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JOELTON NASCIMENTO
2
A REPRODUÇÃO SOCIAL DA
DESIGUALDADE
Uma introdução
Primeira Edição
São Paulo
2015
A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE
3
Creative Commons , 2015, Joelton Nascimento
Fevereiro de 2015
1ª reimpressão: Maio de 2015
Este trabalho foi licenciado com a Licença Creative Commons
Atribuição-NãoComercial 1.0 Genérica. Para ver uma cópia desta
licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc/1.0/
Capa: PerSe
Fotografia na capa: Afeganistão (Pixabay) Domínio Público.
Revisão: Silvia Ramos Bezerra
JOELTON NASCIMENTO
4
Dedico este livro aos meus alunos, do
presente, do passado e do futuro, e
especialmente a André Manfrinate
(in memoriam)
JOELTON NASCIMENTO
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Sumário Apresentação ................................................................... 8
O que é a desigualdade? ................................................ 12
As origens da desigualdade ........................................... 20
As desigualdades à porta da modernidade .................... 32
A ascensão dos “moinhos satânicos” ............................ 46
As desigualdades e o espectro do comunismo .............. 54
Desigualdade e bem-estar social ................................... 66
Desigualdade e a saída neoliberal................................. 82
América Latina, século XXI: um passo adiante? ......... 94
A desigualdade no mundo hoje ................................... 104
Excurso sobre as relações sociais de fetiche .............. 112
A civilização ainda é rentável? .................................... 120
Bibliografia .................................................................. 130
Sobre o autor ............................................................... 132
JOELTON NASCIMENTO
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Apresentação
Em 26 de setembro de 2014, o liberiano Thomas
Duncan foi ao Pronto-Socorro de Dallas, Texas, para se
tratar dos sintomas de uma forte infecção. Ele informou à
enfermeira que havia cheg da Libéria havia poucos dias;
ela, entretanto, não repassou a informação adiante.
Duncan recebeu uma receita de antibióticos e foi enviado
para casa. Dois dias depois voltou para o Hospital em uma
ambulância por conta da piora aguda dos sintomas.
Finalmente, foi diagnosticado com Ebola, o mais mortal
dos vírus conhecido pelo homem. Duncan entrou em
contato com 80 pessoas desde que o avião que o trazia da
Libéria pousou em Dallas. Se qualquer uma destas
pessoas contrair o vírus seria o primeiro relato
documentado de um ser humano infectado por Ebola fora
da África.
Em fevereiro de 2014 um surto de Ebola, o maior já
registrado em toda a história, começou a causar a morte
de homens, mulheres e crianças em Guiné, na África. Em
seguida, o surto se espalhou para Serra Leoa, Libéria e
Nigéria. Em setembro daquele ano ouviu-se o
pronunciamento oficial de Joanne Liu, presidente da
Organização Não-Governamental Médicos Sem
Fronteiras, de que o surto seguia descontrolado. Em suas
palavras, "O anúncio da OMS (Organização Mundial da
Saúde) no dia 8 de agosto dizendo que a epidemia era uma
'emergência pública de saúde de preocupação
internacional' não levou a nenhuma ação efetiva, e os
países se juntaram em uma coalizão global de inércia".
Retenha essa expressão, coalizão global de inércia.
Em 27 de agosto de 2014, as pessoas mantidas
isoladas em quarentena na favela de West Point, na
Monróvia, capital da Libéria, se manifestaram contra o
isolamento, resistindo aos que o impunham. As mais
difíceis condições de vida do mundo, onde falta de tudo,
ainda eram acrescidas da terrível condição de sítio e de
A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE
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todos os problemas que isto implica. Os pobres estavam
agora isolados na presença do mais mortal dos vírus
conhecidos, como se a vida que levam já não fosse
suficientemente cercada de privações, dores e misérias.
Para conter a tentativa dos liberianos isolados de furar o
cerco, o exército abriu fogo contra alguns dos que
tentavam fugir. Ali estava, portanto, o cume do desespero:
favelados de um dos países mais pobres do mundo,
isolados e mantidos sem qualquer cuidado médico para
morrerem pela ação de um dos microrganismos mais
letais que se tem notícia; ao tentar escapar desta morte
quase certa são alvejados por tiros de fuzis. Um (a)cúmulo
de segregação, crueldade e abandono. As últimas notícias
dão conta de que uma cura para o Ebola está próxima de
se efetivar, provando que a miséria na África só não é
efetivamente combatida com a colaboração dos países
desenvolvidos pelo fato de não ser contagiosa.
