Upload
others
View
3
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
A RELEVÂNCIA JURÍDICA DO TRATADO DA ANTÁRTIDA 60 ANOS DEPOIS
THE JURIDICAL RELEVANCE OF ANTARCTIC TREATY 60 YEARS AFTER
Jhonathan Baranoski da Silva1
Ana Cláudia Barroso2
RESUMO: Este artigo objetiva apresentar uma breve e contextualizada retrospectiva sobre o período
compreendido entre a assinatura do Tratado da Antártida, nos Estados Unidos, em 1º de dezembro de 1959, e os
dias de hoje; também pretende promover uma reflexão sobre as principais consequências desse instrumento
jurídico sobre o mundo do direito e das relações internacionais. Como ferramenta estratégica, esse contrato de
amplas escalas jurídica e territorial não foi um ato despretensioso realizado pelos seus signatários: sob o pretexto
de uso para fins pacíficos, progressistas e coletivistas, que beneficiariam a Humanidade, o acordo também
provoca efeitos concretos sobre objetos de direito difuso como recursos naturais e o espaço geográfico,
provavelmente o principal recurso em questão. Nesse sentido, compreende-se que se faz mister aos estudiosos do
Direito Internacional dedicar algum esforço para a compreensão desse fenômeno legal e de seus resultados sobre
o mundo real contemporâneo para, entre outros fins, subsidiar eventuais prognósticos qualitativos nas mais
variadas áreas de conhecimento desenvolvidas pela espécie humana – notadamente no Direito.
Palavras-chave: Antártida, Direito, Recursos naturais, Relações internacionais.
ABSTRACT: This article aims to present a brief and contextualized retrospective on the period between the
signing of the Antarctic Treaty, in the United States, on December 1th, 1959, and nowadays; it also intends to
promote a reflection on the main consequences of this legal instrument on the world of law and international
relations. As a strategic tool, this large-scale legal and territorial contract was not an unpretentious act by its
signatories: under the excuse of use for peaceful, progressive and collectivist purposes that would benefit the
Humanity, the agreement also has real effects on objects of diffuse law as natural resources and the geographical
space, probably the main resource in question. In this sense, it is understood that it is necessary for scholars of
International Law to dedicate some effort to understanding this legal phenomenon and its results about the
contemporary real world to, among other purposes, subsidize eventual qualitative prognoses in the most varied
areas of knowledge developed by the human species – notably in Law.
Palavras-chave: Antarctic, Law, Natural resources, International relations.
INTRODUÇÃO
Em 1º de dezembro de 1959, em Washington D.C., capital dos Estados Unidos, era
assinado o Tratado da Antártida, que entraria em vigor somente em 23 de junho de 1961. Seus
signatários eram, além do anfitrião: a África do Sul, a Argentina, a Austrália, a Bélgica, o
Chile, o Japão, a Nova Zelândia, a Noruega, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do
Norte, a República Francesa e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Juridicamente,
tratava-se de uma reivindicação dos Estados Unidos que remontava ao ano de 1924
(ACCIOLY, NASCIMENTO E SILVA e CASELLA, 2012).
Seus outorgantes partiam do princípio do suposto interesse de toda a humanidade no
permanente uso da Antártida para fins pacíficos, não tornando aquele território nem em palco
1 Acadêmico do curso de Direito da Faculdade São Lucas/FSL, Ensino Superior em Tecnologia de Gestão em
Recursos Humanos pela Claretiano, Porto Velho/RO, E-mail: [email protected]. 2 Professora da Faculdade São Lucas/FSL, Economista, Mestre em Desenvolvimento Regional e Agronegócio,
Porto Velho/RO, E-mail: [email protected].
2
nem em objeto de discórdia internacional, consoante ao preâmbulo do acordo (THE
ANTARCTIC TREATY, 1959).
Todavia, apesar do mote pacifista já descrito no Artigo I, Parágrafo 1, o Tratado
Antártico (THE ANTARCTIC TREATY, 1959), que proíbe “quaisquer medidas de natureza
militar, tais como o estabelecimento de bases e fortificações, a realização de exercícios
militares, assim como as experiências com quaisquer tipos de armas” [tradução nossa]; o
Tratado não veda o trânsito militar na região, conforme verificado no Artigo I, Parágrafo 2
(THE ANTARCTIC TREATY, 1959): “O presente Tratado não impedirá a utilização de
pessoal ou equipamento militar para pesquisa científica na Antártida e de cooperação para
esse fim [...]”. [tradução nossa]
Em um texto relativamente curto, figurando em 14 (quatorze) artigos, as partes
encontram, no Artigo IV do Tratado, fulcro no pressuposto que dispõe que não poderá haver
pretensão de soberania territorial sobre a Antártida por parte dos Estados signatários – um dos
assuntos mais polêmicos e complexos derivados da assinatura do Tratado da Antártida.
Além disso, no seu Artigo V, o acordo internacional traz à tona inquietações sobre a
incolumidade ecológica do peculiar território antártico (JESUS e SOUZA, 2007;
ANTÁRTICA, 2014), especialmente quando trata de ações que vão desde o despejo de lixo
até a proibição de explosões nucleares na região, que, para efeitos jurisdicionais, inicia-se aos
60 (sessenta) graus de latitude sul, sem prejuízo ao direito internacional aplicável ao mar
nesses limites (THE ANTARCTIC TREATY, 1959).
A resumida descrição de características geográfica região antártica por Vieira (2006, p.
50) permite inferir uma breve noção da sua importância ecológica para o mundo:
A Antártica ocupa um espaço de 14,2 milhões de km2, dos quais 95% são
cobertos por uma camada de gelo com 2.000 metros em média de espessura,
resultante de sua posição geográfica circundante ao Pólo Sul, de mínima
exposição ao Sol comparativamente a outros pontos do globo terrestre. Essa
característica faz com que ali se desenvolva um ecossistema anecúmeno, integrado
por escassa flora e fauna e marcado por rigorosas condições naturais, entre as quais
se incluem as mais baixas temperaturas já registradas no planeta, de até -90º C.
[...]
