partes (salário, o lucro e a renda

da terra) como fonte do valor. Desenvolve assim uma segunda teoria do

valor, na qual os fenômenos da circulação passam a ser explicados por

outros fenômenos da circulação. Neste caso é necessário saber o que

determina salários, lucros e renda da terra, questão esta que Smith não

consegue solucionar. Deste modo, Smith não consegue determinar os preços

a partir de elementos que não sejam preços, e portanto não consegue

determinar quantitativamente o excedente8.

Ricardo elaborou suas teorias para justificar a necessidade de se liberar

a importação de trigo, de modo a elevar a taxa de lucro nas terras marginais

e assim elevar a taxa de lucro em todo o sistema, acelerando a

acumulação. Por isso, coloca como sua preocupação central a taxa de

lucro, enquanto variável que determina a intensidade da acumulação de

capital, definindo a economia política como a ciência que estuda a

distribuição do produto entre as classes como salário, lucro e renda da terra.

8 Como nos diz Dobb: “Uma condição essencial de uma teoria do valor é que ela deve resolver o problema da distribuição (isto é, determinar o preço da força de trabalho, do capital e da terra), bem como o problema dos valores das mercadorias, e deve fazê-lo, não somente porque o primeiro problema é parte importante e até essencial das investigações práticas com que se ocupa a Economia política, mas porque não pode ser determinado sem o outro. Em outras palavras, nem o problema da distribuição, nem o da troca de mercadorias podem ser corretamente tratados como sistemas isolados. Exprimindo-o em termos mais gerais, um principio de valor não é adequado quando coloca o valor em termos de um ou outro valor particular: as constantes determinantes devem exprimir uma relação com alguma quantidade que não seja ela mesma um valor.” (Dobb, 1978: 15).

19

No “Ensaio de 1815”, Ricardo parte da suposição que, apenas na

agricultura, a determinação da taxa de lucro se dá em termos

exclusivamente físicos, independente dos preços, pois o trigo é insumo

(subsistência do trabalhador) e produto; de modo que, por meio da

concorrência entre os capitalistas, a taxa de lucro na agricultura determina

a taxa geral de lucro. Além disto, formula sua teoria de que a queda da taxa

de lucro medida em trigo nas terras marginais, resulta na queda da taxa

geral de lucro9, reduzindo assim a acumulação de capital e a ampliação da

ocupação de mão de obra, impondo deste modo um limite natural ao

crescimento da população. Nos Princípios de Economia Política e

Tributação, Ricardo mantém as hipóteses de produtividade decrescente das

terras marginais, e de que a taxa de lucro nas terras marginais determina a

taxa geral de lucro, que, por sua vez, determina a magnitude da

acumulação. No entanto, abandona a hipótese de homogeneidade entre

insumo e produto na agricultura, adotando a teoria do valor baseada no

trabalho contido, substituindo assim o trigo como medida do valor pelo

trabalho como medida do valor10; de modo que a taxa de lucro na terra

marginal passa a ser determinada pela relação entre o trabalho total e o

trabalho necessário para a subsistência do trabalho total.

Ricardo evita a ambigüidade das teorias do valor de Smith ao

considerar que a medida do valor é o trabalho útil contido na mercadoria.

9 Para Ricardo, na medida em que se utilizam terras menos férteis ou mais distantes, a diminuição da produtividade do trabalho e conseqüente diminuição da taxa de lucro nas terras marginais resulta, através da concorrência, na diminuição da taxa de lucro nas terras inframarginais e surgimento da renda da terra nestas terras, o que por sua vez resulta na redução da taxa de lucro em toda a economia. 10 Segundo Sraffa: “Em substituição aos cereais, o trabalho aparece agora em ambos os lados da conta, segundo termos contábeis modernos: tanto no insumo quanto no produto” (Sraffa, 1959: 25).

20

Ricardo faz porém duas ressalvas ao principio de que o trabalho contido

determina o valor, que de fato equivalem a negar sua teoria do valor. Em

primeiro lugar, em um retorno ao erro de Smith, Ricardo admite que a lei do

valor é violada no ‘valor do trabalho’. Ricardo então sugere que o ‘valor do

trabalho’ é determinado pelo valor de uma dada quantidade de meios de

subsistência do trabalhador, e assim pelo tempo de trabalho útil contido

nestes meios de subsistência11. Deste modo, o lucro, enquanto diferença

entre a produção e o consumo necessário para a produção, é um resíduo.

Assim Ricardo torna sua teoria dos salários consistente com sua teoria do

valor. Em segundo lugar, Ricardo admite que, quando os diversos ramos de

produção empregam proporções distintas de capital fixo e capital

circulante, as mercadorias não se trocam na mesma proporção que o

trabalho nelas contido. O que leva Ricardo a afirmar que o trabalho contido

não é o único determinante do valor das mercadorias, negando assim a

validade da lei do valor12.

11 O problema do valor do trabalho acompanhou todo o surgimento da economia política. Os mercantilistas reduzem o ‘valor do trabalho’ ao preço do trabalho. Petty reduz o ‘valor do trabalho’ ao preço da cesta de bens de subsistência. Os Fisiocratas consideram como valor do trabalho o mínimo de subsistência enquanto quantidade de trigo; sendo seguidos por Smith e Ricardo, que afirmam porém que esta quantidade mínima de valores de uso equivale a uma quantidade de trabalho que produz uma quantidade maior de valores de uso, permitindo um emprego maior de trabalho que produz uma quantidade ainda maior de valores de uso. 12 Ricardo mantém a concepção de Smith de que o valor dos meios de produção se reduz a salário, lucro e renda da terra, de modo que a diferença entre capital fixo e capital circulante diz respeito ao tempo entre o emprego do trabalho e a venda do meio de consumo em que o trabalho se materializa. Ao indicar que o tempo entre o emprego do trabalho e a venda do meio de consumo afeta o valor, Ricardo buscava explicar como se igualam as taxas de lucro dadas as diferenças na composição orgânica dos capitais. Uma vez que Ricardo considera a taxa de lucro como: trabalho total / consumo de trabalho necessário para o trabalho total; e considera o consumo de trabalho necessário para o trabalho total, o salário de subsistência (w), dado; fica assim determinada a taxa de lucro (r). Supondo-se duas mercadorias, A e B; sendo gasto na produção de A o trabalho total (La) dividido em trabalho imediato (La1) e trabalho acumulado no meios de produção (La2); e gasto na produção de B o trabalho total (Lb) dividido em trabalho imediato (Lb1) e trabalho acumulado no meios de produção (Lb2). Então os custos das duas mercadorias são:

21

Vimos que os fisiocratas naturalizavam a produção capitalista; este

procedimento se refletiu nas teorias do valor de Smith e Ricardo. Estes

constroem suas teorias a partir da necessidade de explicar o lucro e

acumulação de capital, para assim formular recomendações de política

econômica. Partem portanto de categorias complexas (lucro, capital) que

tomam como eternas, reduzindo-as analiticamente a categorias simples, os

valores-de-troca ou preços dos insumos e produtos. Ao ignorarem o capital

constante, consideram o trabalho concreto apenas como a mercadoria que

é o único insumo ou custo da produção manufaturada, por isso, utilizam o

trabalho concreto como instrumento para medida do insumo e produto;

deste modo, ao partirem do valor-de-troca para reduzi-lo analiticamente a

valor-trabalho, identificam o valor com o trabalho concreto, considerando o

valor de modo indiferente e externo ao valor-de-troca (à mercadoria).

Finalmente reconstroem as categorias complexas (lucro, capital)

identificadas com seu conteúdo material (trabalho excedente, trabalho

excedente acumulado).

Esta concepção técnico-material do trabalho que produz valor,

isolada das determinações sociais do trabalho, paralela à concepção

Va = w(1+r)La1 + w(1+r)2La2 Vb = w(1+r)Lb1 + w(1+r)2Lb2.

Conseqüentemente, para Ricardo: Va/Vb = La/Lb, se e somente se, La1/La2 = Lb1/Lb2; ou seja, o valor das duas mercadorias é determinado pelo trabalho contido, se e somente se, a estrutura temporal do trabalho contido é igual nas duas mercadorias.

Ricardo porém apresenta esta idéia sob a forma confusa de que, dada a diferença na estrutura temporal do trabalho contido nos diferentes ramos, uma variação dos salários modifica os valores relativos das mercadorias; de modo que um aumento dos salário, ao reduzir a taxa média de lucro, reduz o valor das mercadorias em que predomina o trabalho materializado nos anos anteriores em relação ao valor das mercadorias em que predomina o trabalho materializado no ano corrente; com isso, Ricardo buscava explicitar que o nível geral de preços, a massa total de valor das mercadorias, é independente das variações na distribuição, embora um aumento dos salários possa alterar os valores relativos das mercadorias segundo a composição orgânica do capital.

22

puramente social das flutuações do valor de troca, isolada do

desenvolvimento das forças produtivas, levou Smith e Ricardo a

naturalizarem a produção capitalista e por isso a negarem suas próprias

teorias do valor. Ao analisar a sociedade mercantil simples como ‘estado

primitivo e rude que precede a acumulação’, como uma forma histórica

real, Smith, através da suposição da passagem da troca direta de trabalho

para a troca de trabalho indireta por meio da troca do produto, naturaliza a

divisão do trabalho entre os produtores privados que produzem para a troca

e considera o valor como mero símbolo do trabalho. Por isso, Smith e Ricardo,

presos às aparências, quando analisavam a compra e venda da força de

trabalho, consideravam o trabalho um serviço (como trabalho útil vendido

como uma mercadoria qualquer), acentuavam o ‘pagamento do trabalho’

e dos produtos do trabalho em dinheiro (economia monetária) e supunham

que os capitalistas adiantam os meios de subsistência aos trabalhadores

(economia de crédito). Deste modo, ao ignorarem as condições nas quais a

força de trabalho torna-se mercadoria, consideram que o trabalho é por

natureza trabalho assalariado e que os meios de produção são por natureza

capital, naturalizando a produção capitalista. Daí que consideravam que o

valor do trabalho é o valor que o trabalho produz e terminavam por negar

suas próprias teorias do valor, ao perceberem que a troca entre capital e

trabalho viola a lei do valor.

Por outro lado, ao adotar uma quantidade de trabalho útil que produz

uma quantidade fixa de meios de subsistência, como medida do ‘valor do

trabalho’, Ricardo reduz a comparação entre o trabalho útil despendido na

produção e o trabalho útil consumido na produção à diferença entre a

23

quantidade material de produto e a quantidade material de meios de

subsistência. O lucro então é considerado de modo material, tornando assim

desnecessária a teoria do valor-trabalho13.

Marx parte dos problemas não resolvidos da econômica clássica:

valor, trabalho e dinheiro. Não apenas os resolve, mas sobretudo os recoloca

sob a perspectiva do caráter social (e portanto histórico) das determinações

que se impõem sobre o trabalho humano, com o que supera a economia

clássica. Vejamos como Marx opera esta superação. Vimos que o objeto da

econômica política é a expressão material das relações de produção em

uma sociedade mercantil-capitalista. A concepção de Marx acerca do

nexo entre as relações sociais de produção e a forma social das coisas

evidencia a influência de Hegel sobre seu método sociológico. Como nos diz

Rubin:

“Com respeito à questão da relação entre conteúdo e forma, Marx adotou o ponto de vista de Hegel e não o de Kant. Kant tratava a forma como algo externo ao conteúdo e como algo que adere ao conteúdo desde fora. Do ponto de vista da filosofia de Hegel, o conteúdo não é em si algo a que a forma adere desde o exterior. Ao contrario, através de seu desenvolvimento, o próprio conteúdo dá origem à forma que estava já latente no conteúdo. A forma decorre necessariamente do próprio conteúdo. Esta é uma premissa básica da metodologia de Hegel e de Marx, premissa oposta à metodologia de Kant.” (Rubin, 1980 [1928]: 132).

