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A revista DEP – Diplomacia, Estratégia e Política é um ......Mario Rapoport A transformação do Estado boliviano Luis Tapia A construção do modelo industrialista brasileiro

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A revista DEP – Diplomacia, Estratégia e Política é um periódico, editado em português, espanhol e inglês, sobre temas sul-americanos, publicado no âmbito do Projeto Raúl Prebisch, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores (MRE/Funag – Fundação Alexandre de Gusmão e seu Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais – Ipri), da Construtora Norberto Odebrecht S. A., da Andrade Gutierrez S. A. e da Embraer – Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A.

EditorCarlos Henrique Cardim

Endereço para correspondência:Revista DEP

Caixa Postal 2431Brasília, DF – Brasil

CEP 70842-970

[email protected]/dep

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

DEP: Diplomacia, Estratégia e Política/Projeto Raúl Prebisch no. 10 (outubro/dezembro 2009) – . Brasília : Projeto Raúl Prebisch, 2009.

Editada em português, espanhol e inglês.

ISSN 1808-0480

1. América do Sul. 2. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. I. Projeto Raúl Prebisch.

CDU 327(05)

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Sumário

A integração sul-americanaCelso Amorim

Argentina: economia e política internacional. Os processos históricosMario Rapoport

A transformação do Estado bolivianoLuis Tapia

A construção do modelo industrialista brasileiroAmado Luiz Cervo

Economia e sociedade no Chile.Um retrospecto históricoLuciano Tomassini

Progressos e desafios na Colômbia de hojeAlfredo Rangel

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 10 Outubro / Dezembro 2009

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Formação socioeconômica do EquadorMarco P. Naranjo Chiriboga

Guiana: história e desenvolvimento econômicoTota C. Mangar

Paraguai: os desafios de uma economia mediterrâneaJuan Carlos Herken Krauer

Novos olhares sobre a formação econômica peruanaManuel Burga

Vista geral sobre a economia do Suriname nos séculos XIX e XXJerome Egger

Uruguai, região e inserção internacionalGerardo Caetano

Desafios da Venezuela no século XXIJorge Pérez Mancebo

Juventude na fazendaSylvia M. Gooswit

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A integração sul-americana*

Celso Amorim**

Queria começar com algumas reflexões e alguns fatos sobre a integração da América do Sul, no quadro mais amplo da integração da América Latina e do Caribe. Evidentemente, não é minha pretensão fazer um histórico de todos os esforços de integração que houve desde as utopias bolivarianas e de outros libertadores no início da nossa vida independente, até os primeiros ensaios concretos com a Alalc, nos anos 60, com a Aladi mais tarde. Eu vou me deter na parte mais recente, em que eu tive experiência pessoal e sobre a qual eu posso acrescentar alguma coisa que talvez vocês não encontrem nos livros: uma visão específica de quem teve a sorte, o acaso ou a coincidência de participar de vários momentos dessa integração nos anos mais recentes. Eu me refiro propriamente ao processo de criação do Mercosul até os nossos dias.

Não vou me estender excessivamente sobre cada um deles, mas, gostaria de fazer uma breve referência a cada processo em que nós estivemos envolvidos. Primeiro, o Mercosul. Como começou o Mercosul? Vocês já terão

* Conferência de abertura do VI Curso para Diplomatas Sul-Americanos, organizado pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e seu Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri). Rio de Janeiro, 9 de abril de 2009.

** Ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil. [email protected]

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A integração sul-americana

ouvido isso de outras pessoas. Vocês encontraram o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que foi muito ativo nesse processo, antes um pouco até do início do Mercosul propriamente dito, no processo de aproximação Brasil e Argentina. Isso é crucial. Os argentinos e brasileiros sabem disso muito bem, creio que os outros membros do Mercosul também o sabem, mas, talvez nos outros países isso não esteja tão claro.

Na realidade, o grande impulso à aproximação Brasil-Argentina foi de natureza política. Quando os dois países saíam de governos militares, governos autoritários, eles perceberam que era preciso criar uma comunidade de interesses e que essa comunidade de interesses não poderia se esgotar nos contatos políticos. Era importante que essa comunidade de interesses também se lastreasse na parte econômica. Foi por isso que, no processo de aproximação Brasil-Argentina, se deu tanta ênfase ao aspecto comercial desde o primeiro momento. Estou me referindo ao ano de 1985, quando o Presidente Alfonsín – recentemente falecido, o que todos nós lamentamos e sentimos profundamente porque foi um grande democrata da região – e o Presidente Sarney – que não por coincidência nos representou nas homenagens após a morte do Presidente Alfonsín – iniciaram um processo de diálogo que teve várias vertentes.

Não foi apenas a vertente econômica. Teve, por exemplo, uma vertente muito importante na área da energia nuclear. Até então se dizia que Brasil e Argentina competiam, que queriam ter a bomba atômica e que a bomba atômica brasileira serviria para jogar em Buenos Aires e a da Argentina serviria para jogar no Rio de Janeiro, ou em São Paulo, ou em Brasília. De qualquer maneira, havia essa ideia de uma grande rivalidade, de uma grande competição. Esse esforço também teve ramificações em outras áreas, como a área de ciência e tecnologia e a área cultural. Houve várias iniciativas importantes. Aliás, um pouco antes da inauguração da Ponte Tancredo Neves, pelo Presidente Alfonsín e Sarney, se realizou, em Foz do Iguaçu e Iguaçu, na Argentina, um Encontro sobre Biotecnologia. Na época, eu trabalhava na área de ciência e tecnologia e também estive envolvido com esse processo de alguma forma.

Houve, enfim, um grande esforço de aproximação econômica que foi muito importante, sobretudo, pelo que ele gerou de dinâmica política. Se estudarmos as estatísticas entre 1985 e 1990, verificamos que houve um grande esforço, uma grande movimentação entre os dois países, mas, os resultados propriamente comerciais foram pequenos. Eu deveria dizer também que, mais

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Celso Amorim

para o fim desse processo, em 1988 e 1989, o Uruguai começou a participar, de alguma maneira, porque havia encontros entre Brasil e Argentina, e o Presidente Sanguinetti era convidado.

A partir de 1990, curiosamente, e até paradoxalmente, quando Brasil e Argentina tinham governos mais voltados para uma política neoliberal, em período de grande abertura de mercados do Brasil para o mundo, e também da Argentina para o mundo, nesse período houve algo muito interessante no plano da integração regional. É importante notar isso porque vocês verão também o papel das burocracias de Estado. Muitas vezes, nós pensamos que as coisas ocorrem apenas num plano, ou só no plano burocrático, ou só no plano político. É claro que o impulso político é indispensável porque, sem o impulso político, nada segue, mas, as burocracias de Estado muitas vezes têm o seu papel também. Nesse caso da integração Brasil-Argentina e, logo em seguida, do conjunto do Mercosul, com o Uruguai e Paraguai, nesse momento crítico em que os países estavam fazendo uma abertura comercial muito grande para o mundo, foram principalmente, as burocracias de Estado que perceberam que, apesar dos riscos que poderia haver naquela abertura, havia também uma oportunidade para a integração, desde que nós soubéssemos aproveitar aquele momento, que já era caracterizado por certa abertura em relação a terceiros países, para fazermos uma abertura mais rápida entre nós mesmos.

Logo no início dos anos 90, esse processo vai se espelhar no Acordo de Complementação Econômica nº. 14, que é um Acordo Comercial entre o Brasil e Argentina, que prevê, de maneira mais clara, com tabelas e cronogramas, a eliminação das tarifas entre Brasil e Argentina, num prazo bastante ambicioso de cinco anos. Nós vimos depois que muitas coisas não puderam ocorrer como previsto. Mas, esse voluntarismo, talvez, característico dos políticos da época, ao mesmo tempo, com uma visão das burocracias de Estado de que era o momento para levar adiante o objetivo de maior aproximação entre Brasil e Argentina, a conjugação desses fatores permitiu que realmente se lançasse um processo dinâmico e irreversível. Logo a ele se juntou o Uruguai e, pouco depois, o Paraguai.

Vou falar um pouco da circunstância em que isso se deu. Já havia uma coordenação política com o Uruguai. O Paraguai estava ainda numa transição para um governo democrático e, consolidado esse governo democrático, ele se aproximou de nós também e foi incorporado ao processo. Mas, há um

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A integração sul-americana

fator muito interessante que vai levar a que essa negociação, inicialmente, entre Brasil e Argentina, e logo em seguida ampliada para Paraguai e Uruguai, resulte em algo mais ambicioso do que um acordo de livre comércio. O ACE 14 é essencialmente um acordo de livre comércio. Quando o Paraguai e o Uruguai se juntam – e isso coincide com o lançamento da Iniciativa para as Américas, pelo Presidente Bush, o pai – há a percepção de que é preciso haver uma posição conjunta, não só de Brasil e Argentina, mas também, de Uruguai e Paraguai, já nessa época envolvidos na negociação para liberar o comércio entre os quatro. Por que esse fato é importante? Porque foi a necessidade dessa negociação conjunta com os Estados Unidos que nos levou a evoluir da ideia de simplesmente liberalizar o comércio, para a ideia de uma política comercial comum. Por isso, levou à ideia também da tarifa externa comum, que é uma característica do Mercosul. Com todas as imperfeições que tem a tarifa externa comum, ela define uma união aduaneira, define um nível de integração, que é muito maior do que simplesmente uma área de livre comércio. Esse fator foi muito importante.

Eu poderia relatar vários episódios, que são muito longos, mas, tem um que me parece importante porque vai ter reflexos em processos subsequentes. Num primeiro momento, até porque o Paraguai era um país que vinha recentemente de um governo não democrático, a primeira ideia que surgiu para a coordenação de posições em relação aos Estados Unidos, envolvia quatro países: Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Na época, eu era Diretor de Assuntos Econômicos e acompanhei esse tema de perto. A primeira reunião que nós tivemos no Palácio do Itamaraty de Brasília – na sala que hoje nós chamamos “Sala Rui Barbosa”, em homenagem a um político diplomata, multilateralista, que o Brasil teve – verificou-se que não era possível ter uma posição comum porque o Chile tinha já uma política comercial estabelecida em bases diferentes. O Chile já havia adotado uma política em que as tarifas eram sistematicamente mais baixas do que as dos demais países que viriam a constituir o Mercosul. Embora a reunião tenha sido muito útil para troca de impressões e de conversas, ficou claro que não era possível, naquele momento, uma coordenação plena de posições. Esse momento coincidiu aproximadamente com as gestões do Paraguai para se integrar ao nosso processo de negociação. Então, houve uma coincidência no tempo, que é a incorporação do Uruguai e, depois, do Paraguai, a esse processo Brasil-Argentina, de liberalização comercial entre os países, e a necessidade de se ter uma frente comum para negociar com os Estados

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Celso Amorim

Unidos. Esse é um processo que vai redundar num acordo conhecido como “Acordo 4+1”, ou “Acordo Jardim de Rosas”, porque foi assinado lá no Jardim de Rosas da Casa Branca, entre o Mercosul e os Estados Unidos.

Uma peculiaridade das negociações que levaram a esse acordo é que foi a primeira vez que houve o exercício de uma coordenação efetiva, o que causou muita surpresa aos Estados Unidos. Quando falamos em “coordenação” não é uma figura de retórica, foi algo real. Isso causou muita surpresa aos Estados Unidos. Primeiro, eles relutaram muito em discutir com os quatro países. Eles achavam que deveriam discutir com cada país separadamente, ou no conjunto das Américas, digamos assim. Finalmente, aceitaram. Mas, mesmo depois que aceitaram, eles achavam que era uma reunião de cinco países e nós tivemos que explicar para eles que não era uma reunião de cinco países, mas sim, de 4+1. Inclusive, eu vou contar um pequeno episódio diplomático porque, vocês que estudaram história diplomática sabem como, às vezes, é importante o formato de uma mesa e isso apareceu nas conversações do fim da Guerra do Vietnã, ou nas conversações da ALCA. Enfim, isso acabou se refletindo no formato da mesa porque, em vez de se ter uma mesa de cinco, pentagonal, como os Estados Unidos haviam pensado que deveria ser feito, foi uma mesa de dois lados: de um lado o Mercosul e do outro lado os Estados Unidos. Isso foi possível graças a um exercício de coordenação realmente intenso. Como havia vários temas a serem tratados (serviços, propriedade intelectual, bens, antidumping, entre outros), nós organizamos a reunião de tal maneira que cada país fosse responsável pela exposição de um tema. Então, ficou claramente estabelecido que ali não estávamos negociando individualmente com os Estados Unidos. No passado, todo o nosso processo de integração aqui na região era “hub-and-spoke”. O que é “hub-and-spoke”? É o centro e o aro de uma roda. Ou seja, você só se integra com o outro passando pela grande potência. Em suma, se tiver que haver uma integração entre o Uruguai e a Guiana, teria que passar pelos Estados Unidos, entre o Brasil e a Argentina, também teria que passar pelos Estados Unidos. Ali, não era assim porque, claramente, nós estávamos atuando como um único bloco. Esse é um pequeno episódio que tem o seu interesse pela história das negociações. Mas, o mais importante é que o fato de termos que estabelecer essa frente comum nos impôs a tarefa de, muito rapidamente, chegarmos à definição quanto a termos uma tarifa externa comum entre os quatro países e a sermos uma união aduaneira.

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A integração sul-americana

Em 1991, foi assinado o Tratado de Assunção e, três anos depois, se concluiu o processo da união aduaneira propriamente dito. O processo de desgravação começou antes, a partir do Tratado de Assunção, mas, a aplicação da tarifa externa comum só começou a partir de 1994. Vale a pena dizer que, já então, os países procuraram se coordenar, inclusive, nas suas políticas em relação à OMC. O caso do Paraguai era um pouco diferente porque o Paraguai estava, ao mesmo tempo, negociando com o Mercosul, e negociando a sua adesão à OMC, então, estava recebendo demandas que eram um pouco diferentes. Como era um processo que já estava em andamento, isso teve que ser respeitado. Como também teve que ser respeitado o fato de que, tanto a Argentina, quanto o Brasil e o Uruguai, já tinham também feito concessões tarifárias, que já constavam das listas da OMC e essas nós não poderíamos mudar sem dar compensação em outras áreas. Isso seria algo complicado. O importante é que, já então, Uruguai, Argentina e Brasil procuraram coordenar as posições em relação à consolidação de tarifas na Rodada Uruguai. Vocês podem verificar que grande parte das tarifas dos três países, o “ceiling binding”, ou seja, o “teto tarifário” é de 35%. Nós conseguimos algumas exceções na área agrícola, em que alguns produtos chegam a 55%, mas são muito poucas. Na realidade, esse era o teto tarifário e isso nos permitia continuar discutindo a nossa tarifa externa comum.

Esse processo da discussão da tarifa externa comum, uma vez dado o impulso político e reconhecida a indispensabilidade de uma união aduaneira para poder agir frente ao mundo e para aprofundar a integração, se concluiu, basicamente, em 1994, quando foi assinado o Protocolo de Ouro Preto. Na realidade, o Protocolo de Ouro Preto não é sobre isso. É sobre a parte institucional do Mercosul. Mas, coincidentemente, na mesma ocasião, também se acertaram as bases da tarifa externa comum e as bases do regime automotivo. Tudo isso depois foi evoluindo, houve mudanças, mas as bases foram assentadas aí.

Vou contar apenas um ou dois episódios que me parecem importantes nesse processo. Havia no Brasil, e certamente também na Argentina, no Uruguai e Paraguai, muito ceticismo em relação ao Mercosul. Era muito comum as pessoas dizerem: “Por que perder tempo com países em desenvolvimento? O Brasil tinha que estar negociando com os Estados Unidos, separadamente, o Brasil tinha que buscar uma negociação com a União Europeia. Tudo bem que

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Celso Amorim

tenha um acordo comercial com a Argentina, com o Uruguai ou o Paraguai, isso não atrapalha, mas, por que esse esforço todo de criar uma união aduaneira e de ter uma tarifa externa comum?”. Havia essa percepção, esse ceticismo.

Participei da negociação do Tratado de Assunção. Saí, fui ser Embaixador em Genebra e voltei, primeiro, como Secretário Geral e, depois, como Ministro das Relações Exteriores. Voltei já com a ideia de ampliar, de poder trabalhar algo para o conjunto da América do Sul. Mas, eu quis testar um pouco os empresários brasileiros e trabalhar com a ideia de uma área de livre comércio sul-americana. Aliás, essa ideia foi exposta, pela primeira vez, pelo Presidente Itamar Franco, numa reunião do Grupo do Rio no Chile, em 1993. Depois eu explico por que uma área de livre comércio e não uma união aduaneira. Eu quis testar essa ideia. Como havia um Conselho Empresarial no Ministério das Relações Exteriores, que havia sido criado pelo meu antecessor à frente do Itamaraty e depois Presidente Fernando Henrique Cardoso, eu tive uma reunião com os empresários. Estavam presentes grandes banqueiros, industriais, o Olavo Setúbal, que era uma figura importante do setor financeiro e vários outros. Eu expus a ideia para eles de que achava importante nós termos um projeto não apenas para o Mercosul mas para toda a América do Sul. Até porque, naquela época, se confundia muito o Mercosul, com o Cone Sul. O Mercosul é o “Mercado Comum do Sul”, até para deixar essa abertura para outros países. A própria mídia brasileira, e até analistas que estudam esse assunto, dizem que é o “Mercado do Cone Sul”, o que não é e nem nunca foi. Até porque, o Brasil não se resume ao Cone Sul. Mesmo que nós queiramos, nós não podemos nos reduzir a isso. Nessa reunião, foram colocadas várias ideias. Eu me lembro até que o Embaixador Jeronimo Moscardo, que foi Embaixador na Aladi, antes de ser Ministro da Cultura, sugeriu que se elaborasse também um projeto para o norte. Isso era perfeitamente correto mas, simplesmente, não se podia cortar o Brasil em dois e fazer uma parte para o Merconorte e outra parte para o Mercosul. Então, nós tínhamos que ter um projeto que fosse, ao mesmo tempo, compatível com a existência do Mercosul e que pudesse abranger o conjunto da América do Sul. A ideia dessa área de livre comércio sul-americana surgiu nesse contexto. E eu resolvi testá-la com os empresários. A mesma classe empresarial, que havia manifestado tanto ceticismo, dois ou três anos antes de ser assinado o Tratado da Assunção, dizia: “Mas, temos que tomar cuidado para não prejudicar o Mercosul!”. Já naquela época, o Mercosul tinha se tornado uma fonte de receita muito importante para os empresários

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A integração sul-americana

brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios. Então, algo que antes era visto com grande ceticismo, era agora algo a ser preservado.

Quis enfatizar um pouco o nascimento do Mercosul e essa característica da tarifa externa comum e da união aduaneira porque tenho a convicção de que o Mercosul é o núcleo dinâmico para a integração da América do Sul, com todo o respeito à Comunidade Andina, que nós sabemos que foi pioneira na América Latina. O Pacto Andino foi uma ação de coragem do ponto de vista político, mas, do ponto de vista prático, acho que o núcleo dinâmico para a integração da América do Sul está no Mercosul porque foi o núcleo que criou maior densidade. Essa densidade está ligada ao fato de ele não ser apenas uma área de livre comércio, mas ser também uma união aduaneira, sem falar das outras características que ele desenvolveu na área social, na área política, tendo um Parlamento. Mas, a união aduaneira é o verdadeiro cimento do Mercosul.

Quando me perguntavam por que essa diferença, eu costumava dizer que a diferença é a história quem mostra. As áreas de livre comércio vêm e vão; as uniões aduaneiras ficam. Esse é um fato histórico. A União Europeia se baseia numa união aduaneira que foi crescendo, tendo mais políticas comuns. Hoje, grande parte dos países têm uma moeda comum. Nos primórdios, quando o Mercado Comum Europeu foi criado, havia um outro grupo de países que não queria ser parte da união aduaneira naquela época. Ser parte de uma união aduaneira impõe vantagens e limitações. Você não pode negociar livremente com outros sem ouvir os seus parceiros. Naquela época, criou-se o “European Free Trade Association” (EFTA), a área europeia de livre comércio. Eu não sei se muitas pessoas em torno dessa mesa se lembram do que foi o EFTA. Na realidade, ele ainda existe, mas, hoje em dia, está reduzido a quatro países. Não digo isso com nenhum demérito porque cada país tem seu projeto, mas o EFTA está reduzido à Suíça, Islândia, Noruega e Liechtenstein. A relevância do EFTA no mundo, como bloco, é muito pequena. Obviamente, a União Europeia tem uma relevância muito maior. Então, a importância de criar esse núcleo de integração, que é a união aduaneira, foi muito grande.

Já na época do Presidente Itamar pensou-se que, já que não era possível termos uma união aduaneira de toda a América do Sul, até porque, havia países que estavam começando a negociar acordos de livre comércio, ou tinham estruturas tarifárias mais baixas, como o Chile, ou pensavam em negociar

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Celso Amorim

acordos de livre comércio com os Estados Unidos ou outros países de fora da região, já que não era possível ter uma união aduaneira de toda a América do Sul, nós poderíamos, ao menos, ter uma área de livre comércio. Não era o mesmo nível de integração, mas era algum nível de integração. Então, essa ideia foi lançada e houve reações mistas, na época, por razões diferentes. Eu me lembro que alguns países estavam pouco entusiasmados com a ideia. Um deles era a Colômbia, talvez, porque já estivesse pensando em ter um acordo com os Estados Unidos, o que é mais do que legítimo e natural. Mas, enfim, não havia entusiasmo. Outros países também não viam, naquele momento, propósito de buscarem uma integração maior. A relação entre os países sul-americanos era muito pequena. No próprio Mercosul, antes do ACE 14 e do Tratado de Assunção, do ponto de vista brasileiro, o conjunto das exportações para o Mercosul era de mais ou menos 4% do total. Com a América do Sul, deveria ser de 7%, se tanto. Então, havia muitas dúvidas.

Vou dar um salto no tempo porque depois veio o Governo Fernando Henrique, houve várias crises internacionais que tiveram consequências muito fortes na região, inclusive, cambiais, e que atrapalharam um pouco o processo de integração. Devo assinalar que o Presidente Fernando Henrique teve uma iniciativa importante, que foi a realização da I Cúpula de Países da América do Sul em Brasília, em 2000. Foi aí que nasceu a Iirsa. Então, não é que a ideia tivesse sido abandonada de todo, mas, ela não teve a dinâmica que se esperava, em função de outros fatores.

Um outro fator que, naquela época, acabou tirando força do projeto de uma área de livre comércio sul-americana, que foi muito embrionário porque não chegou a se desenvolver, foi o lançamento da ALCA. O lançamento da ALCA foi feito pelo Presidente Clinton, no final de 1994, com muita força política. De uma forma ou de outra, todos acabaram aderindo à ALCA, embora houvesse visões diversas sobre o que deveríamos fazer. Creio que os países tinham uma preocupação de não se deixar engolfar totalmente num tipo de integração cujos benefícios seriam muito discutíveis, principalmente, os países que tinham uma base industrial maior. Pelo menos, nós conseguimos estabelecer um prazo de dez anos, e não cinco anos, como estava proposto. Depois, o prazo se alongou muito mais, até desaparecer. Também conseguimos colocar alguns temas que eram do nosso interesse, como agricultura e antidumping, que pelo menos nos permitiriam ter algum instrumento de barganha na discussão.

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A integração sul-americana

O fato é que o lançamento da ALCA foi um fator “overwhelming”, que tomou totalmente as atenções.

Reconhecendo a importância da convocação da I Cúpula da América do Sul e da Iirsa, no início do Governo do Presidente Lula, com a liberdade que o Presidente Lula permite aos seus assessores, eu disse:

− Presidente, a nossa prioridade em matéria de integração é o Mercosul, não é?

− Sim.

− Presidente, vou decepcioná-lo, porque não é. Há 10 ou 12 pessoas aqui nos Ministérios que trabalham com o Mercosul e 40 ou 50 pessoas que trabalham na ALCA. Então, a prioridade não é o Mercosul, a prioridade é a ALCA.

Ou seja, nós sabemos que a força de uma proposta norte-americana é muito grande e ela acabou engolfando. Nós tínhamos uma postura que, inicialmente, era mais defensiva, havia uma sucessão de muros que foram caindo, mas, a ALCA era um processo avassalador. Quando se discute e se compara o que se negociou na OMC, ou o que se pode negociar na OMC, com relação à ALCA, as bases são totalmente diferentes. Havia-se aceito que as negociações tarifárias, para produtos industriais, seriam feitas a partir da tarifa aplicada e não da tarifa consolidada. Para quem não é especialista do ramo, há essa diferença: a tarifa consolidada é aquela que você está internacionalmente obrigado a manter porque você declarou isso na OMC e virou uma obrigação jurídica. A tarifa aplicada é aquela que você aplica e que pode variar um pouco. No caso do Mercosul, é a Tarifa Externa Comum – TEC. Para vocês terem uma ideia da diferença, no caso do Mercosul, a tarifa consolidada poderia ser 35%, a média de 26% ou 27% e a aplicada é de 11%. Então, em vez de negociar a partir de 35%, nós negociamos a partir de 11%, o que é algo muito mais difícil e complicado, e que nos colocava em um processo de liberalização diante da maior economia do mundo, de forma quase que avassaladora. E, com todas as dificuldades para que temas do nosso interesse, como agricultura ou antidumping, pudessem ser tratados de maneira adequada nesse contexto. Seja como for, a ALCA era um processo avassalador e tomou conta de tudo. Isso contribuiu para que o Mercosul desacelerasse o passo e fez com que outras iniciativas, como a área de livre comércio sul-americano – Alcsa – não se desenvolvessem.

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 15

Celso Amorim

Logo no início do governo, o Presidente Lula tomou a decisão de caminharmos em dois sentidos: um era fortalecer o Mercosul e o outro era retomar projeto de integração de toda a América do Sul. Com relação ao Mercosul, logo numa das primeiras reuniões, no Uruguai, nós passamos a aceitar o conceito de assimetria. As soluções encontradas podem até não ter funcionado plenamente, mas foram basicamente as que pediam o Uruguai e Paraguai naquela época. Houve um esforço para fortalecer o Mercosul de mais de uma maneira. Reconhecemos as assimetrias; aos poucos, fomos criando um instrumento financeiro para ajuda aos países. Este instrumento é o Focem, para o qual o Brasil contribui com cerca de 70%, a Argentina com mais ou menos 20% e os outros países menores contribuem com um pouco. A grande maioria dos fundos vai para o Uruguai e Paraguai. É um reconhecimento de que é necessário compensar as assimetrias com investimentos maiores nesses países. A parte social e de movimentação de pessoas se desenvolveu muitíssimo nesses anos, a parte política também, com a instalação do Parlamento do Mercosul. Enfim, houve vários avanços importantes, embora, em certos aspectos, e com razão, alguns países se queixem de que nós não avançamos o suficiente. Avançamos um pouco na área de serviços; enfim, houve alguns avanços.

Ao mesmo tempo em que nós tratávamos de aprofundar o Mercosul, nós procuramos também retomar a ideia de um processo de integração para o conjunto da América do Sul. Nós já tínhamos a Iirsa, que teve que ser adaptado às novas prioridades. Eram obras de infraestrutura nos vários países que, pela primeira vez, estarão ligando o Atlântico ao Pacífico, de maneira efetiva em vários pontos: no meio norte do continente, saindo pelo Peru ou eventualmente pelo Equador; mais ao sul, passando pela Bolívia, Argentina e Chile. Pela primeira vez, a América do Sul vai ter ligações efetivas entre o Atlântico e o Pacífico, coisa que na América do Norte aconteceu no século XIX. Nós levamos praticamente um século e meio para fazer o que foi feito há muito tempo na América do Norte, como uma das bases do desenvolvimento do mercado interno norte-americano. Acho que algo em que nós temos que pensar é num mercado interno sul-americano.

O conjunto da América do Sul é um enorme mercado, somos quase 400 milhões de habitantes, com um PIB que deve estar por volta dos 3 trilhões de dólares. Nós tínhamos que ter um projeto para esse conjunto da região. Na grande maioria, com exceção da Guiana e de Suriname, são populações que falam línguas que se comunicam, que se entendem razoavelmente. Era

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A integração sul-americana

preciso retomar esse processo. Tínhamos a parte de infraestrutura e voltamos à ideia de um acordo de livre comércio. Só que, talvez, com um pouco mais de pragmatismo, em vez de propormos um esquema abrangente, que sempre desperta um pouco de ceticismo e, às vezes, até temores, nós propusemos acordos do Mercosul com os outros países. Já tínhamos um acordo com o Chile, porque o Chile, justiça seja feita, embora não pudesse participar do Mercosul pela sua estrutura tarifária, também era um país muito interessado na integração comercial com os outros países da região. Nós já tínhamos um acordo com o Chile e com a Bolívia. Tínhamos que fazer um acordo com o conjunto do Pacto Andino. Então, esse foi o esforço que tomou muito do nosso tempo diplomático e o do próprio Presidente. O Presidente Lula recebeu visitas de todos os presidentes sul-americanos no primeiro ano de governo e visitou todos os países sul-americanos em dois anos de governo, incluindo, a Guiana e Suriname, naturalmente.

Eu tinha sido Ministro do Governo Itamar Franco, embora só por um ano e meio, e, naquela ocasião, nunca fui ao Peru, nem ao Equador, Guiana ou Suriname. Eu acho que, em dois anos do Governo Lula, eu estive seis vezes no Peru, umas três ou quatro vezes no Equador, fui muitas vezes à Colômbia, enfim, houve uma mudança na dinâmica.

A Colômbia foi, de certa forma, o ponto de inflexão que nos permitiu chegar a um acordo. Continuava a haver alguma resistência, não- ideológica, devo dizer, até porque o que nós estávamos propondo era um acordo de livre comércio, que não limitava ninguém. Quem quisesse negociar com outras áreas poderia continuar negociando, mas, havia certo receio. Eu me lembro de um diálogo que tive com o Ministro Jorge Botero, que era o Ministro do Comércio Exterior da Colômbia naquela época. Foi um diálogo denso, interessante e profundo. Foi talvez um diálogo que até me ajudou a ver um pouco mais quais eram as preocupações. Em determinado momento, eu disse para o Ministro Botero: “Eu não consigo entender uma coisa e vou precisar que vocês me expliquem. Por que os empresários colombianos têm medo da concorrência da indústria brasileira e não têm medo da concorrência da indústria norte-americana? Isso eu não consigo entender”. Realmente, não era fácil de entender. Eu sei que nós continuamos aprofundando a discussão, fomos refinando o processo de negociação, fomos incluindo cláusulas que reconheciam assimetrias, que variavam de país para país. Tomando a Colômbia como um exemplo, o processo de liberalização do Brasil em relação à Colômbia

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é mais rápido do que o da Colômbia em relação ao Brasil. O número de exceções para a Colômbia é maior do que as exceções para o Brasil. Então, fomos reconhecendo esse tipo de assimetrias. Houve resistências aqui no Brasil também. Nós começamos a negociação com o Peru, separadamente. Na verdade, o primeiro grande passo foi dado com o Peru e deve-se fazer justiça ao Presidente Toledo porque ele tinha grande interesse. Mas, na realidade, foi o último país a concluir o acordo porque havia problemas na área agrícola, que foram finalmente resolvidos com concessões de parte a parte.

Enfim, conseguimos fazer os acordos de livre comércio. Quando nós tínhamos acertado as linhas gerais desses acordos, o framework dos acordos de livre comércio, nós incorporamos isso na Aladi. Houve uma reunião da Aladi – porque tudo isso tem que ser feito sob o amparo da Aladi, até para poder ser legal junto à OMC. Nós fomos a uma reunião da Aladi e a coisa mais interessante foi a declaração que eu ouvi da Ministra das Relações Exteriores da Colômbia, que era um país que tinha demonstrado algum ceticismo, dez anos antes. Eu fui muito cauteloso no meu discurso, para não dar a impressão que nós estávamos querendo avançar para áreas que pudessem ser consideradas mais sensíveis. Mas a Ministra da Colômbia disse: “Com esses acordos que nós estamos assinando, na prática, estamos criando uma área de livre comércio da América do Sul”. É claro que o caso da Guiana e Suriname sempre foi especial, não só por pertencerem ao Caricom, mas também, porque são economias mais frágeis que terão que ter um tratamento diferente nesse processo de integração. Com relação aos demais países, era verdade. Nós estávamos criando uma área de livre comércio da América do Sul.

Tendo já esses dois pilares da integração sul-americana estabelecidos, embora não seja uma integração tão profunda quanto a do Mercosul, mas, é uma integração, com uma área de livre comércio e integração física de infra-estrutura, faltava uma vertente política. A ordem não é necessariamente cronológica porque isso ocorre simultaneamente, mas, faltava a vertente política. Quando foi assinado o Acordo Quadro entre Mercosul e Peru, o Presidente Toledo anunciou que aquele acordo, provavelmente, iria se estender para o conjunto da Comunidade Andina. Com isso, nós estávamos criando uma Comunidade Sul-americana de Nações – CASA, como foi conhecido esse esforço de união sul-americana, até cerca de dois anos atrás, quando houve a proposta de chamá-lo de Unasul.

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Então, essa reunião lançou o processo. Levou algum tempo para que chegássemos a uma reunião fundadora da CASA, o que ocorreu também no Peru. Era ainda um processo de natureza política. A CASA não tinha uma institucionalidade jurídica. A institucionalidade jurídica só vai ocorrer com a Unasul. Nós tivemos mais uns dois anos de discussões, até que, no ano passado, finalmente, foi concluído o Tratado da Unasul, com várias vertentes: a vertente do livre comércio, da integração comercial; a vertente da infraestrutura; a vertente da energia, que ganhou muita força nesses anos; a vertente de defesa, que, na realidade, só veio a se materializar um pouco mais tarde com a criação do Conselho de Defesa; e agora já tem o Conselho de Saúde, enfim, há vários outros que estão se desenvolvendo.

A Unasul é um processo extremamente vivo e importante, que permite à região se coordenar e se apresentar diante do mundo. Eu costumo dizer que algo que chama a atenção é que nunca esses países tenham assinado um tratado, um instrumento jurídico entre eles, pelo menos, de caráter amplo. Não sei se existe em alguma área específica, como na área de turismo, mas, não creio. Então, o tratado constitutivo da Unasul é um grande passo.

Estamos ainda às voltas com vários aspectos, naturalmente. Ninguém pode querer sobrepor a técnica à política porque a política continua existindo. Ela resolve muitos problemas, mas cria outros. Temos ainda algumas questões para resolver, mas o fato é que a Unasul, mesmo antes de estar totalmente consolidada juridicamente – até porque, foram poucos os países que já ratificaram, creio que a Bolívia foi o primeiro e o Brasil mesmo não ratificou – mas enfim, mesmo antes de ela estar completa juridicamente, ela já é uma realidade.

Eu vou citar dois exemplos muito rápidos. Um deles é a reunião que houve em Santiago do Chile, no momento de uma crise importante na Bolívia. A Unasul funcionou como um foro real de pacificação e de solução de conflitos na região. No caso, foi até um conflito interno. A pedido da própria Bolívia a questão foi levada à Unasul. Lá se encontraram maneiras que permitiram, depois, que houvesse o referendo, as eleições. Esse foi um caso.

Agora, mais recentemente – claro que é uma situação muito menos dramática, mas é importante notar – acaba de se realizar a II Cúpula dos Países da América do Sul com Países Árabes. Todos os Presidentes falaram. O Presidente Lula falou porque o Brasil sediou a I Cúpula, mas, quem

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falou em nome da América do Sul foi a Presidente do Chile, porque está presidindo a Unasul. Assim, embora a Unasul não tenha uma personalidade jurídica totalmente consolidada, porque é necessária a ratificação para a plena vigência dos acordos, a Unasul já é uma realidade política e aceita por outros interlocutores. Esse é um passo muito importante.

Quero fazer uma distinção. O Mercosul é um processo de integração que já se encontra em estágio mais avançado, mais profundo. Na América do Sul, nós temos o processo de integração possível, que parte do reconhecimento que os países têm políticas comerciais diversas. Não é que as políticas comerciais dos membros do Mercosul sejam idênticas. Mas a nossa estrutura tarifária, com algumas exceções, é razoavelmente homogênea. Há um esforço para eliminar cobranças duplas; há vários aspectos da política de incentivos que são discutidos no Mercosul. Na Unasul, nós não temos isso, mas temos um acordo de livre comércio, temos a infraestrutura e temos uma estrutura política que permite também uma cooperação intensa em algumas áreas, como defesa, energia, saúde, educação, cultura etc. E nesse processo, a Guiana e o Suriname estão plenamente integrados. Aliás, creio que é um dos poucos foros do mundo em que o neerlandês é língua oficial. Foi utilizada, não só na reunião de Brasília, mas nos próprios documentos que nós assinamos, em função da presença do Suriname. É claro que, no caso da Guiana, o inglês é uma língua mais conhecida, além do português e do espanhol.

Eu queria fazer um último comentário sobre a dinâmica entre a América do Sul e América Latina e Caribe. Isso é importante para todos nós porque todos nós temos relações intensas com alguns países como o México, como Cuba ou mesmo a América Central. No caso a Guiana e o Suriname, eles são membros do Caricom. Como conciliar esses processos? Eu vou voltar um pouco à inspiração política e à realização diplomática. A inspiração política, até por obrigação constitucional nossa, é a integração na América Latina e Caribe. Entende-se hoje que a América Latina é a América Latina e Caribe. Às vezes, para abreviar um pouco, nós falamos só América Latina, mas, é preciso deixar claro que o Caribe está contido nesse conceito. Eu omiti um fato muito importante. Ao longo desse processo de negociação com a Comunidade Andina, a Venezuela decidiu ser membro pleno do Mercosul, o que virá a fortalecer ainda mais o Mercosul, em minha opinião, e eliminar, de uma vez por todas, essa ideia de que o Mercosul é um acordo do Cone Sul. O Mercosul

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passa a ser algo que vai do Caribe à Terra do Fogo. O processo ainda está em andamento. Espero que o Senado brasileiro vote a adesão da Venezuela em breve. Temos que respeitar as formas e os rituais da democracia. Creio que o Paraguai também está numa fase final de aprovação e tenho grande esperança que possamos, muito em breve, ter a Venezuela no Mercosul plenamente. Havia essa ideia de que, no Mercosul, se podia avançar mais em certos aspectos. Quer dizer, é mais fácil se falar de uma cadeia produtiva e, efetivamente, começar a discutir cadeias de valor no Mercosul do que no conjunto da América do Sul porque é uma união aduaneira, onde é mais fácil tratar do tema. Uma coisa é o empresário brasileiro saber que está concorrendo com um produto que é feito na Argentina, parcialmente, mas cujos insumos pagaram uma tarifa externa comum. Outra coisa é um empresário argentino, ou brasileiro, estar lidando com um produto do Paraguai, do Uruguai ou do Brasil, que entrou nesses países, mas tem um insumo que não pagou tarifa externa comum, como pode ser o caso de produtos que entraram em outros países da América do Sul. Então, há uma diferença prática no que você pode evoluir quando se trata de uma união aduaneira ou não. Nós tínhamos esse processo e, de qualquer maneira, tínhamos a consciência de que, embora o objetivo de mais longo prazo fosse integrar a América Latina e o Caribe como um todo, a integração possível e operativa era a da América do Sul.

Por quê? Porque a maioria dos outros países da América Central, senão todos, e o próprio México, estavam num processo de abertura muito rápida em relação aos Estados Unidos. Alguns estavam negociando com a União Europeia também. Nós não poderíamos ter um processo de integração da América Latina como um todo, nem os outros países desejavam, porque eles tinham sua atenção voltada para outros temas. Para vocês terem uma ideia, nós já tivemos umas três ou quatro Reuniões Ministeriais Mercosul/SICA, que é o processo de integração da América Central, mas, até hoje, nós não conseguimos iniciar uma negociação. Em parte, porque há os mesmos temores que havia aqui na América do Sul, em parte porque as atenções estiveram voltadas para os Estados Unidos e agora estão voltadas para a União Europeia. São coisas que nós compreendemos, mas o que nós não podíamos era retardar o nosso processo de integração para adaptá-lo a essas outras realidades. Então, nós tivemos que fazer com que os nossos amigos mexicanos, os nossos amigos cubanos, os nossos outros amigos da América Central e do Caribe entendessem que, na realidade, a América do Sul era fundamental. Não que nós quiséssemos

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abandonar a ideia mais ampla da integração latino-americana e caribenha. Por isso, depois de muitas conversas aqui na região da América do Sul e fora dela, depois de ampla consulta a todos os países da região, o Brasil resolveu fazer uma grande Cúpula dos Países da América Central e do Caribe, que também tem esse ineditismo. Nunca tinha havido sequer uma reunião, nem de Ministros, quanto mais de Presidentes de toda a América Latina e do Caribe que não fosse patrocinada por alguma potência de fora. Ou seja, a América Latina e o Caribe podiam se reunir com os Estados Unidos, sem Cuba; com Cuba, mas, sem o Caribe, e com Espanha e Portugal, na Ibero-Americana; e ela toda com a União Europeia; mas, não podia se reunir ela toda sozinha. É uma espécie de círculo de giz, uma limitação que nós mesmos nos traçamos. Era como se nós não tivéssemos coragem de assumir o fato de que poderíamos discutir os nossos problemas, sem prejuízo das outras relações. Vamos continuar conversando com a União Europeia, com a Cúpula Ibero-Americana, vamos continuar com um processo, que eu espero que algum dia venha a ser totalmente inclusivo, da Cúpula das Américas. Tenho sempre dito que o que é anômalo hoje é a ausência de Cuba, independente do que cada um possa pensar do Governo cubano. É anômalo porque todos os países do hemisfério, inclusive o Canadá, têm relações com Cuba, a não ser os Estados Unidos.

Então, nós fizemos essa grande Cúpula da América Latina e Caribe (CALC), até para procurar encontrar pontos comuns no processo de integração. O comparecimento foi espetacular para uma reunião desse tipo. Nós fizemos quatro Cúpulas seguidas: Mercosul, Unasul, Grupo do Rio e a Cúpula da América Latina e Caribe. E, imediatamente, surgiram oferecimentos do México e da Venezuela para fazer uma segunda e uma terceira CALC. Essa dinâmica está em curso. O que eu sempre procurei dizer para os nossos amigos do México, da América Central e mesmo de Cuba, que tinham dúvidas sobre porque nós colocávamos tanta ênfase na América do Sul, é que fortalecer a América do Sul é indispensável para a integração da América Latina e Caribe. Até porque, é necessário criar um pólo magnético alternativo que possa também ser um pólo de atração, econômico, cultural, empresarial, etc. Foi isso que nós fizemos.

Agora, nós estamos vivendo alguns desafios importantes. Eu não quero usar a expressão “círculos concêntricos” porque eles não são concêntricos, nem geograficamente e nem tematicamente. Mas, há três níveis de integração:

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(1) o Mercosul, uma união aduaneira, com Parlamento, e já com políticas comuns em muitos aspectos; (2) a América do Sul, que vive um processo de integração bastante forte. Do ponto de vista da política externa e de política internacional, acho que ela tem um papel tão grande, ou talvez maior do que o do Mercosul, porque os grandes temas que existem na região, em geral, transcendem o aspecto do Mercosul; e (3) em um nível um pouco menos cerrado, há o conjunto da América Latina e Caribe, em que se reconhece os diferentes graus de desenvolvimento entre os países.

Todos esses processos não existem no vácuo. Temos o processo de integração do Mercosul, da Unasul, que teve resultados espetaculares. O comércio do conjunto dos países da América do Sul, nos últimos seis anos, aumentou algo como 600%; as exportações do Brasil para a América do Sul, hoje, já são cerca de 20% do total das nossas exportações. É possível que este ano caiam, pelos fatores que nós sabemos, mas, em 2008, eram 20% do total das nossas exportações, ou seja, 60% a mais do que as exportações do Brasil para os Estados Unidos. São resultados realmente espetaculares. Mas, subitamente, as condições mudaram no cenário internacional com a crise financeira. É muito difícil dizer quais serão as consequências. Houve essa reunião do G-20, da qual participaram Brasil, Argentina, México e outros países da América Latina, e houve algumas decisões importantes, em minha opinião. Talvez o mais significativo tenha sido o reconhecimento da importância dos países em desenvolvimento. Sabemos que muitos não estão satisfeitos com o nível de inclusividade do G-20, mas é um avanço. Acho que, em paralelo, como há outros esforços nas Nações Unidas, será possível ter discussões em foros mais amplos e mais democráticos. Mas, o grande avanço é realmente o reconhecimento dos países em desenvolvimento, além de algumas medidas concretas ligadas ao financiamento, ao aumento da liquidez internacional, ao controle sobre os bancos, os controles financeiros, inclusive, sobre hedge funds.

Eu não vou repetir aqui esse lugar comum de que toda a crise tem riscos e oportunidades. Mas, a verdade é que é assim mesmo. Toda a crise tem desafios. O grande desafio para a América do Sul, nesse contexto da crise, é aumentar a sua integração. Vale a pena fazer um paralelo, com todas as cautelas, com os anos 30 e 40. Durante a Crise da Depressão e, depois, com a Segunda Guerra, que também causou a interrupção do comércio, muitos dos nossos

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países iniciaram o seu processo de industrialização, ou desenvolveram o pouco que tinham iniciado antes. É claro que agora não vamos fazer a mesma coisa porque a época é outra e não se poderá trabalhar da mesma maneira. Algumas indústrias hoje são inevitavelmente globalizadas. Não há como se pensar hoje num processo de substituição de importações como existiu há 60 ou 70 anos atrás. Mas é possível pensar de uma maneira mais criativa num mercado interno sul-americano, como grande alavancador do nosso desenvolvimento. Isso vale para o Brasil, como vale para a Guiana; vale para o Uruguai, vale para o Equador. Todos terão muito a ganhar. A evolução do comércio nos últimos anos demonstrou claramente o grande potencial que existe no comércio na região. O comércio nos países da região cresceu imensamente e eu devo dizer que, nos últimos anos, embora o Brasil seja superavitário com quase todos os outros países, com exceção da Bolívia (de quem nós compramos muito gás), para o conjunto dos países esse superávit tem diminuído. Em alguns casos, tem diminuído em termos absolutos e, em alguns casos, tem diminuído em termos relativos. Isto é, as nossas exportações continuam crescendo, porém menos do que as importações. Como elas são muito grandes, o valor absoluto do superávit continuou aumentando. É o caso do nosso comércio com a Argentina e com o Peru. Mas, em alguns casos, muito marcadamente, houve diminuição do superávit brasileiro. Acho que o Chile é um desses casos. Nós achamos isso positivo porque demonstra que os outros países da América do Sul também estão usando o potencial do mercado interno dos demais países, inclusive, do Brasil, que é muito grande. Em relação à crise, eu queria guardar essa ideia. Não é dizer que é ver a crise como oportunidade porque crise é crise. Algumas pessoas passam fome e outras não. Mas, os que não passam fome, passam angústias, têm medo de perder o emprego, passam dificuldades, têm que refazer seus planos de investimento, enfim, a crise é uma crise. Não vamos disfarçar. Mas, sem dúvida alguma, um desafio que nós temos que enfrentar é o de aumentar a integração nesse tempo de crise e utilizar plenamente, para os nossos produtores industriais, agrícolas, o potencial do mercado interno sul-americano, sem a preocupação de nos fecharmos para o resto do mundo.

Outros desafios virão. Temos uma nova administração nos Estados Unidos, obviamente, com aspectos positivos, a meu ver. Mas isso também nos coloca um desafio. De certa maneira, nós no Brasil tivemos uma relação boa com o Presidente Bush, do ponto de vista econômico e político mesmo. O Governo Bush insistiu muito na ALCA no início, mas quando sentiu que

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não podia continuar, também desistiu sem usar aquelas pressões. Os países que queriam fazer acordos com os Estados Unidos levaram isso adiante, como foi o caso da Colômbia, do Peru e outros. Os que não quiseram, tampouco sofreram pressões, pelo menos, pressões insuportáveis, pelo que eu pude acompanhar. Então, o Presidente Bush manteve um diálogo conosco. Agora, nós estamos diante de uma situação nova. É um novo Presidente, que tem contra ele a própria crise interna e seus efeitos internacionais, mas tem a seu favor o fato de representar uma mudança social importante, uma mudança cultural importante para os Estados Unidos.

Não sei se vocês sabem, mas, há uns 80 anos, um escritor brasileiro, conhecido na Argentina pelos seus livros infantis (até a Presidenta Kirchner leu os seus livros quando criança), escreveu um livro interessante. É Monteiro Lobato. Ele esteve exilado na Argentina quando saiu do Brasil durante a guerra, morou lá e isso facilitou a tradução de alguns de seus livros na Argentina. Monteiro Lobato escreveu também livros para adultos e um deles chamava-se “O Presidente Negro”. Era um livro sobre um presidente negro que era eleito nos Estados Unidos. Naquela época era algo que parecia fabuloso e fora de qualquer possibilidade. É curioso que, no livro, ele acaba ganhando a eleição porque os brancos se dividem entre os homens e as mulheres e o presidente negro tem a maioria. Não é a mesma coisa, mas é parecido.

O Presidente Obama é um presidente que vem com propostas de mudanças, é aberto ao diálogo, já revelou isso em relação ao Oriente Médio, em relação ao Irã e também em relação ao desarmamento nuclear. Há muito tempo que eu não ouço um presidente americano – se é que algum dia houve algum – dizer que é preciso partir da visão de um mundo sem armas nucleares. É claro que, por enquanto, isso está no discurso, mas o discurso é a primeira etapa para poder mudar as políticas. Em muitos anos, pela primeira vez, eu ouço um discurso que não fala só de não proliferação, mas fala também de desarmamento. Isso é muito importante. É uma oportunidade que os diplomatas não devem perder, cada um no seu caminho. Tenho certeza que ele também vai inovar em relação à América Latina e Caribe. Não sei exatamente como. O Brasil tem dito publicamente que o grande teste para julgar a mudança é Cuba. É claro que nós não ignoramos as dificuldades internas que existem em relação a esse tema, mas será o teste para a mudança. Por mais que haja outros temas agora na Cúpula das Américas, como energia, governabilidade,

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desenvolvimento sustentável, é inevitável que as atenções sejam focalizadas naquilo que os Estados Unidos vão dizer sobre Cuba. Enfim, é um presidente com capacidade de inovar. Eu acho que isso é bom. Temos que usar isso positivamente, sem perder os progressos que nós realizamos em matéria de integração sul-americana e, na medida do possível, também de integração latino-americana e caribenha. Até porque essa integração nos habilita a negociar melhor com os Estados Unidos propostas futuras. Esse é um outro desafio importante. Eu não creio que eles vão propor tão cedo uma outra ALCA, nem nada do gênero. Eles estavam falando, por exemplo, num grande programa de energia. Eu mesmo, nos contatos que tive com a Secretária de Estado disse: “Eu acho que os Estados Unidos têm que parar um pouco com essa ideia de terem um programa geral para a América Latina e Caribe”. Passou a era. Isso não existe mais. Você pode ter atitudes e, depois, reconhecidas as diferenças, ver qual é o campo em que você pode cooperar com variados países. Um quer cooperar na área de energia renovável; outro pode querer cooperar em melhor utilização das energias tradicionais; nós, certamente, vamos querer cooperar em biocombustíveis, até fazendo cooperação trilateral com países menores; enfim, cada um vai cooperar do seu jeito. Mas, eu acho importante ter essa ideia de que não há mais como fazer um programa em Washington e, depois, com uma pequena adaptação, fazer dele um programa para o conjunto da região. Isso não existirá mais. Haverá outros programas.

Isso é positivo, mas não deve, de maneira alguma, arrefecer o nosso ânimo em relação à integração da América do Sul e à integração da América Latina e Caribe. Por isso, é muito importante finalizar os trâmites para que a Unasul entre em vigor, para que o Secretário-Executivo da Unasul seja nomeado. O Mercosul tem que continuar fazendo os progressos que são necessários, como a eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum para que se transforme numa verdadeira união aduaneira, com as compensações adequadas para os países mais pobres. Foi o que se fez na Europa. O Presidente Lula já anunciou que o Brasil está disposto a dobrar a sua contribuição ao Focem. Estamos dispostos a pagar compensações pela perda de receita aduaneira que possa ocorrer em algum país da região. É importante manter esse ânimo integracionista, sem perder de vista que nós vivemos num mundo que continuará a ser globalizado depois da crise. Não vamos ter a ilusão que cada um de nós vai construir uma economia totalmente fechada. Ninguém vai. O estado da tecnologia não permite isso. Então, o que nós temos é que

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A integração sul-americana

encontrar nichos adequados e partir para competir no mundo, usando como base esse grande mercado que temos e que, progressivamente, não só do ponto de vista das regras comerciais, mas das ligações físicas, vai se tornando um único mercado. A palavra é essa: insistir na integração diante tanto dos riscos da crise econômico-financeira, quanto de outras propostas que possam ser feitas, e que podem ser até aceitas, mas que não devem nos desviar desse objetivo principal. DEP

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* Instituto de Pesquisas de História Econômica e Social da Universidade de Buenos Aires. [email protected]

Argentina: economia e política internacionalOs processos históricosMario Rapoport *

I. Introdução

Desde fins do século XIX até o início do XXI, a Argentina passou por etapas econômicas bem definidas: a fase agro-exportadora, a industrialização baseada na substituição de importações e a de abertura, endividamento externo e auge da atividade de rendimentos financeiros que culminou na maior crise de sua história. Ali se iniciou uma quarta etapa de retomada da industrialização, queda do endividamento e desenvolvimento econômico, pela qual ainda estamos passando. Quanto à política exterior, também é possível estabelecer etapas vinculadas às precedentes. Longe das visões que destacam o caráter “errático” ou “oscilante” da política exterior argentina, observam-se tendências dominantes em cada uma delas, explicadas pelos condicionamentos das diferentes estruturas econômicas e sociais. O objetivo do presente ensaio será analisar a relação entre as etapas econômicas e as políticas externas,

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Argentina: economia e política internacional. Os processos históricos

levando em conta as características particulares dos diversos governos e regimes políticos.

II. A Argentina agro-exportadora, o liberalismo econômico e o vínculo privilegiado com a Grã-Bretanha

A Argentina agro-exportadora se sustentava em uma estrutura sócio-econômica na qual a propriedade da terra, o bem abundante, estava concentrada em um núcleo reduzido e poderoso de proprietários fundiários, e onde os capitais externos, embora tivessem ajudado a montar o aparelho exportador, tinham em geral a rentabilidade garantida pelo Estado ou eram investidos com finalidades especulativas, criando um crescente endividamento externo e problemas no balanço de pagamentos. Tudo isso obedecia a uma ideologia diretora: o liberalismo econômico. Nas palavras de Juan Bautista Alberdi, um de seus expositores mais lúcidos, a Constituição argentina “mais do que a liberdade política” tendera a buscar “a liberdade econômica”.

Assim, o país chegou a fazer parte, de maneira destacada, como exportador de alimentos e matérias primas e importador de bens de capital e produtos manufaturados, de uma divisão internacional do trabalho, baseada no livre comércio, cujo principal eixo era a Grã-Bretanha, o principal poder econômico da época. Durante o período agro-exportador, os ciclos econômicos obedeciam, por um lado, às relações entre o investimento, a produção e as exportações, e por outro ao movimento favorável ou adverso dos fluxos de capital, influenciados a partir do Banco da Inglaterra através do aumento ou redução da taxa de juros. Houve uma expansão econômica notável mas também uma dependência dos mercados externos e desses movimentos de capital; quando estes se detinham, como em 1885, 1890 ou 1913, ou quando os mercados se contraíam drasticamente, as crises estalavam.

No que se refere ao sistema político interno, na altura de 1880 a unidade nacional tomou forma sob direção de governos oligárquicos. Esses governos conservaram as formas constitucionais, embora excluíssem os setores de oposição do possível exercício do poder, e elegiam seus sucessores. Ao mesmo tempo, abriram as portas a novos imigrantes, mas não facilitavam sua conversão em cidadãos nem o acesso à propriedade da terra.

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Mario Rapoport

A política externa da “ordem conservadora” (1880-1916) tinha por objetivo dar garantias aos investidores estrangeiros, assegurar o financiamento externo do Estado e ampliar os mercados europeus, onde a Argentina colocava sua produção agro-exportadora. Essa política atlantista, liberal e “aberta ao mundo” – sobretudo à Europa – dava as costas à América do Sul e desprezava alianças com os países da região. A Argentina aprofundava suas relações diplomáticas com o Velho Continente em geral e com a Inglaterra em particular, e ao mesmo tempo tentava obstruir as tentativas dos Estados Unidos de consolidar sua hegemonia continental.

Esse “consenso conservador” se manifestou através de diversas correntes ideológicas: a predominante, de matriz “comercialista” liberal, que tentava reduzir ao mínimo o surgimento de conflitos, e a da “realpolitik” do nacionalismo territorial, que impulsionava políticas de força frente a nações vizinhas e alimentava a espiral armamentista. Por sua vez, na política exterior preconizada por cada grupo manifestavam-se os alinhamentos dos diversos setores da elite com interesses de origem britânica e de outros países europeus. Essa disposição dos setores dirigentes se expressou, por exemplo, na oposição à tentativa dos Estados Unidos de estabelecer uma união aduaneira e uma moeda comum, na primeira conferência pan-americana de 1889. Diante do lema esgrimido pelos Estados Unidos, “a América para os americanos”, o representante argentino Roque Saenz Peña expressou outro diferente: “a América para a humanidade”. Por outro lado, a consciência da problemática do endividamento externo se manifestou na doutrina Drago, de 1902, que condenava a intervenção militar de países europeus na Venezuela para obrigar esse país a cumprir seus compromissos financeiros.

Após o fim do regime oligárquico, chegou ao poder o radicalismo (1916-1930), graças a uma nova lei eleitoral que garantia os direitos dos cidadãos e estabelecia um sistema mais democrático instaurado pela lei Sáenz Peña, como voto secreto e obrigatório para a população masculina, em 1912. Embora, em termos gerais, existisse uma continuidade quanto à estrutura produtiva e ao modelo econômico baseado na agro-exportação, produziram-se algumas mudanças em relação ao período anterior: implementou-se uma política fiscal que aumentava as cargas diretas sobre a terra e o capital, expandiu-se o gasto estatal – principalmente o emprego público – e houve certa redistribuição de renda em favor dos salários das pensões e da administração, embora muitas lei propostas fossem barradas no Congresso da Nação porque a maioria do

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Senado estava em mãos da oposição conservadora. O conceito de “ reparação” era utilizado para alentar essas mudanças, baseado em uma política que tratou de não afetar os núcleos de interesse sobre os quais se sustentava o esquema agro-exportador. Não obstante, essa política fez com que o aumento de gastos crescesse em ritmo mais rápido do que o dos recursos disponíveis, gerando um desequilíbrio fiscal agravado nos períodos recessivos.

A política exterior radical mostrou, por sua vez, maior autonomia em relação à que sustentava o regime oligárquico. Na Primeira Guerra Mundial, após a ascensão de Yrigoyen à Presidência, passou-se da neutralidade “ passiva” decidida pelo conservador Victorino de la Plaza – agradável aos interesses britânicos, que pretendiam manter o comércio bilateral com a Argentina – a uma neutralidade “ativa”, que questionava os fundamentos da guerra entre as potências, resistindo, desde 1917, à ofensiva de Washington sobre o continente americano para que os países da região abandonassem a neutralidade. Pelo contrário, o governo radical patrocinou um congresso de países neutros do continente e em seguida retirou a Argentina da Liga das Nações, sustentando o princípio universal de que todas deviam gozar de igualdade de direitos. Esses elementos mostram o caráter mais independente da política exterior, porém mantendo sempre a inserção internacional que se havia estabelecido na etapa anterior e o vínculo privilegiado com a Inglaterra.

A Yrigoyen sucedeu um governo radical de orientação mais conservadora, o de Marcelo T. de Alvear, que presidiu o país num momento de retorno de certa prosperidade, mantendo externamente uma firme vinculação com a Europa. Em troca, a volta de Yrigoyen, em 1928, não foi bem vista pelas elites tradicionais, que começaram a preparar um golpe de Estado do qual participaram civis e militares. O golpe ocorreu em setembro de 1930, marcando o retorno ao poder da antiga oligarquia conservadora.

Do ponto de vista econômico, pode-se observar na década de 1920 um aumento do comércio e dos investimentos provenientes dos Estados Unidos. Começou a desenvolver-se então um triângulo de relações comerciais e financeiras anglo-argentino-norte-americano, no qual a Inglaterra continuava a ser o principal mercado para os produtos argentinos, mas os fluxos de capitais e a manufaturas mais sofisticadas vinham do país vizinho do norte. Não obstante, este último mantinha ou aumentava as barreiras para a entrada dos produtos agropecuários argentinos, considerados competitivos com

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sua própria economia e criando fortes desavenças com as elites econômicas predominantes no país.

III. A industrialização substitutiva, as novas formas de dependência e as tentativas autonomistasA etapa da industrialização substitutiva pode ser subdividida, por sua

vez, em três períodos diferenciados: a industrialização “espontânea” (1930-1945), o processo industrializador peronista (1946-55) e a industrialização “desenvolvimentista” (1955-1976). As características de cada um desses períodos geraram condições diversas para a política exterior e para a inserção internacional da Argentina.

Os efeitos da crise desatada em 1929 afetaram as bases sobre as quais se apoiava a economia agro-exportadora. Os países que tradicionalmente compravam a produção argentina começaram a proteger e impulsionar sua própria produção de bens primários (a Inglaterra, por exemplo, firmou em 1932 o Tratado de Ottawa, de preferências imperiais). Nesse contexto, a Argentina viu suas exportações reduzidas em volume e em preço, situação que ocasionou a falta de divisas no país e reduziu sua capacidade de compra no mercado internacional. Essa escassez de divisas originou a necessidade de fabricar internamente muitos produtos anteriormente importados, estimulando o que passou a chamar “industrialização baseada na substituição de importações” (ISI). Também foi reforçada a presença do Estado na economia com a criação de diversas Juntas Reguladoras (cereais, carnes, etc), a implementação do controle de câmbio e a criação do Banco Central.

Não obstante, continuou a prevalecer o objetivo de favorecer a elite proprietária de terras, cujo exemplo mais claro é o Tratado Roca-Runciman, de 1933, pelo qual a Inglaterra mantinha a quota argentina de exportação de carnes, e em troca eram outorgadas diversas contrapartidas, como a isenção do recém-implementado controle cambial, diminuição de tarifas alfandegárias e tratamento preferencial aos investimentos britânicos. Esse pacto ilustra o tipo de interesses predominantes, algo que no plano comercial se expressava por meio do lema “comprar de quem nos compra”, esgrimido pela Sociedade Rural Argentina. Quanto à política exterior, o “consenso” dentro da coalizão no poder mantinha a subordinação hegemônica à Grã-Bretanha, o que

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implicara a entrada da Argentina na Sociedade das Nações e a oposição, nas conferências pan-americanas da década de 1930, à estratégia pan-americanista dos Estados Unidos.

O início da Segunda Guerra Mundial não gerou conflito no interior do grupo governante. A neutralidde era grata aos interesses britânicos, que necessitavam assegurar o abastecimento de alimentos argentinos e que compravam sem pagar de imediato, com libras bloqueadas em Londres com garantia em ouro, o que em breve iria trazer conseqüências negativas para o país. Mas em dezembro de 1941, após a entrada dos Estados Unidos na guerra, a ofensiva norte-americana em favor da ruptura de relações com as potências do Eixo se viu em parte detida pelo neutralismo conservador do Presidente Castillo e seu Chanceler Ruiz Guiñazú, na Conferência do Rio de Janeiro de 1942. A opção entre manter a neutralidade e incorporar-se aos Aliados colocou em evidência a rivalidade entre a Inglaterra e os Estados Unidos em influir na economia e na política argentinas, que se vinha manifestando por meio de relações triangulares desde há duas décadas. Em geral os britânicos se opuseram, na medida do possível, à política norte-americana em relação à Argentina.

Nos três anos de regime militar, desde o golpe de Estado de junho de 1943, o eixo da política exterior, quando o desenvolvimento da guerra começou a ser favorável aos Aliados, transformou-se paulatinamente na expressão de um conflito bilateral entre os governos de Buenos Aires e de Washington. Os gestores do golpe foi um grupo de coronéis no seio dos quais se destacava o carismático Coronel Perón, que concentrou seu trabalho na capacitação dos sindicatos de trabalhadores e começou a propor e desenvolver reformas sociais e a fazer contatos com forças e dirigentes políticos. Sua figura se fortaleceu ainda mais desde janeiro de 1944, quando o governo finalmente abandonou a política de neutralidade e o General Farrell assumiu a Presidência, acompanhado por Perón como vice-Presidente.

Nessas circunstâncias surge com mais clareza que o objetivo principal de Cordell Hull, Secretário de Estado norte-americano, não era que a Argentina rompesse relações com o Eixo, e sim, pura e simplesmente, procurar o desmoronamento do regime militar e, em particular, o deslocamento de Perón. Era um objetivo compartilhado com a maioria da oposição política, que acusava o Coronel de pró-nazismo, mas que se opunha, antes de tudo, à

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sua liderança ascendente e a suas medidas sociais. O conflito com os Estados Unidos passou a constituir o elemento-chave da política interna.

Não obstante, em fins de 1944, produziram-se mudanças no Departamento de Estado que projetaram novos funcionários dispostos a modificar uma política que alguns grupos de interesse do país do norte interpretavam como errônea. Isso se traduziu em conversações secretas com Perón e outros membros do governo argentino no início do ano seguinte. Como resultado das mesmas, chegou-se a um acordo pelo qual a Argentina se comprometia a cumprir os compromissos que seriam estabelecidos na Conferência de Chapultepec (México) em fevereiro de 1945; reintegrar-se-ia ao concerto das nações latino-americanas e declararia guerra ao Eixo, ficando dessa forma em condições de ingressar nas Nações Unidas. Em troca, Washington abandonava a política de coerção, em particular as sanções econômicas e diplomáticas que havia imposto à Argentina, coisa que efetivamente começou a ocorrer.

Esse interregno amistoso entre os dois países se viu interrompido por uma nova mudança na diplomacia norte-americana em conseqüência da morte de Roosevelt, que havia se inclinado por uma postura mais “flexível”, e o retorno de setores vinculados a uma “linha dura” para com a Argentina. Isso se materializou em maio de 1945 com a chegada a Buenos Aires do Embaixador Spruille Braden, que transformou em seu objetivo uma cruzada destinada a derrubar o regime “ditatorial e fascista do Coronel Perón”. Tratando de eliminá-lo antes que as eleições previstas pudessem consagrar seu triunfo, Braden começou a fazer intrigas para conseguir sua deposição: negociou com oficiais do exército opositores de Perón e transformou-se praticamente em líder dos setores políticos que se opunham ao regime militar, organizados na chamada “União Democrática”, pronunciando discursos contra o governo ante o qual estava acreditado.

Perón foi forçado a renunciar até que a mobilização popular de 17 de outubro de 1945 revertesse a situação, pois os trabalhadores temiam perder as conquistas obtidas naqueles anos e entregar o governo à desacreditada elite política tradicional e aos setores que aceitavam a intromissão norte-americana nos assuntos internos. No início de 1946, um dos eixos da campanha eleitoral do Coronel foi justamente “Braden ou Perón”, que levantando sentimentos nacionalistas facilitou ao novo líder político o triunfo nas eleições.

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A década em que Perón governou marcou nova etapa no processo de industrialização e uma mudança na política externa argentina. A política econômica peronista previa aprofundar a industrialização substitutiva ampliando o mercado interno por meio de uma redistribuição de rendas (os assalariados chegaram a receber 50% da renda nacional), de leis sociais e de uma maior intervenção do Estado. Os meios para estimular a indústria foram a criação de instituições como o Banco de Crédito Industrial (1944) e o Instituto Argentino de Promoção do Intercâmbio – que transferia recursos do campo para a indústria – e a nacionalização do Banco Central (1946) entre outros. O governo estabelecia um círculo de transferência setorial de rendas coerente com a conformação de seu apoio político. Por outro lado, foram nacionalizados os principais serviços públicos e resgatada a dívida externa.

Esse plano econômico entrou em crise em 1949, quando os termos de troca começaram a ser desfavoráveis para o comércio exterior e as exportações argentinas diminuíram sensivelmente. Porém, sobretudo, declinou a disponibilidade de divisas disponíveis em seguida à guerra (em parte por problemas decorrentes da inconvertibilidade da libra quando o principal fornecedor eram os Estados Unidos), o que gerou dificuldades aos empresários industriais para a importação de maquinaria e matérias primas. Evidenciou-se assim a debilidade dos fundamentos da industrialização peronista e o começo dos ciclos econômicos próprios do desenvolvimento industrial em países periféricos.

A crise de 1949-1952, agravada por duas secas sucessivas, mostrou que havia chegado a hora da austeridade, eixo do Plano Econômico de 1952, entre cujos objetivos estava o de frear a inflação e resolver o problema do déficit no balanço de pagamentos. Foi feito um empréstimo no Eximbank, apelou-se para o capital estrangeiro (inclusive concessões petrolíferas a empresas norte-americanas) e deu-se ênfase à produtividade do trabalho.

A política industrialista, redistributiva e de maior autonomia econômica levada a cabo pelo peronismo se viu possibilitada por um cenário internacional particular. O papel da Europa, sobretudo da Grã-Bretanha, foi afetado pelas nacionalizações e diminuição do intercâmbio comercial, ao mesmo tempo em que na Argentina se debilitavam os grupos da oligarquia favorecidos durante décadas como sócios e intermediários das diversas potências européias. No

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contexto de um mundo bi-polar, e com a idéia de possível deflagração de uma nova guerra mundial, que não ocorreu mas deu lugar a vários episódios bélicos (naquele momento o da Coréia), a Argentina da “terceira posição” tentava equilibrar o peso crescente dos Estados Unidos impulsionando o protagonismo da América Latina, tratando de não perder os vínculos com a Europa e acrescentando agora os países do bloco socialista, com os quais foram sendo estabelecidas relações diplomáticas.

Não obstante, a confrontação com os Estados Unidos e a afirmação nacionalista foram por alguns momentos deixados de lado, desenvolvendo-se uma estratégia de negociação mais “pragmática”. Isso se pode observar, fundamentalmente, a partir da segunda Presidência de Perón, quando paralelamente à mudança de orientação econômica produziu-se uma aproximação com os Estados Unidos, embora também se tenha tentado recriar o ABC, mediante acordos com o Chile e o Brasil (neste último caso, frustrado) e realizou-se o primeiro tratado comercial de um país latino-americano com a União Soviética.

De todo modo, em setembro de 1955, e no quadro de um enfrentamento crescente com a Igreja Católica e setores da oposição, que reprovava a existência de um Estado onipresente e a crescente restrição das liberdades públicas, além a ação de outras forças políticas, Perón se viu retirado do poder por um golpe de Estado cívico-militar, embora contasse ainda com amplo apoio popular. Esse fato inaugura uma etapa de instabilidade política na Argentina, que levaria finalmente à ditadura militar de 1976.

Essa instabilidade se devia em parte ao “pêndulo econômico” que continuava sem solução durante esses 20 anos. Depois da queda de Perón, entre 1955 e 1976 sucederam-se períodos de avanço da indústria e outros de estancamento, produzidos por políticas de “estabilização” que favoreciam os setores agro-exportadores através dos conhecidos ciclos de stop and go. Na etapa de auge, diante do aumento da produção industrial vinculada ao consumo local, incrementavam-se as importações, para comprar bens de capital e insumos básicos, e reduziam-se as exportações, devido à maior demanda interna originada pela elevação dos salários reais e dos níveis de renda. Mas o déficit da balança comercial e a redução de divisas levavam a uma desvalorização que provocava aumento dos preços dos produtos agrícolas exportados e dos insumos importados. Tudo isso se traduzia em crise do setor externo, inflação

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e políticas monetárias restritivas. A disputa inter-setorial se expressava, além disso, em sucessivos golpes de Estado.

Durante o breve governo da chamada “Revolução Libertadora”, buscou-se a “desperonização” da sociedade argentina, com a proscrição do partido então majoritário. Em matéria econômica foram adotadas medidas de liberalização da economia com o objetivo de incorporar o país ao mercado internacional. O governo aderiu ao FMI e aos organismos financeiros internacionais, coisa a que se recusara o peronismo, e reduziu-se em grande medida a intervenção do Estado na economia nacional. Em resumo, a “Revolução Libertadora” significou um retorno à ortodoxia econômica.

A política exterior e a inserção internacional no período 1955-1966 se mesclaram com os vaivéns políticos e com os golpes de Estado. O golpe de 1955 aproximou a Argentina das linhas de política exterior impulsionadas pelos Estados Unidos para todo o hemisfério no quadro da Guerra Fria.

Em troca, a partir de 1958, o governo de Frondizi, apoiado nas eleições pelo peronismo proscrito, reorientou a política exterior em função de seu projeto desenvolvimentista. Foi lançada uma nova política econômica que procurava fazer decolar as “indústrias básicas” (energia, aço, química, papel, maquinaria e equipamento, veículos automotores) para o que era fundamental o abastecimento petrolífero e a tecnficação da agricultura. A fim de alcançar esses objetivos o governo resolveu apelar para o capital estrangeiro, sancionando as leis de “Radicação de Capitais Estrangeiros” e de “Promoção Industrial”, e assinando contratos petrolíferos polêmicos com empresas norte-americanas. O projeto desenvolvimentista, inspirado nas idéias de Rogelio Frigerio, concordava de fato com os planos de grandes empresas transacionais de expansão e investimento na América Latina. Isso permitiu vigoroso crescimento do setor industrial e na altura de 1962 conseguiu-se o auto-abastecimento de petróleo. Para Frondizi, porém, o custo político foi demasiadamente elevado (perdeu o apoio do sindicalismo peronista com suas políticas de estabilização, distanciou-se do apoio de setores políticos e teve de enfrentar posicionamentos militares) e terminou em sua deposição após haver aceito, em eleições parciais, a participação eleitoral do peronismo.

Sua política exterior, baseada na “inevitabilidade da coexistência pacífica”, esteve sujeita a controvérsias. Melhorou as relações com os Estados Unidos e

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buscou também maior diversificação das relações internacionais, especialmente com a Europa Ocidental e a União Soviética. Deu ênfase, igualmente, a uma aproximação com o Brasil, por meio do Tratado de Uruguaiana formado com o Presidente Quadros, criticou a Aliança para o Progresso e teve uma atitude “compreensiva” em relação a Cuba, negando-se a seguir os Estados Unidos em sua proposta de expulsar esse país da OEA e recebendo em Buenos Aires a visita de Che Guevara, fato rapidamente divulgado e que causou agitação entre os militares.

Essa política ambivalente, que suportou diversas conspirações militares, resultou finalmente na queda do governo mediante outro golpe de Estado, dando lugar ao breve governo de Guido, político que se prestou ao papel de testa de ferro dos golpistas e cuja equipe de economistas liberais tentou retornar sem êxito a medidas econômicas ortodoxas em meio a uma profunda crise do setor externo, enquanto em política exterior acatava-se novamente a liderança norte-americana.

O governo seguinte, eleito com proscrição do peronismo, foi o do radical Arturo Illia, que adotou, ao contrário, uma política nacionalista moderada cujos objetivos eram limitar a presença do capital estrangeiro (anulou os contratos petrolíferos firmados por Frondizi), estimular o mercado interno (houve aumentos salariais, impostos às importações e redução das tarifas dos serviços públicos) e redistribuir rendas.

Illia contou com boa conjuntura econômica – grandes exportações e balança comercial positiva – o que permitiu reduzir a dívida externa e dinamizar a economia. Procurou também abrir novos mercados, como o chinês. Tudo isso, no entanto, de nada adiantou, porque o governo radical era politicamente débil e os militares terminaram por derrubá-lo em 1966 com novo golpe, liderado pelo General Onganía, que se auto-denominou “Revolução Argentina”.

A fim de manter certa retórica democrática da Aliança para o Progresso, o Departamento de Estado não apoiou imediatamente a nova ditadura, embora nas forças golpistas houvesse hegemonia de setores pró-norte-americanos. De todo modo, do ponto de vista político os militares se propunham a disciplinar a sociedade argentina aderindo à Doutrina de Segurança Nacional, impulsionada pelos Estados Unidos em toda a América Latina e que tinha por principal objetivo combater o “inimigo ideológico interno”.

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No terreno econômico, no entanto, existia forte tensão entre duas alas no interior do governo: uma mais corporativa e desenvolvimentista e outra liberal. Esta última acabou por impor-se em dezembro de 1966 por meio da nomeação para Ministro da Economia de Adalbert Krieger Vasena, economista muito vinculado aos grandes bancos e empresas multinacionais, que aprofundou a modernização industrial mediante novos investimentos de capitais externos. Sem superar alguns de seus principais problemas, a economia argentina cresceu e o setor industrial começou a exportar seus produtos, mas a instabilidade política, engendrada desta vez pela radicalização de setores populares e revoltas operárias e estudantis, como ocorreu no “cordobazo”, levaram à renúncia do Presidente em 1970, substituído por pouco tempo pelo General Levingston e pouco depois pelo General Lanusse, até que o governo militar chegasse ao fim em 1973, quando o peronismo voltou ao poder. Não obstante, nos últimos anos do regime militar a política exterior foi sacudida pelo abandono da idéia de “fronteiras ideológicas”, que caracterizara a gestão de Onganía, pelo estabelecimento de relações com a China Popular e Cuba e a assinatura de um convênio comercial com a União Soviética. Entre os fatores que impulsionavam essas mudanças podem-se mencionar os interesses agro-exportadores, afetados pelas restrições que encontravam nos mercados mundiais.

Durante o terceiro governo peronista, entre maio de 1973 e março de 1976, com o breve e mais radical governo de Cámpora, e em seguida o regresso de Perón ao poder, pretendeu-se estimular novamente uma política econômica de busca do pleno emprego e da redistribuição de rendas, por meio do chamado Pacto Social, sob a condução do Ministro da Economia, José Ber Gelbard.

Não obstante, após certo êxito inicial sobreveio um situação crítica: a um contexto externo muito negativo – crise do petróleo, queda dos termos de troca, protecionismo europeu – acrescentou-se um agudo conflito político interno. Este se caracterizou pela existência de movimentos guerrilheiros de esquerda e forças para-militares de direita, sustentadas por outro ministro, José López Rega, com uma série de ações armadas, sequestros e assassinatos, e com desrespeito às condições do acordo por parte dos empresários e dos próprios sindicatos. Tudo isso levou ao desmoronamento do mencionado Pacto, para o que contribuiu também a morte de Perón, em junho de 1974. Um ano mais tarde, com o débil governo de Isabel Perón, o Ministério da Economia foi

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entregue a Celestino Rodrigo, que desvalorizou fortemente o dólar, provocando um choque hiper-inflacionário, o chamado “Rodrigazo”. Mas a resistência sindical provocou a queda do Ministro e os salários recuperaram parte de seu valor. Os meses seguintes acarretaram o desgaste do governo e a preparação de um golpe “anunciado”.

Quanto à política exterior, na primeira etapa deste breve período peronista, especialmente com Cámpora e Perón, e mais além das disputas internas, buscou-se diversificar as relações econômicas e diplomáticas, sobretudo com o bloco de países do Leste. Realizaram-se importantes vendas a Cuba, outorgando-se generosos créditos e procurando ajudar esse país diante do bloqueio norte-americano. Também se aprofundaram a relações com a União Soviética, para onde foi enviada uma importante missão encabeçada por Gelbard. Mas essas políticas começaram a ser abandonadas após a morte do líder popular, no governo de sua esposa Isabel, com a crescente influência de López Rega e da direira peronista e o agravamento das dissensões dentro do partido no poder.

Do ponto de vista econômico e com uma visão de longo prazo o balanço desse período de industrialização que durou mais de 40 anos foi, no entanto, positivo. Entre 1949 e 1974, o PIB argentino cresceu cerca de 127% e seu PIB industrial 223%, enquanto que o PIB per capita aumentou em 42%. Por outro lado, o nível de endividamento externo era baixo, o desemprego não passava de 6% em média e a participação dos assalariados na renda nacional se aproximava de 40%. Com intermitências, a política exterior manteve, por sua vez, em maior ou menor medida, posições relativamente autônomas, salvo nos períodos da “Revolução Libertadora”, Guido e Onganía.

IV. A etapa de endividamento externo e auge da atividade de rendimentos financeiros. A ditadura militar e o retorno à democracia. O “realismo periférico”. A crise econômico-política de 2001-2002O golpe militar de março de 1976 produziu uma transformação

substancial na estrutura econômica argentina. O processo de substituição de importações foi encerrado e iniciou-se um novo modelo baseado na acumulação de rendimentos financeiros e em uma “reprimarização” da

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economia. A principal forma pela qual se instalou esse modelo, que afetou e até hoje ainda afeta o desenvolvimento dos países latino-americanos, foi por meio do endividamento externo, facilitado pela ampla disponibilidade de liqüidez internacional e pelo caráter transnacional que as instituições bancárias passaram a adotar. A crise econômica mundial deflagrada nos anos 70, primeiro devido à queda do dólar, que se desvinculou do ouro, e pelo aumento dos preços do petróleo mais tarde, originou a existência nos países centrais de grandes massas disponíveis de divisas em busca de maiores rentabilidades e dispostas a colocar-se em outras regiões a baixas taxas de juros e com finalidades especulativas. O endividamento criado dessa maneira contribuiu para que as ditaduras militares do sul do continente, como as de Pinochet e Videla, pudessem financiar as primeiras experiências de políticas econômicas neoliberais no mundo. Assim, em 1980 o total da dívida externa da América Latina já ascendia a mais de 200 bilhões de dólares, sendo a Argentina o terceiro país mais endividado, logo depois do Brasil e do México.

As políticas do governo militar do período 1976-1983 produziram uma série de mudanças drásticas na sociedade argentina. Esse projeto tinha determinantes socio-políticos e econômicos. Por um lado, propunha-se a inclinar o “pêndulo político” em favor das elites agrárias e de grandes grupos econômicos locais e intermediários de capitais externos, cerceando a indústria nacional e o mercado interno, sede da força do movimento operário e dos setores empresariais partidários do nacionalismo econômico e base principal de sustentação das “alianças populistas” que tinham contribuído, segundo os mentores ideológicos do novo esquema, para a radicalização de vastos setores da população. Por outro lado, o Ministro Martinez de Hoz procurou readaptar a economia no quadro de um tipo de divisão internacional do trabalho que se apresentou como um retorno às fontes: a Argentina “aberta ao mundo” da época agro-exportadora que a geração de 1880 havia construído.