Um aspecto natural relevante da Antártica é o fato de que o gelo que cobre seu
território equivale, segundo certas estimativas, a até 90% das reservas de água
potável do planeta. Outro é que o continente abriga presumivelmente grandes
reservas minerais, inclusive aquelas de evidente interesse energético, como o
petróleo. Tais reservas encontram-se intocadas, protegidas pela camada de gelo
e por norma internacional.
[grifos nossos]
3
Evidentemente, não se trata de um processo de mero rateio territorial, nem de uma
política passiva e desinteressada de conservação de recursos naturais potencialmente
desconhecidos (RODAS, 1976), mas de uma estratégia geopolítica de dimensões ainda não
experimentadas no decorrer da história. A respeito da adesão ao Tratado da Antártida, Andrade
et al (2018, p. 14) informam que
Atualmente, 53 países fazem parte do Tratado da Antártica. Seu principal fórum
decisório, as Reuniões das Partes Consultivas do Tratado da Antártica (ATCM),
ocorre anualmente e conta com a participação dos países-membros, além de
observadores técnico-científicos (como o SCAR [Comitê Científico sobre Pesquisa
Antártica]) e especialistas no tema. Além dos doze países originalmente signatários,
existe uma segunda categoria composta por Estados que, tendo demonstrado
substancial pesquisa científica na região, ganharam direito à participação plena nas
ATCMs, com poder de voto e de veto. [...] [grifo nosso]
Diante das dimensões do direito em questão e da quantidade de Estados envolvidos, o
Tratado da Antártida talvez seja maior operação jurídico-estratégica interestatal, de escala
jamais vista – ou em favor da sustentabilidade econômico-ambiental mundial; ou em favor de
interesses ainda insondáveis de forças políticas igualmente qualificáveis que teriam os
Estados somente por anteparo jurídico (GOODSITE et al, 2016).
Diante do exposto, torna-se necessário compreender mais profundamente algumas
cláusulas desse dispositivo legal no que tange às implicações práticas no universo jurídico e
às afetações mais concretas sobre o espaço geográfico e, por consequência, da dinâmica
geopolítica experimentada em escala mundial e em potências regionais emergentes, como o
Brasil (AGNEW e MUSCARÀ, 2012).
1 DA NATUREZA DO TRATADO DA ANTÁRTIDA
Inicialmente, para o estabelecimento de referência conceitual no âmbito do Direito,
remete-se ao jurista Francisco Rezek (2011, p. 38), que conceitua um tratado como
[...] todo acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito internacional
público, e destinado a produzir efeitos jurídicos. Na afirmação clássica de Georges
Scelle, o tratado internacional é em si mesmo um simples instrumento; identificamo-
lo por seu processo de produção e pela forma final, não pelo conteúdo. [grifos do
autor]
Quando há acordo entre duas ou mais partes distintas para consecução de objetivos
comuns é necessário examinar atenciosamente a natureza do contrato acordado entre elas para
4
que seja possível uma análise técnico-jurídica sobre o assunto. Independentemente da escala
considerada, é possível aplicar essa mesma lógica ao assunto abordado nestas considerações.
Em termos de análise de constitucionalidade, a adesão do Brasil ao Tratado, em
princípio, não poderia ser considerada inconstitucional, pois alinha-se com premissas
previstas na Constituição (BRASIL, 1988) – outorgada praticamente três décadas depois da
assinatura do Tratado da Antártida – como das que tratam dos princípios gerais da atividade
econômica e da proteção do meio ambiente, por exemplo, nos Artigos 23, inciso VI; 170,
incisos I e VI; e 225, caput – embora não se trate de uma unanimidade no mundo jurídico,
haja vista o disposto no Artigo 49, inciso I, da Constituição (BRASIL, 1988; e SANTOS,
2017, p.107).
Observe-se, ainda nos limites da norma brasileira, que os impactos no mundo jurídico
podem se estender, inclusive, aos direitos relacionados ao usufruto dos recursos paisagísticos
antárticos, objeto do Direito do Turismo, conforme verificado no Artigo 23 do Decreto nº
7.381, de 2 de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010):
Em observância aos termos do Decreto no 75.963, de 11 de julho de 1975, que
promulgou o Tratado da Antártida, e aos termos do Decreto no 2.742, de 20 de
agosto de 1998, que promulgou o protocolo ao Tratado da Antártida sobre
proteção ao meio ambiente, os prestadores de serviços turísticos que oferecerem
serviços turísticos, em qualquer das modalidades descritas neste Decreto, a Sul
do paralelo sessenta graus Sul, deverão enviar previamente ao Ministério do
Turismo pedido de autorização para a realização da atividade, contendo, entre
outras informações, o roteiro, as atividades que serão desenvolvidas, o número de
passageiros e o itinerário, observado o preenchimento do formulário específico, cujo
modelo será provido pelo Programa Antártico Brasileiro. [grifo nosso]
Em abordagem ampla e preliminar, o Tratado da Antártida (BRASIL, 19753), Artigo
IX, aduz sobre direitos e deveres inerentes à natureza jurídica do dispositivo legal:
1. Os representantes das Partes Contratantes, mencionadas no preâmbulo deste
Tratado, reunir-se-ão [...] para o propósito de intercambiarem informações,
consultarem-se sobre matéria de interesse comum pertinente à Antártida e
formularem, considerarem e recomendarem a seus Governos medidas
concretizadoras dos princípios e objetivos do Tratado, inclusive as normas relativas
ao:
a) uso da Antártida somente para fins pacíficos;
b) facilitarão de pesquisas científicas na Antártida;
c) facilitarão da cooperação internacional da Antártida;
d) facilitarão do exercício do direito de inspeção previsto no Artigo VII do Tratado;
e) questões relativas ao exercício de jurisdição na Antártida;
f) preservação e conservação dos recursos vivos na Antártida. [grifos nossos]
3 Doravante, será utilizada a tradução constante no Decreto nº 75.963, de 11 de julho de 1975, que promulga o
Tratado da Antártida.