Deste modo, Marx nos mostra que não devemos apenas,

analiticamente, partir da formas sociais complexas das coisas e reduzi-las às

13 Belluzzo nos mostra que Smith e Ricardo não perceberam “que o desenvolvimento da forma mercadoria para a forma capital envolve necessariamente uma transformação da forma–valor que se manifesta, de imediato, na sua expressão quantitativa, o valor-de-troca. Na medida em que os produtos do trabalho são, agora, trocados como produtos do capital, interpõe-se, de fato, na determinação dos valores relativos, a existência de uma taxa média de lucro, o que implica na divergência sistemática entre valores e preços-de-produção. Ricardo, porém, ao invés de admitir esta divergência, supõe, desde o inicio, a identidade entre os valores e os preços-de-produção, e o faz de tal forma que estes acabam por absorver completamente aqueles. Os valores tornam-se supérfluos para determinar as proporções em que são trocadas as mercadorias”. (Belluzzo, 1978: 51).

24

formas sociais simples (valor de troca), para em seguida buscar a explicação

destas formas simples em seu conteúdo material (trabalho) e finalmente

reconstruir as formas complexas. Ao contrario, devemos nos questionar

porque o trabalho adquire determinada forma social reificada; ou seja,

devemos demonstrar porque a forma social do processo de produção

material imprime determinada forma social às coisas. Para tanto, na

exposição das determinações sociais da produção mercantil-capitalista,

devemos começar (posição) pela exposição das relações de produção que

são pressupostas para o estabelecimento de outras relações de produção

mas que não supõem estas outras relações de produção para se

estabelecerem; para em seguida expor como estas outras relações se

estabelecem (negação) e como imprimem novas determinações àquelas

relações de produção básicas que pressupunham (negação da negação).

Ao expormos, portanto, as relações de produção que se estabelecem

nas sociedades em que rege a produção capitalista, não podemos

começar pelas categorias que expressam as características técnico-

materiais da produção (trabalho, meios de produção...), pois estas não são

objeto imediato da Economia Política. Não devemos também começar

pelas categorias que expressam relações de produção comuns apenas à

sociedade mercantil capitalista (trabalho assalariado, salário, capital,

lucro,...), pois estas relações de produção, para poderem estabelecer-se,

supõem as relações de produção entre produtores-proprietários privados.

Uma economia mercantil é caracterizada por produtores-proprietários

privados; então, a unidade da economia social se impõe sobre a

25

fragmentação das células econômicas privadas de produção apenas por

meio da forma-mercadoria, enquanto forma social das coisas por meio da

qual se realizam e se expressam as relações de produção entre produtores-

proprietários privados. Vemos assim que a expressão material da relação

social mais básica em uma sociedade mercantil-capitalista (a relação entre

produtores-proprietários privados) é a forma-mercadoria14. Por este motivo, a

forma-mercadoria é o ponto de partida de Marx, que começa O capital

afirmando:

“A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em imensa acumulação de mercadorias, e a mercadoria isoladamente considerada é a forma elementar dessa riqueza. Por isso nossa investigação começa com a análise da mercadoria” (MARX, 1975 [1867]: 41).

Ao iniciar sua exposição tratando da mercadoria, Marx busca expor a

produção de mercadorias como forma socialmente determinada, e

portanto histórica (não-natural), da produção dos indivíduos em sociedade.

Marx inicialmente analisa a mercadoria em um modelo de sociedade

mercantil simples, enquanto modelo abstrato de uma sociedade composta

por produtores-proprietários privados. Somente em seguida, Marx analisa a

forma capital do produto do trabalho, como desdobramento necessário da

forma mercadoria em uma sociedade mercantil, quando os produtores

imediatos são separados dos meios de produção, ou seja, analisa a relação

14 Como nos diz Rosdolsky, a contradição entre a natureza particular da mercadoria como valor-de-uso e a natureza geral da mercadoria como valor-de-troca, ou seja a forma-mercadoria, “representa a forma mais geral que condensa as condições reais de existência e as tendências evolutivas da ordem social burguesa: é apenas outra expressão do fato de que, em uma sociedade de produtores privados autonomizados, o trabalho do indivíduo não é (nem pode ser) diretamente social, mas deve provar-se como tal por sua própria negação, a negação de seu caráter original. Nesse modo de produção, embora a dependência recíproca (em todos os sentidos) dos produtores se converta em um fato, mesmo assim inexiste planificação social coerente, submetendo-se tudo à cega ação das forças do mercado. ‘o movimento geral de sua ordem é sua desordem.’” (Rosdolsky, 2001: 112).

26

de produção entre capitalistas e operários como proprietários de

mercadorias. Com isso, Marx buscava expor as leis de movimento do capital

como desdobramentos necessários das leis da troca de mercadoria quando

a força de trabalho torna-se mercadoria, evidenciando assim o caráter

socialmente determinado, e portanto histórico, da produção capitalista.

Segundo Teixeira:

“Na construção de seu modelo abstrato, Marx opõe a sociedade em que rege a produção capitalista à sociedade mercantil simples. Mas, vale repisar, tanto uma como a outra são construções abstratas que lhe permitem expor o movimento de negação pelo capital das condições (abstratas) em que a lei do valor impera em sua integridade. Pois é disso que se trata: é uma propriedade do capital, quando se torna plenamente dominante, fazer com que a realidade apareça sempre invertida.” (Teixeira, 1999: 20/21)

A reconstrução teórica do processo de negação pelo valor-capital

das condições em que a lei do valor opera com integridade na troca de

mercadorias abrange dois momentos. Nesta dissertação iremos tratar

apenas do primeiro destes momentos, exposto no livro 1 de O Capital: o

desenvolvimento do fetichismo da mercadoria em fetichismo do capital e a

conseqüente transformação da lei do valor em lei da valorização; pois esta

transformação caracteriza a produção capitalista como histórica e

socialmente determinada. Não iremos tratar do segundo momento, exposta

nos livros 2 e 3 de O Capital: o desenvolvimento do fetichismo do capital até

sua forma final na concorrência intercapitalista e conseqüente

transformação do preço-médio determinado pelo valor em preço-médio

determinado pelo preço-de-produção, ou seja, as transformações que a

relação de produção entre capital e trabalho imprime sobre a relação de

produção entre os produtores privados (agora capitalistas) na troca dos

produtos; esta questão, embora seja essencial para a compreensão da

27

dinâmica da sociedade em que rege a produção capitalista (dos limites que

o capital impõe a sua própria valorização), está fora do escopo desta

dissertação.

28

CAPÍTULO1 – MERCADORIA E DINHEIRO.

Marx começa o Capitulo 1 de O Capital seguindo o método analítico

da economia política clássica. Parte do processo real de troca de

mercadorias, no qual o valor-de-troca, a relação de troca de valores-de-uso

distintos, aparece segundo uma proporção quantitativa determinada

casualmente pela concorrência no mercado. Ao afirmar que: “O valor-de-

troca se revela casual e relativo”15, Marx mostra que os mercantilistas e

Bailey16, ao considerarem que o valor é apenas o valor-de-troca da

mercadoria, atribuem características sociais às coisas.

Em seguida, Marx indica que o processo de troca de mercadorias nos

permite concluir que: “primeiro, os valores-de-troca vigentes da mesma

mercadoria expressam, todos, um significado igual; segundo: o valor-de-

troca só pode ser a maneira de expressar-se, a forma de manifestação de

uma substância que dele se pode distinguir”17. Na primeira conclusão, Marx

está explicitando que o processo real de troca do produto, o ato de troca, é

um ato social de igualação dos produtos do trabalho. Na segunda

conclusão, mostra que os diversos valores de troca das mercadorias devem

representar uma mesma substância, o valor, e, em ultima instância, trabalho;

seguindo os passos de Ricardo, Marx está refutando os mercantilistas e Bailey,

ao mostrar que as flutuações do valor-de-troca das mercadorias (os

fenômenos ligados ao processo de troca) só podem ser compreendidas

dentro do contexto da dependência do processo de troca em relação ao

15 (MARX, 1975 [1867]: 43) 16 Segundo Tolipan: “O discurso clássico vinha se esgotando desde a morte de Ricardo, mas decisivamente após a intervenção crítica de e irônica de Samuel Bailey a qual abre espaço para uma percepção subjetivista do problema central do valor” . (Tolipan, 1990: 3) 17 (MARX, 1975 [1867]: 43)

29

processo de produção de mercadorias, ou seja, como flutuações do valor-

de-troca em torno do valor.

Deste modo, dentro da perspectiva de seu método de exposição,

Marx nos mostra que o valor, embora se manifeste necessariamente no valor-

de-troca, é distinto do valor-de-troca; sendo, por isso, necessário tratar o

valor (substância e magnitude) separadamente do valor-de-troca, o que

Marx faz nos itens 1.1 e 1.2 de O Capital, para em seguida deduzir o valor-de-

troca (forma-valor) como resultado necessário do valor, o que faz no item

1.3.

Por outro lado, vimos que Smith e Ricardo reduziam analiticamente o

valor a trabalho físico imediato, o qual consideravam apenas sob o aspecto

quantitativo como medida do valor. Marx refuta estas concepções ao

mostrar que trabalho que produz riqueza abstrata é trabalho humano

abstrato. Segundo Marx:

“Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados, desvanecem-se portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem uma das outras, mas reduzem-se todas a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato.”( MARX, 1975 [1867]:44/45)

Seguindo o método analítico da economia clássica, Marx corrige Smith

e Ricardo. Partindo do valor-de-troca enquanto forma de permutabilidade

que iguala o produto, Marx concebe o trabalho criador de valor, riqueza

abstrata, como trabalho socialmente igualado por meio da igualação do

produto. Ao mostrar que a quantidade de trabalho humano abstrato, o

tempo de trabalho socialmente necessário, é a medida dos valores, Marx

30

resolve o problema do trabalho como medida imanente do valor18. Em

seguida, formula a lei do valor: “o valor de uma mercadoria esta para o valor

de qualquer outra, assim como o tempo de trabalho necessário à produção

de uma está para o tempo de trabalho necessário à produção de outra” 19.

Finalmente, afirma que o principal determinante do tempo de trabalho

socialmente necessário à produção de uma mercadoria (e portanto do

valor desta) é a produtividade do trabalho.

Smith e Ricardo, buscando uma explicação para a forma-valor (valor-

de-troca), reduzem analiticamente o dinheiro ao valor-de-troca das

mercadorias, e valor-de-troca das mercadorias à trabalho concreto. Em

seguida, partindo da naturalização da produção privada na suposição da

troca direta de trabalho, reconstroem as formas complexas através da

suposição da passagem da troca direta de trabalho para a troca de

trabalho por meio da troca direta do produto e da suposição da passagem

da troca direta do produto para a troca do produto por meio do dinheiro;

por isso vêem no valor-de-troca das mercadorias apenas o símbolo do

trabalho e vêem no dinheiro apenas o símbolo do valor-de-troca das

mercadorias; ou seja, vêem na forma-social das coisas apenas o símbolo das

18 Segundo Marx: “Um valor-de-uso ou um bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato. Como medir a grandeza de seu valor? Por meio da quantidade da substância criadora de valor nele contida, o trabalho. A quantidade de trabalho, por sua vez, mede-se pelo tempo de sua duração...” (MARX, 1975 [1867]: 45). No item que trata do fetichismo, Marx nos diz: “quanto ao valor em geral, a economia política clássica não distingue, expressamente e com plena consciência, entre o trabalho representado no valor e o mesmo trabalho representado no valor-de-uso do produto. É claro que faz, de fato, essa distinção, ao considerar o trabalho, ora qualitativamente, ora quantitativamente. Mas não lhe ocorre que a distinção puramente quantitativa dos trabalhos pressupõe sua unidade qualitativa, sua homogeneidade, sua redução, portanto, a trabalho humano abstrato.” (MARX, 1975 [1867]: 89) 19 (MARX, 1975 [1867]: 46).