A liberalização dos movimentos de fundos e das taxas de juros provocou uma mudança na rentabilidade dos diversos setores da economia, prejudicando as atividades produtivas e alentando a especulação. Além disso, favoreceu-se o processo de fuga de capitais: entre 1976 e 1983 saíram do país 28 bilhões de dólares. Em suma, o governo militar produziu uma transformação profunda das regras de funcionamento do sistema financeiro, uma abertura irrestrita ao mercado internacional e um acelerado processo de desindutrialização. O endividamento externo tinha várias causas: a especulação financeira, os

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auto-empréstimos, os gastos militares e a corrupção. Grande parte desse endividamento era privado e foi beneficiado, próximo ao final do regime militar, com um seguro de câmbio que o transformou em dívida pública. Com o retorno à democracia houve uma demanda judicial denunciando a ilegitimidade de grande parte do endividamento nesse período e a decisão do juiz federal a acolheu, embora os culpados não pudessem ser indiciados.

No plano das relações internacionais, gerou-se durante o regime militar um novo tipo de relações triangulares: com os Estados Unidos no plano financeiro e tecnológico e com a União Soviética no plano comercial. Este último aspecto ficou em evidência quando da invasão soviética do Afeganistão e a negativa do governo Videla a aderir ao embargo de cereais contra a Rússia, impulsionado por Washington, pois aquele país era o principal cliente da Argentina, com 30% das exportações totais. Por esse motivo alguns qualificam de “heterodoxa” a política exterior da ditadura em relação a outros regimes militares latino-americanos, como o chileno. Na realidade, a aparente contradição de um governo que se definia como “ocidental e cristão” e o aprofundamento das relações econômicas com a principal potência “inimiga” se explica pela dualidade dos interesses econômicos dominantes, ligados financeira e ideolgicamente aos Estados Unidos, mas influenciado pelo setor agro-exportador, que necessitava ampliar seus mercados em direção ao Leste diante do protecionismo norte-americano e da Comunidade Européia. Esses vínculos comerciais com Moscou também se estenderam a aspectos políticos e estratégicos.

Quanto à guerra das Malvinas, não se tratou apenas de um exemplo da incompetência dos militares do ponto de vista profissional. Com ela, pretenderam utilizar uma justa reivindicação dos direitos argentinos sobre as ilhas, quanto ao que constituía um obstáculo remanescente do colonialismo imperial, com o propósito de obter popularidade diante da evidente erosão do regime. Mas também os britânicos foram subestimados do ponto de vista militar, a posição norte-americana não foi compreendida e não se obteve o apoio soviético esperado. Somente os países latino-americanos se mostraram solidários com a causa argentina.

A derrota nas Malvinas constituiu o começo do fim da ditadura, que culminou com o retorno a um regime constitucional por meio de eleições presidenciais vencidas pelo candidato da União Cívica Radical, Raúl Alfonsín.

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No entanto, as “heranças” recebidas limitaram a ação do novo governo, que não soube responder ao desafio que tinha diante de si de convalidar a democracia e sair da crise econômica. No terreno político, após a realização de procedimentos judiciais contra as cúpulas militares, que terminaram em condenações, o governo teve de enfrentar levantamentos armados e finalmente cedeu diante da pressão militar, decretando as leis de perdão, agora derrogadas. No campo econômico, apesar de alguns esforços iniciais para traçar um rumo diferente, não foi possível resolver os problemas gerados pelo endividamento externo, estancamento econômico e inflação. Foi criada uma nova unidade monetária, o austral, que fracassou no propósito de infundir mais confiança aos agentes econômicos. Ao contrário, desatou-se um processo hiper-inflacionário agudo, que derrubou o governo. Alfonsín deixou o poder em 1989 com uma dívida externa superior a 60 bilhões de dólares e uma economia em estado crítico.

Em política exterior, ainda enquadrada na bipolaridade mundial, a busca de apoio ao novo regime democrático entre os governos europeus, particularmente os de orientação social-democrata, a continuação das relações argentino-soviéticas nos planos econômico e diplomático e uma aproximação aos países latino-americanos foram os eixos principais. Procurou-se também estabelecer o que se chamou “relação madura” com os Estados Unidos, cuja administração favorecia o retorno dos países do hemisfério a sistemas democráticos de governo.

Essa estratégia “heterodoxa” (em termos de uma linha já tradicional nas classes dirigentes argentinas) que inicialmente se manifestou em tentativas de uma negociação política da dívida externa com a banca ocidental, particularmente norte-americana, cedo encontrou também seus próprios limites: o apoio de governos europeus não constituiu obstáculo à pressão de credores externos e dos organismos financeiros internacionais.

Por outro lado, o cenário internacional se transformou justamente no momento em que se produziam mudanças políticas na Argentina. No início da década de 90, com a euforia provocada pela queda do muro de Berlim e do bloco soviético, e o processo de globalização financeira, impulsionado por novas tecnologias e expansão dos mercados especulativos, verificou-se novamente a super-abundância de capitais no norte. Isso coincidiu, por sua vez, com as políticas liberalizadoras propugnadas pelo chamado Consenso de

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Washington e com a chegada de Carlos Menem ao poder na Argentina. Nesse ponto se verifica a confluência de um líder político de um partido popular, como o peronismo, historicamente baseado num eixo de justiça social, com setores da direita neoliberal. Esses setores nunca formaram um partido ou força política capaz de se impor eleitoralmente sem utilizar manobras fraudulentas, e se valeram repetidamente de regimes militares ou da pressão destes sobre governos civis para colocar em prática seus propósitos. Agora, porém, conquistaram com suas idéias e seus interesses a liderança justicialista dos anos 90, o chamado “menemismo”.

O governo de Menem, que havia subido ao poder com um discurso populista – prometia um “salariaço” e a “revolução produtiva” – em breve mostrou que sua política econômica se alinharia com os postulados do Consenso de Washington e seguiria os conselhos do FMI e outros organismos financeiros internacionais.

A chave do novo programa econômico, implementado com o pretexto de eliminar para sempre a inflação, consistiu em um sistema que combinava a livre convertibilidade do peso com uma taxa de câmbio fixa e super-valorizada (um dólar igual a um peso) e que funcionava como o padrão-ouro do século XIX. Num sistema desse tipo, com abertura irrestrita dos mercados, a única forma de controlar o déficit externo e o déficit fiscal era um fluxo contínuo de capitais, ou se isso não ocorresse, a aplicação de políticas recessivas de ajuste para conseguir baixar os custos trabalhistas e obter competitividade. Trata-se de uma economia que cresce somente com o endividamento externo público e privado e cuja contrapartida é o pagamento dos juros e amortizações da dívida e a fuga de capitais. A isso se juntava a venda das empresas públicas, que se acreditava serem deficitárias, a capitais estrangeiros e locais, o que no entanto não aliviou a situação econômica, agravada por um persistente déficit comercial. Ao final do governo Menem a dívida externa superava 140 bilhões de dólares e a fuga de capitais ultrapassava 120 bilhões.

As conseqüências sociais não foram menos graves: uma taxa de desemprego que atingiu 23% da população ativa e a queda de 50% da população abaixo da linha da pobreza. Já afetada pela crise mexicana em 1995, a partir de 1998 a economia argentina começou a dar mostras de uma crise inevitável, que explodiria três anos mais tarde.

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Por sua vez, a política exterior de Menem, inspirada na teoria do “realismo periférico”, girou em torno do alinhamento “automático” com Washington. Esse alinhamento se materializou no despacho de navios à Guerra do Golfo, desmantelamento do míssil Condor II e dos projetos de indústria aeroespacial e de defesa, retirada da Argentina do grupo de países não-alinhados, voto contra Cuba na Comissão de Direitos Humanos da ONU e inclusão da Argentina como aliado “extra OTAN”. Tudo isso transformou o governo argentino em um exemplo a imitar por outros países em desenvolvimento na “era” pós-Guerra Fria. Para os Estados Unidos, além disso, era importante por tratar-se de uma nação que havia obstaculizado sistematicamente sua política na América Latina desde fins do século XIX.

Que propunha a doutrina do “realismo periférico”? Partia do pressuposto de que o vínculo estreito com a potência hegemônica permitiria o desenvolvimento econômico e a estabilidade política em um país periférico, que a “globalização” tenderia a eliminar as diferenças entre países mais e menos desenvolvidos e a desenrijecer as fronteiras e espaços nacionais, e que o alinhamento permitiria “maximizar” os benefícios resultantes da não confrontação e a distância no terreno diplomático, considerando como um dado a irrelevância econômica e estratégica da Argentina no concerto das nações.

A alternativa política que se apresentou em 1999 com a Aliança Radical e da Frepasa fracassou na medida em que não propôs uma revisão do “modelo” e evitou qualquer questionamento de fundo a um regime de convertibilidade, que embora prejudicasse o setor produtivo devido à supervalorização da moeda local, contava com o apoio das empresas privatizadas, dos bancos estrangeiros e das transnacionais, que dessa forma podiam remeter ao exterior suculentos lucros em dólares. O FMI procurou sustentar o sistema por meio da chamada “blindagem” financeira (criando mais endividamento e facilitando a fuga de capitais) e aconselhou novos ajustes, porém foi impossível impedir a crise: o nível de reservas não era suficiente para enfrentar uma corrida aos depósitos em dólares e produziu-se uma “bancarização” forçada por meio do chamado “corralito”, que congelou os haveres dos poupadores em divisas, embora as grandes empresas tivessem se defendido antecipadamente dessa medida ao retirar seus capitais do país. À crise econômica acrescentou-se a social e política em dezembro de 2001, quando se juntaram as ações dos desempregados, organizados em movimentos de “piqueteros”; os saques de supermercados por parte de setores desesperados da população; o protesto

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de setores médios afetados pelo “corralito” bancário que os privava de suas economias; o descontentamento geral com os partidos políticos e as instituições suspeitas de corrupção (cristalizado no slogan “que se vayan todos” (fora todos); e a incapacidade do próprio governo para enfrentar a situação. Esses fatos levaram à renúncia do Presidente De la Rúa.

Os resultados econômicos dessa etapa, que se iniciou com a ditadura militar, são eloqüentes. Entre 1974 e 1999, em 25 anos, o PIB argentino cresceu 55%, o PIB industrial apenas 10% e o PIB per capita permaneceu estacionário. Por outro lado, a dívida externa aumentou de 8 bilhões de dólares a 170 bilhões, entre 1975 e 2002, e a diferença entre os 10% da população com maiores rendimentos e os 10% com menor renda cresceu 40 vezes no mesmo período. Se a isso acrescentarmos que entre 2000 e 2002, em plena crise, o PIB se reduziu em mais 16%, incluindo o que mostram os indicadores que mencionamos acima, podemos ter uma idéia de quanto foi negativo esse período.

V. A Argentina e o processo de integração regionalO avanço mais significativo em política exterior desde o início dos

anos 80 foi a aproximação com o Brasil, que permitiu lançar as bases do Mercosul. A criação e consolidação desse processo de integração constituiu um tema que corresponde, sobretudo, ao período de retorno à democracia, em um momento em que o cenário nacional se tornava favorável a essa iniciativa. As duas superpotências mundiais estavam se afastando da América Latina, o que possibilitou à região obter um grau maior de autonomia. Isso foi bem compreendido pelos principais dirigentes da Argentina e do Brasil, que acrescentaram uma forte vontade política. Assim, em novembro de 1985, o Presidente Sarney se reuniu com Alfonsín durante a inauguração da ponte internacional “Tancredo Neves” sobre o rio Iguaçu, oportunidade em que se decidiu a criação de uma comissão mista de alto nível para estudar a cooperação e integração entre as duas nações. Em conseqüência, em julho de 1986 foi firmada uma Ata para a Integração Argentino-Brasileira, com a idéia de transformar ambos os territórios em um espaço econômico comum. A remoção de barreiras comerciais e a harmonização das políticas a aplicar seriam concretizadas mediante acordos específicos. O resultado desse acordo, o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE) constava de doze protocolos relativos a diversos setores econômicos, como bens de capital,

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energia, trigo, biotecnologia, assuntos financeiros, expansão do comércio e empresas binacionais, entre outros.

O passo seguinte, em abril de 1988, foi a aprovação de uma nova etapa do PICE com a incorporação de dois importantes protocolos setoriais sobre as indústrias automotriz e da alimentação. Em seguida, em novembro do mesmo ano foi assinado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre a Argentina e o Brasil, que se baseava na eliminação gradual dos obstáculos ao comércio, na harmonização de diversas legislações, em medidas aduaneiras e comerciais e na coordenação de política macro-econômicas. Dessa maneira, o processo de integração começava a tornar-se realidade.

Os acordos foram referendados em 6 de julho de 1990 pelos Presidentes Menem e Collor de Mello em Buenos Aires. Nessa ocasião foram reduzidos os prazos de dez anos fixados no PICE para formar um espaço comum, registrando-se a intenção de fazê-lo em quatro. Além disso, o desmantelamento das barreiras comerciais, mais do que o cumprimento dos protocolos setoriais que enfatizavam a integração inter-industrial, passou a ser o objetivo central do processo de integração. Esse processo de acordos e negociações, que também incluíram o Uruguai e o Paraguai, culminou em 26 de março de 1991. Nessa data os Presidentes da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinaram o Tratado de Assunção, que fixou como data definitiva de constituição do Mercosul o dia 1 de janeiro de 1995, concordando-se além disso em um conjunto de medidas para o período de transição. Os instrumentos com os quais se constituiu o mercado comum foram essencialmente um programa de liberalização comercial, a idéia de coordenar as políticas macro-econômicas, uma tarifa externa comum e a adoção de acordos setoriais.

No entanto, a nova estratégia se mostrou radicalmente distinta à que fora proposta nos anos 80. O esquema dos anos 90 se baseava, sobretudo, na liberalização automática e linear do intercâmbio. O mercado assumiu então a condução do processo e as decisões políticas praticamente desapareceram das negociações bilaterais. A perda de peso da Argentina na estratégia brasileira foi também perceptível. Nesse contexto, a relação com o Brasil se sustentou apenas nas forças da vizinhança geográfica e nos interesses privados, especialmente em um punhado de empresas vinculadas à expansão do intercâmbio bilateral. A iniciativa política se diluiu e ficou reduzida à reiteração formal e retórica do objetivo integracionista.

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O eixo principal do conceito de “regionalismo aberto”, que presidia o modelo dos anos 90, se dirigia especialmente ao caráter ofensivo da integração; o objetivo não era proteger uma economia em pleno processo de decolagem e diversificação, e sim utilizar o mercado regional para potencializar as vantagens comparativas, convertendo-o em uma plataforma para a inserção na economia mundial. Por isso, no Mercosul foi privilegiada a redução das barreiras internas por sobre o estabelecimento de restrições às importações vindas de fora da zona. Mais ainda, esse desarmamento tarifário complementou uma redução unilateral de tarifas diante do resto do mundo.

Apesar disso, e como resultado da própria dinâmica do processo, de 1985 a 1997 a taxa de crescimento anual do comércio inter-regional foi de entre 15% e 27%, quintuplicando a do comércio extra-zona. Em conseqüência, a participação do intercâmbio de cada um dos membros nas trocas com outras nações do Mercosul no comércio exterior cresceu em média 5% a 20%. Isso foi complementado por diversos projetos privados como associações, joint ventures e investimentos diretos intra-regionais que vincularam entre si os setores produtivos dos diversos países. As mudanças no comportamento dos governos constituíram também um elemento destacado, aumentando as consultas e a coordenação permanentes em todos os níveis das respectivas administrações nacionais.

O avanço registrado despertou o interesse de novos sócios potenciais e assim se incorporaram a Bolívia e o Chile, como membros associados. Finalmente, na VII Reunião do Conselho do Mercado Comum foi assinado o Protocolo de Ouro Preto, estabelecendo que o Mercosul iniciaria o trânsito para a união aduaneira a partir de 1 de janeiro de 1995. Desde essa data unificar-se-ia a tarifa externa comum (TEC) para 85% do universo tarifário, com uma média de 14% e um máximo de 20%. Para os 15% restantes da tarifas cada um dos países estabeleceu alíquotas diferentes entre 0 e 35%.

Vários, no entanto, foram os obstáculos que impediram a consolidação desse mercado comum: a vulnerabilidade externa do Brasil e da Argentina (ambos países fortemente endividados e submetidos a constantes incursões por parte de fundos especulativos voláteis), a ausência de políticas macro-econômicas comuns, as disputas comerciais (em diferentes rubricas, como veículos automotores, têxteis, arroz, etc.) e a falta de ênfase na institucionalização do processo de integração ou em acordos setoriais produtivos, apostando no

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Argentina: economia e política internacional. Os processos históricos

“comercialismo” ou no “regionalismo aberto”. Entre os marcos seguintes do sinuoso caminho do Mercosul destacam-se a desvalorização do real, em janeiro de 1999 – que dificultou os termos de troca entre ambas as economias, devido à convertibilidade ainda vigente na Argentina; o “relançamento” do Mecosul em 2000, para tentar superar o freio à integração que se havia produzido a partir da desvalorização brasileira e à recessão Argentina; a crise que convulsionou a Argentina em dezembro de 2001; a eleição de Lula, Kirchner e outros governos de perfil político e ideológico diferente dos anteriores, que conduziram a mudanças significativas no cenário regional. Isso se traduziu no pedido de incorporação da Venezuela ao Mercosul, na crescente preocupação da Bolívia em atividades comuns e a presença cada vez mais próxima do Chile, Equador e demais países sul-americanos, que ampliam as possibilidades do processo de integração e potencializam o desenvolvimento da região, assim como seu poder de negociação diante de outros blocos e potências externas.

VI. Depois da crise. O governo de KirchnerCom a crise de 2001, o que muitos argentinos se perguntavam era se

poderiam reunir-se as condições objetivas e subjetivas, isto é, nas estruturas econômico-sociais e na liderança política, para realizar as mudanças necessárias a fim de recuperar o país, tanto econômica quanto politicamente.

No plano econômico os fatos mais destacados foram a queda para o calote (default) e uma grande desvalorização do peso argentino, e no plano político um interregno de sucessivos e breves governos que culminaram com o mandato provisório de Eduardo Duhalde. Finalmente, graças a uma nova convocação a eleições, chegou à Presidência Nestor Kirchner, que assumiu em maio de 2003 após haver conseguido no primeiro turno somente 22% dos votos (não houve segundo turno devido à retirada da candidatura de Menem). O novo governo tomou imediatamente algumas iniciativas importantes de ordem política e jurídica, como no terreno dos direitos humanos. Por causa desse impulso, a renovada Corte Suprema de Justiça anulou as “leis do perdão” para os militares, assim como os indultos outorgados por Menem às cúpulas dirigentes da última ditadura. Também surgiram desde o princípio posições de maior autonomia no terreno das relações internacionais, inclusive o rechaço ao projeto da Área de Livre Comércio das Américas proposto pelos Estados

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Unidos e o reconhecimento do Mercosul como projeto estratégico da política exterior argentina.

Restava verificar se era possível superar completamente a crise econômica e voltar a um esquema produtivo e a um caminho de crescimento sustentável. A resposta foi positiva. Entre 2003 e 2007 o PIB aumentou de maneira notável, quase 9% anuais, impelido pelo auge do setor industrial e das exportações, enquanto que o desemprego caiu sensivelmente e reduziram-se os níveis de pobreza. Por outro lado, acabou-se o default, com a troca da dívida, aceita por mais de 70% dos devedores, e foi pago o total dos compromissos pendentes com o FMI (cerca de 10 bilhões de dólares), embora o nível de endividamento que resta, a prazos mais longos e juros mais baixos, ainda seja considerável: 125 bilhões de dólares.

Além disso, os saldos favoráveis do comércio exterior, baseados em um aumento dos preços dos produtos exportáveis, como a soja; na melhoria dos níveis competitivos produzida pela desvalorização do peso e em uma maior demanda internacional, permitiram aumentar de forma notável as reservas internacionais. A aplicação de retenções, por sua vez, ajudou a conter os preços internos dos produtos essenciais e a aumentar as receitas fiscais, já robustecidos pela reativação econômica. O superávit fiscal resultante de todas essas circunstâncias garante assim, por enquanto, o pagamento da dívida.

Iniciou-se, por outro lado, um novo processo de industrialização baseado no mercado interno e ajudado por uma capacidade produtiva disponível, embora ainda subsista o grande tema da dívida interna: diminuir drasticamente os níveis de pobreza e sobretudo melhorar a distribuição da renda. Nesse sentido, foram aumentados os salários e os proventos de aposentadoria, novamente reformado o sistema previdenciário, privilegiando-se a participação estatal, e buscou-se uma concertação entre empresários e sindicatos. O amplo superávit fiscal, que embora seja necessário conservar nos aspectos essenciais com finalidade anti-cíclica, deve ser usado com maior intensidade para a realização de obras públicas, a criação de empregos e o fortalecimento das pequenas e médias empresas. Outro problema que surge é um processo inflacionário ainda moderado mas que é preciso controlar. Mais do que tratar-se de um excesso de demanda, o problema consiste na existência de fatores oligopólicos, porém isso se torna perigoso com uma população acostumada a agir em contextos desse tipo.

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Argentina: economia e política internacional. Os processos históricos

Em matéria de política exterior, a Argentina adotou uma orientação diferente da que prevalecia nos anos 90, tendo por eixo uma conduta que reconhece a igualdade das nações e olha novamente para a América Latina, e na qual se inclui prioritariamente o aprofundamento, ampliação e institucionalização do Mercosul e um avanço no processo de integração sul-americano. É essencial, nesse sentido, que o Brasil e a Argentina atuem em conjunto nas negociações estratégicas mais sensíveis e coordenem suas políticas macro-econômicas e internacionais, porque constituem o núcleo principal dessa integração.

As relações com os Estados Unidos se moveram ao compasso das negociações sobre a dívida, mas foi criticada a invasão do Iraque e proposto o reconhecimento das instituições internacionais como esfera necessária para a solução de qualquer tipo de conflito. Apesar das pressões dos portadores de bônus, foram mantidas as boas relações com os países da União Européia, embora tenha-se voltado a reiterar os direitos argentinos sobre as ilhas Malvinas. Ao mesmo tempo, ampliaram-se os vínculos econômicos e políticos com países asiáticos, como a China e a Coréia do Sul, e realizou-se uma ativa agenda internacional com participação em numerosas cúpulas presidenciais hemisféricas e mundiais. Quanto às rodadas comerciais da OMC, agiu-se em consonância com o Brasil e outros países em desenvolvimento, criticando a linguagem dupla utilizada pelas grandes potências, que pretendem uma abertura plena para seus capitais e serviços porém mantém um férreo protecionismo para seus produtos agrícolas e alguns bens industriais.

Contribuiu-se também para construir a Comunidade Sul-Americana de Nações, o que constitui fato de grande importância simbólica: é a primeira vez desde o século XIX em que são retomadas as idéias bolivarianas e sanmartinianas. Por outro lado, surgiram conflitos porque cada país da região propõe políticas nacionais – de desenvolvimento econômico, de maior distribuição de renda, de melhor utilização dos próprios recursos – o que em muitos casos dá lugar à existência de contradições com os projetos de integração em nível regional, como ocorreu com o tema dos combustíveis entre o Brasil e a Bolívia e no caso das fábricas de papel entre a Argentina e o Uruguai. Essas contradições entre os desenvolvimentos nacionais e a integração regional devem ser resolvidas de forma conjunta e por meio de instituições comuns, tratando de harmonizar os desequilíbrios e assimetrias existentes.

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Mario Rapoport

Para terminar, a principal conclusão a tirar deste artigo é que somente compreendendo as diferentes etapas da história argentina e de sua inserção no mundo em sua totalidade e complexidade (econômica, política, social e ideológica) é possível realizar um balanço dos acertos e erros do passado e lançar as bases de um modelo de crescimento com equidade que encaminhe o país definitivamente na senda do progresso material e cultural, tudo isso no quadro de uma forte compenetração e ação comum com os países da região.

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Tradução: Sérgio Duarte

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A transformação do Estado bolivianoLuis Tapia*

1. Introdução

H á mudanças políticas em curso na Bolívia que implicam uma transformação parcial do Estado. São mudanças possibilitadas por um ciclo de crises sucessivas e intensidade crescente que vêm ocorrendo, em especial, desde o ano 2000 e que têm levado a uma significativa recomposição do apoio a diversas alternativas partidárias no país, fatos que envolvem mudanças marcantes nos blocos sociais que se amparam em diversas posições não-tradicionais e que desejo caracterizar como sendo uma forma de produção de uma conjuntura de autonomia relativa do Estado.

Em tal sentido, começarei por caracterizar várias mudanças políticas em torno dessa noção de autonomia relativa do Estado. Antes, porém, de passar a examinar brevemente algumas dessas modalidades de produção da autonomia relativa na história boliviana, cabe caracterizar, primeiro, a condição contrária que se pode apresentar por meio de uma idéia proposta por René Zabaleta.

O momento instrumental do Estado é constituído pelas situações em que membros da classe dominante, isto é, os principais empresários da terra e

* Universidade San Andrés. [email protected]

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Luis Tapia

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das minas, das manufaturas e do capital financeiro, se encontram pessoalmente exercendo as principais tarefas e cargos de direção do governo e do Estado, ou seja, quando são deputados, senadores, ministros e presidentes; em conseqüência, vê-se que o teor das políticas de governo e as tarefas da legislação favorecem de maneira direta e, às vezes, até mesmo explícita, os interesses das parcelas de capital das quais provêm.

Caracterizo e relembro de forma breve duas conjunturas de situação instrumental do Estado para poder estabelecer as diferenças da atual conjuntura do MAS no governo.

Primeiro, uma conjuntura típica de situação instrumental do Estado é a chamada pelos críticos nacionalistas de Superestado minerador, isto é, um Estado que durante a primeira metade do século XX – com breves rupturas – de maneira direta respondia aos três grandes empresários de mineração que operavam no país e que também estavam articulados com redes transnacionais de capital. Uma das feições da evolução da citada situação instrumental é que se passou de uma era em que os principais empresários eram igualmente presidentes – por volta do final do século XIX e início do XX – a ocasiões em que a política legislativa e o conjunto da política estiveram marcados pelos mandatos e constrangimentos econômicos e políticos originados nesses três grandes núcleos de capitalismo minerador embora não fossem eles mesmos os que postulassem a presidência do país e tivessem no seu lugar aquilo que no momento a crítica política chamou “a rosca”, isto é, um conjunto de funcionários que, sem integrar a classe dominante, operava no âmbito político para servir diretamente a esses interesses. Foi tal situação instrumental do Estado que serviu para caracterizar a dicotomia entre nação e antinação ou entre nação e colônia, que foi elaborada pelos pensadores nacionalistas em meados do século XX. A revolução nacional, que tem seu marco de ruptura institucional estatal em 1952, foi pensada, precisamente, contra essa conjuntura instrumental de Estado, correspondente ao império da enorme atividade mineradora no país.

Na revolução de 52, primeira grande ocasião de autonomia relativa do Estado, o partido nacional procedente, composto pelas camadas medianas e operárias, propunha-se a desenvolver o capitalismo de Estado e, portanto, a substituir o controle do monopólio da mineração por uma empresa estatal de exploração dos recursos naturais e, daí, gerar uma expansão do capitalismo em

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A transformação do Estado boliviano

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todo o país. Tratava-se, pois, de planos de expansão do capitalismo dirigido por não-empresários – dirigentes políticos e trabalhadores – alguns dos quais tinham a perspectiva da industrialização querendo ser a ala esquerda, a transição para o socialismo. Em todo caso, porém, tratava-se de um projeto para a instauração de um Estado capitalista na Bolívia, que tinha como um de seus objetivos criar uma burguesia nacional.

O segundo momento da situação instrumental do Estado na Bolívia durante o século XX surgiu exatamente quando amadureceu essa burguesia projetada pelos dirigentes, sobretudo os pós-revolucionários de 52, não apenas sob influência norte-americana mas também em coincidência com idéias e concepções internas do partido. O MNR privilegiou o investimento público no Oriente e no departamento de Santa Cruz como terreno de cultivo da nova burguesia boliviana. Essa iniciativa obteve peso político já durante os anos 70. Contudo, era um elemento classista que ainda não possuía maturidade política e, por isso, precisou do exército para tornar presentes seus interesses em nível do Estado e, é lógico, de um regime ditatorial.

No início e durante a década de 80 experimentamos uma conjuntura de maturação política da nova e da velha burguesia recomposta em outros territórios do país, também no sentido de que desenvolveram a capacidade de organizar seus próprios partidos e voltar a disputar o poder político e a direção do Estado, sobretudo em uma conjuntura de forte crise na qual a esquerda não pôde enfrentar a decomposição acumulada por tanto tempo. Na década de 80, em especial de 85 em diante, por 20 anos, a característica central nesse processo foi que os principais empresários do país se adonaram dos partidos históricos, já existentes, principalmente o MNR, ou fundaram seus próprios partidos, passando a gerar uma nova situação instrumental do Estado, isto é, uma situação em que parcelas da burguesia ocupavam diretamente os principais espaços de direção em nível do governo e do Estado, começando pela presidência, passando pelas câmaras de senadores e deputados e, terminando, é lógico, no gabinete de ministros. Com isso, a burguesia chegou a ter uma presença definidora, monopolista, absoluta, sobre o complexo das reformas que iria promover.

Essa nova situação instrumental do Estado corresponde plenamente à implantação do neoliberalismo no país, e a isso caberia acrescentar que certos partidos (o MIR é o principal exemplo) cuja origem não estava nas sedes empresariais acabaram sintonizando-se fortemente com essas últimas

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e, apropriando-se dos bens públicos pelo velho processo da corrupção, em pouco tempo se converteram também em latifundiários e proprietários, transformando-se, portanto, em classe dominante a partir de sua posição na burocracia político-partidária ligada à nova fase da implantação do neoliberalismo no país.

A transformação do Estado realizada nas duas décadas precedentes, que implica a reforma das relações entre Estado e economia, Estado e sociedade civil intensamente sintonizados, poder-se-ia dizer que, aplicando-se dogmaticamente o molde neoliberal no país, se fez justamente nesse período de situação instrumental do Estado, isto é, quando um núcleo da sociedade civil – o dominante em termos de propriedade – controla de maneira monopolista o poder político no seio do Estado embora de maneira compartilhada entre várias parcelas da mesma classe dominante. Mais uma feição do período neoliberal no país é que todos os governos durante esse tempo foram governos de coalizão entre parcelas da classe dominante, entre partidos de empresários. A característica distintiva da época foi, portanto, um cenário de mediação partidária cujo marco dominante se constituiu exatamente nisto: o legislativo esteve amplamente monopolizado por partidos de empresários.

Se observarmos as coisas na perspectiva histórica, veremos que se alcançou um dos objetivos da revolução nacional, que foi a geração de uma nova burguesia. A consecução desse objetivo implicou desmantelar outra parte das estruturas centrais do Estado de 1952, em particular o controle estatal dos recursos naturais e das principais empresas de transformação da natureza, que, por sua vez, eram o núcleo da atividade produtiva e dos excedentes para o Estado boliviano. Obviamente, esse não é um resultado apenas interno, pois também se articula com os abrangentes processos de transformação do capitalismo e das estruturas em nível mundial. Mas diríamos que a transformação, dos anos 80 até o fim do século XX e início do XXI, foi realizada por um dos sujeitos produzidos pela transformação do Estado anterior a 1952, ou seja, o Estado nacionalista produziu uma nova burguesia que logo se encarregou de pôr abaixo o mesmo Estado nacionalista por meio de governos de coalizões multipartidárias e, no entanto, monoclassistas. Esse tipo de monopólio econômico veio também a conquistar o monopólio político de maneira direta aí pelas décadas de 80 e 90 e produziu no aspecto político um modelo bastante excludente e concentrador da riqueza no aspecto econômico,

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desorganizando, mais que tudo, as margens de autocusteio do Estado boliviano. Face a tal situação instrumental do Estado espumejaram as muitas vagas de revolta e mobilização política pela antiprivatização, pela descolonização do país e, conseqüentemente, pela mobilização dos recursos naturais.

2. Modalidades de produção da autonomia relativaA concepção da autonomia relativa do Estado foi elaborada, argumentada

e usada, sobretudo, por teóricos marxistas nas décadas de 60 e 70, em particular com base em alguns textos de Marx e Engels. Foi Poulantzas, talvez, o mais importante na argumentação desse tipo de situação política. Antes, porém, de examinar duas fases de autonomia relativa na história política do país, cabe rapidamente recompor a idéia central que tem essa noção. A idéia geral da autonomia relativa é que, historicamente, se produziu em algumas conjunturas que podem ser de média ou longa duração, em alguns momentos, ou muito curtas, em outros, nos quais a direção do Estado se distancia um pouco mais ou um pouco menos das prescrições estruturais e econômicas mais imediatas expressas através da clara presença de membros da classe dominante nos principais cargos e postos públicos de condução do Estado. A situação de autonomia relativa, por um lado, implica o seguinte: o Estado não deixa de responder à coação da simples e ampliada reprodução das estruturas capitalistas articuladoras dos processos de produção e do modo pelo qual a organização estatal reage a esses níveis econômicos de estruturação da divisão classista em cada país. Nesse aspecto se fala em autonomia relativa. Por outro lado, verificam-se alguns processos históricos e sociais que deslocam os membros da classe dominante no Estado e instauram como burocracia política e chefes de Estado pessoas que não se acham diretamente ligadas ao capital ou às forças produtivas. Tais pessoas provêm de outras classes sociais ou chegam ao Estado mediante partidos que pretendem uma racionalidade mais incisiva em relação à ampliada reprodução do capitalismo que as forças políticas ou sujeitos que diretamente respondem a uma parcela do capital.

A idéia de autonomia relativa não contém a hipótese de que o Estado não responda à reprodução das estruturas de classes do capitalismo, e sim que o faz, inclusive, de um modo muito mais eficaz e racional porque foi instaurada em sua direção uma burocracia que no máximo não está vendo ou não está velando somente por uma ou por algumas parcelas de interesses, mas

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pelas melhores condições de reprodução ampliada do capitalismo como tal no conjunto da economia e de suas interações com outros espaços políticos e econômicos.

Poder-se-ia dizer que há três modalidades principais em que se instauram situações de autonomia relativa com diferentes capacidades de duração – isso de maneira comparativa com o país.

a) os bonapartismosMarx foi quem pensou e realizou um longo exame de uma das principais

formas de constituição de autonomia relativa do Estado ao analisar o governo de Luís Bonaparte na história francesa em meados do século XIX. A característica do que em teoria política veio a ser chamado “bonapartismo” é a emergência de um líder que pretende ser o mediador entre os dois pólos classistas da sociedade ou entre o velho bloco dominante e o novo, composto, sobretudo, por setores da população trabalhadora. Uma das condições para o surgir do bonapartismo é as classes sociais experimentarem uma espécie de subdesenvolvimento ou não ter como auto-apresentarem-se e organizar-se política e socialmente. Nesse caso podem confiar a gerência do conflito junto com a direção do Estado a um líder que, em geral, parece responder a interesses populares, mas trabalha mais para a reprodução dos interesses da classe dominante, momentaneamente fora do monopólio do poder político estatal. Foi essa análise de Marx que serviu de base para continuar a elaborar teorias sobre a autonomia relativa do Estado em condições de autodesenvolvimento não só do capitalismo como também da administração e direção do Estado.

b) a constituição de uma burocracia política racional ou o capitalista geral

Em fins do século XIX, Marx e Engels escreveram também sobre a configuração do que eles tenderam a chamar o “capitalista geral”, ou seja, a configuração de uma democracia que iria encarnar a racionalidade da reprodução ampliada do capitalismo de um modo melhor do que o fariam os membros particulares de uma classe dominante. Significa isso que o Estado capitalista se desenvolveu na direção de gerar uma burocracia que teria por finalidade a reprodução ampliada do capitalismo e a substituição, no Estado, dos membros da classe dominante, que, por responderem a seus constrangimentos

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de posição específica nas estruturas econômicas, acabam reduzindo o grau de racionalidade para a ampliação do capitalismo geral. Esse capitalista geral não é, em particular, um membro especial ou um conjunto de membros da classe dominante ou da burguesia e, sim, uma espécie de burocracia que em parte pode ser recrutada entre filhos e membros da classe dominante, mas não necessariamente têm vínculos diretos em termos de titularidade da propriedade ou são membros de famílias de empresários. Historicamente se reconhece a Alemanha, Inglaterra e França, em princípio, como os países deste tipo de autonomia relativa do Estado.

c) A presença de partidos operários e socialistas no governoHá outra modalidade muito importante relacionada com o desenvolvimento

de autonomia relativa do Estado que, no entanto, vários teóricos não costumam distinguir da anterior embora tenha com ela vínculos fortes. Essa outra modalidade consiste em que certas histórias políticas produziram a seguinte situação: o processo de organização política dos operários, a partir de sindicatos que financiam partidos, leva trabalhadores a competir em eleições e a ser representantes no parlamento chegando, em certo momento, a obter a direção do executivo de seus respectivos Estados, o que produz o fato paradoxal de Estados capitalistas serem governados por siglas de operários ou com estreitos laços com associações trabalhistas. Essa é a trajetória percorrida, em particular, pelos partidos social-democratas, trabalhistas, operários ou socialistas – com diferentes nomes – que entraram na disputa eleitoral e chegaram a governar parte considerável da Europa durante o século XX. Nesses lugares se desenvolveu, por sua vez, um tipo de racionalidade na reprodução ampliada do capitalismo que veio a combinar maior inclusão de trabalhadores, redistribuição da riqueza, redução das desigualdades, alto grau de desenvolvimento humano, sem, contudo, substituir as estruturas sociais do capitalismo.

A meu juízo, essa é a principal situação de autonomia relativa do Estado por corresponder a um longo processo prévio de acumulação e gerar dilatados períodos de estabilidade, crescimento econômico e distribuição da riqueza e, portanto, igualmente prolongados períodos de autonomia relativa do Estado – ou se poderia considerar, pelo contrário, que esses processos de distribuição da riqueza sustentados por tempo suficiente para poder gerar grandes estruturas de produção de serviços públicos e distribuição da riqueza se tornaram

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possíveis unicamente por causa da situação de autonomia relativa. Isto é, o capitalismo não é governado pelos burgueses de maneira predominante e, sim, por representantes dos trabalhadores ou por uma composição, sobretudo no tempo, de trabalhadores e camadas medianas, e em todo caso por composições político-sociais nas quais a classe dominante não é mais o componente principal. Nesse caso, a autonomia não é conseqüência do desenvolvimento de uma burocracia racional e, sim, de uma forte recomposição política a fazer forças partidárias de trabalhadores chegar a dirigir o capitalismo. Seria essa a principal situação de autonomia relativa, que obviamente também se combinou historicamente com traços da situação anterior. Isto é, governo de partidos socialistas e operários com racionalidade burocrática formal desenvolvida.

Repassemos brevemente algumas das modalidades, conjunturas de geração de autonomia relativa na história recente do país, em relação a essa breve tipologia de situações de autonomia a fim de podermos focalizar a conjuntura que estamos vivendo.

Na Bolívia tem-se vivido alguns momentos de bonapartismo, dos quais o principal foi o governo de Torres no início da década de 70. Torres foi um militar que deu um golpe de Estado e procurou alianças com setores da esquerda boliviana e também de trabalhadores que não chegaram, porém, a unir-se em uma só massa governamental. Organizou-se, desse modo, um governo de esquerda nacionalista, que teve de coincidir por algum tempo com a experiência de organização da assembléia popular, isto é, uma espécie de parlamento de sindicatos e de partidos de esquerda que tendiam a prefigurar, na perspectiva do projeto político de várias tendências, uma espécie de poder dual embrionário. Em todo caso, o que é significativo nesse momento de bonapartismo foi que se deu um avanço na renacionalização de algumas empresas mineiras que tinham começado novamente a passar ao controle privado no período da ditadura militar anterior. Voltando a momentos anteriores, ao próprio ano de 1952: os governos de Busch e Villaroel na Bolívia podem ser também caracterizados como regimes bonapartistas porquanto uma de suas características centrais se refere a medidas relativas à nacionalização do petróleo, especialmente um desses governos, o da década de 30. Na história do país, o bonapartismo tem estado fortemente ligado à nacionalização ou recuperação do controle sobre os recursos naturais, que obviamente emergem em conjunturas de fortes crises não só de decomposição do bloco dominante como também de ascensão de

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processos de organização de núcleos de trabalhadores, que, todavia, ainda não têm a capacidade de substituição do Estado. Nesse sentido, a principal mediação política, além da própria liderança, implica a estratégia da nacionalização.

Em alguns momentos, a revolução de 52 teria também um componente bonapartista embora não em todo o processo, talvez somente numa fase, no sentido de que se trata de um partido conduzido por membros das camadas medianas que em parte foram funcionários do antigo regime, igualmente composto por líderes de trabalhadores tanto mineiros como industriários e com uma base operária extensa, o qual também teve como núcleo da transformação do Estado a nacionalização geral da mineração. Implica isso que, em todas as experiências históricas, o fato de procurar conferir alguma autonomia ao Estado em relação à classe dominante significa possuir uma base própria de financiamento, e essa base própria de financiamento na história do país sempre significou a nacionalização dos recursos naturais. Tem sido assim desde o século XX com a nacionalização do petróleo em 1935/36 até a conjuntura atual do governo do MAS. Isto é, em condições de países semicoloniais e periféricos, a autonomia relativa do Estado se relaciona fortemente com processos de nacionalização dos recursos naturais e de empreendimento de processos de transformação produtiva, de industrialização, coisa em que muito pouco se progrediu na história do país.

Dir-se-ia que o governo do MNR, nos anos 50, teria possuído uma feição bonapartista porque se tratava de um partido que não era de empresários, nem de membros da classe dominante, nem tampouco um partido predominantemente operário embora tivesse uma larga base social trabalhadora. Articulado e conduzido, sobretudo, por camadas medianas, tinha como desígnio o desenvolvimento do capitalismo no país. Não obstante, apesar de sua posição intermediária na estrutura social, penso que se assemelha, apesar de não ser totalmente igual, à experiência de produção de situações de autonomia de tipo social-democrata, na qual a emergência de forças políticas e de organizações partidárias operárias produz uma mudança nos sujeitos e no conteúdo dos governos no seio de Estados capitalistas. Sendo o MNR uma composição de camadas medianas e de vários tipos de operários, especialmente, na mineração, não era naquele momento uma força mediadora e, sim, uma organização política a sintetizar a ascensão de forças sociais que foram se organizando e reorganizando na mesma sociedade civil por décadas

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anteriores de modo a produzir a mais significativa transformação do Estado na história do país.

Em geral, os bonapartismos não chegaram a produzir uma transformação das estruturas sociais; entretanto, mudaram parte das estruturas de governo sem chegar a afetar as estruturas mais espessas da economia e do Estado. No caso da revolução de 1952, na Bolívia, e da direção do MNR nesse processo, efetivamente ocorreu uma sensível transformação em nível de Estado e em nível de estrutura da propriedade, o que levaria a pensar que em termos mais amplos não se tratava de uma experiência bonapartista e, sim, de uma espécie de revolução política e social que transformou o Estado e que, para fazê-lo nas condições do país, gerou um tipo de condição de autonomia relativa a implicar precisamente o fato de camadas medianas e operárias terem sido encarregadas de organizar o desenvolvimento de ampliação do capitalismo e do país, o que veio a gerar a sua burocracia, provavelmente não muito racional, conforme o sentido weberiano da palavra. Poder-se-ia dizer de maneira um pouco mais geral que os processos de construção de Estados-nação na América Latina no século XX, não necessariamente em suas primeiras fases, ocorreram por meio da geração de condições de autonomia relativa do Estado; esse foi o caso no México, no Brasil e na Bolívia, e em todos esses casos é reproduzido com a nacionalização dos recursos naturais, pelo menos. Também historicamente se pode ver que essas conjunturas, mais ou menos longas de autonomia do Estado, conseqüência da construção dos Estados-nação nesses países, foram interrompidas como parte de estratégias políticas desenvolvidas na região particularmente pelos Estados Unidos. Não são fraturas a decorrer, de maneira exclusiva, da luta de classes no interior do país e, sim, da pesada influência aí do Estado norte-americano. Isto é, as conjunturas de autonomia relativa foram rompidas a partir do exterior, combinadas, obviamente, com processos internos de recomposição das oligarquias econômicas e políticas.

Em minha opinião, estamos vivendo hoje no país uma nova conjuntura de autonomia relativa do Estado produzida por um longo processo de acumulação política a resultar em uma diversidade, por sua vez, de processos de mobilização, de organização e de constituição de sujeitos políticos – que passarei a brevemente caracterizar em termos de uma reconstrução das condições de possibilidade dessa situação. Antes, porém, cabe estabelecer o seguinte vínculo: a atual conjuntura de autonomia relativa do Estado que teria

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como traço nuclear o fato de um partido de trabalhadores, em particular um partido de camponeses como o MAS, chegar ao governo e estar empreendendo a espécie de reformas decorrentes dessa mudança. Por um lado, em relação ao esquema de modalidades de autonomia relativa do Estado, poder-se-ia dizer isto: a que hoje estamos experimentando se vincula mais com essa modalidade na qual o processo de organização de trabalhadores nos sindicatos até a organização de partidos, a luta e a competição eleitoral levam a que trabalhadores, em determinado momento, ocupem fortemente não apenas o legislativo mas também cheguem a dominar a cabeça do Estado e do poder executivo. Nesse sentido se parece com a experiência social-democrata, trabalhista ou socialista européia e, em particular no caso da América Latina, com a experiência brasileira, na qual sindicatos operários organizaram o Partido dos Trabalhadores, que, por sua vez, conseguiu também ganhar as eleições nacionais. A diferença em relação tanto com a história brasileira recente quanto com a mais antiga, européia, é que no caso boliviano se trata de um partido de origem camponesa embora com discurso e projeto nacionais e que o núcleo social de origem, de identificação e de geração de força social e política é também camponês. Nesse aspecto, é a principal diferença e da mesma forma a grande novidade em relação a processos anteriores. Trata-se de uma conjuntura de autonomia relativa produzida pela ascensão de um partido camponês à direção do executivo do Estado boliviano.

Ora, não se trata de um processo de acumulação histórica para poder ficar totalmente contido pela história da ascensão eleitoral do MAS e, sim, de um processo muito mais complexo com diversas vertentes que também gerou várias tensões no modo pelo qual se verifica essa autonomia relativa na reforma do Estado posterior à vitória eleitoral. Uma conjuntura de autonomia relativa do Estado se produz como resultado de uma crise do Estado ou de um segmento do Estado em termos de capacidades de racionalidade geral nos processos de reprodução ampliada. Trata-se, no caso boliviano, de uma conjuntura de autonomia relativa produzida por uma crise estatal. Nesse sentido, cabe caracterizar brevemente algumas vertentes dessa crise de Estado. Vejo brevemente duas: uma a que chamarei “democratização” e outra que tem a ver com o desenvolvimento dos movimentos sociais e comunitários das últimas décadas.

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Democratização Por um lado, fala-se de democratização, na América Latina e na Bolívia

também, em relação aos processos de transição para a democracia e instauração de Estados de direito que se unem com base em um sistema de partidos que sirvam para eleger e renovar as autoridades. Assim, em determinado momento se começou a falar da consolidação da democracia, sobretudo em relação ao sistema de partidos, e esses se viram fortemente modificados em parte considerável da América Latina, onde houve profundas substituições de partidos, crises de forças históricas, emergências de outras novas, etc. No caso boliviano, por duas décadas efetivamente houve uma espécie de oligopólio a produzir governos de coalizão de partidos de empresários que compartilhavam o mesmo projeto econômico e político, em boa parte gerado a partir do exterior do país e oferecido, igualmente, por diversos poderes e redes institucionais de abrangência internacional.

Queria, no entanto, falar de outra espécie de democratização, justamente aquela que põe em xeque este outro aspecto liberal, o da institucionalização liberal da política. Podem-se chamar democratização, também, talvez com mais força, outros processos por meio dos quais setores, por sua vez, diversos da população praticam seus direitos políticos para organizar-se, deliberar e questionar o monopólio da política estabelecido em torno do sistema de partidos, conseguindo, também, penetrá-lo em alguma de suas fases de desenvolvimento.

Primeiro, cabe recordar que a chamada transição para a democracia, que tem como conteúdo específico a reconquista dos direitos políticos e liberdades políticas para a organização, foi conquistada por processos de mobilização separados, originários de núcleos sindicais e trabalhistas de vários modelos, articulados na altura do final dos anos 70 e início dos 80, ainda pela Central Operária Boliviana. Em poucos anos, a política se reencontrou com o sistema de partidos e, em particular, de partidos de empresários sem se dar conta de todas as modalidades de organização da vida política desenvolvidas fora do sistema de partidos e das instituições de mediação estatais em relação à sociedade civil. Interessa-me recordar o seguinte: há um processo de recomposição da sociedade civil devido à reforma neoliberal nas relações Estado-economia e Estado-sociedade civil. De fato, o projeto neoliberal propunha recompor a sociedade civil de forma a desorganizar o núcleo de centralidade operária e o

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sindicalismo que organizava boa parte da política no seio da sociedade civil; e o processo de debilitação e desarticulação desse núcleo ocorreu paralelamente a um processo de ascensão da organização dos sindicatos camponeses e processos de organização de povos nativos em territórios em que antes eram invisíveis politicamente, em particular a Amazônia, o Chaco e as planícies do Leste do país. Durante as décadas de 80 e 90 surgiram diversas assembléias de povos e de centrais de povos indígenas que articularam o conjunto da diversidade social que há desde o Norte amazônico até o Sul do Chaco em organizações que, em sua maior parte, são interétnicas.

A crise do Estado na Bolívia ocorreu porque a democratização percorreu dois caminhos ou canais paralelos em tensão e contradição. Por um lado, há a instituição de um sistema de partidos e eleições que tem como tarefa a mediação com a sociedade civil posterior à fase de destruição de alguns de seus núcleos articuladores prévios. O projeto neoliberal no país, implicitamente, se propôs desorganizar o núcleo operário mineiro que tinha capacidade de articular os espaços públicos no país a partir de uma perspectiva nacional popular, que abarcou a década de 80 e produziu na de 90, com lutas de organizações de trabalhadores cada vez mais débeis, uma consolidação do monopólio estabelecido no seio do sistema de partidos. Ocorreu que, de maneira não-visível, ou não muito visível em outros casos, as pessoas começaram a exercer o direito político à organização, recompondo núcleos de associação e deliberação, principalmente para debater o destino dos bens públicos e em particular dos recursos naturais. Com efeito, foi o debate relacionado à privatização da água e às instituições de sua gestão que gerou a primeira grande revolta e crise do Estado no início do século XXI. As pessoas exerceram o direito à organização e a fazer política não pela via partidária, embora a Constituição conduza as coisas por esse canal, para questionar as principais linhas das decisões tomadas pelo Estado e pelo sistema de partidos, que supostamente encarna a institucionalização da democracia no país. Isso quer dizer que há outra vertente mais substantiva de democratização a implicar desenvolvimento de capacidades de auto-organização, auto-representação e de questionamento das políticas de privatização, que estavam, na verdade, gerando uma desigualdade crescente por caminhos ou processos paralelos.

Exerceu-se também o direito político à organização nos processos de mais fôlego de organização dos povos das terras baixas, por um lado, que geraram, durante as décadas de 80 e 90, suas formas de unificação no interior

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de cada povo ou cultura, e também as formas de unificação e representação interétnica, a qual dera lugar às oito grandes formas de organização dos povos das terras baixas sob a forma de assembléias de povos indígenas ou de centrais indígenas que, em certo momento, se encontravam todas contidas no seio do Cidob (Confederação de Povos Indígenas da Bolívia). A democratização, em tal sentido, significou a organização de uma dimensão da sociedade civil a implicar a presença das formas de unificação e representação desses povos, formas de origem comunitária que tinham ficado invisíveis, estando fora da vida política até os tempos atuais.

Por outro lado, embora anteriormente entroncado com o katarismo, há um processo de maior amplitude e desenvolvimento do sindicalismo camponês nas terras altas e também nas baixas que originou a emergência de dois partidos: o MAS e o MIP. Existe um eixo que vincula o desenvolvimento de sindicatos camponeses com o surgimento de partidos camponeses. Foi esse eixo de democratização ou de exercício do direito à auto-organização para disputar o monopólio do poder político que agendou as principais mudanças no espaço do sistema de partidos e, através disso, também na composição mais geral dos sujeitos de governo no país.

O outro núcleo que se deve articular nestas considerações é o processo relativo à presença de formas comunitárias como matriz organizativa das principais mobilizações ocorridas. Isso aconteceu não só nas terras baixas, a saber, a Amazônia e o Chaco, mas também nas altas, isto é, nos processos de reconstituição de autoridades originárias nas redes de unificação política de povos aimarás e quíchuas. Esse eixo comunitário de ativação política se entrecruzou com os outros dois indicados há pouco, tanto com o sindicalismo camponês quanto, obviamente, com parte substancial dos processos de criação das assembléias de povos indígenas e de centrais interétnicas. Esse conjunto de formas de exercício de direitos políticos sem passar primeiro pela via da organização partidária e da política eleitoral é a origem do ciclo de crises do Estado boliviano. Tal conjunto, porém, leva à recomposição que está sendo produzida por essa conjuntura de autonomia relativa, sobretudo no sentido de que foi essa acumulação histórica o fator que veio a constituir os sujeitos que, atualmente, substituem a burocracia política neoliberal e os membros do bloco dominante, que estavam antes, em pessoa, nos poderes legislativo e executivo, sobretudo.

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Essa democratização, realizada fora dos partidos como processo de organização, auto-organização de comunidades, povos e culturas, sindicatos camponeses e outros núcleos de trabalhadores, é a principal condição de uma democratização tornada possível na hora da autonomia relativa assim produzida. Isso é, o fato de que povos antes invisíveis na política surjam, com suas próprias organizações, unificados e articulados interétnica, regional e inclusive nacionalmente com outros núcleos de organização tanto de comunidades indígenas quanto de trabalhadores camponeses, em particular, faz parte dos processos de democratização; isto é, a redistribuição do poder e sua “desmonopolização” passa primeiro pela articulação dessas capacidades organizativas, pela organização dos que ocupam posições subalternas dentro nas estruturas econômicas e políticas do país. Este processo de auto-organização e geração de capacidades de auto-representação é um aspecto substantivo da democratização, é o que irá possibilitar uma democratização em nível do Estado, poder executivo e legislativo, em particular. De fato, o partido que em seguida seria o mediador e catalisador dessa acumulação política e histórica, no âmbito das instituições do Estado – o MAS – foi produzido como parte do processo de organização dos plantadores de coca. Seu crescimento eleitoral posterior se deve à aparição dos outros movimentos sociais e políticos, brevemente caracterizados. Isso nos leva a falar sobre a interpenetração de espaços e processos políticos em termos da produção histórica de mediação entre essa acumulação, democratização que ocorre fora do Estado, e a que logo se produziria no seio do próprio Estado, a qual tem a ver com a dinâmica dos processos eleitorais e a mudança no sistema de partidos.

A municipalização do país e o início de eleições nesse nível, por sua vez, ampliaram o espaço de cidadania ou espaços institucionais para o exercício de direitos políticos tendo como base uma cultura política liberal. Nos primeiros ciclos, esses espaços continuariam a ser dominados pelos partidos de coalizões neoliberais que impunham seus candidatos, inclusive externos, aos municípios em que seriam eleitos vereadores ou prefeitos. Não obstante, essa reforma abriu um espaço que iria ser politizado em forma de mudança das condições da presença neles de sujeitos políticos. Há um segundo momento correspondente justamente a características de desenvolvimento político nos dois âmbitos, o do sistema de partidos e o da sociedade civil, que se refere ao momento em que as organizações e a sociedade civil, juntas locais, sindicatos, grêmios e outras espécies de associação negociam com os partidos a inclusão de seus

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representantes nas listas partidárias tanto para eleições nacionais quanto para municipais. Esse momento de negociação política também corresponde ao fato de os partidos necessitarem de candidatos com certo grau de representatividade por motivo da sua condição de afastamento em relação à vida política no seio da sociedade civil, a não ser, justamente, nos momentos eleitorais. Esse é um momento, ou fase, de permuta política debaixo do predomínio dos partidos porquanto são eles os possuidores da legalidade no seio das instituições do Estado, e uma das conseqüências desse intercâmbio é, efetivamente, chegarem os representantes de comunidades, sindicatos, grêmios e juntas locais a ser vereadores e deputados passando por um processo de aprendizagem de como fazer política no seio das instituições liberais do Estado – em sua fase neoliberal. Isso corresponde ao momento em que o modelo neoliberal, suas políticas e sistema de partidos não haviam ainda sido questionados por não haver capacidades preparadas para questioná-los de modo geral.

As condições mudaram quando a emergência de movimentos antiprivatização, a guerra da água e a projeção política auferida pela participação em eleições mudaram o sentido da acumulação histórica e fizeram com que essas capacidades de organização política no seio da sociedade civil, e mais além dela, tendessem a desviar o horizonte do intercâmbio e da ação política. Desenvolve-se, por um lado, a inclinação a votar em candidatos de organizações da própria classe e do próprio povo, e nesse sentido há uma linha de continuidade, estabelece-se uma troca política com o MAS, isto é, negocia-se a inclusão de representantes no MAS, em situações, porém, em que já não se trata só de uma rede de clientelas e, sim, de uma composição política em termos de configuração de um bloco social subjacente a essa recomposição de sujeitos políticos. A possibilidade da autonomia relativa não ocorre nesse segundo momento em que as organizações da sociedade civil negociam a inclusão de seus candidatos nos partidos já que a presença deles em cargos públicos elegíveis não significou reduzir e substituir o predomínio dos membros da classe dominante na direção do Estado. Isso é, não conseguiu modificar substancialmente a situação instrumental do Estado. Contudo, após a ruptura produzida pela emergência dos movimentos antiprivatização e pró-nacionalização surgiram novas articulações políticas entre partidos, sindicatos camponeses e outros núcleos organizativos da sociedade civil, e foi justamente essa união de forças que tornou possível efetuar mudanças nas pessoas dirigentes do executivo e do legislativo.

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Na minha forma de ver é a combinação de movimentos sociais, sindicatos camponeses, processos de organização de povos indígenas e partidos eleitorais o que gera as condições de possibilidade de conjuntura de autonomia relativa do Estado. Em torno disso, o ponto que discutíamos brevemente é que houve um processo prévio, muito longo, de aprendizagem, competição e participação no seio de instituições liberais que preparou a erupção dessas novas forças da esquerda camponesa ao executivo no país.

3. Características da condição de autonomia relativa do Estado

O primeiro traço de configuração de uma conjuntura de autonomia relativa do Estado, na Bolívia, tem a ver com a chegada de um presidente de origem camponesa e comunitária ao executivo do país, cuja história política está ligada à sua condição de dirigente sindical dos produtores de coca durante muito tempo, inclusive até hoje, e em seguida com a composição do novo gabinete que incluiu diversos dirigentes de vários núcleos de trabalhadores do país. No ministério atual se encontram um representante dos trabalhadores da indústria, um representante dos trabalhadores mineiros da vertente cooperativa, uma dirigente das trabalhadoras domésticas e um dirigente das juntas locais do Alto de La Paz. Isto é, membros de setores de trabalhadores discriminados, e muito, nas condições anteriores e em toda a história política do Estado boliviano. Dito em poucas palavras e de maneira mais geral, acham-se no topo do Estado boliviano compondo o executivo representantes das organizações de trabalhadores e não membros da classe dominante embora não deixe de se fazer presente um representante dos empresários de Santa Cruz, que, no entanto, não faz parte do núcleo predominante. Esse gabinete, por sua vez, é composto por profissionais militantes da esquerda de setores de camadas medianas, e essa composição se repete em níveis de menor hierarquia nos ministérios, isto é, há presença de dirigentes sindicais, de profissionais provenientes de camadas medianas e também de origem aimará e quíchua. Nesse aspecto, configurou-se uma das características da situação de autonomia relativa, uma substituição de sujeitos governantes e uma composição da presidência e do gabinete com forte presença de trabalhadores camponeses e outros núcleos populares no país e, em conseqüência, um deslocamento da burguesia como sujeito predominante.

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Falta analisar o outro componente-chave, que é o conteúdo do governo, isto é, em que medida se afasta, ou não, da reprodução dos interesses da classe dominante. O principal componente da condição de possibilidade de autonomia relativa no novo governo do país tem a ver com a política de nacionalização dos hidrocarbonetos. A nacionalização tem o objetivo de aumentar o nível de receitas do Estado boliviano para permitir-lhe, também, maior autonomia no tomar de decisões com respeito à política econômica e ao investimento público. A mesma autonomia é procurada em relação a constrangimentos estruturais externos e igualmente em relação à determinação dos interesses da classe dominante no país.

Em não havendo outra possibilidade que não a de responder a interesses exclusivos da classe dominante, isso implica um nível de receitas estatais que possa atender a necessidades de outros grupos da sociedade. Essas receitas poderiam ocorrer via aumento de impostos sobre a atividade produtiva da economia privada ou, principalmente, pela forma como agora estão sendo enfrentados os problemas, através da recuperação de maior controle sobre a propriedade e a renda gerada pela exploração dos recursos naturais, em particular os hidrocarbonetos.

A conjuntura de autonomia relativa do Estado está sendo financiada e se financiará enquanto a nacionalização dos recursos naturais durar; talvez o grau de recuperação do controle de propriedade e renda atual não seja suficiente para uma manutenção sustentada da condição de autonomia relativa e, com certeza, precisará da nacionalização, também, de outros recursos naturais do país e de um aumento dos royalties ou um controle geral dos processos de exploração dos recursos naturais. Isso nos leva a examinar brevemente os vínculos entre autonomia relativa do Estado e o grau de transnacionalização das estruturas econômicas.

Grau de transnacionalização das estruturas econômicasSe a autonomia relativa implica distanciamento em relação aos interesses

das classes dominantes por parte dos dirigentes do Estado em condições de países periféricos articulados de maneira altamente subordinada ao sistema mundial, isso implica também distância em relação à classe dominante transnacional ou de interesses capitalistas transnacionais e em relação à soberania de outros Estados que penetraram fortemente no país. Em tal

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sentido, cabe imaginar que a articulação de uma condição de autonomia relativa em países como a Bolívia é algo a ser observado em relação com a dimensão transnacional do controle das estruturas econômicas e também em relação com a presença de soberania de outros Estados em território nacional. É nesse sentido que um componente essencial, o principal do país, na produção dessa autonomia relativa em relação a interesses transnacionais é precisamente o processo de nacionalização. A nacionalização é a principal condição econômica e política de distanciamento em relação aos interesses transnacionais; isso, como se vê no caso do país, está sendo feito negociadamente com esses interesses. Por um lado, verificam-se decisões internas sobre o grau de recuperação do controle relativo a propriedade, renda e comercialização, em torno dos quais se discute e se interage com interesses transnacionais para definir as novas relações entre capitais voláteis e controle estatal dos recursos da natureza. Alcançar o grau de autonomia relativa perante esses poderes sem fronteiras é o que permitirá também ao governo ter autonomia em relação à classe dominante no panorama interno já que tem sido essa classe dominante, em boa medida, apoiada, organizada e conduzida por esses interesses transnacionais. O que está em jogo no momento é o grau de acumulação interna, política proveniente dos vários processos assinalados e também da capacidade do MAS de enfrentar esses processos de reforma e negociação e os constrangimentos transnacionais que estão procurando escapar das reformas em curso.

A nacionalização implica rearticular o que Zabaleta chamou a forma primordial, isto é, o modo de relação entre Estado e sociedade civil, sobretudo no que se refere à relação entre Estado e economia, e o modo pelo qual o Estado consegue ter capacidade relativa e propriedade sobre a natureza, que é a condição de produção, especialmente nos processos econômicos que se dedicam à exploração de recursos naturais, ao longo da história boliviana o eixo da economia nacional. A nacionalização implica também uma rearticulação da forma primordial em termos de mudança de sua relação entre o país e outros Estados e poderes transnacionais.

O principal é, justamente, a mudança das margens de controle do excedente produzido em torno da exploração de recursos naturais, que, da mesma forma, tem efeitos sobre a capacidade de gerar condições de tomar decisões mais ou menos autônomas no âmbito político.

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4. Reforma agrária e autonomia relativa.Outro quadro em que se gestionam condições de autonomia relativa é

o da reforma do regime de propriedade agrária.

Primeiro, essa conjuntura de autonomia relativa é basicamente conseqüência de organização, constituição de forças políticas e acumulação política permanentemente feita em âmbitos agrários, isto é, são sujeitos políticos de matriz agrária os que produziram a crise do Estado boliviano, a condição dessas mudanças políticas e a condição de possibilidade de autonomia relativa do Estado. Uma das feições da situação instrumental do Estado era que parte significativa dos gabinetes e das câmaras de senadores e deputados era composta por latifundiários e representantes de interesses empresariais agrários. Nesse sentido, uma das mudanças que caracterizam essas situações de autonomia relativa é o deslocamento desses latifundiários do poder executivo; alguns deles continuam na câmara de senadores e de deputados. Para desenvolver autonomia relativa no Estado é preciso não apenas o deslocamento dos latifundiários do poder executivo mas também uma reforma agrária. Sendo assim, a autonomia relativa na Bolívia iria sustentar-se em processos de nacionalização e reforma agrária.

A reforma agrária é possível em uma situação de autonomia relativa do Estado ou por meio de revoluções. Como a crise do Estado e a condição de autonomia relativa foram produzidas principalmente por sujeitos agrários em suas diferentes formas comunitárias, sindicais e partidárias, o tema central dessa conjuntura de autonomia relativa é e continuará a ser a questão da reforma agrária. Sendo assim, é provável seja esse o tema central de conflito e debate a levantar propostas para reformas no processo da Assembléia Constituinte.

Uma das principais formas e extensões da situação instrumental do Estado era o fato de os principais latifundiários e pecuaristas do Oriente, Amazônia e Chaco serem os deputados e senadores que representavam seu departamento no parlamento boliviano. Iniciada a municipalização, foram também candidatos a prefeitos e vereadores ou, então, foram os seus empregados os candidatos a esses cargos públicos. Sob tais condições de estrutura patrimonial nesses territórios, o desenvolvimento da autonomia relativa implicaria em primeiro lugar uma reforma agrária, isto é, uma redistribuição da terra. É em tal sentido que o segundo elemento do programa do próprio MAS tem a ver com esse

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tema, que, além disso, é fundamental para as organizações sociais mais importantes que sustentam o processo.

5. Assembléia Constituinte como faceta da autonomia relativa do Estado

Poder-se-ia pensar que uma Assembléia Constituinte faça parte de uma conjuntura de autonomia relativa do Estado. Ora, isso depende de como se chega à assembléia e de como é a sua composição, ou seja, das condições de possibilidade que institucionalmente a assembléia teria para produzir um ordenamento constitucional que não responda nem exclusiva nem prioritariamente aos interesses da classe dominante. A correlação de forças eleitorais faz com que o início da Assembléia Constituinte, na Bolívia, não seja em sua maioria da classe dominante. Pode-se pensar aí na burguesia financeira, industrial, etc., ou na aristocracia latifundiária. Há uma maioria que provém das classes operárias ou de outros setores populares que não correspondem a formas de monopólio econômico. Embora o MAS tenha incorporado como candidatos vários setores prósperos em diferentes regiões do país, inclusive alguns dos principais agentes econômicos em nível local, numericamente não há predomínio da presença de membros da classe dominante ou de representantes de seus interesses. Há um constrangimento institucional que foi conseqüência da lei de convocação aprovada não apenas pela direita como igualmente pelo MAS que reduziu a presença de trabalhadores e a diversidade de povos e culturas existentes no país, o que estabelece limites ao conteúdo da deliberação por limitar os sujeitos que teriam direito a liderar e projetar a nova ordem constitucional.

Essas duas coisas poderiam levar a uma situação em que numa das facetas da autonomia relativa que é a Assembléia Constituinte se chegue a um projeto que não modifique as estruturas econômicas e políticas de maneira substancial para mexer na estrutura de classes do país e, em vez disso, consolide uma situação de autonomia relativa na qual se conserve o regime de propriedade existente, com algumas reformas, mantendo-se, como resultado, as condições estruturais de reprodução da classe dominante e se institucionalize ou se amplie e se reproduza a continuidade da autonomia relativa no senso de o capitalismo e os interesses da atual classe dominante virem a ser geridos por organizações

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de camponeses e trabalhadores, como já está acontecendo. Esse é um efeito que pode resultar não só da conformação da Assembléia Constituinte elaborada pelo MAS e pela oposição de direita como também do limite que está hoje em discussão e que tem a ver com a possibilidade de a classe dominante usar os dois terços para vetar as reformas que essa Assembléia possa produzir como novo projeto constitucional para o país.

Por último, gostaria de assinalar duas tendências ou fatos políticos a prefigurar que uma das conseqüências da Assembléia tanto a médio quanto a curto prazo venha a ser a organização da continuidade de uma conjuntura de autonomia relativa que envolva a permanência da classe dominante e das estruturas capitalistas dominantes no país, as quais, no entanto, seriam governadas por agremiações de operários, em particular por um partido de origem camponesa que poderia ser ampliado, ou melhor, que já vem sendo ampliado como produto de seu crescimento eleitoral.

A primeira dessas coisas se refere aos limites contidos na proposta que o MAS apresentou na campanha para a constituinte. Em nível de regime político e de regime econômico não há nenhuma proposta que implique passar de uma condição de autonomia relativa, isto é, de governo que reproduz as estruturas sociais e a classe dominante, a uma situação em que haja uma mudança da estrutura classista, por exemplo, a modificação do monopólio da posse da terra, sua eliminação ou transformação através de várias formas muito mais comunitárias, coletivistas e associativas, e de maneira semelhante no restante da organização das estruturas e processos econômicos no país.

A ênfase foi posta no plano da nacionalização e, portanto, na ampliação das receitas do Estado e do grau de controle sobre a economia dos recursos naturais que lhe enseje ter um grau de investimento público e de autonomia em relação a poderes transnacionais e à classe dominante interna. É exatamente isso que pode consolidar a presença de uma nova burocracia política de origem camponesa e popular que administre o capitalismo e subordine outras estruturas sociais ao capitalismo na Bolívia.

Outro elemento a reforçar essa tendência ou, quem sabe, os dados mesmos dessa tendência, tem a ver com o fato de que um dos componentes da estratégia política do MAS consiste em produzir o que eles chamam “hegemonia”, uma hegemonia do partido não só no seio das instituições

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públicas e dos poderes do Estado – executivo, legislativo – mas também no seio da sociedade civil. Como essa não é uma hegemonia que implique, basicamente, o controle monopolista na direção de instituições da sociedade civil e dos espaços de legislação, mediação, representação e poder executivo do Estado, ela não é acompanhada pela articulação de um projeto político, no sentido de composição de classes e grupos subalternos.

O que fica evidente é que se projeta a construção da hegemonia de um partido. Em outras palavras, está-se projetando a continuidade de uma nova burocracia política que pela via da nacionalização e de uma reforma agrária parcial poderia consolidar uma nova condição de autonomia relativa do Estado que possa ser duradoura, caso as coisas lhe saiam bem por esse lado.

Ocorre que vários movimentos sociais e políticos não apenas querem a autonomia relativa do Estado, que é um horizonte de transição, e, sim, uma reviravolta. O MAS continuará a mover-se nesse bloco de forças institucionalizadoras que surgem além dos limites do Estado, como a sociedade civil, os constrangimentos estruturais que respondem aos interesses da classe dominante no âmbito nacional e os poderes transnacionais que já penetraram no país e continuam tendo presença legal sob a atual modalidade de nacionalização.

Essa, pois, é uma série de curtas colocações para sugerir uma caracterização da atual conjuntura política do país, ou da atual situação política do país com uma conjuntura de autonomia relativa do Estado. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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* Universidade de Brasília (UnB). [email protected]

A construção do modelo industrialista brasileiroAmado Luiz Cervo*

A o chegar ao Brasil, em 1808, D. João tomou duas medidas econômicas que revelam o estadista de visão prospectiva: abrir os portos ao comércio exterior, pondo fim ao regime colonial, autorizar e estimular a instalação de fábricas, dando o primeiro impulso ao progresso econômico. O ordenamento legal oriundo dessas medidas estabeleceu, duzentos anos atrás, as diretrizes de duas tendências que iriam disputar o comando do processo econômico pelos próximos duzentos anos: o livre mercado, tido por uma corrente do pensamento econômico e político como estratégia prioritária, e a vocação industrial do país, tida como estratégia prioritária por outra corrente.

As duas tendências vinculam-se ao interno e ao externo por todo o tempo: por um lado, envolvem a vida política e o avanço da sociedade com a possibilidade de preponderar uma sobre outra ao longo da história; por outro, envolvem o modelo de inserção internacional, de que também depende a sorte da nação.

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A construção do modelo industrialista brasileiro

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D. João: abertura dos portos e fundação da indústriaA Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que abriu os portos às nações

amigas, não atendia exclusivamente aos interesses ingleses, que exigiam o mercado brasileiro como recompensa em razão do apoio dado à transferência da Corte portuguesa para o Brasil. Tanto D. João quanto seu conselheiro, José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, alimentavam o sonho de construir um Brasil moderno não apenas agrário mas feito também de indústria. O liberalismo que concebiam era pelos dois visto como instrumento de progresso, útil ao desenvolvimento econômico equilibrado dos dois setores do capitalismo que então se expandiam: indústria e agricultura. Por tal razão, vieram agregar-se à Carta o decreto de primeiro de abril de 1808, que liberava a criação das manufaturas e estimulava sua expansão, bem como o Alvará de 28 de abril de 1809, que especificava incentivos concretos para instalação de fábricas no país. Essa seqüência de medidas desagradou a George Canning, ministro britânico de estrangeiros, bem como os comerciantes e industriais ingleses, que exigiam o mercado brasileiro para seus manufaturados, sem se obrigarem a competir com nações amigas do Brasil, particularmente com os Estados Unidos.

A pressão da Inglaterra pela abertura dos mercados das nações que acediam à Independência fazia-se sentir em toda a América, no início do século XIX. A segunda guerra de independência dos Estados Unidos deve ser tomada como movimento de resistência a essa política inglesa de portas abertas ao passo que a assinatura de tratados de livre comércio pela maioria dos países latino-americanos de então, como subserviência aos desígnios da diplomacia e aos interesses da economia inglesa.

Os incentivos do governo de D. João surtiram efeitos em vários pontos do território brasileiro. Fábricas se espalhavam e davam origem a alguns centros industriais, como o núcleo de Barbacena, em Minas Gerais. Não podendo resistir, contudo, à pressão do governo inglês, D. João, apesar da relutância, viu-se na contingência de firmar o tratado de livre comércio de 1810 entre Brasil e Inglaterra e de ceder, por meio da tarifa de 15% ad valorem, tratamento preferencial aos manufaturados daquele país industrializado, quase um “regime do exclusivo”, requisitado sem constrangimento pelo governo britânico.

O freio posto à expansão da indústria brasileira em 1810 produziu estragos sobre o impulso inicial e conteve a tendência de realização da vocação industrial do país, embutida com visão estratégica na política de abertura dos

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portos de 1808. A política inglesa de portas abertas da periferia ao capitalismo central submeteria a si o processo de independência durante a década de 1820, não sem provocar uma polêmica política em torno da industrialização nas instituições do governo brasileiro. O pensamento industrialista fora, com efeito, lançado com a transferência da Corte e reagiria com veemência, de tempos em tempos, diante da circunstância de ser um pensamento secundário na esfera política, lugar onde se articulam representações e ações que se concretizam na idéia de nação a construir.

Independência: tratados liberais e desindustrializaçãoComo se sabe, o tratado inglês de 1810 seria renovado em 1827, depois de

adaptado ao avanço do capitalismo industrial. E tornou-se inspiração para duas dezenas de tratados firmados pelo Brasil com as potências capitalistas entre 1825 e 1828. Parlamentares brasileiros de então chamavam-nos de “sistema dos tratados”, historiadores recentes de “tratados desiguais”.

Embora não fosse prerrogativa de deputados e senadores deliberar sobre os tratados com que a diplomacia de D. Pedro intercambiou o mercado nacional pelo reconhecimento da Independência, esses tratados repercutiram nos debates do Parlamento, inaugurado em 1826, e fomentaram acirrada controvérsia acerca da industrialização.

Precedera esse debate o livro escrito por Nicolau Pereira de Campos Vergueiro em 1821 e publicado no ano seguinte em Lisboa, com o título História da fábrica de Ipanema.

O livro narra a história da fábrica de ferro localizada em São Paulo, um dos resultados da política industrialista de D. João, e serve-se de seu êxito como exemplo de viabilidade da industrialização do país, em favor da qual alinha argumentos bem ponderados: a) o Brasil tem excedentes de riqueza agrícola que deve destinar às atividades industriais para estabelecer o equilíbrio econômico; b) iniciar, como fez, pelo ferro, substrato criador de outras indústrias; c) o impulso inicial deve advir do Estado, por meio de medidas de incentivo, visto que os “capitalistas” se movem pelo cálculo do lucro, não-existente nessa fase, e o Estado pelo interesse nacional; d) o sucesso do Estado como indutor da indústria pela via da sabedoria política é condicionado pela racionalidade, ou seja, começar pela indústria de base, incentivar depois os outros ramos, criar escolas

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técnicas, promover aumento e boa remuneração da oferta de trabalho, enfim, prover o país de infra-estrutura com o fim de baratear o preço dos produtos.

O argumento de Vergueiro consiste em atribuir ao Estado o papel de máquina central a promover a vocação industrial da nação. Comunga essa filosofia política com o Deputado Raimundo José da Cunha Matos, o qual, nos primeiros dias de vida do Parlamento, em 1826, apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei de obrigatoriedade de as encomendas públicas serem feitas às fábricas nacionais. Vergueiro o apoiou, porém seu projeto sucumbiu diante dos interesses do segmento agrícola, que compunha a quase totalidade da representação política e da produção nacional. A esse segmento hegemônico interessava promover a importação de manufaturados que consumia para facilitar a exportação de bens agrícolas que produzia.

Coerente com sua visão e incansável como agente político, Cunha Matos esteve na origem da criação, em 1827, da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, cuja revista, O Auxiliador da Indústria Nacional, foi lançada em 1833 e se manteria pelo século XIX. Sociedade e revista dedicavam-se à promoção do conhecimento, ao debate de idéias, à educação e à capacitação técnica dos produtores.

Vergueiro e Cunha Matos associavam a industrialização à política de comércio exterior, ao fortalecimento do poder nacional e a incentivos genéticos por parte do Estado. Essa estratégia econômica assentada em três pilares era adotada pelas nações que se tornavam potências industriais no século XIX. No Brasil, contudo, os defensores do livre comércio e do exclusivismo agrícola, mesmo percebendo que perpetuavam o desequilíbrio econômico estrutural e a infância da sociedade, além de obstruir a construção da potência, recusavam-se a apoiar idéias e projetos de propulsão da vocação industrial do país, como desejavam Vergueiro, Cunha Matos e outros homens públicos.

Em sua formação original à época da Independência, lançou-se, portanto, no Brasil, o debate racional em torno das duas tendências que comandam, associadas à política exterior, o destino da nação: manter-se primária e agrícola, ou evoluir para a maturidade e tornar-se economia industrial. A primeira tendência se manteria hegemônica na esfera política porque atendia aos interesses do grupo hegemônico na esfera social, mas a racionalidade do debate introduz no pensamento econômico brasileiro, em definitivo, a importância de ambos os setores, encerrando, em teoria, seu confronto.

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Retorno do pensamento industrialista e seus efeitos nos meados do século XIX

A hegemonia do pensamento liberal instalou-se na esfera da ação política à época da Independência. Buscava, nessa esfera, prevenir e eliminar as três providências que requisitava do Estado a corrente do pensamento industrialista: proteção às atividades nacionais, incentivos iniciais e reforço do poder nacional como conseqüência. O puro pensamento liberal brasileiro, fundador da nação, permaneceria durante dois séculos idêntico à sua formulação original, expressa em 1827 por Bernardo Pereira de Vasconcelos: “a indústria... não precisa de outra direção que a do interesse particular, sempre mais inteligente, mais ativo e vigilante que a autoridade... a nossa utilidade não está em produzir os gêneros e mercadorias em que os estrangeiros se nos avantajam”.

Quando expiravam os tratados desiguais, na década de 1840, a controvérsia da época da Independência ressurgiria com maior veemência no debate político e na opinião pública. A política de comércio exterior, definida pelos tratados e aceita com subserviência pelo Estado, nacionalizou-se. Com isso, os donos do poder haveriam de repensar as tendências da construção nacional, seja apenas como perpétua economia primária, seja ao mesmo tempo como moderna economia industrial.

O pensamento industrialista irrompeu, então, reivindicando uma política de comércio exterior adequada à implantação da indústria e não apenas destinada a prover o tesouro com sua função fiscal. Próceres da Independência, como Vergueiro (Cunha Matos já era falecido), tiraram da gaveta seu discurso, e liberais puros de primeira hora, como Vasconcelos, mudaram de pensamento. A vocação industrial do país assumiu, então, a prevalência na esfera política e contagiou a opinião ao ponto de suscitar a primeira geração de empreendedores brasileiros e um novo surto de industrialização.

A prevalência do pensamento econômico e político desse momento operava por meio do conceito de “revolução industrial”, que espelhava a consciência de mudanças estruturais necessárias. Havia chegado o momento, dizia-se, para o país embarcar no movimento histórico do capitalismo e galgar sua maturidade pela multiplicação das fábricas, seguindo o exemplo das nações avançadas da Europa e dos Estados Unidos da América. O Parlamento, assim, concebeu um projeto de país moderno consoante a expectativa da vocação

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industrial e estabeleceu, em 1844, níveis de tarifas adequadas ao fomento das manufaturas.

Em conseqüência desse ambiente político e social e das medidas de Estado, os historiadores referem o primeiro surto – de fato o segundo – de industrialização, de que se tornou ícone a figura do Barão de Mauá, o maior empresário capitalista brasileiro do século XIX. Descrevem, a seguir, o caráter passageiro tanto da condição hegemônica do pensamento industrialista quanto da própria industrialização, ambos incapazes de perpetuar-se ao ponto de transformar a história. Concluem que o projeto da geração dos quarenta não teria vingado em razão da pressão inglesa, da instabilidade das tarifas alfandegárias, da escassez de mão-de-obra para as indústrias e, sobretudo, do interesse dos grandes proprietários, satisfeitos com a exportação primária e com a possibilidade de importar manufaturados e ostentar vida luxuosa na Corte, nas cidades e nas fazendas.

Um século de economia primáriaO malogro da tentativa de industrialização dos meados do século

XIX deve ser relativizado. Não mudaram as estruturas da economia, é bem verdade, mas mudaram as estruturas mentais do Estado brasileiro, entendido como pensamento dirigente. Em definitivo, indústria e agricultura foram considerados setores vitais, não conflitivos, complementares, indispensáveis ao progresso e adequados aos interesses de toda a sociedade. Uma questão nacional resolvida.

A tendência agrária manteve-se como força profunda até 1930, ao submeter a si as instâncias de comando: a representação e a ação pública, bem como a política exterior, consubstanciada na diplomacia da agroexportação. Perpassou a mudança de regime em 1889, da monarquia à República, fortalecendo-se, aliás, nessa virada. A República espelha, precisamente, a substituição do mesmo pelo mesmo na esfera política, do grupo constituído pela velha aristocracia imperial pelo grupo de novos ricos, barões do café. Do velho grupo dirigente que contemplava com certa objetividade o interesse nacional, por um novo grupo social disposto a agir sem escrúpulos em favor do próprio interesse, que confundia com o interesse nacional.