5
Em uma breve análise sobre esse trecho do Tratado, pode-se verificar que os tópicos
apresentados têm em comum na sua estrutura direitos e deveres já estabelecidos, elementos
básicos de um contrato de adesão que conduz ao estabelecimento de implicações diretamente
relacionadas ao direito internacional, mais especificamente sobre o tema soberania (RODAS,
1976, p. 152) – compreendido de tantas formas diferentes quanto o número de partes
envolvidas na questão antártica.
2 DA ANÁLISE DOS OBJETIVOS DO TRATADO DA ANTÁRTIDA
Tais pressupostos já apresentados, compreendidos como obrigações contratuais
multilaterais, partindo dos princípios do pacta sunt servanda e da boa-fé (REZEK, 2011, p.
35), gerariam responsabilidades objetivas em torno das seguintes premissas abstratas. À
análise das propostas dispostas nas cláusulas do Tratado:
a) “fins pacíficos” – talvez um dos objetivos mais antigos da Humanidade, e
obviamente não alcançado até o presente, especialmente na dimensão mundial
(MORGENTHAU, 1986; e CLAUSEWITZ, 2010), seja o primeiro propósito apresentado
pelo Tratado e deixa patente sua finalidade e natureza. Sela-se, assim, o compromisso entre as
partes para que não haja conflitos decorrentes da ocupação territorial da Antártida,
independentemente dos recursos que ali forem explorados;
b) “pesquisas científicas” – um dos elementos mais importantes para o
estabelecimento da paz é a superação da ignorância, que vem por meio do conhecimento.
Nesses termos, há um tópico no Tratado que aborda a preocupação com as pesquisas
científicas, que podem ir desde estudos sobre solos e suas propriedades (TEDROW e
UGOLINI, 1966) à produção de alimentos em ambientes antárticos (SUZUKI e SHIBATA,
1990).
Ferreira (2009, p. 64) descreve parte da estrutura orgânica responsável pela
organização das atividades de pesquisa científica na Antártida:
Para promover e coordenar a pesquisa científica na Antártica foi criado, ainda no
âmbito do AGI [Ano Geofísico Internacional], o Scientific Committe [sic.] on
Antarctic Research (SCAR), um comitê do ICSU [Conselho Internacional para
Ciência], cujos membros são organizações de âmbito nacional representantes das
comunidades científicas de seus países, divididos entre membros plenos e
associados, de acordo com o envolvimento na Antártica. Além disso, algumas
associações científicas internacionais (Unions), membros do ICSU, também fazem
parte do SCAR, que conta com um Comitê Executivo e um secretariado, sediado no
Instituto Scott de Pesquisa Polar, Cambridge, Reino Unido.
6
Ferreira (2009, p. 90), com vistas a explicar a natureza ética das pesquisas científicas
naquela região, constata ainda que “A proteção do meio ambiente e a importância da Antártica
como laboratório privilegiado para pesquisas científicas são afirmados como valores
fundamentais para quaisquer considerações ou atividades no continente [...]”;
c) “cooperação internacional” – trata-se de um princípio que vem ganhando densidade
desde o término da Segunda Guerra Mundial, mais especificamente após a criação da Liga das
Nações, esboço da Organização das Nações Unidas (ONU).
Muito mais do que uma ideia abstrata, a expressão tem se consolidado como a ação
necessária para a manutenção das relações internacionais contemporâneas (LACHS, 1994, p.
100-102), visto que confirma o status de interdependência cada vez maior de sujeitos de
direito, público ou privado, ao redor do mundo, visto que o “bem comum” tem que ser levado
em conta nas mais diversas decisões que afetam a disponibilidade de recursos naturais
(SATO, 2010 p. 46-49);
d) “direito de inspeção” – neste ponto, o Tratado faz referência direta ao artigo VII
(BRASIL, 1975):
1. A fim de promover os objetivos e assegurar observância das disposições do
presente Tratado, cada Parte Contratante, cujos representantes estiverem
habilitados a participar das reuniões previstas no Artigo IX, terá o direito de
designar observadores para realizarem os trabalhos de inspeção previstos no
presente artigo. Os observadores deverão ser nacionais das Partes Contratantes que
os designarem. Os nomes dos observadores serão comunicados a todas as outras
Partes Contratantes, que tenham o direito de designar observadores e idênticas
comunicações serão feitas ao terminarem sua missão.
2. Cada observador, designado de acordo com as disposições do Parágrafo 1 deste
artigo, terá completa liberdade de acesso, em qualquer tempo a qualquer e a todas as
áreas da Antártida.
3. Todas as áreas da Antártida, inclusive todas as estações, instalações e
equipamentos existentes nestas áreas, e todos os navios e aeronaves em pontos de
embarque ou desembarque na Antártida estarão a todo tempo abertos à inspeção de
quaisquer observadores designados de acordo com o Parágrafo 1 deste artigo.
4. A observação aérea poderá ser efetuada a qualquer tempo, sobre qualquer das
áreas da Antártida por qualquer das Partes Contratantes que tenha o direito de
designar observadores.
5. Cada Parte Contratante no momento em que este Tratado entrar em vigor,
informará as outras Partes Contratantes e daí por diante darão notícia antecipada de:
a) todas as expedições com destino à Antártida, por parte de seus navios ou
nacionais, e em todas as expedições áreas da Antártida a Antártida organizadas em
seu território ou procedentes do mesmo;
b) todas as estações antárticas que estejam ocupadas por súditos de sua
nacionalidade; e,
c) todo o pessoal ou equipamento militar que um país pretenda introduzir na
Antártida, observadas as condições previstas no Parágrafo 2 do Artigo I do presente
Tratado. [grifos nossos];
7
e) “jurisdição na Antártida” – trata-se de uma categoria de análise jurídica aplicada ao
caso concreto, que traz em duas implicações legais: a primeira sobre o território propriamente
dito; e a segunda sobre as ações de cada indivíduo que ali estiver exercendo o interesse do seu
Estado. Sobre este, o Artigo VIII (BRASIL, 1975) dispõe que
1. A fim de facilitar o exercício de suas funções, de conformidade com o presente
Tratado, e sem prejuízo das respectivas posições das Partes Contratantes
relativamente à jurisdição sobre todas as pessoas na Antártida, os observadores
designados de acordo com o Parágrafo 1 do Artigo VII e o pessoal científico
intercambiado de acordo com o subparágrafo 1(b) do Artigo III deste Tratado, e os
auxiliares que acompanhem as referidas pessoas, serão sujeitos apenas à
jurisdição da Parte Contratante de que sejam nacionais, a respeito de todos os
atos ou omissões que realizarem, enquanto permaneceram na Antártida, relacionados
com o cumprimento de suas funções.