31

relações de produção20, e não a realização destas. Em virtude de seu

método analítico: “A economia política (...) nunca se perguntou porque (...)

o trabalho é representado pelo valor do produto do trabalho”21 e porque a

forma-valor se desdobra na forma-dinheiro. Segundo Marx:

“Uma das falhas principais da economia política clássica é não ter conseguido devassar, - partindo da análise da mercadoria e, particularmente, do valor da mercadoria, - a forma do valor, a qual o torna valor-de-troca. Seus mais categorizados representantes como Smith e Ricardo tratam com absoluta indiferença a forma do valor ou consideram-na mesmo alheia à natureza da mercadoria. O motivo não decorre apenas de a análise da magnitude do valor absorver totalmente sua atenção. Há uma razão mais profunda. A forma do valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, mais universal do modo de produção burguês, que, através dela, fica caracterizado como uma espécie particular de produção social, de acordo com sua natureza histórica. A quem considere esse modo de produção a eterna forma natural da produção social, escapará, necessariamente, o que é específico da forma do valor e, em conseqüência, da forma mercadoria e dos seus desenvolvimentos posteriores, a forma dinheiro, a forma capital etc.” (MARX, 1975 [1867]: 90).

Vimos que, seguindo o método analítico da economia clássica, Marx

partiu do valor-de-troca para reduzi-lo analiticamente a trabalho

socialmente igualado. Marx chega assim ao trabalho social. Em seguida, no

item 1.2 de O Capital, Marx começa sua exposição afirmando que: “só se

contrapõem como mercadorias, produtos de trabalho privados e

20 A parcialidade metodológica de Ricardo foi explicitada por Bailey, que acusa Ricardo de explicar os valores absolutos e basear a sociedade sobre um sistema de valores relativos, sem explicar como os valores absolutos resultam nos valores relativos. “Se os adeptos de Ricardo respondem a Bailey de modo impetuoso mas não convincente, foi apenas porque não encontraram no mestre nenhum esclarecimento sobre a íntima conexão existente entre valor e sua forma, o valor-de-troca.” (MARX, 1975 [1867]: 93). Bailey porém se refugia nas aparências, abandonando a esfera da produção, dando inicio ao movimento de análise da economia social a partir da troca (tal como faziam os mercantilistas), que, seguido pelos economistas vulgares, consolidou-se com o pensamento neo-clássico. Segundo Tauile: “A teoria econômica ortodoxa tradicional (...) não apenas dissocia as esferas da produção e da circulação, como, via de regra, opera exclusivamente no âmbito da esfera da circulação, tomando a esfera da produção, quando faz referência a ela, como um dado, como um parâmetro, utilizando-se de coeficientes técnicos dados, de funções de produção etc. A abordagem neo-clássica, que prioriza o ‘equilíbrio’, não leva em consideração nem as variáveis sociais e históricas mais amplas, nem as condicionantes inerentes ao ambiente concreto e real do processo de produção.” (Tauile, 2001: 35/36). 21 (MARX, 1975 [1867]: 89/90)

32

autônomos, independentes entre si” 22. Com essa afirmação, Marx: (i)

caracteriza a sociedade mercantil pela forma-mercadoria (troca privada)

do produto do trabalho, e (ii) mostra que a produção privada é condição

necessária para forma-mercadoria. Mais adiante, ao tratar do fetichismo,

Marx nos mostra que a produção privada resulta necessariamente na forma-

mercadoria, evidenciando que a teoria do fetichismo está na base de sua

teoria do valor exposta no item 1.2 de O Capital.

Na teoria do fetichismo vemos que, se o trabalho é previamente

distribuído entre os membros da sociedade por regulação extra-econômica,

as relações de produção se estabelecem imediatamente na produção.

Inversamente, se os produtores são livres de coerção extra-econômica e

juridicamente iguais, estes produtores relacionam-se apenas por meio da

alienação recíproca livremente consentida dos produtos como produtos

iguais, de modo que as relações de produção são reificadas (só se realizam

como troca de coisas). Correspondentemente, vemos na teoria do valor que

o trabalho, se não é realizado por produtores privados, é imediatamente

social. Inversamente, o trabalho, se é imediatamente privado, só se torna

social (só é incluído na massa total do trabalho social) por meio da troca do

produto como mercadoria; a troca, no entanto, iguala os trabalhos

concretos. Segue-se que os trabalhos privados só se transformam realmente

em trabalho social por meio da transformação do trabalho concreto em

trabalho humano abstrato na troca.

22 (MARX, 1975 [1867]: 49)

33

A teoria do fetichismo mostra que as relações de produção reificadas

determinam uma forma-social às coisas (a forma-valor abstrata e, portanto,

a forma-mercadoria) e aparecem como relações reificadas entre pessoas.

Correspondentemente, a teoria do valor mostra que o trabalho privado

resulta na forma-mercadoria e que o caráter social-abstrato do trabalho

materializado aparece ao produtor sob o aspecto da forma-valor da

mercadoria.

Finalmente, a teoria do fetichismo mostra que a forma social das

coisas, ao ser personificada23, passa a determinar as relações de produção

entre os produtores24 relacionando indiretamente todos os produtores, e

aparece como relação social entre coisas. Correspondentemente, a teoria

do valor mostra que as flutuações dos preços determinam a distribuição do

trabalho social25; de modo que o trabalho na esfera da produção, embora

seja realmente trabalho privado-concreto, é potencialmente trabalho social-

abstrato (trabalho cuja forma concreta indiferente26 para o produtor tem de

23 “A pessoas, aqui, só existem reciprocamente, na função de representantes de mercadorias e, portanto, de donos de mercadorias. No curso de nossa investigação veremos, em geral, que os papeis econômicos desempenhados pelas pessoas constituem apenas a personificação das relações econômicas que elas representam, ao se confrontarem.” (MARX, 1975 [1867]: 95). 24 A presença de coisas com forma social específica determina a realização das relações de produção na troca, e as flutuações dos valores-de-troca determinam a motivação das relações de produção (expectativas) e assim a distribuição do trabalho social, relacionando indiretamente todos os produtores. 25 Sendo a produção realizada por produtores privados (não submetidos à regulação direta), a oferta e demanda nunca se igualam ao nível em que o valor-de-troca corresponde ao valor, portanto, o equilíbrio na distribuição do trabalho entre os ramos nunca é atingido; no entanto, a não-correspondência entre valor-de-troca e valor em um ramo resulta na transferência de trabalho entre ramos, que tende a adequar a oferta de mercadoria ao nível de demanda em que o valor-de-troca corresponde ao valor (tende a restabelecer o equilíbrio), permitindo assim a reprodução da sociedade. Deste modo, o equilíbrio é um conceito teórico que nos permite explicitar que a quantidade de trabalho humano abstrato é a medida imanente dos valores, no sentido de que a variação no tempo de trabalho socialmente necessário é a causa básica da variação do valor. 26 Segundo Marx, em Para a Critica da Economia Política: “a indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos

34

satisfazer necessidades sociais), e aparece ao produtor sob o aspecto da

necessidade de que o produto seja um valor-de-uso social para ser

mercadoria.

Voltando agora ao item 1.2 de O Capital, vemos que, ao caracterizar

a sociedade mercantil pelo processo de circulação de mercadorias, e

mostrar que este decorre (é um momento) da forma social do processo de

produção, Marx, por meio da forma-mercadoria, caracteriza a sociedade

burguesa pela especificidade da forma social do processo de produção

nesta sociedade (o trabalho privado que só se torna social por meio de sua

igualação na troca), por oposição às formas sociais dos processos de

produção nas demais formas de sociedade. Deste modo, Marx nos mostra

que a forma-mercadoria estabelece a unidade da economia social a partir

de células econômicas privadas de produção; ou seja, a troca é um

momento da forma social da produção, de modo que a categoria forma-

valor abstrata está contida na categoria trabalho humano abstrato27.

Seguindo o método analítico da teoria clássica, corrigindo porém os

erros de Smith e Ricardo, obtemos o trabalho socialmente igualado como

podem passar com facilidade de um ramo a outro e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito e, portanto, é-lhes indiferente.” (MARX, 1982 [1859]: 17) 27 A categoria de forma-valor abstrata, forma de equivalência ou forma-troca ainda não concretizada em uma outra coisa determinada, está contida na categoria de trabalho humano abstrato como conteúdo do valor. Por outro lado, as formas particulares da forma-valor, enquanto concretizadas em um equivalente determinado, não estão contidas na categoria de trabalho humano abstrato. Em O Capital, esta distinção entre a forma-valor abstrata e a forma-valor concretizada em um equivalente determinado não é claramente explicitada; pois, após expor no item 1.2 o duplo caráter do trabalho, no item 1.3 Marx trata de modo muito breve a forma-valor abstrata, passando quase que diretamente para a exposição das formas concretas da forma-valor. Esta distinção evidencia-se quando Marx trata do fetichismo, a partir da forma-valor abstrata no item 1.4, e trata do fetichismo na forma-valor especifica de dinheiro, no Capítulo 2.

35

conteúdo do valor, mas não obtemos o trabalho humano abstrato28. Ao

ignorar a forma social do trabalho na sociedade mercantil, Smith supõe a

passagem da troca imediata de trabalho concreto para a troca de trabalho

concreto por meio da troca do produto, naturalizando a produção privada.

Marx porém nos mostra que o trabalho privado não pode ser imediatamente

social, evidenciando que a troca imediata de trabalho privado suposta por

Smith não é possível.

Após deduzir a forma-valor a partir da forma social da produção, no

item 1.3 de O Capital, Marx nos mostra como a forma-valor abstrata se

desdobra necessariamente em diversas formas particulares concretizadas

em outras coisas, conforme as características específicas que a relação

social de troca adquire, deduzindo assim a forma-moeda a partir da forma-

valor abstrata.

A contradição entre a intercambialidade imediata da mercadoria

(determinada pela própria mercadoria), enquanto forma-valor abstrata, e a

necessidade de que o produto seja reconhecido como valor-de-uso social

para ser intercambiável (e portanto ser mercadoria), resolve-se quando a

forma-valor adquire uma existência diferente do valor-de-uso da mercadoria

em um equivalente determinado. Deste modo, a forma-valor abstrata

desdobra-se necessariamente na forma-simples do valor, que corresponde à

espécie mais simples de relação social de troca de mercadorias.

28 Embora a igualação do trabalho social seja necessária para a distribuição do trabalho social em todas formas de sociedade, nas sociedades em que o trabalho é igualado ao ser distribuído previamente pela sociedade, a igualação do trabalho é uma característica secundária do trabalho imediatamente social; por outro lado, nas sociedade em que o trabalho é realizado por produtores privados, o trabalho só é igualado por meio da igualação do produto e só como trabalho igualado por meio da troca do produto (trabalho humano abstrato) torna-se trabalho social.

36

A forma simples do valor não expressa a igualdade qualitativa da

mercadoria com todas as outras mercadorias como valores; no entanto, esta

expressão é condição para a transformação do trabalho privado-concreto

em trabalho social-abstrato. Esta contradição se resolve quando todas

mercadorias expressam seu valor em uma determinada mercadoria (o ouro)

que adquire o monopólio social da equivalência, tornando-se assim o

equivalente geral; o trabalho privado que produz ouro é então previamente

igualado com todas as outras formas de trabalho concreto, de modo que, a

igualação de um trabalho privado concreto com o trabalho privado que

produz ouro por meio da igualação do produto com o ouro, resulta na

transformação daquele trabalho privado em trabalho social29. Vemos assim

que a forma equivalente geral ou forma geral da moeda, enquanto

condição para a produção de mercadorias (para a distribuição do

trabalho), corresponde à relação de troca regular30.