Enquanto se celebra o desenvolvimento econômico
e a “nova classe média” na Índia, nas periferias de estados
como Delhi, Punjab, Meghalaya e Haryana as pessoas es-
tão literalmente encolhendo em face da desnutrição e das
condições sanitárias precárias na qual elas vivem. Entre
meados dos anos 80 e meados dos anos 2000 o peso e a
altura média de homens e mulheres na faixa dos 20 anos
diminuiu nestes estados, segundo os dados da Organiza-
ção Mundial da Saúde, como uma evidência biológica da
pobreza ali vivida.
Segundo dados veiculados pela Oxfam em janeiro
de 2015 oriundos de uma pesquisa do Credit Suisse, no
ano de 2014 apenas 1% dos mais ricos do mundo açam-
barcaram 48% de toda riqueza produzida no planeta, en-
quanto que os outros 99% dos adultos, incluindo os libe-
rianos de West Point, de Delhi, Punjab, Meghalaya e de
Haryana dividem o restante dos 52% das riquezas produ-
zidas por todos. Os mesmos pesquisadores concluíram
que até 2016 haverá uma assustadora virada e o 1% de
super-ricos terão mais renda e patrimônio que os 99% res-
tantes da humanidade.
JOELTON NASCIMENTO
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Os índices de desigualdade aferidos nos últimos
anos são testemunho de que nossas sociedades, banhadas
que estão em processos de racionalidade instrumental que
governa nossas máquinas automatizadas nas fábricas,
nossos aparelhos de comunicação, nossos computadores
pessoais e nossos veículos automotores, possuem um
forte núcleo socialmente irracional, um vórtice que leva
a profundas disparidades e que colocam em contraste os
sucessos obtidos nos campos das ciências, da tecnologia e
da medicina com os modos de vida e existência social e
biológica em regiões cada vez maiores repletas de miséria
e de carências. Por que em meio a tantas evidências, per-
manecemos, e não só em relação ao Ebola, em uma coa-
lizão global de inércia?
Este livro é um convite à reflexão sobre este
problema. Ele é composto de vários textos inéditos e de
alguns textos que escrevi para provocar o debate entre
meus alunos ao longo dos meus quase dez anos de ensino
na graduação. Eles formam capítulos curtos, de caráter
didático, que pretendem ser um convite para uma imersão
mais profunda em leituras e reflexões sobre um tema tão
urgente de nosso tempo que é a desigualdade social.
JOELTON NASCIMENTO
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O que é a desigualdade?
Como o título deste livro sugere, não faremos um
percurso genérico sobre a desigualdade. Nossa intenção é,
antes, falar sobre a reprodução social da desigualdade e
isto significa perguntar como a desigualdade social se
tornou aquilo que ela é; e isso implica também questionar
por que ela permanece sendo o que é. Somente pensando
sobre isso poderemos discutir mais consequentemente o
futuro da desigualdade social em nosso país e no nosso
mundo.
Ainda que mais adiante nos dediquemos a discutir a
criação da desigualdade entre os homens, tema enfrentado
por Rousseau em um clássico opúsculo do século XVIII
que também teremos a oportunidade de examinar mais à
frente, nosso foco se manterá na reprodução social das
desigualdades e isso significa que nos concentraremos no
modo como estas desigualdades se perpetuaram no tempo
e no espaço nas sociedades humanas.
Ademais, um enfoque ainda mais preciso é dado à
desigualdade da modernidade capitalista, e este enfoque
será feito pela razão de que se trata de um tempo histórico
onde as desigualdades sociais possuem um peculiar modo
de reprodução.
Portanto, este livro é um convite à reflexão a partir
da seguinte questão: como e por que as desigualdades
sociais se reproduzem hoje? Uma questão que se desdobra
em outras que podemos nos fazer ao longo de nossa
reflexão: como é possível a brutal desigualdade social em
um tempo histórico que logrou um avanço tecnológico e
médico tão profundos? Como isto é possível? Pensemos
um pouco nisso. Hoje um só produtor agrícola norte-
americano pode alimentar 126 pessoas com seu trabalho e
com a tecnologia disponível, entretanto, o número de
pobres e miseráveis aumenta a cada dia nos Estados
Unidos1. É um fato conhecido de todos o enorme avanço
1 Segundo o US Census Bureau, em 2012 a pobreza no Estados Unidos atingiu 16% da população, a maior marca desde 1993. Cf.