2. Sem prejuízo das disposições do Parágrafo 1 deste artigo, e até que sejam
adotadas as medidas previstas no subparágrafo 1 (e) do Artigo IX, as Partes
Contratantes interessadas em qualquer caso de litígio, a respeito do exercício de
jurisdição na Antártida, deverão consultar-se conjuntamente com o fim de
alcançarem uma solução mutuamente aceitável. [grifo nosso]
Note-se que se trata de uma resolução relativamente simples, pois o indivíduo que está
em função do seu respectivo Estado é tratado como se nele ainda estivesse. Sobre as
implicações territoriais, o Tratado expõe no seu Artigo IV (BRASIL, 1975), que
1. Nada que se contenha no presente Tratado poderá ser interpretado como:
a) renúncia, por quaisquer das Partes Contratantes, a direitos previamente invocados
ou a pretensão de soberania territorial na Antártida;
b) renúncia ou diminuição da posição de qualquer das Partes Contratantes quanto ao
reconhecimento dos direitos ou reivindicações ou bases de reivindicação de algum
outro Estado quanto à soberania territorial na Antártida.
2. Nenhum ato ou atividade que tenha lugar, enquanto vigorar o presente
Tratado, constituirá base para proclamar, apoiar ou contestar reivindicação
sobre soberania territorial na Antártida. Nenhuma nova reivindicação, ou
ampliação de reivindicação existente, relativa à soberania territorial na
Antártida será apresentada enquanto o presente Tratado estiver em vigor.
[grifos nossos]
Por conta da atual elasticidade do conceito de “soberania” (REZEK, 2011) nos dias
atuais, acredita-se que os termos dispostos no artigo supracitado não são bastante
autoevidentes acerca das responsabilidades jurisdicionais de cada Estado-parte do Tratado,
conforme pode corroborar Ferreira (2009, p. 46) ao explicar que
Tamanha ambiguidade gerou diversas críticas ao longo dos anos: o Tratado seria
uma não solução à questão territorial, [pois] contém dispositivos ambíguos e pontos
importantes em aberto (como o tema da jurisdição, por exemplo) e não prevê
providências para a exploração de recursos naturais.
8
[...] A possibilidade de exploração de recursos naturais estava presente nas mentes
de todos na conferência, mas qualquer referência a esse tema necessariamente
levantaria novamente o imbróglio territorial.
As alternativas ao Tratado seriam uma organização com traços supranacionais ou a
ausência de um regime, ambas obviamente indesejadas pelos países participantes
[...].
f) “preservação e conservação de recursos vivos na Antártida” – outro ponto bastante
sensível disposto no corpo do Tratado da Antártida, mas que é tratado de modo deveras
superficial –, conforme confirma Ferreira (2009, p. 67): “O Tratado não faz menção ao uso de
recursos naturais, a não ser pela breve nota nas atribuições das ATCMs [Reuniões Consultivas
do Tratado da Antártida]”. Contudo, essa lacuna é preenchida de alguma forma por meio de
dispositivos legais ainda incipientes, segundo a Secretaria do Tratado Antártico (2019),
quando trata do tópico “proteção ambiental”:
La protección del medio ambiente ha sido un tema central de la cooperación
entre las Partes del Tratado Antártico. En 1964 la RCTA [Reunião Consultiva do
Tratado da Antártida] adoptó las Medidas Convenidas para la Conservación de la
Fauna y de la Flora en la Antártida. Estas Medidas sentaron las bases de un
sistema regulatorio con reglas generales y normas específicas que
proporcionaban protección adicional en las zonas especialmente protegidas.
Posteriormente, la RCTA adoptó varias medidas sobre diversos asuntos para ampliar,
complementar y fortalecer la protección del medio ambiente antártico.
Quase três décadas depois, em 4 de outubro de 1991, o Protocolo de Madri, foi
assinado por algumas partes (SECRETARÍA DEL TRATADO ANTÁRTICO, 2019) e passou
a entrar somente em vigor em 14 de janeiro de 1988.
Sobre a complexidade das relações jurisdicionais e territoriais, logo políticas em torno
da Antártida, Menegatto e Virgillito (2013, p. 1713) consideram, em caráter sintético, que
Em tempos de grandes preocupações com as questões ecológicas e climáticas, um
continente que abriga fonte abundante de recursos para a sociedade científica e para
as empresas coloca em evidência as relações de apropriação estabelecidas em torno
do tratado. O espírito de cooperação cria uma noção de fluidez espacial, que,
dialeticamente, gera nódulos de tensão territorial, haja vista a divergência de
interesses entre as nações envolvidas.
Waeyenberge (2017, p. 11), partindo de categorias de análise mais amplas, avança nas
considerações sobre as implicações práticas do papel da globalização sobre o mundo jurídico:
O processo de globalização atualmente em curso afeta não apenas a economia e o
nosso modo de vida mas também os próprios fundamentos do nosso direito, das
nossas instituições políticas e da nossa democracia. Ela não se traduz em uma
integração pacífica e gradual, a nível internacional, de regras e instituições
elaboradas no âmbito interno dos Estados. Na verdade, trata-se de um
9
movimento duplo onde, de um lado, se tem a fragilização e a destruição das
regras existentes e, do outro, o surgimento e a ascensão ao poder de novos
dispositivos normativos globais, cuja eqüidade [sic.] e legitimidade são
freqüentemente [sic.] questionadas. Na prática, a globalização não leva à criação
espontânea de um direito global, mas sim à competição entre os Estados,
através da concorrência regulatória das ordens jurídicas nacionais [...]. Ao
mesmo tempo, o modelo internacional, baseado no acordo entre os Estados, se
esgotou em um contexto de mundo multipolar, onde os conflitos de interesse
impedem o alcance de consensos sobre boa parte das principais questões políticas
globais, como a regulação das fianças, do comércio e da economia; a partilha menos
desigual da renda e a nova questão social; a proteção do meio-ambiente e a luta
contra o aquecimento global; e a segurança coletiva, a manutenção da paz e a
proteção dos direitos humanos. [grifos nossos]
Note-se que o autor contextualiza geopoliticamente o cenário político-jurídico no qual
foi assinado o Tratado, assim como consequências mais ou menos previsíveis – o que
significa dizer necessariamente que não se trata de um tema jurídica e diplomaticamente tido
por pacífico.