No capitulo 2 de O capital Marx mostra como se constitui o fetichismo

do dinheiro. Mostra-nos que, apenas com o surgimento de um equivalente

geral, as relações de produção reificadas adquirem uma figura material

própria, externa à mercadoria mesma. Por outro lado, quando estas formas

sociais são personificadas, parece que uma mercadoria (ouro), ao ser por

natureza equivalente geral, faz com que as demais expressem nela seu valor,

29 Segundo Rubin: “A igualação extensiva (através do dinheiro) de todas as formas concretas de trabalho e sua transformação em trabalho abstrato cria simultaneamente entre elas um nexo social, transformando o trabalho privado em social.” (Rubin: 1980 [1928]: 143/144). 30 Segundo Brunhoff, “A circulação de mercadorias e da moeda são características da produção mercantil, cuja única determinação é a de uma relação social geral: troca privada supõe a produção privada. Sendo a moeda a expressão de uma relação geral de troca entre agentes econômicos privados, a economia monetária é comum a toda produção de mercadoria” (Brunhoff, 1978: 16)

37

ou seja, parece que as coisas por si mesmo se relacionam, ocultando o fato

de que as pessoas se relacionam por meio de coisas. Torna, portanto, oculto

o processo de reificação das relações de produção.

Ao mostrar como se constitui o fetichismo do dinheiro, Marx evidencia

o equivoco dos mercantilistas, que consideravam de modo empirista que “o

ouro e a prata, na função do dinheiro, não representavam uma relação

social de produção, mas eram objetos naturais com peculiares propriedades

sociais” 31, atribuindo assim características sociais às coisas32. Por outro lado,

ao mostrar que a troca direta do produto suposta por Smith não é possível,

Marx evidencia o equivoco de Smith que, em virtude de seu método

analítico, reduz o dinheiro às suas funções de medida de valor e meio de

circulação ao supor a passagem da troca direta do produto para a troca do

produto por meio do dinheiro, e deste modo vê no dinheiro apenas o

símbolo do valor-de-troca das mercadorias, considerando a forma-social das

coisas apenas como símbolo das relações de produção, e não como

realização destas.

31 (MARX, 1975 [1867]: 92) 32 Em virtude da concepção empirista do estado como condição ou mantenedor da sociedade civil, os mercantilistas consideravam a função de medida dos valores da moeda como decorrente do poder estatal de definir arbitrariamente o peso de ouro da unidade monetária, confundindo as funções da moeda de medida de valor e estalão de preços. Concebendo assim a função de medida do valor de modo puramente ideal, separada da função de meio de circulação concebida de modo puramente funcional; os mercantilistas terminaram por formular a teoria quantitativa da moeda, segundo a qual a quantidade de moeda colocada arbitrariamente em circulação pelo estado determina o nível geral de preços. Smith, por outro lado, subordina o estado à sociedade civil, considerando o dinheiro como símbolo do valor. Finalmente, após mostrar que o surgimento de um excedente de moeda em circulação resulta tendência à elevação do nível de preços, reduzindo o ‘preço do ouro-moeda’ em termos das demais mercadorias abaixo de seu valor relativo, Ricardo conclui que o ‘equilibro’ só é novamente atingido no longo prazo com a diminuição da produção de moeda. Deste modo, coube a Ricardo reconciliar a teoria quantitativa da moeda com a teoria do valor, através da adoção da lei de Say; contrariando sua própria teoria de que a moeda-mercadoria é um símbolo do valor.

38

Após deduzir a forma-moeda a partir da forma valor abstrata, no

capitulo 3 de O capital, Marx mostra que a forma-moeda se desdobra em

diferentes formas particulares da forma-moeda, que correspondem aos

diferentes momentos do processo de troca, deduzindo assim as funções da

moeda a partir da forma equivalente geral, mostrando porém que apenas a

relação entre as suas formas particulares converte a forma-moeda em

forma-dinheiro.

A moeda, enquanto equivalente geral, é uma mercadoria com valor

intrínseco (ouro) e distingue-se das mercadorias comuns por possuir o

monopólio social da equivalência. Segue-se que as mercadorias comuns

medem seus valores em quantidades de mercadoria-moeda, de modo que,

a função da moeda de medida de valor decorre diretamente da forma

equivalente geral33.

Uma vez que o preço da mercadoria é realizado pelo meio de

circulação, a função da moeda de medida do valor resulta na sua função

de meio de circulação. Portanto, uma vez que a moeda como medida de

valor possui valor intrínseco, a quantidade de moeda em circulação é

determinada pela quantidade de moeda necessária para a circulação;

sendo esta determinada pelo valor do dinheiro, quantidade e valor das

mercadorias em circulação, e velocidade de circulação do dinheiro34.

33 Quando a moeda funciona como medida de valor, os valores das mercadorias medem-se em “diferentes quantidades imaginárias de ouro”, o que resulta na “necessidade técnica de relaciona-las com uma quantidade fixa de ouro, a qual sirva de unidade de medida” (MARX, 1975 [1867]:109). A moeda funciona como estalão de preços quando uma quantidade de ouro, fixada por convenção e batizada com um nome legal, torna-se a unidade de conta. 34 Segundo Marx, embora o meio de circulação realize o preço das mercadorias, as transformações no meio de circulação não afetam a moeda enquanto medida do valor,

39

O movimento do meio de circulação resulta necessariamente em sua

paralisação nas mãos de particulares sob a forma de tesouro; deste modo, a

função de tesouro da moeda como equivalente geral decorre de suas

funções de medida do valor e meio de circulação. Por outro lado, quando o

excedente de moeda em circulação gera a tendência à elevação dos

preços, a arbitragem entre moeda (ouro) e mercadorias comuns eleva a

demanda por moeda (ouro) para entesouramento, eliminando a tendência

à elevação dos preços; o inverso ocorre quando há escassez de moeda em

circulação35.

Ao explicitar a relação entre as funções da moeda de medida de

valor e meio de circulação, e mostrar que esta relação é regulada pela

variação da quantidade de moeda em circulação, através do

entesouramento; Marx evidencia o equivoco da teoria monetária exógena

de Ricardo.

abrindo a possibilidade de que a mercadoria-moeda (ouro) seja substituída por seus símbolos (moedas desgastadas, papel moeda...) na função de meio de circulação. Então, a quantidade de papel-moeda em circulação é regulada pela necessidade da moeda metálica. Entretanto, o papel-moeda, ao contrario da moeda metálica, não sai da circulação. Portanto, se o papel moeda em circulação excede a moeda metálica que deve representar, ocorre uma elevação geral nos preços que absorve o excedente de papel. Vemos assim que o ouro não precisa estar materialmente presente para funcionar como moeda-mercadoria, pois na função de medida de valor o ouro funciona como ouro ideal, e na função de meio de circulação o ouro pode ser substituído por seus símbolos. 35 Apenas a unidade de suas funções transforma a moeda ou o equivalente geral em ‘dinheiro propriamente dito’. Por outro lado, exatamente por ter a função de unificar as funções da moeda, o entesouramento abre a possibilidade formal das crises em virtude da possibilidade de separar-se de sua função de regular a quantidade de moeda em circulação, separando assim as funções da moeda.

40

CAPÍTULO 2 - CAPITAL E TRABALHO ASSALARIADO.

Smith e Ricardo, partindo de formas sociais complexas (lucro, capital),

reduzem-nas a formas simples (preços), em seguida reduzem estas a seu

conteúdo material (trabalho concreto). A partir da identificação do trabalho

concreto com o valor, reconstroem as formas complexas identificando-as

com seu conteúdo material, identificam assim o trabalho materializado nos

meios de produção com o capital, naturalizando o capital. Smith e Ricardo

não se questionaram em que condições o trabalho materializado torna-se

capital, de modo que, embora analisem o lucro como determinante da

acumulação, terminam por considerar que a finalidade da produção

capitalista é a própria produção, negligenciando a natureza do capital

enquanto valor que se valoriza36. Marx mostra a parcialidade da concepção

de capital dos economistas clássicos quando toma como ponto de partida

de sua analise o capital tal qual se apresenta na circulação: o capital como

valor que se valoriza.

Suponhamos provisoriamente que, em decorrência de acumulação

mercantil primitiva (abstraindo seu caráter capitalista da acumulação), um 36 O capital, para permanecer nessa condição, deve reiniciar continuamente seu ciclo. Marx, no entanto, para ressaltar algumas características peculiares do movimento do capital, diferencia os ciclos do capital-dinheiro D...D’, do capital-produtivo, P...P’, e do capital-mercadoria, M’-M’. A forma do ciclo P-P(P’) é adotada pela economia clássica e pelos fisiocratas quando tratam do adiantamento de capital produtivo, ao passo que a forma do ciclo M’-M’(M’’) é adotado pelos Fisiocratas para analisar reprodução do capital social. Estas formas do ciclo expressam a acumulação de capital e revelam que a circulação simples de mercadorias (M-D-M) é parte da circulação do capital, mas não expressam a valorização do capital. Deste modo, a forma P...P, “torna mais fácil para a economia clássica abstrair-se da forma capitalista específica do processo de produção e apresentar a própria produção como objetivo do processo”. (Marx, 1998 [1885]: 104). Por outro lado, o ciclo M’- M’ expressa os componentes do valor do capital-mercadoria (c, v, m), compreendendo portanto a distribuição da totalidade do produto social entre as classes capitalista e trabalhadora, a relação entre os componentes do valor do produto social com seus componentes materiais e, a distribuição do capital-mercadoria individual em fundo de consumo e fundo de reprodução; deste modo, M’-M’ é a forma do movimento do capital e mais-valia social, sendo adotado por Marx na analise da reprodução do capital social no livro 2 de O Capital.

41

indivíduo chega ao mercado na posse de uma determinada soma de

dinheiro que recebeu. Marx toma a forma independente do valor, a forma-

dinheiro, como a “primeira forma em que [o capital] aparece”; portanto, ao

afirmar que “o dinheiro que é apenas dinheiro se distingue do dinheiro que é

capital, através da forma de circulação”37, Marx está se questionando em

qual forma de circulação (M-D-M ou D-M-D) o dinheiro retorna ao seu

possuidor originário.

Na circulação simples de mercadorias, M-D-M, o dinheiro se afasta de

seu possuidor quando é gasto; evidenciando que a finalidade da circulação

é o consumo, a destruição do valor. Apenas na circulação do capital, D-M-

D, o dinheiro é adiantado (não gasto) e em seguida retorna ao seu possuidor

originário, apenas para ser novamente adiantado... em um movimento que

não tem fim. Por outro lado, a igualdade qualitativa entre os extremos

evidencia que a finalidade da circulação D-M-D só pode ser a valorização

do valor, a produção de mais-valia. Portanto, a forma D-M-D, adotada pelos

mercantilistas, corresponde à natureza do capital enquanto valor que se

valoriza através de seu próprio movimento, sendo por isso o ponto de partida

de Marx de sua análise do capital.

Vimos que apenas com a forma-dinheiro as relações de produção

reificadas adquirem uma figura material própria, e que a personificação

destas relações reificadas oculta o processo de reificação. Na circulação

simples de mercadorias, embora a busca do dinheiro se torne um fim em si

quando o dinheiro adquire a função de tesouro, personificando-se na ação

37 (MARX, 1975 [1867]: 166)

42

do entesourador, “o valor das mercadorias adquire, no máximo, em

confronto com o valor de uso, a forma independente de dinheiro”. A

reificação das relações de produção só se completa com a transformação

do valor em capital, quando a busca do dinheiro como fim em si é realizada,

adiantando-se dinheiro à circulação, e se personifica na ação do capitalista:

“o valor se revela subitamente uma substância que tem um

desenvolvimento, um movimento próprio, e da qual a mercadoria e o

dinheiro são meras formas”38. Por outro lado, ao tornar-se “dinheiro que gera

dinheiro”39, a forma-dinheiro adquire a função ou forma específica de

capital-dinheiro, adiantamento de capital.