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Industrialização com abertura do processo produtivo: 1930-89

A vocação industrial do país, fermento mental da revolução de 1930, jazia de forma subjacente no inconsciente coletivo desde a Independência. A era Vargas converte a industrialização em pensamento hegemônico na representação política, nas ações do governo e na articulação com a sociedade e com o modelo de inserção internacional.

O paradigma desenvolvimentista espalhou-se, então, pela América Latina nas experiências de grandes e pequenos países, mas sua formulação mais coerente, contínua e racional toma forma na conduta do governo e da sociedade no Brasil, onde produziu, ao longo de sessenta anos, precisamente em razão dessa continuidade, os melhores frutos.

Sem conhecer ruptura na formulação como estratégia de longo prazo, porém com variação de desempenho nos diferentes governos, o processo de industrialização não dá razão à corrente do pensamento econômico brasileiro que o concebe como modelo substitutivo de importações. Jamais esteve na mente dos dirigentes, especialmente dos que evidenciaram melhor desempenho e maiores resultados, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel, substituir importações.

Com base em raízes históricas conceitualmente corretas, a vocação industrial do Brasil toma forma desde os anos 1930 como bem em si e valor supremo da ação política, ao qual se haveria de subjugar o modelo de inserção internacional. Substituir importações era conseqüência, não objetivo, tampouco modelo.

O desenvolvimento era perseguido por etapas: a implantação da indústria de transformação numa primeira fase, da indústria de base numa segunda, enfim a geração de empreendimentos e tecnologias de terceira geração. Essas fases não devem ser tomadas como períodos estanques, porque vinham imbricadas por vezes em projetos simultâneos, porém marcam a evolução ao longo do tempo.

Ao setor externo cabia função secundária nesse processo de industrialização, de acentuado caráter introvertido. Para espalhar as fábricas pelo país, a indústria de transformação chamou o empreendimento e a tecnologia de fora, abrindo desse modo o setor produtivo. A indústria de base

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e a maturação do desenvolvimento viriam, contudo, por meio das grandes empresas de matriz nacional que se constituiriam ao longo do tempo. Todas se serviram da proteção que o Estado lhes concedia visto que se voltavam para o mercado interno, sem se preocuparem com a produtividade que se exige de empreendimentos que operam em condições de competitividade sistêmica internacional.

Os analistas da experiência brasileira de industrialização se detêm nos êxitos alcançados: a modernização do país, o aumento do emprego nas áreas urbanas, a expansão da renda do trabalho, sobretudo a continuidade das políticas públicas. Mas indicam as distorções do processo: instabilidade monetária, protecionismo exagerado, acomodação das indústrias à baixa produtividade, desigualdades sociais não-resolvidas. Um bom diagnóstico a exigir do Estado tanto o choque de abertura como a introdução da preocupação social em sua representação e estratégia de ação. A primeira requisição levou novo grupo ao poder nos anos 1990, a segunda na primeira década do século XXI.

A experiência argentina, durante o período do desenvolvimentismo brasileiro, entre 1930 e 1989, apresenta os melhores parâmetros de comparação com a brasileira. Do lado brasileiro, o caso resolvido e sem retorno de nação industrial em primeiro plano, que não sonega, contudo, apoio direto e contínuo à agricultura, setor secundário, porém essencial para o interesse nacional; do lado argentino, o caso não-resolvido entre vocação industrial ou agrícola da nação, a provocar ciclos e contraciclos de setores em conflito, instabilidade que se observa na representação política pelo confronto entre liberais tradicionais da União Cívica Radical e peronistas, esses últimos indefinidos em perspectiva histórica. Ademais, os regimes militares também agiram contrariamente: o brasileiro deu continuidade e reforçou a organização econômica e sindical industrial ao passo que o argentino se propôs matá-la.

No Brasil, os dirigentes industrialistas não abriram conflito com o setor agrário. Bem ao contrário, desde 1930, a agricultura, velha fonte de riqueza nacional, permanece presente na estratégia de ação dos governos. Indicamos a seguir três exemplos com a finalidade de confirmar a hipótese.

Entre outras medidas, Vargas convocou, em 1931 a Conferência Internacional do Café, reunindo produtores e consumidores em São Paulo, de que resultou a criação do Bureau Internacional do Café, com sede em Genebra, voltado para o controle do preço dessa commodity no mercado internacional.

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Em solução de desespero, promoveu a queima de grandes estoques, naquele momento de crise mundial do consumo, com o fim de impedir queda maior do preço. O Estado a serviço dos interesses da agricultura.

Considerado expoente do desenvolvimentismo brasileiro em razão de seu êxito, Juscelino Kubitschek (1956-1961) estabeleceu sua estratégia de governo por meio do Plano de Metas, no qual figuravam cinco áreas de ação prioritária, na seguinte ordem: energia, transporte, agricultura, indústria e educação. Tidos como setores propulsores, sem cujo impulso simultâneo não haveria desenvolvimento sustentável, haveriam de receber os mesmos cuidados. Ernesto Geisel (1974-1979) deparou-se, entre outros problemas econômicos a enfrentar, com os efeitos da crise de preços do petróleo que ameaçava o processo de industrialização. Por tal razão, o II Plano Nacional de Desenvolvimento voltou-se para dois suportes da industrialização, considerados frágeis para o fim de garantir a continuidade do processo de desenvolvimento: o setor energético e a indústria de base. Quanto ao primeiro, a agricultura foi chamada a se associar à indústria, especialmente à automobilística, por meio do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), ponto de partida da atual indústria do etanol.

Esses exemplos confirmam a associação natural entre agricultura e indústria no processo de desenvolvimento brasileiro. A criação em 1972 da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), voltada para a geração de tecnologia da agropecuária nacional, e sua atuação até o presente ratificam a idéia de que os dois setores básicos da economia, na visão do governo e no envolvimento da sociedade, são complementares e produzem o necessário equilíbrio estrutural do processo. A conjugação dessas políticas e sua perseverança no tempo, acima de governos, partidos e regimes políticos, salva a vocação industrial do país, o bem supremo, e promove a agricultura, ao ponto de elevar o agronegócio ao mais elevado nível de produtividade sistêmica global e converter o país no primeiro exportador mundial de alimentos.

A abertura do mercado nos anos 1990Um hiato de instabilidade histórica se verifica no Brasil, durante a década

de 1990. Sob o signo do neoliberalismo, a abertura do mercado de consumo e as privatizações ocorreram na forma de tratamento de choque e colocaram em

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risco a continuidade do projeto industrial nacional. Desnacionalização, alienação de ativos de empresas brasileiras, penetração do empreendimento estrangeiro em setores estratégicos, especialmente nas comunicações, déficit do comércio exterior, das contas externas, estagnação econômica e desindustrialização em marcha são alguns efeitos da primeira fase da abertura.

O país havia, contudo, avançado o suficiente em organização de classe e maturação do sistema produtivo para reagir e domar o curso da abertura, desejada irrestrita e ilimitadamente pelos dirigentes da era Fernando Henrique Cardoso, como sucedia com os dirigentes da era Carlos Saúl Menem na Argentina.

Organizações das classes patronais e operárias exerceram pressão sobre a representação política. O ritmo da abertura foi dosado à capacidade de adaptação das plantas industriais, e uma verdadeira revolução tecnológica operou-se, elevando-se o nível de produtividade sistêmica. Mesmo revelando flexibilidade política diante da “globalização assimétrica”, os dirigentes da era Cardoso foram substituídos no início do século XXI por outro grupo no poder, que formava uma coalizão de centro-esquerda sindical e patronal. A vocação industrial do país estava salva; aliás, alcançava novo patamar.

Multilateralismo de reciprocidade e internacionalização econômica no século XXI

Na visão dos dirigentes e das lideranças dos segmentos sociais organizados, dois traços caracterizam a globalização no século XXI: a dos mercados de consumo e a da internacionalização econômica. Para esses fins se voltam governo e sociedade, o primeiro requisitando por meio da ação diplomática o multilateralismo da reciprocidade da ordem internacional, a segunda promovendo a expansão para fora dos empreendimentos de matriz nacional.

A nova filosofia política da diplomacia brasileira veio a público durante a Conferência da OMC em Cancun, em 2003, quando estimulou a criação do G20, grupo de países emergentes voltados para a produção de regras e regimes de efeitos benéficos para todas as nações, não apenas para as nações avançadas, que até então impunham seus interesses pela logística do capitalismo central. “Criamos o G-20 em Cancun, quando os Estados Unidos e a União Européia tentavam impor um acordo injusto, que deixava virtualmente intocados os

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subsídios agrícolas e pouca ou nenhuma abertura ofereciam a produtos de interesse dos países em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que exigiam desses concessões desproporcionais”, escreveu Celso Amorim, ministro brasileiro de Relações Exteriores.

A nova filosofia social da internacionalização da economia brasileira foi expressa nas palavras desajeitadas do Presidente-operário, Luiz Inácio Lula da Silva, falando aos empresários no Fórum Econômico Global de Davos em 2005: “Uma coisa que eu tenho provocado sistematicamente nos empresários brasileiros é que eles não devem ter medo de virar empresas multinacionais, que não devem ter medo de fazer investimentos em outros países, até porque isso seria muito bom para o Brasil”.

Constata-se que o multilateralismo da reciprocidade pouco avançou, em razão do inalcançável entendimento entre ricos e emergentes no seio da OMC, na reforma da ONU e do Conselho de Segurança, nos regimes ambientais, quanto à saúde, ao alimento e aos direitos humanos. A diplomacia brasileira não supôs, mantendo sua intransigente defesa da reciprocidade, que contribuiria para bloquear a produção de regras e regimes que compõem o ordenamento global. Como não supôs o velho centro do capitalismo que em Cancun se viraria a página da história do multilateralismo, pondo-se fim ao consenso traçado por aquele centro para ser obedecido na periferia.

Em compensação, a internacionalização da economia brasileira ocorre como aconselhou o Presidente. Em 2007, com 108 bilhões de dólares de investimentos diretos no exterior, o Brasil alcança a segunda posição entre os emergentes de acordo com os dados da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica.

Embora se diversifiquem pelo mundo, os investimentos das empresas brasileiras elegeram a América do Sul como destino preferencial e, na América do Sul, a Argentina como escolha privilegiada, desde que o governo de Néstor Kirchner remediou a situação de crise e recuperou a vocação industrial do país.

Economia sul-americana: um projeto brasileiroEssa breve retrospectiva acerca da história econômica do Brasil é

suficiente para compreender a natureza e a continuidade do projeto econômico brasileiro para a América do Sul durante as últimas duas décadas.

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Trata-se de um projeto desenvolvimentista, à base de industrialização, negociado regionalmente com o concurso de todos os governos, a começar pela unificação dos mercados (Associação de Livre Comércio Sul-Americana-Alcsa, da época de Itamar Franco), a prosseguir com infra-estrutura (Plano de Ação para Integração da Infra-estrutura Regional na América do Sul-Iirsa, da época de Cardoso) e a culminar com integração institucional, produtiva, energética e empresarial (União das Nações Sul-Americanas-Unasul, da época de Lula). Ao projeto brasileiro repugna a integração comercial hemisférica (Alca), os tratados bilaterais de livre comércio e até mesmo o acordo Mercosul-União Européia para criação de uma área de livre comércio. Na ótica brasileira, todas essas possibilidades penetram a fundo o ordenamento interno e a inserção internacional de modo que comprometem a vocação industrial do país, bem supremo da representação política e do interesse nacional.

A unidade da América do Sul como pólo de poder econômico global, a idéia brasileira, conjuga-se com a visão argentina, porém o principal parceiro do Mercosul não ostenta a continuidade de propósito necessária a sua construção. A idéia brasileira choca-se, por outro lado, com o modelo chileno, de raiz neoliberal e caráter primário-exportador, aberto aos tratados de livre comércio. Diverge, ademais, dos projetos introspectivos da Venezuela e Bolívia. Em suma, a América do Sul apresenta no século XXI um painel de diversidades difícil de coordenar na esfera política e mais ainda na esfera econômica e dos fluxos comerciais, financeiros e empresariais.

Leituras complementaresAguiar, Pinto de. A abertura dos portos: Cairu e os ingleses. Salvador: Progresso,

1960.

Vergueiro, Nicolau Pereira de Campos. História da fábrica de Ipanema e Defesa Perante o Senado. Brasília: Ed.UnB, 1979.

Vasconcelos, Bernardo Pereira de. Manifesto político e exposição de princípios. Brasília: Senado Federal, 1978.

Luz, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo: Alfa Ômega, 1978.

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Silva, Heloisa C. M. da. Da substituição de importações à substituição de exportações: a política de comércio exterior brasileira de 1945 a 1979. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

Bielschowsky, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

Rapoport, Mario. Historia económica, política y social de la Argentina. Buenos Aires: Ariel, 2006.

Cervo, A. L. & Bueno, C. História da política exterior do Brasil. Brasília: Ed. UnB, 2002.

Amorim, Celso. A diplomacia multilateral do Brasil. Brasília: Funag, 2007.

Brasil, Ministério das Relações Exteriores. Política Externa Brasileira. 2 v. Brasília: Funag, 2007. DEP

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Economia e sociedade no ChileUm retrospecto históricoLuciano Tomassini *

E sta síntese foi elaborada levando-se em conta quatro critérios: 1) economia de palavras em função do espaço disponível; 2) considerações a respeito das principais teses propostas pela historiografia em relação a este processo; 3) a ênfase atribuída à relação existente entre a evolução histórica do país e o momento atual; e 4) a interação entre os fatores econômicos, sociais e políticos, respeitando-se a unidade do relato histórico.

Sustenta-se aqui que, do ponto de vista econômico, o Chile é um caso clássico que permite ilustrar as etapas de crescimento “para fora”, de crescimento “para dentro” e de crescimento liderado pelo mercado, segundo a divisão da evolução da região feita pelos historiadores econômicos, das quais as duas primeiras foram analisadas pela Cepal. Não obstante, não se isola, aqui, a variável econômica do processo histórico em conjunto.

Atualmente, desde o governo de Eduardo Frei Montalva até os da Concertação, bem ou mal, continuam fortemente presentes os debates

* Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Chile. [email protected]

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políticos, motivo pelo qual, para evitar julgamentos pessoais, serão resumidos em forma esquemática.

Nossa herança colonialAs possessões da Espanha na América herdaram uma tríplice condição

de marginalidade: 1) a posição que a Espanha ocupava na Europa na época da conquista da América; 2) a que seu império ultramarino teve durante o século XVI em suas políticas em comparação com o papel desempenhado pelo Sacro Império Romano Germânico e nas guerras européias; e 3) a que, conseqüentemente, tiveram as colônias americanas nas guerras européias1. “Para a Espanha, o governo das possessões dos Habsburgos implicava a subordinação dos interesses nacionais aos do império em seu conjunto”.2 A fim de proteger seus súditos dos inimigos, fossem estes flamengos, franceses ou turcos, Carlos V se sentia autorizado a mobilizar todos os recursos militares e financeiros de que o império dispunha, ao invés de enviá-los às suas próprias colônias. Acrescenta-se a isso que, a partir da reforma protestante, a Espanha encabeçou a contra-reforma católica em todo o continente e se comprometeu profundamente com ela em um século de guerras religiosas. No final do século XV, a Espanha deixava para trás oito séculos de guerra anti-muçulmana mas continuava dividida em vários reinos cristãos.

Do ponto de vista econômico, nessa época, a Espanha apresentava notável atraso em relação ao restante da Europa. Suas debilidades residiam no fato de que suas terras não eram particularmente férteis e continuavam a ser exploradas por meio de sistemas medievais; em que sua classe dirigente detinha acentuado espírito senhoril, extremamente apegado às hierarquias quanto avesso ao trabalho; em que oitocentos anos de guerra contra os muçulmanos, unidos à intolerância religiosa provocada pela Reforma, impediram a criação de um clima de paz que teria tornado possível seu desenvolvimento de forma mais tranqüila, e na qual, posteriormente, as riquezas provenientes da conquista da América desalentaram a subsistência das poucas manufaturas existentes3. Assim, dos 100

1 Tomassini, Luciano. “América en la frontera del imperio español”. In: Vários Autores. Nueva mirada a la historia. Editorial Ver, 1996.2 Stanley, J. y Stein, B. H. La herencia colonial de América Latina. Siglo XXI, 1970. p. 7.3 Garraty, J. A. e Gay, P. (eds). The Columbia history of the world. Dorset, 1981. p. 548.

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mil teares que funcionavam na Andaluzia no início do século XVI, somente 10% operavam no final do mesmo século, enquanto que a derrota dos últimos reinos muçulmanos – especialmente o de Granada – e a expulsão dos judeus ocorrida um século depois, privou a península dos integrantes mais cultos e laboriosos de uma sociedade à qual ambos se encontravam funcionalmente integrados. Tudo isso criou na península espanhola uma cultura hierárquica, senhorial, orgulhosa, intolerante, vivendo de rendas e avessa à disciplina e ao trabalho. Essa cultura inculcou nos espanhóis o que no fim do século XIX Unamuno chamaria de “um sentimento trágico da vida”, que menosprezava seus aspectos práticos e fez com que todos os valores se resumissem à dignidade pessoal, tão bem descrita no trecho de El Alcalde de Zalamea em que se diz: “ao rei, a bolsa e a vida hão de ser dadas, mas a honra é patrimônio da alma, e a alma é somente de Deus”. Enquanto isso, a Europa ingressava na cultura da modernidade graças à difusão do espírito do humanismo e do Renascimento, ensaiado inicialmente nas cidades do norte da Itália e com eles, surge um mundo que começava a girar em torno das artes, do comércio, dos bancos, da burguesia e das cidades. “Em 1492, a Espanha e Portugal eram dependentes economicamente da Europa e, apesar do surgimento de seus impérios ultramarinos no século XVI, continuaram a ser dependentes. Esse status anômalo de colônia e império ao mesmo tempo determinou a história dos países ibéricos e de suas possessões no exterior, bem como condicionou a sociedade, a economia e a política de suas colônias, assim como o curso da história latino-americana até os tempos modernos”4.

A ambígua mistura de motivações que levou um grande contingente de penínsulas a empreender a conquista e colonização da América, em que se misturavam seu idealismo evangelizador, seu epírito de aventura e a ânsia do lucro, expressou-se especialmente na economia das novas colônias. A audácia dos conquistadores mostra o quanto esses motivos foram poderosos, apesar de suas contradições. Para eles, a conquista da América foi uma caminhada ao longo de uma geografia muito difícil, lutando-se contra hostes imensamente superiores. Não se pode esquecer que a estrutura ainda feudal da Espanha, em 1492, determinou que a conquista fosse uma empresa do reino de Castilla, da qual ficou excluído o de Aragón e outros, e que foram as autoridades e instituições do primeiro as que que foram aplicadas nos novos territórios.

4 Bethell, L. (ed.). Historia de América Latina. Vol. 2. Crítica, 1990. p. 82.

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No início, a economia ibero-americana se organizou em torno da mineração, principalmente da prata, sendo intensamente explorada na meseta do México ou no Alto Peru. O hinterland desempenhou papel auxiliar, representado pela produção de alimentos, assim como de carruagens, animais de carga e outros tipos de trabalho e de transporte, o que imprimiu à economia e à sociedade das colônias uma estrutura radial imposta pela necessidade de unir o meio rural com os grandes centros mineiros de Potosí, Huencavalica, Oaxaca, Puebla, Guanajuato e outras explorações situadas no centro desses territórios, e também de levar a produção aos portos localizados na costa. A enorme riqueza adquirida no ultramar por uma metrópole espanhola que, pelos motivos indicados, não havia tido a oportunidade que teve a Europa para criar uma cultura empreendedora e laboriosa, trouxe-lhe menos êxitos do que limitações. Antes de mais nada, a exploração das minas se organizou sob forma de monopólio Estatal – da coroa real – no qual a propriedade das jazidas pertencia ao Estado, ao contrário da terra que, em virtude de mercês reais, era concedida aos colonos para exploração. Por outro lado, o transporte à metrópole era feito dentro de um sistema fechado de portos autorizados – como Havana, Maracaibo, Portobel, Veracruz, dentre outros – e por meio de uma ou duas frotas oficiais por ano, rigorosamente protegidas (apesar de que uma grande porcentagem dessa valiosa carga caía a cada ano em mãos dos ingleses ou holandeses mediante o exercício da pirataria), e sua propriedade e comercialização eram realizadas por um órgão estatal, a Casa de Contratação, com sede em Sevilha. Nesse processo, a dependência espanhola se manifestou desde o primeiro dia por meio da instalação, naquela cidade, de uma série de comerciantes ou gestores europeus que canalizavam para seus países a nova riqueza – as divisas daquela época – como pagamento das manufaturas e dos produtos refinados que lhes vendiam. A heterogeneidade das atividades de extração mineira e a modesta exploração do interior e do campo, o monopólio real sobre a principal riqueza colonial, os desestímulos à produção manufatureira e a super-exploração da mão de obra indígena, foram traços que marcaram a sociedade das colônias até muito depois de sua independência. As guerras de conquista, as enfermidades trazidas pelos espanhóis e a super-exploração da força de trabalho indígena nas minas – “essa devoradora de homens” – produziu em uma ou duas gerações, um desmoronamento demográfico que, segundo estimativas, pode ter ocasionado uma redução de vinte e cinco milhões a um ou dois milhões a população autóctone do planalto meso-americano,

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e de dez milhões a igual quantidade os habitantes indígenas do altiplano do império incaico5.

Dos dois eixos da economia colonial – uma rica exploração no campo da mineração associada a um descuido secular do interior – foi este último fator o que teve maior influência sobre a organização da sociedade indígena. Por isso, ainda que o Chile carecesse de uma importante mineração de prata, compartilhou, em linhas gerais, com a estrutura agrária e social da região. “Iniciar-se-ia, assim, um dos processos mais importantes de sua história: a formação de grandes latifúndios outorgados aos conquistadores por mercês reais, administrados por uma elite de proprietários de terras e trabalhados por uma população semi-servil”: as encomiendas.6, 7 As conseqüências sociais dessa organização econômica também foram desastrosas: a população indígena do norte da Araucânia se desintegrou e a proporção ameríndia do país contraiu-se a 20% da população original. A mestiçagem no país foi igualmente ampla: Francisco de Aguirre, fundador de numerosas cidades no norte do Chile e da Argentina, destacou que “o serviço que se fazia a Deus engendrando mestiços superava, e muito, o pecado assim cometido”. As necessidades da opulenta Lima e da rica mineração do altiplano estimularam as exportações agropecuárias do país. A pecuária imprimiu a forma pela qual os latifúndios adotariam. A concentração da propriedade agrária foi levemente corrigida a partir do século XVII, com o aumento da exportação de trigo. Com o tempo, o trabalhador agrícola se converteu em uma mistura de arrendatário e diarista, o que se expressou no “inquilino”, fortemente subordinado ao latifundiário, porém, relativamente estável. Marginalmente, subsistiu uma horda de trabalhadores itinerantes e importantes regiões nas quais predominava o minifúndio. O inquilinato persistiu até o século XX e deu origem à figura tradicional do huaso8. Por sua vez, o inquilinato constituiu a base do autoritarismo, da hierarquização e do clientelismo, que passariam a formar a base da cultura chilena.

A estrutura sociológica das terras indígenas esteve marcada desde o princípio pela mestiçagem, entendida em sentido amplo, devido à influência

5 Ver a respeito, especialmente, Donghi, Tulio Halperin. Historia contemporánea de América Latina. Alianza Editorial, Edición de 1994. 6 Collier, Simon e Sater, William. Historia de Chile 1808-1994. Cambridge, 1996. p. 20 e 21.

7 Forma institucional de recrutamento forçado de trabalhadores indígenas em regime de semi-escravidão, no tempo da colônia espanhola (N. do T.).

8 Homem do campo, camponês rude (N. do T.).

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proporcionada pela propriedade da terra, pela hierarquização social, o clientelismo e a urbanização. Entre a minoria senhorial, que dominava as sociedades coloniais, e sua ampla base constituída por uma força de trabalho composta, na sua maioria, por índios e mestiços, escalonavam-se outros grupos relativamente definidos por sua profissão ou atividade, como os comerciantes, os avogados ou notários, os artesãos e outros. A principal função era determinada pela propriedade das terras constituídas em encomiendas em virtude de mercês reais. A instituição de uma encomienda em favor de um dos conquistadores ou seus sucessores transferia a autoridade e o domínio “sobre a terra e os homens”, à semelhança da instituiçao feudal da Idade Média européia9. Enquanto que os proprietários de terras e suas famílias definiam seu status em função do lugar que ocupavam na hierarquia social, os demais grupos eram determinados por suas categorias profissionais ou sua ocupação. Em ambos os casos, o empreendimento e o trabalho não pareciam desempenhar nenhum papel nessas sociedades, e era muito difícil que pudesse haver mudança ou progresso nelas, isto é, não existia o que atualmente é conhecido por mobilidade social. No ponto alto dessas reduzidas sociedades “a estreita união existente entre distinção, linhagem, riqueza e influência, com base na grande propriedade agrícola e articulada por um protótipo de família extensa, explica o clientelismo que dominou a vida nessa época e que, depois da independência, continuou determinando a vida política, econômica e social do mundo ibero-americano”. A essência do clientelismo, tão forte em toda a Ibero-américa, são as relações de afinidade, proteção e promoção social desenvolvidas no interior dos diversos círculos concêntricos que emanam das famílias mais importantes constituídas de acordo com o padrão hispânico. “Em conseqüência, o papel das pessoas não era definido por sua personalidade ou desempenho intrínsecos, e sim por sua vinculação com uma determinada família ou círculo social, e pelo papel que este lhe atribuía”10. Uma das novelas mais representativas da situação chilena, Martín Rivas, de Alberto Blest Gana, narrava de que forma, no séxulo XIX, um modesto jovem provinciano foi acolhido como protegido na casa da poderosa família de don Dámaso Alonso, em Santiago, onde se apaixona pela filha deste e, sem nenhuma dificuldade, consegue casar-se com ela, passando, assim, a fazer parte integrante daquela grande família. Essa história consiste, assim, em uma reprodução dos processos que incessantemente

9 Ver Bloch, Marc. La sociedad feudal: la formación de los vínculos de dependencia. Uthea, 1958.10 Tomassini, L. op. cit., p. 29.

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foram ampliando a classe aristocrática do Chile sem democratizá-la e sim, convertendo-se os recém-chegados em novos aristocratas. A larga base social das colônias, por outro lado, era composta por uma diversidade de formas de mestiçagem que refletiam, por sua vez, a necessidade de explorar essa mão de obra e o reconhecimento cristão da dignidade do índio e do mestiço, em cuja defesa o padre Bartolomeu de las Casas organizou uma cruzada que chegou até a península, sendo que, mais de uma vez, realizou grandes congressos destinados a debater a situação dessa classe social.

“A sociedade espanhola na América foi essencialmente urbana. Amplamente dispersas, as cidades espanholas eram separadas por grandes extensões de campinas indígenas. A cidade foi sempre o lugar preferido da sociedade hispânica. Não obstante, não existiu nenhum tipo de rivalidade rural-urbana. O comércio, a produção artesanal e o desempenho das profissões letradas tenderam a concentrar-se inteiramente nos espaços urbanos, sendo que, o campo, desempenhava um papel complementar”. A lacuna entre a cidade e o campo surgiu na consciência coletiva com os primeiros passos da democratização e das reivindicações sociais no Chile, a partir do final do século XIX. Para o mesmo historiador, “o conjunto do setor hispânico em qualquer província fez da cidade uma unidade centralizada e indivisível em todos os seus aspectos sociais, econômicos e institucionais”11. Para os espanhóis, colonizar era fundar cidades. Por isso, a fundação de uma cidade pressupunha impor uma ordem e uma autoridade a um território intratável e ao mesmo tempo incorporar à monarquia castelhana suas autoridades, os cabildos, que dessa forma passavam a fazer parte do Estado hierárquico espanhol. Diferentemente da colonização inglesa na América do Norte, a dos espanhóis, em parte das regiões da América Central e do Sul, não foi um resultado natural da atividade econômica e da industrialização. O historiador urbano argentino Jorge Horácio Hardoy observou, com surpresa, que ela constituiu “um processo de urbanização sem industrialização”. Estreitamente unida a essa opção urbana, encontrava-se a obsessão legislativa do mundo ibero-americano. Os espanhóis peninsulares tinham vivido quase mil anos tratando de codificar as disposições jurídicas que regiam sua vida, dando lugar a sucessivas compilações que vão desde o Fuero real e o Fuero Juzgo até a recopilação das Leis das Índias. No entanto, não existia uma paixão semelhante pelo cumprimento da lei na qual

11 Bethell, L. (org.), op. cit., tomo IV, p. 64.

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o império hispânico tinha uma visão pouco rigorosa, atribuindo-se tal fato às distâncias que mediavam o legislador e os regulados, à heterogeneidade social das colônias e, sobretudo, a um traço muito íntimo do caráter espanhol: a distância que este sempre colocou entre os ideais e sua prática, a permissividade diante de uma lei que, de fato, “acata-se porém não se cumpre”, atitude que se refletiu magistralmente em Quixote.

Se na brevidade deste texto fosse preciso resumir, em uma só palavra, os principais traços herdados pela América espanhola de seu passado colonial, eu escolheria o centralismo. Num eloqüente livro, o acadêmico chileno Cláudio Véliz afirma que essa herança derivou do fato de que a Espanha não vivenciou nenhum dos quatro principais processos descentralizadores ou centrífugos que a cultura ocidental experimentou: o feudalismo, que é uma forma de organizar uma sociedade desintegrada; a reforma, que trouxe a diversidade religiosa e a liberdade de consciência; a revolução industrial e a revoluçao francesa12. Ao centralismo ibero-americano estão ligados seu tradicional autoritarismo, seu elitismo, seu afã legislador e codificador, sua paixão por fundar cidades, sua capacidade de hierarquização e de exclusão social e sua mentalidade de viver de rendas ou sua falta de valorização do trabalho.

Nestas notas se postula que tais traços, conjuntamente com a experiência da marginalidade e da dependência interna e internacional que a Espanha possuía na época da colonização, seu compromisso com a honra, seu desprezo pelo trabalho, sua preferência por uma economia extrativa e a importância dada ao clientelismo e à influência, esse conjunto de características tem determinado, até hoje, a cultura de nossas sociedades.

O Chile entre a independência e a anarquiaA independência das colônias ibero-americanas se deveu aos transtornos

provocados na Europa pelas guerras napoleônicas. Após o fim do reinado de Fernando VII, as colônias hispânicas optaram pela independência. O Brasil seguiu outro caminho: com a assessoria do ministro José Bonifácio, em 1822 Pedro I assumiu o governo, promulgou a Constituição de 1824 que concedia um “poder moderador” ao imperador e em 1826 herdou o trono de Portugal. Depois de sua abdicação e da regência exercida entre 1831 e 1840, durante

12 Véliz, C. La tradición centralista de América Latina. Ariel, 1984.

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a menoridade de seu filho, este último governou até 1889 como Pedro II. Devido a esses acontecimentos, o Brasil nasceu como um império, o que lhe imprimiu até hoje suas características.

A primeira reação ocorrida no Chile diante da derrubada de Fernando VII, em 1808, foi de lealdade à metrópole. Em 1810, um novo governador, de origem criolla13, convocou um cabildo aberto para avaliar a situação. O cabildo era a única instituição espanhola que possuía certa representatividade nas colônias. Quando essa assembléia se reuniu ao som do brado “junta queremos!”, criou-se uma junta de governo, um congresso nacional e um primeiro exército chileno. Não obstante, o caminho para a independência foi sinuoso, a junta e o Congresso seriam substituídos várias vezes por outras instituições e se abriria um período marcado pelo caudilhismo e instabilidade das posições dos diferentes grupos que coexistiam na delgada camada superior da sociedade chilena sobre o que fazer naquelas circunstâncias, nas quais a diferença entre espanhóis e criollos não coincidia necessariamente com as diferentes posições. Essa foi uma etapa marcada por uma guerra intermitente entre realistas e separatistas, encabeçada por diversas lideranças freqüentemente conflitantes – como Bernardo O’Higgins e José Miguel Carrera – e dividida pela reconquista espanhola que, a partir de 1814, e durante três anos, parecia fazer retroagir a situação à sua origem. Nesse aspecto, o general José de San Martín, governador de Cuyo, que fazia parte do Vice-reino do Rio da Prata, formou um exército libertador que, com tropas argentinas e chilenas, realizou a façanha de atravessar a cordilheira dos Andes e, em um ano, após as batalhas de Chacabuco e Maipú, restabeleceu a independência do país, com a participação do general Bernardo O’Higgins. Mas a independência era ainda um projeto que teve de passar por longo período de anarquia entre 1818 e 1833. Esse mesmo exército, agora com maior contribuição financeira e militar do Chile, inclusive fortalecido com a criação de sua primeira força naval, empreendeu a expedição libertadora do Peru e Bolívia e assegurou sua vitória nas batalhas de Junín e Ayacucho, vitória essa que consolidou Simón Bolívar, derrubando o bastião espanhol representado por esse vice-reinado.

Tanto os efeitos negativos da anarquia, originada no caudilhismo e protagonizado pelos principais ícones de uma incipiente oligarquia, quanto a manutenção de certo grau de unidade e de continuidade durante esse

13 A palavra criollo indica o descendente de espanhóis nascido na colônia (N. do T).

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processo, bem como a posterior criação de um “estado de ordem”, deveram-se à preponderância da refinada camada senhorial que havia conseguido decantar-se durante a colônia no interior da chamada “aristocracia castelhano-vasca” Esse conceito alude ao grupo social que gradualmente se formou a partir da fusão entre os conquistadores castelhanos, os comerciantes coloniais enriquecidos, e uma posterior imigração vasca que, a partir do século XVII, e mais maciçamente no século XVIII, contribuiu com uma visão mais prática e mercantil para a colônia. Cada uma dessas etapas enfrentou desafios com suas respectivas especificidades. O primeiro foi a guerra na fronteira, uma linha situada ao sul do Chile – ao longo do rio Bio Bio – que o dividiu entre uma ampla zona administrada por governos nomeados pela metrópole e outra a partir do sul do rio em que estes lutavam contra os povoadores autóctones do país, os araucanos, uma guerra que, durante três séculos, sacrificou os varões e marcou profundamente a família e a sociedade chilenas. O segundo, uma vez alcançados parcialmente esses objetivos, consistiu no desenvolvimento e administração desse território associado à criaçao de uma nacionalidade dentro do mesmo, uma responsabilidade para a qual as gerações vinculadas a sua colonização não estavam preparadas, devido a seu elitismo, seu caráter guerreiro e seu conseqüente desgaste. A guerra foi o crisol no qual se formou a sociedade chilena, além disso, sua instituição mais estável foi o exército, e ambos transmitiram uma importante herança bélica ao século XIX14. Os traços autoritários, centralizadores e clientelistas que o regime hispânico imprimiu às incipientes sociedades ibero-americanas, neste caso, viram-se acentuados a partir do afastamento gerado pela anarquia após a independência, pela gravitação, tanto grupal quanto personalista da aristrocracia castelhano-vasca, pela experiência da guerra na fronteira – que não terminou até o início do século XIX – e pela própria herança hispânica. Jaime Ezaguirre escreve que “o velho regionalismo municipal que o regime dos Bourbons havia se empenhado em suprimir, reviveu com força na época da independência, embora, em última análise, o país não pudesse fazer outra coisa senão adotar hábitos de autonomia e de empreendimento ou seguir o caminho centralizador traçado pela própria metrópole”15.

A centralização territorial e social constituíram a característica principal do Chile, diferentemente da importância que tiveram o federalismo no Brasil,

14 Jara, Alvaro. Guerra y sociedad en Chile. Editorial Universitaria, 1971.15 Eyzaguirre, Jaime. Fisonomía histórica de Chile. Editorial Universitaria, 1958. p. 96.

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as peculiaridades regionais na Colômbia, a diferença entre os habitantes da serra e da costa nos demais povos andinos, e no caso da Argentina, o conflito entre a capital e as províncias. O patriciado rural formado pelos encomenderos e seus descendentes, eventualmete aliados com os ricos comerciantes e com os imigrantes mais recentes de origem vasca, naturalmente tomou o controle do Chile. Os membros dessa aristocracia ocupavam, tradicionalmente, a maioria dos cargos nos cabildos, tanto em Santiago quanto nas províncias, e eram detentores da maior parte das riquezas do país, embora suas maiores fortunas fossem, na verdade, modestas em comparação às acumuladas pelos dirigentes de outras colônias hispânicas. Esses personagens, cujas bases e fortunas eram rurais, tinham suas moradias localizadas na cidade – em Santiago, mas também em Talca ou Concepción – onde vários deles conviviam em famílias numerosas com sua clientela e seus agregados, com os parentes mais pobres e numerosos serviçais. Um exemplo da forma com que essas famílias juntavam fortuna e influência é o do tesoureiro de Santiago, Pedro de Torres, que morreu em 1722. Torres chegou a ser dono de um dos lados da praça principal – a plaza de armas – de Santiago, além de uma fazenda que abrangia tudo o que é, atualmente, o leste da cidade até a cordilheira e outra em El Monte, que havia pertencido a Catalina Lispergues, morta por conta de suspeita de bruxaria. “Ao morrer, Torres havia deixado estabelecida uma imagem que em seguida iria ser o modelo da classe alta chilena, de quais seriam suas características e da forma como se chegar a tal classe. Esse modelo não foi muito diferente do que prevalecia na sociedade chilena nos séculos XIX e XX e do seguido pelas novas fortunas chilenas ou estrangeiras, como as dos Edwards, Ross, MacClure, Cousiño ou Urmeneta, muitas delas nascidas do salitre”16. No entanto, até o final do século XIX, a economia chilena conservou as características que tivera na colônia, ou seja, uma estrutura rural que era a base do poder da aristocracia.

Essa aristocracia, que desprezava qualquer trabalho alheio em suas fazendas, bem como era desejosa de adornar-se com algum título castelhano ou uma patente de major, não adotou o perfil da burguesia que estava se formando naquela época no velho continente. Não obstante, soube cumprir com aspecto de oportunidade e espírito de corpo sua função primária, que foi o governo ou o exercício do poder e, por isso, foi imortalizado por um brilhante autor como

16 de Ramón, Armando. Historia de Chile 1500-2000. Catalonya, 2003. p. 43 e 44.

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“la fronda aristocrática”17, 18. Embora sua característica tenha sido sempre a posse ou proximidade do poder, este não o eximiu das rivalidades e conspirações tão próprias do “espírito de fronda” que, já na independência, fizeram com que o líder separatista Juan Martinez de Rojas ou a família Carrera enfrentasse o poder dos Larrain, “que eram oitocentos”. Por outro lado, chegado o fim do século XIX, o salitre o provocou.

A ordem conservadoraEm resumo, pode-se dizer que no Chile a anarquia cedeu espaço a um

período de ordem mais cedo e em tempo mais breve do que em muitos países da região, embora com governos encabeçados pela mesma oligarquia. Tratou-se, inclusive, de um período mais longo e duradouro do que no restante da região, já que, com exceção do Brasil, prolongou-se entre 1831 e 1891. A historiografia chilena atribuiu esse processo e a brevidade do tempo em que se produziu, principalmente à personalidade de Diego Portales, mesmo diante de grandes polêmicas19. Atualmente, Mario Góngora provavelmente foi quem mais contribuiu para que essa tese se firmasse20. No prólogo dessa obra, Ricardo Krebs sustenta que “o Estado que emergiu das guerras da independência e das desordens seguintes começou a definir-se com Portales, que aceitou o ideal político da democracia, mas também estava convencido de que o Chile não possuía a “virtude republicana” que ele considerava indispensável para o funcionamento de um bom sistema democrático e que, por isso, com critério realista, organizou um governo forte e centralizador, renovando, assim, sob novas formas republicanas, a velha monarquia espanhola”.

Portales foi um membro da oligarquia chilena dedicado ao comércio que, com alguns amigos, voltou-se para o negócio do fumo (estanco) quando o

17 “Fronda” é uma espanholização da palavra francesa “Fronde”, que designou uma revolta de curta duração entre 1648 e 1653, na regência de Anna d’Áustria. Designa, nesse caso, um grupo social descontente. (N. do T.)18 Edwards, Alberto. La Fronda aristocrática. Pacífico, 1972.19 Essa tese foi proposta por Jaime Eyzaguirre, Alberto Edwards e sobretudo pela monumental obra de Francisco Antonio Encina – que qualifica geralmente como “desconformados cerebrais”os grupos que se opuseram ao projeto conservador da classe alta chilena – e rebatida por Julio Cesar Jobet, Hernán Ramirez Necochea bem como Gabriel Salazar e Julio Pinto, na qual sustentaram que “a participação protagônica da sociedade civil na tarefa de construir o Estado foi marginal ou nula”. A obra publicada em 16 tomos por Diego Barros Arana durante o século XIX – História Geral do Chile – detém-se na Constituição de 1833 mas, apesar disso, indiscutivelmente, justifica o projeto da oligarquia tradicional do país. 20 Góngora, Mario. Ensayo histórico sobre la noción de Estado en Chile en los siglos XIX y XX. Editorial Universitaria, 1986.

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Estado o abandonou e, por isso, os membros de seu círculo foram chamados de estanqueros. Em uma conhecida carta dirigida em 1822 de Lima a um de seus sócios, Portales argumentou: “As questões políticas não me interessam, mas como bom cidadão posso opinar com toda a liberdade e até censurar os atos do governo. A democracia, que tanto apregoam os iludidos, é um absurdo em países como os americanos, cheios de vícios e onde os cidadãos carecem das virtudes necessárias para estabelecer uma verdadeira república. Esta exige um governo forte e centralizador onde os homens sejam verdadeiros modelos de virtude e patriotismo”. Portales se envolveu na atividade política para poder contribuir com o fim da anarquia que contrariava seus instintos básicos. Sendo assim, Portales, em 1931, influiu na eleição à presidência do general Joaquín Prieto, que havia desempenhado papel moderador durante o período anterior. Homem que amava a sociabilidade, as relações com as mulheres e tocar violão privativamente, era também demasiadamente humano para o ideal conservador e para uma cidade que, segundo o diplomata Sir Horace Rumbold, era a residência de uma corte sonolenta e ultramontana. Dessa forma, Portales encarnou, durante sua curta vida, a figura de um dirigente virtuoso na vida pública.

Portales não acreditava na moralidade de sua sociedade, mas acreditava nas instituições: “eu não creio na igreja, dizia, mas acredito nos padres”. Prieto convocou uma assembléia que redigiu a Constituição de 1833, a qual sucedeu mais de meia dúzia de cartas constitucionais heterogêneas, e cujas grandes linhas se mantiveram nas Constituições de 1925 e 1980. Essa carta optava por um presidente forte e reelegível que, periodicamente, viesse a encabeçar uma clara intervenção eleitoral, motivo pelo qual era considerado o “grande eleitor” na política chilena, prática considerada por alguns como “a chave da estabilidade do país”. O Executivo gozava de clara primazia sobre o Congresso Nacional, podia pedir a este “faculdades extraordinárias” durante certo período, e podia contar com a aprovação automática da lei orçamentária anual após certo prazo, faculdade essa que foi considerada a gota d’água e que, 60 anos depois, desencadearia a revolução de 1991. No discurso na qual encerrou aquele congresso, Prieto afirmou: “Deixando de lado teorias tão alucinantes quanto desprezíveis, os constituintes somente fixaram a atenção nos meios para assegurar, para sempre, a ordem e a tranqüilidade pública contra os riscos representados pelos vai-e-vens dos partidos”21.

21 Citado por de Ramón, op. cit., p. 70.

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A vida pública de Portales somente se estende entre 1829, quando triunfou a revolução conservadora, até sua morte em 1837. Naturalmente, tão somente esses oito anos não explicam que suas idéias tenham inspirado a vida política e econômica do Chile durante quase todo o restante deste século. De Ramón descreve o fato de que sua gestão tenha dado lugar a um “regime portaliano” ao efetivo funcionamento do que Portales chamou “a mola principal da máquina”, o exercício do poder, e em segundo lugar a sua equipe de colaboradores, entre os quais contou com Manuel Rengifo e José Manuel Cea, Mariano Egaña, o venezuelano Andrés Bello e Domingo Faustino Sarmiento, de nacionalidade argentina e, posteriormente, seguidores como Manuel Montt e Antonio Varas. Desse grupo saíram presidentes e ministros, a Constituição de 1833, o fomento às exportações, o reordenamento das finanças e as reformas tributária e aduaneira, os Códigos Civil, Comercial e Penal, e a Universidade do Chile, entre outras instituições na qual repousaria o novo ordenamento22. Manuel Rengifo, ministro da Fazenda na época de Portales, substituiu uma política mercantilista de tradição secular, por outra liberal que inibiu as importações que, no caso, ameaçavam a incipiente produção chilena e também diretamente o valor da propriedade e seu rendimento, em lugar da elevação das exportações mediante a “taxação do vento”. As exportações agrícolas do vale central passaram a representar um valor significativo, embora em pouco tempo a economia passasse a ser liderada pela mineração, e o número de navios que atracavam em Valparaíso se multiplicou. Em contrapartida, o país provocou o descontentamento do Peru.

Em 1837, o general Ramón Freire, um dos protagonistas do período da independência, organizou, a partir do Peru, uma força contra o Chile. Naquela época, havia se formado a Confederação Peru-Bolívia com o general Santa Cruz à frente, como protetor do novo Estado. Portales tinha a aspiração de que o Chile chegasse a ser a principal potência do Pacífico e viu, na Confederação, um inimigo cuja permanência não podia permitir. A aventura de Freire foi o pretexto utilizado para declarar guerra a ambos os países. As operações bélicas se estenderam entre 1837 e 1839, com diversas expedições e batalhas. A última expedição chilena foi desbaratada e perseguida pelos peruanos até que seu comandante, Bulnes, engajou-se em uma batalha que envolveu oito mil soldados nos campos de Yungay. O Chile foi vitorioso. Santa Cruz

22 de Ramón, op. cit., p. 74 e 75.

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partiu para o exílio e a Confederação desapareceu para sempre. Esse triunfo, porém, deteriorou as relações com o Peru. Enquanto que, vinte anos antes, o exército libertador fora recebido com aplausos pela população peruana, agora esta acompanhou seu próprio exército na perseguição aos chilenos. O apoio chileno a essa guerra, no entanto, reduziu-se muito e a antiga fronda aristocrática, que o ministro havia deixado de lado e desprezado, começou a conspirar contra ele. Enquanto a guerra estava sendo preparada, em 1837, um antigo conspirador, o coronel Vidaurre, que havia aglutinado as antigas idéias de fronda, aprisionou Portales em Valparaíso e posteriormente o fez descer da carroça que o transportava, dizendo, “que desça o ministro!”e mandou executá-lo. Seu legado foi aumentando durante o restante do século. O jornal El Mercurio escreveu que “esse crime horrendo aumentou a popularidade da guerra”. O triunfo final marcou sua figura e no decorrer dos anos, a história foi construindo um verdadeiro culto a sua pessoa. Os descendentes do coronel Vidaurre, repudiando-o, adotaram o sobrenome de Vidaurre Leal. As polêmicas em torno da figura e do projeto de Portales, ao contrário, não terminaram.

O governo de Manuel Bulnes, um político conciliador, suscitou o clima adequado para uma gradual convergência entre as idéias conservadoras e as liberais. A evolução social, mais educação, alguns questionamentos à autoridade da Igreja e o desenvolvimento de novos setores da atividade econômica favoreceram esse processo, mais sócio-cultural do que puramente político. Novos personagens como José Victorino Lastarria, Santiago Arcos e Francisco Bilbao, alguns dos quais, inclusive, militaram na Sociedade da Igualdade, defenderam essa mudança de idéias. Em 1851, a política repressiva, finalmente adotada pelo governo, provocou uma guerra civil iniciada em La Serena e que se estendeu ao sul e terminou com o triunfo dos conservadores. A rebelião ocorreu em plena eleição presidencial, na qual foi vitorioso Manuel Montt, um conservador que, na opinião de Bulnes, era “pura cabeça mas sem coração”. Iniciou-se, assim, uma época de grande progresso material durante a qual, silenciosamente, continuava a gestação de uma fusão liberal-conservadora. O conservadorismo já não poderia manter seu monopólio por mais tempo. Em 1861, o Partido Nacional venceu com o candidato Joaquín Pérez, patrício tolerante e afastado das contendas políticas, porém “ébrio de indolência”, segundo descreveu José Manuel Balmaceda. Seus sucessores foram Federico Errázuriz e Aníbal Pinto. A este último caberia enfrentar a Guerra do Pacífico.

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Seu governo foi afetado pela reduçao das exportações de minerais, que já incluíam o salitre, e a queda de seus preços, enquanto que a bonança dos períodos anteriores haviam aumentado as importações. Tal fato, somado à permissividade dos bancos internacionais, comprometeu as finanças do país e suas possibilidades de manter as forças armadas em condições adequadas. Consequentemente, barcos de guerra foram ancorados e unidades do exército foram desmanteladas; reduziu-se o número de funcionários públicos, declarou-se a inconversibilidade do peso e organizaram-se “panelaços dos pobres” em várias partes. Nesse contexto, o Chile teve de atender à demanda argentina de soberania sobre o estreito de Magalhães e a Patagônia, enquando Hilarión Daza elevava os impostos bolivianos incidentes sobre o salitre e a ferrovias de Antofagasta e, além disso, após o descobrimento de novas jazidas de guano, prata e salitre em Atacama, o Peru começou a pressionar a fronteira que havia sido negociada no paralelo 24. O presidente ordenou, assim, que o exército capturasse Antofagasta e avançasse sobre o teritório cedido à Bolívia em 1874. O presidente Pinto ignorava, no entanto, a existência de uma aliança secreta peruano-boliviana. Após o início das hostilidades, o Chile declarou guerra aos dois países. A primeira parte das operações foi marítima e começou com um revés chileno: enquanto o almirante Martinez Robledo, violando as instruções recebidas, conduzia a maioria da esquadra em direção ao porto de Callao, deixando dois velhos barcos guardados no cais de Iquique, onde deveria ter permanecido, o almirante Grau, com a frota peruana, havia zarpado silenciosamente de Callao e apareceu em Iquique, afundando o barco La Esmeralda e matando seu comandante Arturo Prat, que tentou dominar o navio inimigo. Ao final do referido ano, os chilenos cercaram Grau em Punta Angamos, capturando o encouraçado Huáscar e assegurando seu domínio do mar. Ambas as batalhas fizeram de Prat e Grau, com justiça, heróis nacionais. No entanto, pouco mais tarde, as tropas chilenas, transportadas por sua esquadra, dominaram o inexpugnável Morro de Arica, porto de saída de Tacna no Peru e, após um longa e sangrenta campanha terrestre, romperam, no início de 1881, as defesas peruanas em Chorillos e impuseram-lhes uma derrota definitiva em Miraflores, na qual se apoderaram de Lima, guardião do vice-reinado espanhol na região. Embora a guerra tenha prosseguido de forma dispersa durante dois anos, em 1883 o Chile impôs o Tratado de Ancón, que lhe permitiu tomar posse de Antofagasta e alguns anos mais tarde também de Arica, incorporando além disso todo o território marítimo boliviano. A Guerra

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do Pacífico fechava, assim, uma secular e sonolenta etapa da história do Chile. Dali em diante tudo começou a mudar, ainda que não de forma dramática e não antes dos seguintes trinta anos.

Uma transição tormentosaDesde as lutas da independência, o Chile havia conseguido consolidar,

consideravelmente, um aguerrido exército que cresceu, notavelmente, na Guerra contra a Confederação e na Guerra do Pacífico; uma esquadra formada para apoiar a expedição libertadora do Peru em 1818 e que se fortaleceu muito com as guerras mencionadas; uma oligarquia cujas tendências anárquicas foram reprimidas por Portales, com exceção de episódios como o motim que provocou sua morte; um grupo social que demonstrava estar cada vez mais preparado para governar o país de forma autoritária; um certo dinamismo e diversificação da economia e sobretudo, um “estado de forma” que respondia estreitamente ao ideário de Portales e que, durante algum tempo, proporcionou ao Chile uma vantagem sobre os demais países do sul do continente. O contraponto advinha, justamente, dos imensos níveis de pobreza que caracterizavam essa oligarquia e, de forma mais visível, as querelas religiosas que assolaram a segunda metade do século XIX que, no caso, interessavam mais à classe dominante. Nesse clima de relativa estabilidade, conseguido graças – e às custas de – uma ordem conservadora bastante acirrada, transcorreram quatro decênios presidenciais articulados pelas reeleições de Prieto, Bulnes, Montt e Pérez, entre 1831 e 1871. Ao mesmo tempo, o espectro político do Chile ia se perfilando, no qual os primitivos pelucones e pipiolos abriram as portas à formação dos partidos conservador e liberal, respectivamente, aos quais, no final do período, acrescentou-se um partido nacional, ou Montt-Varista, com integrantes provenientes de ambas as coletividades. Por volta de 1870, a penetração de idéias liberais no velho tronco pelucón era apreciável. Nessa época, seguindo de perto as mudanças protagonizadas pela sociedade chilena, havia surgido com ímpeto o partido radical, junto com vários movimentos que, pouco a pouco, unificariam-se em um partido socialista e, pouco mais tarde, respondendo às tendências mundiais, um partido comunista que, desde então, tem sido o mais forte da América Latina, com exceção de Cuba. Sem modificações sensíveis na estrutura econômica do Chile, salvo o peso adquirido pelo salitre no final do período, ia-se formando, assim, o cenário político que se estendeu até o século XX.

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No final do século XIX, parecia que havia esgotado o impulso original da ordem conservadora, permanecendo apenas nas mãos de algumas famílias tradicionais que somente desejavam melhorar suas posições e que haviam perdido a “virtude pública” exigida por Portales, sem abrir o governo a novos integrantes. A partir da Guerra do Pacífico, o país perderia também esse outro cadinho da nacionalidade que foi a guerra. Após quatro decênios na qual prevaleceram aquela ordem, seguiram-se os quinqüênios de Federico Errázuriz, Aníbal Pinto – a quem coube conduzir a guerra – e Domingo Santa Maria. Naquela época, o ideal de um executivo forte havia sido substituído por uma caricatura de parlamentarismo, fachada que ocultava o desenvolvimento dos interesses oligárquicos, apoiados em um verdadeiro partido no Congresso. “Embora o Chile do fim do século seguisse em conformidade com uma ordem econômica e social tradicional, já que a atividade agrária e o mundo rural ainda predominavam na vida nacional, com o tempo foi-se configurando um cenário favorável às mudanças – tanto em termos discursivos quanto eventualmente práticos – como força motora dessa sociedade”23. Não obstante, nessa época foram semeadas as incessantes mudanças que marcariam os cem anos seguintes.

Pode-se dizer que a Guerra do Pacífico, além de assegurar a superioridade do Chile no Pacífico sul, como desejava Portales, deu-lhe praticamente o controle do salitre em uma época de extraordinária bonança para esse produto e, parcialmente, o mapa social da riqueza. No entanto, ao mesmo tempo, confirmou a crise da capacidade da fronda aristocrática para conduzir o país com a autoridade com que até então o fizera, questionando a onipotência do Executivo. À Santa Maria não coube apenas negociar o fim da Guerra do Pacífico, mas também competir com um Congresso de idéias “parlamentaristas” em meio a uma nova crise com a Igreja, à qual havia retirado o que restava de suas prerrogativas, o monopólio dos matrimônios e o registro de nascimentos e mortes, o que retrata uma época em que foi necessário lutar pelos direitos de uma sociedade ainda leiga. Em uma carta que equivale a seu testamento político, Santa Maria declara: “Algum dia a pátria me agradecerá por haver laicizado as instituições de meu país. O grau de ilustração e cultura a que chegou o Chile merecia que as consciências de meus concidadãos fossem libertadas de preconceitos medievais. A Igreja perdeu fiéis, viu esmaecer-se a

23 Correa, Sofía; Figueroa, Consuelo; Jocelyn-Holt, Alfredo; Rolle, Claudio y Vicuña, Manuel. Historia del siglo XX chileno. Sudamericana, 2001. p. 37.

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fé entre seus devotos, e o ganhador foi o partido conservador, que aumentou suas fileiras”.24

Em 1886, José Manuel Balmaceda foi eleito presidente com o programa de reunir “a família liberal”, de defender a nova riqueza nacional – representada pelo salitre – e voltar a colocar-se em defesa do Executivo. O Presidente e o Congresso mantiveram suas posições de forma inflexível. Em 1889, o primeiro havia perdido sua maioria no Senado. Em 1990, enfrentou a maior greve que o país jamais conhecera e que afetou a pampa salitreira e o porto de Arica. Em seguida, o Congresso se negou a aprovar a lei orçamentária de 1891. Balmaceda fez valer, pela primeira vez, o privilégio que lhe outorgava a Constituição de 1933 e prorrogou a vigência do orçamento. O Parlamento tinha o apoio da marinha, que se separou do exército e iniciou uma guerra civil sangrenta, na qual os congressistas ganharam as batalhas finais de Concón e de Placilla, na qual pereceram 6 mil homens. Balmaceda renunciou, refugiou-se na embaixada da Argentina, recusando as propostas para retirá-lo do Chile e matou-se com um tiro na cabeça no dia seguinte ao do término de seu mandato presidencial. Como disse o embaixador alemão, em seguida “as mesmas classes que sempre haviam governado” tomaram o poder, julgando que a essa altura seus interesses estariam melhor protegidos com um sistema “parlamentarista”. A república parlamentar implicou somente na prerrogativa, pelo Congresso, de manipular o Executivo, removendo seus ministros. Caracterizou-se por um conjunto de práticas parlamentares totalmente alheias ao presidencialismo chileno, que prolongaram por mais trinta anos o que Portales havia chamado “o peso da noite”, para referir-se ao peso da tradição no país.

Uma época de mudançasA historiografia tem debatido incansavelmente o papel desempenhado

na Guerra do Pacífico que resultou na valorização do salitre como fertilizante de uso internacional. Como resultado do conflito, o Chile adquiriu a província peruana de Taparacá onde esse produto havia suplantado o papel do guano nas finanças do Peru, assim como Antofagasta, região boliviana cujas jazidas já eram exploradas por chilenos. Embora as propriedades peruanas tivessem passado para as mãos de portadores de certificados emitidos pelo governo para financiar sua expropriação, o Estado chileno

24 Publicada por Encina, Francisco Antonio. Historia de Chile. Tomo XX, p. 452-456.

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as devolveu aos portadores, apesar de que a propriedade do salitre acabou por ficar inteiramente em suas mãos. Posteriormente, em conseqüência dessas operações financeiras, capitais britânicos chegaram a ocupar posição majoritária nessa rubrica, principalmente por meio do coronel John Thomas North. O governo do Chile compensou a contração de sua propriedade sobre as jazidas por meio de um forte imposto às exportações de salitre, que provocou um período de riqueza nacional sem precedentes e salários muito mais elevados nas empresas salitreiras, o que alterou a vida de pampa, cuja população aumentou, entre 1875 e 1908, de 2 mil a 340 mil pessoas, difundindo abundância, mansões e teatros internacionais de ópera pelas cidades da região, especialmente Iquique. No entanto, devido à mentalidade nacional de viver de rendas, a maior parte das receitas do salitre foi destinada a gastos suntuários efetuados pelos particulares, como os grandes parques hoje nacionalizados com que contam Santiago e Concepción, e muito pouco foi destinado a investimentos produtivos. Ao mesmo tempo, a bonança do salitre foi extremamente transitória. A Primeira Guerra Mundial reduziu o desenvolvimento de fertilizantes industriais ou sintéticos, campo em que a Alemanha estava muito adiantada, mas depois da guerra, junto com os Estados Unidos, o processo de produção se desenvolveu aceleradamente, com o apoio da Nitrate of Soda Executive. O auge havia passado, deixando em sua esteira um contraste maior entre a riqueza e a pobreza.

O outro problema enfrentado nessa época, refere-se à inflação e à falta de experiência quanto à adoção de políticas monetárias adequadas. No final da década de 1870, o governo havia adotado o sistema de papel moeda, já que praticamente ficara sem dinheiro metálico, e porque tal feito permitiu aos proprietários de terras resgatar as propriedades que haviam hipotecado pagando suas dívidas mediante uma fração de seu valor, sanear um sistema bancário super-exposto e também financiar os gastos da guerra. O preço foi uma inflação avassaladora. Os empréstimos estrangeiros em libras esterlinas ou em dólares contraídos, desde 1896, somente agravaram o problema e a inflação se converteu em problema endêmico, afetando, especialmente, a população mais pobre, os assalariados, até o ponto em que passou a ser chamada “o imposto dos pobres”. Conforme era tradicional no Chile oligárquico dessa época, tal problema provocou uma longa e inflamada polêmica entre os partidários de um ou outro sistema, chamados “oureiros” e “papeleiros”, respectivamente. A tendência oligárquica à

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dissidência converteu-se mais tarde em permanente situação de conflito de caráter ideológico25.

A transição entre os dois séculos foi uma época de profundos contrastes governada por equipes conflituosas e personalistas sob a fachada de um sistema parlamentar. Não obstante, durante esse tempo, marcado pelo fracasso do parlamentarismo e pela crise do salitre, tomou corpo o que passou a ser chamado “a questão social”. Santiago ganhava muitos prédios formosos, como a Estação Mapocho, a casa Gath y Chávez, o Congresso Nacional, o Teatro Municipal ou o Clube da União, provenientes do dinheiro da aristocracia; na qual construía suas mansões na Alameda e ruas próximas do centro. Em troca, a situação dos trabalhadores e dos pobres agravava-se ainda mais e cada vez tornava-se mais visível provocado, sobretudo, pela migração rural-urbana e pelo crescimento das cidades. A situação em matéria de moradia, com o avanço desse grande grupo social morando em cortiços ou tugúrios em condições insalubres, alimentava a tuberculose, o alcoolismo, a prostituição, a sífilis e todo tipo de epidemias. “Sinceridade: Chile Íntimo em 1910”, crítica social escrita por Alejandro Venegas (pseudônimo de um conhecido médico), ou “Casa Grande”, novela realista de Luís Orrego Luco (1908), tiveram enorme impacto na época. A miséria urbana se somava, assim, à dureza da vida rural. Como expressão política dessa situação, já em 1887 havia nascido o Partido Democrático, que junto com outros partidos fundados nessa época, daria origem ao moderno Partido Socialista. Depois da revolução russa, um desses partidos se transformou no Partido Comunista do Chile. Entretanto, um disperso porém motivado movimento sindical adotou sua primeira forma fundando, em 1909, a Federação Operária do Chile. No outro expremo, apesar da languidez dos governos da época, ali nasceu o ideal modernizador, que se expressou na efervescência intelectual de uma camada da sociedade chilena que transcendeu a moldura da tradicional aristocracia e na qual poetas de origem muito modesta, como Vicente Huidobro ou Rosa Alcayga (Gabriela Mistral) ou, ainda, Pablo Neruda (Neftalí Reyes), colocaram o país no cume da literatura universal associado a um extraordinário progresso material. O ato mais simbólico foi a construção da ferrovia que uniu o território de norte a sul, transformando em cidades as aldeias próximas a esse trajeto, processo seguido de perto pelo desenvolvimento de empresas nacionais de navegação que, até hoje, sulcam os mares.

25 Ver, especialmente, de Ramón, A.; Couyoumdjian, R. e Vial, S. Historia de América. Vol. III, Andrés Bello.

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Não obstante, a antiga oligarquia havia perdido a capacidade de interpretar o clamor social. Durante o restante do século XX, ela ganharia somente uma eleição presidencial, mas continuaria a influir fortemente através da propriedade de suas empresas e da fortuna do país, bem como durante cerca de vinte e cinco anos amparada pelo estabelecimento militar. Mas nos anos 20, quem captou a efervescência popular foi um deputado desconhecido de Curicó, chamado Arturo Alessandri Palma, que tinha feito sua carreira pela mão de um dirigente liberal. Alessandri possuía capacidade de direção, de negociar com diferentes grupos e de inflamar a multidão com sua oratória, predicados até então desconhecidos no Chile. Uma vez eleito senador por Taparacá, foi candidato natural à presidência, na qual ganhou, em 1920, com 65% dos votos, sendo recebido em Santiago com uma manifestação apoteótica. Apesar disso, o fechamento gradual das empresas salitreiras teve efeitos desatrosos para o país, lançando ao desemprego toda uma população migrante que chegara à pampa em busca desse milagre e reduzindo drasticamente as receitas fiscais cujo emprego havia passado a depender, consideravelmente, da crescente classe média e ocasionando maiores limitações para o financiamento dos programas sociais. O poder da oligarquia continuava vigente, amparando-se nas práticas do parlamentarismo, cuja eleição de Alesandri havia procurado superar práticas que bloquearam, no Congresso, sua proposta de reformas sociais. O divisor de águas foi o projeto de Código do Trabalho enviado ao Congresso, o qual tocava nos temas mais sensíveis da época. A oposição parlamentar não impediu Alesandri de comparecer aos debates parlamentares, estimular a divisão de ambas as câmaras, ignorar a censura a seus ministros, manifestar-se a favor do regime presidencial e mobilizar as massas em todo o país e diante de La Moneda26, fazendo-se acompanhar, inclusive, por oficiais do exército. No entanto, em princípios de setembro de 1924, na sessão em que o Congresso se preparava para rechaçar o código proposto pelo Poder Executivo, um grupo de oficiais ocupou as galerias batendo com os sabres no chão. Esse “ruído de sabres” possibilitou a aprovação das leis sociais em um dia e fez com que as forças armadas descobrissem sua influência. Não obstante, alguns generais que desconfiavam dos jovens, exigiram a renúncia de Alessandri, que se licenciou do Congresso e viajou para a Itália. Pouco tempo depois, a oficialidade, encabeçada pelo coronel Carlos Ibañez del Campo, dissolveu a

26 Palácio presidencial em Santigo do Chile (N. do T.).

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junta militar e chamou Alessandri de volta. Embora, pouco tempo depois, os conflitos existentes o obrigassem a renunciar à presidência e exilar-se pela segunda vez, Alessandri gerou a maior reforma política e social da história do Chile, voltou a tornar a moeda conversível e criou o Banco Central, com assessoria norte-americana a partir da missão Kemmerer. Formou também uma comissão que redigiu uma nova Constituição, a de 1925, que, embora tenha enfrentado a abstenção dos partidos políticos, foi colocada pelas forças armadas como condição para a normalidade. Redigida com base na carta de 1833, esse documento restabelecia claramente o presidencialismo no Chile. A “república parlamentar” ficou na lembrança como mais um instrumento dos interesses da oligarquia.

Seguiu-se a esse momento um período confuso representado por intervenções militares e a proclamação de uma república socialista, em meio à qual Emiliano Figueroa foi eleito presidente. Carlos Ibañez, que havia consolidado sua posição entre a oficialidade do exército, foi nomeado ministro do interior, sendo que Figueroa renunciou a seu cargo, e Ibañez foi eleito presidente com 98% dos votos, exercendo, até 1931, um governo abertamente ditatorial. Seu período, no entanto, foi extremamente criativo, com a execução de um programa de obras públicas espetacular para a época, criando a primeira linha aérea nacional (LAN-Chile), saneando as finanças externas, organizando a administração e os gastos públicos e criando, para tanto, a Controladoria Geral da República, bem como chegando a um acordo com os proprietários norte-americanos da maior parte da indústria do salitre (a família Guggenheim) para formar a Companhia de Salitre do Chile. A crise mundial de 1929 repercutiu seriamente no Chile, cada vez mais dependente de sua inserção externa, provocando a queda de Ibañez em 1931. Alberto Edwards diria que “o grande serviço que Ibañez prestou ao Chile foi a reconstrução radical do fato da autoridade”. Ela, porém, durou pouco e com sua queda recomeçou o ciclo de distúrbios que havia precedido sua eleição.

Recorrendo à terminologia da Cepal, pode-se dizer que durante o período colonial e o século XIX, a economia do Chile reproduziu textualmente os traços da época do crescimento “para fora”, caracterizada por sua especialização na produção de bens primários para os grandes mercados internacionais. A crise mundial de 1929 provocou o desmoronamento desses mercados e a conseqüente impossibilidade de o Chile exportar-lhes sua produção e por

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conseguinte de manter o modesto volume de importações necessárias ao consumo de sua classe dirigente e a continuação de um incipiente processo de desenvolvimento. Conforme Raúl Prebisch e a Cepal mais tarde racionalizariam, a única estratégia que na prática os países latino-americanos poderiam adotar era a de gerar internamente os produtos que antes importavam. Isso exigia um esforço de industrialização para o qual suas sociedades não estavam preparadas e que se chocava com a competição de produtos semelhantes oferecidos em melhores condições pelos países já industrializados. Isso pressupunha políticas estatais de proteção à indústria nascente, similares àquelas pelas quais haviam lutado as treze colônias norte-americanas da Grã-Bretanha no final do século XVIII, ou às que a Alemanha aplicara após sua unificação em 1870. O Chile havia iniciado um limitado processo de industrialização alguns decênios antes, mas o esforço agora necessário exigia que assumisse a direção do país um governo que compartilhasse essas idéias, profundamente inseridas entre os profissionais e as classes médias, que fosse sensível aos interesses populares e não fosse comprometido com a oligarquia tradicional. Esses governos foram proporcionados pelo partido radical, representante de um país leigo e da classe média, com a vitória nas urnas de Pedro Aguirre Cerda em 1938 e posteriormente de Juan Antonio Rios e Gabriel González Videla, até 1952.

O partido radical tinha sido formado de maneira pouco espetacular no Chile desde fins do século XIX, como representante da nascente classe média, da educação, de uma sociedade leiga e eventualmente da industrialização. Em 1939, Aguirre Cerda, que havia escrito dois livros intitulados “A Questão Industrial” e “A Questão Agrária”, criou a Corporação de Fomento à Produção (Corfo), cujos antecedentes poderiam remontar à Nafinsa no México ou ao Banco do Brasil, muito poucos anos antes. Seu papel era apoiar certas políticas tarifárias, creditícias e cambiais projetadas pelo governo e que eram direcionadas aos investimentos industriais. Os resultados da Corfo foram espetaculares, proporcionando a criação, no Chile, das indústrias do aço, da eletricidade, das telecomunicações, do refino de petróleo, do açúcar, dos pneumáticos e outras em vários setores nos quais antes não existiam. Tal fato ocorreu paralelamente com o fortalecimento da educação e da saúde, da expansão da classe média e da defesa dos operários industriais que eram a base eleitoral daquele partido, um partido reformista contemporâneo de Libertação Nacional na Costa Rica, Ação Democrática na Venezuela ou o APRA no Peru, entre outros movimentos semelhantes. O representante dos governos

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radicais nas Nações Unidas, Hernán Santa Cruz, foi autor de uma iniciativa que conduziu à criação da Cepal, enquanto que posteriormente outro chileno, Felipe Herrera, foi o criador e primeiro presidente do BID.

Herrera foi ministro da Fazenda do segundo governo de Carlos Ibañez del Campo, eleito em 1952 por avassaladora maioria, o qual impulsionou um programa transcendental de reordenamento e reforma econômica, que incluiu, pela primeira vez, a reorientação social da carga tributária, sob o lema “que paguem os poderosos”, uma grande expansão da previdência social, a fundação do Banco do Estado, que agrupava as instituições estatais de crédito hipotecário, agrário e industial, e a criação do Departamento do Cobre que, sem chegar a obter a nacionalização dessa riqueza, conferiu ao Estado uma importante capacidade de pesquisa sobre o produto e seus mercados. O segundo governo de Ibañez, de grande criatividade institucional, permaneceu, em linhas gerais, com a mesma estratégia de desenvolvimento iniciada pelos governos radicais, injetando-lhes fortes elementos populistas ligados à sua inspiração política, característica que o diferenciava dos primeiros. Ao término de seu mandato, Ibañez foi eleito para o Senado, sendo sucedido pelo único governo de direita eleito popularmente no século XX, após as reformas de Arturo Alessandri. A história, que é irônica, fez com que, nessa eleição, saísse vitorioso seu filho, Jorge Alessandri, presidente da empresa de fabricação de papel, homem extremamente sóbrio, que levou a cabo uma política econômica plenamente compatível com o sistema de economia mista construída no Chile a partir dos radicais. O populismo do general Ibañez e a moderação de Jorge Alesandri não poderiam ser mais contrastantes. No entanto, este último trabalhou na linha da Aliança para o Progresso, proposta pelos Estados Unidos para a região. Por isso, durante seu governo, foram estabelecidas as bases legais da reforma agrária e iniciou-se o processo, que seria consideravelmente acelerado pelos governos seguintes. Deve-se sublinhar a grande continuidade ocorrida desde os governos radicais até o período de Alessandri, uma época marcada por um reformismo moderado no aspecto político e pela ênfase no crescimento “para dentro” e industrialização, no aspecto econômico. A essa fase se seguiria um período que Mario Góngora denominaria “a época dos planejamentos globais”.

A tendência a enfrentar posições excludentes e, por conseguinte, o conflito, incorporou-se à cultura chilena desde a independência e, especialmente, após as querelas religiosas que, desde a segunda metade do século XIX, projetaram-se

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no século XX. No início do referido século, desenvolveu-se um debate entre os “monetaristas” que, à direita, “atribuíam a inflação – e por extensão todos os males da economia chilena – a fenômenos monetários e financeiros, e os “estruturalistas”, que a explicavam em termos estruturais”, isto é, vinculados à estrutura econômica e social do Chile27. Esta última posição foi a mais aceita pela Cepal. Segundo tal postura, a fim de remediar esses males era necessário mudar a estrutura, o que supunha um movimento político de maior envergadura do que aqueles que o país conhecera até então. A complexidade que nessa época a sociedade já atingira, a ampliação do conflito que dividia suas diversas classes sociais e a expansão da educação, converteram essas divergências em conflitos ideológicos nos quais estavam em jogo visões excludentes acerca da estrutura que deveria ter a sociedade e como chegar a ela. A ideologização dessas diferenças causou enorme prejuízo ao Chile.

O processo se iniciou em 1964 com a eleição, por ampla maioria, de Eduardo Frei Montalva, líder da democracia cristã, um partido idealista que, durante trinta anos, mantivera somente três deputados e dois senadores. A DC nasceu da juventude conservadora, a ala progressista do partido na qual manteve uma luta permanente que, como toda luta “sectária” – no sentido de grupos pertencentes a um mesmo grupo – adquiriu um caráter ideológico estimulado por um pano de fundo religioso. No programa da DC, incluía-se a construção de uma sociedade mais solidária (o comunitarismo), um grande projeto de promoção popular, uma política de diversificação agrícola e uma forte aceleração da reforma agrária, cujas expropriações, de fato, começaram com Frei. Este impulsionou a integração com os países latino-americanos, exercendo papel decisivo na formação do Acordo de Cartagena, bem como sua maior independência em relação aos Estados Unidos, aspiração expressa no Consenso de Viña del Mar. Não obstante, próximo ao final de seu mandato, o grau de ideologização a que chegara o país e a excisão de dois ou três importantes grupos de jovens da esquerda do partido o fizeram rever suas posições e o impediram de fazer um pacto com outras coletividades, como exigia a governabilidade do país, tendo em vista o clima de confrontação que se havia criado e a perda da maioria parlamentar do partido. Dessa forma, os partidos de esquerda apoiaram, pela quarta vez, a candidatura do senador Salvador Allende, político experiente, grande orador e homem comprometido

27 Góngora, M. op. cit., p. 246.

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com as instituições democráticas. No entanto, a radicalização da reforma agrária, sua utilização para criar conflitos sociais no campo a fim de gerar mais uma justificativa para expropriações, seu propósito de criar uma área social da economia mediante a expropriação de grande parte das empresas industriais e uma inflação descontrolada, associado, ainda, aos conflitos existentes em sua própria plataforma de partidos e à impossibilidade de chegar a acordos com a democracia cristã, induziram as forças armadas, em setembro de 1973 – estimuladas pelos empresários locais e pela diplomacia dos Estados Unidos – a derrubar o governo e bombardear la Moneda, de onde Allende se negou a sair, disparando, contra si mesmo, uma metralhadora que Fidel Castro lhe dera de presente durante uma extensa visita que havia feito ao Chile nesse período. Paradoxalmente, as forças armadas que, supostamente, haviam interferido para romper um impasse transitório, formaram um governo de duração indefinida que, ao final de pouco tempo, mostrou-se mais ideológico que os anteriores.

A forma como ocorreu o golpe militar e a participação dos diferentes ramos das forças armadas inicialmente nele inseridos, apresentam arestas que até hoje não estão suficientemente esclarecidas. Três coisas, porém, são claras: o exército teve gravitação central a partir da tomada de tal decisão, tanto por sua magnitude quanto pelas condições estratégicas de seu comandante chefe, Augusto Pinochet, designado para o cargo poucos dias antes por Allende; por meio do golpe, as forças armadas chegaram para ficar, apesar dos antigos políticos acreditarem que viria somente para colocar ordem e devolver-lhe o governo, e que, ao tomarem o poder não teriam visão econômica. Os civis que integraram os primeiros gabinetes militares pertenciam ao mundo tradicional do país. No entanto, a escola de economia da Universidade Católica havia se especializado em economia de mercado com o mais clássico de seus docentes, a escola de Chicago, com quem havia formalizado, para tanto, um convênio. Formavam-se, portanto, uma equipe excelente e coerente, que havia consolidado suas idéias sobre o Chile em um documento coletivo apelidado “o tijolo”. A marinha tinha contatos com o grupo e convenceu o restante do governo a utilizá-lo. Durante quinze dos dezessete anos que durou o regime militar os “Chicago Boys” transformaram novamente a economia do país com completo apoio militar e sem oposição civil. Dispuseram, assim, de um laboratório excepcional para levar a cabo um conjunto de reformas de mercado de grande radicalismo anos antes dos governos de Reagan e da Sra. Thatcher e aproximadamente quinze anos antes do Consenso de Washington.

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Apesar de que, durante o primeiro decênio, o custo dessas reformas fosse um desemprego de 30% (mesmo levando-se em conta os programas emergenciais do governo voltados aos empregos não produtivos) e um grande aumento da pobreza, que chegou a alcançar praticamente 50% da população chilena, em meio a uma rigorosa restrição fiscal e uma profunda crise ocorrida em 1982 a partir do pagamento da dívida externa, na qual o Estado passou ao Banco Central o custo da reestruturação do sistema bancário nacional. A partir de 1985, por outro lado, o país passou a apresentar crescimento sustentado.

Não obstante, as forças políticas proscritas pelo regime militar nunca deixaram de atuar, seja no exílio ou dentro do território nacional e, nessa época, começaram a agrupar-se, unindo-se, após diversas tentativas, na Concertação de Partidos pela Democracia, que incluía o Partido pela Democracia (criado nessa época para obviar a proscrição), bem como os partidos Socialista, o Radical-Social Democrata e o Democrata Cristão. O debate sobre a questão de adotar uma estratégia de confrontação para derrubar o governo militar ou utilizar a própria Constituição de 1980, redigida pelo próprio regime Militar, acabou definido em favor dessa última alternativa, que consistia em um plebiscito no qual os cidadãos se pronunciariam somente a partir de um “sim” ou um “não” em relação à permanência do presidente Pinochet, que acreditava ter seu mandato assegurado por dez anos. No entanto, venceu o “não” por maioria cômoda e, após horas de deliberação noturna em um bunker construído sob o palácio La Moneda, associado ao fato de que, finalmente, o comandante da força aérea cumprimentou pessoalmente os dirigentes da oposição, o governo militar aceitou o resultado. Conseqüentemente, realizou-se em 1990 uma eleição presidencial vencida pelo candidato da Concertação, Patricio Aylwin. Levando-se em consideração que este é um período do qual todos nós, chilenos, fazemos parte atualmente – estando, naturalmente, a favor ou contra – não é possível descrever seus resultados econômicos sem emitir, ao mesmo tempo, algum juízo de valor sobre os mesmos. O que parece claro, no entanto, é que a Concertação constituiu a coalizão mais ampla e de maior êxito que, no caso, governou o país no século XX.

Recentemente, um autor sustentou que “os eixos econômicos da Concertação têm sido a governabilidade política, a institucionalidade econômica e a eqüidade social”.28 A estes eixos eu acrescentaria a manutenção

28 Muñoz, Oscar. El modelo económico de la Concertación. Catalonia, 2007. Especialmente págs. 88 e segs.

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de uma economia de mercado, corrigida pelas políticas de proteção social e a mudança cultural. Os resultados dessa combinação de políticas de crescimento e de eqüidade têm sido que a taxa média de crescimento da economia superou 5% anuais, apesar do profundo declínio ocorrido nessa tendência a partir da crise asiática de 1998, associado à redução da pobreza desde o registro dos mais de 40% herdados do governo militar até os 13% ao finalizar o governo do presidente Lagos. As dificuldades pela qual passou o Chile para reativar sua economia após o impacto da crise mencionada, reflete, em minha opinião, em parte os limites impostos pelos problemas estruturais de sua economia e em parte o custos dos compromissos sociais desses governos, não tanto em termos do financiamento de suas políticas sociais e sim por conta de sua relação com os trabalhadores e o mundo sindical. Existe consenso no Chile de que o principal obstáculo para dinamizar a economia passa pela falta de capacidade de inovação e flexibilidade, o que inclui, certamente, alguma medida de flexibilização trabalhista. Por outro lado, em conseqüência de acertadas políticas fiscais e macroeconômicas, e da bonança experimentada pelo cobre nos mercados mundiais, o país construiu uma blindagem financeira que o faz encarar com confiança as ameaças recessivas da economia norte-americana e sua possível repercussão mundial.

O preço do processo é a impressão de que a Concertação de partidos pela Democracia tenha perdido parte de sua capacidade de governar. Essa impressão é descrita em um livro recente, cujo autor foi o pilar da frágil governabilidade da democracia recém recuperada durante o governo de Aylwin e desempenhou papel crítico até agora; sustenta ele que “o exercício indefinido do poder tende a convertê-lo em um objetivo em si mesmo, produz o hábito e eventualmente a corrupção”29. Foi isso o que aconteceu na Itália em princípios dos anos 90, depois de quarenta e cinco anos de governos sustentados por coalizões parecidas, lideradas permanentemente pela Democracia Cristã. É o que, pouco depois, ocorreu na América Latina, onde muitos países sofreram o desmoronamento de seus partidos, particularmente a Venezuela. Todo país deve estar sempre sensível diante das ameaças à sua governabilidade. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

29 Boeninger, Edgardo. Políticas públicas en democracia. Uqbar, 2007.

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* Fundação Segurança e Democracia. [email protected]

Progressos e desafios na Colômbia de hojeAlfredo Rangel *

F elizmente para os colombianos, a longa noite escura de violência e insegurança que sofremos nos últimos 40 anos está chegando ao fim. Estamos, sem dúvida, começando a ver a luz no fim do túnel, a virar a página desse fenômeno de violência tão arraigado na Colômbia, e por isso os desafios até então apresentados em direção ao futuro, que são grandes e árduos, não estarão determinados, de maneira significativa, pelo tema da violência, que em boa parte condicionou a sorte do país nas décadas anteriores.