Ainda considerando o fenômeno suscitado por Waeyenberge, convém assinalar que
não há unanimidade, mesmo no século XXI, acerca da legitimidade do Tratado da Antártica,
conforme pode demonstrar o ponto de vista crítico manifestado por Sampaio (2015, p. 84):
O quão fundamental é a democracia para se aferir legitimidades às instituições
internacionais de governança global [...] Este é o caso do Sistema do Tratado
Antártico. Criado a partir da suspensão de reivindicações por soberanias
territoriais na região nos anos 1960, este regime internacional se consolidou e
evoluiu a partir da manutenção de um arranjo institucional que não resolvia a
questão da soberania, mas que garantia uma hierarquia interna entre seus
membros e uma distinção com relação aos atores externos a ele. [...] As razões
que justificam esse isolamento institucional antártico eram relacionados à
necessidade de preservar para melhor conhecer a região, desdobrando-se em
uma forte orientação institucional em prol da pesquisa científica e da
preservação ambiental. Além disso, a potencialidade subjacente de tensões e
conflitos na região levou à preocupação de se manter a paz e isso implicava o temor
de uma participação desenfreada de atores externos e dos diversos interesses
paralelos que inevitavelmente a acompanhariam.
Todavia, a identificação de um déficit democrático no Sistema do Tratado Antártico
não comprometeu seu processo de consolidação. [grifo nosso]
Tratam-se, claramente, dos motivos oficiais e que, por si sós, já seriam o suficiente
para tornar a região em um foco de tensões e de disputas territoriais de magnitudes ainda
desconhecidas.
3 DA PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NO TRATADO DA ANTÁRTIDA
Em termos geográficos, o Brasil é um país que apresenta relações climáticas
imediatamente diretas com o continente Antártico. Nesse sentido, o atual plano de ação
10
governamental, executado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (2013, p. 2) em
relação à Antártida destaca que: “A Antártica é uma das regiões mais sensíveis às variações
climáticas na escala global e os processos atmosféricos, biológicos, criosféricos, geológicos e
oceânicos que ocorrem naquela região afetam diretamente o Brasil” – o que justificaria, por si
mesmo, a presença do Estado brasileiro naquela região.
Em uma análise panorâmica, e em termos constitucionais, a assinatura do Tratado da
Antártida pelo Brasil, quase três décadas anterior à elaboração da Constituição brasileira,
atenderia o disposto no “Título VIII – Da ordem social”, especificamente no “Capítulo VI –
Do meio ambiente”. Trata-se de um tópico supralegal de valor estratégico incalculável,
embora condensado somente no Artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil
(BRASIL, 1988).
Claramente, o Artigo constitucional mencionado trata de ecossistemas circunscritos ao
território nacional, mas não veda a preocupação com a interdependência entre as mais
distintas regiões da superfície terrestre, sejam consideradas as dinâmicas das massas de ar,
seja a disponibilidade de recursos sobre o solo ou no subsolo (BALDRIGHI e PINHEIRO,
2016) na região antártica. Embora não se trate da constituição brasileira, mas da portuguesa,
Canotilho (2010, p.13), partindo de premissas mais amplas e duradouras, daí sua validade,
trata da necessidade do desenvolvimento de um Estado de direito democrático e ambiental:
[...] A articulação de problemas ecológicos de primeira geração [valores relacionados
à liberdade] com os problemas de segunda geração [valores relacionados sociais,
econômicos e políticos] obriga a dar arrimo jurídico-constitucional a novas
categorias dogmático-constitucionais. Aludiremos, em primeiro lugar, à chamada
responsabilidade de longa duração [...] [que] convoca [...] quatro princípios básicos
intrinsecamente relacionados: o princípio do desenvolvimento sustentável [...], o
princípio do aproveitamento racional dos recursos [...], o princípio da
salvaguarda da capacidade de renovação e estabilidade ecológica destes
recursos [...] e o princípio da solidariedade entre gerações [...]. [grifos do autor]
Note-se que os fundamentos apontados por Canotilho fazem parte das discussões
contemporâneas dos mais altos interesses dos Estados, pois tratam-se de conceitos
intrinsecamente ligados ao bem-estar coletivo, no sentido mais amplo, caracterizando um
tema de discussão de longo prazo a ser discutido no âmbito do direito internacional.
Canotilho (2010, p. 14) continua suas considerações apontando que
[...] Como é sabido, o tema da responsabilidade de longa duração ganhou acuidade
depois da Conferência do Rio de Janeiro de 1992 ancorada no princípio de
“Sustainable Development”. Em termos jurídico-constitucionais, ela implica, desde
logo, a obrigatoriedade de os Estados (e outras constelações políticas) adoptarem
medidas de protecção ordenadas à garantia da sobrevivência da espécie humana e
11
da existência condigna das futuras gerações. Neste sentido, medidas de protecção e
de prevenção adequadas são todas aquelas que, em termos de precaução, limitam ou
neutralizam a causação de danos ao ambiente, cuja irreversibilidade total ou parcial
gera efeitos, danos e desequilíbrios negativamente perturbadores da sobrevivência
condigna da vida humana (responsabilidade antropocêntrica) e de todas as formas de
vida centradas no equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas naturais ou
transformados (responsabilidade ecocêntrica).