Marx então se questiona qual espécie particular de relação de troca

entre um proprietário de mercadoria e um proprietário de dinheiro atribui ao

dinheiro a capacidade de gerar mais dinheiro, atribui-lhe a função de

capital-dinheiro. Marx mostra que “as leis investigadas anteriormente”40 sobre

circulação de mercadorias (M-D-M) em uma sociedade mercantil simples

não explicam a possibilidade da transformação do dinheiro em capital;

refutando então as teorias que apresentam a circulação como origem da

mais-valia41. Em seguida, Marx evidencia a deficiência das teorias do valor-

38 (MARX, 1975 [1867]: 174) 39 (MARX, 1975 [1867]: 175). 40 (MARX, 1975 [1867]: 175). 41 O sistema monetarista ou mercantilista primitivo, baseado na forma D...D’, concebe o lucro como decorrente da venda acima do valor. O sistema mercantilista avançado, baseado na forma D-M...P...M’-D’, considera que a circulação e a produção de mercadorias são ambas necessárias para a obtenção de mais-valia, mas não analisa o processo de produção de mercadorias como processo capitalista de produção de mercadorias, e assim não explica a origem da mais-valia. Seguindo os clássicos, Marx refuta a tese mercantilista da origem da mais-valia na circulação, ao mostrar que “a circulação ou troca de mercadorias não cria nenhum valor” (MARX, 1975 [1867]:183). Marx refuta também a teoria do capital produtivo de Smith (sua segunda teoria do valor adotada pelos vulgares) ao mostrar que a única origem do valor criado na esfera da produção é o trabalho, e que o consumo dos meios de produção não produz valor (apenas transfere seu valor ao produto),

43

trabalho de Smith e Ricardo42 ao afirmar: “A transformação de dinheiro em

capital tem de ser explicada à base das leis imanentes da troca de

mercadorias, e desse modo a troca de equivalentes serve de ponto de

partida.”43

Marx conclui que apenas a troca entre a mercadoria força de

trabalho e o dinheiro, pode transformar uma simples espécie particular de

troca monetária em um meio de produzir mais-valia. Para Marx, a mudança

do valor do dinheiro, a mais-valia, não pode surgir do valor de troca das

mercadorias, pois a circulação não gera mais-valia. Assim a mais-valia só

pode surgir do valor-de-uso, do consumo de uma mercadoria. Por outro

lado, o consumo dos meios de produção apenas transfere seu valor ao

produto, assim seu valor-de-uso não produz mais-valia. Portanto, para que

seja possível a produção de mais-valia, é necessário que exista uma

mercadoria cujo valor-de-uso, ao ser consumido, crie valor novo e possa de modo que a simples posse de dinheiro pelo trabalhador não aumenta por si só a magnitude desse dinheiro; “é portanto impossível que o produtor de mercadorias, fora da esfera da circulação, sem entrar em contacto com outros possuidores de mercadorias, consiga expandir um valor.” (MARX, 1975 [1867]: 186). 42 Smith vê no valor um símbolo do trabalho concreto e no dinheiro um símbolo do valor das mercadorias; por isso, considera o trabalho como um mero serviço (troca direta de trabalho), acentua o ‘pagamento do trabalho’ e dos produtos do trabalho em dinheiro (economia monetária) e supõe que os capitalistas adiantam os meios de subsistência aos trabalhadores (economia de crédito). Estes equívocos levaram Smith e Ricardo a considerar que o valor do trabalho é o valor que o trabalho produz, e por isso a explicar a origem da mais-valia através da violação da lei do valor na troca entre capital e trabalho. 43 Marx formula então o problema da formação do capital: “como pode o capital originar-se supondo-se que os preços são regulados pelo preço médio, ou seja, em ultima instância, pelo valor da mercadoria? Digo em ultima instância, porque os preços médios não coincidem diretamente com as magnitudes do valor das mercadorias conforme pensam A. Smith, Ricardo e outros.” (MARX, 1975 [1867]: 186). A reconstrução teórica do processo de negação pelo valor-capital das condições em que a lei do valor opera com integridade na troca de mercadorias abrange dois momentos. A negação: A exposição da relação de produção entre capitalistas e operários como proprietários de mercadorias, a transformação da lei do valor em lei da valorização que ocorre quando a força de trabalho torna-se mercadoria; e a negação da negação: a exposição das relações de produção entre os produtores-privados-capitalistas na troca dos produtos do trabalho, a transformação do preço-médio determinado pelo valor em preço-médio determinado pelo preço-de-produção que ocorre quando a lei da valorização passa a governar a produção. Apenas o primeiro destes momentos teóricos é objeto desta dissertação.

44

assim criar uma quantidade de valor diferente da que se expressa no valor-

de-troca dessa mercadoria. Uma vez que apenas o trabalho humano

abstrato cria valor, segue-se que apenas a mercadoria força de trabalho ou

“capacidade de trabalho”44 satisfaz esta condição.

Marx chega então ao problema das condições necessárias para que

a força de trabalho se torne mercadoria, para “o possuidor de dinheiro

encontrar no mercado a força de trabalho como mercadoria”45. Vimos que,

em uma sociedade mercantil, a ausência de coerção extra-econômica

resulta na alienação recíproca de coisas por livre consentimento, enquanto

relação de produção entre os indivíduos. Então, os trabalhadores, apenas se

forem não-proprietários dos meios de produção, são forçados a vender sua

capacidade de trabalho como mercadoria (como coisa) para obter os

meios de subsistência, e só conseguem vender sua força de trabalho se

produzem mais-valia para o comprador.

Deste modo, o objeto de Marx, a sociedade em que rege a produção

capitalista (enquanto modelo abstrato) pressupõe um processo histórico

concreto que dissocie o produtor imediato dos meios de produção,

modificando as relações de produção que se realizam por meio da troca,

fazendo assim com que o dinheiro se torne um meio de produzir mais-

dinheiro46. Segundo Marx:

44 (MARX, 1975 [1867]: 187). 45 (MARX, 1975 [1867]: 187). 46 Segundo Mazzucchelli: “É partindo geneticamente da forma valor que Marx estuda a natureza do dinheiro enquanto forma de existência social dos produtos do trabalho, e é do estudo do dinheiro e de suas funções no processo de circulação de mercadorias que Marx demonstra como esta ‘substancia social comum’ se autonomiza ante a circulação, a subordina e se constitui, assim, numa ‘substancia social progressiva’, no sujeito de um processo cuja finalidade é o próprio processo. A conversão do dinheiro em capital é, assim,

45

“O que caracteriza a época capitalista é adquirir a força de trabalho, para o trabalhador, a forma de mercadoria que lhe pertence, tomando seu trabalho a forma de trabalho assalariado. Além disso, só a partir desse momento se generaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho.” (MARX, 1975 [1867]: 190)

O trabalho, ao tornar-se trabalho assalariado, adquire tripla

determinação: (i) O caráter social do trabalho é ser trabalho humano

abstrato que produz mais-valia, trabalho indiferente para o trabalhador e

para o capitalista (ii) O trabalho útil ocorre sob controle do capitalista, sendo

transformado para adequar-se às necessidades de valorização do capital.

(iii) O trabalho se opõe ao produto como mercadorias distintas. Veremos

agora cada uma dessas determinações.

2.1 – SUBSUNÇÃO FORMAL DO TRABALHO AO CAPITAL.

Marx continua sua exposição mostrando que “os diversos elementos

do processo de trabalho desempenham papeis diferentes na formação do

valor dos produtos”47, o que resulta em diferentes funções destes elementos

no processo de produzir mais-valia.

A força de trabalho é a única mercadoria cujo consumo cria valor

novo, superior ao seu próprio valor. Segue-se que a troca entre dinheiro e

força-de-trabalho, enquanto espécie particular de troca monetária, por

meio da conseqüente realização do trabalho como trabalho que produz

mais-valia e da propriedade do capitalista sobre o produto; resulta na

transformação do valor em valor aumentado. Deste modo, a fração do

o momento lógico da conversão das determinações mercantis em determinações capitalistas, o que, desde logo, não significa a supressão das primeiras, mas sim sua adequação ao novo conteúdo da produção social. É exatamente este o momento lógico da transformação da lei do valor em lei da valorização”. (Mazzucchelli, 1985: 16). 47 (MARX, 1975 [1867]: 225)

46

capital que se converte em força de trabalho muda seu próprio valor, sendo

chamada por Marx de capital variável.

A categoria de capital variável evidencia que o capitalista é

indiferente quanto ao trabalhador que contrata, e portanto quanto ao

trabalho útil que este desempenha, o qual considera como trabalho que

produz valor (mais-valia); por outro lado, o trabalhador é indiferente quanto

ao trabalho útil que executa, o qual não lhe pertence. Vemos assim que, o

trabalho, enquanto valor-de-uso para o capital, é trabalho humano abstrato;

ou seja, o trabalho é trabalho humano abstrato porque é trabalho que

produz mais-valia, porque o produto é capital.

Por outro lado, a troca entre dinheiro e meios de produção, enquanto

espécie particular de troca monetária, é condição para que a troca entre

dinheiro e força de trabalho resulte na transformação do valor em valor

aumentado. Uma vez que o valor dos meios de produção apenas se

transfere aos produtos, a fração do capital que se converte em meios de

produção não muda seu próprio valor, sendo por isso denominada por Marx

de capital constante.

Smith, seguindo os fisiocratas, apresenta a distinção entre capital fixo e

capital circulante conforme o prazo de rotação maior ou menor que um

ano; incluindo a força de trabalho e as matérias-primas no capital circulante,

esconde a origem da mais-valia48. Além disto, Smith identifica o valor do

48 Os fisiocratas distinguiam de modo ambíguo os adiantamentos como anuais e primitivos, pois diferenciavam estes segundo a rotação do capital fosse maior ou menor que um ano, mas supunham uma colheita por ano, de modo que o capital desembolsado em matéria prima faz uma rotação anual. No livro 2, Marx refuta a idéia de que o capital circulante e fixo se diferenciam por durar tantos ou quantos meses. Marx conceitua período de produção como o tempo entre o inicio da transformação das matérias-primas, que são a

47

produto com salário e mais-valia. Ricardo utiliza a conceituação de Smith de

capital fixo e capital circulante quando analisa a segunda violação à lei do

valor. Ricardo, porém, identifica o capital circulante com o capital variável e

o capital fixo com o capital constante, e exclui de sua analise as matérias-

primas; com o que apaga a origem da mais-valia e naturaliza a produção

capitalista.

Ao diferenciar o capital em constante e variável, Marx identifica o

valor da mercadoria produzida a c + v + m, corrigindo assim o erro de Smith

e Ricardo que reduzem o valor do produto a salário e mais-valia (salário e

suas ‘deduções’)49. Uma vez que o valor dos meios de produção não é

criado sob o comando do capitalista, e apenas se transfere ao produto,

podemos desconsidera-lo, fazendo c = 0. Então, o valor-capital torna-se v, e

o valor do produto torna-se v+m. Obtemos então a taxa de mais-valia, m/v,

que expressa a valorização do capital variável, embora não seja uma

medida da massa de mais-valia. Coloca-se então a questão: como a troca

monetária entre dinheiro e força de trabalho transforma o dinheiro em meio

de obter mais-dinheiro? como a força de trabalho produz mais-valia para

seu comprador?

Em todas formas de sociedade, o trabalhador deve reproduzir seus

meios de subsistência no tempo de trabalho necessário. Além disto, em

substancia principal de um produto, e a obtenção do produto acabado; apenas por funcionar por mais de um período de produção, determinada parte do capital é capital fixo, o que em geral ocorre com os instrumentos de trabalho; e, apenas por funcionar por um período de produção ou menos, a outra parte do capital é capital circulante, o que em geral ocorre com as matérias primas e a força de trabalho. 49 veremos adiante que a distinção das partes do capital em capital constante e capital variável permite a Marx analisar a mudança na composição orgânica do capital; analise esta em que Ricardo tropeça. Por outro lado, ao evidenciar que só o capital variável modifica seu próprio valor, Marx refuta a teoria vulgar da produtividade do capital.

48

diversas formas de sociedade, o trabalhador opera além do tempo de

trabalho necessário, realizando trabalho excedente para seu opressor. Nas

sociedades baseadas em relações sociais diretas no trabalho, o trabalhador

produz seus meios de subsistência sob a forma de valor-de-uso e, o trabalho

excedente é extraído sob forma de um trabalho útil particular ou de um

valor-de-uso.