A melhoria da situação na Colômbia foi alcançada graças à aplicação de algumas políticas de segurança nacional bastante consistentes e eficazes, que permitiram recuperar, de forma significativa, a segurança e confiança dos colombianos e dos estrangeiros em relação ao país. A recuperação da segurança tornou possível reativar a economia de maneira inusitada em comparação com anos anteriores, o que, por sua vez, permitiu um avanço importante na solução dos problemas sociais do país.

Desenvolvimento econômico e socialCom efeito, na Colômbia, a média do crescimento econômico anual

do PIB nas últimas décadas foi de 2,5%, mas no ano passado atingiu 7,5%, a

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Progressos e desafios na Colômbia de hoje

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maior dos últimos 30 anos. Isso foi resultado do crescimento do investimento interno e externo, em conseqüência da melhoria das condições de segurança do país. Assim, a Colômbia tinha em média, nos anos anteriores, um investimento anual de dois bilhões de dólares. Atualmente, essa cifra anual está próxima dos nove bilhões, e já existem projetos para o futuro da ordem de nove bilhões. Segundo a Cepal, a Colômbia é o quarto país em obtenção de investimentos estrangeiros depois do Brasil, México e Chile. Da mesma forma, o investimento interno cresceu nos últimos anos até alcançar o patamar atual de 27% do PIB, após representar apenas 15%. Sua dívida externa em relação ao PIB baixou de 48% para 26% nos últimos cinco anos e o déficit fiscal reduziu-se de 3,6% a 0,8% no mesmo período. As exportações da Colômbia para os Estados Unidos triplicaram nos últimos dez anos, chegando a 12 bilhões de dólares; da mesma forma, as exportações para a Venezuela, nosso segundo sócio comercial, multiplicaram-se por sete, passando de 800 milhões a 6 bilhões de dólares. Isso tem significado para a Colômbia crescimento, produtividade, emprego e melhoria das condições de vida da população.

Assim, o desemprego aberto que há seis anos era de 18%, reduziu-se à metade em fins de 2007 e nos dias atuais se situa em 10,5%. Nesse mesmo ritmo a população em condições de pobreza baixou de 57% a 42%, o que significa que pelo menos quatro milhões de pessoas saíram da pobreza nos últimos cinco anos e dez milhões fizeram o mesmo nos últimos oito anos. A população com acesso à segurança social em saúde passou de 56% a 83%, duplicando-se, assim, o acesso dos mais pobres. Igualmente, a população coberta pelo regime de pensões cresceu 44% nos últimos anos. No futuro próximo, estima-se uma leve desaceleração do crescimento econômico a uma taxa de 4,5% anuais, mas o crescimento vai continuar e o país parece estar blindado contra os riscos derivados da crise financeira internacional.

A recuperação da segurançaEssa recuperação do país se tornou possível devido ao restabelecimento

da segurança. De fato, em 2007 verificou-se na Colômbia a taxa de homicídios mais elevada dos últimos 20 anos, sendo que nos últimos 6 anos essa taxa se reduziu à metade, pois nesse período passamos de 65 homicídios por 100 mil habitantes, muito elevada comparando-se com países semelhantes à Colômbia, a 34 homicídios por 100 mil habitantes. Mesmo sendo ainda muito alta, essa

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taxa significa uma situação menos complicada do que a que, infelizmente, vivem alguns países nossos vizinhos. Com efeito, vários países superam hoje a taxa de homicídios da Colômbia, que até poucos anos estava em primeiro lugar devido a seu conflito armado interno. Entre eles estão El Salvador, com uma taxa de 55, a Venezuela, com 52, a Jamaica, com 49, a Guatemala, com 45, e Honduras, com 43. Bogotá, com 18, está em muito melhor situação do que a cidade da Guatemala (103), San Salvador (95), Caracas (87), Tegucigalpa (56), São Paulo (55), Rio de Janeiro (53), Brasília (38), Washington (34) e Lima (22). Caso continue essa tendência de aumento médio dos homicídios na região, que hoje é de 26, três vezes a da Europa, a taxa poderá alcançar 30 no ano de 2030, longe da mundial, que é de 9.

Por outro lado, a Colômbia melhorou ostensivamente sua situação em relação a um crime no qual, por muitos anos, manteve uma dianteira ignominiosa: o seqüestro. Com efeito, a redução de cerca de 80% desse delito em nosso país e seu recente auge entre os vizinhos levou a que pelo menos cinco países nos superem em quantidade de seqüestros em proporção a suas respectivas populações. Em ordem: México, Equador, Brasil, Haiti e Venezuela. Até há pouco era impensável que houvesse mais seqüestros no Equador e na Venezuela do que na Colômbia, mas isso ocorreu, como demonstra o mais recente estudo da Pax Christi sobre o tema. Claro que a Colômbia ficou com sua fama abalada. Agora se fala de um país que se “colombianiza” quando nele cresce o seqüestro e em geral a insegurança interna. E isso ocorre precisamente quando os colombianos caminham na direção oposta e começam a resolver, em grande medida, tais problemas.

O enfraquecimento da guerrilhaO enfraquecimento da guerrilha e a desmobilização dos grupos

paramilitares na Colômbia provocaram uma redução substancial de suas ações violentas contra a população e contra os órgãos de segurança do Estado. Assim, por exemplo, os ataques guerrilheiros contra pequenos povoados rurais, que no ano de 2002 foram cerca de 30 e, em alguns casos, com a tomada do controle das populações durante muitas horas, reduziram-se a duas hostilidades em pequenos povoados em zonas marginais da geografia nacional. Os deslocamentos forçados de pessoas, produto das confrontações violentas entre guerrilheiros e paramilitares em disputa pelo controle de áreas

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do território nacional, também se reduziram substancialmente. As barreiras ilegais da guerrilha nas estradas, que no ano de 2002 chegaram a ser de 246, diminuíram no ano passado, unicamente a 18, ou seja, treze vezes menos.

O que terá tornado possível essa recuperação da segurança? Foi uma política bastante eficaz contra os grupos armados, que ocasionou a maior débâcle em toda sua história. O caso das FARC é muito eloqüente. Vejamos alguns indicadores de seu enfraquecimento nos últimos cinco anos.

Homens armados. As FARC perderam 60% de seus homens, passando de 18 mil a cerca de 7 mil. Pela primeira vez na história, reduziu-se sua base de força. A maioria desertou e acolheu-se em programas governamentais. Simultaneamente, diminuiu a capacidade de recrutamento, devido à deterioração se sua imagem entre os setores camponeses.

Finanças. Suas rendas caíram pelo menos em 40%. Apesar de seu maior envolvimento com o narcotráfico, os rendimentos se reduziram porque agora as máfias mexicanas levam a parte do leão. Além disso, a frente do Negro Acacio foi desarticulada e isso significou uma enorme perda de renda proveniente da droga. Seus seqüestros anuais caíram em 92%, passando de 998 a 75. A perda de presença territorial e de mobilidade cortou-lhes pela metade a capacidade de extorsão.

Território. Medida pelo número de municípios nos quais as FARC realizaram ataques contra a Força Pública, sua presença territorial se reduziu em 40%. As FARC perderam definitivamente zonas estratégicas em Cundinamarca e reduziram a presença, perdendo mobilidade na retaguarda estratégica e no sul do país, como resultado do Plano Patriota. Suas redes urbanas foram desmanteladas e com elas o objetivo de urbanizar o conflito.

Operações. A capacidade operacional caiu verticalmente. Os ataques anuais à Força Pública passaram de 399 a 214, quase a metade. Deve-se ressaltar que a maioria deles são campos minados, tática totalmente defensiva e orientada a deter o avanço das tropas governamentais que perseguem a guerrilha em meio à sua retirada, e que ocasiona 68% das vítimas entre os membros da Força Pública. As barreiras ilegais passaram de 278 a 37, o que corresponde a 86% a menos. Os atentados das FARC contra a infra-estrutura econômica baixaram a menos da metade e os ataques contra populações se reduziram de 39 para 1 (um).

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Comandos. Nunca tinha ocorrido uma perda tão significativa de comandantes quanto agora, seja por capturas, baixas ou deserções, em todos os níveis de sua chefia, desde as frentes de combate até o Secretariado. Numericamente falando, todos foram substituídos, mas essa fase de perdas é um forte golpe para a moral e representa redução significativa da capacidade política, organizativa, financeira e militar. A capacidade e a experiência de muitos desses comandantes é insubstituível.

Comunicações. Os órgãos de inteligência do Estado mantêm praticamente as FARC sem comunicações. Isso deteriorou a capacidade de comando e controle de seus chefes, propiciou relaxamento, indisciplina e desmotivação da tropa, a extensão da corrupção e fuga de recursos aos comandos médios, afetando ainda mais as deterioradas finanças e a reduzida capacidade operacional.

Moral. A motivação das FARC está no ponto mais baixo de sua história. Desmoronaram as expectativas de êxito militar. O debilitamento militar e financeiro, a falta de comunicação, a avalanche de deserções, a delação generalizada em troca de recompensas, a morte de chefes importantes e o maciço rechaço popular do passado 4 de fevereiro, continuaram debilitando sua moral e sua motivação para continuar a luta.

Em conseqüência de tudo o que precede, agora o tempo corre contra as FARC. Seu enfraquecimento será progressivo e irreversível, e quanto mais débeis estejam, menos poderão conseguir uma negociação com o Estado. Por sua vez, o Exército de Libertação Nacional (ELN), muito mais fraco, se encontra em situação ainda mais calamitosa. Chegou a ter cerca de 4.500 homens armados, mas agora não possui mais do que 600 ou 700, isto é, bem menos do que possuía no passado. Encontra-se em situação muito próxima à cessação de hostilidades, obrigado pela ação das forças governamentais.

A desmobilização paramilitarMas a política de segurança do governo também inclui iniciativas de paz

que sempre mantiveram as portas abertas para realização de conversações de paz com os grupos que as aceitem. Essa política de paz conseguiu desmobilizar 32 mil membros dos grupos paramilitares, a metade dos quais entregou armas, pois eram combatentes nas fileiras armadas. Isso também contribuiu

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enormemente para reduzir o número de massacres, de assassinatos e de deslocamentos forçados na Colômbia, que têm sido um problema crítico no país durante os últimos anos.

A desmobilização desses grupos foi um grande êxito do governo nacional. Eram grupos que não tinham sido derrotados pelo Estado por ocasião de sua desmobilização e que na verdade, pelo contrário, estavam passando por seu melhor momento do ponto de vista militar, político, econômico e social. Além disso, tinham conseguido derrotar a guerrilha em muitos lugares e possuíam controle territorial em muitas zonas do país. Não obstante, o Estado lhes impôs suas próprias condições para que se submetessem à lei de Justiça e Paz, que é o marco jurídico segundo o qual entregaram as armas e se desmobilizaram.

Essa lei obriga os responsáveis por crimes atrozes a confessar todos os seus delitos e entregar seus bens para a reparação das vítimas, como condição necessária para obter reduções substanciais de suas penas de reclusão. Se não confessarem a totalidade de seus delitos ou não entregarem às autoridades a totalidade de seus bens, poderiam perder os benefícios e passar à justiça comum, que resultaria em condená-los a mais de 60 anos de prisão por seus delitos e não a 8 anos como contempla a lei de Justiça e Paz, caso cumpram cabalmente as condições nela estabelecidas. O fato importante é que se trata da primeira vez que um grupo armado se desmobiliza na Colômbia nessas condições, tornando assim possível se obter simultaneamente importantes doses de verdade, justiça e reparação para as vítimas. Isso nunca havia ocorrido antes em desmobilizações de grupos guerrilheiros na Colômbia, e nem tampouco em nenhum processo de reconciliação nacional em nível mundial. Em conseqüência da aplicação dessa lei foram levados a julgamento 2.700 paramilitares desmobilizados, entre os quais 50 chefes principais, dos quais 15 foram extraditados aos Estados Unidos para serem processados por narcotráfico. 137 mil vítimas se inscreveram para serem parte civil nos julgamentos e reclamar reparação, encontraram-se 1.300 fossas comuns e foram exumados mais de 1.600 cadáveres.

A desmobilização dos grupos paramilitares permitiu trazer à luz pública e começar a processar judicialmente muitos dirigentes políticos que anteriormente se aliaram com esses grupos ilegais a fim de pressionar indevidamente os eleitores ou para ameaçar seus adversários com o propósito de obter vantagens eleitorais. A imensa maioria desses casos ocorreu antes do

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início do atual governo, durante o qual esses grupos foram desmobilizados. Apesar da comoção causada por esses processos, em nenhum momento houve risco para as instituições e nem para o funcionamento do Congresso, e os tribunais trabalharam de forma independente, o que demonstra a fortaleza institucional da Colômbia. Está em curso no Congresso a aprovação de uma reforma política que no futuro impeça a penetração de grupos armados ilegais na política colombiana, objetivo esse compartilhado pelo governo nacional, os partidos políticos e a sociedade colombiana.

Por outro lado, é bastante provável que as guerrilhas das FARC e do ELN se desmobilizem no futuro e, possivelmente, será preciso estabelecer concessões muito mais generosas do que as proporcionadas aos paramilitares, isto é, uma lei de justiça e paz talvez menos dura e menos exigente, e isso quem sabe não provoque as críticas que o governo colombiano teve de suportar pela desmobilização dos paramilitares. Mas se esse for o preço de uma desmobilização total da guerrilha, necessária para o advento da paz definitiva no país, é possível que os colombianos estejam dispostos a assumi-lo.

NarcotráficoNão obstante, na Colômbia há problemas que continuam sendo críticos.

Com efeito, a grande mancha da política de segurança é o tema do narcotráfico. Não houve êxito na luta contra o narcotráfico. Mas esse não é apenas um problema da Colômbia, já que em nível global também a guerra contra as drogas ilícitas está sendo perdida, em particular em relação à cocaína. Cada dia se produz e se consome mais cocaína no mundo. Os dados são absolutamente devastadores: na Colômbia, o tamanho dos cultivos de coca reduziu-se a cerca de metade do que tínhamos há dez anos, mas nessa área reduzida estamos produzindo mais do dobro de cocaína do que antes, a ponto de alcançar mais de 600 toneladas anuais.

Na Colômbia, foram destruídos todos os cartéis da droga que surgiram: os grandes cartéis de Medellin, o cartel de Cali e o do Norte do Vale. Foram confiscados milhões de toneladas de insumos e também centenas de toneladas de cocaína e fumigados mais de meio milhão de hectares, em todas as áreas do país. Centenas de capos foram extraditados aos Estados Unidos e, durante os últimos seis anos, mais de 600 membros de quadrilhas de narcotraficantes foram enviados a julgamento pela justiça desse país.

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Não obstante, a quantidade de cocaína que se produz e se exporta a partir da Colômbia continua a ser praticamente igual ou maior. Notadamente o Peru e a Bolívia produzem muita cocaína, abastecendo um mercado internacional crescente. Há cerca de seis milhões de consumidores de cocaína nos Estados Unidos, e esse número é estável, mas também há países onde o consumo aumenta como a Irlanda, a Espanha, a França, a Itália e também países da Europa oriental, além da América Latina, onde a Argentina é, atualmente, o maior consumidor de cocaína, superado no continente apenas pelos Estados Unidos. A droga penetrou também de maneira grave no Brasil e, sobretudo, no México, com enormes seqüelas de violência, criminalidade, armamentismo e corrupção, pois nesse último país, as máfias estão disputando, entre si, violentamente a parte do leão na repartição dos gigantescos lucros ilegais derivados do narcotráfico.

Como resultado da persistência da alta rentabilidade do narcotráfico, a Colômbia viu surgir dezenas de pequenos cartéis de narcotraficantes que substituíram os antigos grandes cartéis da droga desarticulados pelo Estado. Apesar disso, diferentemente de seus antecessores, esses pequenos cartéis procuravam manter um perfil baixo, não confrontar violentamente o Estado e garantir suas condições de operação mais com a corrupção do que com a violência. Simultaneamente, em várias zonas rurais do país surgiu recentemente um novo fenômeno de bandos armados a serviço do narcotráfico, muitos deles nascidos a partir de redutos não desmobilizados de grupos paramilitares anteriores. Esses grupos armados ilegais entraram em alianças com muitas frentes guerrilheiras também dedicadas ao narcotráfico com o propósito de enfrentar conjuntamente a ação repressiva do Estado. Tais bandos representam uma nova ameaça à segurança nacional e são resultado da persistência do narcotráfico como atividade ilegal que gera grandes ganhos. Não são grupos paramilitares insurgentes como eram os que se desmobilizaram e se submeteram à lei de Justiça e Paz; são verdadeiras narco-quadrilhas que se aliam com as guerrilhas para repartir, entre si, os territórios, os mercados e os lucros do narcotráfico e repelir coordenadamente o Estado.

Fronteiras e relações internacionaisO outro problema de segurança pendente na Colômbia é o das fronteiras.

Creio que está havendo progresso. Esse foi um ponto ao qual o governo

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nacional deu grande ênfase no Plano de Consolidação, que é a segunda parte de sua política de segurança democrática. O transbordamento dos efeitos do conflito armado interno para territórios de países vizinhos ocasionou muitos incidentes fronteiriços para a Colômbia, que derivaram em tensões políticas e diplomáticas com alguns de seus vizinhos. O Plano de Consolidação trata de blindar as fronteiras para evitar a migração de grupos irregulares, a utilização de territórios estrangeiros como zonas de asilo e proteção para esses grupos, diminuir o contrabando de armas, drogas e mercadorias e evitar a ocorrência de outros delitos, como o seqüestro, nessas zonas.

Após um longo período crítico de relações entre a Colômbia e a Venezuela, a situação felizmente tende a normalizar-se. Cessaram os ataques verbais e públicos entre os mandatários de ambos os países, os governos expressaram sua intenção de colaborar na guarda conjunta das zonas fronteiriças e continuar a robusta agenda de integração bi-nacional que inclui megaprojetos energéticos, como a construção de um poliduto entre o golfo da Venezuela e o Pacífico colombiano. O presidente Chávez se dissociou pública e claramente da guerrilha das FARC, sobre a qual mantinha uma atitude que para alguns colombianos era ambígua e para outros era de franco apoio e respaldo. Chávez declarou que a luta armada não tem utilidade e conclamou a guerrilha a entregar imediatamente os seqüestrados, sem nenhuma contrapartida. Tal atitude foi avaliada muito positivamente pelo governo colombiano, que ratificou sua decisão de normalizar as relações entre os dois países, cujo intercâmbio comercial e cultural é muito robusto, fluido e crescente.

Com o Equador, a situação é um pouco mais complexa e instável, pois, embora tenham se acentuado os contatos entre ambas as Chancelarias com vistas a normalizar as relações diplomáticas, que estão suspensas há alguns meses, a situação está longe de regularizar-se. A Colômbia acusou reiteradamente as autoridades equatorianas de serem bastante complacentes com a presença da guerrilha colombiana em seu território e, por sua vez, o governo equatoriano censura o colombiano por não se esforçar suficientemente para evitar que os insurgentes atravessem as fronteiras. Mas, o bombardeio das forças militares da Colômbia contra o acampamento que o líder das FARC Raúl Reyes havia estabelecido durante muitos meses no Equador, foi o detonador da crise recente, ainda não superada. Um encontro recente dos altos comandos militares dos dois países no Panamá faz pensar que as animosidades recíprocas estão se assentando e que, no futuro, prevalecerá o interesse mútuo de garantir

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a segurança fronteiriça como uma condição para se continuar avançando na ativa integração econômica e cultural entre os dois povos.

Por outro lado, a Colômbia obteve apoio importante do governo do Brasil na luta contra a guerrilha e contra o narcotráfico. Correspondentemente, a Colômbia apoiou a iniciativa do Brasil de criar um Conselho Sul-Americano de Segurança, apesar das reticências iniciais do governo colombiano ao reclamar uma atitude clara de todos os governos da área em relação ao tema do terrorismo. Superado esse obstáculo, esse Conselho se apresenta como iniciativa necessária para fortalecer a confiança mútua entre esses países e para enfrentar conjuntamente as ameaças à segurança coletiva.

As relações da Colômbia com os Estados Unidos são muito estreitas no plano econômico e diplomático e não há motivo de incerteza nem de preocupação em relação ao futuro. O Plano Colômbia foi uma iniciativa bipartidária que, de fato, começou com o Presidente democrata Bill Clinton e que os governos republicanos deram continuidade. Em conseqüência, era de se esperar que, qualquer que fosse o resultado da próxima eleição presidencial, essa cooperação dos Estados Unidos com a Colômbia viesse a continuar sem contratempos, já que foi e continua sendo fundamental fortalecer o Estado colombiano, recuperar a segurança, robustecer o sistema judicial e debilitar os grupos irregulares e os narcotraficantes. O principal tema pendente na agenda bilateral é o Tratado de Livre Comércio (TLC) cuja aprovação foi retardada pelo debate eleitoral presidencial nos Estados Unidos. Os colombianos consideram lamentável que os democratas tenham adiado a aprovação desse tratado com o argumento de que, na Colômbia, continua a haver violações dos direitos humanos, esquecendo-se de que foi graças ao apoio de um governo democrata que nós, colombianos, conseguimos superar uma grave situação de crise humanitária no passado, e não reconhecendo, ainda mais, que a situação atual é muito melhor do que quando se iniciou o Plano Colômbia. Qualquer pessoa poderia afirmar paradoxalmente que, quanto mais melhora a situação na Colômbia, pior é o tratamento dos democratas em relação ao país, ou que, quando a situação da Colômbia era muito ruim, a relação com os democratas era muito melhor.

Porém, na realidade, certamente não existe uma atitude hostil dos democratas em relação à Colômbia, e sim trata-se apenas de uma tática eleitoral num momento em que esse partido procura atacar por todos os lados

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o presidente Bush, cujo governo a Colômbia foi aliada incondicional. Os democratas procuram somente atacar conjunturalmente os aliados de Bush, entre os quais está o governo da Colômbia. Por conseguinte, é de se esperar que a situação volte à normalidade depois de superada a conjuntura eleitoral e iniciado o novo governo nos Estados Unidos, caso a nova administração seja democrata, e que continuem as boas relações de cooperação caso seja republicana. Em ambos os cenários estaria garantida a aprovação do TLC, acordo comercial do qual a economia colombiana necessita urgentemente a fim de continuar crescendo e incorporando-se, com êxito, nas correntes da globalização.

Desafios futuros e reeleição presidencialNo futuro, o grande desafio para a segurança da Colômbia será consolidar

os progressos obtidos até o momento, garantir e aprofundar o controle social e institucional do território e manter a tendência positiva de redução de todo tipo de delinqüência. Tudo o que precede está relacionado à necessidade de culminar com sucesso a reinserção dos grupos guerrilheiros, desarticular as novas quadrilhas a serviço do narcotráfico, conseguir acordos de paz com as guerrilhas e, obviamente, reduzir o narcotráfico.

Por outro lado, a Colômbia tem diante de si o desafio de garantir condições favoráveis para continuar atraindo o investimento estrangeiro e o crescimento do investimento interno, como condição indispensável para manter elevado ritmo de crescimento econômico que permita prosseguir na redução do desemprego, garantir suficientes receitas fiscais, ampliar a cobertura da previdência social e reduzir a pobreza. Por sua vez, crescimento econômico e segurança são condições essenciais para se continuar trabalhando em busca de uma sociedade mais coesa, mais igualitária e mais justa.

O término do atual mandato do Presidente Álvaro Uribe ocorrerá no ano de 2010. A conjuntura política colombiana neste momento se caracteriza pelo debate em torno da sucessão presidencial após dois mandatos consecutivos de Uribe. Está em marcha uma iniciativa que busca a realização de um referendo para possibilitar um terceiro mandato do atual presidente, o que gerou muitos temores nos partidos de oposição devido à popularidade muito elevada de Uribe, que se mostra imbatível nas urnas. Com efeito, após seis anos de

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governo, sua aceitação popular se situa ao redor de 80 por cento, a mais alta para qualquer dos mandatários entre as democracias do mundo ocidental.

Os que se opõem a essa reeleição assinalam que a Colômbia poderia correr os riscos de outros países sul-americanos cujos presidentes, após ampliar seus mandatos, revelaram tendências autoritárias, concentraram excessivamente o poder e restringiram o pluralismo democrático. Acredito que a Colômbia não estaria exposta a tais riscos porque, historicamente, tem sido um dos países de maior estabilidade institucional em nível regional. Isso significa que sua democracia está blindada contra perigos autoritários, pois a separação e independência dos poderes públicos funcionam plenamente, existem órgãos independentes de controle, a liberdade de imprensa está garantida e existe uma sociedade civil atuante, que delibera e critica, vigia e controla os poderes públicos. A última palavra, porém, cabe ao Congresso Nacional, às altas Cortes de Justiça e ao povo colombiano, que terão de optar por aprovar, ou não, essa possibilidade de continuidade do atual governo da Colômbia. De qualquer maneira, são muitos os aspirantes, de vários partidos políticos, com capacidade e liderança suficientes para substituir o atual mandatário dos colombianos, pois felizmente, este país conta com uma das classes dirigentes mais preparadas e capazes do entorno regional. Qualquer que venha a ser o substituto, a continuidade dos objetivos parece assegurada: mais segurança, mais crescimento econômico e mais coesão social. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Formação socioeconômica do EquadorMarco P. Naranjo Chiriboga*

E xiste uma dificuldade ainda não esclarecida de forma eficiente pelo pensamento acadêmico equatoriano em relação à periodização da história ou ao processo histórico em geral do país. Os estudos tradicionais têm dado ênfase, na verdade, a extensas descrições que privilegiam os personagens ou determinados fatos isolados – particularmente políticos – e, dessa maneira, tem-se buscado construir a história nacional.

Os estudos realizados por uma nova geração de cientistas sociais, sobretudo a partir dos anos 70 do século passado, têm tratado de modificar esse enfoque a fim de gerar uma nova periodização para a história do Equador1. Esses autores procuraram entender a história conforme os auges bem como as crises dos produtos de exportação, o que implica em abordar a evolução econômica do Equador através de sua vinculação com os mercados internacionais.

* Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Equador. [email protected]

1 Refirimo-nos aos autores como Agustín Cueva, Alejandro Moreano, René Báez, entre outros.

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Formação socioeconômica do Equador

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Outro grupo de autores procura periodicizar a história equatoriana segundo as contradições entre o crescimento das forças produtivas de um lado e as relações de produção de outro, o que significa, em última instância, fazer uma análise do desenvolvimento do modo de produção do referido país.

Igualmente, existem contribuições que buscam entender o desenvolvimento do Equador de um ponto de vista monetário, por meio de trabalhos semelhantes ao realizado por Milton Friedman e Galbraith em relação aos Estados Unidos.

Ora, devemos começar assinalando que é difícil qualificar as relações sociais de produção que ocorreram no Equador durante a época da colônia. Além disso, autores como José Moncada, Oswaldo Hurtado ou Carlos Coloma manifestaram uma série de concepções que não são definitivas.

Não obstante, podemos dizer que o processo de conquista marcou na Real Audiência de Quito (território correspondente ao atual Equador) uma série de elementos feudais que prevalecem sobre outros elementos que poderiam ser considerados capitalistas2. É necessário, porém, indicar que a economia conquistadora, isto é, a Espanha, funcionalizou a economia conquistada, o que provocou certo desenvolvimento comercial, especialmente dos produtos convenientes para o comércio ou o auto-abastecimento da metrópole.

As classes criollas3, vinculadas a esse comércio, foram aquelas que consideraram a Espanha como um estorvo à sua atividade externa e encabeçariam os movimentos independentistas.

Podemos deixar indicado que, em termos gerais, manifestaram-se claramente na colônia relações mercantis e monetárias que expressam vínculos internos entre os colonizadores por um lado e, por outro, entre estes e a metrópole. Sem dúvida, dado que a reprodução da força de trabalho nativa, assim como a reprodução das relações entre o colonizador e a população local não se desenvolve com base em relações mercantis monetárias, a necessidade extra-econômica foi a característica fundamental da exploração da força de trabalho4.

2 Hurtado, Oswaldo. El poder político en el Ecuador. Quito: Universidad Católica. 3ª edição, 1979. p. 31.3 O termo criollo se aplica primordialmente aos descendentes de espanhóis nascidos na colônia (N. do T.).4 Coloma, Carlos. Particularidades del desarrollo económico del Ecuador. Quito: Revista do I. I. E. da PUCE, 1986. p. 3.

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Marco P. Naranjo Chiriboga

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Essas relações pré-capitalistas, paradoxalmente perseverariam inusitada-mente até a década de 70 do século XX, sobretudo na região inter-andina.

Não obstante, na costa as relações salariais apresentaram dinamismo acentuado, apesar de ocorrerem relações do tipo servil, especialmente na produção cacaueira já bem adiantada no século XX, pois existiam colhedores e semeadores com relações extra-econômicas.

De toda forma, a partir de 1820, iniciou-se na região do litoral um período de prosperidade econômica devido ao incremento das exportações de cacau e graças à liberdade de comércio decretada quando ocorreu a independência de Guaiaquil.

A divisão internacional do trabalho havia predestinado o Equador, por suas típicas características, à produção de mercadorias de clima tropical, de frutas sofisticadas, e assim, o país se voltou para o mercado internacional com produtos como o cacau, o café, chapéus de palha toquilla, etc.

Porém, adicionalmente, o que deflagrou a independência na América foram as necessidades de ampliação dos mercados, necessidade objetiva para que se desenvolvesse a crescente indústria britânica e de alguns países europeus, unidas, obviamente, às burguesias comerciais criollas e às classes nativas de proprietários de terras, ansiosas por romper o monopólio comercial espanhol. José Moncada ilustra o processo independentista da seguinte maneira:

“A luta pela independência de nosso país se manteve sempre dentro dos limites proveitosos para os proprietários de terras e a burguesia criolla comercial. Por outro lado, as revoluções industriais da Inglaterra e da França necessitavam do mercado latino-americano para seus produtos. O capitalismo industrial que foi se desenvolvendo durante todo o século XVIII encontrou na dominação espanhola um obstáculo para a penetração de suas manufaturas nas colônias americanas”5.

A independência política em relação à Espanha buscava, sobretudo, a liberdade de comércio e a liberdade para o endividamento e o investimento estrangeiro. Não é portanto estranho que as guerras de independência tenham sido financiadas pelo império britânico, que tinha necessidade de colocar 70% de sua produção bem além de seus mares e colônias.

5 Moncada, José. “De la independencia al auge exportador”. In: Ecuador pasado y presente. Quito: Editorial Universitaria, 1973. p. 116.

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Certamente, o processo independentista corresponde a uma evidente contradição entre as margens estreitas da dependência colonial e o desenvolvimento maior das forças produtivas. O desenlace dessa contradição fez com que amadurecessem as relações de produção vigentes na colônia.

Isso se evidencia claramente quando observamos que, proclamada a República do Equador, a Assembléia Nacional de Riobamba declarou vigentes as leis das Índias, o que significava a perpetuação do sistema feudalizado da Colônia.

As relações feudais de produção tornaram-se, então, dominantes na maior parte do país. Não obstante, é necessário acentuar que, com a independência da região do litoral, começou a gestar-se um processo de acumulação originária do capital, já que o comércio exterior direcionava recursos para o surgimento do capital comercial e financeiro.

Nesse sentido, desde 1830 o Equador passou a ser um dos principais, senão o fundamental, exportador de cacau do mundo. Fundamentalmente, houve em Guaiaquil, uma época de crescente prosperidade econômica graças ao desenvolvimento da agricultura e do comércio de exportação, o que provocaria, conforme já assinalado, um processo inicial de acumulação originária de capital, o mesmo que seria marcado pela constante presença estrangeira, sobretudo inglesa, não somente porque era com esse país que normalmente comerciávamos, mas também em função da dívida da independência.

“A dívida inglesa”

“A dívida do Estado para com a Inglaterra, conseqüência da ajuda recebida no tempo da guerra de libertação, impôs uma marca no desenvolvimento posterior do país”6

A “eterna” dívida inglesa, sempre benéfica para os credores que correram o risco de financiar a causa independentista, obtinha lucros não apenas com os juros exorbitantes e vantagens na colocação dos bônus americanos, mas também, e sobretudo, seus ganhos provinham dos prósperos negócios que representava

6 Carlos Coloma, op. cit., p. 6.

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o tráfico de armas, particularmente nas épocas de conflito. A propósito, a seguinte citação é importante:

“Para os fornecedores (de armas) havia, portanto, as vendas favoráveis; para os financistas havia os enormes descontos nos papéis negociados, o que ocasionava que os créditos reais dos investimentos financeiros fossem potencialmente muito mais lucrativos do que as alternativas de adquirir os títulos internamente, onde estariam submetidos às limitações de juros e descontos constantes das leis contra a usura. E – continua – o episódio da dívida externa do Equador não foi um dos mais felizes da história nacional”7

Com efeito, uma série de erros fez com que a dívida inglesa fosse paga várias vezes. Dentre outros aspectos, temos, assim, as mesmas características por meio das quais a Gran Colombia8 se endividou, e, sobretudo, a forma pela qual foram utilizados os recursos e, finalmente, a repartição da mencionada dívida quando a Gran Colombia se desmembrou. Essa repartição, segundo muitos autores, não correspondia à capacidade econômica dos países, porque foi dividida segundo a população de cada nação nesses anos. A repartição da dívida deveria ter sido a seguinte:

Artigo 2Empréstimo de Herring Graham & Powles de £ 2 milhões, com data de 13 de março de 1822

Nova Granada (atual Colômbia)VenezuelaEquador

1.000.000570.000430.000

Artigo 3Empréstimo de B.A. Goldschmidt de £ 4.750.000 de 15 de maio de 1824, com um saldo de £ 4.625.950

Nova GranadaVenezuelaEquador

2.312.975,001.318.395,15994.579,05

7 Swett, Francisco e outros. La deuda externa del Ecuador. Quito: Banco Central del Ecuador – Corporación Editora Nacional, 1981. p. 12.8 Corresponde ao antigo Vice-Reinado de Nova Granada, do qual faziam parte a Capitania da Venezuela e a Audiência de Quito.

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Artigo 9Dívida consolidada com 3% de juros, de $ 6.998.212,25 (pesos) com um saldo de $ 6.399.987,25 em 31 de dezembro de 1829

Nova GranadaVenezuelaEquador

3.479.993,72 1/21.997.896,371.492.097,25 1/2

Artigo 10Dívida consolidada com 5% de juros, de $ 5.374.905,75 (pesos) com um saldo de $ 5.359.355,75 em 31 de dezembro de 1829

Nova GranadaVenezuelaEquador

2.679.677,8711.527.416,3711.152.216,50

Artigo 23 A título do empréstimo mexicano de 1826, de £ 63.000

Nova GranadaVenezuelaEquador

31.500 17.95513.545

Fonte: Swett, Francisco. La deuda externa del Ecuador.

A esses montantes juntaram-se os saldos da dívida flutuante e a dívida de tesouraria, cujas quantias não puderam ser determinadas com exatidão.

O total da dívida imputada ao Equador a título de contratações externas foi de 1.424.579 libras esterlinas e 5 shillings, segundo o estabelecido pelo convênio Pompo Michelena. Em 13 de abril de 1837, o Congresso Nacional aprovou a dívida, sendo a posição do presidente Rocafuerte favorável à fórmula, por considerar a base populacional como justa para o cálculo.

Francisco Swett considera importante quanto à repartição da dívida da maneira mencionada, o fato de que “o Equador não participou, por motivos de política interna, nas negociações quanto à repartição da dívida, e a fórmula acordada foi prejudicial aos nossos interesses por basear-se na população e não na capacidade econômica dos três países”9.

De toda forma, tenha ou não sido eqüitativa a distribuição da dívida entre os três países, a verdade é que os contínuos refinanciamentos e especialmente a política econômica implantada em torno da dívida inglesa, estiveram marcados

9 Swett, op. cit., p. 12.

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por uma série de acontecimentos que resultaram em conflitos territoriais, porquanto o Equador pretendeu pagar a dívida com parte de seu patrimônio territorial.

É ilustrativo o parágrafo seguinte sobre o problema limítrofe que se originou com a proposta equatoriana para o pagamento aos ingleses, revelado pela resposta do encarregado de negócios do Peru em Quito. O mencionado representante disse à época:

“A cessão de territórios foi a causa provável do rompimento com o Peru. O Equador havia concedido direitos de ocupação aos ingleses e, além disso, havia franqueado a navegação do Amazonas aos ingleses e aos americanos. Acrescentava, ainda, que essas ações eram improcedentes por tratar-se de territórios em disputa e porque, ainda que o Equador tivesse mantido soberania não controvertida sobre esses territórios, os Estados de Nova Granada e Peru deveriam ter sido informados desses arranjos”.10

Todas essas tentativas realizadas pelos governos equatorianos para pagar a dívida inglesa, ou pelo menos colocar em dia os juros, tinham como objetivo principal apresentar uma imagem de prestígio do país diante da comunidade européia, com a finalidade de que esse cumprimento atraísse novos empréstimos e novos investimentos; inclusive, procurava-se impulsionar as migrações de populações européias, especialmente inglesas, com a intenção de que a Grã-Bretanha incrementasse seus interesses no Equador.

O acordo de pagamento da dívida inglesa com os territórios da Amazônia equatoriana foi suspenso pelas ações bélicas do Peru, que fizeram com que a Junta de Detentores dos Bônus suspendesse as negociações até que houvesse solução do impasse territorial.

Finalmente, a marinha peruana bloqueou a costa equatoriana, sobretudo o porto de Guaiaquil. Em conseqüência dessas ações, foi firmado o Tratado de Mapasingue, entre o general Franco, ditador de Guaiaquil, e o presidente Castilla, do Peru. Esse instrumento, em seu artigo 5º, reconhecia que, devido ao estipulado na Cédula de 15 de julho de 1802, que atribuía ao Peru os territórios de Quijos e Canelos, declarava-se nula a cessão de territórios que tivesse sido feita em favor dos credores britânicos.

10 Kornat, Gerhard Dekonja. “Ecuador: ensayo bibliográfico.” In: Ecuador Hoy. Bogotá: Siglo XXI, 1978. p. 303.

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O Equador pagou a dívida inglesa da Independência após 144 anos de havê-la subscrito, em 24 de maio de 1974. A dívida com a Inglaterra para a Independência, que por outro lado não teve utilidade econômica por ter sido utilizada integralmente para a guerra, foi o primeiro investimento estrangeiro que o país receberia, segundo os dados que nos foi possível recolher, sendo, inclusive, a única fonte que chegou ao Equador na maior parte do século passado.

Outros investimentos iniciaisNos primeiros anos da República, os processos de concentração e

centralização do capital ainda estavam incipientemente desenvolvidos na Europa. Por isso, a quase totalidade dos países latino-americanos, nos primeiros anos da independência, não recebeu fluxos importantes de investimentos estrangeiros e os poucos que ocorreram se dirigiram à busca e exploração das minas de ouro e prata que existiam nas antigas colônias espanholas.

O Equador também esteve envolvido nesse processo de exploração mineira durante os últimos 25 anos do século XIX. As características desses investimentos estrangeiros eram os seguintes:

“As únicas minas que estavam em exploração eram as da English Zaruma Gold Mining Company, que se formou em Londres em 1880 com capital de 250 mil libras esterlinas para a exploração das minas de Sesmo, Portovelo, Jarupe, Bomba de Vizcaya, Bomba de Pacchabamba, Toscán, Blanco e Caripamba. Sendo que todas elas eram consideradas fabulosamente ricas, pois se dizia que antigamente haviam produzido grandes quantidades de ouro. A concessão foi outorgada à companhia britânica S. Parson & Son, por meio da qual se reconheciam os direitos às minas que existiam em grande parte do território da República. Segundo as cláusulas de tal contrato de concessão, a companhia tinha livre acesso a todo o território equatoriano e gozava do direito de expropriar, nas condições determinadas pelo engenheiro escolhido pelo governo, por um lado, e os concessionários, por outro, quaisquer terras, fazendas ou propriedades particulares em qualquer parte da República. Além disso, teria o direito de tomar a seu cargo e explorar outros poços de petróleo, terras e minas que pudessem ser de propriedade do governo”.11

11 Albornoz, Oswaldo. Del crimen del Ejido a la Revolución de Julio. p. 47-48.

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Os investimentos em mineração no país têm as características de verdadeiros enclaves, pois seu grau de autonomia territorial fazia com que praticamente formassem unidades econômicas que estavam isoladas da economia nacional.

Ademais, voltando ao assinalado anteriormente, entre as razões que também podem ser estabelecidas para que tenha ocorrido uma restrição aos investimentos na América Latina nos primeiros anos de independência, está o pânico e a quebra dos valores dos produtos latino-americanos nas bolsas européias, sobretudo na Bolsa de Londres. A especulação produzida com os bônus da Independência e a falta de pagamento dos países devedores fizeram com que os investidores considerassem inconveniente “arriscar capitais” na América Latina.

Não obstante, em meados do século, incrementaram-se os investimentos estrangeiros na maior parte dos países latino-americanos, especialmente os que produziam alimentos e matérias primas que podiam contribuir para o desenvolvimento da indústria européia. O Equador, por não possuir uma produção exportável que substituísse a não produção em função das terras improdutivas na Europa, praticamente não recebeu novos capitais durante o século XIX.

No geral, o principal produto de exportação foi o cacau durante mais de cem anos. Uma série estatística compilada pelo departamento de História Econômica do Banco Central mostra que o cacau era o produto que percentualmente representava a maior parte das exportações equatorianas, não apenas durante o século XIX, mas também, inclusive, nos primeiros cinqüenta anos do século XX, com exceção de 1930-33 e também 1944-47 e 50. Isto é, em aproximadamente 150 anos somente em nove deles o cacau não foi percentualmente mais importante do que outras mercadorias de exportação, as mesmas que correspondiam a produtos de agricultura tropical e petróleo, que também era produzido na costa, porém em mãos do capital transnacional12.

Os investimentos estrangeiros na América Latina correspondiam, em geral, a investimentos de carteira na maior parte do século passado. Um relatório da Cepal corrobora o afirmado anteriormente:

12 Rodríguez, Manuel. Series de exportación e importaciones del Ecuador desde 1852 a 1950. Banco Central del Ecuador. Inédito.

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“Os países da zona temperada, exportadores de produtos agrícolas (Argentina, Uruguai e em menor grau o Paraguai) substituíram os países mineiros conforme meta estabelecida pelo capital britânico, enquanto os países exportadores de produtos tropicais continuaram ocupando uma posição secundária. São muito conhecidas as causas da progressiva concentração dos investimentos britânicos nos países agrícolas da zona temperada. Desde 1880, a entrada de capitais britânicos permitiu a aplicação em grande escala de algumas inovações técnicas (cercas de arame farpado, congelamento de carne, etc.), podendo os países do Rio da Prata aumentar suas vendas de carne e cereais ao Reino Unido. A expansão das exportações e, em conseqüência, o aumento da entrada de divisas, motivou os capitais britânicos a incrementar os investimentos nesses países.”13

Enquanto os governantes equatorianos preocupavam-se em equacionar os problemas da dívida externa, a fim de que o país obtivesse prestígio de solvência em nível internacional e, dessa maneira, obtivesse novos empréstimos e investimentos estrangeiros, os motores do capital estrangeiro na América Latina eram outros.

É exemplar, a respeito, que o presidente Antonio Flores buscasse melhorar as relações do Equador com os países estrangeiros por meio da renegociação da dívida inglesa, para conseguir o ingresso de capitais de que o país precisava para a construção da ferrovia.

A acumulação originária Deve-se advertir, por outro lado, que o processo de acumulação

originária pelo qual passou o Equador no século XIX, tem características lentas e dependentes do comércio exterior. O Equador daquele século era um país sem infra-estrutura e, sobretudo, desintegrado. Na região dos Andes, ocorria um apogeu das relações feudais de produção, enquanto que na costa, houve um desenvolvimento do capitalismo em função das exportações geradas nessa região.

Ora, qualquer desenvolvimento das forças produtivas que o país pudesse ter, provinha dos centros metropolitanos e, particularmente no século XIX,

13 Cepal. El financiamiento externo de América Latina. Nueva York: Publicaciones de las Naciones Unidas, 1964. p. 3.

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da Inglaterra que, segundo o relatório estatístico citado anteriormente, era o principal sócio comercial do país na época. Com a independência e até mesmo muito antes (sobretudo por meio do contrabando), a Inglaterra se converteu não apenas no principal provedor no território do Equador, mas também de toda a América Latina. Uma caracterização a respeito nos informa o seguinte:

“No século XIX e nos primeiros anos do século XX anteriores à guerra de 1914, diz Puig Arosemena, muitos de nossos países tinham na Grã-Bretanha seu mais importante cliente. Uma vez politicamente independentes da Espanha, passamos quase de imediato a ser colônias da Grã-Bretanha, que nos impunha os seus métodos e modalidades de comércio que devíamos adotar. Uma das principais modalidades era enviar nossos produtos sem conhecer (de antemão) o preço que nos seria pago. Isto é, enviávamos em consignação e ocorria que, no caso do café equatoriano, por exemplo, cujo preço o fazendeiro nada mais percebia do que um penny por libra, na Inglaterra era vendido no varejo a um preço trinta vezes mais elevado. E, levando-se em conta que isso representava o ganho obtido pelo dono do feudo da fazenda, pode-se imaginar o que recebia o pobre peão. Infame exploração que nos obriga a vender nossos produtos a preços irrisórios em prejuízo dos trabalhadores. Infame exploração que também se estende aos embarques de cacau e outros produtos cuja vigência passa do primeiro quarto do século XX.”14

Nessas condições de intercâmbio, o processo de desenvolvimento de um país como o Equador, além de estar truncado pelas relações internas, via-se frustrado em função das trocas que tendiam a desfavorecê-lo de forma constante.

Surgiu assim no Equador, um processo traumático de desenvolvimento, substancialmente dependente de fatores externos, que tinha como agravante, uma estrutura feudalizada e feudalizante, correspondente a um país desintegrado, onde existiam diferenças notáveis entre uma e outra região, com um mercado que somente se desenvolveu em direção ao interior. Isto influenciou os mais ilustres representantes de Guaiaquil, por volta dos anos 20 desse século, a afirmarem que seria necessária uma emissão maior de espécies monetárias, já que havia, na época, mais de um milhão de índios nos páramos andinos que não participavam do consumo.

14 José Moncada, op. cit., p. 124.

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Como parte do processo de acumulação originária do capital que o país atravessou, temos o surgimento do capital bancário, sobretudo na região litorânea, devido especialmente à ampliação do comércio de exportação e importação.

O desenvolvimento do capital comercial, o mesmo que estava relacionado ao comércio exterior e aos investimentos estrangeiros, provocou a fundação do Banco Anglo-equatoriano em 1886; igualmente, foi assinado com a Inglaterra um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação. Finalmente, adotou-se a conversibilidade da moeda nacional em ouro, o que implicava uma maior integração do país ao sistema capitalista internacional liderado pela Inglaterra.

Nos últimos anos do século XIX, ocorreu certa afluência de capitais estrangeiros ao país, sobretudo em direção ao petróleo, e assim, a partir de 1896, o governo liberal nomeou um ministro plenipotenciário em Washington com a tarefa específica de incentivar a vinda de empresários que se interessassem pela construção da ferrovia. Foram precisamente os capitais norte-americanos e britânicos os que tomaram a seu cargo construir as linhas férreas, a instalação de linhas telefônicas e telegráficas, a exploração de minas em Portovelo e a exploração de petróleo em Santa Elena.

Certamente, os investimentos estrangeiros na América Latina tiveram uma evolução setorial no século XIX e durante todo o decurso do século XX. Em fins do século XIX, os investimentos britânicos e norte-americanos começaram a dirigir-se às ferrovias e ao estabelecimento de serviços públicos. Em geral, a construção de linhas ferroviárias tinha o objetivo de transportar a produção exportável do interior em direção aos portos de embarque, porque dessa maneira os países latino-americanos podiam obter as divisas necessárias para cobrir as dívidas contraídas em função da construção da ferrovia e o pagamento dos lucros dos investimentos estrangeiros.

A esse respeito, o citado estudo da Cepal assinala o seguinte:

“As ferrovias e as empresas de serviço público receberam indubitavelmente a maior parte do capital investido entre 1874 e 1914 nas atividades privadas ocorridas na América Latina, porquanto lhes corresponderam respectivamente a 30,9% e 12% do total, isto é, 42,9% para os setores de forma conjunta.”15

15 Cepal, op. cit., p. 17.

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O mesmo estudo, com o objetivo de explicar os motivos dessa atitude do capital estrangeiro, indica o seguinte:

“Segundo a opinião geral, os investimentos de maior êxito para os empréstimos de capital estrangeiro foram as instalações de infra-estrutura, pois elas não apenas expandiram as exportações graças à redução dos custos do transporte, e de outras categorias, mas também permitiram uma ampliação do mercado interno e o crescimento das indústrias locais.”16

No Equador, os serviços de energia elétrica e telefonia estavam em mãos estrangeiras, da mesma forma que a exploração petrolífera e mineira.

Em fins do século XIX, o desenvolvimento posterior das forças produtivas que ocorreu sobretudo na região do litoral, começou a manifestar-se em franca contradição com as relações de produção que eram mantidas de maneira extrema na serra. As fazendas litorâneas produtoras das mercadorias destinadas à exportação eram caracterizadas por relações mercantis monetárias, apesar da existência de algumas mais atrasadas nas quais ainda havia manifestações pré-capitalistas, devido à própria estrutura psico-econômica do país.

Na cidade de Guaiaquil, havia ocorrido um importante processo de urbanização e, inclusive, estabeleceram-se as primeiras fábricas que atendiam à demanda de importantes setores da população que não tinham capacidade econômica para comprar produtos importados. A crescente atividade, característica de um porto que comerciava “livremente”, fez com que a própria funcionalidade das atividades agroexportadoras provocasse a maturação do sistema monetário e creditício e se estabelecessem os primeiros bancos a partir de 1860, vinculados, como não podia ser de outra maneira, ao comércio exterior, atividade fundamental de Guaiaquil e em geral da região litorânea.

“Ao projetar-se no mercado internacional, a produção de cacau vinha gerando uma massa de riqueza que se acumulava nas mãos de uma burguesia localizada especialmente no porto de Guaiaquil, na qual, inclusive, havia criado seu próprio sistema bancário: o Banco Comercial e Agrícola, ligado ao comércio de exportação, e o Banco do Equador, ligado ao comércio de importação.”17

16 Ibidem.17 Moreano, Alejandro. “Capitalismo y lucha de clases en la primera mitad del siglo XX.” In: Ecuador pasado y presente. Quito: Editorial Universitaria, 1975. p. 142.

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Em fins do século XIX, surgiu a necessidade de se desenvolver as relações capitalistas de produção em nível nacional. O desenvolvimento dessas relações, que havia sido lento na Costa, encontrava uma séria limitação quanto à existência de relações pré-capitalistas ou feudais na Serra.

A necessidade constante e crescente de uma massa de riqueza monetária proveniente dos negócios envolvendo as exportações, o tratamento aos trabalhadores livres e meios de produção igualmente livres – e para que sejam livres é preciso que recebam oferta e proporcionem procura, o que supõe a existência de um mercado – e a necessidade de ampliação da divisão social do trabalho, tais fatores somados provocaram o advento da revolução liberal.

A burguesia procurava estabelecer-se como classe dirigente (e assim efetivamente ocorreu) que levasse adiante o processo de acumulação originária de capital. Mas por ser uma burguesia que iria fazer sua revolução um século depois do triunfo das revoluções burguesas na Europa, apressou-se a entregar a economia do país à divisão internacional do trabalho.

A revolução liberal equatoriana não apenas respondia às necessidades internas de criação de relações capitalistas de produção, mas também às necessidades externas provocadas pelo novo desenvolvimento das forças produtivas em nível mundial.

Adicionalmente, a revolução “burguesa” equatoriana veio a ocorrer quando os processos de concentração e centralização do capital já haviam avançado notavelmente nos países desenvolvidos e, portanto, o capitalismo equatoriano tem características diferentes das “clássicas”, presentes no desenvolvimento do capitalismo europeu.

É por esses motivos que a interpretação teórica do desenvolvimento do capitalismo no Equador não deve ser adaptada a interpretações dadas para formações socioeconômicas que estão muito longe de ter as características de nosso desenvolvimento específico. Exemplo claro do que acabamos de observar é o debate em torno das vias de desenvolvimento capitalista no agro-nacional. Não se chegou ainda a um consenso, e mais do que isso, cada pesquisa feita sobre o tema acrescenta novas características, o que faz com que esse processo ainda não esteja definido de forma rigorosa.

De toda forma, é necessário esclarecer que a revolução liberal assegurou o domínio da burguesia, acelerou o processo de acumulação originária do

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capital e com maior força adequou a economia do país à divisão internacional do trabalho.

Essa nova formação socioeconômica provocada pela revolução liberal, que criava novas relações de produção exigidas pelo capitalismo desenvolvido – pois necessitava-se da integração de mercados nacionais para sua produção industrial e sobretudo uma estrutura estatal centralizada que servisse de garantia para os investimentos estrangeiros diretos ou indiretos – passou a ser chamada “manufatura”, a mesma que se encontrava imersa no processo que prolongou a duração do caso equatoriano aproximadamente até 1950.

Esse processo foi caracterizado, de forma resumida, da seguinte maneira:

1. O aprofundamento da divisão social do trabalho, e sobre essa base a ampliação do mercado (liberalização da mão de obra);

2. A separação entre a manufatura e o campo aumentou;3. Como resultado dos processos assinalados, desde o início do século até

1950 a população urbana cresceu mais rapidamente;4. Devido ao fato anterior, surgiu a necessidade de desenvolvimento da

construção, do transporte e das comunicações;5. Com a criação do Banco Central em 1927, a política fiscal e tributária foi

modernizada, o que permitiu a regulamentação das relações de crédito e a circulação monetária de forma mais generalizada;

6. O capitalismo bancário, apesar de seu enraizamento, foi limitado pelo desenvolvimento do sistema creditício, e

7. Incrementaram-se os principais agregados macroeconômicos.18

Havíamos mencionado que os investimentos estrangeiros na América Latina se destinavam às ferrovias, pois agilizavam o transporte da produção de exportação do interior em direção ao porto. No caso equatoriano, a ferrovia chegou muito depois do que na maioria dos países latino-americanos, justamente devido ao fato de que o interior do Equador produzia mercadorias para o consumo nacional, e não produtos de exportação.

As ferrovias foram construídas com recursos externos e não correspondiam às expectativas de geração de divisas, e sim à nova estratégia de integração do

18 Carlos Coloma, op. cit., p. 9.

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país com o objetivo de expandir o mercado nacional. É por isso que, somente nos primeiros anos do século XX, ela uniu as duas principais cidades, enquanto que na maioria dos países latino-americanos algumas ferrovias já funcionavam em décadas anteriores à da construção ocorrida no Equador.

Durante esse período houve um lento, embora persistente, fluxo de investimentos estrangeiros que seriam marcados pelas contínuas crises ocorridas nos países centrais. Essas crises afetaram constantemente o desenvolvimento do capitalismo equatoriano, o qual, com a característica fundamentalmente dependente, passaria por auges e declínios, em função principalmente da trajetória de seus produtos de exportação.

Por outro lado, os investimentos estrangeiros na maior parte dos países latino-americanos até 1915, provinham principalmente da Inglaterra. O mesmo ocorria com o comércio da região, tanto no que tange às exportações quanto importações, cujo destino e procedência eram na maioria ingleses. A partir da Primeira Guerra Mundial, porém, o centro do capitalismo se deslocaria para os Estados Unidos.

Isso é especialmente claro no caso equatoriano. Segundo o relatório estatístico já mencionado anteriormente, observa-se claramente que a partir de 1915 e até os dias atuais, as exportações equatorianas passaram a destinar-se em maior percentagem aos Estados Unidos.

“Ocorreram, inclusive, casos em que empresas norte-americanas compraram companhias inglesas instaladas na América Latina desde o século passado. No Equador, por exemplo, a South American Development Company adquiriria os direitos que a firma britânica English Zaruma Gold Company possuía em Zaruma.”19

Existem autores que assinalam que a definitiva integração da economia equatoriana ao modo capitalista internacional de produção ocorreu, na verdade, sob a hegemonia dos Estados Unidos. Certamente, a influência norte-americana é notável em todo o decorrer do século XX no Equador, o qual passou a depender daquele país até para a promulgação de leis e, sobretudo, para sua condução econômica.

19 Navarro, Guillermo. La concentración de capitales en el Ecuador. Quito: Edicones Solitierra, 1976.

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Por exemplo, para desenvolver sua organização monetária, o Equador contratou uma missão norte-americana chefiada por Edwin Walter Kemmerer, a mesma que elaborou uma reestruturação institucional que foi muito além do fator monetário e tinha por objetivo centralizar a atividade econômica, com a criação do Banco Central, a organização técnica do Estado por meio da criação de instituições como a Controladoria Geral da Nação, a Caixa de Pensões, a Superintendência de Bancos e o Banco Hipotecário. Essa comissão norte-americana não apenas projetou novos mecanismos que finalmente institucionalizavam o sistema, mas também funcionou sob a direção de norte-americanos.

Assim, a Controladoria Geral da Nação foi administrada por Mr. Edwards, a Superintendência de Bancos por Mr. Tompkins, a Direção do Banco Central por Mr. Schwultz. Sem capacidade de integração ao capitalismo mundial por seus próprios meios, o país teve de recorrer aos emissários dos países desenvolvidos, na qual possuíam “a sabedoria técnica do império.”20

Essa mudança do eixo de dominação, da Inglaterra para os Estados Unidos, foi ainda mais facilitada pelas novas condições geográficas em que se viram os países da América Latina, especialmente os da costa oeste, devido à abertura do canal do Panamá, que agilizou o comércio e os investimentos norte-americanos para esta parte do continente. É preciso levar em conta que, antes da construção do canal do Panamá, o Equador era o lugar mais distante da Europa e da costa leste dos Estados Unidos, em toda a América do Sul; por isso, é importante notar as condições geográficas do país após a construção do canal.

Durante esse período, houve uma presença importante do capital estrangeiro, que havia crescido a um ritmo desconhecido em anos anteriores. Conforme já assinalado, os recursos financeiros britânicos e norte-americanos foram os que viabilizaram a construção de ferrovias, instalação de linhas telefônicas e telegráficas, exploração das minas de Portovelo e de petróleo em Santa Elena.

“Assim, a Guayaquil and Quito Railway construiu a ferrovia (1897), a South American Development Company explorava as minas de ouro em Portovelo (1899) e a Ancon Oilfields as jazidas de petróleo (1911).”21

20 Alejandro Moreno, op. cit., p. 171.21 Oswaldo Hurtado, op. cit., p. 87.

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Formação socioeconômica do Equador

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Nos anos 20 do século XX, a burguesia já havia consolidado sua hegemonia e pode-se dizer que essa classe se convertera em dirigente. A burguesia trouxera para o país seu sistema de circulação e acumulação e gerado os mecanismos para a progressiva transformação da força de trabalho em mercadorias. Não obstante, por não apresentar um projeto nacional e por estar umbilicalmente ligada às burguesias dos países centrais, teve destino parecido ao de suas similares do continente.

De classe revolucionária e transformadora, a burguesia, em muito pouco tempo, converteu-se em reacionária e conservadora. Um pouco antes, porém, essencialmente a partir da década de 1920, nosso principal produto de exportação, o cacau, começou a passar por uma crise de demanda, pois os principais países importadores proibiram a compra de cacau, utilizando-se, para tanto, de vários mecanismos. A tal fato, acrescentam-se, adicionalmente, as enfermidades que atacaram as árvores.

Esses fatores determinaram uma queda contundente nas divisas provenientes das exportações; A economia equatoriana, que dependia das receitas do comércio exterior para o desenvolvimento de qualquer programa, entrou em crise.

As classes dominantes, diante do impacto da queda das exportações, não reagiram da mesma forma que, em certa medida, havia reagido à crise as classes dominantes de alguns países latino-americanos nos anos 30. Nesse último caso, a solução encontrada foi a criação de um mercado interno que respondesse à insuficiência de crescimento do setor externo e aliviasse, de certo modo, o declínio das exportações, fomentando a indústria nacional por meio do desvio dos recursos para a produção interna.

A burguesia equatoriana descarregou o peso da crise nas classes populares e no incipiente proletariado nacional, por meio de mecanismos como a desvalorização e depreciação monetária e a redução do salário real.

Apesar da queda na produção voltada para exportação, base econômica do desenvolvimento do capitalismo equatoriano, os mecanismos de liberação da força de trabalho criada pela revolução liberal ainda continuaram a prevalecer. A impossibilidade de que a produção cacaueira absorvesse as grandes massas do contingente populacional, fizeram com que estas, em busca de trabalho, emigrassem para cidades como Guaiaquil, onde surgiram

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os cinturões de miséria que abrigavam os imigrantes e os desempregados das plantações de cacau.

Em 1922, a situação econômica dos trabalhadores do porto de Guaiaquil atingiu níveis alarmantes, além do grande número de pessoas desempregadas. A desesperança, somada à situação de miséria das classes populares, vítimas da inflação, da desvalorização, dos salários reais cada vez mais baixos e do desemprego, confluíram para uma greve geral em 15 de novembro desse ano, que foi reprimida no mais puro estilo dos países capitalistas dependentes, por meio do genocídio. A seguinte citação é ilustrativa a respeito:

“A burguesia, recém-chegada ao cenário histórico, cem anos após o triunfo das burguesias européias, esbarrou não apenas na ascensão do movimento operário internacional, e sua vitória espetacular na Revolução Russa, mas também com o início do assédio aos núcleos centrais do capitalismo internacional. Ascendia ao poder quando a burguesia mundial já deixava de ser uma força histórica criadora. Jovem e ao mesmo tempo velha não podiam criar uma ideologia que expressasse uma alternativa histórica.”22

Ao ocorrer o colapso das bolsas nos países centrais nos anos 30 e, posteriormente, a guerra mundial, fenômenos que atenuaram os laços de dependência, a resposta das classes dominantes equatorianas não se expressou de forma semelhante às de outros países sul-americanos, que começaram a crescer para dentro por meio de uma ação deliberada do Estado; ao contrário, fizeram com que a crise recaísse ainda mais fortemente sobre os trabalhadores e as classes populares, sem impulsionar nenhum projeto que pudesse dar resposta nacional à crise.

“Ao contrário, a partir dos anos 20, dinamizaram-se as exportações de petróleo, que se tornaram principais e de maior percentagem em relação a outros produtos nacionais nos anos de 1930, 1931 e 1932.”23

Isso corresponde à acentuação da penetração do capital estrangeiro, sobretudo o investimento direto, a partir de 1921, no setor de mineração e do petróleo. A exploração petrolífera adquiriu importância principalmente a partir

22 Alejandro Moreano. Op. cit., p. 167.23 Manuel Rodríguez. Op. cit.

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Formação socioeconômica do Equador

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de 1923, quando foram descobertas as jazidas de Ancón, as quais chegaram a produzir 468 mil metros cúbicos em 1944.

Três companhias inglesas e uma norte-americana participaram da exploração dos depósitos de petróleo da península de Santa Elena, mas duas dentre as primeiras (inglesas) controlavam 94% da produção, sendo a Anglo Ecuatoriana Oilfield Ltda., a principal, com operações iniciadas em condições parecidas às de um enclave, pois essa empresa não pagava nenhum imposto.

Em 1937, foi outorgada uma concessão petrolífera à Dutch Shell Co., na parte oriental. Essa empresa “abandonou” a exploração, afirmando que na região não existia petróleo, declaração que seria amplamente desmentida 30 anos mais tarde. Já a empresa norte-americana South American Development Co., continuou a exploração das minas de ouro de Portovelo, em condições coloniais.

Esse período, marcado por grandes perdas nos negócios de exportação, pode ser considerada uma fase em que a acumulação originária de capital cresceu de forma paulatina e lenta.

Ademais, as modalidades de investimento estrangeiro mudaram no que se refere à própria constituição de seu capital. Até pouco antes da Primeira Guerra Mundial, os investimentos dos países capitalistas desenvolvidos eram financiados com recursos obtidos nas bolsas de valores, enquanto que os investimentos realizados a partir do pós-guerra foram financiados com recursos próprios ou por intermédio de sucursais ou filiais abertas na região.

Conforme visto nos parágrafos anteriores, a crise das exportações de cacau acarretou um notável estancamento à economia do país, o que deu origem a uma profunda depressão econômica manifestada através de um processo lento de reprodução ampliada, que em certos momentos se deteve e retrocedeu.

A fim de prosseguir com seu processo de acumulação de capital, o Equador teve de esperar o aparecimento da banana como novo produto-estrela de seu comércio exterior a partir de 1950, isto é, vinte anos após o fim da produção cacaueira. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Guiana: história e desenvolvimento econômicoTota C. Mangar *

Introdução

A Guiana1 “Terra de muitas águas” ou “Terra de muitos rios” está localizada na costa nordeste da América do Sul entre os paralelos 1’’ e 9” de latitude norte e entre os meridianos 56” e 61½” de longitude oeste. Seus limites são: ao norte o Oceano Atlântico, ao sul o Brasil, a oeste a Venezuela e a leste o Suriname.

Datas históricas são sempre de difícil determinação e motivo de controvérsia e o início da história da Guiana não é uma exceção. Os registros históricos mais antigos da Guiana, e mais precisamente das

1 O nome “Guiana” surgiu em 1966 após a obtenção da independência política da Grã-Bretanha. Antes (de 1831 a 1966), seu nome era Guiana Inglesa, e nos primeiros tempos os nomes eram os das colônias holandesas de Esequibo, Demerara e Berbice.

* Universidade da Guiana. [email protected]

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“Guianas”2 como um todo, referem-se à década da descoberta, ou melhor da “redescoberta” do Novo Mundo, quando Cristóvão Colombo avistou e cruzou a costa da Guiana durante sua terceira viagem Atlântica em 1498.

Por volta de 1570, outros europeus, que não os espanhóis, começaram a demonstrar um interesse crescente em explorar aquele local como parte de seu desafio direto ao monopólio de conquista espanhol do Novo Mundo. Para aumentar ainda mais este ímpeto, havia o estímulo em relação ao lendário El Dorado, um território de “imensas riquezas em ouro, prata e esmeraldas”3 que ficava situada em uma localidade ao longo do Orinoco ou do Amazonas, ou nos planaltos das Guianas.

No que se refere à história da Guiana, as evidências existentes mostram que sua colônia mais antiga foi fundada em Pomeroon no final do Século XVI quando ocorreram as expedições de navios holandeses vindos da província de Zeeland. Em 1613, foi fundada a colônia de Kyk-over-al na confluência dos rios Essequibo, Mazaruni e Cuyuni, a primeira a adquirir estabilidade sob o controle do holandês Adrianensen Van Groenwegel. Kik-over-al logo mostrou sinais de progresso, sobretudo, em 1621 com a criação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Rapidamente, os holandeses voltaram sua atenção para Berbice, e Abraham Van Pere foi autorizado a colonizar aquele território.

No início, tais colônias serviam como entrepostos de mercadorias para o escambo que se difundiu entre europeus e nativos. Machados, facas, tecidos, bugigangas e tesouras de fabricação européia eram trocados por algodão, redes, urucum, fumo e outras mercadorias.

Na medida em que as colônias se desenvolviam, os holandeses ampliaram suas atividades no cultivo de fumo, café e algodão para garantir que essas mercadorias estivessem disponíveis em quantidade vantajosa para a comercialização. Em meados do Século XVII, certos incidentes exerceram forte influência sobre o futuro da Guiana. Em primeiro lugar, pelo Tratado

2 “Guianas” é o nome ou termo que se aplica coletivamente a uma área situada entre os rios Amazonas e Orinoco. Ele se referia à “Costa Selvagem” durante o auge da exploração, fundação e colonização européia. Esta área foi subsequentemente dividida politicamente em cinco Guianas, a saber: Guiana Espanhola (hoje Venezuela); Guiana Inglesa (hoje Guiana); Guiana Holandesa (hoje Suriname); Guiana Francesa; e parte da Guiana Portuguesa (hoje Brasil). 3 Hartsinck, J.J. The discovery of Guiana and the description of the various European possessions therfrom. Amsterdam: Berchrying, 1770. Vol. I, p. 126.

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de Munster de 1648, a Espanha reconheceu oficialmente a independência da Holanda. Em seguida, no início de 1650, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais declarou seu propósito de permitir que pessoas não ligadas a ela se estabelecessem como colonizadores. A reconquista do Brasil pelos portugueses teve também um significado bastante importante. Este acontecimento acarretou um influxo de colonizadores holandeses levando para Essequibo o capital e a experiência considerados essenciais. Estas primeiras colônias holandesas na Guiana sofreram em função da rivalidade e da beligerância reinante entre os europeus, principalmente no período de 1665 a 1712. Recuperadas destes ataques por volta de 1730, mais terras ao longo da costa foram utilizadas para o cultivo da cana de açúcar, café e algodão.

A colonização holandesa teve um grande desenvolvimento, graças aos esforços de Laurens Storm Van Gravesande que se tornou Comandante de Essequibo em 17434 dando início a uma política de exploração bem sucedida e fundando Demerara com a ajuda dos colonos ingleses vindos de Barbados e Antigua. Esta importante migração para Demerara fez crescer o domínio incontestado da indústria do açúcar durante várias décadas. De qualquer forma ficou claro que, antes do final do Século XVIII, Demerara já alcançara um progresso que ofuscou as colônias mais antigas.

A Grã-Bretanha conquistou as últimas colônias holandesas em 1803. A cessão formal foi efetivada pelo Tratado de Paris de 30 de maio de 18145 e, em 1831, as três colônias se uniram sob o nome de “Colônia da Guiana Inglesa”.6 A partir de então, os ingleses herdaram o sistema de governo holandês que permaneceu em vigência até o Século XX.

O Século XIX caracterizou-se pelas oscilações no destino da, até então, predominante indústria do açúcar. A Abolição do Comércio de Escravos pela Inglaterra em 1807 e a Emancipação dos Escravos em 1834, trouxeram medo, incerteza e desestímulo à “plantocracia”7. Tal situação tornou-se pior em 1838 com a extinção do sistema de aprendizagem, por ter ocorrido grande êxodo

4 Van Gravesande, Laurens Storm. The rise of British Guiana. Compilação de seus estudos por C. A. Harris e J. A. De Villiers. Londres: Hakluyt Soiety, 1911. I, p. 61.5 Netscher, P.M. History of the colonies of Essequibo, Demerara and Berbice. From the Dutch establishment to the present day. Tradução de W. E. Roth (S’ Gravenhage: Martins Nuhoff, 1888) p. 136.6 Ibid. 143. Também chamada de “Colônia Unida da Guiana Inglesa”.7 Classe dos plantadores de cana-de-açúcar e dos mercadores de escravos que dominavam as colônias inglesas no Caribe. (N. do T.)

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dos ex-escravos das grandes fazendas. Além disso, os movimentos da classe camponesa ganharam força nas aldeias.

A grave carência de mão de obra nas lavouras deu lugar a vários programas de imigração envolvendo povos de diversas nacionalidades como portugueses, africanos livres, barbadianos, chineses e indianos. Estes últimos, entre 1838 e 1917, somavam 239.000 imigrantes que contribuíram, significativamente, para a sobrevivência da indústria açucareira.

Durante este período, observou-se o avanço das técnicas do cultivo da cana e do processamento do açúcar tendo a indústria local mudado da tecnologia do açúcar mascavo para a do açúcar com secagem a vácuo.

Na área da educação, o ano de 1876 foi marcado pela introdução da Lei de Educação Compulsória8 que tornava obrigatória a matrícula dos filhos da classe trabalhadora nas escolas. Ao final do Século XIX, a colônia testemunhou certa diversificação econômica sob a forma da produção de ouro, do cultivo de arroz e da colheita de safras comerciais. Houve, além disso, uma reforma constitucional e o Laudo Arbitral de 18999.

A organização da classe trabalhadora recebeu forte estímulo com a criação do primeiro sindicato – o Sindicato dos Trabalhadores da Guiana Inglesa – iniciativa de Hubert Nathaniel Critchlow, o “Pai do Sindicalismo no Caribe Britânico”.

A efervescência em torno de reformas constitucionais mais amplas elevou o status da Guiana à Colônia da Coroa em 1928, e os sistemas político e jurídico herdados dos holandeses foram substituídos por Conselhos Legislativos e Executivos.

Em 1950, o Dr. Cheddi Jagan uniu-se a Forbes Burnham e outros correligionários para a criação do Partido Progressista do Povo – PPP. Em 1953, foram realizadas eleições de acordo com a nova constituição e o partido subiu ao poder. Mas a vitória teve vida curta. O medo da ameaça comunista e a pressão do governo americano motivaram a Grã-Bretanha a suspender a constituição, enviar tropas e declarar estado de emergência. Com a queda do governo legalmente eleito, foi imposto um governo interino. Em seguida, o

8 Para detalhes, ver Woolford, Hazel. “Compulsory social issues behind the education bill of 1876”. History Gazette, N. 26.9 Sobre disputas de fronteiras com a Venezuela. (N. do T.)

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país passou por um retrocesso com a divisão do partido das massas em duas correntes: a Jaganita e a Burnhamita. Tal ocorrência lastimável teve repercussões sérias, das quais o país até hoje não se recuperou completamente.

Em 1957, o grupo de Burnham recebeu o nome de Congresso Nacional do Povo – CNP. A colônia passou por grave turbulência sócio-política entre 1962 e 1964. Após as eleições gerais ocorridas em 1964 foi formado um governo de coalizão do CNP e das Forças Unidas10, e o Sr. Forbes Burnham levou o país à independência política em 26 de maio de 1966. No dia 23 de fevereiro de 1970, a Guiana foi proclamada República Cooperativa.

Em 1980, o Primeiro Ministro Forbes Burnham tornou-se o primeiro Presidente Executivo da Guiana após a realização de eleições gerais e de uma nova constituição bastante polêmica. No início de 1980, ficou evidente que o país estava caminhando para uma grave crise econômica. Os pilares da economia, representados por: açúcar, arroz e bauxita, passavam por um declínio em sua produção, além disso, os preços dos combustíveis associado a outros itens que eram importados, haviam crescido de forma exagerada. O padrão de vida caiu de forma dramática devido à expressiva redução das reservas em moeda estrangeira, da escassez de matérias-primas e de suprimento de peças de reposição, além de um aumento da dívida interna. A migração para os vizinhos Suriname, Venezuela, Brasil, nações do Caribe e Estados Unidos, aumentou em níveis considerados alarmantes.

Burnham morreu em agosto de 1985 após ter se submetido a uma cirurgia e Hugh Desmond Hoyte o sucedeu na presidência. Em face do agravamento da situação econômica, da deterioração dos serviços essenciais, da expansão da economia paralela, do mercado negro e de uma migração crescente, o governo de Hoyte criou um Programa de Recuperação Econômica dando ênfase à maior participação do setor privado.

No período de 1991-1992 observou-se um grande número de reformas eleitorais que levaram ao ressurgimento do PPP-Cívico e à eleição do Dr. Jagan. Seguiu-se então um vigoroso programa de reconstrução. O Dr. Jagan morreu em 1997 e sua mulher, Janet Jagan, assumiu seu cargo como presidente, mas, renunciou devido a problemas de saúde. Isto levou à presidência da República da Guiana o jovem e dinâmico Bharrat Jagdeo.

10 Partido das Forças Unidas (N. do T.)

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Sob sua liderança, o PPP-Cívico venceu não só as eleições gerais de 2001 como também as de 2006.

A República Cooperativa da Guiana, com uma área de 214.970 km2 e uma população de pouco menos de 800.00011 habitantes, está atualmente dividida em dez (10) regiões administrativas e é membro da Comunidade Britânica das Nações e do Caricom. Além disso, é membro altivo de várias instituições sul-americanas e do hemisfério, enquanto aspira por uma posição de destaque continental no atual momento de sua história.

Desenvolvimento econômico pós-emancipação no século XIX

O período que se seguiu à emancipação no Século XIX foi de crise, várias experiências e mudanças. A principal safra, a de cana de açúcar, sofreu as oscilações resultantes da escassez de mão de obra em conseqüência da Lei de Direitos sobre o Açúcar de 184612, de sérios conflitos vindos dos campos, da competição do açúcar de beterraba europeu e da necessidade de avanços tecnológicos de toda ordem.

Além disso, a libertação de aproximadamente 84.000 escravos e o fim do Sistema de Formação e Aprendizado somado à entrada de milhares de imigrantes da Ásia, África, Europa e mesmo de Barbados, “alteraram ao extremo a composição da Colônia”13 e lançaram as bases para uma transformação na economia.

Durante a primeira década (1838-1848), 44.456 ex-escravos ocuparam 6,25 hectares de terra a um custo de $ 1.038.00014. Isto significou um deslocamento significativo da população das grandes fazendas para as aldeias recém criadas. Em contrapartida, houve grande imigração de lavradores contratados para trabalhar nas fazendas.

11 O Commonwealth local government handbook, estimou uma população de 761.000 habitantes em 2004.12 A Lei de Direitos do Açúcar de 1846 extinguiu tratamento preferencial sobre o açúcar das Índias Ocidentais Britânicas. 13 Granger, David. “The diversification of the economy of British Guiana, 1880-1930.” In: Guyana Historical Journal. Vol. IV & V, 1992. p. 32.14 Young, Allan. The approaches to local self-government in British Guiana. London: Longmans Green and Co. Ltd., 1958. p. 23.

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Sistemas sofisticados de canais de drenagem e irrigação e uma rede de estradas e represas, construção de pontes e barragens, introdução de máquinas a vapor e um sistema mais eficiente de produção, contribuíram para a sobrevivência da indústria açucareira durante o Século XIX. Efetivamente, a indústria de açúcar da Guiana era, naquela época, “a de tecnologia mais avançada das Índias Ocidentais Inglesas”15.

Na segunda metade do Século XIX, ocorreu uma maior diversificação econômica, apesar da predominância do açúcar. Para se ter uma idéia, com a descoberta do ouro nas comunidades ribeirinhas e no interior dos distritos de Cuyuni e Mazaruni em 1870, a mineração ocupou um lugar de destaque desencadeando uma “corrida do ouro” nos anos que se seguiram.

A utilização da madeira de wallaba16 para a produção de telhas e postes intensificou-se, assim como se popularizou o uso de carvão vegetal para cozinha. Entre os anos de 1862 e 186517 houve um aumento gradual e considerável na exploração de madeira, principalmente de bibiru18 e na exportação de 18.000 m3 anuais desta madeira nobre e durável, sendo exportada para países industrializados para uso na construção de atracadouros e docas. A exportação de balata19 iniciou-se em 1859 e, na década de 1880, a indústria manteve um ritmo de exportação anual de 90 toneladas que chegou a 218 toneladas no período de 1896 a 1897.20

A pecuária e o cultivo de safras comerciais ganharam importância assim como a produção de cocos e copra21. Também foram cultivados, com sucesso, arroz, cacau, café, frutas cítricas e legumes. Outra área na qual houve mudanças significativas foi a da construção civil. Algumas das estruturas de madeira mais importantes de Georgetown (a capital do país) foram construídas no final do

15 Shahabuddeen, Mohamed. From plantation to nationalisation. A profile of sugar. Georgetown Guyana National Printers Ltd., 1983. p. 29.16 Eperua falcata, árvore abundante em Demerara. Sua madeira marrom avermelhada é usada na fabricação de telhas e moirões. (N. do T.)17 Mangar, Tota C. A brief history of Guyana forestry commission, 1925-2004. 79 years of service to the national economy. Georgetown, 2004. p. 718 Ocotea rodiaei (família Lauraceae), árvore nativa da Guiana. (N. do T.)19 Mimusops amazonica e M. bidentata, que fornece madeira útil de cor quase roxa, usada na construção civil e naval, e cujo látex é utilizado no preparo da balata. (N. do T.)20 Ibid.21 Amêndoa do coco seca e preparada para se extrair dela o óleo. (N. do T.)

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Século XIX com a “competência profissional de arquitetos, engenheiros e artífices”.22

Houve também uma expansão no comércio e nas vendas, no atacado e no varejo, com aumento na oferta de serviços bancários, de crédito, investimentos, financiamento e seguros. Além disso, teve grande importância a decisão de que se intensificasse a diversificação da economia nas colônias.23

Desenvolvimento antes da independênciaA diversificação da economia perdurou durante as primeiras décadas

do Século XX. Entre o período que vai de 1900 a 1939, o cultivo do arroz, a pecuária leiteira e a extração de madeiras ficaram entre as áreas que mais se desenvolveram.

O interesse pela mineração de bauxita e pela produção de alumínio surgiu no início do século. Foi descoberto minério de alta qualidade nos distritos de Kwakwani, Ituni no rio Berbice e nos distritos de Three Friends, Old England, Dakara e Wismar, no rio Demerara.24 Em 1917, a Demba (Demerara Bauxite Company) iniciou a produção de bauxita em resposta à demanda por alumínio durante e após a Primeira Guerra Mundial.25 Em 1965, as minas de Montgomery, Arrowcane, Maria Elizabeth, Noitgetdacht e Warabaru estavam produzindo 3.000.000 (três milhões) de toneladas de bauxita, cerca de 90% da produção do país.26

Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo lançou a “Campanha de Produção de Mais Alimentos” com o intuito de fazer face ao cenário de racionamentos e elevação do custo de vida. A produção e as exportações de arroz dobraram entre 1939 e 1957.27

22 Granger, “The diversification...”, p. 40.23 West Indian Royal Commission Report, 1898. Ver também, Sugar without slaves. The political economy of British Guiana, 1838-1904. New Haven: Yale University Press, 1972.24 Williams, John. Diversifying the Guianese Economy, 1900-1939. The bauxite industry. p. 14 (Ensaio apresentado no M. A. Seminário em abril de 1974, na U.G.) 25 Ramraj, Robert. Guyana population, environments, economic activities. Greenboro: Battleground Printing and Publishing, 2003. p. 201.26 Ibid., p. 205.27 R.P.A. , Publicação Our rice industry, 1964, p. 2.

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Em 1957, foi implantado o primeiro grande projeto de desenvolvimento agrário em Black Bush Polder, no Alto Corentyne. O projeto abrangeu uma área de 125 quilômetros quadrados com a participação da população no cultivo de arroz e de safras comerciais. Foram implantados, adicionalmente, outros projetos de desenvolvimento agrário, como os de Tapakuma e Mara, além do Projeto de Extensão Boerasirie.