[...] A responsabilidade de longa duração pressupõe a obrigatoriedade não apenas de
o Estado adoptar medidas de protecção adequadas, mas também o dever de
observar o princípio do nível de protecção elevado quanto à defesa dos
componentes ambientais naturais. [grifos do autor]
A visão do autor consiste em uma visão contemporânea dos atuais problemas
ambientais experimentados em escala mundial. Portanto, a lógica jurídica desenvolvida pelo
autor aplica-se prática e irrestritamente sobre o ordenamento normativo brasileiro,
demonstrando que o Brasil, mesmo antes da assinatura do Tratado da Antártida, já estava
alinhado com as preocupações mais recentes sobre a perspectiva jurídico-ambiental e sua
abordagem pelos Estados. Em relação à Constituição brasileira de 1988, Rolim, Jatobá e
Baracho (2014, p. 54) apontam que
Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe, de forma
bastante expressiva e inédita, a proteção do meio ambiente, tinha-se pequena
produção legislativa regulando a matéria.
[...] surge a Constituição Federal de 1988, que eleva o tratamento do meio ambiente
ao patamar constitucional, fenômeno esse que a doutrina denomina de
“Constitucionalização do Direito Ambiental”, nascendo um Estado democrático
social de Direito Ambiental.
Rolim, Jatobá e Baracho (2014, p. 55) esclarecem ainda que a preocupação da
Assembleia Constituinte com o meio ambiente consolidou-se no texto constituinte, visto que
o
[...] direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto
no art. 225, caput, da Constituição Federal, é reconhecido como um direito de
eficácia plena e de terceira dimensão, pois estamos tratando de um bem
transindividual, coletivo. Criou-se o dever genérico para todos, Poder Público e
coletividade, na promoção de sua defesa e preservação para as presentes e futuras
gerações. Isso porque, o meio ambiente é de natureza difusa, não estando sujeito à
tradicional classificação dos bens em público ou privado, estando sob a tutela de
toda a coletividade.
Partindo desse contexto, afirma-se que o meio ambiente é um bem jurídico
unitário analisado por uma visão sistêmica e global, conglomerando seus
elementos naturais, artificiais (meio ambiente artificial) e o patrimônio histórico-
cultural, revelando uma interdependência mútua entre todos esses elementos que se
integram, neles incluído o homem. [grifos nossos]
12
Trata-se, portanto de um bem comum, por consequência, amplo, e consideravelmente
complexo, pois engloba fatores que independem da ação humana, como o meio ambiente
natural, e de outros atributos que são inerentes à ação humana, como a cultura e a tecnologia,
meios pelo quais o meio ambiente pode ser transformado, seja para a melhoria da qualidade
de vida ou mesmo o seu oposto.
O Brasil tornar-se-ia signatário do Tratado somente quase 16 (dezesseis) anos depois,
sendo publicado por meio do Decreto nº 75.963, de 11 de julho de 1975 (BRASIL, 1975).
Silva (2013, p. 65) faz uma breve abordagem histórico-diplomática no tocante à adesão do
Brasil ao Tratado da Antártida:
O Brasil demorou para adentrar nas discussões a respeito do continente antártico. O
primeiro momento que o governo brasileiro deparou-se com a questão foi em 1956,
quando houve a tentativa de inclusão dela por parte da Índia na Assembleia Geral
das Nações Unidas. Nessa ocasião, foi ressaltada a importância estratégica da
Antártida e também se especulou a respeito de possibilidades de o Brasil realizar
uma reivindicação territorial na região, porém, essa idéia [sic.] logo foi admitida
como inviável.
Novamente, o tema foi tratado pelo governo brasileiro em 1958, devido à realização
da Conferência de Washington. O Itamaraty manifestou-se em resposta à exclusão
do Brasil da Conferência sob a alegação de que este não havia desenvolvido
atividade científica na região, argumentando que esse não era o tema exclusivo
tratado na Conferência. Os brasileiros alegavam o direito de opinar sobre a Antártica
e que por motivos de segurança nacional não estavam obrigados por nenhuma
deliberação sem a sua participação e possuíam o direito de livre acesso à Antártica
como também de apresentar reivindicações que achar convenientes. O real motivo
de o Brasil não ser convidado foi devido ao receio dos EUA de, assim, permitir que
a URSS também convidasse outros países comunistas.
Corroborando Silva, Andrade et al (2018, p. 18) acrescentam ainda que “Internamente,
na segunda metade da década de 1950, houve importantes discussões sobre como deveria ser
a atuação brasileira em relação ao continente antártico. A importância estratégica da Antártica
era ressaltada em círculos acadêmicos e militares”. Doutrinariamente, Andrade et al (2018, p.
19) destacam que a influência sobre o governo brasileiro acerca de
Uma possível reivindicação territorial nas terras antárticas era baseada na teoria da
defrontação, elaborada por professores vinculados ao Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), especialmente Therezinha de Castro e Carlos
Delgado de Carvalho. Segundo a teoria, a Antártica deveria ser dividida pelos
meridianos extremos dos territórios dos países do Hemisfério Sul, de modo que o
Brasil pudesse ter direito a parte do território antártico. Ademais, a forte influência
da região austral no clima brasileiro também foi levantada pelos estudiosos como
motivo para a reivindicação. [...]
13
Observe-se como o estabelecimento de um nexo de causalidade climático entre o
Brasil e a Antártida já era tido por estratégico nos anos 50 e sua relação direta com os direitos
ambientais no Brasil já era conhecida.
Em relação ao Protocolo de Madri, seus efeitos jurídicos passaram vigorar sete meses
antes da publicação do Decreto nº 2.742, de 20 de agosto de 1998 (BRASIL, 1998; e
MARINHA DO BRASIL, 2016, p. 5). Silva (2013, p. 79-80) explica que
[...] O Brasil assinou o Protocolo de Madri em 4 de outubro de 1991, o qual foi
incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 2.742 de 1998, após ser
aprovado pelo Congresso em 1995. O país já havia adotado as estipulações do
Protocolo antes mesmo dele [sic.] entrar em vigor: já [em] 1991 todas as atividades
do Proantar eram de acordo com o Protocolo de Madri.
Nos anos 90, as delegações brasileiras receberam instruções para que atuassem nas
ATCMs com vistas a fortalecer o Tratado da Antártica e o Protocolo de Madri. [...]