Na sociedade capitalista, os trabalhadores vendem ao capitalista sua

força de trabalho por valor equivalente aos meios de subsistência e, em

seguida, criam para o capitalista, no tempo de trabalho necessário, um

equivalente ao valor da força de trabalho; além disto, o trabalhador produz

mais-valia no tempo de trabalho excedente, de modo que o trabalho

excedente é extraído sob a forma de mais-valia, de trabalho humano

abstrato. Portanto, ‘na sociedade onde rege a produção capitalista’, o valor

da força de trabalho é reproduzido no tempo de trabalho necessário, e a

mais-valia é produzida no tempo de trabalho excedente. Segue-se que: m/v

= tempo de trabalho excedente / tempo de trabalho necessário. Segundo

Marx: “A taxa de mais-valia é, por isso, a expressão precisa do grau de

exploração da força de trabalho pelo capital e do trabalhador pelo

capitalista”50. Vemos assim que a mais-valia é produzida no tempo de

trabalho excedente, de modo que, o capital só se valoriza explorando o

trabalhador, fazendo-o trabalhar além do tempo de trabalho necessário,

sugando trabalho vivo.

50 (MARX, 1975 [1867]: 243)

49

Finalmente, Marx indica que os componentes do valor do produto

podem ser expressos em partes proporcionais do produto; explicitando que,

na produção capitalista, o produto excedente só existe como valor

excedente: “chamamos de produto excedente a parte do produto que

representa a mais-valia”51; deste modo, Marx escapa do caráter instrumental

da teoria do valor de Ricardo na analise do excedente, que termina por

reduzir o excedente a um excedente de valor de uso.

2.2 - SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL.

O processo técnico-material de produção em uma economia

capitalista só é objeto da economia política indiretamente, em sua conexão

com a forma social do processo de produção. Por isso, Marx, abstraindo o

progresso técnico, começa a tratar o capital expondo a subsunção formal

do trabalhador ao capital quando a força de trabalho torna-se mercadoria,

que resulta na transformação da lei do valor em lei da valorização. Só em

seguida mostra que, se os produtores privados são capitalistas, a

concorrência os impele a modificar o processo de trabalho para obter mais-

valia através da redução de custos, de modo que a dinâmica do progresso

técnico integra a lógica da busca por mais-valia.

O valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos meios de

subsistência e, assim, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à

produção destes. Se as condições de produção (portando, o valor dos

meios de subsistência) são dados, o aumento da taxa de mais-valia só pode

ocorrer através do aumento da jornada de trabalho. Porém, se é dada a

51 (MARX, 1975 [1867]: 259)

50

jornada de trabalho, o aumento da taxa de mais-valia só pode ocorrer

através de um aumento da produtividade do trabalho nos ramos que

produzem (direta ou indiretamente) meios de subsistência dos trabalhadores,

fazendo diminuir o valor da força de trabalho e, assim, o tempo de trabalho

necessário52. Marx estabelece conceitualmente a diferença entre os dois

modos de aumentar a extração da mais-valia:

“Chamo mais-valia absoluta à produzida pelo prolongamento do dia de

trabalho, e de mais-valia relativa a decorrente contração do tempo de

trabalho necessário e da correspondente alteração na relação

quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho”

(MARX, 1975 [1867]: 363).

Marx, no entanto, demonstra que a diminuição do valor da força de

trabalho, embora seja resultado geral e necessário da produção capitalista,

não é a finalidade do capitalista individual ao elevar a produtividade do

trabalho. A lei do valor (como lei da valorização do valor-capital que regula

a produção) impulsiona o capitalista individual a elevar a produtividade do

trabalho para produzir mercadoria utilizando menos trabalho que seus

concorrentes, violando intencionalmente a lei do valor para obter mais-valia

em quantidade superior a seus concorrentes, mais-valia extra. Por outro lado,

a lei do valor impulsiona os demais capitalistas desse ramo a adotarem o

novo método de produção, de modo que este novo método se difunde e

passa a determinar o tempo de trabalho socialmente necessário à produção

52 Diversos autores clássicos (Petty, Quesnay, Turgot, Ricardo, Malthus, Sismondi...) analisaram a relação entre a produtividade do trabalho e o ‘valor do trabalho’, mas sempre tratando o ‘valor do trabalho’ como uma cesta de bens. Marx reconhece o mérito de Ricardo em perceber que uma variação da produtividade do trabalho provoca uma variação no sentido oposto no ‘valor do trabalho’, resultando em uma variação no mesmo sentido da mais-valia, embora Ricardo não analise a mais-valia em geral, confundindo as leis da taxa da mais-valia com as leis da taxa de lucro, e não analise os efeitos da duração da jornada de trabalho e da intensidade do trabalho na taxa de mais-valia.

51

da mercadoria e assim seu valor. Conseqüentemente, a mais-valia extra se

desvanece. Todavia, se esta mercadoria for parte dos meios de subsistência

dos trabalhadores, haverá uma queda no valor da força de trabalho,

elevando-se a taxa de mais-valia em toda a sociedade, resultando assim na

produção de mais-valia relativa.

Segundo Marx, “o capital submete o trabalho ao seu domínio nas

condições técnicas em que o encontra historicamente” 53. A subsunção

formal do trabalhador ao capital na manufatura implica na produção de

mais-valia sobretudo como mais-valia absoluta e não liberta o capital dos

limites impostos pela disponibilidade de mão de obra; esta subsunção formal,

no entanto, ao tornar a concorrência o meio ambiente indispensável ao

capital, terminou por resultar na transformação radical do processo de

trabalho na grande industria, que subsume realmente o trabalhador ao

capital, implicando na produção de mais-valia sobretudo como mais-valia

relativa e libertando o capital dos limites que não são impostos pelo próprio

capital. Por isso, Marx expõe as condições que os processos técnico-material

de produção, manual e mecanizado, impõem sobre a reprodução das

relações de produção capitalista, sobre produção de mais-valia e a

acumulação de capital.

Se o trabalho é realizado por produtores privados, a cooperação em

geral, o processo de trabalho em que diversos trabalhadores trabalham em

um mesmo local, só pode ser efetivada quando os trabalhadores são

empregados por um capitalista, não podendo ser efetivado pelos produtores

53 (MARX, 1975 [1867]: 354).

52

independentes. Portanto: “A cooperação é a forma fundamental do modo

de produção capitalista”54. Quando, o capitalista, ao empregar diversos

trabalhadores que fazem as mesmas operações, imprime uma articulação

entre as operações dos diferentes trabalhadores, surge a primeira forma

específica de cooperação capitalista, a cooperação simples. Quando, o

capitalista, partindo da cooperação simples, através divisão do trabalho

entre os trabalhadores que emprega, modifica as operações

desempenhadas pelos trabalhadores (combinando ou decompondo os

ofícios), surge a manufatura, uma forma específica de cooperação no

processo de trabalho baseada na divisão técnica do trabalho no interior do

processo produtivo.

A divisão do trabalho, por aumentar a produtividade do trabalho, foi o

principal meio dos capitalistas produzirem mais-valia relativa no período

manufatureiro. No entanto, por surgir da combinação e/ou decomposição

de ofícios, a manufatura fundamentava-se no trabalho manual, o que

impunha limites à reprodução ampliada da relação capitalista de

produção55. A base manual, tornava a qualificação do trabalhador

54 (MARX, 1975 [1867]: 385). A cooperação em geral, através de economias de escala com o uso comum de parte dos meios de produção, permite a redução da magnitude do capital constante transferido a cada unidade de produto. 55 A relação entre a acumulação de capital e o progresso técnico foi objeto de estudo da economia clássica. O sistema mercantilista avançado (Petty, James Steuart ...) considerava que o aumento da produtividade do trabalho através do progresso técnico era um meio de aumentar a obtenção de lucro (o que expressavam no conceito de lucro relativo), acelerando a acumulação do capital comercial. Por outro lado, os fisiocratas concebem a acumulação de capital decorrente da aplicação da renda da terra como capital fixo adicional (‘avance fonciere’), resultando em um aumento da produtividade do trabalho. Ao considerar que o trabalho assalariado presta um serviço para o capitalista, Smith concebe a diferença entre a divisão do trabalho entre os produtores privados e entre os produtores empregados por um mesmo capitalista como meramente subjetiva; considerando a acumulação de capital mero meio que permite o aprofundamento da divisão do trabalho possibilitado pela troca, resultando em prosperidade geral (ampla renda para o povo e para o soberano). Marx refuta Smith ao explicitar o caráter socialmente determinado da manufatura. Para Marx, em uma sociedade baseada em relações sociais

53

indispensável ao processo de trabalho, limitando produção de mais-valia

relativa através da redução dos salários. Além disto, a base manual

impossibilitava à manufatura revolucionar o processo técnico-material de

produção, impedindo-a de tornar-se a forma socialmente dominante de

produção social56 e fazendo com que a demanda por trabalho crescesse na

mesma proporção que o crescimento do capital social, de modo que a

oferta de trabalho assalariado limitava a acumulação de capital.

Apesar de suas limitações, a manufatura desempenhou um papel

histórico crucial: “O período manufatureiro simplifica, aperfeiçoa e diversifica

as ferramentas, adaptando-as às funções exclusivas especiais do

trabalhador parcial. Com isso, cria uma das condições materiais à existência

da maquinaria, que consiste numa combinação de instrumentos simples”.57

A introdução de máquinas permite a produção de mais-valia relativa

através dos processos conexos de desqualificação generalizada do

trabalhador e emprego da ciência na organização e combinação dos

processos de trabalho. O processo de subsunção real do trabalho ao capital

na indústria mecanizada58, o processo de transferência do conhecimento do

diretas, a divisão do trabalho (e excepcionalmente a cooperação) se estabelece entre os pequenos produtores que compõem a comunidade. Porém, em uma sociedade mercantil, a divisão social do trabalho se estabelece entre os produtores privados e a cooperação baseada na divisão do trabalho, sendo uma forma especial de cooperação, só pode ocorrer sob a forma capitalista. 56 Marx nos mostra que o desenvolvimento da manufatura terminou por resultar em duas espécies de manufatura. A manufatura heterogênea apenas excepcionalmente conseguiu desenvolver-se, em virtude da concorrência com o trabalho a domicílio e com o artesanato; por outro lado, na manufatura orgânica, o número mínimo de trabalhadores empregados na mesma seqüência de operações inviabilizava a produção artesanal, de modo que a produção manufatureira prosperava. Portanto, em geral, a manufatura assenhoreia-se dos ramos em que o artesanato não podia desenvolver-se. 57 (MARX, 1975 [1867]: 392) 58 Tauile nos mostra que a subsunção real é um processo interminável na produção capitalista: “Os conflitos entre capital e trabalho pela determinação dos novos patamares de produtividade (isto é, dos ritmos de trabalho e respectivos índices de porosidade) estarão

54

trabalho para o capital através da introdução de máquinas, abrangeu três

fases. Na primeira, o instrumento de trabalho é retirado do trabalhador e

engatado em um corpo mecânico “que, ao lhe ser transmitido o movimento

apropriado, realiza com suas ferramentas as mesmas operações que eram

antes realizadas pelo trabalhador com ferramentas semelhantes”59, de modo

que o ‘homem-ferramenta’ é substituído pela máquina-ferramenta. Na

segunda fase, a separação entre o ser humano e a ferramenta resultou na

substituição da força motriz (humana ou natural) por sistemas mecânicos.

Finalmente, na terceira fase, desenvolve-se a produção de máquinas por

máquinas, e o departamento que produz meios de produção torna-se

autônomo ante o departamento que produz meios de consumo.

Paralelamente a esse movimento, a ciência passa a determinar como as

máquinas efetivam cada processo parcial e a forma pela qual se articulam,

modificando as máquinas e sua articulação através da produção máquinas

por máquinas60.

2.3 – REPRODUÇÃO DO CAPITAL.