Este foi um período em que a indústria do diamante teve um desenvolvimento expressivo, exportando diamantes brutos e lapidados. A produção média anual na década de 1960 foi de 30.000 a 40.000 quilates. Dentre as várias indústrias que progrediram na era pré-independência estão a de pesca, a da cerveja e bebidas, a dos setores da silvicultura juntamente com o comércio atacadista e varejista, as comunicações e o transporte.

Desenvolvimento econômico pós-independênciaAté 1966, a economia da Guiana seguia basicamente a orientação

capitalista e estava dominada principalmente por estrangeiros. No período pós independência e sob o governo de Forbes Burnham houve “uma mudança radical da economia para um sistema de orientação socialista”28.

Num primeiro momento, em 1970, houve a declaração do status Republicano – a República Co-operativa da Guiana.29 Este ato propiciou a criação de um grande número de instituições nacionais e uma série de iniciativas de nacionalização, com o objetivo de assumir e controlar os principais setores da economia.

A Demba (bauxita) foi nacionalizada em 1971, assim como a Reynolds, também de bauxita, em 1974, a Jessels (açúcar) em 1975, e o conglomerado Bookers em 1976. As escolas de orientação religiosa também ficaram sob o controle direto do governo. A nacionalização da Demba, em 1971, simbolizou a primeira instância de controle público de um setor importante da economia nacional na Comunidade do Caribe, como parte do “programa socialista declarado do governo da Guiana”30.

28 Ferguson, Tyrone. To survive sensibly or to court heroic death: management of Guyana’s political economy, 1965-85. Georgetown: Guyana National Printers Ltd, 1999. p. 206.29 As cooperativas eram consideradas veículos de transformação econômica e social.30 Shahabuddeen, Mohammed. Nationalisation of Guyana’s bauxite. The case of Alcan. Georgetown: Guyana National Printers Ltd. 1981. p. 275.

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Guiana: história e desenvolvimento econômico

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Rapidamente, as nacionalizações e outras questões a elas relacionadas foram acompanhadas por uma série de contratempos, tais como: problemas com manutenção e re-aparelhamento, transporte inadequado, problemas de comercialização, conflitos trabalhistas, assim como perda de qualificação gerencial e especialização. De 1976 em diante, ficou claro que havia uma grave recessão da atividade econômica acompanhada por sérios problemas cambiais.31

O orçamento de 1977 evidenciou a realidade econômica adversa. Foi proposto um corte de 30% nos gastos, elevação de preços, remoção de subsídios em vários itens de consumo e aumentos de impostos indiretos incluindo tarifas, licenças e taxas.32 Todos esses fatores foram acompanhados, dois anos mais tarde, por um congelamento de salários.

Em resposta a esta situação adversa, o governo negociou um empréstimo standby mediante Direitos Especiais de Saque (DES) de US$ 15 milhões com o Fundo Monetário Internacional – FMI – seguido por um empréstimo adicional de curto prazo de US$ 100 milhões e um empréstimo destinados a ajustes estruturais da ordem de US$ 23,5 milhões do Banco Mundial.33

As metas e políticas definidas pelo FMI e pelo Banco Mundial criaram dificuldades econômicas adicionais devido à eliminação do controle de preços, aumento das taxas de juros, redução nas importações, cortes nos gastos sociais, redução de subsídios e desvalorização da moeda da Guiana.34 Tais medidas não foram suficientes para melhorar a economia e, tendo em vista que as metas não foram alcançadas, houve um declínio substancial na produção e na produtividade de setores chaves como arroz, açúcar e bauxita. O resultado foi a redução do volume de exportações e o aumento dos preços das importações, o que ocasionou uma crise no balanço de pagamentos. Segundo Tyrone Ferguson, “os anos de 1979-85 representaram o pior período de deterioração sustentada da economia da era Burnham”.35

Ao mesmo tempo, o governo enfrentava uma pressão crescente do movimento sindical em relação às difíceis condições de emprego e salários dos trabalhadores. Estes assuntos ficaram ainda mais nítidos a partir das

31 Thomas, Clive. Plantations, peasants and State. UWI: ISER, 1984. p. 199.32 Thomas, p. 174.33 Ibid.34 Ibid. O dólar guianense foi desvalorizado em 16 % em 1981 e em 25% em 1984, respectivamente.35 Ferguson, p. 345.

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declarações do então presidente George Daniels ao dizer que “a manutenção deste declínio dos salários reais tem afetado seriamente a moral e está acabando, dia a dia, com a vontade de produzir de nossa força de trabalho”.36 Mais significativa foi a conclusão de Carl Greenidge, ex-ministro das Finanças, de que “o setor produtivo usou em media 40% de sua capacidade efetiva em virtude da falta crônica de divisas e da conseqüente falta de materiais de reposição e insumos”37.

Com o país imerso em uma séria e prolongada crise econômica, o novo governo de Desmond Hoyte iniciou um Programa de Recuperação Econômica (PRE) sob a orientação do FMI e dos Países do Grupo de Apoio. Em 1989, houve também uma maxi-desvalorização do dólar da Guiana.38

Período pós-1990Os acontecimentos de 1990 em diante, inclusive as realizações econômicas

e de outra natureza, associado aos desafios com os quais a Guiana se defronta, estão resumidos a seguir:

•Projeto da Floresta Tropical da Comunidade Britânica – em 1990 foi criado o Centro Internacional de Iwokrama para a Preservação e Desenvolvimento Sustentável da Floresta Tropical correspondente a uma área de 3.600 quilômetros quadrados de floresta virgem. Sua meta é promover a preservação, sustentabilidade e uso eqüitativo das florestas tropicais de forma a obter benefícios ecológicos e econômicos para o povo da Guiana e do mundo em geral;

•Em 1990, foi firmado o Acordo de Venda de Madeira entre a Guiana e a Companhia norte coreana Sunkyong, com o intuito de desenvolver um Projeto de reflorestamento de uma área de aproximadamente 1,62 milhão de hectares de floresta no Distrito Nordeste;

•Em 1991, foi assinado um novo acordo internacional com a Barama Company Limited para a concessão de 1,6 milhão de hectares fora do cinturão de Greenhart para a exploração e fabricação de madeira

36 Conforme citado em Ferguson, p. 366.37 Greenidge, Carl B. Empowering a peasantry in a Caribbean context. The case of land settlement schemes in Guyana, 1865-1985. Kingston: University of the West Indies Press, 2001. p. 151.38 A desvalorização do dólar da Guiana foi de 230% em relação ao dólar norte-americano.

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Guiana: história e desenvolvimento econômico

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compensada, o que representou um investimento de $ 154 milhões por um período de dez anos;

•Em 1993, a Omai Gold Mines iniciou suas operações na Guiana. A produção de ouro aumentou consideravelmente nos anos seguintes;

•Aumento significativo na produção de arroz e açúcar;•Aumento na produção de safras não tradicionais;•Incremento na produção da indústria pesqueira, camarões e lagostas,

voltadas para o mercado de exportação;•Aumento na extração de bauxita;•Elevação na produção de frangos e ovos;•De 1993 em diante, iniciou-se uma agressiva política habitacional.

Foram emitidos mais de 70.000 títulos de propriedade, em conjunto à adoção de uma política de acesso facilitado a empréstimos e crédito imobiliário;

•Regularização de áreas griladas;•Desenvolvimento de infra-estrutura incluindo estradas, pontes e

quebra-mares;•Maior alocação orçamentária para os setores social e de serviços.

Construção de novas escolas e hospitais;•Aumento de verbas para educação;•Fundação dos Campus Universitários de Tain e Berbice (2000);•Término da sede de Caricom (2005);•Finalização do Centro de Convenções (2006);•Conclusão do Estádio Nacional de Cricket em Providence e sede da

Copa do Mundo dos Super Jogos de Cricket (2007);•Projeto de modernização de Skeldon (Açúcar). Investimento de $ 128

milhões. (em andamento);•Ponte sobre o Rio Berbice (em andamento);•Inauguração do Buddy’s International Hotel e de vários hotéis de

médio porte além de complexos para ecoturismo;•Redução da dívida externa. De um total de US$ 2,3 bilhões para menos

de US$ 700 milhões devido a refinanciamentos e perdão de parte da dívida;

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•Decisão do Tribunal Arbitral Internacional sobre a disputa de fronteira entre a Guiana e o Suriname e a expulsão da CGX (exploradora de petróleo). A CGX irá retomar, em breve, a exploração de petróleo, e

•Construção da Ponte Takatu.

Desafios atuais•Harmonia racial e unidade nacional;•Estabilidade sócio-política;•Necessidade de intensificar campanhas para o aumento da produção

e da produtividade;•Necessidade de apoio total à “Campanha de Produção de Mais

Alimentos”;•Redução da inflação;•Erradicação da corrupção;•Eliminação do narcotráfico;•Necessidade de deter o nível de migração e a conseqüente “fuga de

talentos”;•Erradicação da pobreza, do HIV/AIDS, da malária e outros males

sociais;•Incumbência de lidar com os deportados e promover sua reabilitação

na sociedade;•Impacto da globalização e da liberalização dos mercados;•Impacto da remoção de preferências, como por exemplo, em relação

à quota do açúcar à União Européia e à EPA;•Solução e prevenção de crimes hediondos na sociedade;•Aumento da taxa de crescimento anual;•Interrupção na queda do dólar guianense;•Política de investimentos mais agressiva, e•Expansão da indústria do turismo, principalmente do ecoturismo,

e manutenção de locais que retratam o patrimônio cultural para os visitantes. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Paraguai: os desafios de uma economia mediterrâneaJuan Carlos Herken Krauer *

I. Introdução

A formação do Paraguai – único país mediterrâneo da América do Sul, até que a Bolívia perdesse a saída para o mar, após a Guerra do Pacífico (1879-1884) – bem que pode ser definida como uma luta para fazer com que a história superasse os condicionamentos da geografia e ao mesmo tempo esperar que as necessidades da economia mundial modificassem a importância dos recursos naturais contidos no âmbito nacional.

Localizado no centro da América do Sul, sem recursos minerais significativos, o Paraguai buscou, desde sua independência, uma maneira eficiente e não muito onerosa de fazer com que seus produtos chegassem ao mercado mundial. O sistema fluvial do Rio da Prata – principalmente os rios Paraguai e Paraná – constituiu, durante séculos, a única via respiratória da economia paraguaia, com custos extremamente elevados, sendo que, na primeira metade do século XIX, superava, até mesmo, os fretes para transporte

* Andalusian Education & Culture Solutions (AECS). [email protected].

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Juan Carlos Herken Krauer

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de mercadorias entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro e cidades européias ou, ainda, dos Estados Unidos.

A conexão ferroviária com o sistema argentino, alcançada em 1913, deveria trazer resultado quanto à redução dos custos de transporte, porém estabeleceu-se, de fato, uma espécie de duopólio entre as empresas que, de certo modo, monopolizavam o comércio fluvial bem como o ferroviário. Aspirações e projetos para encontrar uma “segunda saída” para o Atlântico já existiam desde o século XIX, mas nenhum deles se concretizou. Somente no início da década de 1960, foi obtida uma “segunda saída” por via férrea com a inauguração da primeira ponte sobre o Rio Paraná entre o Brasil e o Paraguai e com a melhoria relativa da rede viária interna do Paraguai, o que permitiu, por sua vez, incrementar o “mercado interno” propriamente dito.

Essa “segunda saída atlântica”, assim como o aproveitamento dos recursos hidrelétricos do rio Paraná juntamente com a Argentina e o Brasil, permitiram que, entre as décadas de 1970 a 1990, o Paraguai triplicasse o volume de sua atividade econômica, recuperando, em parte, um atraso de mais de meio século comparativamente às economias vizinhas, sobretudo as de maior dimensão.

No início do século XXI, apesar dessa relativa recuperação quanto ao seu atraso histórico, o Paraguai continuou a sofrer “desvantagens comparativas” em relação ao seu acesso ao mercado mundial, além dos aspectos decorrentes da opção por um modelo econômico que, embora tenha permitido equilibrar as principais contas macroeconômicas do setor externo, não pôde impedir a permanente emigração da força de trabalho, em todos os níveis de qualificação, e tampouco favoreceu um grau mais elevado de industrialização.

É provável que uma aceleração do processo de integração no Mercosul que implique em melhoria da infra-estrutura de comunicações, assim como na eliminação dos custos burocráticos, impositivos e da taxa de câmbio que afetam o comércio exterior, criem novas condições que permitam imprimir maior efeito multiplicador interno em termos de emprego e renda, a partir do atual modelo agroexportador complementado com a exportação de energia elétrica.

II. Evolução entre as duas guerras, de 1860 a 1932No início do século XIX, pouco restava do que, no começo da era

colonial, fora conhecido como o “Paraguai Gigante das Índias”. A crescente

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importância econômica e política do porto de Buenos Aires deslocou toda a estrutura institucional espanhola cada vez mais para o sul, culminando com a criação do Vice-reinado do Rio da Prata em 1776. O Paraguai seria uma província afastada do centro de decisões, fronteiriça e marginal, contribuindo apenas com erva mate, fumo e madeira para o mercado regional. A expulsão dos jesuítas dos domínios do rei Carlos III da Espanha, em 1767, causaria danos irreparáveis à exploração dos recursos econômicos da zona que mais tarde abrigaria a República Independente do Paraguai, além de permitir a dispersão ou escravidão da imensa massa de indígenas, catequizados e educados pelos missionários1.

A ditadura do Dr. José Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840) deu fim, em um primeiro momento, às ambições de Buenos Aires de reintegrar a “província” do Paraguai ao novo mapa nacional argentino. Rodríguez de Francia fomentou, por sua vez, relações austeras, porém benéficas, com o Império do Brasil, como forma de encontrar saída para as exportações paraguais e para contrapor-se aos desígnios argentinos. O “isolamento” do Paraguai na época é na verdade relativo, e a chegada ao poder da família López, sob a liderança de Carlos Antônio López, em 1841, permitiu um processo de certa modernização da estrutura econômica e de maior integração regional e mundial. Muito se falou – e continua ainda a se falar – a respeito do “socialismo paraguaio do século XIX”, além disso, do “capitalismo de Estado” e, por sua vez, da “industrialização” daquela época.

Mas, a especificidade do papel do Estado na esfera econômica – que já caracterizava a época de Francia – era, na realidade, a continuação da herança colonial, sendo assim, mais do que um objetivo estatista forçado. A exploração da erva mate era considerada um privilégio real desde os tempos coloniais, e os yerbales del rey (ervais do rei) se converteram em yerbales del Estado paraguaio, aos quais, em princípio, somente era possível aceder por meio de licenças e com quotas impostas de maneira restritiva. As grandes fazendas de gado das Missões Jesuítas haviam sido convertidas em estancias del rey no final do século XVIII, e essas unidades de produção se converteram em estancias de la patria. Embora seja difícil calcular com muita precisão, o gado em poder do Estado

1 Basta citar um único exemplo: a técnica de cultivo da planta de erva mate, desenvolvida pelos jesuítas, seria completamente perdida até o início do século XX, quando foi recuperada por imigrantes europeus no norte do Paraguai e posteriormente disseminada, por sua vez, nas regiões produtoras da Argentina e do Brasil.

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cresceria até representar cerca de um terço do total do produto no início da década de 18602.

Um dos membros mais ricos e cultivados desse último grupo, o próspero pecuarista Carlos Antonio López, tomou o controle do governo em 1841, primeiro por meio de um Consulado conjunto e em 1844 como Presidente, sendo eleito, na época, com base em uma regulamentação do governo que serviu de Constituição provisória3. A assembléia reunida para aprovar a carta básica da República e a eleição do Presidente ocorreram, novamente, a partir de uma seleção dos “mais distintos cidadãos proprietários” do país4.

A primeira tarefa de C.A. López foi a de institucionalizar a independência do Paraguai, já que, de fato, nenhum país havia, até então, reconhecido formalmente sua independência5. As relações com a Argentina começaram a melhorar com o desaparecimento de Juan Manuel de Rosas da cena política. Além disso, no início da década de 1850, o sistema de comunicações e o comércio com o sul melhoraram significativamente. Durante toda essa década, o Paraguai começou a modificar sua estrutura econômica graças à abertura das fronteiras, uma expansão considerável do comércio exterior e em função das primeiras iniciativas rumo à modernização da infra-estrutura do país. As exportações passaram de um valor anual de 62.267 libras esterlinas em 1851 para 333.000 em 18576. Dezenas de técnicos europeus, sobretudo britânicos, foram contratados pelo governo para a construção de uma fundição de ferro, uma ferrovia, um estaleiro, bem como outras obras públicas7.

O Paraguai continuava exportando essencialmente erva mate, couro, madeira e fumo, mas a partir do início da década de 1860, o algodão passou a compor também um item importante da pauta de exportações, estimulado pela elevação dos preços internacionais8. Houve um progresso substancial do

2 Nosso trabalho “Proceso económico en el Paraguay de Carlos Antonio López.” Revista Paraguaya de Sociologia, 19-54, p. 104.3 Cardozo, Efraín. Breve historia del Paraguay. 1965, p. 70-71.4 Ibid.5 O primeiro país a reconhecer formalmente a independência do Paraguai foi o Império Austríaco, por intermédio de Metternich, em 1842. Schmitt, P. Paraguay und Europa. 1963. p. 35.6 Williams, J.H. The rise and fall of the Paraguayan Republic. 1979. p. 102-103.7 Sobre o papel dos técnicos britânicos no Paraguai, Plá, Josefina. The British in Paraguay. 1850-1870. 1976. Também Williams, The rise and..., 1979. p. 176-193.8 Mulhall, M.G. The cotton fields of Paraguay. Buenos Aires. 1866. p. 109-111.

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sistema de comunicações internas e externas em relação à época de Rodríguez de Francia, embora os vínculos com o exterior fossem realizados, sobretudo, por meio do sistema fluvial, graças a uma frota mercante estatal em expansão. Com a morte de C.A. López em 1862, seu filho, Francisco Solano, herdou a condução do governo. Recebeu um país que havia avançado bastante em comparação ao quase esquecido quintal espanhol do começo do século. Embora ainda fosse uma sociedade rústica e com população que sobrevivia, em sua grande maioria, graças a uma agricultura de subsistência não modernizada, esse progresso seria qualificado por alguns como realmente excepcional.

“A experiência paraguaia com a modernização foi única. Somente o regime de C.A. López realizou, na América do Sul, um elevado nível de industrialização sem, para tanto, contar de maneira maciça com o capital estrangeiro. Dessa forma, entre 1840-70, o Paraguai não havia hipotecado seu futuro financeiro, escapando, assim, das pressões que haviam sido exercidas sobre os países vizinhos pelos investidores europeus. O Paraguai pagou à vista o que necessitava e somente comprou o que podia pagar. O país não se apoiou no capital estrangeiro, e sim na importação de mão de obra qualificada (...). Não há a menor dúvida de que, em 1863, F.S. López governava uma nação unificada, sem dívidas e tecnologicamente avançada em relação às demais nações do continente”9.

Essa visão certamente otimista deve ser revista, especialmente quando são qualificadas as mudanças realizadas durante a era dos López, bem como a estrutura econômica já existente. É muito difícil afirmar que houve uma política de industrialização, levando-se em conta que as inovações tecnológicas em matéria de transporte e infra-estrutura se voltaram para o barateamento dos custos de produção e comercialização dos produtos agrícolas. Além disso, durante essa época ocorreu uma redução das tarifas de importação de vários produtos. Uma parte da infra-estrutura, como por exemplo a fundição de ferro, pode ter representado um objetivo sobretudo estratégico-militar – por se tratar de um país mediterrâneo – mais do que ênfase em uma eventual indústria pesada. Muito pouco se conhecia sobre o verdadeiro potencial do país10 e a ausência relativa de capital estrangeiro

9 Williams, J.H. The rise and fall of the Paraguayan Republic. 1979. p. 102-103.10 Ninguém sabia exatamente o total da população do Paraguai, e a cifra de 1.337.439 habitantes amplamente citada – publicada por Marbais du Gratty, A.L.H.G. La República del Paraguay. 1862. p. 132-33 – naquele tempo constituía, sem dúvida, um artifício proposital para aumentar o temor diante da potencial força militar do país. A população do Paraguai não deveria ter excedido 500 mil habitantes antes da guerra.

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deve ser atribuída à resistência dos investidores estrangeiros quanto às apostas em embarcar em projetos arriscados.11 Da mesma forma, a estreita identificação entre o clã familiar dos López e o Estado paraguaio – e os benefícios financeiros que decorriam desse vínculo – iriam gerar atritos dentro da elite paraguaia, sendo que muitos de seus membros se colocariam do lado dos Aliados na conflagração que ocorreria.

A Guerra da Tríplice Aliança – ou Guerra do Paraguai, ou ainda “Grande Guerra” – entre 1864 e 187012 constituiu não somente o maior conflito bélico da história independente da América do Sul, mas também estabeleceu, por sua vez, a estrutura política do poder regional que prevaleceria até o fim do século XX, e definiu a quase totalidade das fronteiras nacionais, com exceção da que limita Bolívia e o Paraguai, que também seria definida em outro conflito bélico, a Guerra do Chaco (1932-35). Sem pretender simplificar as causas deste último conflito, o fato de que as duas únicas nações mediterrâneas da América do Sul se enfrentassem em uma conflagração militar de grande envergadura, teve relação direta com o acesso ao sistema fluvial do Prata e o acesso ao mar, isto é, ao mercado mundial.

A “Grande Guerra” frustrou a primeira grande tentativa do Paraguai no sentido de modernizar-se e integrar-se à economia regional e mundial, e, de fato, provocou décadas de atraso relativamente aos seus vizinhos. A população do Paraguai somente recuperaria o nível anterior à guerra no início do século XX, e, ao contrário de seus vizinhos do Prata, essa reconstituição paulatina seria feita exclusivamente à base da reprodução natural de homens e mulheres nativos.

11 F.S. López tratou de obter – sem êxito – financiamento em Londres no final da década de 1850. Nosso trabalho “Proceso económico...”, 1982. p. 97-98.12 A bibliografia sobre o conflito é extensa. Nosso trabalho como co-autor, Gran Bretaña y la Guerra de la Triple Alianza (1874-70), publicado em 1983, analisa as principais contribuições. Sobre o pós-guerra, ver H. G. Warren. Paraguay and the Triple Alliance War. The post-war decade, 1869-1878. 1978.

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População do Paraguai

A intenção do Paraguai – desde a criação do primeiro governo provisório em Assunção, ocorrido por volta de 1869 – de vincular-se ao modelo básico de crescimento da Argentina, Brasil e Uruguai que, caracteristicamente se deu com a imigração e colonização européia maciças, exportação agroindustrial para o mercado mundial e rápida expansão da estrutura de comunicações, fracassou estrepitosamente. Já em meados da década de 1880, foi preciso recorrer à venda maciça de terras públicas, o que determinaria o eixo da economia do Paraguai até a segunda metade do século XX: uma economia dominada por grandes latifúndios, com um quantitativo significativo de pequenos agricultores dependentes dos cultivos de subsistência e da exportação de algodão e fumo. Nossos cálculos assinalam que tanto em termos de superfície agrícola cultivada quanto em termos de valor aproximado da produção agrícola, em 1932 ainda não haviam sido atingidos os níveis registrados em 1863. O Paraguai tinha de importar, de maneira maciça, muitos produtos alimentícios que, em conseqüência dos custos de transporte e intermediação chegavam, ao mercado interno, com preços muito acima da média internacional.

Enquanto se observava um crescimento muito lento da superfície agrícola cultivada, constatava-se, ao contrário, uma retomada notável das exportações paraguaias, que ao final do século XIX já superavam os níveis recordes da época anterior a 1864. Foram os produtos pecuários, especialmente o couro e derivados da carne, bem como os produtos florestais, extrato de quebracho (tanino) e madeira para o mercado argentino, os que lideraram a recuperação das exportações paraguaias, mais do que compensando o declínio sistemático das exportações de erva mate que perderam terreno diante da produção

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argentina e brasileira. Obviamente, as receitas de exportação do Paraguai representavam o menor fluxo que escoava pelo Rio da Prata. Dos cerca de 809,9 milhões de $o/s – a preços correntes de mercado – exportados em 1918 (ano do auge), 82 por cento (82%) eram provenientes da Argentina, 14 por cento (14%) do Uruguai e 4 por cento (4%) do Paraguai.13

Área agrícola cultivada

Valor da produção agrícola

13 Nosso trabalho Economic indicators for the Paraguayan economy, 1860-1932. Tese de doutorado. The London School of Economics and Political Science, 1986. Nossos cálculos sobre o volume das exportações paraguaias para o período 1860-1932, levam em conta os registros alfandegários argentinos e, portanto, o tráfego não registrado do lado paraguaio.

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Não obstante, essas cifras absolutas devem ser relativizadas levando-se em conta a diferença populacional e o “grande atraso” do Paraguai após a Grande Guerra. Embora em comparação proporcional com a Argentina a parcela paraguaia do total de exportações dos países do Prata tenha declinado durante o período, ela aumentou comparativamente ao Uruguai.

A taxa acumulada de crescimento do volume exportado pelo Paraguai de cerca de 3,6 por cento (3,6%) anuais – no período 1880-1928 – é menor do que o verificado na Argentina, que foi de cerca de 4,6 por cento (4,6%) anuais. De qualquer forma, trata-se de uma taxa significativa, levando-se em conta que a expansão fenomenal da Argentina no período de tempo mencionado é um recorde mundial. Por outro lado, o fato de o Paraguai ter passado por um “início tardio”, implicou no fato de que a aceleração da taxa a partir de 1880 incluiu uma parcela de “recuperação” das perdas ocasionadas pela guerra. No início do século XX, a Argentina e o Uruguai podiam ser consideradas economias maduras, crescendo, na época, em ritmo mais lento, porém mais desenvolvidas. Levando-se em consideração as cifras sobre a dinâmica do crescimento do comércio mundial entre 1850-1880 (um incremento de 270 por cento do volume) e de 1880 a 1913 (um incremento de 170 por cento)14, o Paraguai começava a recuperar-se justamente durante uma fase de crescimento mundial relativamente mais lenta.

A comparação com o Uruguai pode ser relativamente mais arbitrária, dado que a seleção de um intervalo adequado pode prejudicar um ou outro resultado. É evidente, porém, que entre 1895 e 1928, ou ainda 1930, a taxa de crescimento acumulada do volume das exportações uruguaias correspondia aproximadamente a 1 por cento (1%) anual, sobretudo devido ao estancamento ocorrido entre meados da década de 1890 e a Primeira Guerra Mundial, período no qual o volume das exportações paraguaias cresceu mais rapidamente. A partir daí, a taxa de crescimento de ambos os países é praticamente igual, com uma pequena diferença a favor do Uruguai nos anos da guerra e a favor do Paraguai na década de 1920.15

Os resultados mostram que, analisando-se em termos do valor de mercado e do volume das exportações, o rendimento do Paraguai no Rio Prata foi mais ágil e proporcionalmente melhor do que o do Uruguai desde

14 Ibid.15 Ibid.

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1890. É um resultado surpreendente se forem levados em conta os obstáculos na qual estava submetida e que caracterizavam a economia mediterrânea do Paraguai. Porém, mais do que surpreendente é o fato de que, apesar de uma integração muito dinâmica à economia mundial, não ocorreram os efeitos multiplicadores em nível econômico e social que, ao contrário, surgiram ao sul do Prata, onde uma grande parte das receitas líquidas das exportações seguiram para os grandes latifúndios nas mãos do capital estrangeiro, bem como indústrias extrativas com pouca disposição de reinvestimento e de expansão interna. Somente as exportações de fumo e em seguida de algodão, a partir da Primeira Guerra Mundial, acarretaram melhora relativa de certas camadas da população rural, representada por mais de 80 por cento (80%) da população total do país.

Entre 1912 e 1918, a economia paraguaia registrou taxas de crescimento excepcionais, em grande parte motivadas pela demanda mundial de produtos militares estratégicos como o extrato de quebracho, couro e extrato de carne, assim como a elevação generalizada dos preços das matérias primas no mercado mundial, cuja aceleração a já mencionada conflagração mundial provocou. Vários grupos de investidores estrangeiros reconheceram o potencial do Paraguai e esboçaram projetos avançados de modernização da infra-estrutura, inclusive a expansão das ferrovias, como também o aproveitamento dos recursos hidrelétricos. O principal foi o Consórcio de Percival Farquhar, que possuía importantes participações em linhas férreas brasileiras, argentinas e uruguaias, sendo que um de seus projetos mais ambiciosos consistia na integração ferroviária do sistema brasileiro com o paraguaio, de forma a canalizar de maneira menos onerosa as exportações paraguaias através dos portos do Brasil e de Assunção, eventualmente, até o Pacífico.16 A crise financeira verificada nos mercados mundiais no início da Primeira Guerra Mundial, assim como persistentes conflitos internos no Paraguai, associado, ainda, à resistência de grupos de investidores britânicos e argentinos, provocou a bancarrota desses grupos ou o atraso por tempo indeterminado dos ambiciosos projetos diante da impossibilidade de obtenção de financiamento adequado.

16 As atividades e projetos desses consórcios, inclusive o McArthur-Pecks, encontram-se analisados em nosso trabalho “Políticos, empresários e financistas no Paraguai, 1908-1920”. Jahrbuch für dis Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas. Colônia: 22, 1985, assim como em Ferrocarriles, conspiraciones y negocios en el Paraguay, 1908-1913. 1984.

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A partir da década de 1920, e uma vez superada a época de altíssima instabilidade política, bem como após algumas reformas monetária e financeira, a economia do Paraguai passou a progredir mais lentamente, porém de forma mais ordenada. Isso possibilitaria uma relativa melhora quanto ao volume de recursos ao exército paraguaio, o que o ajudaria a conseguir a vitória militar na guerra contra a Bolívia em 1935. O regime militar se converteu em árbitro político chave no Paraguai a partir dessa data e, assim, desde 1940, instalar-se-ia um sistema autoritário de poder composto por um partido único que sobreviveria até o final do século XX e que, por sua vez, interviria de maneira bastante exclusivista em todo o aparelho produtivo.

III. A “segunda saída atlântica”No início da segunda metade do século XX, o Paraguai continuava a

ser um dos países mais pobres da Ibero-américa, eminentemente rural, com uma estrutura de comunicações ainda voltada fundamentalmente para a região do Rio da Prata, pouquíssima industrialização e forte emigração de mão de obra, em todos os níveis de qualificação técnica, em direção a seus vizinhos, especialmente a Argentina. A infra-estrutura de comunicações continuava a ser muito precária. Não ocorreu nenhuma nova expansão nas ferrovias desde 1913, exceto linhas no Chaco ligadas, exclusivamente, ao transporte de rolos de quebracho. A única estrada asfaltada do Paraguai, construída graças a um empréstimo concedido pelo governo dos Estados Unidos, tinha cerca de 40 quilômetros de extensão. Em linhas gerais, a estrutura produtiva pouco diferia da que existia na época da Primeira Guerra Mundial, com predominância de grandes latifúndios agroexportadores.

Ocorreu, no entanto, uma mudança fundamental a partir da década de 1960. Após décadas de espera e de projetos mal sucedidos, o Paraguai passou a contar com uma “segunda saída atlântica”, a conexão terrestre através do Brasil e os portos atlânticos brasileiros – em especial o de Paranaguá, mas também o de Santos – começaram a receber, cada vez mais, o tráfico comercial paraguaio, de exportação e de importação. Vários outros aspectos ocorreram simultaneamente. Uma lenta, porém sistemática, redistribuição de terras no Paraguai, assim como o paulatino desmembramento dos antigos latifúndios – uma vez debilitada a demanda mundial de extrato de quebracho e intensificada a perda de mercado da erva mate paraguaia – possibilitaram

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uma forte expansão da fronteira agrícola (em particular soja, outros cereais e algodão), sobretudo em direção ao leste, o que permitiu, também, o ingresso maciço de novos colonos, especialmente os vindos do Brasil.

Produziu-se, igualmente, uma modernização do aparelho produtivo no setor agropecuário, com o aumento de instrumentos de trabalho tecnologicamente avançados. Tanto a área cultivada quanto o volume produzido e exportado começaram a expandir-se em ritmo muito acelerado. A isso se acrescentaria, na década de 1970, a construção das represas hidrelétricas de Itaipu e Yaciretá, sobre o rio Paraná, o que ocasionaria um auge no setor da construção, com efeitos multiplicadores em toda a economia. O eixo geoeconômico do Paraguai se reorientou sistematicamente em direção ao leste, depois de estar paralisado por mais de um século e meio na direção sul. Além disso, introduziu-se uma modificação fundamental na estrutura econômica: a exportação de energia hidrelétrica.

O impacto da “segunda saída atlântica” e o aproveitamento dos recursos hidrelétricos se refletem com muita clareza nos dados macroeconômicos. Entre 1970 e 1990, o PIB paraguaio, a preços constantes, multiplicou-se por três. Também em termos regionais, a parcela paraguaia relativamente ao valor agregado do PIB da Bolívia, Paraguai e Uruguai, passou de menos de 10 por cento (10%) em 1950 a mais de 20 por cento (20%) em 1990, o que demonstra um rendimento da economia paraguaia muito acima das médias regionais17.

A retomada das exportações18 do Paraguai, levando-se em conta as séries de volume, supera, inclusive, os resultados de seus vizinhos em termos de taxa de crescimento. Entre 1980 e 1995, o índice do volume das exportações paraguaias passou de 14,6 a 153,8 (Base 100 = ano 2000). Após uma relativa estabilização a partir do final da década de 1990, observa-se uma nova retomada, nos últimos anos, em grande parte motivada pela substancial elevação dos preços das matérias primas no mercado mundial.

17 Outro cálculo utilizando números do FMI para o período 1980-2006, porém baseados em dólares correntes de “PPP”, poder aquisitivo da moeda, revela uma proporção do PIB paraguaio no conjunto dos “países pequenos” entre 24 e 28 por cento.18 A realidade expressa por um alto nível de “tráfico não registrado” no Paraguai, assim como os fenômenos de re-exportação, sub e supervalorização dos registros alfandegários, debilitam a pureza estatística dos fluxos de comércio exterior, particularmente as de valor oficialmente declarado. As séries sobre volume são mais representativas, na medida em que se estabeleça uma certa correlação estável entre os fluxos registrados e não registrados.

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PIB 1950-2006

Parcela nacional do PIB conjunto da Bolívia, Paraguai e Uruguai

Apesar da notável melhora de alguns indicadores macroeconômicos relativos ao equilíbrio no balanço de pagamentos, o Paraguai, assim como outras economias pequenas da região, continua a sofrer com a incapacidade de gerar fontes de emprego e com uma distribuição muito desigual da renda. A emigração maciça do excesso de força de trabalho – que constitui o eixo

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social do Paraguai desde meados da década de 50 (salvo alguns anos da década de 1980, nos quais o número de imigrantes foi superior ao de emigrantes) – acelerou-se novamente nos últimos anos, com a ampliação do circuito migratório aos Estados Unidos e Europa, processo regional que afeta também, em particular, a Bolívia, o Equador e o Uruguai.

Volume de exportações

A coexistência com a maior economia sul-americana – a do Brasil – e a crescente interação de todos os fluxos nas fronteiras – mercadorias, mão de obra, capitais – é um processo inevitável e em constante aumento, porém que provoca, por sua vez, conseqüências relacionadas ao impacto final desse intercâmbio sobre os indicadores macroeconômicos. Existe uma “integração econômica de fato” ao longo da linha fronteiriça ocidental do Brasil, apesar das linhas divisórias nacionais e dos controles correspondentes. É óbvio que a geração de valor agregado – a ser levado em conta para a confecção de estatísticas macroeconômicas dentro dessa “região integrada” – pode obedecer a múltiplos fatores de ambos os lados da fronteira, mas acabará sendo registrada somente em um dos lados, ou em ambos. Para economias de menor volume, como as da Bolívia, Paraguai e Uruguai, isso pode representar um traço estatístico significativo, que relativiza o caráter genuíno de alguns indicadores.

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Proporção do PIB nacional em relação ao do Brasil

O efeito global da fenomenal expansão econômica da economia brasileira sobre as “pequenas economias” vizinhas durante as últimas cinco décadas, é uma pergunta chave e inevitável, mas as respostas não são fáceis. Em várias etapas da economia mundial ocorreu situações semelhantes, nas quais os efeitos da dinâmica acelerada de uma economia de maiores dimensões pode, tanto transmitir ondas positivas em direção às pequenas, como ocasionalmente também sufocá-las e conduzi-las a uma velocidade menor de crescimento. Por outro lado, torna-se extremamente difícil estabelecer uma linha divisória entre as causalidades “endógenas” de um ritmo econômico e as “exógenas”. Não resta a menor dúvida de que, no caso do Paraguai, há uma forte correlação entre sua etapa de grande expansão e a do Brasil, apesar de que, desde 1950, a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai representaram uma proporção cada vez menor em relação ao PIB brasileiro, sendo o declínio muito substancial no caso uruguaio. Ora, observa-se uma estabilidade flagrante do indicador dessa proporção nacional a partir de 1990, o que pode muito bem estar indicando, de maneira muito indireta, que os mecanismos da “integração de fato” e diversos acordos regionais, como o Mercosul, estão criando laços mais sólidos e sistemáticos entre todas as economias, o que permitiria um ciclo de crescimento regional menos diferenciado em nível nacional.

IV. Os obstáculos no início do século XXIO fator determinante do acesso ao mercado mundial e da competitividade

do Paraguai continua a ser o custo do transporte, tanto em suas dimensões

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monetárias quanto em suas dimensões de custo de oportunidade. Mais importante do que o fato de ser um país mediterrâneo, é a constatação geográfica, por se constituir uma economia muito distante de sua costa marítima natural, o Atlântico, a mais de 1.500 quilômetros de Assunção, e também de uma segunda, hipotética, a do Pacífico. Em termos econômicos, relativamente à questão do transporte, ainda se parte do princípio de que a relação de custos entre as vias marítima, férrea e rodoviária é de 1:5:7, mesmo dependendo do volume transportado e das condições qualitativas da infra-estrutura viária. Vários estudos mostram que o impacto financeiro dos custos de transporte e de seguros para a Bolívia e o Paraguai é maior do que o de outros países19, sendo que seria preciso acrescentar ainda os custos implícitos derivados do tempo utilizado para que a mercadoria chegue aos portos oceânicos, além das diversas barreiras administrativas e aduaneiras.

Países como o Paraguai ainda necessitam de expansão e melhoria substancial de sua infra-estrutura de comunicações, em todas as direções, e, mesmo prevendo-se que ocorra um aperfeiçoamento substancial dos sistemas de hidrovia na Bacia do Prata, a falta de um sistema ferroviário que vincule as regiões produtoras do Paraguai com os mais importantes portos atlânticos, continuará a acrescentar custos suplementares ao comércio exterior, que se traduzem em uma redução do valor agregado líquido que permanece no local de produção, impedindo um desenvolvimento nacional mais equilibrado e sustentado.

Nesse sentido, o caminho da integração regional, tanto a nível de se estabelecer uma tarifa externa comum quanto no caso da criação de zonas de livre comércio, até uma eventual união aduaneira, e a integração econômica,

19 Indicadores dos custos de transporte e seguros. Parcela componente no valor das importações de produtos químicos, produto homogêneo.

País (Custo CIF – custo FOB) Custo CIF (em percentajem)

Produtos importados da ÁsiaBolívia 14.21 Paraguai 11.37 Outros países 7.25 Produtos importados da União EuropéiaBolívia 9.42 Paraguai 7.16 Outros países 4.65

Fonte: International Transport Database, Transport Unit, ECLA.

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implicando na coordenação de políticas macroeconômicas, inclusive na criação de uma moeda comum, constitui o eixo central de uma estratégia voltada para a melhoria quanto às vantagens comparativas de países mediterrâneos como o Paraguai. O Mercosul, iniciado entre 1985 e 1991, está criando, em parte, as condições para tal processo, mesmo diante de muitas perguntas sem resposta sobre se os acordos comerciais estão produzindo mais um “desvio de comércio” ao invés de uma geração de “novo comércio”.20 É evidente, de toda maneira, que nos últimos anos produziu-se uma retomada notável da maioria das rubricas de exportação dos países da zona do Mercosul, capitalizando, por sua vez, a melhora dos preços relativos das matérias primas no mercado mundial.

Não obstante, é imprescindível assinalar que, em termos da dinâmica da economia mundial recente, verifica-se certo retrocesso da participação das economias sul-americanas, examinando-se a proporção em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) mundial, sendo este calculado segundo o método do poder aquisitivo da moeda, na qual permite uma comparação mais equitativa entre países com estruturas econômicas e preços relativos muito diferentes. No caso de alguns países do Mercosul, esse declínio é sistemático, com exceção da Argentina, que, nos últimos dez anos, registrou certa retomada, em grande parte explicável pela recuperação da grande crise da década de 1990.

Proporção nacional do PIB mundial (% sobre PPP)

Argentina Bolívia Brasil Paraguai Uruguai1980 1,095 0,078 3,576 0,048 0,0781990 0,715 0,058 3,064 0,047 0,0622000 0,813 0,063 2,959 0,043 0,0632006 0,780 0,061 2,818 0,041 0,056

20 A bibliografia a respeito do assunto é muito extensa. Entre as contribuições recentes mais relevantes sobre os diferentes projetos de integração na América, encontram-se: Fanelli, J.M. Regional agreements to support growth and macro-policy coordination in Mercosur. Nova York, 2007; Hugueney Filho, C., Cardim, Carlos Henrique. Grupo de reflexão prospectiva sobre o Mercosul. 2003; Azevedo, André Filipe Zago de. The economic effects of Mercosur: an empirical analysis, 2001. Nossos trabalhos Hacia uma economía política del Mercosur, Assunção 1995, e Mercado de trabajo y migración em el Mercosur. Assunção, 1996, antecipavam uma integração regional mais auspiciosa devido às diferenças substanciais em termos de produtividade econômica entre os países membros, e a continuidade de fluxos migratórios devido à carência de fontes de trabalho nas zonas de menor renda.

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Não resta dúvida que esse relativo declínio é uma conseqüência do incremento substancial da produção mundial oriunda da Ásia, sobretudo da China, mas também da Índia e de outros países, assim como da recuperação econômica da Rússia e de outras economias asiáticas. Constata-se, assim, mais uma vez, o efeito da “recuperação do atraso” (catch-up effect), que, a partir dos modelos de crescimento econômico conhecidos, confirma o fato que os países de menor renda per capita crescem durante uma etapa a uma velocidade maior do que os de maior renda. Até então, o nível da renda média per capita da maioria das economias sul-americanas, inclusive em termos de poder aquisitivo da moeda, é maior do que o da China ou da Índia. Embora seja apenas uma questão de poucos anos para que ocorra uma equiparação em termos de poder aquisitivo da renda média dos países na qual estamos nos referindo, na medida em que se mantenham os ritmos elevados de crescimento do PIB asiático, conforme verificado nos últimos anos, tal processo não deveria descartar a imensa massa populacional desses países que ainda carece de uma integração completa a uma economia de mercado e de certo nível tecnológico e cultural. A enumeração desses fatores que modificam o perfil da economia mundial não impede que se constate uma perda relativa da participação ibero-americana, tanto no PIB mundial, como também em relação ao mercado das exportações mundiais, com exceção, sobretudo, do México, desde meados do século XX. Essa análise suscita, por sua vez, a grande questão que é saber se o “Atlântico Sul” está perdendo terreno, em termos de atratividade e competitividade, diante da crescente concentração dos fluxos comerciais e financeiros no Pacífico e no Índico.

As desvantagens em termos do tamanho reduzido da economia – ou seja, a falta de “resíduos positivos quanto ao aspecto da economia de escala” – e em termos do difícil acesso aos portos comerciais mundiais, como no caso do Paraguai, somente poderão ser relativizados dentro de uma concepção de integração regional efetiva, que inclua uma estrutura de comunicações a preços competitivos com o mercado mundial e, eventualmente, uma integração monetária que elimine uma parte substancial dos custos financeiros colaterais. É a única maneira na qual “países pequenos” não fiquem descolados da atual onda de globalização e, por sua vez, de que ocorra um grau maior de criação de valor agregado industrial na zona de produção, o que dinamizaria a criação de empregos.

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Índice de quadros e gráficos estatísticos1. Evolução da população do Paraguai, 1860-1932. Nosso trabalho, Economic

indicators for the Paraguayan economy. Isolation and the world economy, 1860-1932.Ph.D., Universidade de Londres, 1986.

2. Área agrícola cultivada no Paraguai, 1863-1932. Nosso trabalho (1986).3. Valor da produção agrícola do Paraguai, 1863-1932. Nosso trabalho (1986).4. PIB a preços constantes, Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai.

US$ dólares 2000, 1950-2006. Fonte: Cepal.5. Participação nacional no PIB agregado da Bolívia, Paraguai, Uruguai,

1950-2006. Fonte: nossos cálculos a partir dos dados da Cepal. US$ dólares 2000.

6. Evolução do volume das exportações. Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. 1980-2007. Fonte: Cepal.

7. Proporção do PIB nacional em relação ao do Brasil. Bolívia, Paraguai e Uruguai. 1950-2006. Fonte: nossos cálculos a partir dos dados da Cepal.

8. Proporção nacional do PIB mundial (PPP), 1980-2006, poder aquisitivo da moeda (purchasing parity power), nossos cálculos a partir dos dados do FMI. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Novos olhares sobre a formação econômica peruanaManuel Burga*

Introdução

P or volta de 1919, quando se aproximava o primeiro centenário da República, um político ousado, Augusto B. Leguía, que saíra das fileiras do partido governante, o Partido Civil da época, lançou uma proposta política sintetizada por duas palavras: “Pátria Nova”. Pátria nova em oposição ao candidato do partido do governo, Antero Aspíllaga que, segundo ele, representava a “Pátria Velha”, a que não teria sido capaz de realizar a promessa republicana de uma vida melhor para os peruanos. Paralelamente, jovens universitários formaram o “Conservatório Universitário”, na Universidade de San Marcos, com o objetivo de fazer, por meio de um esforço coletivo, um balanço do primeiro século de vida republicana. Com a mesma intenção, porém no interior do mesmo Partido Civil, um intelectual e empresário de relativo êxito, Pedro Dávalos y Lissón, publicou, em 1929, um estudo em dois volumes com título auto-explicativo, La Primera Centuria. Causas geográficas,

* Ex-Reitor da Universidade Nacional Mayor de San Marcos. [email protected]

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Novos olhares sobre a formação econômica peruana

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políticas e econômicas que frearam o progresso moral e material do Peru no primeiro século de vida independente. Essa mesma idéia, do fracasso do projeto republicano, de uma promessa não cumprida, foi retomada pelo escritor Vargas Llosa em seu romance Conversación en la Catedral (1969), ocorrida na época do general Manuel A. Odría, na qual um de seus personagens constantemente se pergunta: “Quando foi que estragaram o Peru?”.1 Uma pergunta que vai além do que se indagava no primeiro centenário da República, sendo que, na verdade, com isso, pretende-se conhecer as razões ou causas do fracasso do projeto republicano.

Jorge Basadre (1903-1980), o mais importante historiador da república peruana, propôs ao longo de toda a sua obra entender o século XIX, em particular a época do guano (1845-1874), como um período de “prosperidade falaz” e de “oportunidades infelizmente pouco aproveitadas”. Não obstante, no momento atual, já concluído o século XX, e verificada a frustração de importantes projetos políticos e de muitos sonhos e ilusões, muitas vezes se costuma pensar – sobretudo a partir da recente historiografia peruana, jovens como os que formavam o “Conservatório Universitário” – que o século XIX, apesar de tudo, deixou lições importantes, como a grande herança da independência de 1821 e uma experiência liberal, a “República Prática”, de Manuel Pardo (1872-1876), que se adiantou a seu tempo, mas que foi abortada devido ao assassinato de seu líder em 1878 e pela guerra com o Chile (1879-1883). Isto é, começa-se a construir uma nova memória nacional, uma memória na qual o século XIX, em particular a experiência liberal desse século, aparece como projeto frustrado, inconcluso, que deveria retornar. Pareceria que a intenção seria esquecer as frustrações e dramas do século XX, para retroceder ao século anterior. Foi isso o que me levou a dar nome ao último capítulo deste ensaio com uma pergunta: “O passado redivivo?”. Essa benevolência para com o século XIX surge provavelmente como conseqüência das grandes mudanças ocorridas no mundo no último quarto do século XX e também dos relativos êxitos econômicos que a atual globalização trouxe consigo: cinco anos de desenvolvimento sustentado no Peru (de 2001 a 2006), com inflação próxima a 1,5% anuais e crescimento

1 A expressão original, mais grosseira, é “y cuándo se jodió el Peru?” que o tradutor preferiu não verter ao pé da letra. (N. do T.)

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constante de 4% ao ano. Essa visão poderia ter sido fortalecida devido ao que está ocorrendo no momento atual: a produção nacional no mês de maio passado deste ano de 2008, segundo o mais recente Relatório Técnico do Instituto Nacional de Estatística, registrou um crescimento de 7,30%2. Todos esses indicadores levam os jovens a reavaliar o século XIX e a retomar um passado que parecia já estar sepultado, como demonstração de que a história está ancorada no presente. Isto é, ele é construído ou interpretado a partir do presente, como tantas vezes disse Benedetto Croce.

1. A economia do guano e a prosperidade falaz: anarquia e primeiro militarismo (1821-1872)

A independência sul-americana foi selada em território peruano, entre 1821 e 1824, graças à convergência dos exércitos de San Martín e Bolívar em terras peruanas. O primeiro, com tendências monarquistas, logo desistiu de seu projeto e exilou-se na Europa. O segundo, convencido da necessidade quanto à construção de uma república liberal, permaneceu no Peru até 1826. Esse processo político e militar teve três conseqüências fundamentais: a) a independência política e uma prolongada crise econômica; b) caudilhos militares cobiçosos e sedentos de poder; e c) instabilidade, anarquia e luta pelo poder.

As lutas pela independência haviam logicamente aprofundado a crise econômica, fundamentalmente na área rural desde o final da época colonial. A mineração da prata, que no fim do século XVIII e início do XIX provinha de novas regiões, como por exemplo, Cajamarca, ficou paralisada em conseqüência das guerras. As que mais sofreram, porém, foram as economias rurais do interior do país: os bens rurais dos espanhóis foram seqüestrados, o mesmo ocorreu com as fazendas de algumas ordens religiosas e muitas foram saqueadas para alimentar os exércitos patriotas e realistas. O resultado foi a agonia da produção agrária, economias rurais em crise e logicamente redução das receitas fiscais, estatal e religiosa, que dependiam dessas produções.

2 “O desenvolvimento favorável da atividade econômica do país vem sendo explicada pelo dinamismo sustentado da demanda interna e externa bem como pelo aumento do investimento em projetos tanto privados quanto públicos”. Boletín Técnico, INEI (Instituto Nacional de Estatística e Informática).

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Mas, o maior legado da independência foi a presença de numerosos caudilhos militares, principalmente generais e coronéis que ganharam seu prestígio nas guerras da independência e que se consideravam no direito de gozar de seus frutos, como Agustín Gamarra, Santa Cruz, Echenique, Castilla e Balta, para mencionar os mais conhecidos. Eles disputaram o poder entre si utilizando o que tinham: as armas, e fazendo o que sabiam fazer: a guerra. Esqueceram, assim, os princípios fundamentais do republicanismo bem como deixaram de lado os ideais de um governo representativo, de uma nação de cidadãos, com direitos, obrigações e liberdades. Ao reduzirem-se drasticamente as receitas fiscais, os governantes da época tiveram de recorrer aos empréstimos, dinheiro que servia para atender a própria dívida externa, os gastos militares e a burocracia estatal. A instabilidade e a ingovernabilidade relativamente endêmica eram conseqüência – dentre outras causas – da escassez de recursos econômicos. O velho modelo colonial de exportações primárias, especialmente metais preciosos, produção de lã, além disso, têxteis e plantas medicinais e tributos dos indígenas estava praticamente esgotado. Não havia a tranqüilidade e nem a inteligência suficientes para mudar o velho modelo econômico, o Estado não gozava de legitimidade e nem possuía a força necessária para promover mudanças.

Em seguida, no início da década de 1840, produziu-se o milagre do descobrimento do guano nas ilhas do Pacífico e principalmente nas ilhas Ballesta, distante da província de Chincha, a aproximadamente 150 km de Lima. Trata-se de excrementos de aves marinhas depositados nessas ilhas, desde épocas muito antigas, em regiões onde nunca chove. Esse fertilizante era usado pelos incas, mas durante a colônia, devido à abundância de terras, não foi necessário utilizá-lo. Naquela época foram descobertas suas propriedades fertilizantes nas terras agrícolas e logo que a notícia chegou à Europa os embarques foram iniciados. Os negócios do Estado peruano, único proprietário, geraram enormes ganhos. Num período de pouco mais de 40 anos, entre 1840 e 1880, o Peru exportou, através de diversas modalidades, bem como mediante consignatários nacionais ou contratistas estrangeiros, 11 milhões de toneladas de guano, que representaram um lucro de aproximadamente 750 milhões de dólares para o governo (McEvoy, Carmen: 2007:33). Essas receitas, que hoje não parecem muito gigantescas, tornaram possível iniciar a construção das bases materiais da nação e abrir a economia nacional aos capitais estrangeiros.

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O guano permitiu que se acabasse com a feroz anarquia militar e se iniciasse um período de apaziguamento durante o segundo governo de Ramón Castilla, sobretudo depois de sua “revolução liberal” de 1854. Na verdade, uma rebelião militar contra o coronel Echenique, seu antigo aliado, que nos anos de 1848 a 1853 havia dilapidado as receitas do guano pagando uma dívida interna na qual se chamou consolidação, e nesse momento a palavra “consolidado” se tornou sinônimo de corrupto. Em 1854, graças à riqueza do guano, foi possível ao Marechal Ramón Castilla, por recomendação dos liberais civis que o acompanhavam, decretar e financiar a manumissão dos escravos de origem africana. Interessou-se, igualmente, pela continuidade da política ferroviária de seu primeiro governo (1845-1851). A abolição do tributo indígena significou o desaparecimento de um recurso fiscal permanente e também o afastamento dos indígenas, que evitavam com satisfação o Estado e buscavam refúgio e proteção dentro das fazendas. Do mesmo modo, o Estado desembolsou 7.651.500 pesos para comprar a liberdade dos escravos, dinheiro que terminou beneficiando, sobretudo, os proprietários de escravos, geralmente os grandes fazendeiros da costa, mais do que os escravos alforriados, que facilmente caíram na vida nômade e em zonas insalubres. Ademais, foram efetuadas outras despesas importantes para fortalecer a marinha de guerra, construção de prédios públicos e instalação da iluminação a gás em Lima.

Porém, provavelmente o fato mais importante quanto à exploração desse produto de exportação tenha sido o que ocorreu em 1862, quando a comercialização do produto foi entregue a grandes comerciantes de Lima que formaram a Companhia Nacional de Consignação do Guano para exportá-lo de maneira monopolista a diversos países europeus. O contrato foi mantido até 1869, durante sete anos de intensos negócios, quando o jovem ministro da fazenda do presidente Balta, Nicolás de Piérola, natural de Arequipa, deixou de lado os consignatários limenhos para firmar um novo contrato com um comerciante francês radicado em Lima, Auguste Dreyfus. Por trás dessa nova política pública, que provavelmente produziria maiores benefícios e liquidez para o Estado peruano, havia a evidente intenção de afastar os comerciantes de Lima dessa importantíssima fonte de riqueza.

Esse ato de governo, como veremos adiante, traria conseqüências importantes para o futuro do país. Manuel Pardo, um dos consignatários

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limenhos, jovem político preeminente, propôs-se a formar uma composição política com intenções eleitorais, junto com os demais comerciante de Lima, com quem mantinha estreitas relações familiares, políticas e intelectuais desde os anos de 1859-1862 e que havia se reunido originalmente em torno da Revista de Lima. Assim, formaram a Sociedade Independência Eleitoral, participaram da campanha política nos anos de 1871-1872 e conseguiram construir uma primeira estrutura partidária civil, sem o apoio do governo militar do momento. Assim, rompendo as regras e a tradição dos caudilhos militares, derrotaram o candidato do presidente Balta. Diante dessa situação inusitada, a reação foi bem ao estilo clássico militar da época: uma revolta militar para impedir o triunfo do candidato civil. Porém, mais notável e surpreendente ainda foi a atitude popular em relação a essa iniciativa dos irmãos Gutiérrez, Tomás, Silvestre e Marceliano, que terminaram sendo executados pela população (julho de 1872). Em represália, os militares executaram imediatamente o presidente José Balta. Nada impediu, porém, que Manuel Pardo chegasse ao governo da República e viesse a se converter no primeiro presidente civil do Peru.

2. Civilismo liberal, guerra e reconstrução nacional (1872-1895)

Um dos aspectos marcantes desse período, segundo as pesquisas históricas mais recentes, foi o governo de Manuel Pardo (1872-1876), que em um curto período de quatro anos, deixou profundas marcas na história nacional. É preciso acrescentar, porém, que assim como se tratou de um breve período de governo, em contraposição, o grupo liberal que assumiu a direção do país já vinha se unindo desde o período de 1859-1862 em torno da Revista de Lima na qual incluía comerciantes abastados, famílias de notáveis de origem colonial, intelectuais, políticos, profissionais e universitários. O caudilhismo militar, representado pelos irmãos Gutiérrez, tentou em julho de 1872, barrar-lhe o caminho e terminaram, em uma atitude civil inédita, assassinados pela população de Lima. Dizia-se, a fim de despertar o ódio clássico da época, que por trás das turbas exaltadas é que se encontravam os adeptos do Partido Civil.

Os próprios civilistas denominaram esse período de República Prática ou República da Verdade e a intenção manifesta de seus protagonistas era iniciar

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um novo período na história nacional e ainda que pareça paradoxal, caminhar ao encontro dos ideais do início do republicanismo da independência, que haviam sido deixados de lado pelos caudilhos militares da época do guano. Era preciso construir uma nova república e esse processo tinha de ser feito sem os caudilhos, e na verdade contra eles. Por isso, Manuel Pardo formou a Guarda Nacional e começou a apoiar-se nela. Afastou-se dissimuladamente do exército, debilitou-o, descuidou dos equipamentos militares, impediu algumas compras e cometeu, dessa forma, um erro de incalculáveis conseqüências.

É preciso compreender tal fato inserido em um projeto modernizador dirigido por um partido político com pretensões de recuperar o tempo perdido e construir a “República da Verdade”. Isto é, uma república moderna, com um sistema de governo representativo, com cidadãos donos de suas liberdades eleitorais, descentralizada e com um Estado a serviço das regiões. Impulsionou-se, assim, uma reforma do Estado e exigiu-se do Congresso da época uma função legislativa mais ativa. Promulgou-se um novo Regulamento de Instrução Pública (1876), reformando-se a educação peruana por meio de um processo de secularização nos três níveis e orientando a universidade no sentido da formação dos profissionais de que o país necessitava para seu progresso. Contratou-se, à época, o francês Pierre Pradier-Fodéré para criar a Faculdade de Ciências Políticas e Administrativas na Universidade de San Marcos a fim de preparar os futuros funcionários do Estado moderno. Igualmente, no mesmo ano de 1876, foi fundada a Escola de Pontes e estradas (Escuela de Puentes y Caminos), que mais tarde se converteria na Escola de Engenheiros (Escuela de Ingenieros).

A economia passou por grandes dificuldades durante esse período. O guano praticamente havia se esgotado e os embarques se reduziram drasticamente; foi cancelado o contrato Dreyfus3 e reapareceram os consignatários. O governo, preso ao modelo econômico anterior de exportações primárias, foi em busca de um recurso que substituísse de forma realista o guano, e por isso, em 1873, estatizou as minas de salitre das províncias de Tarapacá e Arica, ao sul. Já não havia muito guano. O país dependia de outros setores econômicos, como por

3 “O processo de construção do ambicioso conceito de Estado nação civilista, que agradou a todos os meios políticos e ideológicos na época, foi executado em meio à crise econômica e social mais dramática do século XIX peruano”. Mc Evoy, Carmen, 2007. p. 245.

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exemplo, da lã, que apresentou certo auge no sul andino e também uma boa situação das exportações de açúcar e algodão, cuja produção havia triplicado entre 1866 e 1875, justamente em conseqüência da entrada de capitais oriundos do guano, que possibilitou o aparelhamento das fazendas. Manuel Pardo propôs uma reforma tributária profunda para ampliar a arrecadação de recursos ordinários permanentes e assim terminar com a prosperidade que dependia de um único produto fungível, o guano. Os tempos eram difíceis e ocorreu na época uma profunda crise fiscal em 1872-1873, que ameaçou, inclusive, o pagamento da dívida externa, a burocracia estatal e os militares. Esse período da “República Prática” é, sobretudo, uma conjuntura marcada por momentos difíceis, reforma e crise fiscal, guano e salitre, grandes conflitos políticos e a presença de um exército regelado e descontente.

A guerra contra o Chile (1879-1883)O Chile declarou guerra ao Peru em abril de 1879 a partir de dois

pretextos que pareciam inverossímeis aos peruanos: o tratado secreto firmado entre o Peru e a Bolívia bem como a nacionalização das minas de salitre, ambos ocorridos em 1873. No governo, por volta de 1878, o general Mariano Ignacio Prado havia substituído o civilista Pardo e o Estado parecia retornar a tempos que se acreditavam superados, a época do Leviatã guaneiro. O país não estava preparado para uma guerra contra o Chile e por isso, alguns meses depois, em outubro de 1879, terminado o combate de Angamos, o mar estava perdido para os peruanos. Rapidamente foram perdidas as províncias salitreiras de Tarapacá e Arica e o exército chileno avançou em direção ao norte. O general Patricio Lynch incendiou várias fazendas de açúcar ao norte, cujos donos se negavam a pagar as quotas e, ainda que pareça paradoxal, atraiu para a causa do exército invasor setores populares, as plebes urbanas e os trabalhadores asiáticos “escravizados” nas fazendas.

Dessa forma, o general Baquedano derrotou definitivamente o exército regular peruano nos arredores de Lima, em San Juan e Miraflores, em 13 e 15 de janeiro de 1881 respectivamente, entrando pacificamente na cidade. A tropa chilena transformou a grande casa da Universidade San Marcos em seu quartel-general e saqueou os bens culturais da cidade. O governo chileno deportou para o Chile personalidades de Lima, inclusive o presidente

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Francisco García-Calderón4. A derrota fora total. O único que resistiu com certo êxito foi Andrés Avelino Cáceres e seu exército de camponeses, finalmente derrotado em 1883, quando se iniciaram as duras negociações.

A guerra terminou em 1883 e como conseqüência o Peru perdeu o salitre e temporariamente as ilhas de guano, a província de Tarapacá e as cidades de Arica e Tacna. E assim, finalmente foi assinado o lesivo Tratado de Ancón (1883) que permitiu a retirada do exército chileno. A agricultura, a mineração e o comércio sofreram enormes perdas e estavam praticamente paralisados, com fazendas e minas abandonadas e arruinadas pelas quotas da guerra, lojas comerciais saqueadas pelo povo desesperado e os “peruanos notáveis” presos no Chile e desprestigiados no Peru.

A reconstrução nacional (1883-1895)Esse período é também conhecido como o do segundo militarismo,

o período dos caudilhos militares que havia saído dessa guerra, como os proprietários de fazendas andinas, Miguel Iglesias no norte e Andrés Avelino Cáceres no sul, em Ayacucho. O primeiro assinou o Tratado de Ancón com os chilenos e ambos se enfrentaram até que finalmente Cáceres, considerado herói da resistência, assumiu o poder e conduziu o país a uma penosa reconstrução política, econômica e também moral.

Enquanto os caudilhos disputavam entre si o poder, as fazendas e minas milagrosamente começaram a recuperar-se. O país voltou a adotar o modelo exportador primário, de exportação de produtos agrícolas da costa, da lã e metais das regiões andinas. Ao final do século XIX, as fazendas de açúcar se modernizaram graças aos bons preços do produto, e assim, apareceram fazendas modelo com produção e produtividade invejáveis na costa norte, como Tumán, da família Pardo, Casa Grande dos Gildemeister e Paramonga, de Grace e Cia., com capitais nacionais e estrangeiros. Além disso, as fábricas têxteis de Lima, Arequipa e Cusco, paralelamente também apresentavam bons resultados. Até mesmo as cervejarias de Lima e Cusco pareciam promissoras. O modelo econômico tradicional de exportação de produtos primários estava

4 Acaba de aparecer em Lima o dramático epistolário de Manuel Candamo correspondente a essa época. José A. de la Puente Candamo e José de la Puente Brunke (editores). El Perú desde la intimidad, epistolario de Manuel Candamo (1873-1904). Lima: Ediciones PUCE, 2007.

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instalado e funcionando. Além disso, crescia também timidamente o setor de manufaturas, e quanto ao militarismo, em razão da derrota militar, parecia chegar aos limites de sua existência.

3. A República Aristocrática e a Pátria Nova, 1895-1930Em 1895, como nos velhos tempos, produziu-se uma crise de sucessão

governamental. Faleceu o presidente Remigio Morales Bermúdez e apareceram dois fortes aspirantes: Andrés Avelino Cáceres e Nicolás de Piérola, um militar e o outro civil, porém muito próximo dos militares. Ambos, persistentes caudilhos após a guerra com o Chile, converteram a cidade de Lima em campo de batalha, o que inspirou Pedro Dávalos y Lissón, em 1905, a escrever um curioso romance intitulado Ciudad Colonial. Tal enfrentamento desatou as antigas desavenças e paixões políticas e sociais de outros tempos.

No entanto, ocorreu um estranho matrimônio político. O Partido Civil, reconstruído e encabeçado por Manuel Candamo, e o Partido Democrata de Nicolás de Piérola, entraram em acordo para apoiar este último. Assim, esse personagem iniciou um governo que inaugurou um longo período denominado por Jorge Basadre La República Aristocrática, devido ao domínio exercido pelo Partido Civil durante todo esse tempo. Entre Nicolás de Piérola (1895-1899) e José Pardo (1915-1919), o Partido Civil designou todos os presidentes do período, salvo a breve interrupção que significou o governo populista de Guillermo Billinghurst (1912-1914), também interrompido por um golpe militar que restituiu o governo aos civilistas.

Esse foi o tempo da Belle Époque, do afrancesamento dos costumes, sensibilidades, atitudes e gostos sociais em Lima e nas principais cidades do país. As chamadas famílias oligárquicas limenhas desfrutavam do poder social, cultural, político e econômico. Eram intelectuais, como os irmãos Garcia Calderón ou José de La Riva-Agüero. Eram, além disso, proprietários das empresas comerciais, fazendas e minas, e possuíam os escritórios de advocacia mais importantes da cidade capital. Ademais, como Francisco García Calderón ou José Pardo, ocuparam primeiramente a reitoria de San Marcos e em seguida a presidência da República. Pode-se com certeza afirmar que usufruíam de uma autêntica e pouco comum legitimidade social.

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Principais produtos de exportação1900-1930 (valores percentuais sobre o total)

Anos Açúcar Algodão Borracha Lã Petróleo Cobre

19001905191019151920192519281930

32 32 20 26 42 11 13 11

7 7 14 11 30 32 21 18

- 16 18 5 1 1 - -

7 8 7 5 2 4 4 3

- - 2 10 5 24 28 30

14 10 13 29 12 18 20 19

Fonte: Burga, Manuel y Flores-Galindo, Alberto. 1979. p. 73.

O quadro acima é bastante ilustrativo da estrutura das exportações peruanas daquela época. No caso, são apresentados os principais produtos exportados. A novidade ficou por conta do cobre e do petróleo, ambos na verdade vinculados às grandes empresas norte-americanas que, naquela época, ingressaram no país. As exportações de petróleo adquiriram importância nos anos 20 e o cobre se manteve sem muitas alterações. Já o açúcar e o algodão são os dois produtos mais importantes da agricultura da costa, provenientes de fazendas cujos donos eram peruanos e estrangeiros, sobretudo na costa norte. A borracha, que provinha das regiões amazônicas, teve um período bastante curto, porém devastador para as regiões afetadas, como Iquitos e Madre de Dios. A produção de lã, que de fato era representada de maneira significativa e mais estável, vinha principalmente do sul andino e contribuíam para impulsionar a economia dessa região. Eram produzidas nas fazendas e comunidades indígenas, e os grandes e pequenos comerciantes de Arequipa, que as compravam nos lugares de produção e nos pequenos mercados urbanos dominicais, exportavam-nas em seguida para a Inglaterra por meio do porto de Mollendo. Em troca, traziam produtos têxteis ingleses e franceses e outros produtos europeus que liquidaram o incipiente desenvolvimento manufatureiro têxtil na região. Em fins dos anos 20, as indústrias têxteis El Huayco (Arequipa), Maranganí, Lucre, Atahualpa e Estrella de Cusco não puderam mais competir com os têxteis europeus, especialmente os ingleses.

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O período da “Pátria Nueva” (1919-1930) foi, na realidade, uma interrupção da República Aristocrática dos civilistas. Augusto B. Leguía chegou à presidência da república (1908-1912) como aliado dos civilistas, mas em breve se afastou deles, enfrentando-os eleitoralmente em 1919. Quando ele suspeitou que pudesse ocorrer o que já era de costume, ou seja, movimentos militares para facilitar a vinda do candidato oficialista, apoderou-se do governo com o apoio da Guarda Civil e deslocou o candidato civilista, dando início à “Pátria Nueva”, um governo de onze anos consecutivos.

Em 1920, após 60 anos – como sinal dos novos tempos – foi aprovada uma nova Constituição, que trazia muitas novidades, tanto para as classes médias quanto para as populações indígenas do interior. Foi uma década de grande complexidade. O governo fortaleceu suas relações e sua dependência dos Estados Unidos e promoveu, inclusive, investimentos norte-americanos. Além disso, formou um partido político, e de certa forma, repetindo o que fizera Manuel Pardo, tratou de convertê-lo em uma organização nacional e enraizá-lo nas províncias. E para isso, enfrentou-se dramaticamente com os civilistas em várias partes do país. O resultado desses encontros foi a designação maciça de novas autoridades políticas, governadores e vice-governadores, contrários ao antigo grupo dominante civilista. Em todos os campos, seja na política, na economia ou na universidade, e na ânsia de derrotar a “velha oligarquia” civilista, o governo acabou por buscar aliados, fossem os comerciantes do interior ou os universitários de San Marcos, que pediam o co-governo universitário e a reforma da universidade.

Há um fato que provavelmente vá além da economia exportadora primária dessa época, que foi a crítica ao “gamonalismo”, ou grande latifúndio tradicional andino. Junto com essa crítica surgiu a defesa dos indígenas, de sua cultura, de sua história e de sua injusta realidade econômica e política. Em Lima, assim como nas províncias, apareceram correntes e intelectuais pró-indígenas que descobriram o índio, apoiaram suas reivindicações e os ajudaram nas grandes cidades da costa, justificando sua inquietação e explicando, ainda, as revoltas camponesas dos anos 1919-1923. O índio aparece no cenário nacional e dessa forma se produziu também seu descobrimento. Jorge Basadre costumava dizer que o índio constitui o principal descobrimento do século XX. Esse descobrimento viria acompanhado de estudos antropológicos e arqueológicos que levaram a história peruana a suas raízes distantes. Tal presença suscitou o

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debate político sobre a natureza da nação peruana, na qual se destacam Víctor Raul Haya de la Torre (APRA) e José Carlos Mariátegui (Partido Socialista). Inicia-se, a partir de então, a pregação em prol da incorporação do índio ao país. Uns sustentavam que o melhor caminho era o da educação. Os socialistas argumentavam que o “problema do índio” era na verdade o problema da terra e era preciso acabar com o latifúndio e devolver as terras a seus proprietários originais. Esse foi o início de um debate que perduraria durante todo o século XX e finalmente desembocaria na reforma agrária de 1969.

4. Leviatã moderno e exaltação popular, 1945-1975Em 1967, o sociólogo francês François Bourricaud publicou seu livro

Poder y Sociedad en el Perú Contemporáneo. A obra foi publicada simultaneamente na França e na Argentina e teve ampla e imediata difusão no Peru. Sua idéia central era analisar a emergência das classes médias, a imigração das províncias para Lima e a crise da oligarquia peruana, a fim de que se pudesse entender o Peru daquela época.

População peruana

Total Lima1876 2.651.840 100.1561940 6.207.967 562.8851961 9.906.746 1.632.3701972 13.572.052 3.002.0431981 17.005.210 4.164.5971990 22.332.100 6.414.5001995 23.532.000 6.914.000

Fonte: P. Klarén, 2005. p. 521-522.

Por volta de 1940, aproximadamente, a população peruana alcançou o nível que tivera na época pré-hispânica, imediatamente antes da Conquista. Havia transcorrido quase quatro séculos de permanente déficit demográfico e, por isso, promoveu-se inicialmente a imigração africana, em seguida a européia e finalmente a asiática. Agora a situação havia mudado diametralmente. As cifras mostram esse explosivo crescimento da população. Era uma situação

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de conseqüências imprevisíveis. A população de Lima aumentou a um ritmo ainda maior do que a população do país. No caso, os habitantes das zonas rurais se transferiram para as cidades da costa e principalmente para Lima. O objetivo não era comprar terras urbanas, ou ainda trazer trabalho qualificado, e sim procurar trabalho, saúde, educação, sobrevivência, e para isso recorriam ao expediente da invasão de terras incultas periféricas da cidade. Fincavam uma bandeira do Peru e tomavam posse dos areais. Com essas reivindicações, segundo o economista Richard Webb (1999), iniciou-se um enorme crescimento do Estado, que somente se deteve em 1975.

Estrutura econômica setorial peruana1950-1975

1950 1955 1960 1965 1968 1975

AgriculturaPescaMineraçãoManufaturaConstruçãoOutros

22.6 0.4 4.513.6 5.153.8

21.5 0.6 0.614.8 6.251.8

18.5 1.410.417.0 5.047.7

17.0 1.7 6.018.5 4.452.4

14.6 2.6 8.823.6 3.846.8

12.7 0.7 6.026.2 6.148.3

Fonte: Javier Tantaleán Arbulú. Lima, 2001. p. 452.

O quadro acima evidencia um novo modelo econômico peruano. Estamos diante de uma economia que enfatizava a substituição de importações, com um evidente desenvolvimento manufatureiro, sem que o país viesse a deixar de produzir as tradicionais mercadorias de exportação. Esse período, de enormes demandas sociais, iniciou-se no fim da Segunda Guerra Mundial, vindo em seguida a prosperidade capitalista da Guerra da Coréia, até culminar na crise dos anos 1973-1974. Em nível de acontecimentos políticos, ocorreram vários fatos inéditos. Iniciou-se com a primavera democrática da Frente Democrática Nacional (1945-1948), que terminou por ocasião do golpe militar do general Odría, o qual inaugurou um governo de oito anos, com certa estabilidade econômica, exportações tradicionais dinâmicas e grandes obras públicas. Depois de Odría viria o governo de Manuel Prado (1956-1962), que se apresentou como uma espécie de restauração oligárquica, ou canto do cisne da oligarquia peruana. A ascensão desse governante se produziu graças

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ao apoio da APRA e se justificou pela necessidade de superar o período de perseguições que seus dirigentes tinham sofrido durante o governo anterior. Nesses dois períodos, as pressões camponesas pela distribuição das terras eram incessantes.

Deve-se destacar, adicionalmente, o período de governo do arquiteto Fernando Belaúnde (1962-1968), que conseguiu derrotar a partir do pleito eleitoral o APRA, mas que terminou abruptamente com o golpe militar do general Velasco. Este foi o período na qual a influência da revolução cubana de 1959 alentou as guerrilhas dos anos 1963-1964 e se desencadeou silenciosamente uma reforma agrária espontânea iniciada pelos próprios fazendeiros diante do assédio das populações camponesas, que questionavam o antigo domínio da oligarquia dos proprietários de terras. Os movimentos sociais e políticos enfrentaram a presença norte-americana no Peru, particularmente nas minas da serra central e nos campos petrolíferos da costa norte. Essa situação conduziu ao golpe militar de outubro de 1968.

Assim, inaugurou-se o governo revolucionário das Forças Armadas, dirigido pelo general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), ocupando as instalações da International Petroleum Company em Talara, na costa norte, a melancolicamente famosa IPC, com um gesto que demonstra as intenções nacionalistas do programa desse governo que procuraria acabar definitivamente com o poder da oligarquia peruana e seus sócios estrangeiros. Isso significou o primeiro passo rumo à estatização das empresas estrangeiras. Mais adiante, em 1969, iniciou-se o processo de reforma agrária que abrangeu todas as fazendas acima de 150 hectares. O processo foi tão inesperado e surpreendente que, na verdade, tratou-se de um programa de expropriação das fazendas, sobretudo aquelas que, a fim de evadir o fisco, tinham sido subvalorizadas por seus proprietários, e por isso, em numerosos casos, o preço de compra foi tal que estes não receberam nenhuma compensação. Nesse governo, como se finalmente pudesse ser ouvida a voz de José Carlos Mariátegui, parecia que havia sido encontrada a solução definitiva, com a longa prédica socialista sobre o problema da terra: as fazendas se converteram em cooperativas agrárias ou em SAIS (Sociedades Anônimas de Interesse Social) nas regiões andinas de latifúndios agropecuários. Foi erguido um busto de Túpac Amaru II, o revolucionário de 1780-1781, a fim de colocá-lo como símbolo das empresas sociais oriundas da aplicação da lei de reforma agrária, acompanhado pela

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frase a ele atribuída ficticiamente: “Camponês, o patrão não mais comerá de tua pobreza”.

O governo militar se propôs explicitamente a desenvolver uma revolução socialista, embora os políticos e intelectuais de esquerda não o admitissem. Depois da reforma agrária, o governo de Velasco promulgou a lei da comunidade industrial, afetando assim quase que igualmente os industriais. Era um programa voltado principalmente para ampliar a cobertura educacional, acabar com o analfabetismo, respeitar a diversidade cultural e desenvolver uma universidade que atendesse às necessidades do país. A crise mundial que se iniciara em 1973, as dificuldades de conseguir empréstimos externos, as crescentes demandas sociais e a redução drástica da arrecadação fiscal, colocaram o governo diante de grandes problemas econômicos e sociais. Nessas circunstâncias, em agosto de 1975 ocorreu o golpe militar do general Morales-Bermúdez, com a intenção de frear o processo econômico iniciado em 1968, na realidade desde 1945, instalando-se um processo de restauração da democracia.

5. Regresso da ortodoxia econômica: 1975-2000A segunda fase do governo militar (1975-1980), levou à instalação de

uma assembléia constituinte e à aprovação da Constituição de 1979. Essa foi uma Constituição que consagrou a ideologia, as sensibilidades e o modelo econômico das décadas anteriores, que logo, de forma insistente, e quase pejorativamente a denominariam de populismo. Um populismo econômico, populismo de Estado, mas que serviu para domesticar, de certa forma, a exaltação popular da década. Tal episódio foi muito bem resumido e analisado pelo antropólogo José Matos Mar em seu livro Desborde popular y crisis del Estado. El nuevo rostro del Perú en la década de 1980 (Lima, 1984), o qual, muito além do livro de François Bourricaud, fala da nação inconclusa, dos imigrantes andinos em Lima, com seus novos rostos, que deveriam ser incluídos urgentemente como cidadãos plenos do novo país.

A nova Constituição, elaborada sob a presidência de Victor Raúl Haya de la Torre, tinha evidentemente uma função amortecedora. O próprio APRA cumpriu muito bem essa função desde os anos 50, priorizando o regresso à democracia, acima de qualquer demanda econômica ou crítica ao grande capital

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sem, no entanto, prever que em maio de 1980, queimando urnas eleitorais em Ayacucho, o Sendero Luminoso iniciava suas ações armadas no país. Durante essa década, o Peru teve dois governos, o de Fernando Belaúnde (1980-1985) e Alan García (1985-1990). Deve-se recordar, além disso, que a América Latina vivenciava na época, a chamada “década perdida”.

No primeiro governo, iniciou-se um processo de desmonte das reformas de Velasco com a devolução dos jornais, como El Comercio, e das empresas de rádio e televisão a seus proprietários. O projeto revolucionário do Sendero Luminoso, segundo alguns, foi contido, ou freado momentaneamente, pelas reformas militares do governo de Velasco. No entanto, essa progressão político-militar do campo para a cidade parecia impossível ser detida. A violência, o terrorismo, o assassinato das autoridades políticas e as represálias contra camponeses que não viessem a aderir a seus projetos, geraram uma enorme corrente migratória em direção às cidades. Os velhos imigrantes e seus sucessores nesse período de emergência, multiplicaram a economia informal da qual viviam e que os acostumados ao modo tradicional de vida repudiavam. Nessas circunstâncias, Hernando de Soto publicou El otro Sendero: la revolución informal (Lima, 1986) que, ao contrário do livro anterior, expressa um pedido de incorporação dos novos peruanos ao Peru realmente existente. Tal livro formulava na verdade uma proposta que partia do conceito de revolução informal, apresentando-a como sustentada por milhões de imigrantes, que tinham invadido terras, não possuíam título de propriedade, não pagavam impostos e tinham pequenas empresas informais. Hernando de Soto propunha ajudá-los a formalizar-se, entregando-lhes títulos de propriedade e simplificando os trâmites administrativos para a formalização de suas atividades econômicas.

A inflação começara a se elevar no período de 1980-1985 e parecia incontrolável. O próprio presidente Belaúnde criticou de forma veemente o pagamento da dívida externa e reduziu a percentagem das quotas anuais, por considerá-las imorais. Mais tarde, no governo seguinte, a inflação chegou a 1.722% ao ano em 1986 e um ano depois a 2.776%. Entre os anos de 1987 e 1989, a renda real caiu em 22% e atingiu os níveis dos anos 60. Nessa década, um produto não muito tradicional na pauta de exportações do Peru, no caso a folha de coca, alcançou níveis surpreendentes de comercialização. No ano de 1980 eram semeados 10 mil hectares de coca no Alto Huallaga, na selva central, e em 1986 esse número aumentou para 195 mil hectares. Essa

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produção, logicamente ilícita, era uma fonte de riqueza que recorda a prata nos tempos da colônia, o guano no século XIX ou o petróleo no século XX. Porém, infelizmente, ao ser convertida em cocaína, gera efeitos devastadores em seus consumidores. Muito bem informado do que ocorria, o Sendero Luminoso transferiu-se para essa região e desenvolveu um programa de cobrança de quotas aos cultivadores e narcotraficantes, o que lhe permitiu recrutar milicianos pagos e equipar-se adequadamente para tentar tomar a cidade agressivamente.