Ainda em consulta a documento oficial publicado pela Marinha do Brasil (2016, p. 5)
sobre o Protocolo de Madri, compreende-se sucintamente sobre a natureza dessa
regulamentação do Tratado da Antártida:
O Protocolo de Madri concedeu à Antártica o status de “Reserva Natural
Internacional dedicada à Ciência e à Paz” e só poderá ser modificado em 2048, desde que haja acordo unânime dos membros consultivos do Tratado da Antártica.
Além disso, por seu intermédio, foi criado o Comitê para a Proteção Ambiental
(CPA), formado por peritos que se reúnem anualmente, com o propósito de emitir
recomendações a serem apresentadas na ATCM.
O Protocolo de Madri conta, no momento atual, com cinco anexos, os quais
especificam normas de proteção ambiental e retratam as recomendações
devidamente aprovadas ao longo do tempo, todas integradas em um instrumento
jurídico. Dessa forma, novos anexos podem ser criados e os existentes modificados
por meio de Medidas, Decisões e Resoluções aprovadas nas ATCM [sic.].
Efetivamente, o Brasil deu início à sua presença na Antártida por meio do Programa
Antártico Brasileiro (PROANTAR), em 1982, ocasião em que realizou a primeira versão da
“Operação Antártica” (JESUS e SOUZA, 2007, p. 8) – a implantação do PROANTAR era
responsabilidade da Comissão Nacional para Assuntos Antárticos (CONANTAR), conforme o
Decreto nº 88.245, de 20 de abril de 1983 (BRASIL, 1983), revogado pelo Decreto nº 123, de
20 de maio de 1991 (BRASIL, 1991), que se encontra em vigor.
No ano seguinte, o Brasil passa para o status de Membro Consultivo do Tratado. Daí
em diante, foram várias incursões à região antártica realizadas pelo Governo do Brasil
(MARINHA DO BRASIL, 2016, p. 6), nos termos do Tratado, tornando o PROANTAR um
programa interministerial bastante amplo e estratégico para o Estado brasileiro (ANDRADE
et al, 2018).
14
Em 6 de fevereiro de 1984, a Estação Antártica Comandante Ferraz, localizada na ilha
King George, baía do Almirantado, foi instalada e a partir dela têm sido desenvolvidas
pesquisas das mais diversas, que têm tomado dimensões cada vez maiores haja vista o
estabelecimento de redes de pesquisa relacionadas à qualidade dos recursos ambientais
analisados, contemplando o intercâmbio de informações (ALVAREZ et al, 2004).
A despeito do incêndio que destruiu cerca de 70% das instalações da única base
brasileira localizada na Antártida, em 25 de fevereiro de 2012, a Estação está em constante
processo de aperfeiçoamento (JESUS e SOUZA, 2007; e ESTAÇÃO, 2019) e de
reestruturação nas mais diversas áreas (MMA, 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ramo do Direito Internacional, como subárea de conhecimento autônoma, tem
experimentado um verdadeiro aperfeiçoamento quando levado em consideração o fenômeno
Antártida como problema contemporâneo das relações internacionais, um dos temas mais
relevantes do direito internacional público na atualidade. Dado o exposto, é provável que
conceitos como soberania, jurisdição, Estado, bem comum e paz nunca tenham estado tão em
xeque diante de tal caso concreto.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que é inegável o avanço tecnológico alcançado pela
Humanidade, assim como sua influência sobre os resultados obtidos nas mais diversas áreas
de conhecimento nos últimos sessenta anos sobre e sob o solo antártico – mesmo que se parta
do princípio de que nem todo resultado de pesquisa sobre qualidade do ar, do solo e da água
sejam trazidos a público.
Em tempos de direitos de quarta geração, verifica-se por meio de breve análise das
ações políticas em torno do Tratado da Antártida, que muitos países (na verdade, mais de dois
terços) sequer fazem jus à geração de direitos anterior, pelo simples fato de não terem acesso
aos recursos disponíveis na região da Antártida.
De fato, o Brasil tem se projetado positivamente nas últimas décadas nesse contexto
internacional, torna-se, portanto, um Estado privilegiado, independentemente das dimensões
da área antártica à qual tem tido acesso; mesmo quando comparado seu investimento e seus
esforços econômica e politicamente sensíveis com outros países, como os Estados Unidos, por
exemplo. Em todo caso, ainda há muitos recursos a serem explorados, desde a paisagem –
com vistas ao turismo – até a que se encontra no leito marinho e no subsolo antártico – com
vistas à exploração mineral.
15
Pode-se projetar que, diante das condições de disponibilidade de recursos naturais e da
contínua perda da qualidade de vida em diversos países, ou ainda mesmo do seu colapso, é
possível que a Antártida seja muito mais um futuro centro de discórdia do que de união, pois
promoverá privilégios inicialmente a uma oligarquia ou a quem se associar a ela.
Ou seja, de onde se espera atos pacíficos, em prol da coletividade global, é muito
provável que haja disputas pelos seus recursos, cujo potencial ainda é oficialmente
desconhecido. Não obstante a existência de um acordo internacional, não há garantias factuais
de que todas as cláusulas do contrato foram, estão sendo ou serão cumpridas ipsis litteris,
especialmente as que tratam do aspecto pacífico previsto para a Antártida.
REFERÊNCIAS
ACCIOLY, H.; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, P. B. Manual de Direito
Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2012.
AGNEW, J.; MUSCARÀ, L. Making Political Geography. 2. ed. Maryland: Rowman &
Littlefield, 2012.
ALVAREZ, C. E. de; CASAGRANDE, B.; CRUZ, D. O.; SOARES, G. R. Estação Antártica
Comandante Ferraz: um exemplo de adequação ambiental. In: I CONFERÊNCIA LATINO-
AMERICANA DE CONSTRUÇÃO SUSTENTÁVEL; X ENCONTRO NACIONAL DE
TECNOLOGIA DO AMBIENTE CONSTRUÍDO. Anais. São Paulo, 2004.
ANDRADE, I. de O.; MATTOS, L. F. de; CRUZ-KALED, A. C. da; HILLEBRAND, G. R. L.
O Brasil na Antártica: a importância científica e geopolítica do PROANTAR no entorno
estratégico brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2018.