Partimos da suposição de um entesouramento por acumulação

mercantil primitiva, para mostrar que a separação entre o trabalhador e os

meios de produção é condição para transformação do dinheiro em capital,

através da subsunção formal do trabalho ao capital. Após retornar acrescido

sempre sendo recolocados em outros níveis, seja por força da introdução de tecnologias mais produtivas, seja como resultado da implementação de novos e eventualmente complementares métodos gerenciais e/ou sistemas organizacionais. Assim, há subsunção real do trabalho ao capital e, depois, mais subsunção real, e mais, e mais...” (Tauile, 2001: 79) 59 (MARX, 1975 [1867]: 426). 60 Inicialmente as máquinas imitam os movimentos humanos, em uma arquitetura puramente antropomórfica; depois, adquirem uma arquitetura própria, que lhes confere maior eficiência, podendo passar de uma etapa de “cooperação simples” entre máquinas para uma fase de “cooperação baseada na divisão do trabalho” entre máquinas distintas - o sistema de máquinas.

55

de mais-valia, o dinheiro, para continuar funcionando como capital, deve

ser novamente convertido em capital-produtivo: se o capitalista consome

toda a mais-valia produzida, teremos reprodução simples do capital-

produtivo; se converte parte da mais-valia em capital adicional, teremos

reprodução ampliada, acumulação de capital.

Vejamos inicialmente a reprodução simples do capital. O processo de

trabalho inicia-se com a compra da força de trabalho por prazo

determinado; ao fim desse prazo, o capitalista apropria-se da totalidade do

produto e, em seguida, repassa (paga) para o trabalhador sob a forma

salário parte do produto-valor que este produziu. Desfaz-se assim a ilusão

gerada pelo pagamento da força de trabalho em dinheiro, que apresenta o

salário como adiantamento (o capital variável como valor retirado do fundo

do capitalista)61. Além disto, vemos que o próprio processo de produção

capitalista lança o trabalhador no mercado como vendedor de sua força

de trabalho, ao reproduzir a separação entre os trabalhadores e os meios de

produção, e transforma o produto do trabalhador em meio que o capitalista

utiliza para comprá-lo; ou seja, opõe o trabalhador e o produto de seu

trabalho como mercadorias distintas e assim reproduz as relações de

produção capitalistas62.

Vejamos agora a reprodução ampliada do capital, enquanto

processo em que a mais-valia produz o capital. Para o capitalista individual

61 “A classe capitalista dá constantemente à classe trabalhadora, sob forma de dinheiro, letras que a habilitam a receber parte do produto dela mesma que lhe é atribuída. Mas, o trabalhador devolve continuamente essas letras à classe capitalista, para receber a parte do produto dele mesmo que lhe é atribuída.” (MARX, 1975 [1867]: 661-662). 62 “O próprio trabalhador produz, por isso, constantemente, riqueza objetiva, mas sob a forma de capital, uma força que lhe é estranha, o domina e o explora” (MARX, 1975 [1867]: 665)

56

poder aplicar a mais-valia como capital adicional, tem de adquirir força de

trabalho e meios de produção, recomeçando o processo em escala

ampliada. Porém, para o capitalista individual poder comprar essas

mercadorias, tem de encontrá-las no mercado. Uma vez que a quantidade

e o uso a que pode servir o produto anual são determinados pela produção,

nunca pela circulação, segue-se que a classe trabalhadora deve reproduzir

os elementos naturais do capital consumidos durante o ano – meios de

produção e meios de subsistência dos trabalhadores empregados – e

produzir os elementos materiais do capital adicional – meios de produção

adicionais e meios de subsistência dos trabalhadores adicionais – como

parte do produto excedente, antes que este chegue ao mercado como

mais-valia a ser realizada. Deste modo, ao aplicar a mais-valia como capital,

o capitalista, por ter anteriormente se apropriado de trabalho não pago,

pode em seguida apropriar-se de quantidade maior de trabalho vivo não

pago.

No capitulo 1 desta dissertação, vimos que a produção privada resulta

necessariamente na forma-mercadoria. Na medida em que supúnhamos

uma sociedade mercantil simples, o direito de propriedade privada parecia

basear-se no próprio trabalho, pois “o único meio de que uma pessoa dispõe

para apropriar-se de mercadoria alheia é alienar a própria, e essas só

podem ser produzidas com trabalho”. No entanto, a oposição entre o

trabalhador e o produto de seu trabalho evidencia que na produção

capitalista, o direito de propriedade não é baseado no próprio trabalho.

Além disto, embora a troca da mercadoria força de trabalho se enquadre

nas leis da circulação de mercadorias, quando o capitalista consome o

57

valor-de-uso da força de trabalho, o trabalhador cria uma quantidade de

valor superior a que recebeu. O capitalista, por sua vez, por ter

anteriormente se apropriado de trabalho não pago, tem o direito de

apropriar-se de quantidade maior de trabalho vivo não pago, violando a

troca de equivalente. De modo que a troca entre capital e trabalho respeita

e viola a lei do valor, transformando a lei do valor em lei da valorização do

capital. “Do lado do capitalista, a propriedade revela-se o direito de

apropriar-se de trabalho alheio não-pago ou do seu produto, e do lado do

trabalhador, a impossibilidade de apropriar-se do produto de seu próprio

trabalho”63.

Smith, considerando a sociedade mercantil simples uma forma

histórica real, supõe que o capital primitivo é resultado da poupança de

indivíduos que se abstêm do consumo para aplicarem dinheiro como

capital, embora admita que após este momento é a aplicação dos lucros

que produz o capital. Marx porém nos mostra que a não-propriedade dos

meios de produção pelos trabalhadores é condição para o trabalho

privado. A posse dos meios de produção pelo produtor imediato é uma

relação social direta que este produtor estabelece com os demais membros

da comunidade e que determina imediatamente o caráter social do

trabalho. Sendo o trabalho imediatamente social, não pode ser privado e,

portanto, seu produto não pode ser mercadoria. Deste modo, o trabalho só

é realizado de modo privado se os produtores são empregados de um

capitalista; portanto, apenas sob a forma capitalista, a produção de

mercadorias torna-se a forma dominante de produção social. Deste modo, o 63 (MARX, 1975 [1867]: 679)

58

trabalho só é trabalho humano abstrato quando é valor-de-uso para o

capital, quando produz mais-valia; ou seja, a lei do valor só existe realmente

como lei da valorização64.

Ricardo, não diferencia a mais-valia de suas formas de manifestação

(lucro, renda da terra...), por isso, comete o erro de aplicar as leis que

decorrem da taxa de lucro na analise realizada em valores, o que o leva a

afirmar que, a curto, prazo a introdução de máquinas poupa trabalho,

resultando no abandono das terras marginais (assim na elevação da taxa

geral de lucro) e no aumento da intensidade de capital (aumento da

composição orgânica do capital). Além disto, para Ricardo, a longo prazo, o

aumento da taxa geral de lucro resulta em aumento da acumulação e

assim na reabsorção da mão de obra deslocada65. Marx, porém, nos mostra

que são as características técnicas do processo de trabalho na grande

indústria (e não a economia de trabalho), o que determina a introdução das

máquinas com o progresso da acumulação e o aumento da composição

orgânica do capital em todos os ramos de produção, enquanto tendências

da produção capitalista industrial; o que, ao ampliar o exército industrial de

reserva, liberta o capital dos limites impostos pela oferta de trabalho da

sociedade.

Na grande indústria, a cooperação, ao permitir a aplicação da

máquina como instrumento de produção que só pode ser utilizado 64 Segundo Rosdolsky, a seqüência mercadoria-valor-dinheiro-capital “diz apenas que cada uma das categorias mencionadas se desdobra além de si mesma e nenhuma delas pode ser compreedida com clareza sem as precedentes. Também o contrário, no entanto, parece correto: cada uma dessas categorias pressupõe a seguinte, e só nela alcança seu desenvolvimento completo.” (Rosdolsky, 2001: 151). 65 Como nos diz Belluzzo: “Ficam, assim, neutralizados os efeitos do progresso técnico, tanto em termos da composição orgânica do capital, quanto da própria distribuição de renda.” (Belluzzo, 1978: 93).

59

coletivamente, torna-se condição para o desenvolvimento da produtividade

do trabalhador coletivo através da “transformação progressiva de processos

de produção isolados e rotineiros em processos de produção socialmente

combinados e cientificamente organizados”66; então, “o barateamento das

mercadorias depende da produtividade do trabalho, e esta da escala de

produção”67. A acumulação de capital (complementada pela

centralização dos capitais, e acelerada pelo crédito) ao concentrar os

meios de produção sociais, torna-se o principal meio para se ampliar a

cooperação e, portanto, elevar a produtividade do trabalho. Por outro lado,

na produção capitalista, todos os métodos para aumentar a produtividade

do trabalho são simultaneamente métodos para aumentar a produção de

mais-valia e assim métodos para acelerar a acumulação de capital; de

modo que o aumento da produtividade do trabalho “se torna a mais

poderosa alavanca da acumulação”68.

Se a composição orgânica do capital é constante, a acumulação

acelerada de capital resulta em aumento simultâneo do capital variável; se

o conseqüente aumento da demanda por trabalho for superior ao aumento

da oferta de trabalho, estabelece-se até certo ponto uma tendência ao

aumento dos salários69. Esse movimento torna o progresso técnico uma

exigência imperiosa para o capital, permitindo mesmo que o consideremos

66 (MARX, 1975 [1867]: 729) 67 (MARX, 1975 [1867]: 727) 68 (MARX, 1975 [1867]: 723) 69 Até certo ponto esse aumento dos salários não compromete a acumulação, pois uma diminuição da taxa de lucro é compensada pelo aumento da quantidade de capital, de modo que a massa de mais-valia aumenta. Além de certo ponto, no entanto, o aumento dos salários e conseqüente diminuição da taxa de mais-valia reduz a massa de mais-valia, reduzindo a acumulação e assim a demanda por trabalho, o que reduz os salários até que a elevação da massa de mais-valia reative a acumulação.

60

uma variável endógena, decorrente da tendência ao aumento dos salários

e do tamanho dos estabelecimentos individuais quando a acumulação se

acelera. Por sua vez, o aumento da produtividade do trabalho (resultado do

progresso técnico) ocorre sempre paralelamente ao incremento da

composição técnica do capital, refletindo-se no aumento da composição

orgânica do capital. Assim, o aumento da composição orgânica do capital

com o progresso da acumulação é uma lei da produção capitalista.

Conseqüentemente, a demanda por trabalho, sendo determinada pela

magnitude do capital variável, aumenta em proporção cada vez menor do

capital, fazendo com que a oferta de mão de obra deixe de limitar o

progresso da acumulação70. Então, os limites à valorização do capital

passam a ser dados pelo próprio capital71.

70 Nos ramos individuais, a acumulação se dá em geral paralelamente à mudança na composição orgânica do capital, diminuindo o número de trabalhadores empregados nesse ramo; esse mesmo movimento, quando ocorre em diversos ramos, produz o exército industrial de reserva. Na totalidade dos ramos, o nível de emprego varia de acordo com os ciclos econômicos. “Em seu conjunto, os movimentos dos salários se regulam exclusivamente pela extensão e contração do exército industrial de reserva, correspondentes às mudanças periódicas do ciclo industrial” (MARX, 1975 [1867]: 739). 71 Segundo Marx: “Quando o sistema fabril adquire base mais ampla e certo grau de maturidade; quando principalmente sua base técnica, a maquinaria, é produzida por máquinas(...) adquire este sistema de exploração elasticidade, capacidade de expandir-se bruscamente e aos saltos, que só se detém diante dos limites impostos pela matéria prima e pelo mercado.”( MARX, 1975 [1867]: 517)

61

CONCLUSÃO

Os filósofos morais partiam da suposição a priori de um estado natural

que corresponde à natureza humana, e por meio da concepção empirista

da finalidade da ação humana, em uma sociedade orientada pelo egoísmo

individualista burguês, deduziam diretamente a natureza do estado. Assim,

Hobbes concebe a priori a natureza humana egoísta, para obter a

conclusão empirista do estado como condição para a sociedade civil.