O país vivia uma situação de emergência, de guerra e constante assédio às cidades, sobretudo Lima, por parte do Sendero Luminoso. Nessas circunstâncias, em 28 de julho de 1987, o presidente García, surpreendendo muitos de seus próprios partidários, e a partir de uma leitura muito pessoal da conjuntura mundial, anunciou a estatização dos bancos privados. Era uma reação ao escasso reinvestimento no país bem como aos abundantes depósitos de capitais nacionais em bancos estrangeiros. Foi o início da deterioração de sua aceitação pela sociedade e as reações foram de diversos tipos. Na realidade, Alan García anunciou uma medida que parecia ressuscitar a heterodoxia das reformas militares. Isso provocou grande mal-estar social que se acrescentava a uma descomunal inflação, drástica redução dos rendimentos reais, escassez de alimentos e intermináveis filas. Assim, surgiram manifestações na sociedade civil que pregavam o regresso à ortodoxia, convertendo Mario Vargas Llosa, grande romancista peruano, do dia para a noite, em novo símbolo da reforma econômica ortodoxa para conter a crise, a inflação, o terrorismo e a miséria popular.

As surpresas viriam rapidamente quando um outsider, um desconhecido ex-reitor da Universidade Nacional de Agronomia, derrotou o laureado novelista e iniciou um severo programa de reformas econômicas. Para tanto, colocou em ação tudo o que Vargas Llosa propusera, ou seja, um programa de estabilização típico do FMI para frear a inflação. O programa incluía a reinserção na economia internacional, liberalização do comércio, reinício do pagamento da dívida externa, estímulo ao investimento estrangeiro, controles de preços, eliminação de subsídios e privatização das empresas estatais. Na verdade, Vargas Llosa propunha uma cirurgia neoliberal, mas Alberto Fujimori executou essa mesma cirurgia sem anestesia. Fujimori assumiu o governo em 28 de julho de 1990, anunciou as reformas urgentes e nos primeiros dias de

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agosto ditou o que começou a ser chamado de “Fujichoque”. O povo em Lima emudeceu, perambulou durante os dias seguintes e o país paralisou-se, como se uma imensa tomada de consciência tivesse se difundido entre a população, uma tomada de consciência da inevitabilidade desse “fujichoque”. Assim, não houve distúrbios nem protestos irados, e sim, na verdade, imobilidade, resignação e docilidade civil.

Logo em seguida, viria um gigantesco processo de desregulamentação das empresas estatais que, na realidade, constituiu-se em uma espécie de privatização do Estado. Essas reformas econômicas e o regresso à ortodoxia liberal ou neoliberal foi acompanhada por severa luta anti-subversiva, bem sucedida em termos gerais, e por restrições aos poderes legislativo e judiciário do Estado, auto-golpe de 5 de abril de 1992, fechamento do Congresso e convocação de um congresso constituinte democrático. Este último culminou com a nova Constituição de 1993 que recolhia a ideologia, as sensibilidades e as reformas em marcha. Além disso, abriu as portas para a reeleição do presidente por meio de emendas e “interpretações autênticas” da Constituição. Isso o levou a duas reeleições sucessivas, a segunda evidentemente fraudulenta, e ao aumento das críticas a sua gestão, o que nos faz recordar as duas reeleições sucessivas do presidente Augusto B. Leguía, que terminou deposto por um golpe militar, encarcerado e, por fim, morto em uma prisão. Por que motivo voltou-se a cometer o mesmo erro, estando tão próxima e sendo tão clara a lição anterior?

6. O passado redivivo? Crescimento e recuperação democrática, 2001-2006

As despesas governamentais em termos per capita passaram de US$ 1.059 em 1975 para US$ 1.990 em 1990. Não obstante, a arrecadação fiscal entre essas mesmas datas caiu de US$ 710 por pessoa para US$ 159. Do mesmo modo, o crescimento da produção se deteve nos anos 80 e entrou em colapso entre 1988 e 1990. Em contraposição, como podemos ver no quadro abaixo, a população continuou a crescer. Em 1940, 6% da população peruana tinha educação secundária ou universitária, e esse número subiu para 55% em 1990.

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Matrículas em Universidades1940-2006

Anos Públicas Privadas Total

19401945195019551960196519701975198019851990199520002006

2.324 7.86113.15412.49027.04054.17081.486

127.819183.317228.270233.625242.438254.732285.876

1.0461.1081.5151.7223.207

10.50627.74453.85273.903

126.424126.153158.300171.297282.219

3.370 8.96914.66914.21230.24764.676

109.590181.671257.220354.694359.778400.738426.029568.095

Fonte: Resumo Estatístico Universitário – 2005, Edição da ANR. Lima, 2007. p. 53.

Além disso, entre as mesmas datas, o número de alfabetizados passou de 42% a 86%, enquanto que as matrículas nas universidades aumentaram de 3.370 alunos em 1940 para 568.095 em 2006, sendo que o número de matrículas nas instituições públicas e privadas foram quase idênticas. Essa massificação da educação superior traria consigo uma série de conseqüências importantes, entre elas a crise e instabilidade da universidade pública e a preferência das classes médias pela universidade privada. Mas, as mudanças mais importantes, como anota Richard Webb (1999), ocorreram no nível da subjetividade social: agora havia um enorme contingente cujas expectativas não podiam ser satisfeitas. Em geral, essa nova população exigiria novos postos de trabalho, postos de melhor qualidade e melhores remunerações. Por isso, a insatisfação social aumentou perigosamente.

Entramos, assim, no período do presidente Alejandro Toledo, 2001-2006, que se propunha a duas grandes tarefas: um desenvolvimento econômico sustentado e a recuperação da democracia. Para alcançar este último resultado, a ênfase foi depositada no respeito às instituições democráticas e ao Estado

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de direito, e nesse particular é preciso reconhecer o trabalho da Comissão da Verdade e reconciliação nacional.

A Comissão da Verdade – breves aspectos

Perdas materiais ocasionadas pela subversão: US$ 20 bilhõesNúmero de mortos: 69.280Mortos em Ayacucho: 40% do totalVítimas em zonas rurais: 79% do total.

Fonte: Cinco anos. Lima, 2006. p. 41.

Durante esse governo foi também iniciada a reforma do Estado e da administração pública. Iniciou-se a descentralização como “... uma das primeiras reformas para a modernização do Estado e da sociedade” (p. 90). No entanto, o maior esforço foi feito na recuperação econômica e no crescimento sustentado.

Evolução das exportações(médias qüinqüenais em US$ milhões)

1981-19851986-19901991-19951996-20002001-2005

3.1902.9754.0746.30010.629

Fonte: Cinco Anos, 2006. p. 131.

Paralelamente a esse incremento das exportações, ocorreu uma melhoria da arrecadação fiscal. Os indicadores macroeconômicos, conforme aparecem na publicação que resume o desempenho do governo de 2001 a 2006 são verdadeiramente alentadores: trata-se de uma economia em crescimento sustentado, como não ocorria nos últimos 30 anos. Essa certa folga orçamentária permitiria iniciar vários programas nos setores tradicionais de investimento ou despesa estatal, como por exemplo, a melhoria das remunerações do magistério nacional, onde professores primários e secundários viram seus salários quase dobrarem neste período. Iniciou-se, adicionalmente, uma importante melhoria

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das remunerações dos docentes universitários a partir da aplicação de um programa denominado homologação das remunerações desse setor com a dos magistrados do poder judiciário. Da mesma forma, foi dada maior ênfase à luta contra a pobreza.

Ano Pobreza Pobreza extrema

20012002200320042005

53.353.852.251.648.8

24.124.221.919.218.1

Fonte: Cinco anos, 2006. p. 165.

A constante melhoria dos preços dos metais no mercado internacional

ajudou a estabilizar a economia peruana. A abertura em direção aos mercados internacionais permitiu que muitos produtos agrícolas peruanos novos encontrassem mercados valorizados. Muitas regiões do interior começaram a produzir para o mercado internacional, e falava-se da serra agroexportadora. Faltavam ainda, porém, muitas obras de infra-estrutura viária e uma autêntica reforma da educação pública em todos os níveis. Falta muito por fazer para combater a pobreza, como indicam as cifras acima. O modelo econômico peruano atual tem, evidentemente, uma estrutura primária exportadora, que privilegia o crescimento econômico sobre a distribuição da riqueza e a empresa privada sobre a participação do Estado, dando prioridade ao investimento. Caso tudo isso ocorresse dentro de uma economia industrial, poderia gerar mais trabalho e efetivamente reduzir a pobreza. Em nosso caso, porém, com o atual modelo econômico, o resultado é muito duvidoso. O editor da revista Punto de Equilíbrio, da Universidade do Pacífico, instituição privada especializada em economia e administração de empresas e da qual saem freqüentemente os ministros da Economia, sugere que o modelo atual chegou a seu limite e que se deveria procurar outro: “... o boom de riqueza nos permite optar por um modelo econômico mais solidário, que promova o desenvolvimento econômico”5. Esta parece ser a tarefa daqui em diante.

5 Alva, U. Nikolai. “La inflación no es un problema”. In: Revista Punto de Equilibrio. Lima: Universidade do Pacífico, ano 17, n. 97, maio de 2008. p. 4.

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Manuel Burga

Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 203

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Aristocrática. Lima, 1979.Burga, Manuel e Wilson Reátegui. Lanas y capital mercantil en el sur. La casa

Ricketts, 1895-1935. Lima: Ediciones IEP, 1981. Burga, Manuel. La historia y los historiadores en el Perú. Lima: Ediciones de la

UNMSM, 2005. Cinco Años. Crecimiento económico sostenido y recuperación democrática. El gobierno de

Alejandro Toledo, 2001-2006. Lima, 2006.Contreras, Carlos e Marcos Cueto. Historia del Perú contemporáneo. Lima, 2000.Dávalos y Lissón, Pedro. La primera centuria. Causas geográficas, políticas y económicas

que han detenido el progreso moral y material del Perú en su primer siglo de su vida independiente. 2 volumes. Lima, 1926.

De Soto, Hernando. El otro sendero: la revolución informal. Lima, 1986.Demélas, Marie-Danielle. La Invención política. Bolivia, Ecuador, Perú en el siglo

XIX. Lima, 2003. Gootenberg, Paul. Caudillos y comerciantes. La formación económica del Estado peruano

1820-1860. Lima, 1997. Klarén, Peter. Nación y sociedad en la historia del Perú. Lima, 2005. Mc Evoy, Carmen. La utopía republicana. Ideales y realidades en la formación de la

cultura política peruana (1871-1919). Lima, 1997. Mc Evoy, Carmen. Manuel Pardo, la política y sus dilemas, 1871-1878. Lima,

2007.Matos Mar, José. Desborde popular y crisis del Estado. El nuevo rostro del Perú en la

década de 1980. Lima: IEP, 1984. Resumen Estadístico Universitario – 2005. Lima: Edición de la Asamblea Nacional

de Rectores, 2007.

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Novos olhares sobre a formação econômica peruana

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Tantaleán Arbulú, Javier. Poder y servidumbre. Ensayos de historia, economía y política. Lima, 2001.

Thorp, Rosemary e Geoffrey Bertram. Perú 1890-1977: crecimiento y políticas en una economía abierta. Lima: Mosca Azul, 1985.

Webb, Richard. Una economía muy peruana. Lima: Ediciones Congreso de la República, 1999. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Vista geral sobre aeconomia do Surinamenos séculos XIX e XXJerome Egger*

Introdução

O lhar em direção ao norte era natural para o Suriname. O Sul continha somente mistérios para os povos concentrados na região costeira do país. Apesar de ser o território um pedaço do continente sul-americano, dava-se pouca atenção a ele. Como colônia holandesa a partir de 1667 até a independência em novembro de 1975, era comum aceitar a palavra da metrópole praticamente sobre qualquer assunto. Ao mesmo tempo, contudo, existia suficiente espaço para agir dentro da estrutura colonial. A análise dos acontecimentos econômicos a partir do século XIX até agora deixa claro que certos padrões estabelecidos no período colonial ainda não desapareceram. Neste escrito farei uma apresentação geral da economia surinamesa desde o início do século XIX até nossos dias. O principal argumento apresentado neste ensaio é que sempre houve uma espécie de monocultura, primeiro na agricultura propriamente dita e, mais tarde, na mineração. Embora economistas

* Universidade Anton de Kom do Suriname. [email protected]

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Vista geral sobre a economia do Suriname nos séculos XIX e XX

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e politicos aceitassem que era necessário diversificar, um longo tempo se passou até serem tomadas providências em tal sentido. A diversificação da economia é um processo agora em andamento embora poucos produtos a dominem.

Uma economia de grandes fazendasNo início do século XIX, a idéia de grandes fazendas influenciou toda

a sociedade. Nesse aspecto, o Suriname sintetiza o panorama geral do Caribe com sua história de escravidão e açúcar. Esse último produto foi um dos principais no Caribe. No entanto, aos poucos novos produtos surgiram. Café, cacau e algodão também chegaram aos campos das fazendas.

Na primeira metade do século XIX houve ciclos de lucros e perdas. A economia agrícola surinamesa havia sobrevivido a uma forte crise em 1773, quando a bolsa de valores de Amsterdam registrou queda substancial. O país já não seria tão lucrativo como antes. Mas é preciso rever a impressão existente na historiografia do Suriname de que, após aquele ano, a economia de grandes fazendas entrou em colapso. O absenteísmo aumentou, e um número significativo de proprietários de fazendas não residia em suas propriedades. Por outro lado, foram feitos investimentos de maneira que podem não ter sido as coisas tão ruins como alguns as descreveram. Conforme escreveu um historiador, os agricultores no século XIX procuravam a subsistência enquanto outros exploravam suas terras tanto quanto pudessem a fim de partir o mais rapidamente possível com os bolsos cheios.

Nas primeiras décadas do século XIX, o algodão mostrou-se lucrativo. Aumentaram os investimentos nesse plantio. Não apenas capital batavo mas também inglês chegou ao Suriname. Cerca da metade do século, o preço do açúcar aumentou novamente. Isso levou ao interesse dos bancos em proporcionar recursos adequados para que a produção pudesse crescer. Comparados com o século anterior, decresceram drasticamente os investimentos. Algumas fazendas, no entanto, conseguiram modernizar a produção, e as máquinas a vapor foram introduzidas. O Suriname, desse modo, perdeu seu atrativo como lugar em que rapidamente se podia fazer fortuna. Mesmo assim, agricultores individuais e proprietários de fazendas conseguiram obter bons lucros e em geral continuaram a produzir alimentos básicos para o mercado europeu.

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Outro aspecto da economia de fazendas foi o trabalho forçado em uso a partir de meados do século XVII. A escravidão foi abolida em 1863. Com a libertação de todos os escravos, as fazendas perderam parte de sua força de trabalho. A solução foi contratar trabalhadores. O governo colonial recrutou homens e mulheres na Ásia para trabalharem no Suriname assim como trabalhadores de ilhas caribenhas, Barbados, por exemplo, onde havia excesso de mão-de-obra. O Suriname é um dos países onde as necessidades econômicas produziram uma sociedade multicultural. Os primeiros a chegar foram os chineses, num pequeno grupo em 1853, mas logo deixaram de ser mão-de-obra agrícola para tornar-se pequenos mascates e mais tarde proprietários de lojas na capital, Paramaribo, onde se notou sua presença a partir do final do século XIX. Os indianos vieram em 1873 e se tornariam o mais numeroso grupo de trabalhadores sob contrato. Cerca de 34 mil chegaram ao país. Os últimos foram os javaneses da Indonésia, que chegaram em 1890. Também faziam parte do império colonial holandês na Ásia. No caso deles, não foram necessárias negociações e garantias, como ocorreu com os indianos, que eram súditos britânicos. Os trabalhadores sob contrato foram responsáveis pela extensão da vida das fazendas, mas não conseguiram salvá-las. Quando os contratos expiraram, a maioria ou voltou a seu país ou aceitou uma parcela de terra para cultivar. Tornaram-se pequenos agricultores que aos poucos acumularam capital e se tornaram parte do panorama multiétnico do Suriname.

Atividades econômicas depois de 1863Os anos seguintes a 1863 foram de grandes mudanças em nossa

economia. Os antigos escravos pouco a pouco se afastaram das fazendas. Circunstâncias diversas possibilitaram-lhes achar trabalho em outros ramos da economia. Alguns se tornaram pequenos agricultores, e um dos distritos, Coronie, mostrou claramente que eles não deixaram de lado a agricultura completamente. Esse lugar continuou a ser habitado quase exclusivamente por ex-escravos que não interromperam a produção de alimentos. Produziam mel, e várias famílias criavam suínos. O coco possibilitou a extração de óleo, e as fibras serviam para a confecção de esteiras. Não é verdadeira a idéia de que os antigos escravos se recusavam a realizar qualquer trabalho relacionado às fazendas porque isso lhes recordava a escravidão. Alguns tiveram muito êxito nos negócios com o cacau.

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Próximo ao final do século XIX, o cacau se tornou mais lucrativo do que nunca. Durante alguns anos chegou a superar o açúcar tornando-se o mais valioso artigo de exportação. No ano de 1895 foram exportados quase 4,5 milhões de quilos de cacau, a maior quantidade em todos os tempos. Infelizmente, o produto era facilmente afetado por enfermidades. Uma dessas destruiu as árvores depois de 1895, e o país perdeu um produto importante. A produção declinou e, embora no século XX tenha melhorado, nunca mais chegou aos mesmos níveis anteriores. O cacau era cultivado não apenas em grandes fazendas mas ainda em pequenas propriedades por camponeses individuais, a maioria creoles. Todos ganharam muito dinheiro quando os preços atingiram o auge.

Outra possibilidade para os filhos de escravos participarem ativamente na economia foram as riquezas florestais. Foi encontrado ouro, e isso levou a uma corrida para o interior, primeiro indivíduos e em seguida grandes companhias que desejavam investir em ampla escala. O interior do Suriname se revelou difícil para o uso de equipamento pesado naquele tempo, e muitas empresas faliram. Homens que trabalhavam por conta própria, chamados porkknockers, ou em pequenos grupos, tiveram êxito e encontraram jazidas importantes. Em 1895 produziram cerca de 748 quilos, um ano depois 846 e em 1897 aproximadamente 905. Isso dá uma boa indicação de como se desenvolvia rapidamente a mineração de ouro. Cerca de 5 mil homens se ocupavam dessa atividade. Esse é outro motivo de sua importância naquela época. Fornecia trabalho a creoles que haviam abandonado as fazendas e viviam na única cidade, Paramaribo, onde o emprego era escasso. As famílias dependiam de homens que trabalhavam no interior durante meses e que, voltando à cidade, exibiam sua riqueza. Canções que ainda são populares nos recordam esses tempos. Fortunas foram dissipadas, mas houve gente que as usou muito bem: construíram casas e pagaram estudos para os filhos. No final das contas, permaneceu a possibilidade de voltar à selva para procurar mais ouro.

Outro negócio que aumentou naquele tempo foi a borracha natural, a “balata”. No início do século XX, o Suriname exportava balata. Alguns dos principais produtores conseguiram lucros importantes. Entre 1893 e 1911 cerca de 6.266 toneladas seguiram para mercados estrangeiros e no apogeu mais de 5.600 homens ganhavam a vida com esse negócio. As empresas estavam situadas na parte mais ocidental do país, Nickerie. Assim como em relação ao ouro, os homens deixavam as famílias para trabalhar no interior

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“sangrando” as árvores para recolher o máximo da seiva leitosa. A balata era então usada como uma das substâncias para materiais isolantes e para a fabricação de pneumáticos para automóveis. Mais tarde, a borracha sintética tornou supérflua a balata.

Crescente participação de trabalhadores contratadosOs trabalhadores contratados também participavam na economia.

Assinavam contratos por cinco anos e após a expiração podiam renová-lo, voltar aos países de origem ou aceitar uma parcela de terra em troca da passagem de regresso. Após 1895, a maioria dos trabalhadores indianos permaneceram no Suriname porque receberam um terreno sem perder o direito a voltar à Índia. Uma de suas maiores contribuições foi o cultivo de arroz. Os africanos conheciam o arroz, mas em geral plantavam a variedade seca ao passo que os indianos, a variedade úmida. No início do século XX, a produção aumentou e o país não precisou buscar de fora tanto quanto em anos anteriores. Além disso, numerosos pequenos camponeses receberam terras nos arredores de Paramaribo, onde plantavam legumes e produziam leite. Vendiam seus produtos na cidade e puderam acumular capital. Compraram mais terras, construíram moradias melhores e aos poucos perceberam a necessidade de mandar os filhos à escola, embora isso ocorresse mais tarde e fosse inicialmente aplicado aos meninos. Só depois da Segunda Guerra Mundial puderam as meninas ir à escola.

Os javaneses ficaram nas fazendas por mais tempo. Eram súditos holandeses e não receberam as mesmas regalias que os indianos. Além disso, o maior grupo chegou nas décadas de 1920 e 1930, quando já havia cessado a contratação de mão-de-obra na Índia. A maioria trabalhava nas fazendas e só mais tarde receberam pequenos terrenos. Alguns, então, se tornaram camponeses.

Os chineses jamais constituíram parte numerosa da população, mas não se pode subestimar sua influência. Tinham suas próprias lojas, e deles a população dependia para ter acesso a produtos básicos. Muitos permitiam aos clientes manter uma conta. Podiam comprar e pagar depois. Em tempos difíceis economicamente, isso permitia a sobrevivência de muitas famílias. No entanto, os chineses também encontraram dificuldades com a área de negócios no país, especialmente quando estabeleciam suas próprias firmas para importar mercadorias. Isso os fazia competir com interesses já estabelecidos.

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Em 1911 houve uma guerra verbal entre os chineses e algumas firmas antigas. Anúncios em jornais advogavam o boicote às lojas de chineses. Esses reagiram conclamando seus compatriotas a não comprar por atacado naquelas empresas. Após alguns meses, ambos os lados conseguiram entender-se, mas esse episódio mostra que os chineses tinham sido capazes de penetrar em um setor muito lucrativo da economia.

Estabelecimento da indústria da bauxitaNo final das décadas de 1940 e 1950, o Suriname se tornaria um dos

mais importantes produtores de bauxita no mundo. Começou tudo no início do século XX quando os norte-americanos começaram a procurar bauxita fora de suas fronteiras. A bauxita é a matéria-prima do alumínio. As indústrias aeronáutica e bélica precisavam desse material para produzir o que necessitavam. As duas guerras mundiais no primeiro meio do século exigiam grandes volumes desse metal, e o Suriname lucraria com o seu crescente uso.

A Aluminum Company of America (Alcoa) entrou no Suriname quando ficou evidente que o material avermelhado que tinha sido usado para pavimentar ruas na capital, Paramaribo, era bauxita em alto grau de pureza. Os norte-americanos tinham usado bauxita européia anteriormente à eclosão da Primeira Guerra Mundial. Os navios que levavam cereais dos Estados Unidos para a Europa voltavam cheios de bauxita. Essa barata forma de transporte ficou prejudicada com a guerra, em 1914. A Alcoa, então, procurou bauxita mais perto. A vizinha do Suriname, a colônia inglesa da Guiana, já descobrira a possibilidade de fornecer a bauxita necessária. No caso do nosso país, amostras enviadas à Alemanha revelaram que a bauxita capaz de ser explorada comercialmente era suficiente para suscitar interesse. A Alcoa obteve as licenças necessárias para estabelecer uma empresa na parte oriental do Suriname. Uma pequena e sonolenta cidade chamada Moengo se tornou a sede da empresa, e as operações começaram em 1916.

A Alcoa estabeleceu uma subsidiária chamada Surinamsche Bauxite Maatschappij (SBM – Surinam Bauxite Company) em 1916. Incrementaram-se as explorações para descobrir as jazidas mais promissoras. O governo permitiu que a empresa touxesse trabalhadores da Indonésia porque não havia mineiros suficientes no país. Isso é notável porque trabalhadores contratados foram trazidos ao Suriname para continuar a produção agrícola nas fazendas.

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No entanto, as exportações não começaram imediatamente. As leis do Suriname tiveram de ser mudadas para permitir que uma empresa estrangeira se ocupasse de mineração. O Parlamento Colonial no país e o governo holandês não concordavam entre si. Passou-se algum tempo até que a lei fosse adotada em 1º de janeiro de 1920. Todos os preparativos que vinham se desenvolvendo resultaram em uma indústria que dominaria a economia surinamesa daí por diante e continua a dominá-la no século XXI.

A lei que regulou as atividades mineradoras no país revelou-se muito generosa para com a SBM. A inexperiência com empresas estrangeiras e com operações de grande escala no Suriname e na Holanda tornaram possível a aprovação da lei. Em poucos anos, a empresa absorveu todas as reservas conhecidas de bauxita. Sua influência na economia surinamesa aumentou. Em janeiro de 1922, a primeira exportação de bauxita seguiu para as fábricas da Alcoa nos Estados Unidos, e outras ocorreram no mesmo ano.

As operações em Moengo se expandiram rapidamente. Mais operários encontraram trabalho na empresa, e uma trituradora foi levada às minas a fim de quebrar o mineral em pedaços menores. Todas essas atividades em rápido aumento acenavam para bons lucros e investimentos rentáveis. Em 1924, as exportações de bauxita quintuplicaram em relação ao primeiro ano. A SBM continuou a busca de jazidas no Leste, e em beve todas as fontes passaram a pertencer a suas concessões.

Outra esperta providência da SBM naqueles anos foi a substituição dos engenheiros norte-americanos por holandeses. O governo do Suriname assim havia solicitado porque havia planos de expansão das operações, e era preferivel ter holandeses nessas ocupações. A SBM não objetou; ao contrário, teve êxitos ainda maiores. Outra fábrica foi construída para lavagem e trituração de bauxita em 1925, e um número ainda maior de operários encontrou emprego em Moengo. Em resumo, enquanto o açúcar se mantinha lucrativo na década de 1920, a indústria da bauxita progredia.

Atividades econômicas nas décadas de 1920 e 1930Embora seja compreensível que o foco na década de 1920 se fixasse na

indústria da bauxita, não se deve esquecer que outros produtos igualmente contribuíam para o bolo de exportação. As atividades econômicas do país

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continuaram a ser dominadas pela produção agrícola. Tomemos 1920, por exemplo: o açúcar e o cacau foram os produtos de maior valor enviados a mercados externos. A balata ficou em terceiro, seguida pelo café, ouro e madeira. Em 1925 continuava o açúcar a ser o produto mais importante, seguido pela balata e pelo café, muito próximo da segunda. No entanto, a situação começou a mudar cerca do fim dos anos 20. As divisas tinham, em 1930, a sua maior fonte na bauxita, seguida pelo café, balata e açúcar. Até acabar a década continuou a ser a principal origem de moeda estrangeira.

Não se devem esquecer outras atividades econômicas. Os pequenos camponeses chegavam aos mercados com legumes, produtos alimentícios e frutas que em muito contribuíam para a nutrição das pessoas. A produção de arroz aumentou, e isso tornou possível reduzir cada vez mais as importações. O comércio com os Estados Unidos e a Holanda superava as trocas com todos os outros países, mas de vez em quando artigos de jornais indicavam pequenas mudanças. Os jornais da época traziam vez por outra pequenos anúncios que mostravam terem chegado ao mercado quantidades pequenas de carne da Argentina. O mesmo, em quantidades reduzidas, ocorreu com produtos brasileiros. Em geral, porém, os países mencionados mais acima dominavam o panorama econômico.

O Suriname não escaparia da crise econômica mundial após o colapso da bolsa de valores norte-americana em 1929. Pode-se argumentar que essa crise começou até mesmo antes porque, após a curta expansão posterior ao fim da Primeira Guerra Mundial, a estagnação passou a caracterizar a economia local. As importações costumavam exceder as exportações na década de 1920, e muitos não encontravam emprego. As fazendas preferiam mão-de-obra sob contrato. Quando a Índia proibiu que os seus habitantes fossem recrutados, os trabalhaores, em sua maior parte, passaram a vir das Índias Orientais (chamadas hoje Indonésia). Isso continuaria até a Segunda Guerra Mundial, em 1939. A guerra tornou as travessias marítimas bastante perigosas, e, além disso, as perturbações na Ásia causadas pela expansão japonesa também impediram a chegada de mais javaneses.

A década de 1930 foi ainda mais sombria. Os preços das commodities despencaram no mercado mundial, com efeitos ainda mais graves para países pequenos como o Suriname. A indústria da bauxita teve de reduzir suas operações. Trabalhadores foram despedidos, as receitas para o país declinaram,

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e o número de navios de transporte de minério diminuiu. Em 1930, 700 pesssoas trabalhavam para a SBM, e um ano depois esse número caiu para 400. Os salários foram reduzidos, e a semana de trabalho ficou menor. Em 1933, só 242 homens trabalhavam para a empresa. Esse dado mostra o que estava ocorrendo no país. Entre as iniciativas governamentais para reduzir a pobreza incluíam-se projetos para estimular as pessoas, especialmente na capital, a voltar ao campo e cultivar seus próprios alimentos. Muitos interessados receberam permissão para voltar às minas de ouro, mas, no final das contas, o efeito foi pouco significativo. Pelos fins dos anos 30, a economia progrediu mais.

A Segunda Guerra Mundial e a economia surinamesaA economia do Suriname lucrou da guerra de várias formas. A extração

da bauxita retomou o vigor por volta de 1938 e já se produzia mais que antes. Ao começar a indústria relacionada à guerra a trabalhar em tempo integral nos Estados Unidos, recebeu o Suriname boas notícias. No começo da guerra perderam-se alguns navios cargueiros, destruídos por submarinos alemães, mas, depois de os norte-americanos terem encontrado meios de atacá-los, nada podia impedir que a bauxita chegasse às fábricas americanas. Em 1942 e 1943, o Suriname foi o seu maior fornecedor. A bauxita era tão importante que soldados foram mandados para proteger as minas.

Na fronteira leste, a Guiana Francesa pertencia ao regime de Vichy na França, que simpatizava com a Alemanha de Hitler. Além disso, os Estados Unidos também sabiam que os alemães planejavam prejudicar ao máximo o transporte de matérias-primas para seu país. Finalmente, os norte-americanos conseguiram remover o governo da Guiana Francesa e colocar em seu lugar outro mais favorável às forças aliadas. Soldados surinameses participaram ajudando a construir um bom aeroporto e uma ligação rodoviária até a capital. A Holanda tinha sido invadida pela Alemanha em maio de 1940. Haver soldados norte-americanos no Suriname fazia o povo sentir-se mais protegido. Os surinameses também conheceram a eficiência norte-americana, que deixou impressão duradoura, e isso, junto com os filmes de Hollywood, elevou o país na visão dos surinameses.

A guerra fez mais que desenvolver a extração da bauxita. A construção de melhores instalações para a proteção do país criou empregos em geral bem

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pagos pelos norte-americanos. Pequenos camponeses vendiam seus produtos e ganhavam mais do que poucos anos antes. O povo tinha dinheiro para comprar ovos, carne, legumes e outros produtos. O país prosperou. Havia mais recursos para educação. Os alunos continuavam os estudos após o nível primário. Novas escolas foram construídas, e os livros holandeses necessários não estavam disponíveis. As pessoas dependiam, cada vez mais, de revistas e livros dos Estados Unidos. Em suma, a guerra mostrou ao povo que a Holanda não era o único lugar do mundo para onde voltar os olhares.

Desenvolvimento econômico no pós-guerraApós 1945, as coisas mudaram no Suriname. Durante a guerra não foi

necessário, pela primeira vez em muitos anos, que suplementasse a Holanda o orçamento anual. Além disso, compreenderam os holandeses a precisão de uma economia planificada para o Suriname transformar-se em um Estado moderno. Os primeiros planos de desenvolvimento econômico foram preparados e executados. Tudo começou com o chamado Fundo de Prosperidade (Welwart Fonds) em 1947. Os recursos foram dedicados a uma exploração ampla das possibilidades econômicas do país. Cientistas saíram de seus laboratórios para viajar ao interior do país e analisar o solo, verificar o potencial da floresta e procurar minerais que pudessem contribuir para o desenvolvimento futuro do país. Cartógrafos realizaram valioso trabalho ao delinear um mapa confiável do país inteiro. Em alguns casos foram a lugares onde nenhum ser humano jamais havia estado. Foi a primeira vez que se trabalhou tanto para desenvolver outros setores da economia.

Em conseqüência da ação do governo surgiram novas indústrias. Uma empresa holandesa fundou uma fábrica moderna de madeira, que utilizava árvores do interior. A Bruynzeel se tornou famosa não só no Suriname mas ainda em países do Caribe e mesmo em alguns sul-americanos, como a Venezuela. Suas casas pré-fabricadas com madeira de boa qualidade duravam mais do que as pessoas imaginavam. A terra foi preparada para estimular atividades agrícolas em grande escala. O sistema holandês polder tornou possível aumentar rapidamente o cultivo do arroz. A economia prosperou, mas, embora a diversificação trouxesse novas indústrias, a bauxita ainda era a principal.

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Durante um curto período após a guerra, decresceu a demanda pela bauxita, mas não tardou muito para ela recuperar-se. A Guerra Fria novamente fez a indústria bélica produzir grande volume de armamentos. A SBM expandiu sua produção no Suriname depois de 1949. Em 1946 houve longas negociações entre a empresa e o Suriname para decidir o futuro da indústria no país. Dessa vez se procurou lucrar mais com a bauxita que no contrato assinado em inícios dos anos 20, em circunstâncias bem diferentes. Essas longas e difíceis negociações resultaram em um acordo que satisfez ambas as partes. Além disso, quando começou a Guerra da Coréia em 1950, a demanda de alumínio foi tão elevada que a produção de bauxita aumentou rapidamente.

Além de investimentos para explorar as possibilidades econômicas no Suriname, o pós-guerra também foi marcado por maiores recursos para a educação. O governo desejava elevar o nível da educação porque seria a única forma de fazer o país progredir. As instituições de treinamento de professores, estabelecidas como escolas diurnas, foram importantes nesse processo. Antes da guerra, tais escolas funcionavam em tempo parcial, à tarde e à noite. Um número maior de professores foi treinado para viajar aos distritos no interior e dar aulas fora da capital. Outro fato importante foi a criação de uma escola secundária a fim de preparar os alunos para os exames de admissão às universidades. No caso do Suriname significava isso que os estudantes podiam seguir todos os cursos no país antes de ir para as universidades na Holanda. Também houve maior número de bolsas disponíveis para estudantes locais. Não apenas os filhos das elites podiam estudar nas universidades mas também um crescente número de rapazes da classe média (e algumas moças) tiveram a chance de viajar ao exterior e regressar com um grau universitário. No final da década de 1950 e na de 60, os resultados foram visíveis no número de ministros que haviam estudado no exterior e que não pertenciam ao tradicional escol de pele clara. Alguns dos gerentes de bancos e de empresas de seguros, advogados, médicos e funcionários públicos agora provinham de uma diferente classe da população. As pessoas dessa camada substituíram a velha guarda e em poucos casos se juntaram a ela. As empresas estrangeiras também começaram a dar emprego a esse novo grupo de nacionais instruídos.

As décadas de 1960 e 1970Pode parecer um tanto monótono, mas a bauxita voltou à ribalta na década

de 60. Grandes investimentos norte-americanos levaram à primeira indústria

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integrada em um país em desenvolvimento. A bauxita era transformada em alumina, e, finalmente, o Suriname passou a produzir alumínio. Antes que isso corresse em 1965, outro acordo foi assinado com a SBM. O chamado acordo de Brokopondo é importante porque outros acontecimentos provieram daquela folha de papel. O governo surinamês e a Alcoa norte-americana se comprometeram a desenvolver ainda mais a indústria. A Alcoa se dispôs a construir uma represa hidrelétrica a fim de gerar energia para produzir não apenas a alumina mas também o alumínio. Em 1965, todo o projeto foi concluído, e o Suriname se tornou o primeiro país em desenvolvimento a possuir essa indústria.

Ainda que a bauxita imperasse, o arroz também atingiu altos níveis de produção. O país se tornou bem conhecido pelo desenvolvimento de variedades novas de cultivo capazes de fornecer mais arroz e grãos melhores. A madeira também se mostrou um negócio lucrativo, e a pesca, em especial de camarões, fornecia divisas. Tudo isso levou ao desenvolvimento contínuo do país embora o desemprego, em nível alto, constituísse um problema. Após 1967/68, o problema se tornou ainda maior porquanto os grandes investimentos relacionados ao acordo de Brokopondo já tinham sido feitos, e os trabalhadores empregados na construção da represa e das fábricas não podiam ser utilizados em outros projetos. Foram anos em que muitas e muitas pessoas partiram para a Holanda. Todos os surinameses eram automaticamente cidadãos holandeses. A maior parte já tinha conhecimento razoável do idioma holandês, e, por isso, a mudança para a metrópole não era muito difícil.

A década de 1970 trouxe mudanças para o Suriname. O país se tornou independente em 25 de novembro de 1975, mas, em menos de cinco anos, um golpe militar pôs fim à tradição de eleições regulares e de um parlamento onde havia debates, às vezes muito intensos, às vezes em nível não muito elevado, com ataques pessoais e desforços físicos até, uma vez ou outra. A economia também sentiu a pressão de preços mais altos do petróleo no mundo. Somente na década de 1980, porém, foi que o país caiu em profunda crise quando a economia deu sinais de falhar. Foram precisos muitos anos para que se recuperasse lentamente e começasse uma fase nova de reconstrução de uma economia em destroços. Ainda estamos em meio a ela.

Desenvolvimento econômico no Suriname independenteQuando o Suriname se tornou independente em 1975, o panorama ainda

era muito brilhante, com poucas nuvens negras no horizonte. Os preços do

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petróleo aumentaram quando a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) os aumentou em 1973. O Suriname tinha divisas mais que suficientes para pagar essas importações. Além disso, a usina hidrelétrica gerava a energia necessária para a indústria da bauxita, e o país ainda recebia rendas extras com o estabelecimento da IBA (Associação Internacional da Bauxita). Certo número de países dentre os mais importantes exportadores de bauxita acreditou poder repetir o sucesso da OPEP congregando os mais significativos. E, se isso não era suficiente, o Suriname ainda recebera um dote superior a 2 bilhões de guilders holandesas ao assumir a independência. Tudo isso apontava para um futuro auspicioso. O que deu errado?

Após 1975, os principais investimentos foram em infra-estrutura. Em particular, o projeto Suriname Ocidental absorveu grande volume de recursos. A idéia era criar uma segunda cidade, mas de novo a exploração da bauxita seria a base do crescimento econômico. Foram descobertas grandes jazidas, e o governo acreditou na existência de possibilidades inúmeras. As madeiras, o turismo e a agricultura, além de outras atividades, seriam desenvolvidas naquela região do país. No entanto, os negócios pequenos e o setor privado ativo acabaram esquecidos numa visão mais ampla. Além disso, houve criação de empregos, mas nem sempre do tipo que as pessoas procuravam. Escaramuças políticas entre o governo e a oposição tampouco ajudaram a criar um ambiente conducente ao otimismo na sociedade em geral. Afinal, encontrou-se uma solução muito sul-americana. Os militares assumiram o poder em 25 de fevereiro de 1980.

Quando o exército entrou na política, o povo se mostrou a princípio otimista sobre o trabalho para melhorar o país como um todo. Foi isso efetivamente o que se deu nos primeiros dois anos. Foram criadas moradias para os setores de menor renda, a qualidade dos serviços públicos melhorou, e a burocracia parecia ter-se tornado mais eficiente. Fundou-se em dezembro de 1980 uma Empresa Nacional de Petróleo, o que veio a ser um dos verdadeiros êxitos do período chamado revolucionário. No entanto, como nos países sul-americanos em geral, o abuso do poder não é coisa inédita para os militares. Os opositores foram rapidamente rotulados de contra-revolucionários, e em dezembro de 1982 quinze deles foram executados.

Os holandeses resolveram suspender a ajuda ao desenvolvimento. Outra recessão mundial reduziu a demanda pela bauxita e alumínio. Foram dois

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fortes golpes contra a economia do Suriname. Aos poucos, a situação piorou. A inflação aumentou, a carência de moedas fortes esvaziou os supermercados, e o governo teve de racionar a maioria dos alimentos e outros artigos da vida comum. Além disso iniciou-se uma guerrilha em 1986, quando um insatisfeito corpo de guardas do comandante do exército tomou armas. As minas de bauxita ficaram inacessíveis para a empresa, e todo o país sofreu. Em breve tornou-se claro que o exército não seria capaz de destruir a guerrilha, nem essa poderia vencer o exército. Finalmente, o exército resolveu reintroduzir a democracia, e as eleições foram realizadas em novembro de 1987.

O novo governo democrático teve de resolver inúmeros problemas. Estava a economia em frangalhos, e a guerra de guerrilha prosseguia. Seu custo foi muito elevado, e uma situação financeira já delicada se tornou ainda pior. Foi necessário algum tempo a fim de os problemas voltarem a ser manejáveis. Em 1992 foi assinado um acordo amplo de paz com todos os grupos que lutavam no interior. Quando a economia mundial melhorou, a indústria da bauxita também mostrou sinais de crescente lucratividade.

Iniciou-se o novo milênio, e a economia voltou a crescer. Os preços do petróleo em alta favoreceram a empresa petrolífera estatal, e a indústria do ouro recuperou-se rapidamente. O turismo é outro elemento positivo que atualmente gera renda para o país, e a indústria madeireira também prospera. Embora a economia mundial mais uma vez se encontre em fase de incertezas, cujo resultado não é claro, o Suriname está progredindo razoavelmente bem.

Conclusão Nos últimos dois séculos, o Suriname foi predominantemente agrícola.

Mais tarde, a mineração prevaleceu. No entanto, o país continuou em monocultura porque dependia apenas de um ou de poucos produtos. A procura pela diversificação nunca teve resultados conclusivos. Hoje em dia, as pessoas compreendem que uma economia de base ampla que gere divisas de variadas origens, tem possibilidades maiores de êxito. Por outro lado, não é fácil produzir muitas coisas diferentes com uma população de aproximadamente 500 mil pessoas. Houve períodos em que a atividade econômica não conseguia sequer satisfazer as necessidades populares. Nas décadas de 1920 e 1930, e novamente nas de 1980 e 1990, grandes crises dificultaram o otimismo. No entanto, a economia se recuperou e, neste novo milênio, o futuro parece um

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pouco melhor. A indústria petrolífera gera parcela substancial de divisas, o ouro também está sendo produzido com êxito, e o ecoturismo parece trazer novas e importantes possibilidades para o país. Em suma, não há motivo para perder a confiança no futuro do Suriname.

Bibliografia selecionadaBenjamins, H. e Snelleman, J. F. (eds.). Encyclopedie van Nederlandsch – West

Indie (Enciclopédia das Índias Ocidentais Holandesas). Amsterdam: S. Emmering, 1981. (Publicada originalmente em 1914-1917)

Caram, A.R. Ontsporingen op de weg naar monetaire soliditeit: De drie fasen in het bestaan van de Centrale Bank van Suriname 1957-2007 (Desvio no caminho à solvência monetária: as três etapas na existência do Banco Central do Suriname 1957-2007). Paramaribo: Banco Central do Suriname, 2007.

Dalhuizen, L. M. Hassankhan y Steegh, F. (eds.). Geschiedenis van Suriname (História do Suriname). Zutphen, the Netherlands: Walburg Pers, 2007.

Getrouw, C. F. G. “Suriname en de oorlog” (Suriname e a guerra). In: West Indische Gids. Volumen 27, n. 1, 1946. p. 129-136.

Heilbron, Waldo. Kleine boeren in de schaduw van de plantage: de politieke economie van de na-slavernij periode in Suriname. (Pequenos agricultores nas sombras da plantação: a política econômica do período pós-escravidão no Suriname). Amsterdam, 1982.

Loor, A. e Egger, J. 80 Jaar bauxiet industrie in Suriname (80 anos da indústria de bauxita no Suriname). Paramaribo: Suralco LLC, 1996.

Stipriaan, Alex van. Surinaams contrast: roofbouw en overleven in een Caraibische plantagekolonie 1750-1863. (Contrastes no Suriname: cultivo excessivo e sobrevivência em uma colônia caribenha de plantação, 1750-1863) Leiden, the Netherlands: KITLV, 1993.

Traa, A van. Suriname 1900-1940 (Suriname 1900-1940) Deventer: Uitgeverij W. Van Hoe, 1946. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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* Universidade da República, Uruguai. [email protected]

Uruguai, região e inserção internacionalGerardo Caetano*

As considerações a seguir têm por objetivo formular alguns eixos de reflexão a respeito de dois dentre os núcleos decisivos para se pensar o desenvolvimento econômico no Uruguai: a dialética entre a região e o mundo nas estratégias de inserção internacional do país, assim como as relações entre política e economia como chave do rumo das políticas públicas. No quadro de uma inscrição histórica de maior fôlego, orientada tanto para o contexto regional quanto para os grandes itinerários da política local, esta apresentação dá ênfase à análise dos períodos mais recentes, entre o golpe de Estado de 1973 e o triunfo da esquerda, pela primeira vez em nível nacional, no recente ano de 2004.

I. “Estados hegemônicos” e “Estados fronteira” da Bacia do Prata. Algumas implicações substantivas para a história econômica dos países da região

Os “tópicos históricos” do antagonismo e as “marcas de fronteira”: evoluções, semelhanças, diferençasEm termos geográficos e econômicos, como também históricos em um

sentido ainda mais amplo, o território da Bacia do Prata tem apresentado um

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Gerardo Caetano

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panorama bipolar, no qual se distinguem um polo hegemônico formado pelos grandes Estados da Argentina e do Brasil, e uma zona de fronteira representada pelos três “pequenos” países restantes (Bolívia, Paraguai e Uruguai). A longa competição argentino-brasileira pela liderança na região configurou, sem dúvida, a base dominante do paradigma de conflito que prevaleceu na região pelo menos até o final da década dos 60 do século XX e talvez mais precisamente até meados da década de 80. Por sua vez, os demais “Estados fronteira” basicamente “pendularam” – ainda que de maneira diferente, como veremos, entre os dois gigantes, quando definitivamente encerrada a fase isolacionista após a calamitosa destruição do Paraguai “originário”, na Guerra da Tríplice Aliança1. Sem saída para o mar após a também condenável “Guerra do Pacífico”, a Bolívia ficou convertida, assim como o Paraguai, em “prisioneiro geopolítico”, com as restrições decorrentes dessa situação. O Uruguai, ao contrário, a partir de sua localização privilegiada na embocadura do estuário do Prata, conseguiu ter outras possibilidades de conexão bem além da região, embora sua história, como veremos em seguida, não possa ser entendida sem uma estreita relação, embora com maior flexibilidade, com o futuro da região. Ainda que de maneira diferente, inclusive com enfrentamentos bélicos entre si (Bolívia e Paraguai na fratricida Guerra do Chaco entre 1932 e 1935), os três pequenos países da Bacia do Prata configuraram um “marco de fronteira”, cujo apoio os dois “gigantes” da região disputaram com fervor para afirmar seus respectivos projetos e suas aspirações de liderança.

A esse respeito, Paulo R. Schilling assinalou com acerto em um de seus textos: “A região apresenta a seguinte situação: dois grandes países, Brasil e Argentina, com tendências expansionistas não dissimuladas, e três países pequenos (geográfica, demográfica ou economicamente pequenos): o Uruguai, a Bolívia e o Paraguai. Sendo que, os dois últimos são países mediterrâneos, sem saída para o mar, “prisioneiros geopolíticos” (...). Sua libertação depende fundamentalmente da integração. O Uruguai, estrategicamente localizado na Bacia do Prata, entre os dois grandes e o oceano Atlântico, tinha maiores possibilidades de construir um super-porto em La Paloma (para os navios

1 Sobre o tema do lamentável episódio histórico do aniquilamento do Paraguai na chamada “Guerra da Tríplice Aliança” e suas múltiplas conseqüências na região, recomenda-se, especialmente, a leitura de dois textos do especialista Luiz Alberto Moniz Bandeira: “A formação dos Estados na Bacia do Prata. Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai”. Buenos Aires: Editorial Norma, 2006; e “Argentina, Brasil e Estados Unidos. Da Tríplice Aliança ao Mercosul”. Buenos Aires: Editorial Norma, 2004.

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Uruguai, região e inserção internacional

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do futuro), podendo ter um papel fundamental no futuro da região integrada”2.

Essa dualidade ou bipolaridade configurou, e sem dúvida ainda configura, um dos elementos mais importantes para entender os antecedentes políticos da Bacia do Prata ao longo de sua história. Conforme veremos em detalhes mais adiante, a grande maioria dos conflitos ocorridos na história da região tem a ver com os significados dessa dualidade, em particular a dialética gerada pela pugna de liderança entre os dois “Estados hegemônicos” e pelas ações restritas implementadas pelos outros três “Estados fronteira”, buscando aproveitar a disputa entre seus vizinhos “gigantes” e afirmar seus interesses e direitos limitados pelas visíveis assimetrias da região.

Passando rapidamente em revista por vários desses conflitos, poder-se-á observar de que maneira sua elucidação, em particular nas épocas de longo predomínio da lógica do conflito na região, dependeu, em boa medida, das formas de inter-relação adquiridas em cada caso pelos pólos mencionados: a livre navegação dos rios interiores, confirmada “a sangue e fogo” após a Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870); a progressiva formação dos Estados nacionais no território da Bacia, com delimitação aleatória de seus respectivos limites territoriais3; a resolução do predomínio dos eixos “transversais” ou “longitudinais” com o duelo em busca do domínio das nascentes (primeiro em favor de Portugal e depois do Brasil, após serem conquistadas militarmente com os bandeirantes ou com participação do exército, desde a colônia até o século XIX) ou da desembocadura (em favor da Argentina por óbvias razões geográficas); os longos contenciosos – ainda vigentes e estimulados pela atual situação de crise energética – em torno do aproveitamento do potencial hidrelétrico da Bacia; as controvérsias em torno da forma de gestão de temas como o do cuidado com o meio ambiente ou a gestão dos recursos hídricos; o traçado dos chamados “corredores de exportação” e a “orientação dos “países interiorizados” (Bolívia e Paraguai) em direção ao Atlântico ou ao Pacífico; bem além das hidrovias da região, a engenharia global e sua orientação geopolítica entre o Atlântico e o Pacífico; a controvérsia mais atual a respeito

2 Schilling, Paulo R. El expansionismo brasileño. México: El Cid Editor, p. 133. Citação retirada de Zugaib, Eliana. A hidrovia Paraguai-Paraná e seu significado para a diplomacia sul-americana do Brasil. Brasília: Instituto Rio Branco, 2005, p. 42.3 Sobre este tema, ver especialmente Luiz Alberto Moniz Bandeira, A formação dos Estados na Bacia do Prata. Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai. Buenos Aires: Editorial Norma, 2006.

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das possibilidades de impulsionar projetos de aproveitamento e conexão energética por meio do petróleo e do gás natural, assim como o envolvimento (em crescente associação com os Estados Unidos) em programas de geração de biocombustíveis ou de energia alternativa, entre muitos outros que poderiam ser citados.

Se observarmos bem, subjacente a todos esses aspectos relativos ao conflito, está o litígio histórico entre as aspirações hegemônicas da Argentina e do Brasil (precedidas por seus antecessores coloniais, os impérios americanos da Espanha e de Portugal). Porém, ao mesmo tempo, a elucidação de cada um dos temas apresentados depende também da maneira pela qual os “grandes” interagiam em relação aos “pequenos” da região. Essa interação pode estar relacionada à lógica bélica da conquista militar, como na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, na qual a Argentina de Mitre e o Império do Brasil de Pedro II agiram unidos, com a atuação do Uruguai como partiquino, ou nas outras em que o Brasil atuou de forma solitária com objetivos muito concretos, como, por exemplo, a conquista das nascentes dos três grandes rios (o Paraná, o Paraguai e o Uruguai) que formam os três grandes sistemas hídricos da Bacia. Em outras ocasiões, como no período 1930-1980, na qual muitos autores caracterizaram, de forma coincidente, como a “era da geopolítica”, os instrumentos de ação foram implementados por meio de iniciativas diplomáticas ou negociações bilaterais, principalmente dirigidas ao aproveitamento energético dos rios internacionais. Nessa última etapa, o conflito entre os “Estados hegemônicos” se traduziu na tensão entre bilateralismo versus multilateralismo. Por muitos motivos, desde geográficos e econômicos até políticos e históricos, o Brasil tendeu claramente a preferir e defender a primeira estratégia, enquanto a Argentina (com muito menos êxito e também com menos planejamento estratégico) orientou-se para resistir aos embates do gigante do norte por meio da reivindicação dos princípios do multilateralismo. A resolução dessa tensão também teve muito a ver com a atitude assumida, em geral separadamente, pelos três “Estados fronteira” a que nos referimos, apesar da experiência pouco eficaz da Urupabol.

Mas, os três “Estados fronteira”, os três “pequenos” da Bacia, não viveram nem gerenciaram essa condição comum da mesma maneira. Em primeiro lugar, não podiam fazê-lo, tanto por motivos geográficos quanto por motivos de caráter histórico. A Bolívia, sem saída para o mar desde 1870, podia ser considerada

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“o país menos interessado na Bacia”4, em especial – como veremos em seguida – pela pequena atenção e alternativas onerosas oferecidas a ela pelos “gigantes” da região, em especial a Argentina, para afirmar seus interesses na zona do Prata. Por sua vez, como bem assinalou Bernardo Quagliotti de Bellis, a “voz da história” impunha ao Paraguai e Uruguai modalidades muito diferentes, quase antagônicas, de atuação no papel de “fronteiras”. “Estrutura e função histórica distintas consolidariam no Paraguai a condição de “marco”, de baluarte sitiado e erguido, de fronteira fechada; e no Uruguai, prolongamento natural da banda, terra de sua terra, um mundo dinâmico de relação com a área gaúcha, de fronteira aberta”5. Igualmente, esse modo diverso de viver e agir a partir de sua condição de “Estado fronteira” também tinha a ver com seu posicionamento tanto estrutural quanto conjuntural com a Argentina e o Brasil, o que, sem dúvida, foi um fator altamente condicionante para suas iniciativas e projetos. Sobre esse particular e em relação à conhecida Montevidéu, Juan Bautista Alberdi havia afirmado profeticamente na primeira metade do século XIX: “Montevidéu tem em sua situação geográfica um duplo pecado, que é o de ser necessário à integridade do Brasil e à integridade da República Argentina. Os dois Estados a necessitam para complementar-se. Por que motivo? Porque nas margens dos afluentes do Prata, cuja chave principal é o Estado Oriental, estão situadas as mais belas províncias argentinas. O resultado disso é que o Brasil não pode governar suas províncias fluviais sem a Banda Oriental; e nem Buenos Aires pode dominar as províncias litorâneas argentinas sem a cooperação dessa Banda Oriental.”6

Esse último elemento relativo à comunidade e diversidade torna necessário um exame das estratégias políticas e econômicas desenvolvidas separadamente, em clave geopolítica, cada um desses três “Estados fronteiras”. Quanto ao Paraguai, como bem indica Eliane Zugaib, após o desastre da “Guerra da Tríplice Aliança” e uma vez minimamente recuperado o país, o Paraguai desenvolveu um movimento pendular entre o Brasil e a Argentina, a procura das melhores condições para o desenvolvimento de seus interesses nacionais. Em termos geopolíticos, o Paraguai tinha relevância muito especial para a Argentina, já que possuía a “chave” para consolidar o eixo longitudinal

4 Luís Dallanegra Pedraza. “Situación energética argentina y la Cuenca del Plata... etc.” Op. cit., p. 20.5 Bernardo Quagliotti de Bellis. “Uruguay en la Cuenca del Plata”. In: Dallanegra Pedraza, Los Países del Atlántico Sur... Op. cit., p. 175. 6 A citação foi retirada de ibidem, p. 179.

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norte-sul na bacia. Não obstante, por diversas circunstâncias, entre as quais cabe ressaltar a ausência de políticas e planos concretos por parte dos governantes argentinos, o Paraguai acabou por direcionar suas preferências para o Brasil. “A atuação geopolítica do Paraguai – acentuou Zugaib – seguiriam duas linhas básicas impostas por sua geografia: a) manter a variedade de vias de comunicação alternativas com o Atlântico em direção ao sul, por via fluvial, através da Argentina, e em direção ao leste por ferrovias ou rodovias, através do Brasil; e b) aproveitar ao máximo a exploração dos recursos hídricos de seu território, que lhe permitiram levar a cabo um jogo astuto no equilíbrio de poder no rio Paraná, em uma magnitude desproporcional a seu peso específico na região. Nesse quadro, o isolamento daquele país em relação ao próprio interior continental, separado da Bolívia pela zona desértica do Chaco e do nordeste argentino pela província de Formosa, despovoada e em depressão econômica, constituíram condições adversas limitadoras de sua liberdade de ação. Essa situação facilitou ao Brasil, nos anos 60 e 70, o exercício de uma política deliberada de incorporação daquele país à sua esfera de influência”.7

A Bolívia também incorporou, em vários momentos, lógicas pendulares, porém de forma diferente das implementadas pelo Paraguai, após a derrota na Guerra do Pacífico em 1870, na qual o Chile lhe arrebatou a saída para o mar, independentemente do fato de que esse tema central de reivindicação histórica passou a ser, desde então, o eixo principal de sua política externa. Diferentemente deste último país, a Bolívia não possuía a condição do Paraguai como “país chave e instância final de decisão” de qual seria o eixo (norte-sul ou leste-oeste) que predominaria na Bacia, e ao mesmo tempo, tampouco, dispunha dos recursos hidrelétricos que permitiram ao Paraguai negociar as grandes sobras compartilhadas com os “grandes” da região. Tudo isso levava a Bolívia a uma situação de extrema dependência do Brasil e da Argentina. O primeiro detinha a chave da saída ao curso superior do rio Paraguai, que lhe dava a possibilidade de projetar sua produção para o sistema Paraná-Prata, mas em relação a este último o gigante do norte continuava a possuir a decisão, agora não apenas em relação ao país do altiplano, mas também ao Paraguai, pois também detinha os acessos de ambos os países a essas vias fluviais. Outra alternativa de acesso da Bolívia ao Atlântico era a ferrovia Santos-Arica, o que reforçava o poder brasileiro. Claro que as alternativas de saída para o Atlântico

7 Zugaib, A hidrovia Paraguai-Paraná e... Op. cit., p. 41.

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pelo território argentino eram muito onerosas e nem tão pouco encontravam eco suficiente em uma postura mais generosa da Argentina em relação ao assunto, limitando-se a outorgar à Bolívia somente duas zonas francas em seus portos. Como mais uma vez bem assinala Eliana Zugaib: “Essa extrema dependência da Bolívia em relação aos ‘dois grandes’ para suas comunicações e exportações, reflexo de sua geografia dividida e da evolução de sua história, determinava seu comportamento ‘circunspecto e cauteloso’. Segundo alguns autores, a Bolívia estaria obrigada a traçar uma política internacional de difícil equilíbrio, que não deveria ser pendular, e sim de amizade equilibrada com todos os vizinhos”8.

No caso do Uruguai, cuja análise particular utilizaremos mais adiante como um observatório privilegiado de modo comparativo com a região, deve-se dizer, antes de mais nada, que sua condição mais característica ao longo de sua história tem sido precisamente a de ser “país fronteira”. A circunstância que levou seu território a constituir primeiro o “marco de fronteira” entre os domínios portugueses e espanhóis na região e em seguida a erigir-se como “Estado tampão” (“um algodão entre dois cristais”, como mais de uma vez se afirmou) entre os “dois grandes”, levou inicialmente o Estado oriental fundado em 1830 a praticar de forma episódica uma lógica pendular. Não obstante, rapidamente, como veremos, em virtude de sua localização geográfica privilegiada na desembocadura do Rio da Prata e apesar da persistente ausência de um “porto oceânico” na costa de Rocha, que sem dúvida lhe teria proporcionado e lhe proporcionaria mais alternativas geopolíticas e comerciais, em particular diante do Brasil, mas também em relação à Argentina, o Uruguai pôde orientar-se em várias ocasiões no sentido do cumprimento de um papel central como fator de equilíbrio regional. Como bem assinala Luís Dallanegra Pedraza: “O papel do Uruguai se perfila como de um espaço vital para manter o ‘equilíbrio’ de uma integração harmônica da Bacia do Prata. Para isso, a primeira ação deve estar direcionada no sentido de conseguir uma vertebração zonal de seu espaço interno, de acordo com prioridades estabelecidas e segundo suas possibilidades e interesses sócio-político-econômicos. O planejamento da realidade uruguaia deve ter por base as possibilidades geopolíticas de seu espaço, buscando a coincidência com outros processos exteriores de

8 Ibidem. Nesse ponto a análise de Zugaib coincide com o assinalado por Luís Dallanegra Pedraza, nos trabalhos incluídos no livro por ele coordenado e compilado “Los países del Atlántico Sur, geopolítica de la Cuenca del Plata”, antes citado.

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transformação sócio-econômica; isto dará segurança estratégica ao país. O Uruguai está obrigado a praticar uma vocação política internacional dinâmica no âmbito regional, e no aspecto interno alcançar uma vertebração territorial coerente com um desenvolvimento socioeconômico planificado”9.

Em suma, apesar das assimetrias persistentes e em alguns casos irreversíveis entre o “pólo hegemônico” e os países da “zona de fronteira” no território da Bacia do Prata, tem cabido, e ainda cabe, a estes últimos, um papel transcendental no rumo da região. Sem eles ou “contra eles”, ainda unidos, a perspectiva histórica parece indicar que os dois “grandes” não podem dirimir seus conflitos nem tampouco conferir governabilidade global à região (e muito menos à América do Sul), com as múltiplas implicações que isso comporta. Como foi assinalado, mais adiante neste texto será utilizado o exemplo do Uruguai como observatório privilegiado de projeção comparativa com o propósito de aumentar a consistência desta hipótese.

Os “Estados hegemônicos” e sua longa disputa na regiãoConforme indicamos anteriormente, o principal aspecto para

compreender a história de mais “longa duração” no território da região platina foi caracterizado pelo antagonismo geopolítico espanhol-português e, posteriormente pelo argentino-brasileiro. Essa luta “surda” iniciada já na colônia e que se desenvolveu durante todo o século XIX e a maior parte do XX, adquiriu perfil mais consistente e estruturado a partir de 1930, quando se iniciou a chamada “era da geopolítica”, e, embora com destino antagônico, tanto o Brasil quanto a Argentina começaram a traçar suas políticas exteriores conforme o objetivo de superar o outro e obter, dessa forma, a liderança da América do Sul. Nessa consolidação do “paradigma de conflito”, de longa gestação, os antagonismos geopolíticos e econômicos fundamentais do território regional ficam referidos em termos tais como “Atlântico versus Pacífico”, e “Amazonas versus Rio da Prata”.10

O cenário originário dessas disputas se orientou para a luta dos predomínios dos “eixos transversais” contra os “eixos longitudinais”, na qual se

9 Luis Dallanegra Pedraza, “Situación energética argentina y la Cuenca del Plata”, em Luís Dallanegra Pedraza (coord. e comp.). Los países del Atlántico Sur... Op. cit., p. 9.10 Zugaib. A hidrovia Paraguai-Paraná e... Op. cit., p. 38

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rompia a “ordem” precária da livre navegação dos rios interiores alcançada após a Guerra da Tríplice Aliança. Pouco a pouco o eixo dos antagonismos traçou como objetivo monopolizar a circulação do tráfico produtivo e exportador de toda a região, por meio do traçado e domínio de “corredores” “transversais” (favoráveis ao Brasil) ou “longitudinais” (favoráveis à Argentina). Essa pretensão de hegemonia econômica e também política, ligada à consolidação de domínios territoriais, produtivos e comerciais, expressava o contraste entre a “desembocadura” (controlada pela Argentina e base de um chamado “centripetismo rioplatense”) e as “nascentes” dos grandes rios (governadas pelo Brasil). Não obstante, progressivamente esse eixo de disputa começou a ser substituído, como foco central do antagonismo geopolítico entre os “grandes da região”, pelo controle dos recursos hídricos da Bacia, especialmente em relação ao aproveitamento hidrelétrico da sub-bacia do alto Paraná. Nesse contexto, o ponto central do novo campo de batalha passou ao Paraguai e ao terreno da concretização de obras e das negociações diplomáticas sobre o tema de como ordenar e regular as potencialidades energéticas da Bacia.

De forma gradual e em relação direta com os sucessivos aspectos mais importantes de disputa, o equilíbrio geopolítico no Cone Sul foi se rompendo em favor do Brasil, o que se traduziu, conforme notamos, em uma forte ascensão dos principais indicadores econômicos brasileiros e um paralelo retrocesso argentino. Assim explica Eliana Zugaib tal rompimento do equilíbrio platino em favor do Brasil: “Entre os principais protagonistas, o Brasil possuía vantagens que lhe asseguravam maior influência sobre a ordem, de fato e de direito, reinantes na região. Essas vantagens provinham, em grande parte, por um lado, do fato de que o Brasil dispunha da condição privilegiada de país ‘rio acima’, o que lhe permitia controlar o curso dos três grandes rios que formavam a bacia, pois suas nascentes se encontravam em território brasileiro. Por outro lado, a exclusiva possibilidade de operar simultaneamente sobre os dois eixos da Bacia, o natural norte-sul e o tradicional leste-oeste, além de assegurar ao país melhor manejo da relação bi-oceânica, permitia-lhe, por sua posição geográfica, provocar a saída do comércio sul-americano por seus portos de águas profundas, possibilitando, assim, ter o controle do comércio exterior dos demais países platinos. Além de tudo isso, por meio de sua política constante e pragmática, o Brasil mantinha relações mais fluidas com os demais países do Prata do que a Argentina, cujas relações ficavam à mercê de políticas que variavam entre integracionistas e anti-integracionistas, de acordo com a

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mudança de governos dos países vizinhos. Desse modo, o Brasil conseguia manter um melhor sistema de alianças com os países menores, como foi o caso do Paraguai, com o intuito de garantir seus objetivos na Bacia do Prata”11.

Esse último contraste relativo às conseqüências geradas em função da qualidade diversificada das políticas e estratégias desenvolvidas em relação à região e mais especificamente em relação aos demais “Estados-fronteira” da Bacia do Prata, por parte da Argentina e do Brasil, adquire importância superlativa no momento de avaliar seus desempenhos e trajetórias tão antagônicas. Como coincidentemente descreve a maioria dos autores, a dialética do avanço brasileiro e do retrocesso argentino que caracterizou a era do conflito geopolítico entre ambos os países na Bacia do Prata tem muito mais a ver com esse fator (político e econômico) do que com o suposto caráter inelutável e de vantagens naturais ou geográficas. São muitos, na verdade, os autores que tem o mesmo ponto de vista. Luís Dallanegra, por exemplo, ressaltou “a carência (por parte da Argentina) de uma política adequada e eficiente em relação aos países vizinhos (...) da Bacia do Prata”, derivando disso, uma série de conseqüências negativas que se expressaram em um modelo de desenvolvimento, a seu juízo, muito impróprio para o desenvolvimento sustentável do país. Como fator decisivo dessa problemática aguda, tal autor descrevia, em primeiro plano, as deficiências da política exterior argentina. “A carência” – continuava Dallanegra – “de uma política externa clara para com os países vizinhos, representada por seu tradicional isolacionismo em relação à América Latina, fez com que a Argentina perdesse sua influência sobre o Paraguai – país chave da Bacia na zona do alto Paraná – motivo pelo qual, no curto e médio prazo, deixou de dispor da capacidade necessária para manter o eixo natural norte-sul, comprometendo-se, dessa maneira, sua economia e sua geopolítica pela influência do eixo leste-oeste”.12 Dallanegra acrescentava a sua crítica à política exterior argentina uma série de acusações: “carência de uma doutrina ou concepção geopolítica”, “indefinição do interesse nacional”, “carência de uma consciência clara a respeito de (...) sua inserção no âmbito regional e no latino-americano”, “carência de uma política exterior clara e orientada”, “carência de um modelo claro do país que se deseja”.13 Dallanegra

11 Ibidem, p. 40.12 Dallanegra, Situación energética argentina y la Cuenca del Plata... Op. cit., p. 50 e 51.13 Ibidem, p. 51 e 52.

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conclui seu estudo de uma forma especialmente severa e sombria: “Se levarmos em conta essas falências argentinas, e ao mesmo tempo a presença cada vez mais imponente do Brasil na região, corremos o perigo de que se produza um desequilíbrio favorável a esse último, podendo chegar a condicionar o desenvolvimento da parte mais moderna e dinâmica da Argentina – a zona da Bacia do Prata – e por conseguinte o de todo o país”.14

Essas palavras tão duras eram acentuadas por Dallanegra em um momento crucial da história argentina contemporânea: ano de 1983, fim da ditadura e início do período democrático sob a presidência do Dr. Ricardo Alfonsín. O novo governo democrático entrou em exercício com uma forte consciência das debilidades de sua política externa, em especial a dirigida a seus vizinhos na região. Não admira por isso que, imediatamente após sua posse, Alfonsín realizasse uma política de aproximação ativa com o Brasil, chegando, em 1985, ao marco da assinatura, juntamente com o presidente brasileiro José Sarney, da “Ata de Foz do Iguaçu”, ante-sala programática mais profunda de um ambicioso processo de integração regional, conforme veremos em detalhe mais adiante.

Vale insistir no argumento de que, naqueles momentos cruciais da história política argentina contemporânea, as críticas à política externa do país (que focalizavam as iniciativas implementadas durante as ditaduras, mas que abarcavam também as desenvolvidas ao longo de boa parte do século XX argentino) centravam suas reivindicações nas carências relativas a estratégias consistentes orientadas para a região do Prata. A esse respeito, Nicolas Boscovich enumera as deficiências argentinas em relação ao uso e aproveitamento dos rios: “1. Ausência de claros objetivos globais para as regiões norte-noroeste e para o aproveitamento de seus portentosos recursos hídricos, que acaba impedindo o que deve ser a unidade do sistema da bacia argentina do Prata. 2. Prioridade equivocada nos objetivos, influenciada pela crise dos combustíveis não renováveis no mundo e a desorientação provocada pela falta de disponibilidade imediata de fontes substitutas. 3. Relacionado com o ponto anterior, a elaboração, em nosso país, de projetos hidrelétricos autônomos com a finalidade de otimizar a produção de energia, relegando a segundo plano (e em alguns casos de maneira total) o melhoramento da navegação. 4. Ausência de

14 Ibidem, p. 53.

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um calendário definido de investimentos por conta do adiamento de projetos prioritários no âmbito interno em benefício de outros compartilhados, que em uma primeira etapa contribuíram para ampliar a brecha do desequilíbrio e consolidar o novo determinismo transversal no Cone Sul”15.

Diante dessa ausência e equívocos das políticas e estratégias argentinas em relação à Bacia do Prata, como vimos, desde a própria colônia, a América portuguesa inicialmente, e posteriormente o Brasil, aproveitaram as circunstâncias tanto para conquistar militarmente zonas estratégicas quanto para desenvolver iniciativas e negociações, em ambos os casos, com grande significado de oportunidade e de acerto. Assim, no quadro da já suscitada “fundação horizontal” do Brasil, houve inteligência geopolítica tanto na ocupação militar das nascentes dos grandes rios quanto no desenvolvimento de empreendimentos persistentes de política exterior tendentes a obter associações vantajosas com os vizinhos. O Brasil logo executou uma avaliação mais certeira do que a Argentina sobre a ocupação de espaços chave na Bacia do Prata; em suma, descobriu muito antes (e sem dúvida beneficiou-se disso) a importância da geopolítica regional como eixo insubstituível de sua política exterior. Soube, além disso, construir uma base consistente de ação política diplomática. Orientou suas ações à diversidade dos temas envolvidos na Bacia e soube administrar o conflito, freqüentemente pela força e com sentido imperial, em direção aos pontos nevrálgicos de cada etapa histórica: seja quando o tema era a livre navegação dos rios ou quando se deslocou para a orientação do conjunto da Bacia e o controle de seus “corredores” de importação e exportação. Na mesma direção percebeu, antes de qualquer outro país, que o tema mais relevante no século XX se deslocava para o aproveitamento dos recursos hídricos do alto Paraná, sobretudo no que se refere ao aproveitamento hidrelétrico.

Quando chegou o momento de passar de um paradigma de conflito para outro de cooperação, o Brasil teve capacidade de transitar nessa conjuntura a partir de uma posição de força. Após as intensas disputas pela liderança regional que caracterizaram as quatro décadas da chamada “era geopolítica”(1930-1970), como bem assinalou Eliane Zugaib, “O Brasil podia considerar-se, de fato, vencedor de três divergências. Havia consumado a política dos corredores

15 Boscovich, Nicolás. La Argentina en la Cuenca del Plata... Op. cit., p. 81. Itálicos do autor.

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de exportação, que minava a utilidade dos canais tradicionais de comércio; havia concretizado Itaipu, que impedia a otimização dos recursos da Bacia e interrompia sua navegabilidade águas acima do Paraná; além disso, havia conquistado, como sustentam alguns autores, ‘tutelas mais ou menos discretas’ sobre a Bolívia e o Paraguai. Desse modo o Brasil, de forma progressiva, transformara-se em ‘dominador’ da Bacia”.16

Os números que, como vimos, são indicadores de uma prolongada tendência, revelavam a consolidação do avanço brasileiro e do retrocesso argentino na luta pela hegemonia na Bacia do Prata. Enquanto a Argentina defendia o princípio justo do multilateralismo e do regionalismo na gestão da Bacia, o Brasil respondia a partir de sua antiga tradição desenvolvimentista realizando ingentes esforços para construir obras, sem, contudo, descuidar da frente diplomática. Por volta do final dos anos 80, enquanto o Brasil podia ostentar uma participação total ou bilateral em 35 obras hidrelétricas na zona da Bacia, a Argentina dispunha apenas de Salto Grande, compartilhada com o Uruguai. A evolução dos PIB respectivos, como já vimos, indicava, dentre outros aspectos, um aproveitamento muito desigual dos recursos da Bacia. Essa liderança do Brasil já tinha sido reconhecida pelos Estados Unidos, país na qual a nação do norte havia desenvolvido uma política de aproximação desde os tempos da Segunda Guerra Mundial, situação essa que contrasta fortemente com o que ocorreu em relação à Argentina, promotora, sob o peronismo, de uma visão inicialmente neutralista e em seguida de não alinhamento. Essa aproximação com os Estados Unidos se consolidou na época da ditadura militar brasileira, quando o general Golbery do Couto e Silva, juntamente com outros graduados oficiais, liderou a política de associação privilegiada com a grande potência do norte, o que, em sua opinião, aprofundaria a liderança brasileira na região, com vantagens em vários planos. Diversos dos momentos mais tensos da rivalidade entre o Brasil e a Argentina tiveram muito a ver com o contraste entre o “ocidentalismo pró-norte-americano” do primeiro e a visão mais “não alinhada” da segunda, o que expressava, de diversas formas, o intervencionismo e os interesses norte-americanos na região da Bacia.17

16 Zugaib. A hidrovia Paraguai-Paraná e... Op. cit., p. 56.17 Embora haja muitos autores que trabalham o tema a partir dessa hipótese, provavelmente o desenvolvimento mais completo e atualizado a respeito do tema encontra-se em Luiz Alberto Moniz Bandeira, Argentina, Brasil e Estados Unidos. Da Tríplice Aliança ao Mercosul. Buenos Aires: Editorial Norma, 2004.

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Como velha “região de conflitos”, cenário de um antagonismo geopolítico característico entre a Argentina e o Brasil do qual surgiram claros vencedores e vencidos, por volta dos anos 60 do século XX, a Bacia do Prata se voltava, por vários motivos, a uma mudança de paradigmas em sua equação global. Eram tempos tendentes a uma reviravolta a partir de uma lógica de confrontação já elucidada porém, esgotada em suas possibilidades de servir de base às tarefas do futuro, caminhando na direção de uma lógica de cooperação que muitos fatores, regionais e mundiais, apresentavam como muito mais capaz de enfrentar com êxito os desafios então emergentes. Não era fácil mudar o eixo geopolítico em uma área na qual o conflito se transformara, historicamente, em fator central do processo de formação dos Estados e também dos modelos de desenvolvimento e de aproveitamento dos recursos naturais de uma Bacia cheia de riquezas e possibilidades.18 Não obstante, como costuma acontecer, uma convergência de fatores fez com que todos os atores encontrassem benefícios em buscar essa mudança que, de toda forma, como em geral ocorre, acabou sendo mais invocada na retórica do que cumprida em profundidade na prática, e por certo conheceu – e conhece – trajetórias arriscadas. Em qualquer hipótese, as novas coordenadas internacionais e suas renovadas exigências à região, assim como o desafio de temas emergentes que exigiam respostas integradas, impeliam na direção de uma mudança geopolítica de envergadura na região do Cone Sul.

II. O “caso uruguaio” e seus desdobramentos: a “longa duração” de algumas premissas integracionistasO “Uruguai internacional”Pode-se dizer, sem receio de equivocar-se ou de exagerar, que o Uruguai

tem sido um país que, ao longo de sua história, esteve obcecado pelo “lá fora” do mundo e da região. Se levarmos em conta os percursos de sua história econômica, se repararmos na evolução de sua configuração demográfica e social, no processo de construção de sua cultura, nas modalidades coletivas de encarar a política ou de incorporar-se aos debates do mundo, dificilmente

18 Para um estudo exaustivo e profundo do significado do conflito na história da região, cf. J. Calatayud Bosch, “Los conflictos entre los pueblos de la Cuenca y el proceso formativo de los Estados”. Montevidéu: Ediciones Liga Federal, 2001.

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poderíamos contradizer essa percepção. O “lá fora” tem sido para os uruguaios, como disse Francisco Panizza, uma “imagem constitutiva” e um “olhar constituinte”. O mundo e a região, com efeito, constituíram, mais de uma vez, uma referência de comparação, mas também foram concebidos e percebidos coletivamente como um lugar de onde se “olha” para nós e portanto de onde também somos “constituídos”.

Em suma, para os uruguaios o “aqui dentro” tem sido historicamente muito interpenetrado pelo “lá fora” e as fronteiras entre uma e outra dimensão freqüentemente ficaram pouco nítidas. Desde o período da última colônia até o processo da revolução independentista, o território uruguaio viveu uma forte tensão entre os dilemas da autonomia ou da integração a respeito da comarca. O desenlace da revolução, com a constituição (não desejada por Artigas e contrária à sua proposta federal) do Uruguai como Estado independente, não foi capaz de solucionar essa tensão, como veio a confirmar-se, plenamente, nas décadas seguintes. Inclusive, poder-se-ia dizer que, de certo modo, essa tensão atravessa, de forma significativa, toda a história uruguaia e chega até o momento presente de sua inserção no Mercosul.

Essa dialética, que poderia ser qualificada como constitutiva da experiência coletiva dos uruguaios, tem projetado e projeta vários dilemas e discussões, algumas delas transferíveis a outros países da região. Um deles tem a ver com os destinos e orientações prioritárias do impulso integrador: a opção de inserção internacional que está entre a associação privilegiada com os vizinhos da região ou o vínculo preferido com as nações mais desenvolvidas do mundo norte-ocidental; a “fronteira continental ” ou a “fronteira transatlântica”. Nesse sentido, mais de uma vez na história dos países da região tem sido proposto (e ainda se propõe, por mais que nos pese) o lema de “entrar no mundo saltando por cima de nossos vizinhos”. A opinião sobre o que seria mais conveniente para nossos países ter “amigos ricos e distantes em vez de irmãos pobres e próximos” (cuja autoria específica cabe ao Eng. Alejandro Vegh Villegas, duas vezes ministro da economia do Uruguai durante o período de sua última ditadura) tem constituído uma fórmula que encontrou defensores significativos em diversos países e momentos da história regional.

Outro ponto de partida para repensar o tema da integração a partir do Uruguai, mas também a partir do Paraguai e da Bolívia, dentro do território da Bacia do Prata, como se viu, tem a ver com a assunção plena da condição

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de “país fronteira”. A fronteira é sempre o que separa e ao mesmo tempo o que une. É por definição um terreno de ambigüidades, uma zona de intercâmbio múltiplo e complexo. A fronteira, nesse sentido, não é apenas o limite, e sim muito mais do que ele. Um “país fronteira” precisa, além disso, entender-se como tal, com tudo o que isso implica. No aspecto histórico, o Uruguai, por exemplo, também tem assumido, reiteradamente, essa noção quando se repensou em adotar uma dialética pendular na relação com seus gigantescos vizinhos. Ou ainda, quando determinou sua política exterior a partir da idéia configuradora de constituir um equilíbrio regional, em especial a partir de um jogo tácito de “árbitro intermediário informal” entre os países da região, em especial entre a Argentina e o Brasil. Além de uma continuidade nas estratégias da política exterior uruguaia (desde Juan José Herrera no século XIX até a atuação em várias oportunidades dos governos mais recentes), encontrou-se em alguma dessas idéias uma fonte de inspiração permanente.

A pequena dimensão e conseqüente insuficiência da variável relativa ao mercado interno reforçam outra premissa para se pensar no problema da integração econômica e comercial com a região: o Uruguai se encontra impelido a voltar sua economia para uma orientação exportadora, já que depende, cada vez mais, de sua inserção competitiva nos mercados regionais e internacionais. Em sua equação econômica, mas também política, parafraseando o título de um famoso livro de Luís Alberto de Herrera, o Uruguai é “internacional” ou não é. Em termos econômicos, o “aqui dentro” não pode constituir-se em fator primordial de dinamização econômica, impondo-se também, neste ponto, a comunicação necessária com o “lá fora”. Na mesma perspectiva, a vocação integradora do Uruguai (nem tampouco a do Paraguai e da Bolívia) não pode articular-se com uma filosofia integracionista que conceba o bloco como uma “zona ampliada de substituição de importações”. A partir de seus padrões de comercialização de produtos, o Uruguai sempre se dirigiu a uma filosofia de “regionalismo aberto”, concebido como instrumento para lutar mais e melhor como bloco, com seus vizinhos, em busca de outros mercados. Essa premissa, que em outros períodos históricos pode ter sido objeto de debate em certas perspectivas, reúne, atualmente, certos consensos a partir das mais diversas procedências, o que certamente não inibe a persistência de debates pertinentes e responsáveis sobre esses aspectos. O que realmente merece discussão e olhares diferentes – e a esse respeito também abundam os antecedentes históricos – se refere a “como” integrar-se no mundo e na região.

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Levando-se em consideração a evolução demográfica, encontram-se, também, impulsos integradores. A sociedade uruguaia tem sido em boa medida uma sociedade de aluvião, na qual foi se formando à medida que chegavam os estrangeiros, que, no caso, constituíram-se no fator decisivo da evolução social do país durante o século XIX e parte do XX. Há muitas décadas e especialmente nas épocas mais recentes, o Uruguai tem se constituído um país de emigração, com o surgimento de uma “diáspora” muito importante em termos quantitativos e qualitativos, cujos centros de radicação se encontram precisamente localizados na região, sobretudo nas províncias e estados mais próximos da Argentina e do Brasil, respectivamente. Isso não apenas tem constituído um dado demográfico, mas também, solidificou-se como referência central da cultura e da identidade nacionais. Sem dúvida, algo parecido aconteceu no Paraguai e na Bolívia.

Percursos, debates e modelosUma sociedade é também aquilo em que se acredita e o que deseja ser.