ANTÁRTICA, um território internacional dedicado à ciência. Disponível em:
<www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/14844/Antartica--um-territorio-internacional-
dedicado-a-ciencia/>. Acesso em: 31 jul. 2019.
BALDRIGHI, R. de M.; PINHEIRO, L. M. Antártida: uma análise histórico-comparada das
presenças brasileiras e argentina no continente gelado. Disponível em:
<http://repositorio.asces.edu.br/handle/123456789/183>. Acesso em: 01 ago. 2019.
BRASIL. Decreto nº 75.963, de 11 de julho de 1975. Promulga o Tratado da Antártida. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 14 jul. 1975.
______. Decreto nº 88.245, de 20 de abril de 1983. Aprova o Regulamento da Comissão
Nacional para Assuntos Antárticos (CONANTAR). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22
abr. 1983.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 5 out. 1988.
16
______. Decreto nº 123, de 20 de maio de 1991. Aprova o Regulamento Consolidado da
Comissão Nacional para Assuntos Antárticos (CONANTAR). Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 21 maio 1991.
______. Decreto nº 2.742, de 20 de agosto de 1998. Promulga o Protocolo ao Tratado da
Antártida sobre Proteção ao Meio Ambiente, assinado em Madri, em 4 de outubro de 1991.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 ago. 1998.
______. Decreto nº 7.381, de 2 de dezembro de 2010. Regulamenta a Lei no 11.771, de 17 de
setembro de 2008, que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo, define as atribuições do
Governo Federal no planejamento, desenvolvimento e estímulo ao setor turístico, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 dez. 2010.
CANOTILHO, J. J. G. O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante do Direito
Constitucional. Tékhne, Barcelos, v. VIII, n. 13, 2010, p. 7-18.
CLAUSEWITZ, C. von. Da guerra. Tradução: Maria Teresa Ramos. 3 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
ESTAÇÃO Antártica Comandante Ferraz recebe nova infraestrutura de telecomunicações.
Disponível em: <https://www.defesa.gov.br/noticias/53710-marinha-inaugura-nova-
infraestrutura-de-telecomunicacoes-da-estacao-antartica>. Acesso em: 01 ago. 2019.
FERREIRA, F. R. G. O Sistema do Tratado da Antártica: evolução do regime e seu impacto
na política externa brasileira. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
GOODSITE, M. E.; BERTELSEN, R. G.; PERTOLDI-BIANCHI, S. C.; REN, J.; WATT, L.-
M. van der; JOHANNSSON, H. The role of science diplomacy: a historical development and
international legal framework of arctic research stations under conditions of climate changes
post-cold war geopolitics and globalization/power transition. Journal of Environmental
Studies and Sciences, New York, v. 6, n. 4, p. 645-661, dec. 2016.
JESUS, D. T. de; SOUZA, H. T. As atividades da Marinha do Brasil na Antártica. Oecologia
Brasiliensis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-13, 2007.
LACHS, M. O direito internacional no alvorecer do século XXI. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 8, n. 21, p. 97-118, maio-ago. 1994.
MARINHA DO BRASIL. Tratado da Antártica e Protocolo de Madri. 2. ed. Brasília:
Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, 2016.
MENEGATTO, M. S.; VIRGILLITO, G. S. Territórios fluidos: perspectivas de
territorialização do continente antártico. Revista Geonorte, Manaus, Edição Especial 3, v. 7,
n. 1, p. 1713-1727, 2013.
MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO. Ciência Antártica para o
Brasil: um plano de ação para o período 2013-2022. Brasília: MCTI, 2013.
17
MMA retoma estudos na antártica. Disponível em:
<https://www.mma.gov.br/informma/item/15489-mma-retoma-estudos-de-
descontamina%C3%A7%C3%A3o-na-ant%C3%A1rtica.html>. Acesso em: 02 ago. 2019.
MORGENTHAU, H. J. Política entre las naciones: la lucha por el poder y la paz.
Traducción: Heber W. Olivera. 3. ed. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1986.
REZEK,Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 13. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011.
RODAS, J. G. Brasil adere ao Tratado da Antártida. Revista da Faculdade de Direito, São
Paulo, v. 71, p. 151-161, 1976.
ROLIM, F. P. de; JATOBÁ, A. C. M. de O.; BARACHO, H. U. Sustentabilidade à luz da
Constituição de 1988: uma análise contemporânea. Revista CEJ, Brasília, ano XVIII, n. 64,
p. 53-60, set.-dez. 2014.
SAMPAIO, D. P. O Sistema do Tratado Antártico: a consolidação de um regime internacional
e o debate sobre seu déficit democrático. Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p.
83-104, jan.-jun. 2015.
SANTOS, L. E. F. dos. As alterações dos Anexos do Protocolo ao Tratado da Antártica
sobre Proteção ao Meio Ambiente: a constitucionalidade independentemente da não
submissão ao Congresso Nacional. 2017. 129 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Caxias do
Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2017.
SATO, E. Cooperação internacional: uma componente essencial das relações internacionais.
Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v.
4, n. 1, p. 46-57, mar. 2010.
SECRETARÍA DEL TRATADO ANTÁRTICO. Protección Ambiental. Disponível em:
<https://www.ats.aq/s/ats_environ.htm>. Acesso em 04 ago. 2019.
SILVA, F. R. da. O Sistema do Tratado da Antártica. 2013. 97 f. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Direito). Faculdade de Direito. Porto Alegre: Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2013.
SUZUKI, T.; SHIBATA, N. The utilization of Antarctic krill for human food. Food Reviews
International, v, 6. n.1, p. 119-147, 2009.
TEDROW, J. C. F.; UGOLINI, F. C. Antarctic Soils. Antarctic Research Series, Washington
D.C., v. 8., p. 161-177, 1966.
THE ANTARCTIC TREATY. Disponível
em:<https://documents.ats.aq/ats/treaty_original.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2019.
VIEIRA, F. B. O Tratado da Antártica: perspectivas territorialista e internacionalista.
Cadernos PROLAM/USP, ano 5, v. 2, p. 49-82, 2006.
18
WAEYENBERGE, Arnaud van. Direito Global: Uma teoria adequada para se pensar o direito
ambiental?. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 3, p. 9-19, 2017.