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13
da medicina nos últimos anos, que, sem sombra de dúvida,
tem hoje a possibilidade técnica e científica de curar e
salvar mais vidas do que nunca teve, entretanto, a diferença
na expectativa média de vida dos países é simplesmente
brutal. Vamos aos extremos. A expectativa média de vida
no Japão é de 84 anos e em Serra Leoa, 46, uma diferença
de 38 anos!2 Nem seria preciso lembrar os números do
Brasil, um dos países mais injustos do planeta. Eu
lembraria apenas que se trata da sétima economia mais
produtiva do mundo3, mas ainda estamos em 79ª em termos
de Desenvolvimento Humano das populações4, além de um
pouco mais de 10 milhões de pessoas na extrema pobreza5.
E aqui seria importante deixar claro as definições a
partir das quais faremos o nosso percurso. Em primeiro
lugar, precisamos definir o que é a desigualdade social.
Parece-nos que o sociólogo sueco Göran Therborn
nos deu um bom ponto de partida ao escrever o seguinte:
...a desigualdade é uma violação da
dignidade humana; é uma negação da
possibilidade de desenvolvimento da
capacidade humana de todos. Ela assume
diversas formas e tem diversos efeitos: morte
prematura, morte por doenças, humilhação,
sujeição, discriminação, exclusão do
conhecimento ou da vida social geral,
pobreza, desapoderamento, stress,
insegurança, ansiedade, falta de auto-
confiança e orgulho de si mesmo e a exclusão
de oportunidades e de chances de vida.
Desigualdade, então, não é apenas sobre o
tamanho de nossas carteiras. É uma ordem
http://goo.gl/wNDDL 2 Cf. os dados no site da Organização Mundial da Saúde. Disponível em:
http://goo.gl/amgxn 3 UOL. Brasil é 7ª maior economia, e China deve passar EUA logo, diz
Banco Mundial. 30/04/2014. Disponível em: http://goo.gl/c0HpJ2 4 BORGES, Bruna; CALGARO, Fernanda. IDH do Brasil melhora e supera média da AL; país é o 79º em ranking mundial. Uol. 24/07/2014.
Disponível: http://goo.gl/yrrpRQ 5 G1. Após 10 anos de queda, número de miseráveis volta a subir no Brasil. 05/11/2014. Disponível em: http://goo.gl/JR7y2Z
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socio-cultural, que (para a maioria de nós)
reduz nossas capacidades de funcionarmos
como seres humanos, nossa saúde, nossa
auto-estima, nosso senso de si, assim como
nossos recursos para agir e participar deste
mundo.6
Entretanto, tão instrutivo como afirmar o que é a de-
sigualdade, é concentrar esforços em pensar o que a desi-
gualdade não é.
Em primeiro lugar, desigualdade não é diferença.
As diferenças são naturais, como por exemplo, a etnia, o
sexo, a idade, ou escolhidas (estilo de vida, preferências
de consumo, etc.) e a desigualdade é socialmente constru-
ída e socialmente reproduzida. Rousseau chamava isso de
“desigualdades naturais”7, mas para que não haja equí-
vocos, chamaremos, nesse livro, estas distinções entre os
indivíduos de diferenças. A desigualdade é uma falta, uma
negação social de acesso a três aspectos da sociabilidade:
a vida, a existência e os recursos.
A vida é negada a uma grande parte da população
mundial, o que percebemos sem qualquer dificuldade ao
mirarmos na expectativa média de vida dos países do
mundo. Como vimos há pouco a diferença entre o Japão e
Serra Leoa é de 38 anos; uma desigualdade de 38 anos na
expectativa média de vida entre um país e outro não pode
de modo algum ser explicado pelas diferenças entre os in-
divíduos, por sua constituição genética (genotípica ou fe-
notípica), muito menos por suas escolhas individuais,
logo, se trata da resultante de uma construção e reprodu-
ção social e, por isso é uma desigualdade.
A existência é negada aos discriminados de todo os
tipos, quando lhes são fechadas as portas por conta de suas
diferenças, como no caso da discriminação racial e de gê-
nero; nestes casos, por exemplo, as diferenças se tornam
6 THERBORN, Göran, The Killing Fields of Inequality. Malden: Polity
Press, 2013 (e-book). 7 ROUSSEAU, J. J. A Origem da desigualdade entre os homens. Tradução: Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012.