Nesse sentido, os uruguaios têm recriado com freqüência o mito de uma ascendência exclusivamente devida aos “homens que desembarcaram dos navios”, destacando sua condição de “filhos da imigração européia” (basicamente espanhola e italiana), subvalorizando e desprezando outras origens imigratórias e também outras fontes raciais e culturais, como a dos negros e ainda a dos índios. Sem exageros indigenistas nem multiculturalismos forçados, a pretensão de uma homogeneidade europeizante e o cultivo de uma alienação resistente no que tange aos países vizinhos da região e do continente, parece ter feito parte das raízes desse autêntico símbolo cultural simbolizado pela metáfora – certamente bem sucedida durante muito tempo – da “Suíça sul-americana”.

Esse “nós” do “Uruguai ensimesmado”, autárquico, educado na “diferença” e “para caminhar sozinho”, antagonista de seus “outros” da região, vinculou-se à construção de um imaginário coletivo prevalecente, ainda que fortemente defasado em relação a uma trajetória histórica inscrita com nitidez no cenário dos itinerários regionais. Desses pontos de partida, cabe registrar, de forma sumária, alguns dos marcos de nossa trajetória histórica de “longa duração”, que mostram um sentimento regionalista, fortemente consistente com o campo da história econômica.

Mencionou-se anteriormente a intensidade dessa tensão entre autonomia e integração que já se torna visível em nossa “colônia débil e tardia”, como a

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chamou Carlos Real de Azúa. Referindo-se a esse período, Reyes Abadie, Bruschera e Melogno postularam a síntese da “faixa de pradaria, fronteira e porto”. Em vários sentidos, essa tríplice equação fundamental se estende ao longo de toda a história uruguaia. Não obstante, caso fosse necessário destacar dessas três dimensões uma que seja especialmente definidora, seria preciso, provavelmente, optar pela fronteira, como zona de litígio, de indeterminação, de encruzilhada comercial e cultural, que alimenta o tráfego e o intercâmbio cultural e mercantil.

Essa condição fronteiriça, como dissemos, marca também um dos eixos fundamentais do período revolucionário. O historiador inglês John Lynch, como veremos com maiores detalhes mais adiante, disse que houve duas revoluções na região: uma no Rio da Prata e outra contra o Rio da Prata. A revolução oriental, sobretudo durante toda a primeira etapa artiguista, tratou de harmonizar, primeiramente, ambas as perspectivas, mas seu inevitável contraste com Buenos Aires levou à necessidade de colocar-se claramente na segunda alternativa. Precisamente, um de seus aspectos centrais, foi o que colocou os orientais do lado da defesa da “soberania particular das aldeias” e contra a vocação absorvente das cidades-porto. A luta entre federalismo e centralismo, ou unitarismo, com todas as suas implicações no campo da organização econômica do território da Bacia, tinha a ver diretamente com a confrontação entre diferentes concepções em torno das modalidades de autonomia ou integração com a comarca. A luta entre federais e unitários foi, portanto, algo muito mais profundo do que uma controvérsia sobre modelos diferentes de organização política, envolvendo mais amplamente duas concepções fortemente antagônicas sobre como pensar a revolução e até o desenvolvimento do futuro.

Durante as primeiras décadas da vida independente, o incipiente Estado Oriental e seus vizinhos, todos com identidades políticas em vias de formação, fizeram parte de uma história que basicamente foi comum e em muitos aspectos indistinta. Durante esse longo processo que une a revolução independentista, a “Guerra Grande” e a “Guerra do Paraguai ”, o cenário por excelência não foi outro senão a região. Os Estados nacionais e, sobretudo as nações, não estavam formadas no Rio da Prata até 1830, ano em que emergiu o Estado Oriental após a Convenção Preliminar de Paz de 1828. Proliferava assim, conforme estudou o historiador argentino José Carlos Chiaramonte, uma multiplicidade de entidades que iam desde diferentes formas que se referiam às noções de

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aspecto provincial (“oriental ”, “portenho”, “cordobês”), regional (“argentinos”, entendidos na época como “rioplatenses”), e até continental (“americanos” ou a persistente idéia de “espanhóis americanos”). Os grandes conflitos e processos sociais eram dirimidos no território da região. Não existiam fronteiras jurídicas (não as previa, por exemplo, a primeira Constituição uruguaia de 1830), nem políticas (os grupos “argentinos” e “orientais”, “unitários” e “federais”, “blancos” e “colorados” se associavam permanentemente entre si, assim como também com os grupos da conflituosa zona sul do Império do Brasil), nem econômicas (o grande negócio da região era o chamado “negócio de trânsito”, com as hidrovias disponíveis na época na Bacia do Prata), nem tampouco social-demográficas (as incipientes configurações sociais e as primeiras correntes imigratórias se associavam a populações que se deslocavam e se radicavam com um sentido de limites muito vago).

Por outro lado, a utopia de uma rápida integração econômico-comercial com o mundo norte-ocidental depois de rompidos os laços coloniais com a Espanha, teve de enfrentar em toda a região latino-americana o que Tulio Halperin Donghi chamou de o período da “longa espera”. A grande expectativa dos membros das elites de governo na Iberoamérica dos momentos imediatamente posteriores à independência, diante da iminência de supostas realizações “naturalmente” decorrentes da abertura mercantil, mostrou ser um prognóstico muito ingênuo. Foi preciso esperar várias décadas para que a integração aos mercados mundiais efetivamente ocorresse. De certo modo, pode-se dizer que, somente nas últimas décadas do século XIX, foi que a maioria dos países latino-americanos encontrou – sob a hegemonia britânica – um lugar no mercado capitalista mundial, pela conjugação de uma série de condições internas e externas que culminaram nos primeiros processos de modernização capitalista na região.

A primeira integração aos mercados mundiais ocorreu junto com a implantação de modelos modernizadores que privilegiaram o “desenvolvimento para fora”, com desdobramentos fortemente dependentes dos centros hegemônicos do mundo ocidental, comandados na época pela Inglaterra. Essa modernização capitalista inicial não parecia percorrer a mesma trajetória da integração com a região, o que não podia deixar de produzir profundas implicações de índoles diversas (não apenas econômicas, mas também culturais). Naquele momento, desenhava-se um dos aspectos fundamentais da batalha

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entre diferentes modelos modernizadores, sendo que de um lado erguia-se o programa voltado para uma modernização imitadora, sem restrições em relação aos grandes modelos modernizadores europeus (“fazer pontes no oceano para que chegue a civilização”, como diria o colorado Manuel Herrera y Obes na Montevidéu da “Defensa”); do outro, a tentativa – muitas vezes imprecisa e vaga – de obter uma proposta de desenvolvimento mais assentada na própria matriz nacional e regional, para, a partir daí, estabelecer uma relação mais exigente e dialética com as experiências “civilizadoras” transatlânticas (“saber domar potros e carnear as reses é também civilização”, como assinalaria em sua réplica o médico nacionalista, porém não blanco, Bernardo Berro, no Cerrito sitiante). Ao mundo partindo da região ou ao mundo saltando por sobre a região constituíram, assim, certamente com toda uma ampla ordem de matizes e de alternativas intermediárias, alguns dos termos polares do dilema modernizador presente nos países da região.

Em relação a tais assuntos, por exemplo, eram temas de debate entre os uruguaios, por volta do final do século XIX, sobretudo a partir da grande crise econômico-financeira de 1890, com todos os seus sinais incontrastáveis relativos às insuficiências do modelo agroexportador e suas estratégias de inscrição nas dinâmicas dos mercados capitalistas mundiais. Essa grande crise financeira e econômica de 1890, iniciada não por acaso na City londrina, rapidamente se projetou em direção às zonas marginais, gerando contextos de crise profunda. Os uruguaios, no final do século XIX e início do XX, viveram sua crise como um grande desafio prospectivo. A sociedade uruguaia como um todo, das mais diversas correntes ideológicas, assumiu essa conjuntura decisiva como um convite a repensar o país e seu futuro, na qual, dentre outros aspectos, passava pela configuração dos relatos da nação, pela comparação com os novos modelos de desenvolvimento a serem implementados no futuro, pela tramitação de processos de integração política, econômica e social, pela rediscussão de cosmovisões e busca dos caminhos efetivos da inserção internacional do país (a definição do “Uruguai internacional” em suma, como assinalaria anos mais tarde o líder do Partido Nacional Luís A. Herrera no título de um de seus livros mais importantes), mais uma vez nessa dupla trajetória do encontro do país com o mundo e a região.

Iniciava-se, sem dúvida, para todos os países da região do Prata, uma época de projetos, de profundos conflitos, mas também de sínteses criadoras.

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Nesse quadro, mais uma vez ressurgiu o debate sobre a integração e seus modelos. A consolidação dos países modernos pressupôs, em vários aspectos, a ratificação de uma pauta de modernização “para fora”, embora tenha também permitido o estreitamento de certos vínculos com a região e a concretização de uma inserção bastante flexível e plural nos mercados capitalistas. Embora aquele período, sem dúvida, tenha sido de “prosperidade frágil ”, em particular pela evidente dependência das incipientes economias da região (e em particular a uruguaia) em relação às oscilações dos mercados mundiais, foi também uma conjuntura na qual se aprofundaram tanto aproximações econômicas quanto de outras naturezas entre os vizinhos da Bacia do Prata.

A consolidação da modernização uruguaia: impulso e freio do ímpeto reformista do primeiro battlismo19

Em seguida, apresentaremos, de forma sintética, alguns aspectos importantes do momento culminante do processo de modernização no Uruguai desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Esse período decisivo da história uruguaia foi marcado, em vários sentidos, pelo “impulso e freio”20 do projeto reformista defendido – de maneira predominante porém não exclusiva – pelo chamado “primeiro battlismo”. Nesse quadro, a partir do forte influxo de toda uma matriz de desenvolvimento econômico, cultura política e inserção internacional e regional, que estava sendo pensada desde o início do Estado Oriental independente (1830) e durante a chamada “Guerra Grande” (1838/39-1851/52), consolidou-se um papel ampliado do Estado, de forte conteúdo integrador, ao mesmo tempo em que se configurava o sistema moderno de partidos. De forma paralela, a política uruguaia definia uma profunda articulação eleitoral e toda a sociedade se definiu, como explicaremos mais adiante, em uma clara projeção policêntrica, com múltiplas conseqüências em diversos planos. Esses processos constituíram o pano de fundo da expansão de um formato de modernização econômica no Uruguai.

Nenhum dos aspectos que marcaram o século XIX no Uruguai constituiu um salto no vazio ou uma ruptura clara em relação ao passado. Até mesmo

19 Período de governo do Presidente Battle (N. do T.).20 A alusão é ao título do conhecido livro de Carlos Real de Azúa, Impulso y su freno: tres décadas de battlismo y las raíces de la crisis uruguaya. Montevidéu: Banda Oriental, 1964.

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os fenômenos mais inovadores recolheram as heranças e tradições de uma história anterior muito rica e densa em significados de diversos tipos. Por isso, pode-se estabelecer uma enumeração – ainda que de forma sucinta – de alguns legados importantes que emolduraram as lutas e buscas políticas do Uruguai do início do século XX.

a) Para um bom ponto de partida, no dizer de Carlos Real de Azúa, seria preciso remeter a essa “patente, inegável debilidade que a constelação de poder do continente apresentou no Uruguai do século XIX [...] caracterizada pela hegemonia econômico-social dos setores empresariais agro-comerciais e seu entrelaçamento com a Igreja e as Forças Armadas como fatores de consenso e apoio coativo”.21 O limiar do século XX constituía um momento oportuno para configurar essa constelação de poder: o Uruguai de 1900 se mostrava bem mais aberto para receber e interpretar o impacto dos fenômenos típicos da política moderna desenvolvidos com certa comodidade naquele país novo e de aluvião.

b) Também foram relativas as restrições dos condicionamentos externos, seja porque a própria implantação capitalista – débil em suas origens – não acabara de se afirmar, seja porque a oferta uruguaia nos mercados mundial e regional era bastante diversificada, ainda que dentro do quadro da mono-produção pecuária. Embora formasse parte do “império informal ” britânico, o país não havia deixado de ser fronteira da região e das lutas inter-imperiais. A partir dali e de suas próprias dimensões reduzidas, havia a possibilidade de certas atitudes e políticas de caráter nacionalizante e também de certas negociações.

c) A combinação de ambas as debilidades – a da implantação oligárquica e a da implantação capitalista – contribuiu para reforçar a presença do Estado na economia e na sociedade civil. Por volta do final do século XIX, o Estado uruguaio já oferecia uma sólida tradição intervencionista, expressa não apenas no desenvolvimento de seu poder coativo e administrativo, mas também no cumprimento de tarefas empresariais e arbitrais. O reformismo battlista encontraria – e em parte seria seu herdeiro e re-impulsionador – um Estado empresário e interventor com “relativa autonomia” das classes sociais dominantes

21 Cf. Carlos Real de Azúa. Uruguay: una sociedad amortiguadora? Montevidéu: Banda Oriental-Ciesu, 1985.

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e de seus atores que, apesar de tudo, viram nele uma possibilidade de projetar suas demandas e dissimular suas hesitações.22

d) Essa primazia do Estado coadjuvou também a centralidade das mediações, especificamente políticas, na sociedade uruguaia. Configurados em data precoce, resistentes diante dos reiterados embates doutorais e fusionistas23, os partidos políticos, ou suas formas prévias, serviram de intermediários idôneos entre as demandas formuladas por uma sociedade civil carente de corporações robustas e um espaço público definido e ordenado de forma quase monopolista a partir do Estado. Da mesma maneira, blancos e colorados também logo se reconheceram reciprocamente e aceitaram uma pauta de participação nas gestões do governo.24

e) Com um fundo comum liberal republicano (em termos amplos) na qual imaginava-se que pudesse vir a expandir,25 blancos e colorados participaram, assim, de uma composição binária, dialética e irredutível à oposição liberais-conservadores, tão típica da América Latina do século XIX. Após cruentos conflitos, sucessivas negociações e exclusões, aqueles partidos puderam exercer profunda penetração na sociedade e na cultura daquela “pátria gringa”26 que nascia. Assim, acabaram por aceitar-se rapidamente como agentes legítimos e expressaram, cada qual a seu modo, essa genérica matriz liberal que prevalecia e era tão hegemônica.

22 A hipótese da “autonomia relativa” do Estado uruguaio em relação às classes dominantes, de inspiração “poulantziana”, foi usada como sustentáculo básico em seus estudos por muitos autores uruguaios e estrangeiros que pesquisaram o primeiro battlismo. Entre esses, caberia citar as obras de Carlos Real de Azúa, José P. Barrán e Benjamin Nahun, Henry Finch, Germán Rama, Juan Rial, etc. As citações de seus textos estão incluídas na bibliografia.23 Durante todo o século XIX, a elite doutoral lutou intensamente para acabar com o poder dos caudilhos orientais. Nessa tarefa, muitos deles chegaram a promover a fusão de ambos os partidos em um único partido da Nação, com exclusão explícita do elemento caudilhesco.24 Cf. Romeo Pérez, Op. cit.25 Cf. Francisco Panizza, “El liberalismo y sus otros. La construcción del imaginario liberal em el Uruguay (1850-1930)”, em Cuadernos del Claeh, n. 50, Montevidéu, 1989.26 A imigração e em particular as modalidades de naturalização e incorporação política dos imigrantes constituem temas centrais na problemática que nos ocupa, embora sua consideração específica ultrapasse os limites do presente artigo.

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Essa precoce matriz partidária e o clima fértil para a implantação de novas idéias e mitos liberais (como veremos, também com o discernimento de certas notas claramente provenientes de um republicanismo cívico acentuado) se articulavam, além disso, com outros aspectos cuja consideração excede os limites deste artigo. No entanto, é importante registrar alguns, ainda que de forma fugaz: a debilidade do mundo político e cultural colonial e em especial de um esquema de “cristandade indígena”, semelhante ao vigente em outras partes do continente americano; a debilidade das clivagens territoriais, étnicas, comunitárias, em um quadro de predomínio de uma visão de pequena grandeza que favorecia a construção de uma cidadania definida a partir do horizonte político e de seus atores predominantes; uma avassaladora e precoce primazia urbana e da capital, que favorecia os esquemas de integração homogeneizadora; entre outros aspectos.

Tudo isso levou a que, já na segunda metade do século XIX, ficasse bastante nítido um incipiente associacionismo no qual, diferentemente do ocorrido em outros países do continente e da região27, tornava-se perceptível uma intermediação importante – embora não excludente – dos partidos políticos. Com traços primitivos e muitas deficiências, foram eles atores relevantes dessa explosão associativa e da imprensa e que em outros países percorreu caminhos muito diferentes. Tudo isso mostrava, de certa forma, o que poderíamos qualificar como precoce adensamento da sociedade política em detrimento de uma sociedade civil mais débil e segmentada.

A crise econômico-financeira da década de 1890 e a crise político-militar caracterizada pelas guerras civis de 1897 e 1904, operaram como grande espaço de interpelação ao sistema político. A partir de um conjunto de avaliações acerca do país em termos de seu destino, foi possível voltar a propor com mais vigor temas como o da legitimidade política, o da conseqüente ampliação da cidadania, bem como o da necessidade de novos atores políticos e sociais. Essa dupla crise propiciou uma introspecção ousada que, seguramente, tinha bastante relação com a identidade dos que a empreendiam, pois proveio, em

27 Para uma comparação contrastante de como tramitaram esses processos de explosão associacionista no Rio da Prata, cf. os trabalhos feitos por Hilda Sabato, no caso de Buenos Aires, em sua pesquisa sobre “Cidadania, participação política e formação de uma esfera pública em Buenos Aires, 1860-1890.” Entre outros, pode ser consultado “La política en las calles. Entre el voto y la movilización. Buenos Aires 1862-1880”. Buenos Aires: Sudamericana, 1998.

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grande parte, daqueles que mostravam muito mais vinculação com a política profissional do que com a estrutura produtiva.28

Como principal intérprete dos novos tempos (esses “tempos de formação”, como os chamou o próprio Battle y Ordoñez), o “battlismo” – como afirmaram Barrán e Nahun – nasceu no “berço de ouro” do Estado, dono, a essa altura, de uma incontrastável força militar (confirmada em 1904) e agente renovado de uma prática interventora na economia e na sociedade. Nasceu também dentro da matriz de uma velha tradição colorada, cujas peças chave eram o próprio exercício do governo (que detinha desde há quatro décadas) e a identificação com o Estado.

O itinerário daquele primeiro battlismo é reconhecível em uma série de reformas desenvolvidas em vários cenários da vida do país. Seu plano de transformações, que lutava, antes de mais nada, pela integração moderna do país, percorreu suas grandes trilhas: a reforma econômica (nacionalizações, estatizações, promoção da indústria por via do protecionismo); a reforma social (apoio crítico ao movimento operário, promoção de uma legislação social protetora e trabalhista, desenvolvimento de medidas de caráter “solidarista” com os setores mais empobrecidos); a reforma rural (eliminação progressiva do latifúndio pecuário, promoção alternativa de um país de pequenos proprietários, com maior equilíbrio produtivo entre pecuária e agricultura); a reforma fiscal (maior aumento dos impostos sobre os ricos e redução dos impostos ao consumo, com objetivos também no plano da arrecadação fiscal e do dirigismo econômico e social); a reforma moral (incremento da educação, defesa de uma identidade nacional cosmopolita, anticlericalismo radical, propostas de emancipação para a mulher); a reforma política (ampla politização da sociedade, colegialização do Poder Executivo).29

Todas essas reformas (muitas das quais não chegaram a concretizar-se em seus conteúdos fundamentais) não apenas congregaram vontades entusiastas; também provocaram medos e resistências. A primeira crise do battlismo encontrou sua expressão mais rotunda na derrota eleitoral de 30 de julho de 1916. Num quadro de crescente polarização social e política, foi convocada e

28 José P. Barrán e Benjamin Nahun estudaram detida e precisamente os temas da profissionalização do elenco político de 1900 e do fato de relativamente não pertencer aos círculos empresariais. 29 Cf. José P. Barrán e B. Nahun. Battle, los estancieros y el Império Británico. Tomo 4. Las primeiras reformas (1911-1913). Montevidéu, 1983.

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eleita uma Assembléia Constituinte, cuja tarefa era a reforma da Constituição de 1830. A instância eleitoral funcionou como verdadeiro plebiscito para o modelo reformista, identificado, nessa ocasião, como uma proposta colegialista apoiada pelo battlismo e indiretamente também pelo socialismo. Seu resultado foi, para muitos, surpreendente: na primeira vez em que se aplicava o voto secreto e o sufrágio universal masculino, a cidadania uruguaia se pronunciou categoricamente contra o governo e sua proposta reformista. O ano de 1916 delimitou, assim, o paradoxo constitutivo da moderna democracia uruguaia. À primeira vista, o freio ao reformismo30 foi produto de seu tropeço nas urnas; a democracia política de sufrágio universal, finalmente assegurada na nova Constituição31, nasceu juntamente com o imperativo político da conciliação e do pacto, da parcimônia para a mudança social e do receio ante os impulsos hegemonistas. Dali em diante, a partir desse ato de nova fundação do Estado, buscar-se-ia dirimir os pleitos fundamentais da sociedade uruguaia a partir da legitimidade dos caminhos institucionais de uma democracia de partidos, co-participação e eleições.

O que era? Em que consistiu essa tão propagada “política do alto”, anunciada em 1916 pelo sucessor de Batlle após a segunda presidência deste, Feliciano Viera? Em termos gerais, constituiu-se em freio, detenção, paralisia nos planos reformistas, mas não retrocesso, pelo menos em um primeiro contexto. Nesse sentido, o freio ao impulso reformista não se traduziu em hegemonia da direita anti-battlista. Além disso, a guinada conservadora auspiciada em 1916 teve seu próprio “alto”32. Foi um período, por exemplo, de confirmação do “país de serviços” para o Uruguai, com uma definida oferta

30 Poucos dias depois da derrota eleitoral de 1916, o então presidente Feliciano Viera (sucessor designado pelo próprio Battle) anunciou, diante da convenção do partido, um “alto” à marcha das reformas, argumentando que a população parecia não compartilhar dos planos vanguardistas do battlismo.31 A nova Constituição, que entrou em vigor a partir de março de 1919 e que foi fruto de um pacto político entre o battlismo e a oposição nacionalista, incorporou – como veremos em detalhe mais adiante – um conjunto de dispositivos inovadores em relação à primeira carta de 1830. Entre elas, devem ser citadas: separação entre Igreja e Estado; sufrágio universal masculino; ampliação das garantias eleitorais, estabelecimento de um exótico poder executivo bicéfalo (com um Presidente e um Conselho Nacional de Administração); reconhecimento das empresas públicas; fixação de uma seqüência eleitoral aproximadamente anual e flexibilização dos procedimentos de reforma constitucional, entre outros. Na verdade, Real de Azúa assinalou que o pacto constitucional pareceu inspirar-se em uma decidida busca de “exorcismo do poder ”.32 Cf. Caetano, Gerardo. La República Conservadora (1916-1929). 2 tomos. Montevidéu: Fin de Siglo, 1992, 1993; e Caetano, Gerardo e Jacob, Raúl. El nacimiento del terrismo, (1930-1933). 3 tomos. Montevidéu: Banda Oriental, 1989, 1990 e 1991.

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turística em relação à Argentina e uma proposta de intermediação comercial dirigida prioritariamente – embora não exclusivamente – à região riograndense. O “Uruguai moderno” – e o mesmo lema, encontrava-se presente em outros países da região – nascia, assim, em meio aos debates sobre as virtudes e defeitos de diferentes modelos de integração do “aqui dentro” e do “lá fora”. Durante muitas décadas, a partir inclusive do final do século XIX, discutiram-se temas como o da construção de um porto de águas profundas na costa oceânica do departamento de Rocha, as modalidades de articulação econômico-comercial da Bacia do Prata ou a possibilidade de intensificar as relações econômicas com a Argentina e o Brasil, a venda de serviços com esquemas de complementação produtiva, orientados para o campo ou para a indústria. A sucessão posterior caracterizada por conjunturas de crise como a de 1929, permitiu vislumbrar, ao mesmo tempo, a necessidade de integrações múltiplas e não unívocas com o nosso “lá fora”, tanto regional quanto mundial.

A crise do “Uruguai reformista” e a deriva autoritáriaMuito além dos diversos modelos em disputa, as diferentes conjunturas

pelas quais passaram as peripécias uruguaias nos últimos 80 anos parecem reforçar a convicção de que o destino nacional prosperou muito mais com a assunção de esquemas pluralistas do que com apostas dogmáticas no que se refere às políticas de integração com a região e o mundo. Como país pequeno, submetido, além disso, à pressão de vizinhos gigantescos, o Uruguai encontrou seus melhores momentos quando soube manter-se como fator dinâmico de equilíbrio e intermediação com a Argentina e o Brasil. Além disso, quando ensaiou modalidades de inserção flexível e dialética com os mercados mundiais e regionais, bem como quando colocou em prática esquemas pragmáticos de desenvolvimento econômico que combinaram apostas e estratégias diversas. Ao mesmo tempo, o país também soube aproveitar conjunturas internacionais favoráveis. Não obstante, a história uruguaia contemporânea é pródiga em exemplos da falta de audácia e criatividade na hora de impulsionar estratégias renovadoras.

Este último aspecto especialmente se manifestou quando o mundo do segundo pós-guerra se tornou plenamente visível em meados da década de 1950, com seus constrangimentos evidentes para manter os formatos tradicionais da inserção internacional do país. Nesse momento, os uruguaios e

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muitos outros povos da região, puderam perceber que o mundo havia mudado radicalmente em relação à perspectiva dos interesses latino-americanos e que, em função disso, havia se tornado inviável a simples reprodução do clássico modelo de substituição de importações, em particular no que se referia à sua pauta de inserção internacional.

A plena consciência dessa circunstância e dos desafios prospectivos que ela implicava, por exemplo, para a sociedade uruguaia, tem constituído – e ainda constitui – um tema polêmico. O registro dos debates a respeito e o mínimo prosseguimento das políticas implementadas por parte dos diferentes governos nas últimas décadas, constituem um tópico que, certamente, transcende os limites deste texto. Não obstante, e no que se refere ao objetivo de apresentar alguns aspectos importantes relativos à experiência da história econômica do Uruguai, devem-se assinalar alguns elementos históricos contemporâneos:

a) a transformação radical das condições da inserção internacional do país, consolidadas, especialmente, após o primeiro choque do petróleo em 1973, no limiar da ditadura;

b) A conformação, a partir de 195933, de pautas e políticas de abertura econômica, de liberdade cambial e de capitais que, inclusive, deram origem a uma opinião generalizada – embora debatida – favoráveis a um modelo mais aberto;

c) A incorporação, por parte de setores importantes da população uruguaia, de pautas culturais e de consumo internacionais, contrastando com a persistência de desigualdades visíveis na distribuição da renda;

d) O prolongamento do debate – com diferentes atores e argumentações – em torno da problemática da inserção do país no mundo, diante da cada vez mais generalizada constatação das várias conseqüências do processo de globalização.

33 Em 1959, o governo nacionalista eleito em novembro de 1958, com maioria do chamado eixo “herrero-ruralista”, obteve a aprovação parlamentar da chamada Reforma Monetária e Cambial. Essa iniciativa, somada à assinatura no ano seguinte (1960) da primeira Carta de Intenção do Estado uruguaio com o Fundo Monetário Internacional, costumam ser interpretadas, na história econômica do país, como o princípio da adoção de políticas mais liberais e de abertura, que se radicalizariam durante a ditadura.

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Nestas últimas décadas, e em função dos vários aspectos e fenômenos antes mencionados, o primeiro mundo se tornou mais distante para nós, desenvolvendo-se um processo de crescente “desvinculação” das economias centrais em relação às economias dos países subdesenvolvidos, para os quais o problema primordial passou a ser o da marginalização. Em contrapartida, nossos países começaram a associar-se mais radicalmente com a região, mesmo levando-se em conta seus benefícios e também seus riscos, como revelam os indícios dos últimos anos.

Nesse sentido, constata-se, em suma, que a constituição do Mercosul deve ser percebida, também, como a “desembocadura” e corolário de todo um processo histórico de reconhecida trajetória de mais “longa duração”. A assinatura, em março de 1991, do Tratado de Assunção, que fundou de maneira formal o Mercosul, ratificou, em todos os sentidos, o reencontro de vários países da região com as linhas históricas de seu passado, alimentadas e consolidadas pelo efeito das transformações radicais da “guinada da época” dos últimos 30 anos. Sobre esse último particular, as menções poderiam na verdade ser múltiplas, desde a evolução aleatória das cifras do comércio exterior e a orientação dos serviços, até o paralelismo e envolvimento crescente das trajetórias dos sistemas políticos da região após as ditaduras, dentre outros. Por outro lado, essa maior ligação com a região se associa, por sua vez, com o aprofundamento em escala mundial do que se costuma chamar de nova “ordem de arquipélagos”, referência importante para entender muitos dos antecedentes destes tempos de mundialização.

Nessa mesma direção, torna-se necessário enfatizar que, nos anos 60, repetiram-se no Uruguai muitos aspectos conhecidos ocorridos na América Latina da época. A crise econômica se traduziu na visão perturbadora de uma “industrialização sem horizontes”, de um “setor rural estancado” e sem mercados, de um “comércio exterior desequilibrado”, sem dúvida os legados menos defensáveis do país reformista e de sua “prosperidade frágil”. A alternativa pela adoção de políticas ultra-liberais e de cunho “fundomonetarista” fracassou rapidamente sem dar os resultados esperados por seus defensores. Após a evidência generalizada da crise de todo um modelo de desenvolvimento, a violência política se instalou no país como instrumento de luta pelo poder, após décadas em que as divergências pareciam ser dirimidas nas urnas. A polarização ideológica chegava ao Uruguai, desprovido, na ocasião, de seus velhos

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“amortecedores” (um Estado redistribuidor e “capitalista substituto”, partidos “keynesianos” que regulavam com características clientelistas o mercado de trabalho e os preços internos, os excedentes derivados de contextos favoráveis para a exportação de produtos agropecuários, etc.). Além disso, estendia-se pelo território fertilizado de uma população que começava a enfrentar problemas até então inéditos (pauperização, inflação descontrolada, publicidade de fenômenos de corrupção e políticas repressivas diante dos crescentes protestos sociais).

De modo algum é possível afirmar que nessa década e meia que vai do triunfo do Partido Nacional em 1958 (com a conseqüente guinada liberal nas políticas públicas) ao golpe de Estado ocorrido em 27 de junho de 1973, não tenha havido buscas de alternativas por parte dos atores políticos e sociais. Impõe-se ressaltar algumas das mais importantes: o vai-e-vem das políticas econômicas, desde enfoques liberais ortodoxos até movimentos pendulares de orientação desenvolvimentista; mudanças fortíssimas em nível dos partidos políticos tradicionais (guinada do Partido Colorado para a direita após o advento de Pacheco Areco à presidência em dezembro de 1967 e guinada para a centro-esquerda do Partido Nacional, sob a liderança renovadora de Wilson Ferreira Aldunate); criação em 1963-1965 do Movimento Nacional Tupamaros, com sua proposta de guerrilha armada de cunho foquista; processo de unificação sindical que culminou com a criação da Convenção Nacional de Trabalhadores e a convocação do chamado Congresso do Povo (1965); surgimento de grupos violentos de ultra-direita; consolidação de grupos militaristas no seio das Forças Armadas, em luta permanente com grupos constitucionalistas, lideradas na época pelo general Seregni; nascimento em 1971 da coalizão das esquerdas denominada Frente Ampla como terceira força política efetivamente competitiva, entre outros acontecimentos e processos fortemente modificadores.

O processo uruguaio sofreu forte radicalização a partir de 1968, com o governo presidido por Pacheco impulsionando uma resposta positiva diante da militarização crescente das ações do MLN e o aprofundamento dos protestos dos movimentos sindical e estudantil. O governo não apenas radicalizou sua política repressiva, mas também realizou, naquele mesmo ano, um ajuste autoritário na política econômica, com a constituição do chamado “gabinete empresarial” (com altos representantes do capital substituindo políticos

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“profissionais”) e o decreto de “congelamento de preços e salários” de 28 de junho de 1968 (que significou uma enorme transferência de renda dos trabalhadores para os setores empresariais). O crescimento da polarização resultou em um aumento inusitado da violência política e social, com seqüelas de civis mortos e feridos que não ocorria no país desde a última guerra civil de 1904. Com o pano de fundo do aumento dos conflitos, a opinião interna das Forças Armadas começou a inclinar-se claramente em favor de opções golpistas, apoiadas, além disso – como no restante do continente – pelo governo norte-americano.

As eleições de 1971, que terminaram em um grande empate político e que deram a presidência a Juan Maria Bordaberry, católico integrista proveniente da classe ruralista e com orientações ideológicas claramente antidemocráticas, não puderam, como outrora, resolver as divergências de fundo. Já com as primeiras ações de terrorismo de Estado em curso, com um governo débil encabeçado por um presidente desleal às instituições, com uma nova ofensiva militar impulsionada pelo MLN em 1972 que terminou, nesse mesmo ano, com a total derrota do movimento guerrilheiro (anunciada oficialmente em outubro daquele ano pelas Forças Armadas). Nesse caso, a via para o golpe militar apoiado por Bordaberry estava praticamente franqueada. O rompimento da ordem institucional ocorreria, finalmente, no ano seguinte, em dois momentos: a partir de um primeiro episódio de insubordinação militar em 9 de fevereiro (na qual se aceitou a institucionalização da presença dos militares como protagonistas no governo); e em seguida em decorrência do marco final de 27 de junho (com o golpe de Estado propriamente dito, efetivado mediante a dissolução do Poder Legislativo e respondido, de imediato, por meio da greve geral convocada pela CNT e apoiada pelos partidos e setores de oposição ao regime “cívico-militar” emergente).

III. Os tempos mais recentesA ditadura civil-militar (1973-1985)O desfecho da crise uruguaia expresso no golpe de Estado havia alcançado

um significado que transcendia os limites do país. Provavelmente, como em poucas oportunidades, o Uruguai ficava assimilado aos impulsos dramáticos da América Latina e aparentemente enterrava sua “singularidade” da qual

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tantas vezes se havia orgulhado. Em apenas poucos anos, entre 1973 e 1976, o Cone Sul ficava por completo entregue às ditaduras militares (“a outra Santa Aliança”, como dizia Carlos Quijano), que responderam a estímulos externos semelhantes, já que implementaram políticas econômicas de teor semelhante e, mesmo levando-se em conta importantes diferenças, praticaram a mesma sistemática de violação dos direitos humanos. De modo paradoxal, essa forma de vinculação do Uruguai à região (chegou-se a falar em “latino-americanização”), ocorreu de forma simultânea a um extraordinário processo de transformações mundiais, das quais o país permaneceu relativamente isolado.

Segundo uma periodização descrita pelo cientista político uruguaio Luís E. González, os doze anos do regime autoritário uruguaio (1973-1985) se dividiriam em três etapas claramente visíveis: 1) a etapa da “ditadura comissarial”, entre 1973 e 1976; 2) uma segunda, que tal autor denominou de “ensaio fundacional”, até 1980; e 3) a última, dominada pela “transição democrática” iniciada em 1980 e que se concluiria “formalmente” – ainda que não em muitos aspectos relevantes – com a assunção das autoridades civis em 1985.

“Comissarial” foi a ditadura inaugural do processo, caracterizada de forma resumida pela perplexidade do poder recém-conquistado e incapaz de desenvolver um projeto que transcendesse a tarefa de por “a casa em ordem”, tão desprezada pela sempre denunciada “subversão onipresente”. O “comissário” se mostrou implacável e tenaz, quase não deixou vestígios e em geral sua gestão foi bem sucedida (num primeiro momento foi confusa e alguns até confundiram o “comissário” com o “fundador” de progressismos, em meio a imitações “peruanistas”). Nesse quadro, estabeleceu-se a proibição da atividade política tradicional, a ilegalidade “cirúrgica” dos partidos e organizações de esquerda, o fim da central sindical, a intervenção na universidade e o “saneamento” da administração pública, com milhares de demitidos por motivos ideológicos. Desatou-se a repressão, radicalizando-se o terrorismo de Estado iniciado mesmo antes do golpe de Estado. A política foi “privatizada” ao extremo (negando assim sua essência) e os políticos foram denegridos publicamente.

O que fazer, uma vez colocada “a casa em ordem”? Para o presidente Bordaberry (como vimos, antidemocrata confesso, admirador fervoroso da ditadura brasileira e posteriormente do general Pinochet), a nova equação política do Cone Sul pressupunha “um conceito radicalmente diferente do que repousa na clássica divisão de poderes de Montesquieu”. O golpe de Estado significara o fim de

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tal “artifício” e permitiria a chegada da autoridade “natural e autêntica”. Tratava-se, assim, de “dar forma institucional a isso”, “de aceitar na Constituição esse novo equilíbrio”. Concluía o presidente com a necessidade da existência de uma autoridade permanente e real, radicada “com o beneplácito geral ” nas Forças Armadas. Se o poder público se resolvia dessa forma, não se podia dizer o mesmo no tocante ao “poder privado” em se tratando da desunião e da disputa (“do indisputável ”), que eram, em sua opinião, os partidos políticos. Finalmente, as Forças Armadas optaram por um caminho distinto: resolver a encruzilhada por meio do caminho menos oneroso de prosseguir a ditadura a partir de um discurso “democrático” e sem abandonar as pretensões de restauração de uma ordem política “traída”. Os partidos haviam construído a nação, os homens – e não o sistema – a haviam colocado em perigo, o voto popular lhes havia dado insuperável legitimidade. A “nova República” que seria fundada mediante decretos constitucionais teria partidos e não meras “corporações” como defendia Bordaberry. Entretanto, a tutela militar criaria as condições para seu correto funcionamento.

As desavenças entre Bordaberry e os militares geraram a crise política de junho de 1976, que culminou com a destituição do presidente e a designação interina do Dr. Alberto Demicheli (um idoso político de filiação colorada conservadora e idéias também neocorporativistas) para ocupar a primeira magistratura. Em um comunicado público divulgado pelas Forças Armadas, estas declararam não desejar “compartilhar [...] a responsabilidade histórica de suprimir os Partidos Tradicionais...”. Como primeira medida de “seu governo” o novo presidente Demicheli tratou de assinar os Atos Institucionais 1 e 2, pelos quais, respectivamente, ficava suspensa “até novo pronunciamento” a convocação para eleições gerais e criava-se o “Conselho da Nação”.

A evolução da política econômica nesse período marcou uma das várias relevantes continuidades entre os governos de Pacheco e Bordaberry, anteriores a 1973, e o governo de fato presidido inicialmente por este último a partir de 27 de junho. O Plano Nacional de Desenvolvimento 1973-1977, formulado em 1972 pelo Ministério de Planejamento e Orçamento do governo anterior à ditadura acabou sendo ratificado depois do golpe com poucas modificações relevantes, cujo cumprimento seria também relativo.

Na realidade, a implementação efetiva do novo modelo – que pressupunha uma severa radicalização dos programas liberalizantes anteriores – seria postergada por um ano, quando se desenvolveria o novo impulso neoliberal

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com a chegada ao Ministério da Economia e Finanças do Eng. Alejandro Vegh Villegas, em junho de 1974. Esse atraso na aplicação da estratégia projetada refletia, entre outras coisas, a prioridade inicial conferida pelo regime autoritário à “normalização” política, desempenhando, desde o início, seu papel de “ditadura comissarial”. A crise do petróleo ocorrida em 1973 e suas graves repercussões para o Uruguai geraram, inclusive no plano simbólico, esse quadro traumático do qual necessita qualquer política econômica extremista – como era a que começava a ser aplicada – para uma arrancada vigorosa.

A análise de alguns dos resultados econômicos verificados nesse período (1973-1976) ilustra claramente as principais mudanças ocorridas na sociedade e na economia uruguaias: produziu-se um crescimento rápido e contínuo do PIB; incrementou-se – na contramão do discurso governista – o setor terciário da economia, com importante peso do Estado; verificou-se, também, uma reestruturação do comércio exterior, com importante reformulação das exportações, porém com uma balança comercial de persistente saldo negativo; aprofundou-se a concentração da renda e agravou-se, ainda mais, a queda do salário real, entre outros aspectos não menos importantes.

A distribuição regressiva da renda determinou uma crescente exclusão econômica e social dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se afirmava a rentabilidade dos empresários e do capital estrangeiro (fundamentalmente financeiro), verdadeira “base social ” do novo regime. A estratégia do trabalho suplementar somente conseguiu dissimular a crescente pauperização de amplos setores da população, ao que se acrescentou o já mencionado auge significativo da emigração. Conforme se orgulhavam os porta-vozes oficialistas, pouco restava do Uruguai tradicional.

A superação da divergência – anos mais tarde revelada com maiores detalhes – entre Bordaberry e as Forças Armadas, além de pressupor a substituição presidencial e o fim de seus ímpetos corporativistas, marcou o começo da tentativa de construção de uma “nova ordem” político-institucional. Em seu discurso, os militares insistiam na idéia de que essa mudança deveria vir acompanhada da consolidação e aprofundamento do “ajuste estrutural ” da economia, iniciada nos anos anteriores. Dominada, assim, por um novo messianismo e estimulada por certos êxitos na evolução de alguns indicadores econômicos (em especial o crescimento do PIB a uma média anual superior a 3% desde 1974), a corporação militar parecia adotar, definitivamente, as

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premissas de um neoliberalismo extremo, e desinteressar-se, num primeiro momento, dos custos sociais dessa opção. O “ajuste estrutural ” pressupunha dar prioridade, como objetivos de política econômica, à redução do custo da mão de obra e do orçamento do Estado e, para isso, era necessário reduzir a pressão fiscal e acabar por completo com as tradicionais políticas redistributivas.

Até 1978, a política econômica se orientou, fundamentalmente, para o incremento das exportações não tradicionais e a liberalização do mercado de câmbio. A partir de 1978 e, sobretudo, em 1979, modificou-se a modalidade do “ajuste estrutural ” e começou a ser implementado o chamado “projeto praça financeira”. Este pressupunha, entre outras coisas, atenção prioritária à integração do Uruguai ao mercado internacional de capitais, na qual se deu ênfase à estabilização de preços mediante uma gestão radicalmente monetarista do balanço de pagamentos. Por meio de uma forte contração cambial operada pela vontade oficial, aprofundou-se a abertura comercial e o movimento de capitais. Ademais, acelerou-se o ritmo de crescimento do produto (superando 6% em 1979), embora tudo isso se fizesse ao preço de um grande incremento da dívida externa (cresceu aproximadamente 30% em 1979) e de um déficit também expressivo na balança comercial (passou de US$ 71.200.000 em 1978 a US$ 418.200.000 em 1979 e a US$ 621.700.000 em 1980). Mais uma vez, o boom econômico tinha alicerces extremamente frágeis.

Se a superação histórica da paralisia do produto contava com débeis alicerces econômicos, os custos sociais das empresas já mostravam um quadro dramático para os setores mais carentes da sociedade uruguaia. O salário real continuou encolhendo enquanto se consolidavam os processos de concentração de renda com enriquecimento constante das camadas mais altas. Isso, no entanto, não foi acompanhado por incremento significativo da poupança e do investimento produtivo. Enquanto isso, o restante da população se lançou decididamente à corrida do emprego múltiplo, embora somente os setores médios pudessem conter temporariamente a redução drástica de seu poder de compra. As camadas mais pobres, sem outra alternativa, sofreram, por volta de 1980, um processo de pauperização crescente, amargando o impacto da supressão das políticas redistributivas e do congelamento dos gastos sociais do Estado.

Levando-se em conta que esse foi o quadro econômico e social do “ensaio fundacional ”, seu correspondente cenário político ficou marcado pela tentativa de

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se obter uma primeira legitimação do projeto militar, por meio da convocação da cidadania a um plebiscito com o objetivo de reformar a Constituição. Em 1º de setembro de 1976, o Dr. Aparício Mendez (antigo político de longa militância nacionalista) assumiu a presidência da República. Uma série de Atos Institucionais preparou o caminho para que, com sua assinatura – negada por Alberto Demicheli, que por isso fora afastado – caísse sobre o elenco político uma pesada proscrição. As inabilitações políticas decretadas, além de suas gradações, eram previstas para durar em média quinze anos, o que sem dúvida revelava as previsões cronológicas da ditadura. Conseguia-se, além disso, o fechamento formal da vida partidária, com a eliminação explícita de toda a esquerda, sem o custo político da supressão explícita dos partidos.

Entre 1978 e novembro de 1980, o regime se mostrou decidido a legitimar sua atuação mediante a convocação – sem mediação partidária – dos cidadãos às urnas, em um processo que culminaria no plebiscito constitucional. Os chefes militares, que aproveitavam todos os atos públicos para explicitar e fundamentar a continuidade de sua tutela sobre o sistema político, esforçavam-se para que houvesse a continuidade de uma “prudente abertura” – segundo a expressão textual de um dos principais generais da época – em busca do apoio dos cidadãos, com base em uma reativação política restrita e controlada. As Forças Armadas acreditavam que se fossem capazes de vencer a pressão internacional e controlassem a influência dos partidos políticos, seu projeto conseguiria obter legitimidade explícita diante da população por meio do voto popular. Para isso, pretenderam dissimular a tutela com uma proposta constitucional que o cientista político Luís E. González caracterizou como “um híbrido” de “raízes tradicionais” por um lado e de “doutrina de segurança nacional ” por outro.

Em 30 de novembro de 1980 – até o dia e o mês estavam a favor da tradição política – os uruguaios se apresentaram maciça, pacífica e silenciosamente para votar, em meio a suspeitas de derrota e fraude. Votaram mais de 85% dos eleitores habilitados, dos quais 885.824 (57%) se pronunciaram contra o projeto militar, e 643.858 (42%) a favor. Embora não representasse numericamente um desequilíbrio esmagador, a relação de 3 para 2 contra o projeto autoritário possuía, no entanto, enorme significado político, que surpreendeu tanto o governo quanto seus adversários. O plebiscito de 1980 foi, portanto, a segunda grande encruzilhada da ditadura. Apoiado pelas Forças Armadas e por seu empenho na legitimação trazida pelo voto popular, a derrota de 30 de

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novembro se converteu, com a vitória da oposição, no momento mais decisivo do início da transição democrática.

Embora muitos uruguaios não tivessem tomado consciência dessa extraordinária peculiaridade, sem dúvida o Uruguai surpreendeu a opinião mundial com todo esse processo. Como explicar que, em um momento de forte impulso econômico – embora, como vimos, assimétrico – com todos os meios de comunicação a sua disposição e ainda após o “êxito” do exemplo chileno de 1977 a 1980, os militares uruguaios tivessem fracassado em seu primeiro pleito eleitoral? Triunfo – novamente – da política sobre qualquer outra dimensão de convivência? O peso da tradição democrática e inclusive antimilitarista, a influência da breve e velada convocação a votar “não”, associado ao descontentamento gerado pelos efeitos das políticas econômicas e sociais aplicadas, contribuem, sem dúvida, para a explicação. Mas também os militares, da perspectiva de seu continuísmo dogmático e soberbo (na qual, por exemplo, inibiu a busca de apoios dentro dos partidos) erraram de caminho. Pelos resultados imediatos, pode-se afirmar que as Forças Armadas uruguaias foram mais eficazes nas tarefas comissariais do que na construção das fundações, embora também seja verdade que jamais abandonaram completamente a primeira atividade em favor da segunda.

O desdobramento final da “ditadura de transição” (1980-1985) veio a confirmar uma vigorosa restauração dos partidos uruguaios como atores centrais da vida política. A ditadura “aceitou” finalmente seu epílogo, condicionada, sobretudo, pela substituição que sofreu na iniciativa política. O civilismo imposto pacificamente a partir do plebiscito de 1980 foi o que obteve protagonismo crescentemente inevitável e o que levou os militares a estabelecerem uma estratégia de procurarem “a melhor saída”.

O ano de 1982 foi decisivo se verificarmos que em seu transcurso foi legalizada boa parte da oposição política com exceção da esquerda. Além disso, confirmaram-se e prepararam-se novas oposições sociais e começou a desencadear-se, na parte final do referido ano, o desmoronamento econômico e financeiro. O esforço da ditadura para edificar uma “nova sociedade” havia fracassado e o regime perdia crédito mesmo entre os diversos grupos dos setores economicamente poderosos. Salvo os círculos financeiros, ainda influenciados pelas possibilidades de especulação, os demais grupos das classes empresariais – industriais, comerciantes e principalmente produtores rurais

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– foram retirando seu apoio de maneira cada vez mais explícita, assumindo, até mesmo, algumas atitudes contestadoras. Mas a resistência à ditadura se reforçava e se organizava fundamentalmente a partir de “baixo”: alguns sindicatos mostraram, naquele ano, importantes sinais de reativação e os estudantes universitários também reiniciaram sua arregimentação, o mesmo ocorrendo em relação ao movimento cooperativo na área de moradia. Nas eleições internas dos partidos políticos permitidos pelo regime, realizadas em novembro de 1982, os resultados chegaram a ser mais adversos para o governo do que os de 1980, já que a cidadania deu a vitória, por expressiva margem, às forças mais claramente opositoras e democráticas de lemas mais tradicionais.

Enquanto se desenrolava esse processo no cenário político, o boom econômico que chegara ao auge no biênio 1978-1980 encontrava drástico final. Associado a outros desequilíbrios macroeconômicos, a desvalorização em relação ao dólar – pedra angular de todo o projeto “Uruguai praça financeira” – havia agravado consideravelmente a dispersão dos preços relativos. Muito rapidamente o “ensaio estabilizador” cairia, vítima de seus próprios fundamentos: o agudo desequilíbrio externo e uma situação de virtual incapacidade de pagamento provocaram o desmoronamento da experiência. A débâcle foi marcada por novo e considerável aumento do endividamento externo, por um aprofundamento da fuga de capitais e pela queda das reservas internas líquidas, enquanto explodia o férreo dirigismo cambial do governo e a equipe econômica era substituída.

Começaria, assim, um duríssimo “ajuste recessivo” da economia uruguaia, cujo programa seria traçado a partir da assinatura de uma nova carta de intenção com o FMI em fevereiro de 1983, com condições especialmente danosas em diversos planos (exigências de política interna, custos, prazos, período de carência, etc.). Os objetivos do novo ajuste eram direcionados, primeiramente, a restabelecer uma situação minimamente sustentável do balanço de pagamentos e, ao mesmo tempo, continuar a buscar a estabilidade de preços e a retomada do crescimento, sem medir, para tanto, os custos sociais. Em dezembro de 1983, o Eng. Vegh Villegas voltou ao Ministério da Economia e Finanças, com a declarada meta de evitar que a ditadura entregasse à democracia uma situação econômica que se assemelhasse – segundo suas próprias palavras da época – a uma “lata de lixo”. Os resultados desse derradeiro ajuste recessivo marcavam, sem dúvida, um saldo muito negativo do processo de radicalização do programa neoliberal. Embora a inflação e o déficit fiscal tenham sido

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relativamente controlados, os custos sociais e econômicos acabaram sendo demasiadamente onerosos. Segundo analisou Hugo Davrieux, a redução dos gastos correntes do Estado se realizou quase que exclusivamente por meio de uma drástica redução do poder aquisitivo dos passivos e, sobretudo, das remunerações dos funcionários, que já se encontravam no nível mais baixo das últimas três décadas. Por sua vez, o salário real reduziu-se em mais de 30% entre 1983 e 1984; a taxa de desocupação cresceu vertiginosamente; o endividamento interno se multiplicou, afetando gravemente vários setores empresariais; as importações se reduziram aproximadamente 30%; os gastos públicos sofreram redução (embora tivesse persistido o déficit), enquanto que os serviços financeiros para o pagamento da dívida passaram de 3,7% a 22,4% da despesa consolidada.

As Forças Armadas, por sua vez, conseguiram definir – após uma intensa disputa interna na qual o perdedor foi o último presidente da ditadura, o general Alvarez – uma estratégia que pressupunha o total abandono do projeto de criação de um “partido do processo”, mas também do maximalismo expresso nas primeiras negociações formais com os partidos em 1983. A tendência finalmente predominante era a que colocava o problema em termos de uma “saída” na qual se deveria procurar o melhor caminho e que deixasse a salvo a corporação militar por meio de uma retirada “ordenada”. Não obstante, foi a partir de então que a “ditadura transitória” passou a percorrer uma segunda etapa, marcada pelo anseio do acordo entre militares e políticos e orientada, cada vez mais, para a dinâmica da negociação. Tudo isso devolvia o comando aos partidos. Essa vocação negociadora desembocou em três resultados muito interligados: relativizou a pressão da mobilização social, levou logo cedo a dinâmica política à via eleitoral (diante das eleições gerais previstas para novembro de 1984) e ajustou a saída a partir de um “pacto” entre os militares e a maioria dos partidos políticos, o que finalmente se consubstanciou no chamado “pacto do Clube Naval”, em cuja negociação para a transição participaram o Partido Colorado, a Frente Ampla e a União Cívica, com a auto-exclusão do Partido Nacional, em protesto pela prisão de seu líder máximo, Wilson Ferreira Aldunate, que havia retornado do exílio em 16 de junho de 1984.

Os resultados eleitorais de novembro de 1984 deixaram evidente uma relativa reprodução do cenário de 1971, o que ratificava, entre outros aspectos, a estabilidade das tendências eleitorais e a vertente “restauradora” que a transição democrática parecia oferecer. As maiores variações se produziram

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na correlação de forças dentro de cada agremiação política (especialmente no Partido Colorado e na Frente Ampla), mantendo-se relativamente inalterada a percentagem de votos globais de cada partido. No Partido Colorado, a percentagem de votos totais se manteve no patamar de 41%, mas, internamente, os setores battlistas deixaram o pachequismo em clara minoria. Por sua vez, o Partido Nacional obteve 35% dos votos, caindo cerca de 5% em relação aos resultados anteriores à ditadura, influenciado, seguramente, pela ausência de seu líder máximo na campanha, como também pela fuga de votos “conservadores” diante da consolidação de uma maioria progressista no partido. Além de ver confirmada sua identidade após onze duros anos de repressão e do fracasso do projeto militar de eliminá-la para sempre, a Frente Ampla regressava ao Parlamento após a obtenção de 22% dos votos com importantes mudanças em suas votações internas: o extraordinário resultado obtido pelo ainda denominado Movimento para o Governo do Povo (de esquerda moderada, encabeçado por Hugo Batalla), que relegava a segundo plano o Partido Comunista era sinal de que modificações importantes estavam por vir. Diferentemente do que ocorreu durante o restante do processo político sob a ditadura (particularmente no plebiscito de 1980, nas eleições internas de 1982 ou nas grandes mobilizações de 1983), a contenda foi finalmente definida pelas denominadas “maiorias silenciosas”.

Os últimos 20 anos. Ciclos do processo de governo (1985-2005)Em termos gerais, a partir de uma perspectiva histórica, podem

ser identificados três grandes ciclos ao longo destas duas décadas de democracia:

i. A transição democrática (1985-1989), tarefa que praticamente monopolizou os esforços do governo e a atenção central da primeira administração do Dr. Sanguinetti;

ii. Impulsos e freios das reformas (1990-1999), característica que abrangeu a administração presidida pelo Dr. Lacalle e a segunda presidência do Dr. Sanguinetti, concluindo-se, basicamente, com a crise brasileira, iniciada em janeiro de 1999 com a conseqüente evolução da recessão em nosso país;

iii. Recessão, colapso e reativação econômica (1999-2005), que configuram as linhas centrais do último governo liderado pelo Dr. Jorge Battle.

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Conforme já indicado, a verdadeira transição democrática, em nossa opinião, iniciou-se com a assunção das autoridades constitucionais eleitas nos restritos comícios políticos de 1984 (com pessoas e partidos proscritos). Essa tarefa incluía uma ampla agenda de temas (anistia para os presos políticos, investigação e remessa à justiça sobre a autoria e responsabilidades das gravíssimas violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura, restituição ou compensação aos funcionários públicos demitidos, regularização do funcionamento das instituições em um Estado de Direito pleno, etc.). Além disso, acabou sendo, sem dúvida, a principal questão que o primeiro governo democrático pós-ditadura teve de enfrentar. Deixando-se para trás o que fora acordado na Concertação Nacional Programática (Conapro) pelos partidos e principais atores sociais, o novo governo liderado pelo presidente Sanguinetti estabeleceu o que passou a se chamar “governo de entonação nacional ” com o estabelecimento de um acordo limitado (porém operativo) com o Partido Nacional, cujo chefe era, na ocasião, Wilson Ferreira Aldunate.

Com contas a pagar, mas também beneficiado pelos melhores desempenhos e realizações em outras áreas (readmissão de milhares de funcionários públicos e reconstrução geral de um clima de liberdades, por exemplo) a maioria de blancos e colorados – embora com dissidências internas, especialmente entre os primeiros – deram por concluídos os temas da transição. Assim, o governo ia consolidando seus esforços em busca de um processo de reordenamento e “normalização geral ” e a favor de uma administração da crise econômica e social deixada como herança pela ditadura, julgada gradualista inclusive dentro de seu próprio partido. De todo modo, conseguiu-se avançar na recuperação de alguns equilíbrios macroeconômicos (embora deixando para o futuro governo um elevado déficit fiscal) tais como: o PIB aumentou; verificou-se incremento efetivo no salário real; impulsionou-se o retorno à negociação coletiva tripartite no âmbito privado; a inflação caiu levemente, apesar dos altos e baixos; conseguiram-se melhorias importantes nos indicadores sociais mais relevantes e; além do mais, promoveu-se o aumento dos investimentos em diversas áreas.

Após a morte de Wilson Ferreira Aldunate, ocorrida em março de 1988 (que deixou o caminho aberto para o ascendente Luís Alberto Lacalle) e do triunfo no ano seguinte de Jorge Battle sobre Enrique Tarigo (ocorrido nas eleições internas de um battlismo cada vez menos unido e com inocultáveis

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divergências políticas e ideológicas em seu seio), as eleições de 1989 se projetaram, de maneira bastante nítida, para um cenário de competição centrífuga. Notava-se, inclusive, uma evidente e muito parecida orientação liberal dos dois candidatos favoritos. Além disso, a esquerda debilitada vivia dramaticamente a ruptura de sua unidade (com a separação do PGP e do PDC, que formariam o Nuevo Espacio junto com demais partidos menores). Os resultados eleitorais impulsionaram, assim, uma nova agenda reformista de características nitidamente liberais. Na realidade, tratava-se da chegada ao Uruguai das chamadas “reformas de primeira geração” do denominado “Consenso de Washington”, inerentes à interpretação dada pelos organismos financeiros internacionais à nova etapa do capitalismo globalizador. É importante mencionar que essas idéias eram as defendidas há muito tempo tanto por Lacalle quanto por Battle, que, certamente, não as ocultaram em seus respectivos programas na campanha eleitoral. Enquanto isso, Sanguinetti mantinha importantes matizes em relação aos enfoques de ambos, que eram então dominantes entre os governos da América Latina. Após árdua negociação, concretizou-se, finalmente, o acordo na qual surgiu o chamado governo de “Coincidência Nacional”, o que lhe proporcionava maioria no Parlamento.

Apesar das inúmeras dificuldades da coalizão governante, que logo deixaram a administração de Lacalle sem maioria parlamentar e em situação de isolamento, foi possível, no entanto, avançar em algumas de suas iniciativas e reformas, algumas previstas em seu programa eleitoral e outras que emergiram de uma adaptação pragmática em relação às reivindicações dos integracionistas da região. Estas últimas reforçavam, nitidamente, a incorporação do Uruguai ao Mercosul, sendo que, de fato, tal iniciativa já havia se iniciado em anos anteriores a partir de uma aliança restrita entre o Brasil e a Argentina. Tal iniciativa, que inicialmente fora promovida pelo Itamaraty e que logo consolidou sua articulação com a Argentina, gerou, imediatamente, forte impacto no recém-instalado governo uruguaio. Este promoveu, de maneira acelerada, a entrada do Uruguai no acordo regional, devido ao que se percebia nitidamente no governo Lacalle: permanecer fora do acordo poderia gerar graves conseqüências negativas para o comércio uruguaio (desde há tempos muito centrado na região), além do efeito de isolamento do país. Finalmente, como vimos, chegar-se-ia à assinatura solene do Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991,

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entre os presidentes da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Sem dúvida, a partir de visões e projetos muito diferentes, os quatro partidos uruguaios representados no Congresso concordaram com a aprovação parlamentar do Tratado (com pouquíssimas dissidências na esquerda), na expectativa de que a integração regional pudesse ser a almejada locomotiva capaz de “desbloquear” os rumos internos do país em seu próprio benefício.

Outro exemplo de mudança ocorrida apesar das dificuldades da ferida “consciência nacional”, foi a forte inflexão realizada a partir de 1991 na desregulamentação do mercado de trabalho e obtida a partir do referido ano, segundo o recurso de não modificar a lei vigente e sim deixar de cumpri-la. O governo presidido por Lacalle encontrou seus principais obstáculos em dois pontos que julgava decisivos: a Lei de Empresas Públicas e a reforma da Previdência Social. No primeiro caso, as forças do governo conseguiram no Parlamento a sanção da citada lei, cujo principal conteúdo era a permissão à Antel associar-se ao capital privado, porém ela foi impugnada por setores e partidos, assim como por organizações sociais opostas ao que continha a norma. Cumpridos os requisitos legais para submetê-la ao recurso do referendo popular na segunda instância de ratificação, tal etapa foi finalmente realizada em 13 de dezembro de 1992, sendo derrogada a lei por números expressivos: 71,58% contra 27,19%. Por sua parte, no que diz respeito à reforma da previdência social, o fracasso político foi mais profundo, já que nem sequer foi possível obter a aprovação da lei.

Os resultados das eleições de 1994 revelaram uma situação extremamente singular, consagrando um resultado de quase tríplice empate entre o partido Colorado, que finalmente se sagrou vencedor, o partido Nacional e a Frente Ampla-Encontro Progressista, nessa ordem. Basta dizer que, entre o primeiro e o terceiro partido, a diferença foi de apenas 1,7% dos votos válidos. Novamente na presidência, o Dr. Sanguinetti apostou de imediato na intensificação do processo de negociação, com o objetivo de obter a sustentação de uma coalizão de governo com alicerce mais sólido e perdurável do que o obtido por seu antecessor. Para alcançar essa meta indispensável para enfrentar um pacote de reformas, Sanguinetti encontrou um aliado fundamental: a interlocução do novo presidente do Diretório do Partido nacional, Alberto Volonté, de claro perfil negociador e convicto partidário da concretização de uma coalizão nítida, que impulsionasse reformas em vários campos.

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Assim foi possível solidificar o chamado “Governo de Coalizão”, contando, para tanto, com 84 legisladores a seu favor na Assembléia Geral (64% de seus integrantes). Os resultados de um acordo dessa natureza, que praticamente se estendeu até o ano eleitoral, superaram todos os processos alcançados por governos anteriores. Uma breve, porém não exaustiva resenha a respeito da produtividade legislativa alcançada pela coalizão durante o período 1995-1998, oferece uma evidente constatação do mencionado anteriormente: ajuste fiscal, Lei de Segurança Cidadã, Lei de Reforma da Previdência Social, Lei de Orçamento Nacional, Lei de Desmonopolização de Produtos Alcoólicos, redução de gastos públicos, Lei de Investimentos, Lei do Quadro Regulador do Sistema Energético (cuja impugnação não conseguiu alcançar os requisitos exigidos para aplicação do recurso do referendo), reforma constitucional sancionada no Parlamento e logo aprovada em plebiscito por uma margem mínima de 50,4% dos votos emitidos em 8 de dezembro de 1996, entre outras iniciativas menos relevantes.

Com o apoio de uma coalizão mais coesa, o segundo governo de Sanguinetti pôde avançar em várias reformas, entre as quais podem ser destacadas quatro: a reforma da previdência social (por meio do estabelecimento de um regime misto que combinava o regime universal a cargo do Banco de Previdência Social com um sistema complementar de poupança e capitalização individual); a reforma educacional (com propostas como: a descentralização dos centros de formação docente no interior do país, a universalização da cobertura pré-escolar para crianças de quatro a cinco anos, a extensão de escolas de tempo integral em zonas pobres com fornecimento de alimentação diária, o rechaço persistente das autoridades educativas à aplicação de políticas descentralizadoras e promotoras da iniciativa educacional em nível privado, a modificação, sempre controvertida, de planos e programas, tudo isso, no entanto, com implementação mediante fóruns pouco participativos e com o problema da postergação da inevitável demanda de dignificação dos salários reduzidos de mestres e professores, etc.); o prosseguimento da reforma do Estado (caracterizada pela ênfase em temas como: a focalização, gerência descentralizada, flexibilidade nas provisões de recursos, impulso à competitividade e produtividade, incentivo à redução do número de funcionários públicos, etc.); e a reforma constitucional (com fortes modificações do clássico sistema eleitoral uruguaio conhecido, vulgarmente, como “lei de legendas” bem como outras transformações mais superficiais no que se refere ao regime de governo e à relação entre os poderes).

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À análise dessas propostas reformistas que marcaram o segundo governo do Dr. Sanguinetti deve-se acrescentar o registro de outros dois aspectos que também distinguiram esse período (1995-2000). Em primeiro lugar, melhoria e em seguida o crescimento moderado (com relativos altos e baixos no final da década) dos níveis de pobreza (em particular ao nível estrutural da infantilização da pobreza e da indigência), apesar da persistência do crescimento econômico e da continuidade da melhoria em outros indicadores sociais (taxa de mortalidade infantil e principalmente universalização do ensino pré-escolar). Em segundo lugar, uma forte reabertura dos debates em torno do tema das violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura e a busca da verdade sobre o ocorrido.

No que se refere ao tema da violação dos direitos humanos durante a ditadura no decorrer dessa segunda administração Sanguinetti, deve-se assinalar que a controvérsia sobre essa “conta pendente” do período ditatorial foi impulsionada por motivos locais e internacionais. Diante disso, foram lançadas diversas gestões e iniciativas concretas para viabilizar uma renegociação do problema entre os militares e o governo, centrada nos aspectos relativos aos esclarecimentos dos fatos e na necessidade de que as Forças Armadas e o Estado assumissem a responsabilidade institucional pelo ocorrido durante a ditadura. Foram, na verdade, muitas as iniciativas propostas nesse sentido, porém, todas elas se chocaram com uma atitude francamente contrária do governo e dos militares, o que acabou por bloquear uma nova tramitação, ainda que preliminar, do tema. A resposta dos oficiais superiores a essas gestões foi tão unânime quanto negativa. Em abril de 1997, os generais assinaram um “compromisso” na qual afirmavam a manutenção de “uma mesma linha” contrária à formação de comissões para investigar o passado e “a entrar em revisionismos que não conduzem a nenhuma boa saída”.

A primeira experiência de aplicação da reforma constitucional que, como vimos, fora aprovada em dezembro de 1996 no plebiscito por pequena margem, ocorreu em 1999. Nessa ocasião, e contra muitos prognósticos contrários, em sua quinta candidatura à presidência da República, o Dr. Jorge Battle, com 72 anos de idade e 55 de vida pública ininterrupta, finalmente alcançou a vitória. Após ganhar as eleições internas do partido Colorado, Battle venceu, em seguida, o segundo turno das eleições realizado em 28 de novembro (tendo firmado um acordo programático com o Partido

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Nacional), com 52,2% dos votos contra 44,53% obtidos pela chapa do Encontro Progressista, encabeçada por Tabaré Vazquez. A coalizão que emergiu para o segundo turno foi fruto da união entre a segunda e a terceira forças políticas no que se refere aos votos obtidos, com exclusão da primeira (Frente Amplo-Encontro Progressista) e com maiorias parlamentares exíguas (55 deputados dentre 99 e 17 senadores dentre 31), dentro de partidos com notórias divergências internas, entre outros fatores.

Após um início auspicioso caracterizado por iniciativas como a criação de uma Comissão para a Paz, bem como o reconhecimento de um problema relativo aos esclarecimentos das violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura, na qual seus antecessores haviam insistido em considerar como já concluídos, o país padeceu com as chamadas “sete pragas” (febre aftosa, desequilíbrios monetários na região, crise financeira, desconforto nos mercados internacionais, etc.). Nesse contexto, além das controvérsias, o presidente Battle e seu governo viram cair vertiginosamente não apenas sua popularidade, mas também sua credibilidade como governante. Para isso, contribuiu de forma decisiva a verborragia imprudente do presidente, associado a grandes erros no plano da comunicação política. Nesse caso, não apenas com a opinião pública, mas também com interlocutores tão poderosos como outros presidentes da região ou o jornalismo nacional e internacional. A eclosão da crise, que já vinha se anunciando, finalmente se desatou com toda a virulência em 2002 e encontrou um governo debilitado em várias frentes. Os fundamentos da reforma constitucional de 1996 – criar regras eleitorais que incentivassem coalizões fortes e duradouras e presidentes com força política e apoios próprios – evidenciaram sua inconsistência naquela encruzilhada. A coalizão se rompeu no pior momento e o centro presidencial chegou, diante dessa conjuntura crítica, a uma debilidade tal que o levou quase ao imobilismo e à impossibilidade de interlocução negociadora. Como hoje sabemos e na época se intuía, não faltaram conspirações que buscavam a interrupção do mandato de Battle e a realização de eleições antecipadas, hipótese catastrófica que acabou sendo evitada graças à lealdade institucional e ao civismo demonstrado por todos os demais atores.

No momento mais crítico da crise de 2002, a posse do senador Alejandro Atchugarry no Ministério da Economia produziu uma espécie de passagem tácita da liderança do governo, de um “centro presidencial ” paralisado e sem

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credibilidade, a uma espécie de “primeiro ministro”. Cabia a ele elaborar a sustentação da governabilidade em meio à tormenta, mediante acordos parlamentares e a obtenção de apoios dos líderes partidários mais conhecidos. Não é exagerado afirmar que esse período foi provavelmente o momento mais difícil e ao mesmo tempo de maior êxito de todo o governo Battle, embora o tempo da colheita tenha vindo depois.

A profundidade da crise foi de magnitude inédita. A recessão se prolongou praticamente durante quatro anos e meio, desde janeiro de 1999 até meados de 2003. A análise de indicadores como a queda acentuada do PIB entre 1998 e 2003 (em termos globais e per capita), os níveis de desemprego que se aproximaram do patamar recorde de 20%, os problemas de ocupação que afetaram a maioria da população ativa, a forte queda do salário real, o aumento da inflação, a relação entre a dívida pública e o PIB, o declínio vertiginoso das exportações, a queda da atividade da indústria manufatureira, o aprofundamento do endividamento agropecuário, a crise devastadora do sistema financeiro, entre outros aspectos, levaram o país às portas do calote que, finalmente, pôde ser evitado.

Permaneciam, além disso, as terríveis seqüelas sociais da crise. Em apenas quatro anos, mais de cem mil uruguaios emigraram, cifra superior à diferença entre nascimentos e falecimentos ocorridos durante esse mesmo período. Segundo dados oficiais, a pobreza elevou-se no final de 2003 a 30,9%, com 56,5% situados na população entre 0 e 4 anos e mais de 50% na faixa da população menor de 18 anos. A taxa de deserção educacional se manteve em algarismos bastante elevados, enquanto se revelavam percentagens consideráveis de jovens que não estudavam nem trabalhavam. A tormenta desnudou as falências do Estado quanto à devida atenção a uma situação de emergência social. Ficou evidente, da maneira bastante clara, que a sociedade hiper-integrada e o Estado escudo dos débeis tinham ficado para trás.

Com o prematuro início da campanha, promovido pelo referendo sobre a lei da Ancap celebrado em 7 de dezembro de 2003 (que se concluiu com um contundente e talvez inesperado 62,3% a favor da derrogação da norma, mas que na realidade constituiu um plebiscito avassalador em torno da impopularidade do governo e também das figuras mais conhecidas de ambos os partidos tradicionais, Sanguinetti e Lacalle), um ano e meio antes da mudança de governo, as restrições internas e externas para sua continuidade se tornaram

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ainda mais evidentes. Não obstante, o contexto internacional apresentava-se cada vez mais favorável à consolidação da reativação econômica iniciada no país, a partir da locomotiva do setor agropecuário que encontrava excelentes preços e possibilidades de mercado. Os indicadores econômicos começaram a evidenciar um ritmo crescente de recuperação, embora sua transferência ao campo social e sua influência política fossem ainda lentas e limitadas. Como prova, apesar do crescimento do PIB uruguaio entre 12% e 13% em 2004, a pobreza cresceu no mesmo período.

Mesmo com as surpresas ocorridas nas eleições internas de 27 de junho de 2004, que mostraram antecipadamente um cenário de segundo turno, com um partido nacional renovado em suas lideranças e com aspirações de competitividade aumentadas diante da esquerda, o que aconteceu a partir de julho veio confirmar os prognósticos mais gerais: a vitória no primeiro turno, em 31 de outubro, do Encontro Progressista – Frente Ampla – Nova Maioria (EP-FA-NM), após uma campanha eleitoral sem erros e na qual essa agremiação sempre teve a iniciativa. Os resultados da eleição de 31 de outubro de 2004 foram, com efeito, coroados com uma aluvião de votos para a esquerda, que lhe proporcionou maioria em ambas as casas legislativas. Essa vitória alcançada pelo EP-FA-NM e seu candidato presidencial, o Dr. Tabaré Vázquez, no primeiro turno das eleições nacionais realizadas no domingo, 31 de outubro de 2004, constitui, sem dúvidas, uma guinada histórica na política do Uruguai. Mudava-se, dessa maneira, uma hegemonia de 175 anos de governos colorados, nacionalistas ou ditaduras cívico-militares que governaram o país com alternâncias esporádicas (com clara supremacia da liderança governamental colorada sobre a nacionalista, ainda que em formato co-participativo e em outros momentos sob forma de coalizão). O triunfo da esquerda ocorreu num momento em que o declínio eleitoral das legendas tradicionais vinha se confirmando desde a criação da coalizão Frente Ampla, em fevereiro de 1971, mas que se acelerou com ritmo vertiginoso na última década e em especial durante o último lustro. Deve-se observar que a obtenção da maioria legislativa em ambas as câmaras constituiu, além disso, um fato relevante e inédito desde a recuperação democrática em março de 1985, como também o período anterior à ditadura iniciada em 1973.

Examinemos sob uma perspectiva histórica mais ampliada a envergadura das mudanças ocorridas. Apesar da ruptura verificada entre 1988 e 1989, a

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esquerda manteve um crescimento sustentado e permanente desde o final da ditadura militar, conforme assinalamos, até, e de forma mais significativa, a última década. Vejamos o gráfico correspondente à evolução ocorrida entre o total de votantes dos “partidos tradicionais” (blancos e colorados) em relação aos chamados “partidos desafiantes” (basicamente a esquerda). As tendências não podem ser mais claras: ao retrocesso contínuo de blancos e colorados em seu conjunto, antepõe-se a um aumento sistemático e constante da esquerda, tanto no momento em que esteve dividida (desde 1989 com a cisão do chamado Novo Espaço), até a reunificação em 2004 sob a legenda Encontro-Progressista-Frente Ampla-Nova Maioria.

Gráfico 1Evolução eleitoral do sistema de partidos uruguaios

por blocos partidários. Série 1984-2004

Fonte: Área de Política e RR.II do Banco de Dados da FCS/Udelar.

Caso a série de registros eleitorais se limite ao da evolução dos votos válidos por partido nos últimos vinte anos, o que se verifica, sem sombra de dúvidas é que a grande mudança no comportamento eleitoral da cidadania uruguaia se produz justamente nesse período e, além disso, de forma permanente e com magnitudes crescentes, como já foi observado.

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Quadro 1Votos válidos por partidos. Série 1984-2004. Em percentagens

P. Colorado P. Nacional U. Cívica/ PDC/P.I.

FrenteAmpla

Novo Espaço Outros Total

1984 41,2% 35,0% 2,4% 21,3% – 0,0% 100%

1989 30,3% 38,9% – 21,2% 9,0% 0,6% 100%

1994 32,3% 31,2% – 30,6% 5,2% 0,7% 100%

1999 32,8% 22,3% – 40,1% 4,6% 0,2% 100%

2004 10,6% 35,1% 2,1% 51,7% – 0,5% 100%

Fonte: Área de Política e RR.II do Banco de Dados da FCS/Udelar com base em dados do Tribunal Eleitoral.

Em última análise, sob uma perspectiva mais global acerca dos itinerários do sistema político durante essas últimas duas décadas, podem ser registradas algumas fortes tendências: 1) a profunda mudança política tem sido efetivamente o traço dominante da trajetória política no país nos últimos vinte anos; 2) Diferentemente de outros países da região, as reformas liberais foram implementadas de forma mais moderada e gradualista, com manutenção resistente do peso do Estado como traço definidor do novo equilíbrio público-privado; 3) de qualquer forma, apesar dos freios observados, freqüentemente têm-se dissimulado mudanças e ajustes relevantes consolidados durante estas duas últimas décadas, conforme assinalado nas páginas anteriores.

IV. Algumas reflexões finaisApós o longo périplo analisado, acreditamos que é possível confirmar

a centralidade dos dois eixos de reflexão apresentados como sendo decisivos – embora não excludentes – na construção e implementação de um modelo de desenvolvimento econômico de sucesso para o Uruguai sob a perspectiva histórica. Em uma clave estratégica, pode-se assinalar, com convicção, que boa parte do futuro econômico do país depende de sua sabedoria na hora de combinar suas inegáveis raízes e vocação regionalistas com sua não menor necessidade de abertura inteligente com projeção efetivamente internacional. Trata-se, mais uma vez, da tensão criadora mais aprofundada do “Uruguai internacional”. Por outro lado, a reformulação das relações entre política e

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economia, de acordo com pautas que correspondam de maneira efetiva às exigências dessa mudança de época em que vivemos, configura um fator crucial na mesma direção. Ou seja, no quadro de um país e de uma sociedade nos quais, apesar de tudo, a política, o Estado e os partidos continuam pesando e influindo muito no rumo da agenda pública, também no terreno da evolução da economia. Como partes articuladas de um mesmo debate, como dimensões que se entrecruzam em múltiplas formas na construção e implementação de toda estratégia de desenvolvimento, esses dois vetores analíticos, além de servirem para uma releitura da história econômica do Uruguai, também continuam a ser úteis para entender as encruzilhadas mais atuais. Muitas das dificuldades e peripécias da experiência de governo da esquerda desde março de 2005 dão prova cabal do que foi dito.

Bibliografia básica (acrescentada aos textos citados nas notas)

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Bértola, Luis. La industria manufacturera uruguaya (1913-1961). Montevideo: FCS-Ciedur, 1991.

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Caetano, Gerardo (Comp.). América Latina. Desafíos de su inserción internacional. Montevideo: Claeh, 2007. (Coordenador geral da obra coletiva e autor da introdução e de um dos artigos, intitulado Hegemonias y fronteras en la Cuenca del Plata: pasado y presente de una tension historica en la region, p. 9 a 17 e 59 a 101 respectivamente).

Cancela, Walter e Melgar, Alicia. El desarrollo frustrado. 30 años de economía uruguaya. (1955-1985). Montevideo: Claeh – EBO, 1985.

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Vários autores. El Uruguay del siglo XX. La economía. Montevideo: EBO-IE, 2001. Vários autores. El Uruguay del siglo XX. La política. Montevideo: EBO-ICP, 2003.Vários autores. El Uruguay del siglo XX. La sociedad. Montevideo: EBO-DS, 2008.

DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Desafios da Venezuela no século XXIJorge Pérez Mancebo*

Introdução

A herança histórica do colonialismo e a perpetuação de uma divisão internacional do trabalho desigual são os grandes obstáculos para o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo.

A partir dessas relações de subordinação descreveremos o Modelo de Acumulação e a evolução do desenvolvimento de seu aparelho produtivo. Essa base material determina o caráter e a dinâmica das relações entre Estado e sociedade e seu esgotamento e decadência, correspondentes ao declínio do modelo de acumulação. Em conseqüência, dissolvem-se e diluem-se os códigos e práticas institucionais de forma a gerar tensões e incertezas permitindo que um projeto vingador, popular, insurgente e sem compromisso com o status quo chegasse à vitória eleitoral em dezembro de 1988 e levasse adiante um processo de mudanças e transformações no país.

Para finalizarmos, enumeraremos o que julgamos serem os principais desafios da Venezuela no século XXI segundo vários cenários possíveis.

* Ex-Diretor da Faculdade de Economia da Universidade Central da Venezuela. [email protected]

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As características, o temário e as limitações de extensão deste escrito nos obrigaram a numerar os parágrafos conforme o aspecto, procurando que cada um deles se explique por si mesmo, resumindo um acontecimento, idéia ou marco histórico.

I. A Venezuela no contexto do mercado mundial1. A forma de colonização classificou esses territórios segundo a ótica

metálica. A prioridade cabia às regiões com evidências de recursos minerais, basicamente ouro e prata. Os demais territórios eram atendidos de acordo com sua capacidade como centros de alimentação para apoiar a produção mineira; por isso, os vice-reinados correspondiam aos centros de alta prioridade, e o restante representava a periferia abastecedora.

2. As guerras de independência dizimaram os homens e os rebanhos, com o abandono da produção agrícola. Uma das conseqüências foi a dívida assumida pela República da Colômbia no final da contenda. Quando ocorreu a separação da Venezuela, em 1830, esse país assumiu 28,5% da dívida, com uma economia e população dizimadas. O café assumiu o papel do cacau, até esse momento o produto principal de exportação.

3. Entre 1837 e 1844 entrou o mundo em convulsão devido a uma crise que afetou especialmente a economia. A dívida externa aumentou substancialmente, o que provocou a ameaça da frota britânica; além disso, a dívida privada foi reconhecida como pública. Em 1849 aconteceram falências no incipiente sistema financeiro, o que tornou mais aguda a situação quando o Estado passou a ajudar os credores.

4. No final da Guerra Federal, em 1864, recorreu-se a empréstimos onerosos no exterior, que debilitaram ainda mais os cofres do erário.

5. Nas últimas três décadas do século XIX, começaram a chegar investimentos estrangeiros à Venezuela. O Estado os promovia e garantia elevados rendimentos. Surgiram no país ferrovias, telégrafo, estradas, pontes e aquedutos, edifícios e monumentos.

6. Entre 1898 e 1903 ocorreram 372 eventos militares, além da baixa dos preços do café. A insolvência geral levou potências estrangeiras a bloquear os portos venezuelanos em 1902.

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7. Nos anos 10 do século XX aplicou-se com êxito, unido à paz imperante, um programa econômico restabelecendo a confiança dos investidores estrangeiros.

8. As exportações venezuelanas nesse período eram compostas em especial de café e cacau, além de gado, açúcar, fumo, anil e produtos florestais.

9. Nos anos 30, o setor primário exportador deslocou-se definitivamente da agricultura para o petróleo. Em 1928 existiam 150 empresas petrolíferas registradas em Caracas, e a Venezuela era o primeiro exportador mundial e o segundo produtor.

10. Todos os compromissos externos foram liquidados em 1930 graças às receitas petrolíferas. A dívida não voltaria a ser motivo de preocupação e debate senão em fins dos anos 70, paradoxalmente quando os preços do petróleo sofreram incrementos nominais importantes.