Locke concebe a priori a natureza humana boa, contrapondo-a a escassez

do meio físico, para obter a conclusão empirista de que o estado garante o

desenvolvimento da sociedade civil. A contradição entre a suposição a

priori da natureza humana e a concepção empirista da finalidade da ação

humana em sociedade levou as radicalizações agnósticas opostas de Hume

e Kant. Hume radicaliza o empirismo inglês por meio do agnosticismo, ao

definir de modo empirista o altruísmo como atos que geram simpatia e assim

ganhos para o individuo que os pratica, reduzindo os atos altruístas a atos

com finalidade egoísta indireta. No entanto, Hume não indica em que

condições o comportamento egoísta ou altruísta é praticado. Os

mercantilistas foram profundamente influenciados pelo método empirista da

filosofia moral Inglesa, o que os levou a se ater às aparências da circulação,

atribuindo características sociais às coisas.

Os primeiros autores da economia clássica, embora não analisassem a

produção capitalista, chegaram a reduzir analiticamente a categoria preço

a trabalho, explicando o preço na troca a partir de leis que regrem a

produção de mercadorias. Por outro lado, os fisiocratas reduziram

62

diretamente a mais-valia a produto excedente, explicando fenômenos da

circulação por leis que regem a produção capitalista; e reduziram a mais-

valia a preço dos insumos e produto. No entanto, coube a Smith, através de

um afastamento progressivo do método empirista da filosofia moral,

consolidar o método analítico da economia clássica. Na Teoria dos

Sentimentos Morais, partindo do problema deixado por Hume, Smith separa

o comportamento humano em duas esferas estanques, a moral em que o

comportamento altruísta é benéfico para a sociedade, e a economia em

que o comportamento egoísta é benéfico para a sociedade. Em seguida,

ao apresentar a primeira versão da mão invisível em uma sociedade

mercantil simples nas Conferencias de Glasgow, busca mostrar como as leis

eficientes que regem a sociedade fazem com que as ações, cuja finalidade

reside no interesse individual, resultem em beneficio para toda a sociedade.

Finalmente, na Riqueza das Nações, Smith busca explicar quais são as leis

eficientes que regem a produção na sociedade capitalista e como estas leis

fazem com que os atos egoístas resultem em beneficio para toda a

sociedade. Para explicar estas leis, Smith parte de categorias complexas da

circulação (lucro, capital), reduz estas analiticamente à categoria simples de

valor e reduz esta analiticamente a seu conteúdo material, o trabalho.

Este método analítico, embora rompa com a superficialidade do

empirismo, revela sua unilateralidade quando Smith e Ricardo identificam

valor com trabalho, supondo a priori que o trabalho privado é por natureza a

forma social da produção, e assim naturalizam as leis eficientes que regem a

reprodução da sociedade capitalista. Por isso, Smith e Ricardo, ao

reconstruírem as categorias complexas, identificam estas com seu conteúdo

63

material. Através da suposição da passagem da troca de trabalho para a

troca de produto, consideram o valor como um símbolo do trabalho; através

da suposição da passagem da troca de produto para a troca por meio do

dinheiro, considera o dinheiro como um símbolo do valor; e através da

suposição de que os capitalistas adiantam os meios de subsistência aos

trabalhadores como pagamento por seus serviços, consideram que o

trabalho vivo é por natureza trabalho assalariado e que o trabalho

materializado nos meios de produção é por natureza capital. Por isso,

consideram que o ‘valor do trabalho’ é o valor que o trabalho produz,

concluindo que a troca entre capital e trabalho viola a lei do valor.

Por outro lado, Kant radicaliza o subjetivismo quando, através de um

agnosticismo parcial (pois reconhece a existência da coisa em si), busca

fundamentar a ação prática racional dos indivíduos a partir dos

desdobramentos da contradição entre sensações e consciência pura, na

contradição entre a consciência empírica e autoconsciência, e em seguida

na contradição entre natureza e razão. Hegel então, através do

racionalismo idealista, concebe o processo de desdobramento da

consciência como o próprio processo de constituição da realidade material,

no qual as contradições se resolvem gerando novas contradições até a

constituição da Razão; com isso, Hegel concebe o mundo criado pela razão

como realização da liberdade.

A ideologia liberal burguesa concebe a ação humana com finalidade

livremente determinada pelo individuo e assim apresenta o interesse da

burguesia como interesse geral. Marx rompe radicalmente com a ideologia

64

burguesa quando expõe o caráter socialmente determinado da produção

capitalista e mostra como este caráter se manifesta na circulação.

Esta ruptura ocorreu em dois ‘períodos’. O primeiro período abrange

um longo acerto de contas com a filosofia clássica alemã, a filosofia liberal

Inglesa e francesa, e com as correntes socialistas precedentes; e termina

quando Marx escreve a Ideologia Alemã e o Manifesto do Partido

Comunista, expondo pela primeira vez, embora de modo incompleto, o

método materialista-histórico. Na Ideologia Alemã, Marx nos mostra que o

processo de produção desdobra-se em processo técnico de produção e

forma social do processo de produção, que o desenvolvimento do processo

técnico de produção determina o desenvolvimento da forma social do

processo de produção e, que as distintas formas particulares da forma social

do processo de produção caracterizam as distintas épocas sociais. No

Manifesto do Partido Comunista, Marx utiliza seu método para expor a

formação da classe operária e o caráter histórico e socialmente

determinado das ações de seus membros, evidenciando o caráter

ideológico do pensamento liberal por contraposição à livre determinação

das ações em sociedade, reivindicada pelo movimento comunista.

O segundo período abrange um longo acerto de contas com a

economia política, ramo do conhecimento cujo objeto é a forma social do

processo de produção; e termina quando Marx concebe a teoria do

fetichismo (a versão mais desenvolvida do materialismo histórico que

incorpora a gênese da forma-mercadoria e da forma-capital) como base

da teoria do valor.

65

Vimos que Marx começa sua exposição em O Capital caracterizando

a sociedade mercantil pela forma-mercadoria, e mostrando que esta supõe

produção privada; por outro lado, ao fundamentar a teoria do valor na

teoria do fetichismo, mostra que a produção privada resulta

necessariamente na forma-mercadoria. Deste modo, Marx caracteriza a

sociedade burguesa pela especificidade da forma social do processo de

produção nesta sociedade. Na teoria do fetichismo, vemos que se os

produtores são livres de coerção extra-econômica, então as relações de

produção se realizam apenas por meio da troca dos produtos, determinam

uma forma-social às coisas (a forma-mercadoria) e aparecem como

relações reificadas entre pessoas. Finalmente, a forma social das coisas, ao

ser personificada, passa a determinar as relações de produção, aparecendo

como relação social entre coisas. Por isso, na teoria do valor, vemos que os

trabalhos privados só se transformam realmente em trabalho social por meio

da transformação do trabalho concreto em trabalho humano abstrato, na

troca do produto como mercadoria. Portanto, o trabalho privado resulta na

forma-mercadoria, e o caráter social-abstrato do trabalho materializado

aparece como forma-valor. Finalmente, as flutuações dos preços

determinam a distribuição do trabalho social; de modo que o trabalho na

esfera da produção, embora seja realmente trabalho privado-concreto, é

potencialmente trabalho social-abstrato, aparecendo na necessidade de

que o produto seja um valor-de-uso social.

Marx então nos mostra como a forma-valor abstrata se desdobra

necessariamente em diversas formas concretas particulares conforme as

características específicas que a relação social de troca adquire, deduzindo

66

assim a forma-moeda a partir da forma-valor abstrata. Em seguida, Marx nos

mostra que a forma-moeda se desdobra em diversas formas particulares,

conforme os momentos do processo de troca, convertendo-se em forma-

dinheiro.

Marx mostra que apenas na circulação do capital, D-M-D, o valor

pode manter-se em movimento com a finalidade de se valorizar, de modo

que a forma D-M-D corresponde à natureza do capital enquanto valor que

se valoriza através de seu próprio movimento. Em seguida, mostra que

apenas a troca entre a mercadoria força de trabalho e o dinheiro pode

transformar uma simples troca monetária em um meio de produzir mais-valia,

e que a não-propriedade dos meios de produção pelos trabalhadores é

condição para a existência da mercadoria força de trabalho. Vemos assim

que, supondo provisoriamente acumulação mercantil primitiva e dissociação

prévia entre o trabalhador e os meios de produção, Marx caracteriza a

sociedade capitalista a partir da oposição entre o capital (imensa

acumulação de mercadorias) e a mercadoria força de trabalho na

circulação, mostrando que a troca monetária entre capitalistas e

trabalhadores respeita as leis da liberdade e igualdade na circulação de

mercadorias, e resulta no processo de produção capitalista onde o trabalho

é realizado de modo privado como trabalho assalariado.

Em seguida, Marx mostra que o trabalho privado ao ser realizado

como trabalho assalariado adquire novas determinações. O trabalho

privado concreto é potencialmente trabalho humano abstrato que valoriza

o capital através da produção de mais-valia no tempo de trabalho

67

excedente; os capitalistas alteram o processo técnico de produção

introduzindo máquinas para aumentar a produção de mais-valia através dos

processos conexos de desqualificação generalizada do trabalhado e

emprego da ciência na organização e combinação dos processos de

trabalho; e o produto do trabalho pertence aos capitalistas, de modo que a

oposição o trabalhador e o produto de seu trabalho como mercadorias

distintas reproduz as relações de produção capitalistas, e a realização e

capitalização da mais-valia produzida pelo trabalho não-pago permitem ao

capitalista obter domínio sobre quantidade ainda maior de trabalho vivo

não-pago, transformando a forma-valor em forma-capital e a lei do valor em

lei da valorização do capital. Vemos assim que o processo de produção

capitalista resulta necessariamente na oposição entre o capital e a

mercadoria força de trabalho na circulação; deste modo, Marx caracteriza

a sociedade capitalista pela especificidade da forma social do processo de

produção nesta sociedade.

Portanto, o processo de circulação é um momento da forma social do

processo de produção capitalista; de modo que as relações de produção

capitalistas, baseadas na dominação (subsunção) e desigualdade

(exploração) no processo de produção, apresentam-se segundo as leis da

liberdade e igualdade da circulação.

Os liberais, eternizando a sociedade burguesa, colocam a distribuição

da renda na raiz de todas as injustiças. Por outro lado, os sindicatos travam

diariamente lutas pela distribuição do produto, pela distribuição de renda.

Marx, no entanto, mostra que nas sociedades em que a produção

68

capitalista industrial é a forma dominante de produção social, a elevação

da produtividade do trabalho aumenta a produção de mais-valia, o que,

por sua vez, acelera a acumulação, resultando na elevação da

produtividade do trabalho. Deste modo, os trabalhadores, mesmo que

obtenham mais valores de uso reduzindo assim sua miséria absoluta,

apropriam-se de uma fração cada vez menor do produto de seu trabalho,

elevando-se o grau de sua exploração ou sua miséria relativa. Por outro lado,

diversos movimentos de resistência ao avanço do capital buscam manter a

pequena propriedade. Marx mostra, porém, que a concentração da

propriedade é resultado da base técnica no modo de produção

especificamente capitalista, e termina por se impor em uma sociedade

capitalista.

Ao evidenciar o caráter histórico e socialmente determinado das leis

que, através da determinação da ação dos indivíduos, regem a produção

em uma sociedade capitalista; Marx nos mostra que estas leis que regem a

produção capitalista são produzidas pela ação dos indivíduos, abrindo a

possibilidade de que a produção seja realizada por homens livremente

associados. Por outro lado, a abundancia material decorrente do fabuloso

desenvolvimento das forças produtivas na sociedade capitalista, elimina a

necessidade de que os seres humanos disputem o produto do trabalho

social, eliminando assim a necessidade de que uma parcela da população

domine outra parcela para explorar seu trabalho. Finalmente, a produção

industrial, na medida em que se torna dominante, elimina ou subordina as

demais formas sociais de produção; portanto, a substituição da produção

capitalista industrial pela produção realizada por homens livremente

69

associados implica na eliminação de todas as formas sociais da produção

baseadas na dominação. No entanto, para que esta possibilidade de

libertação se efetive, devem estar preenchidas certas condições subjetivas

relativas à consciência de classe do proletariado, abordadas por Marx no

Manifesto Comunista; o que esta fora do escopo desta dissertação.

70

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