11. Daí em diante, a história foi determinada pelo modo como se comportavam os preços desse recurso no mercado internacional e pelos seus efeitos sobre as receitas fiscais afetando substancialmente os outros setores da economia. Esses preços tinham um claro caráter cíclico, dificultando suas gestão e aproveitamento.

12. A produção petrolífera em 1976 foi de 2,3 MMb/d e hoje se situa em 3,2MMb/d. Os preços variaram de $11,25 em 1976 para $29,71 em 1981, $12,81 em 1990, $10,57 em 1998, $84,63 em 2007 e $125,76 (estimados) em 2008.

13. Em termos reais, porém, a preços de 1967, a situação é a seguinte: $7,05 em 1976, $10,91 em 1981, $2,16 em 1998, $10,53 em 2007 e $14,71 (estimados) em 2008. Isso explica a reação dos mercados e a forma pela qual absorveram os incrementos e seu pequeno impacto na economia mundial.

14. Um olhar sobre a história recente nos informa terem ocorrido crises semelhantes à que estamos observando em quatro ocasiões desde os anos 70: 1973-74, fins de 1978-março de 1980, outubro de 1987-outubro de 1990 e abril de 2000-maio de 2001. Assim, presumindo que entramos em um novo período marcado pela estagflação em outubro do ano passado, seria esse em 38 anos o quinto.

15. Nesse contexto, como referência, vemos que as importações passaram de $14.584 bilhões em 2002 a $41.911 bilhões em 2007, aumentando a vulnerabilidade da economia venezuelana a fatores externos.

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16. A dívida externa se mantém em níveis manejáveis, cerca de $36 bilhões, semelhante às reservas internacionais. Esse dado comparativo demonstra que os aumentos nos preços do petróleo se transferem para o exterior via importações.

II. Modelos de acumulação e aparelho produtivo1. Os modelos de acumulação na Venezuela têm sido governados pela

inserção no mercado mundial, pela postura do Estado (ação, ou omissão) e pelo tipo de processo produtivo da mercadoria, ou mercadorias, que dinamizam os outros setores da economia.

2. A justaposição de produções que vieram a constituir em cada momento a base de sustentação da economia nacional e as relações geradas por sua extração e comercialização tornaram-se uma trama de vinculações e transformações a que se denominou Heterogeneidade Estrutural.

3. A sociedade venezuelana se organizou, ao longo da história, em torno da produção primária exportadora. Cacau no final da colônia, café do século XIX até os anos 30 no século XX, e, posteriormente, o petróleo até nossos dias.

4. A economia tradicional, primária e exportadora de origem agrícola, situa-se no lapso que vai desde o fim da colônia até a terceira década no século XX. É caracterizada por forças produtivas tecnologicamente articuladas, em um quadro institucional não-construído (com exceção do período Juan Vicente Gómez, quando se consolidou o Estado Nacional) e inadequado para a utilização eficaz dos recursos. Essa atividade não conseguiu gerar uma dinâmica propagadora para outros setores.

5. Em 1929, deslocou o petróleo todo o setor agrícola no PIB. A natureza da propriedade sobre esse recurso modificaria radicalmente as relações e dinâmicas na sociedade venezuelana.

6. A propriedade pública dos hidrocarbonetos na Venezuela é uma síntese histórica de normas complexas contidas no antigo direito colonial espanhol, no direito mineiro francês do fim do século XVIII e princípios do XIX e na tradição dos direitos mineiro e petrolífero venezuelanos dos séculos XIX, XX e XXI. Como prova estão as Ordenações de São Lourenço, ditadas pelo rei

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Felipe II em 22 de agosto de 1584. Posteriormente, em 24 de outubro de 1829, o Libertador promulgou em Quito o Decreto de Mineração, que estabelecia tacitamente em seu artigo 1 que as minas passavam do domínio da Coroa Real espanhola para o domínio da República. Dissolvida a Grã-Colômbia, o Senado e a Câmara de Representantes da República da Venezuela, reunidos em Congresso, promulgaram a lei de 29 de abril de 1832, na qual resolveram: no relativo ao Decreto de 24 de outubro de 1829, a Ordenação que deve servir de regra para o governo quanto às minas é a da Nova Espanha de 22 de maio de 1783, nos termos expressos por aquele decreto. Essa particularidade seria mantida em todos os instrumentos jurídicos e determinaria o futuro a partir do século XX.

7. Este caráter que possui o Estado – ser o proprietário da indústria básica do país, criar a infra-estrutura econômica e financiar a produção industrial e agrícola através de suas instituições creditícias – foi denominado Capitalismo de Estado.

8. O processo de industrialização propriamente dito se concretiza, em nossa opinião, com a expansão do mercado interno em conseqüência da receita petrolífera e do estímulo causado por essa demanda efetiva para atrair investimentos estrangeiros, fundamentalmente na área da montagem.

9. Esse processo ocorreu nos anos 40 e 50 do século XX, quando o capitalismo progrediu consideravelmente no país. As corporações internacionais consolidaram e ampliaram seu controle sobre os recursos naturais não-renováveis estendendo-se do petróleo ao ferro. De maneira subordinada ao capital internacional, capitalistas privados ingressaram na manufatura, no que se denominou substituição de importações. Em certas ocasiões, empresas estrangeiras participaram desse processo diretamente. Não só a produção como também o consumo se modernizaram, diversificando-se. A tecnologia era basicamente importada, e ocorreu a imigração de operários com certo grau de qualificação. Estabeleceram-se políticas para estimular a produção, entre as quais medidas protecionistas da competição.

10. Entre os anos 60 e 70, a produção no país cresceu em uma escala sem precedentes embora esses impulsos expansivos oscilassem de acordo com as exportações e as receitas correspondentes. O marco mais notável do período foram as nacionalizações das indústrias do ferro e do petróleo em 1975 e 1976.

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11. Com a expansão das receitas petrolíferas nos anos 70 cresceu de modo célere a indústria nacional, estimulada pela procura de bens duráveis, têxteis e alimentos. Cresceram também as importações, facilitadas, por um lado, para controlar a inflação e, por outro, pela pressão do comércio. Expandiram-se as indústrias básicas e a siderurgia, e instalaram-se grandes empresas de alumínio. As refinarias se ampliaram mesmo com o desinvestimento causado pelos concessionários, e desenvolveram-se grandes empresas petroquímicas.

12. Em 1983 ocorreu uma crise cambial que modificou o preço do dólar, o qual se mantivera estável ao longo do século XX. A indústria apresentou características contraditórias: por um lado experimentou um novo apogeu, e por outro encareceram os insumos, em sua quase totalidade importados.

13. Os anos 90 marcaram o auge da liberalização na América Latina. A Venezuela não foi exceção. O esforço para reduzir os setores subsidiados ou improdutivos obrigou a uma reacomodação com os altos custos de produção, o que gerou conseqüências político-sociais que perdurariam por vários anos (em 1989 ocorreram distúrbios nas principais cidades, no que se chamou El Sacudón).

14. Em 1994, o setor financeiro entrou em crise (o custo do auxílio foi calculado em 8 bilhões de dólares). O governo da época transitou por uma variada série de políticas econômicas, aterrissando no liberalismo; continuou a destruição do aparelho produtivo interno, o culto à eficiência e ao mercado, com as importações disparando.

15. Pode-se dividir claramente o processo pelo qual passa hoje a Venezuela em dois períodos: 1999-2003 e 2004-2008. No primeiro, a taxa de crescimento foi negativa (- 7,8%) e a de investimento bruto fixo de aproximadamente -15%. Os conflitos internos que degeneraram em uma tentativa de golpe de Estado e duas greves patronais incidiram significativamente nesses resultados. No período 2004-2008, o crescimento médio foi de 9,7%, e o investimento bruto fixo foi de 35% interanuais. Implementou-se um controle cambial para evitar a fuga de divisas e os ataques à taxa de câmbio. A produção interna ficou longe da ampliação da demanda, e um controle de câmbio sui generis permitiu que se aumentassem inusitadamente as importações.

16. Esta rápida visão panorâmica iria agravar suas omissões caso não ressaltássemos as graves conseqüências da supervalorização da taxa de câmbio no processo de industrialização (enfermidade holandesa).

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III. Relação Estado-sociedade1. Antes da colonização, os habitantes do território hoje ocupado pela

Venezuela se dedicavam à caça, à coleta, à pesca e a uma agricultura incipiente, exceto na zona andina, onde as práticas agrícolas eram mais avançadas. Portanto, não existia uma superestrutura institucional, como em outras zonas da América.

2. Essa província era considerada centro de abastecimento. No princípio era uma província do Vice-reinado de Nova Granada, que passou a ser Capitania Geral em 1777, apenas 34 anos antes da declaração de independência.

3. Em 1808, quando a Espanha foi ocupada pela França, fraturou-se a trama hierárquica e institucional com a qual o reino espanhol controlava esses territórios, dando origem aos movimentos independentistas que mais tarde produziriam as repúblicas nascentes.

4. A República da Grã-Colômbia, criada no Congresso de Cúcuta (1821), existiu entre 1821 e 1831, e possuía os atuais territórios da Colômbia, Venezuela, Equador e Panamá e pequenos territórios pertencentes hoje à Costa Rica, Brasil e Guiana. Foi dissolvida em fins da década de 1820 e início da de 1830 por divergirem politicamente os partidários do federalismo e do centralismo, do conservadorismo e do liberalismo. Além disso havia as tensões regionais entre os povos que integravam a República.

5. Organizava-se a estrutura da República da Venezuela de 1830 em dois graus: Caracas e Províncias, Conselho e Governo e Gabinete Executivo. Mantinha-se a escravidão e a república se apoiava no caudilhismo, herança das guerras libertadoras. O caudilho era um fenômeno local. Sendo proprietário de enormes extensões de terra, agia como chefe político-militar.

6. No século XIX produziram-se inúmeros conflitos internos que foram dirimidos pelas armas e dessangraram a maltratada população venezuelana. Os historiadores assinalam cerca de 180 conflitos nesse período. O mais sangrento e importante foi a Guerra Federal (1859-1863); com o “Grito da Federação” ocorreu a violenta irrupção das hostes da planície no cenário venezuelano. A direção política da insurreição, em especial depois de Ezequiel Zamora ter morrido, foi exercida pelos proprietários de latifúndios, camadas sociais da burguesia urbana e caudilhos militares ideologicamente aburguesados. Neste aspecto, era o programa de Zamora de natureza intelectual: abolia a pena de

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morte, proibia a escravidão vitalícia e instituía o sufrágio universal, combinado com o princípio da alternância no governo. Significou uma tentativa de fusão entre realidades sociais e raciais divergentes – brancos posicionando-se contra raças mestiças da Venezuela agrária.

7. Quanto às conseqüências pode-se afirmar o seguinte: a Guerra Federal não modificou as estruturas de uma sociedade agrária tradicional. A solução conciliatória adotada com a assinatura do Tratado de Coche, em abril de 1863, consagrou o triunfo nominal da Federação embora na prática esse princípio nunca tenha sido mais que mera ficção. Graças a tal circunstância, muitos autores assinalam que, no fundo, a Guerra Federal foi apenas um intercâmbio ideológico entre as elites políticas do país.

8. Nas décadas de 70 e 80 do século XIX foram implementadas importantes medidas orientadas a fazer da Venezuela um moderno Estado nacional. Em tal sentido, figuraram entre as principais obras: a criação do bolívar de prata como unidade monetária nacional (31/3/1879); a instrução pública e obrigatória até o 6o grau; a realização do II Censo Nacional; a inauguração da ferrovia Caracas-La Guairá (1883); a instalação da Academia Venezuelana da Língua (1883) e a introdução do serviço telefônico na linha Caracas-La Guairá.

9. Sob a direção do presidente Cipriano Castro (1899-1908) fez-se a ponte que afastou o país das vicissitudes do século XIX e o obrigou a transitar em direção aos tempos atuais desenvolvendo-se, então, os seguintes fenômenos: a) culminação do processo de fragmentação política; b) relativa incorporação de novos dirigentes nos campos administrativo e militar; c) ascensão nacional do general Juan Vicente Gómez; d) desenvolvimento efêmero do nacionalismo; e) enfrentamento com o capital monopolista estrangeiro; f) maior presença dos Estados Unidos na determinação da política e da economia nacionais. Foi um tempo de transição cujas metas iniciais fracassaram graças à instituição de uma ditadura personalista assim como à corrupção que passou a dominar a cúpula do poder político e provocou sua extinção por meio de um golpe de Estado.

10. Em novembro de 1908, o general Castro foi obrigado a abandonar o país por motivos de saúde, e Gómez passou a exercer a presidência provisória. Em 19 de dezembro do mesmo ano, Juan Vicente Gómez, junto com seus aliados na restauração, pecuaristas e comerciantes, sob a desculpa

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de um atentado que os seguidores de Castro queriam perpetrar a pedido seu, deu um golpe de Estado. Em 27 de abril de 1910, o Congresso Nacional o designou presidente constitucional para o período 1910-1914. Até 1913, pode-se dizer que Juan Vicente Gómez se dedicou a firmar um governo de contenção, no qual, além do necessário para controlar os opositores, decretou, em 1910, a criação da Academia Militar como base de um exército nacional, que terminaria em definitivo com o sistema de exércitos privados controlados pelos caudilhos regionais.

11. Os marcos desse regime coincidem, sem dúvida, com uma mudança radical na estrutura política e econômica do país. A partir de 1914, após o descobrimento do poço petrolífero de Mene Grande, iniciou-se a transformação da Venezuela em uma nação petroleira. Foram promulgadas leis e redigidos os primeiros regulamentos para a exploração dessa fonte energética, entendida pela nação apenas como “riqueza”. Outro marco da época foi a construção de estradas a permitir a comunicação terrestre no interior do país facilitando a criação de uma consciência nacional. Surgiu a Lei de Hidrocarbonetos, foram criados o Banco Operário e o Banco Agrícola e Pecuário, e promulgada a primeira lei trabalhista. Entre 1808 e 1935 concretizou-se o Estado Nacional na Venezuela com limitações às liberdades públicas.

12. Nos anos seguintes foram tomadas medidas que duraram até os anos 60 entre as quais podemos citar a promulgação da nova Constituição Nacional e uma lei trabalhista moderna (1936). Igualmente, surgiram o Programa de Fevereiro de 1936 e o Plano Trienal (1938) para o crescimento sócio-econômico. Foram também estabelecidas novas instituições: o Instituto Pedagógico Nacional, o Escritório Nacional do Trabalho, o Ministério da Agricultura e Criação, o Ministério das Comunicações, o Conselho Venezuelano da Criança, o Banco Industrial, o Escritório Nacional de Câmbio e o de Controle de Exportações e, finalmente, já em 1940, o Banco Central da Venezuela.

13. Em 18 de outubro de 1945 enfrentaram-se duas tendências democráticas: uma gradualista, caracterizada pela desconfiança quanto à maturidade política da população para desempenhar seus direitos políticos, e outra, mais radical e populista, que fielmente acreditava em serem os setores mais populares da sociedade capazes de tomar decisões. O triunfo coube à tendência mais radical, que tomou o poder por um curto período, iniciando-se uma época marcada pela tirania até 1958.

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14. Entre os anos de 1952 e 1958 foram realizadas obras públicas de construção, como a auto-estrada Caracas-La Guairá (1953), a usina siderúrgica do Orinoco (1953), a Avenida Urdaneta (1954) e o Centro Simon Bolívar, entre outras. Não obstante, apesar da notável transformação da infra-estrutura pela qual passou a Venezuela (sobretudo em Caracas), esse período se caracterizou por se estabelecer uma férrea ditadura a dissolver os principais partidos políticos, sindicatos operários e em geral qualquer tipo de oposição, o que na verdade significou a interrupção da democracia nesse lapso da história venezuelana no século XX. Nesse momento, pode-se dizer, culminaram os objetivos do plano trienal preparado em 1936.

15. Em 1960 criaram-se duas instituições: a Corporação Venezuelana de Petróleos (CVP) para supervisionar a indústria nacional de petróleo e a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, o cartel petrolífero internacional estabelecido pela Venezuela em aliança com o Coveite, Arábia Saudita, Iraque e Irã. Foi construída a ponte General Rafael Urdaneta sobre o lago Maracaibo. Foram redistribuídas terras públicas e privadas improdutivas para interromper o declínio da produção agrícola devido ao boom do petróleo. Os proprietários das terras confiscadas receberam indenizações onerosas. Iniciou-se a etapa da democracia representativa.

16. Em meados dos anos 70 desenvolveram-se duas iniciativas relacionadas com o âmbito cultural: a Biblioteca Ayacucho (coleção qualificada de obras-primas das letras latino-americanas) e o Programa de Bolsas de Estudo Grande Marechal de Ayacucho, para a capacitação de milhares de estudantes venezuelanos nos centros universitários mais prestigiosos do mundo. Em 1975 foi nacionalizada a indústria do ferro, e, no ano seguinte, a do petróleo. A política econômica afetava negativamente as pequenas e médias empresas e além disso ajudava os grandes conglomerados. Nos primeiros anos procurou-se aplicar uma política de pleno emprego, que, por um lado, castigava os empresários e, por outro, conferia um poder enorme aos sindicatos e trabalhadores independentes por meio da chamada “lei contra demissões injustificadas”, de 1974. O resultado foi a grande ampliação da liquidez circulante e impacto sobre o consumo até 1977.

17. Baseado nos volumes da receita petrolífera atacou-se um plano de infra-estrutura e indústrias básicas, siderurgia, alumínio, hidroeletricidade, etc. Foi criado um Fundo de Investimentos da Venezuela, que pretendia absorver boa parte da bonança fiscal.

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18. O status quo da democracia representativa foi mantido até 1998 embora a deterioração institucional e o descalabro econômico aumentassem.

IV. Decadência do modelo de rendas fiscais1. Conforme assinalamos nos períodos 1973-74, fins de 1978 a março de

1980, outubro de 1987 a outubro de 1990, fins de 1997-1998 e abril de 2000 a maio de 2001, a economia mundial passou por crises, caracterizadas na maioria pela estagflação correspondente à fase descendente do ciclo de Kondratieff, cujos pontos críticos se posicionam entre 1974 e 1994.

2. A dependência da economia venezuelana ao setor externo não só como origem de receitas como também de importações produtivas e de consumo determinou alto grau de impacto em sua dinâmica e modelo de acumulação.

3. Desde meados dos anos 70 verificou-se uma tendência para o decréscimo das receitas fiscais reais per capita desde +/- $/hab. 1.500,00 ($1998) em 1975 a +/- $/hab. 350,00 em 1999.

4. A concentração das exportações em petróleo e derivados, somada às de ferro, alumínio e aço, alcançou 88,64% das exportações em 2002, seguindo a tendência histórica.

5. Nesse mesmo período (1975-1999) o salário real, em $ de 1998, passou de $5.200,00 em 1978 a $2.000,00 em 1999.

6. A taxa de crescimento da economia foi de 1,1% em média na década de 80 e de 1,5% em média na de 90.

7. A percentagem da dívida externa pública no PIB passou de 5,2% em 1975 a 78,2% em 1990, terminando no período analisado em 38,6% em 1998.

8. A relação entre as remunerações de assalariados e operários quanto aos excedentes de exploração nas contas nacionais passou de 48% vs. 38% em favor das remunerações em 1960 para 51% vs. 32% em 1998, porém a favor do excedente de exploração.

9. A estrutura trabalhista nas duas últimas décadas do século passado tem uma correlação de 48,7% no setor formal, 37,9% no setor informal e 13,4% taxa de desemprego no ano de 1984, passando para 40,8% no setor formal, 46,0% no setor informal e 13,4% de desemprego no ano 2000.

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10. Em 1996 foi implementado um programa de ajustes conhecido como Agenda Venezuela, cujos aspectos mais notáveis são: ampliação de impostos, eliminação do controle de câmbio introduzido em 1994, liberalização das taxas de juros, disciplina do gasto público, ajuste gradual de preços, tarifas e gasolina, privatização das empresas públicas e abertura petrolífera (privatização da indústria do petróleo).

11. Deve-se enfatizar que, nos anos 80 e 90 do século passado, a população cresceu a uma taxa média de 2,4% enquanto a média de crescimento do PIB foi de apenas 1,4%. A população passou de 13 milhões em 1976 a 23 milhões em 1998 (hoje se aproxima dos 28 milhões).

12. A produção de petróleo situou-se em 2,3 MMb/d em 1976 e passou a 3,3MMb/d em 1998.

V. Tempos de mudanças e transformações1. A crise que se manifestou com toda sua potencialidade em meios

dos anos 90 foi caracterizada como sistêmica. A depressão dos preços das matérias-primas em nível internacional, a exclusão social, a instabilidade regional e o caráter monoprodutor de nossa economia, entre outros fatores naquele momento, pintavam um quadro muito preocupante quanto ao futuro do país e comprometiam sua estabilidade.

2. O panorama do país recebido pelo presidente Chávez era aterrador:

• Na área social: desemprego, subemprego, queda da renda real, colapso do sistema de saúde, serviços onerosos e ineficientes, insegurança dos cidadãos.

• No terreno ideológico: perda de valores éticos, desprezo pelo público, esperança em uma saída que recuperasse a ordem e que essa ordem fosse justa. Expectativas: emprego, segurança social, eficiência institucional.

• Na área política: progressiva deterioração das instituições e dos atores, burocracia obstruidora das normas e procedimentos, ineficiência ministerial, graves problemas de coordenação e coerência entre poderes públicos assim como entre o poder central, governos estaduais e prefeituras.

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• No panorama econômico: receitas petrolíferas decrescentes, sensíveis desequilíbrios macroeconômicos com inflação persistente, recessão do aparelho produtivo.

• No setor energético: debilidade político-gerencial das instituições da administração central, desconfiança entre as principais autoridades decisórias no setor, violação de acordos de quotas da OPEP, queda dos preços, incerteza no entorno internacional (Ásia, Rússia, Iraque). Isso apenas para mencionar as características mais importantes.

3. Na Venezuela, a pobreza extrema (situação na qual uma pessoa não pode satisfazer suas necessidades básicas de alimentação) reduziu-se em 54%. Em 1996, quase a metade da população venezuelana (42,5%) se encontrava nesses níveis. Vemos que em 2007 se reduziu a 9,4%.

4. Em 1998, segundo cifras da ONU e do Instituto Nacional de Estatística (INE), o Índice Nacional de Desenvolvimento Humano da Venezuela era de 0,6917, o que significava um nível médio de desenvolvimento. A partir daquele ano, o índice foi aumentando até chegar em 2006 a 0,878. Já estamos no patamar mais elevado, que é entre 0,8 e 1.

5. Em 1998 o investimento em educação (os recursos destinados à educação) era de 3,38%. Em 2007, cresceu para 5,43%. Se a esse investimento do governo central acrescentarmos os dos governos regionais e locais e, sobretudo, o imenso caudal de recursos dirigidos à Missão Robinson II, à Missão Ribas, à Missão Sucre e à Missão Che Guevara, estaremos falando de uma injeção de recursos para a educação acima de 7% do PIB.

6. O número de usuários da Internet cresceu de modo significativo desde 1999: de 680 mil pessoas passou em 2006 para mais de 4 milhões.

7. De 1999 a agosto de 2007, 649.498 venezuelanos foram acolhidos no sistema de pensões de aposentadoria. Enquanto entre 1977 e 1998 a média anual de aumento do número de segurados era de 17.591, de 1999 a 2006 a média saltou para chegar a 81.371, vinculados ao salário mínimo.

8. Em 1998, 80% da população venezuelana tinha acesso à água potável; em 2007 chegamos a 92%, ou seja, mais de 24 milhões de habitantes gozam desse benefício em todo o país. Em 1998, 62% da população era servida por sistema de esgotos; hoje, em 2007, chegamos a 82% da população com acesso ao sistema de saneamento.

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Jorge Pérez Mancebo

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9. Omitindo os anos de greves e sabotagem, temos quatro anos de economia em expansão, destacando-se o ano de 2004 com a histórica taxa de crescimento recorde de 18,3%. Em 2005 e 2006, a taxa de crescimento foi de 10,3% enquanto em 2007 a taxa de expansão foi de 8,4%.

10. Se compararmos a inflação no governo revolucionário com a registrada nos três governos anteriores, verificaremos que a inflação média agora é a mais baixa. A média no governo de Jaime Lusinchi foi de 22,7%, a de Carlos Andrés Perez foi de 45,3% e a de Rafael Caldera, 59,4%. Nos nove anos de governo de Hugo Chávez Frias, a média é de 18,4%. No segundo governo de Rafael Caldera, a inflação chegou a um auge de 103,2%.

11. A economia em crescimento permitiu uma importante melhoria quanto aos níveis de emprego. Assim, houve redução considerável na taxa de desemprego, de 16,6% em janeiro de 1999 a 6,3% em dezembro de 2007, representando uma queda de mais de 10%.

12. A dívida pública total caiu muito ao passar de 78,1% no ano de 1989 a 18,5% no ano de 2007 em relação ao PIB total, sendo esse o nível mais baixo de endividamento nos últimos 17 anos. Da mesma forma, a redução dos compromissos externos permitiu situar a dívida pública em uma percentagem de 11,3% do PIB em fins de 2007, resultado muito inferior ao apresentado no ano de 1998, quando essa percentagem era de 25,5% do PIB. Foi liquidada junto ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial uma dívida que chegava a 3 bilhões de dólares no ano de 1998.

13. A partir de maio de 2007, o salário mínimo dos venezuelanos tornou-se o mais elevado da América Latina. Em termos nominais, o salário mínimo se recuperou em 512% de 1997 até hoje, quando chega a Bs. F.1 614,79.

14. Em 1998, as reservas internacionais do país alcançavam 14.849 bilhões de dólares e, em 2007, atingiram 33.500 bilhões. Mais que duplicadas, chegaram a um nível histórico, em 2006, de 36.672 bilhões.

15. Em 1998, o índice ou coeficiente de Gini era de 0,49, reduzindo-se a 0,42 para o ano de 2007. Trata-se de uma redução pequena do índice, mas significa um freio ao seu aumento, que era a tendência desde 1970. Em 1997, os 20% mais ricos da população recebiam 53,6% da renda nacional, e os 60% mais pobres, 25,5%. Em 2007, os 20% mais ricos recebiam 47,7% da renda

1 Bolívar(es) Fuerte(s). Moeda nacional venezuelana.

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Desafios da Venezuela no século XXI

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do país, e os 60% mais pobres, 29,7%. O hiato encolheu; era de 28,1% e agora é de 18%, com uma diminuição de dez pontos percentuais.

Desafios no século XXIOs desafios para a República Bolivariana da Venezuela se diferenciam

pouco dos enfrentados pelos demais países da região: diversificar as exportações e reduzir o volume das importações com uma dinâmica produtiva interna diversificada e adaptada a suas potencialidades e população logrando uma integração regional que lhe permita o pleno desenvolvimento de suas capacidades e vantagens. Com uma economia dependente e subdesenvolvida, essa tarefa não é nada fácil. Há três anos participei com uma equipe da elaboração de cenários nacionais. Creio que na descrição de cada um dos cenários propostos se expressam os desafios existentes em cada possibilidade. A seguir me permito resumi-los.

Os eixos de incerteza eram: Transformação do Sistema Econômico e Dinâmica Sócio-Política, e as incertezas críticas eram: Eficiência Institucional, Recomposição do Sistema Político, Conduta Empresarial e Transição Cultural (Paradigmática).

Cenários nacionais 2006+

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Jorge Pérez Mancebo

Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 287

Pão com Crise• Instituições midiatizadas e desarticuladas da visão de país;• Atomização do sistema político;• Incongruência entre discurso e ação;• Estabelecimento de programas sociais conjunturais;• Estancamento progressivo das relações internacionais;• Reformas econômicas parciais;• Reforma fiscal;• Manejo eficiente do ciclo petrolífero;• Aplicação de políticas setoriais-chave: petróleo, gás, química,

petroquímica, agroindústria, alumínio, eletricidade, turismo, etc.;• Alinhamento com organismos multilaterais;• Surgimento de empresários audazes;• Inconsistência da política tecnológica, e• Paralisação da democratização da propriedade.

Ai meu Deus!• Projeto de país não-compartilhado;• Conjunturas de preços elevados do petróleo;• Inconsistência e incoerência da política econômica;• Aprofundamento da desconfiança empresarial;• Continuação do atraso tecnológico;• Acentuação do clima de conflito social;• Depredação do meio ambiente;• Isolamento internacional, e• Retrocesso na democratização da propriedade.

Avanço com Tropeços• Estabelecimento de um programa social seletivo;• Evolução assimétrica das instituições;• Surgimento de acordos parciais entre as forças políticas;• Gestão macroeconômica pró-cíclica sobre eventos petrolíferos;• Atuação reativa de empresários em função das políticas econômicas

governamentais;• Adequação progressiva às normas ambientais nacionais e internacionais;

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Desafios da Venezuela no século XXI

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• Processo de integração econômica interna limitado;• Continuação do atraso tecnológico, e• Lento avanço na democratização da propriedade.

Venezuela Gloriosa• Projeto de país compartilhado;• Desenvolvimento e enraizamento de novos valores;• Formação de instituições funcionais e eficientes;• Petróleo: fator industrializador em setores-chave;• Coerência e consistência da política econômica;• Surgimento de empresários competitivos;• Sinais visíveis de um projeto social integrado;• Incorporação progressiva de tecnologia de ponta;• Negociações comerciais positivas dentro de um mundo multipolar, e• Aprofundamento da democratização da propriedade. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Juventude na fazendaSylvia M. Gooswit

S oekidjan Irodikromo nasce em 20 de junho de 1945 na localidade situada no aterro de Pieterzsorg, situada na margem direita do rio Commewijne. Pouco depois, a família se muda para a fazenda Johannesburg, pequena comunidade com cerca de 50 pessoas. O pai, Irodikromo, trabalha nas plantações e a mãe em casa, onde cultiva arroz e legumes e cria peixes, galinhas e vacas para

Soekidjan Irodikromo, (1945 – )Compositie I. Acrílico sobre tela, 100 x 100 cm

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Juventude na fazenda

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vender. Soeki – o mais velho entre quinze irmãos – é o primeiro a freqüentar a escola na fazenda próxima de Rusk en Werk, a três quilômetros mais ou menos, distância que tinha de vencer a pé. Muitas vezes deixou de ir às aulas para ajudar na plantação de arroz ou no cuidado com os animais.

Nas grandes fazendas não há muita ocasião para diversões. Entretanto, são famosos os rituais anuais originados em Java, que atraem muitas pessoas dos arredores e também de locais distantes. O jovem Soeki se impressiona especialmente com os espetáculos denominados wayang, que duram toda a noite. Na escola, sua matéria preferida é o desenho. Desenha tudo o que lhe atrai a atenção. O melhor exemplo vem de um tio, conhecido dalang (artista que trabalha com bonecos) de Rust en Werk, que fazia seus próprios bonecos wayang de papelão ou couro.

Soeki desde criança desenha a carvão bonecos wayang em seus cadernos escolares ou com estilete numa lousa. Não havia outros materiais disponíveis. Mais tarde, começa a desenhar ídolos juvenis como Elvis Presley e Brook Benton copiando as efígies que via nas embalagens de goma de mascar.

Educação artística em ParamariboO poeta Surianto, seu tio, morador em Paramaribo, cedo reconhece o

talento natural de Soeki. Sob sua supervisão, o jovem se muda para lá em torno dos 15 anos, e o tio o matricula em uma escola de arte, na qual a entusiástica pintora Nola Hatterman o acolhe sob sua orientação. Aprende aí técnicas de pintura e desenho e como trabalhar com diversos tipos de materiais. Seu principal modelo nessa época é Erwin de Vries, mas ainda fica longe do estilo exuberante e totalmente livre, característica dos trabalhos de Erwin. Primeiro, ele tem de se dedicar à aprendizagem de aspectos anatômicos, paisagens, retratos e naturezas-mortas, usando materiais diversos como giz, guache e óleo. Aprende igualmente pintura e desenho com modelo vivo e como fazer os estudos preliminares antes que inicie o verdadeiro trabalho. Nola Hatterman é uma mestra severa: nos primeiros quatro anos na academia, os alunos são autorizados a trabalhar somente em papel e cartolina. Só no último ano lhes é permitido pintar em tela.

A vida de Soeki mudou de rumo em 1966, por obra de uma feliz coincidência. Em uma escala de viagem, o avião do Presidente Lyndon

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Sylvia M. Gooswit

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B. Johnson pousou no aeroporto de Zanderij. Num gesto hospitaleiro, foi organizada no aeroporto uma exposição de obras de artistas que na época moravam no Suriname. Entre eles, Stuart Robles de Medina, Rudi Getrouw, Nic Loning e também o jovem aluno de arte Soeki Irodikromo, com uma pequena tela a óleo chamada Akka. Johnson escolhe um desses trabalhos para levar consigo: a de Soeki. Pouco depois, o artista recebe da Fundação Sticusa1 uma bolsa de estudos para continuar sua educação artística na Holanda.

Liberdade e identidadeSoeki se matricula na Academia de Artes Visuais em Rotterdam, onde

seu nível o habilita a pular o primeiro dos quatro anos. Nessa academia livre trava conhecimento com outras técnicas: litografia, gravação, colagens. Após terminar a instrução em desenho e pintura, faz mais um ano de especialização em cerâmica.

Especialmente inspiradora é a sua apresentação a expoentes do Movimento Cobra. Sente-se principalmente fascinado pela energia, liberdade e cores expressionistas. Freqüenta museus e a tudo absorve intensamente.

Soeki diz que sua percepção se elevou em Rotterdam. “Ali eu me senti um cidadão de segunda classe devido a algumas experiências horríveis que me tocaram profundamente. Sentia-me um estranho na sociedade holandesa e assim era tratado fora de meu círculo de conhecidos. Após terminar os estudos, compreendi que tinha de ser independente.

Já morava em Rotterdam há cinco anos e um dia espalhei no chão todo o resultado daqueles cinco anos de trabalho criativo, selecionei-o e coloquei-o em ordem. Em seguida, perguntei a mim mesmo: será isso o Suriname? Será isso Soeki? Posso ver a mim mesmo nesses produtos? Tinham sido feitos por mim; no entanto, me eram estranhos.

Na Holanda, o passado se dilui sem que as pessoas se dêem conta. Perguntei a mim mesmo: Soeki, quem é você? Senti, então, que meu lugar era o Suriname, meu lar era o Suriname. Precisava captar a face do Suriname que desejava apresentar ao próprio Suriname. Precisava voltar a meu povo.

1 Fundação Holandesa para Cooperação Cultural.

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Juventude na fazenda

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Em minha opinião, o Suriname era o lugar no qual eu precisava realizar-me como pintor”.

Em 1972, Soeki retorna a sua terra natal com a família. Nessa altura já está casado com Mieke Leendertse, e tornam-se pais. Os primeiros anos são difíceis. Não é fácil para um artista que deseja ser independente ganhar o pão de cada dia após uma ausência de cinco anos. Nesse período, o Movimento Cobra ainda exerce uma influência muito forte sobre Soeki, e ele pinta à moda expressionista. O espírito livre desse grupo e a forma de ele trabalhar combinam muito bem com o pintor surinamês e o mesmo se dá em relação ao expressionismo. Sua primeira exposição, no entanto, não teve um grande público. Aparentemente, o Suriname não estava preparado para aquele gênero de pintura. Soeki teve de procurar emprego para sustentar a família e trabalhou três anos como professor de arte em escolas e faculdades que formam professores. Continua, porém, pintando em sua própria casa e expõe seus trabalhos pelo menos uma ou duas vezes por ano “para que o Suriname saiba quem é Soeki”. Dessa forma, desenvolve diligentemente a sua carreira autônoma. DEP

Tradução: Sérgio Duarte

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Odebrecht Perú: uma parceria de sucesso

F alar da relação entre a Construtora Norberto Odebrecht e o Peru é falar de uma longa parceria de sucesso. No ano de 2009, completaremos 30 anos de atuação no Peru, um marco histórico a evidenciar a solidez e maturidade da nossa relação. Esse produtivo relacionamento teve seu início em 1979, ano em que a Odebrecht inaugurou seu processo de internacionalização ao conquistar o contrato para a construção da Hidrelétrica de Charcani V, na província de Arequipa, região Sul do Peru.

Localizada nas encostas do vulcão Misti, na cordilheira dos Andes, a usina, cujas instalações são praticamente subterrâneas, capta as águas do rio Chili. A energia gerada por Charcani V atende as necessidades energéticas da cidade de Arequipa, uma das mais importantes do Peru, e do Complexo Mineiro de Cerro Verde.

ConstrutoraNorberto Odebrecht

www.odebrecht.com.pe

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Em fins da década de 1970, quando a construção foi iniciada, moradores da cidade sofriam com o racionamento de energia contando com apenas três horas diárias de abastecimento elétrico para permitir que as empresas do lugar mantivessem a produção. Além disso, a baixa disponibilidade de água impedia a expansão da agricultura local. Era urgente a realização de um projeto para contornar essas dificuldades.

As obras de Charcani V foram iniciadas em 1980 e oito anos mais tarde a hidrelétrica foi inaugurada. Sua conclusão eliminou as interrupções diárias no abastecimento elétrico, possibilitando uma significativa melhora na qualidade de vida dos arequipeños. A disponibilidade de energia permitiu ainda a criação de uma zona para a indústria metal-mecânica, fato que atraiu mais moradores para o distrito, levando à inauguração de novos bairros e centros comerciais.

Atualmente, Charcani V é responsável pela geração de aproximadamente 70% da eletricidade do Sul peruano. E graças à tecnologia avançada empregada na sua construção, ainda hoje, duas décadas após, continua sendo essa hidrelétrica uma das mais modernas do país, detentora de um dos mais baixos custos de produção de energia em sua região.

No mesmo ano em que terminamos Charcani V, 1988, assinamos um novo contrato. A Odebrecht seria com isso a responsável por tornar realidade um projeto que já tinha mais de 50 anos: o Projeto de Irrigação de Chavimochic. Localizado na região desértica de La Libertad, o projeto abrangeu a execução de obras hidráulicas para desviar as águas do Rio Santa, destinadas à irrigação dos vales de Chao, Virú e Pampas de Pur-Pur. Foi construída uma central hidrelétrica com potência de 7,5 MW, que passou a captar as águas do canal principal do Projeto de Irrigação Chavimochic podendo gerar energia suficiente para atender a cidade de Virú.

Em conseqüência das obras de irrigação, foi possível incorporar novas terras à agricultura regional e abastecer de água a cidade de Trujillo e as populações rurais próximas. Esse amplo conjunto de iniciativas, operando sinergicamente, implicou um salto qualitativo na economia local e abriu uma série de oportunidades de emprego e geração de renda para a população. Hoje, a ex-desértica região de La Libertad se acha entre as mais importantes áreas exportadoras de produtos agrícolas do Peru.

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A partir do relacionamento de confiança estabelecido com base nesses primeiros projetos conjuntos, a atuação da Odebrecht no Peru ganhou dinamismo e se ampliou consideravelmente ao longo da década de 1990. De 1993 em diante, não houve sequer um único ano em que não conquistássemos novos contratos, ou a construção da nova etapa de alguma obra recém-concluída ou mesmo projetos completamente novos.

Nesse conjunto de iniciativas desenvolvidas pela Odebrecht Perú, alguns projetos merecem destaque. Na cidade de Olmos, Norte peruano, executamos obras que permitiram o represamento de águas e posterior transposição (transvase, em espanhol) do rio Huancadamba, um projeto concebido há mais de 80 anos mas nunca executado. Através dessa iniciativa, tornada viável por meio de uma parceria público-privada (PPP), parte do fluxo do rio será redirecionado para o Oceano Pacífico através do Túnel Transandino, que terá 19,3 km de comprimento e 4,8 metros de diâmetro. Concluído, o projeto permitirá que 460 milhões de metros cúbicos de água irriguem mais de 40 mil hectares de terras férteis situadas na vertente da cordilheira. Ademais, o fluxo também alimentará duas usinas de geração de energia.

Assim como ocorrera em Chavimochic, o Projeto Olmos fornecerá vigoroso estímulo à economia local gerando empregos e incrementando a qualidade de vida da população à medida que for transformando uma região anteriormente improdutiva em uma área de prosperidade.

Figura 1: O sistema de irrigação Chavimochic e seus resultados

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Figura 2: Mapa da atuação da Odebrecht no Peru.

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O projeto como um todo vem sendo executado com atenção e cuidado redobrados, pois as obras têm lugar nas proximidades de um sítio arqueológico da cultura mochica, uma civilização pré-incaica florescente na área há mais de 2.000 anos. Algo similar já havia acontecido na execução das obras do projeto de irrigação de Chavimochic, quando se descobriu uma pirâmide levantada pela civilização chimú (também pré-incaica) exatamente na saída do túnel principal. A área então descoberta foi isolada, os planos de engenharia foram refeitos, e o canal sofreu um desvio para permitir a preservação do sítio arqueológico. Tanto em um quanto em outro caso, no passado ou no presente, a atuação da Odebrecht tem sido pautada pelo respeito à história e cultura locais preservando as particularidades das áreas e comunidades onde se dá a inserção da empresa.

Junto ao Projeto Olmos, a Odebrecht Perú desenvolve outras importantes iniciativas. Nas praias da região de Pampa Melchorita, a 169 km de Lima, está sendo instalada uma planta de liquefação de gás natural. Como parceira do Consórcio CDB Melchorita, a Odebrecht participa da construção das instalações marítimas auxiliares, entre as quais estão: uma ponte de atracação de 1.350 m de comprimento; instalações para carregamento de navios GLP; um canal de aproximação e um quebra-mar offshore de 800 m de comprimento. Incluindo os custos de financiamento, o projeto da Peru LNG dispõe de US$ 3,8 bilhões, o maior investimento direto estrangeiro já realizado em toda a história do Peru. Desse montante, um total de US$ 247 milhões se refere ao contrato firmado entre a Odebrecht e a Peru LNG. Concluído, o complexo de Melchorita viabilizará a exportação do excedente de gás produzido no país para os mercados internacionais.

Atualmente, a economia peruana vem dando sucessivas provas de vigor e maturidade. Ao longo dos últimos anos tem sustentado o país um dos mais elevados percentuais de crescimento do PIB em toda a América Latina. Recentemente obteve o grau de investimento, uma certificação internacional que atesta o consistente vigor do ambiente relativo aos negócios do país.

O aprimoramento contínuo da malha infra-estrutural, sem dúvida alguma, tem sido peça de crucial importância para esse processo de crescimento sustentado uma vez que os investimentos nesse fundamental setor geram significativos impactos sobre toda a economia nacional.

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A melhoria da infra-estrutura de transporte, por exemplo, tem contribuído para a superação de obstáculos geográficos e logísticos presentes no Peru, desse modo elevando a competitividade dos bens produzidos no país tanto no mercado nacional quanto no internacional.

Esta lógica – privilegiar a integração física como instrumento-chave para o crescimento econômico sustentável – tem informado mais duas iniciativas das quais a Odebrecht participa no Peru. Os projetos da Iirsa Norte e da Iirsa Sul, por exemplo, vêm sendo desenvolvidos no país com o objetivo de criar os corredores interoceânicos para interligar as malhas de transporte brasileiras e peruanas. A Odebrecht lidera ambos os consórcios responsáveis pela execução das obras.

Enquanto membros do Consórcio Construtor Iirsa Norte (Concin), participamos do melhoramento, reabilitação e construção de 955 km de rodovia que ligarão a Amazônia ao Pacífico. A Odebrecht se encarregou da estrada que liga o porto litorâneo de Paita, no Pacífico, ao porto fluvial de Yurimaguas, na parte peruana do rio Amazonas.

Nossa atuação na área, assim como em todas as regiões em que nos inserimos, é orientada não somente para a execução das obras. Adotamos também um claro comprometimento socioambiental com o desenvolvimento integral e sustentável não só da comunidade interna composta pelos integrantes da Odebrecht como também da comunidade externa à empresa. Em tal sentido, promovemos diversas iniciativas. No campo do meio ambiente contribuímos, entre outras ações, com o Proyecto Biodiversidad fazendo a expansão do centro de custódia para animais, uma instituição que ampara o programa de proteção aos ursos-de-óculos ou urso andino, espécie típica da região, sob ameaça de extinção. No campo da educação, o consórcio que integramos destinou recursos para o projeto Escuela para Todos, um programa de alfabetização que se tornou uma escola completa e hoje oferece educação de qualidade para 177 alunos do ensino fundamental.

Esses projetos, assim como outras iniciativas que temos desenvolvido nos campos da saúde e capacitação profissional, dão uma breve dimensão dos vários benefícios sociais que seguem as obras realizadas no círculo do Eixo Multimodal Amazonas Norte. Representam, assim, os reflexos locais de uma parceria estratégica mais ampla de integração física no âmbito continental, a

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qual desde já tem acarretado muitas vantagens para a Região Norte do Peru e trará, com toda a certeza, outras mais no futuro próximo.

Processo igual se desenvolve no Sul peruano, onde, mais uma vez, a Odebrecht trabalha combinando a prestação de serviços em engenharia e construção com o exercício da responsabilidade socioambiental. Participamos do consórcio responsável pela construção da Rodovia Interoceânica Sul (Conirsa). Quando seus 710 km de extensão estiverem concluídos, a obra fará a primeira ligação do Brasil com o Oceano Pacífico através de uma via contínua entre a cidade peruana de Inãpari – que faz divisa com a brasileira Assis Brasil, no estado do Acre – ao porto de San Juan de Marcona, no Oceano Pacífico. Mais precisamente, o contrato que está sendo executado prevê a construção, operação e manutenção das estradas que ligam as cidades de Iñapari a Inambari (trecho 3 – no departamento de Madre de Dios) e Inambari a Urcos (trecho 2 – no departamento de Cuzco).

Assim como acontece na Iirsa Norte, também desenvolvemos diversas iniciativas junto às comunidades locais na extensão do Corredor Viário Interoceânico Sul (Iirsa Sul). Assumindo seu papel como agente de mudanças e seu compromisso com a melhoria da qualidade de vida das populações que residem em nossa área de atuação, desde 2006 a Odebrecht e a Conirsa têm executado o Plano Integrado de Responsabilidade Social. Ademais, desde 2007, temos conduzido o Programa Itinerante de Apoyo a la Salud y Educación (PASE), um grande projeto realizado com o objetivo de informar e capacitar a população em temas de saúde preventiva. Está em desenvolvimento, no campo do meio ambiente, o Plan de Desarrollo “Interoceánica” Sul, em cujo âmbito representantes da Odebrecht, Conirsa, Conservation International e Pro Naturaleza têm atuado de maneira conjunta e cooperativa para promover iniciativas de conservação e desenvolvimento ao longo dos trechos 2 e 3 do Corredor Viário Interoceânico Sul.

A conjunta realização desses projetos revela a estreita cooperação que a Odebrecht e a Conirsa vêm desenvolvendo com o governo peruano, entidades privadas e a sociedade civil organizada no Peru – sempre com o objetivo de aliar o desenvolvimento sustentável das regiões onde nos inserimos com a melhoria na qualidade de vida das populações que serão favorecidas pelos serviços que prestamos.

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Figura 3: Rodovias já concluídas na Iirsa Sul

Essas e tantas outras iniciativas representam o compromisso da Odebrecht com o desenvolvimento socioeconômico peruano. De 1979 até 2007, mais de 43.000 diferentes pessoas integraram a empresa e contribuíram em nossos projetos. Incluindo as concessões já em curso, são mais de 2.300 km de rodovias pavimentadas. Além disso, executamos mais de 240 km de canais de irrigação e mais de 180 km de sistemas de água potável. Perfuramos mais de 85 km de túneis para projetos de irrigação e construímos mais de 60 km de linhas de transmissão de energia.

Tem a Odebrecht aberto caminhos para o futuro do Peru na costa, na selva e na serra. Nesses quase 30 anos de parceria, atuamos sempre com vistas à satisfação de nossos clientes e com o firme compromisso de respeitar as particularidades socioambientais das regiões em que estamos presentes. Orientados pela Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), acreditamos na potencialidade de nossos colaboradores e investimos em sua educação pelo trabalho. Somos a única empresa de engenharia e construção com origem estrangeira que permanece atuando no Peru de 1979 até hoje. Todos esses fatores são um forte incentivo para que trabalhemos cada vez mais e cada vez melhor com o fim de perpetuar e aprofundar a parceria de sucesso estabelecida entre a Odebrecht e o Peru.

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GrupoAndrade GutierrezBrasil-Peru: uma parceria madura

O peso da história

B rasil e Peru – como os demais países sul-americanos – ainda sofrem as conseqüências daquilo que, em termos coloquiais, poderia ser descrito como a ressaca histórica dos “quinhentos anos de periferia”, para usar a frase expressiva de Samuel Pinheiro Guimarães. Suas vidas econômicas e mesmo suas percepções políticas têm ainda as marcas de cinco séculos de vinculação assimétrica aos principais centros mundiais de poder, numa ligação que se modificou, mas não acabou, com a independência política obtida no primeiro quartel do século XIX. Ela permanece em função não só de assimetrias objetivas mas também da noção geral de um relacionamento centro-periferia, que, embora ainda real, é hoje menos marcante que o aparentemente percebido e aceito por consideráveis – e influentes – setores das respectivas opiniões nacionais.

Em nosso continente, um exemplo ilustrativo desse estado de coisas é dado pelo fato de que, ainda hoje, uma estrada que saia do Brasil e atravesse os

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Andes rumo ao litoral ocidental da América do Sul venha a ser considerada por segmentos insignes da nossa opinião pública mais como “saída para o Pacífico” do que obra de infra-estrutura capaz de facilitar a integração das economias de países vizinhos. Ou em sentido inverso, que o acesso ao Amazonas seja percebido, em países andinos, como primordialmente “uma saída para o Atlântico”. Em ambos os casos, tal atitude reflete a percepção, difundidíssima na opinião sul-americana, de que o importante é manter os laços com os centros do poder econômico mundial e não promover a aproximação entre economias vizinhas.

Em suas linhas gerais, tal quadro ainda persiste, mas também é evidente que se tem modificado significativamente não só em nível objetivo como também em subjetivo. No plano global, é bem verdade, a importância relativa dos grandes centros, em particular a dos norte-americanos, tem caído não em razão de uma decadência absoluta mas em função do progresso dos outros, em especial, das grandes economias emergentes e da, como conseqüência disso, propagação universal do poder. É significativo que, já em 2004, a revista inglesa The Economist assinalasse que, das dez maiores economias do mundo (medidas com base no poder de compra das moedas), quatro eram países em desenvolvimento ou em transição1. E, em janeiro de 2006, a mesma revista assinalava que, usando essa mesma base de aferição, as economias em desenvolvimento, em conjunto, haviam em 2005 respondido por um pouco mais da metade do produto mundial e por mais da metade do aumento do PIB global em dólares correntes2. Hoje, sem descer a maiores precisões estatísticas, a notória ascensão econômica da China e da Índia, a referência já corriqueira ao BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) como grandes potências em ascensão, a crescente aceitação de que é preciso modificar a composição e/ou a estrutura de votos de importantes instituições internacionais (FMI, Conselho de Segurança da ONU, Grupo dos 8) para melhor refletir a atual distribuição internacional de poder – tudo isso revela a gradual emersão de uma nova ordem internacional e a progressiva conscientização dessa tendência.

1 A survey of the world economy – The Dragon and the Eagle. The Economist, 2-8/10/2004.2 The Economist. 21/1/2006.

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Uma nova realidade regional?A América do Sul não pode encarar tais mudanças globais sem modificar

a percepção de sua posição na cena mundial e da espécie de relacionamento que deve prevalecer entre os países que a integram.

Num mundo em que a posição dos países em desenvolvimento, no seu todo, era marcada, sobretudo, por um relacionamento assimétrico entre o centro e a periferia, as relações entre nações periféricas tendiam a orientar-se para um destes rumos: a adesão de algumas delas ao centro – e seu conseqüente alheamento às outras periféricas – ou, de forma alternativa, a busca de aglutinar os países periféricos a fim de modificar uma ordem econômica mundial vista como prejudicial aos interesses dos mais pobres ou, pelo menos, proteger-se melhor dos seus efeitos. Em certa medida, essa dicotomia ainda subsiste embora de maneira menos marcante.

Historicamente, a segunda opção tem sido com freqüência dificultada por desconfianças e efetivas divergências de interesses entre os supostos aliados. Vimos os resultados enfraquecedores dessas discrepâncias, por exemplo, na débil operacionalidade política do Grupo dos 77, nas décadas de 60 e 70 do século passado. Países que deveriam formar um grupo coeso, unido na defesa de medidas propensas a promoverem, em benefício comum, a reforma da ordem mundial vigente apenas se irmanavam no discurso, tendo, assim, extrema dificuldade em pôr-se de acordo sobre mecanismos corretivos concretos.

No âmbito regional, vimos problemas idênticos entravarem a concretização da grandiosa visão de integração da América Latina como um todo. Assim, o objetivo de integração dos países sul-americanos pode ser visto como expressão de um recuo estratégico: não sendo possível integrar a América Latina, tenta-se integrar a América do Sul – com resultados, pelo menos até agora, discutíveis... Por ocasião da convocação da I Reunião de Cúpula da América do Sul, nosso então Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Luís Felipe Lampreia, admitiu implicitamente essa condição ao afirmar, em artigo publicado na Carta Internacional, que a América Central e o Caribe não tinham sido incluídos naquela reunião em virtude não só da especificidade sul-americana mas também das ligações, em excesso diretas e próximas, daquelas regiões com a América do Norte, em especial com os Estados Unidos. Em outras palavras, certo número de países latino-americanos, periféricos todos, já haviam aderido ao centro não havendo razão de convidá-los para o encontro

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sul-americano de Brasília. A evidente falha desse raciocínio é que a postura dessa ou daquela nação periférica relativamente ao centro se define em função de opções políticas, não de meridianos geográficos. Assim, como sabemos, encontram-se posições diversas e até contraditórias no interior da própria América do Sul e não só entre essa e a América Central ou o Caribe.

Já num mundo com tendência a diluir a concentração internacional de poder, a cooperação política e a integração econômica entre países em desenvolvimento podem assumir, em tese, um caráter mais construtivo e menos defensivo embora não desapareçam as divergências ligadas a possíveis diferenças de percepção ou a choques relacionados com interesses objetivos. Como a idéia central vem a ser a de criar ou consolidar ligações eqüitativas e frutíferas, não a de confrontar um adversário comum, o centro, no caso – o negócio, então, é associar recursos num empenho sinergético para assegurar que o resultado final seja superior à soma daquilo que as partes poderiam conseguir isoladamente. É esse o caráter que hoje se procura atribuir à integração da América do Sul e – mais especificamente relevante para o tema deste escrito – à cooperação Brasil-Peru. Tal situação permite ao Presidente Luís Inácio Lula da Silva proclamar a alta prioridade conferida por seu governo à integração do subcontinente enquanto seu Ministro das Relações Exteriores afirma a intenção de manter com os Estados Unidos uma relação madura, de caráter mais estratégico, na qual Washington perceberia o Brasil como parceiro indispensável ao cultivo de relações estáveis com a América do Sul e mesmo com a África. Em outras palavras, não haveria, na percepção de Brasília, antinomia entre boas relações com os Estados Unidos e integração dos países sul-americanos já que o objetivo seria fortalecer esses países, não antagonizar o centro.

Essa linha de raciocínio parece nortear a política externa brasileira no subcontinente, mas não elimina a dificuldade em atingir o proclamado objetivo de integração da América do Sul. Além dos obstáculos inevitáveis à concretização de uma iniciativa dessa magnitude, ela esbarra em duas espécies de problema. O primeiro é a falta notória de eqüidade em um plano de integração entre economias que, embora classificadas, elas todas, como “em desenvolvimento”, apresentam entre si fortes assimetrias. Isso levaria, na percepção das mais débeis, a um claro desvio distributivo em favor das mais vigorosas da região, em particular a do Brasil. Do ponto de vista daqueles países,

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isso tornaria ilusórios – ou pelo menos muito exagerados – os proclamados benefícios da integração. Públicas e notórias são, por exemplo, as insatisfações de países como Paraguai e Uruguai. A segunda espécie de problema é a divergência quanto à postura a tomar em relação ao centro – especialmente aos Estados Unidos. Enquanto alguns buscam estabelecer ou já estabeleceram vínculos especiais com Washington, seja sob a forma de acordos bilaterais de comércio, como o Chile ou o Peru, seja de caráter mais amplo, como a Colômbia, outros, como a Venezuela, só concebem uma união sul-americana se dirigida contra os Estados Unidos, considerados por Caracas o grande inimigo. Entre aqueles dois grupos, outros, como o Brasil, não vêem contradição entre as boas relações com Washington e a integração do subcontinente, mas não desejam uma associação econômica formalmente mais estreita com o poderoso Estado setentrional. Em suma, dadas essas divergências, até mesmo integrar apenas os sul-americanos – e não mais todos os latino-americanos – parece, na melhor das hipóteses, um objetivo de muito longo prazo. Nesse contexto, cabe, ainda que sem perder de vista o propósito final de integração da América do Sul, não descurar os esforços menos grandiosos, porém mais pragmáticos, de cooperação bilateral.

Brasil-Peru Países de enormes territórios, baixa densidade populacional e considerável

diversidade geográfica, Brasil e Peru, embora em diferentes graus, enfrentam problemas internos relativos a desigualdades regionais e integração funcional das suas respectivas regiões.

No dizer de Enrique Cornejo Ramírez, “el Perú es un país megadiverso en el que confluyen diversas razas, lenguas y ecosistemas lo que da una gran potencialidad en sectores como la agroindústria, el turismo o la industria forestal. Su compleja geografía, sin embargo, dificulta la integración física entre los peruanos y pone a prueba a la más sofisticada ingeniería.”3 O Brasil, sem os mesmos extremos de diversidade cultural e com uma geografia muito menos complexa, tem uma vasta experiência de lidar com desigualdades regionais e integração física de seu extenso território. Desenvolveu também uma base industrial diversificada,

3 Cornejo Ramirez, Enrique. “La economía peruana y el desafío del crecimiento con inclusión social.” In: DEP: Diplomacia, Estratégia e Política, n. 7, julho/setembro de 2007.

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na qual se inscreve uma significativa indústria de construção civil, com empresas tecnicamente avançadas e economicamente sólidas, com ampla atuação na área internacional.

Essa complementação de necessidades e experiências oferece, pois, um vasto campo de cooperação possível no desenvolvimento da infra-estrutura peruana, um campo que já vem sendo explorado por empresas brasileiras com resultados positivos para as duas partes e perspectivas altamente promissoras. Trata-se de um campo que, além dos benefícios imediatamente ligados à política de incrementar a permuta bilateral na área de serviços, é importante para levar o desenvolvimento à economia peruana em seu conjunto e para incrementar o comércio de bens entre ambas as nações.

Um bom exemplo da importância das obras de infra-estrutura e da cooperação internacional é dado pelo ocorrido na região de San Martín, com a recuperação da estrada Fernando Belaúnde Terry. No ano 2000, os prefeitos membros da Associação de Municipalidades da área reuniram-se na localidade de Tocache para determinar que medidas deveriam ser tomadas com vistas a reverter o processo de crescente exclusão da região e como somar esforços para que tais medidas fossem postas em prática. Formou-se rapidamente o consenso de que a providência mais urgente e relevante era a recuperação (na verdade a reconstrução) da estrada Fernando Belaúnde Terry. No começo do ano seguinte, o diagnóstico foi confirmado por uma pesquisa realizada sob os auspícios do Projeto de Redução e Alívio da Pobreza, financiado pela Usaid-Peru, sobre os nós de estrangulamento que impediam o progresso da região. Segundo a pesquisa, os principais seriam “o estado ruim da rodovia Fernando Belaúnde” e a “escassez e o custo excessivo da energia elétrica”. Só a deterioração da estrada, a cujas margens vivem mais de 107 mil pessoas, responderia por um prejuízo anual de 250 milhões de dólares. Finalmente, em setembro de 2002, os governos dos Estados Unidos e do Peru firmaram um Convênio de Doação com Objetivo Especial, cuja finalidade principal era reduzir de modo sustentável o cultivo, com fins ilegais, da coca. Foi esse acordo que possibilitou à Usaid doar 25 milhões de dólares para a recuperação da estrada Fernando Belaúnde Terry, no trecho Juanjuí-Tocache. O Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos recebeu a incumbência de licitar, supervisionar e controlar a obra, cuja execução coube à construtora brasileira Andrade Gutierrez. Os trabalhos, iniciados em abril de 2004, foram

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entregues ao governo peruano pela Usaid, entidade que assinou o contrato com a Andrade Gutierrez, dezoito meses depois.

A importância da cooperação bilateral, no entanto, não se limita a aproveitar essa feliz oportunidade oferecida por necessidades e possibilidades complementares em uma área particularmente relevante para o desenvolvimento e a integração. O Peru é um país de considerável potencialidade e que tem sabido, nos últimos anos, expandir sua economia a um ritmo acelerado, embora enfrente, como assinala o citado artigo de Enrique Cornejo, o enorme desafio de assegurar que os benefícios desse crescimento se distribuam mais equitativamente. Entre os anos 2002 e 2005, o PIB expandiu-se a uma taxa anual média de 5% e, nos dois anos seguintes, ainda mais rapidamente. Assim, no período 2000-2007, o país apresentou a segunda maior taxa de crescimento da renda per capita na América Latina, atrás apenas do Chile. Nos primeiros cinco anos dessa década, a expansão foi assegurada sobretudo pelas crescentes exportações, mas nos dois anos seguintes ela foi sustentada principalmente pela demanda interna, que cresceu a 9% e 10,6% anuais, bem acima das taxas de incremento do PIB e das exportações. A população economicamente ativa (PEA) aumenta, porém, a um ritmo de 350.000 indivíduos por ano, cujo emprego só poderia ser assegurado por uma taxa anual de crescimento da ordem de 7%. Não chega, pois, a surpreender que, em 2004, o desemprego na economia peruana ainda fosse de 8,5% da população economicamente ativa e o subemprego, de 54%. Em suma, quase dois terços da PEA estava desempregada ou subempregada. Poderíamos ampliar o número de indicadores econômicos e sociais, numa enfadonha lista de cifras, mas só confirmaríamos a avaliação geral de que o Peru, sendo hoje um país com um bom desempenho econômico, ainda enfrenta um enorme desafio de inclusão social. A sustentação desse desempenho na economia e, conseqüentemente, as condições para a solução dos problemas sociais serão reforçadas num clima de cooperação bilateral, no qual assume relevância a remoção dos gargalos de infra-estrutura.

Assim, a presença no Peru de firmas brasileiras de engenharia civil é parte visível de uma cooperação madura entre ambos os países, uma cooperação que não se esgota na remoção de barreiras ao comércio e no conseqüente incremento no intercâmbio de bens. Isso é bem exemplificado pelo caso da Andrade Gutierrez, com uma importante carteira de projetos executados ou em andamento, relevantes não só para o melhor desempenho da economia

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peruana como também, em certos casos, para a sua melhor integração no continente.

A empresa chegou ao Peru há pouco mais de quinze anos, em 1992, iniciando seus trabalhos de engenharia civil no país pela construção, em consórcio com empresas locais, na região de Piura, a quase 1.200 quilômetros ao norte de Lima, do cais de cargas líquidas de Talara, destinado a servir à mais antiga refinaria do país e atualmente a segunda em capacidade. Era preciso construir um cais para receber navios de até 35.000 toneladas de deslocamento bruto e a usina de tratamento de água para lastro. A obra hoje possibilita, em seguras condições, a atracação de navios-tanque para a carga de substâncias obtidas na refinaria e a descarga no mar da água usada para lastro em condições ecologicamente apropriadas.

Esse foi o primeiro passo de uma longa e frutífera história de cooperação. Outros viriam, sobretudo no setor rodoviário, mas também no de geração de energia elétrica, numa série de importantes projetos na área de engenharia civil que até hoje não cessou.

Dessa forma, já no período 1993-1995, executou a mesma empresa para o governo peruano uma importante obra de recuperação e manutenção de um longo trecho (235 quilômetros) da Estrada Pan-Americana Sul. Trata-se de uma das estradas de maior trânsito no país e permite a automóveis e caminhões fazer o trajeto sem interrupções entre Ica e Lima, dando condições para escoar a produção predominantemente agrícola da região servida pela rodovia para o principal mercado consumidor doméstico, o de Lima. Seguir-se-iam outros, como a recuperação e pavimentação da estrada Tarma-La Merced, 1996-98, ou da rodovia La Merced-Shankivironi, 1997-1999, que em parte coincidem no tempo com a realização do túnel de adução e obras conexas da central hidroelétrica San Gabán II, 1996-99.

Mais importante que a listagem de projetos individuais é, porém, a visão política endossada por todos os chefes de Estado sul-americanos na I Reunião de Cúpula da América do Sul, realizada em Brasília, no ano 2000, de que não bastava pôr termo a projetos individuais – era preciso discutir em conjunto a integração da infra-estrutura continental. Só dessa forma se conseguiria maximizar a contribuição desses empreendimentos para a realização do objetivo comum de integração. Foi assim que se aprovou a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (Iirsa) como foro para a

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discussão integrada de projetos de infra-estrutura capazes de contribuir para a consecução do objetivo integracionista aceito por todos, mas que seria pouco mais que letra morta enquanto não fosse possível promover a integração física do continente.

A Iirsa projetou nove Eixos de Integração e Desenvolvimento. Desses, quatro envolvem o Peru, e três, igualmente o Brasil:

• Eixo do Amazonas – Iirsa Norte (Peru-Equador-Colômbia-Brasil);• Eixo Iirsa Sul (Peru-Brasil-Bolívia);• Eixo interoceânico (Brasil-Paraguai-Bolívia-Peru-Chile), e• Eixo andino (Peru-Equador-Colômbia-Venezuela-Bolívia-Chile).

Como se pode ver, os “eixos de integração” aprovados pela Iirsa oferecem um elemento importante para o desenvolvimento de um trabalho sério de cooperação Brasil-Peru na área da infra-estrutura de transporte e comunicação. O eixo multimodal Amazonas Norte, por exemplo, estende-se por 960 quilômetros e compreende não apenas os trechos rodoviários entre Paita e Yurimaguas mas também os portos fluviais desse último local e de Iquitos, bem como as hidrovias oferecidas pelos rios Huallaga e Marañon, que completam a vinculação com a fronteira do Brasil. No tocante ao tema específico deste artigo, os projetos contemplados nos eixos Iirsa – muitos dos quais ainda estão em execução com a participação da Andrade Gutierrez e de outras empresas brasileiras – criam assim grandes possibilidades de incremento do intercâmbio entre um país com a já mencionada potencialidade do Peru e o Brasil, o mais importante mercado nacional da América do Sul.

À guisa de conclusãoComo assinalado na parte inicial do artigo, integrar os países latino-

americanos – como um jogo de soma positiva, no qual a associação dos países da América Latina poderia resultar em um ganho em relação ao que seria a mera agregação dos produtos nacionais da região – foi uma idéia que demorou a tomar pé nas respectivas capitais. Sua primeira expressão formal, bastante influenciada pelo pensamento da Cepal, foi o Tratado de Montevidéu I, de 1960. Por esse tratado se criou a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc). Em tese, a integração deveria eliminar ou atenuar algumas das mazelas que achacam as economias em desenvolvimento, como a estreiteza

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dos respectivos mercados internos e os conseqüentes obstáculos para a especialização e formação de economias de escala.

Por motivos brevemente aflorados em outra seção deste escrito, o ideal integracionista não prosperou da maneira prevista naquele tratado. Chegou-se dessa forma, duas décadas mais tarde, ao Tratado de Montevidéu II, que estabeleceu a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), cujas realizações também ficaram aquém do formalmente anunciado objetivo.

Decorridos quarenta anos da assinatura do Tratado de Montevidéu I, o Brasil tomou a iniciativa de convocar, no ano 2000, uma reunião de cúpula dos países sul-americanos, considerados menos ligados aos Estados Unidos que os da América Central e Caribe e dotados, no conjunto, de especificidades que, em tese, deveriam facilitar uma aproximação mais íntima do que seria possível em relação à América Latina em sua totalidade. Surgia assim, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a noção de um novo regionalismo continental, o sul-americanismo, conservada no atual.

Hoje, com a sabedoria fácil da retrospecção, parece claro que toda e qualquer idéia ambiciosa de integração regional – sul-americana ou latino-americana – deve ser vista como objetivo de longo prazo, de consecução desejável, porém remota. Sendo assim, mas sem nunca abandonar essa distante meta, cabe desenvolver pragmaticamente esquemas bilaterais de aproximação com nossos vizinhos, particularmente aqueles projetos que possam contribuir da mesma forma para a consecução daquele objetivo longínquo de integração regional. É nesse contexto que se enquadra a cooperação com o Peru na área de infra-estrutura.

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www.embraer.com.br

Embraer – Empresa Brasileirade Aeronáutica S.A.A internacionalização da Embraer

Introdução

A Indústria Aeroespacial, da qual a Indústria Aeronáutica constitui o segmento mais expressivo, reúne uma combinação de características altamente demandantes, que a fazem especial e diferenciada.

Poucas indústrias no mundo embutem combinação de desafios tão formidáveis como a indústria aeronáutica: do emprego simultâneo de múltiplas tecnologias de vanguarda, passando pela mão-de-obra de elevada qualificação, pelas exigências de uma indústria global por definição, à flexibilidade necessária para reagir a abruptas mudanças de cenário e os grandes volumes de capital exigidos em sua operação.

Como fruto da experiência acumulada em mais de três décadas de atuação neste mercado competitivo, agressivo e sofisticado, na Embraer costumamos afirmar que o negócio aeronáutico se fundamenta em cinco grandes pilares,

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que tem como base única a satisfação dos nossos clientes, fonte geradora dos resultados que permitirão o retorno aos nossos acionistas e a continuidade da Empresa ao longo dos tempos:

• Tecnologias avançadas: em decorrência de requisitos operacionais muito exigentes quanto à segurança, de variações ambientais extremas, e de restrições de peso e volume, a indústria aeronáutica emprega uma multiplicidade de tecnologias de ponta e reconhecidamente constitui laboratório para o seu amadurecimento, antes que sejam repassadas a outros segmentos e atividades produtivas. Tecnologias complexas e sofisticadas estão presentes não somente no produto, mas também nos métodos e processos de desenvolvimento e fabricação, sendo necessário ainda a utilização das melhores práticas disponíveis no que concerne à gestão financeira e de pessoas.

• Força de trabalho de elevada qualificação: para que se possa fazer uso eficiente e produtivo compatível destas tecnologias avançadas, é fundamental que pessoas capacitadas estejam disponíveis, em todos os níveis de atividades da indústria: no projeto apoiado por computadores, no relacionamento com fornecedores e clientes baseados nos cinco continentes, na manufatura com base em máquinas de controle numérico sofisticadas, e na construção de elaboradas soluções financeiras com instituições internacionais.

• Flexibilidade: abruptas mudanças de cenário afetando a economia e a ordem geopolítica em escala mundial, das quais o exemplo mais recente vem dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, tem imediato impacto sobre a indústria de transporte aéreo e, por decorrência, sobre os fabricantes de aeronaves. A flexibilidade para adaptar-se a estas mudanças, com mínima perda de eficiência e custos, constitui característica crucial para assegurar sua sobrevivência e preservação.

• Intensidade de Capital: investimentos maciços requeridos para o desenvolvimento de novos produtos e melhorias em qualidade e produtividade, aliados a longos ciclos de desenvolvimento e maturação, fazem da intensidade de capital outra característica marcante deste negócio. Apenas para exemplificar, o desenvolvimento da nova família de aeronaves comerciais Embraer 170/190 requereu investimentos da

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ordem de US$ 1 bilhão e o novo avião Airbus A350 deverá requerer nada menos que US$ 15 bilhões!

• Indústria global: os baixos volumes de produção e os custos elevados fazem com que a indústria aeronáutica seja exportadora e global por natureza, tanto no que se refere à sua base de clientes, como a de fornecedores, ou das instituições financeiras e investidores que a apóiam. A mesma aeronave Embraer 170 que opera sob as cores da empresa finlandesa Finnair no rigoroso inverno escandinavo deve igualmente suportar as condições de elevadas umidade e temperatura do sul dos Estados Unidos, operando sob as cores da United Express. Em ambas as circunstâncias, a Embraer deve se fazer permanentemente presente junto a seus clientes, provendo apoio técnico local e acesso imediato a peças e componentes, demonstrando compromisso com o êxito de seus negócios e objetivando, sempre, a satisfação plena que assegura novas encomendas no futuro. Ao mesmo tempo, tem que viver os diversos ambientes em que opera para perceber tendências e mudanças nos cenários, positivas ou adversas, e ter a capacidade de reagir com rapidez.

Legacy 600

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Todas essas características tornam a indústria aeronáutica um negócio, ao mesmo tempo, fascinante e de elevado risco. O insucesso de um novo produto pode implicar a inviabilidade e conseqüente saída do mercado da empresa que o desenvolveu. O desaparecimento de empresas tradicionais, como a holandesa Fokker, e a saída da sueca Saab do mercado aeronáutico civil, dentre outras, constituem duro atestado desta realidade.

A despeito dos grandes riscos envolvidos, desenvolver uma indústria aeronáutica autóctone, forte e autônoma, tem sido parte da agenda estratégica de muitas nações, que através dos anos investem pesadamente em sua implantação, apoiando-a de forma recorrente por meio de vários expedientes: firmando grandes contratos de sistemas e produtos de Defesa, financiando programas de desenvolvimento de novas aeronaves em condições favoráveis e propiciando incentivos fiscais de toda a sorte

A internacionalização da EmbraerConsciente de que a conquista de novos mercados, fundamentais

para o crescimento e consolidação da empresa, somente se dará de forma efetiva se acompanhada de sua presença física nestes mercados, por meio de unidades industriais ou de prestação de serviços de pós-venda e apoio ao cliente, a Embraer adotou, a partir de sua privatização, em 1994, a progressiva internacionalização de suas operações como um objetivo estratégico a perseguir.

Longe de significar perda de sua identidade brasileira e afastamento de suas origens, a internacionalização da Embraer assegurará novos negócios, o fortalecimento da nossa marca e a criação de mais empregos de alta qualificação no Brasil, em proporções sempre superiores aos empregos gerados em suas subsidiárias e controladas localizadas fora do país.

A partir do ano de 1997, já em franca recuperação após o lançamento no mercado do jato regional ERJ 145, a Embraer deu partida à sua estratégia de internacionalização por meio de um misto de ações que envolveram: 1- a expansão ou implantação de escritórios de vendas e marketing e centros de distribuição de peças de reposição; 2- realização de “joint ventures” e; 3- aquisição de empresas especializadas em serviços aeronáuticos tradicionais e reputadas no mercado.

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Estados Unidos e Europa: presenças consolidadasEm território norte-americano e europeu a Embraer encontra-se presente

de longa data: desde 1978 e 1983, respectivamente, por meio de escritórios de vendas e marketing e unidades de apoio ao cliente (peças e serviços).

Ambas as unidades tiveram e têm papel vital na expansão de seus negócios nos dois principais mercados de Aviação Comercial em todo o mundo, onde voam hoje, aí incluído o Brasil, cerca de 950 jatos comerciais, que se somam aos cerca de 800 aviões turboélices e mais aviões militares fabricados pela Empresa. Os mercados norte-americano e europeu são responsáveis por cerca de 95% do total das exportações.

No caso da unidade norte-americana, baseada em Fort-Lauderdale, no Estado da Flórida, as instalações foram expandidas para fazer frente ao crescimento dos negócios da Empresa a partir da primeira entrega do jato regional ERJ 145, em dezembro de 1996. Em novembro de 2006 esta unidade empregava 234 pessoas e gerenciava um estoque de peças com mais de 50 mil itens.

Phenom 100 e Phenom 300

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Como resultado do aumento de seus negócios e da base de clientes estabelecida em território europeu, a Embraer decidiu reunir em uma única sede, localizada em Villepinte, nas proximidades do aeroporto de Roissy-Charles de Gaulle, em Paris, suas unidades de vendas e marketing e apoio ao cliente, incluindo importante depósito de peças sobressalentes, até então divididas entre a mesma localidade de Villepinte, e o aeroporto de Le Bourget. As novas instalações, integradas, deverão proporcionar maior eficácia operacional a um corpo de 194 empregados, responsáveis pela gestão de € 172 milhões de ativos e servir mais de 37 clientes.

China e Ásia-Pacífico: mercados estratégicosPela importância de sua economia, que cresce ininterruptamente a

taxas elevadas há mais de duas décadas, somada ao valor estratégico do transporte aéreo como elemento integrador e viabilizador do desenvolvimento em um território dimensões continentais, a China foi eleita pela Embraer como objetivo estratégico a alcançar, exigindo tratamento próprio e diferenciado, em face de características culturais próprias, muito distantes do mundo ocidental.

O estabelecimento da presença da Embraer em território chinês deu-se inicialmente em maio de 2000, por meio da abertura de um escritório de vendas e marketing, na cidade de Pequim, logo seguido da abertura de um centro de distribuição de peças de reposição na mesma cidade.

Nos anos 2001 e 2002, a Embraer negociou com autoridades chinesas um acordo que lhe permitisse instalar uma unidade industrial destinada à fabricação de aviões da família ERJ 145 destinadas ao mercado chinês.

Finalmente, em dezembro de 2002, foi firmado um acordo com a Aviation Industry of China II (AVIC II), que levou à criação da Harbin Embraer Aircraft Industry (HEAI), “joint venture” da qual a Embraer detém o controle, com 51% das ações com direito a voto.

Em fevereiro de 2004, a Embraer anunciou a sua primeira venda na China por meio da HEAI – seis jatos ERJ 145 para a empresa China Southern. Seguiram-se outras importantes vendas, do mesmo modelo e na mesma quantidade, para a China Eastern Jiangsu, março de 2005, e para a China Eastern Wuhan, em janeiro de 2006.

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 317

Em agosto de 2006, a Embraer anunciou a venda de 50 aviões ERJ 145 e 50 jatos Embraer 190 ao Grupo HNA, quarta maior empresa aérea da China. O negócio representou o primeiro contrato de venda de um E-Jet na China continental. O valor total das encomendas firmes, ao preço de lista, é de US$ 2,7 bilhões. As entregas dos ERJ 145 começarão em setembro de 2007. O jato, de 50 assentos, será produzido pela própria HEAI, na cidade de Harbin, Província Heilongjiang.

Até o final de 2006 a HEAI terá entregado 13 unidades do ERJ 145 que, somadas às cinco aeronaves vendidas em 2000, antes da implantação de sua “joint venture”, para a Sichuan, totalizarão 18 jatos em operação por empresas aéreas chinesas.

Com respeito à região da Ásia Pacífico, desde dezembro de 2000, a Embraer opera um escritório de vendas e marketing localizado em Cingapura, com a responsabilidade de desenvolver a estratégia comercial da companhia para os mercados da região, incluindo o subcontinente indiano.

Vista aérea da sede da Embraer em São José dos Campos

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O mercado aéreo indiano passa por processo de desregulamentação e com interessantes perspectivas de crescimento. Nesse cenário, a empresa Paramount, recentemente criada, anunciou o início de suas operações, com base em dois jatos Embraer 170 e três Embraer 175, sob o regime de “leasing operacional”.

Foi também na Índia, com governo local, que a Embraer assinou importante contrato de venda de cinco jatos Legacy 600, configurados especialmente para atender a requisitos de conforto e segurança aplicáveis às autoridades daquele país.

Expandindo a base de serviços e apoio ao clienteA Embraer deverá continuar expandindo a área de serviços, não só no

que diz respeito a assegurar os excelentes índices de despachabilidade para a frota de seus aviões, mas também servir seus clientes com outros serviços, como a manutenção e o reparo de aviões, garantindo a sua plena satisfação, condição essencial à geração dos nossos resultados e crescimento das nossas operações.

Assim é que, além de consolidar sua base de atendimento no Brasil, com a transferência de seu Centro de Serviços para a Unidade Gavião Peixoto, foram expandidas sua participação nos Estados Unidos, com a adição de novas instalações da Embraer Aircraft Maintenance Services (EAMS), em Nashville, Estado do Tennessee, e também na Europa, com a aquisição da OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal S.A, em Alverca, Portugal, anunciada em dezembro de 2004, ao final do processo de privatização.

No início de 2005, a EAMS expandiu suas instalações no Aeroporto Internacional de Nashville para aumentar a capacidade de realização de serviços de manutenção, em vista da crescente frota de aviões da Embraer em operação nos Estados Unidos. Como conseqüência dessa importante decisão, a partir de 2005, novos empregados foram progressivamente contratados pela EAMS, cujos quadros contavam, em novembro de 2006, com 277 empregados.

A OGMA, fundada em 1918, tem desde então se dedicado à manutenção aeronáutica, sendo hoje importante representante da indústria aeronáutica européia, oferecendo serviços de manutenção e reparo de aeronaves civis e

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militares, motores e componentes, modificações e montagens de componentes estruturais e suporte de engenharia.

Seus principais clientes militares são a Força Aérea Portuguesa, a Força Aérea Francesa, a Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos, a Agência de Manutenção e Suprimento da OTAN e as Marinhas da Noruega e Holanda, entre outros. No segmento comercial, a OGMA vem prestando serviços a empresas aéreas como a TAP, Portugalia, British Midland e Luxair, e também para companhias como a Embraer e a Rolls-Royce.

Além de trabalhos na área de manutenção, a OGMA fabrica componentes estruturais e materiais compostos para a Boeing, Airbus, Lockheed Martin, Dassault e Pilatus. Em novembro de 2006 contava com 1.606 empregados, constituindo-se na maior das unidades e subsidiária da Embraer.

A preservação da cultura, valores e atitude: desafio permanente

A velocidade da expansão da Embraer a partir de 1996, ano que marcou a entrada em operação da aeronave ERJ 145, trouxe consigo enormes desafios

Família Embraer 170/190

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sob os enfoques da preservação da cultura, valores e atitudes que norteiam e deverão continuar norteando suas ações.

Apenas para exemplificar a dimensão desse desafio, basta citar que, em abril de 1997, a Empresa contava com apenas 3.200 empregados distribuídos em um total de cinco unidades operacionais, sendo três no Brasil e duas no exterior. Hoje, decorridos nove anos, são 18.670 empregados distribuídos em treze unidades operacionais, sendo cinco no Brasil e oito no exterior. Em apenas uma de suas unidades, situada na França, existem cerca de 26 nacionalidades e 19 línguas distintas dentre 194 empregados.

Saber reconhecer a rica diversidade étnica e cultural de seus empregados e os diferentes ambientes em que desenvolvem suas atividades, aí incluídas as legislações trabalhistas específicas, e, ao mesmo tempo, desenvolver seu máximo potencial criativo, canalizando suas energias para os objetivos do negócio, em perfeito alinhamento com os valores éticos e morais da companhia, constitui uma das grandes prioridades de seus administradores.

O principal elemento no alcance desse intento é a chamada Metodologia de Gestão pelo Plano de Ação. Anualmente, a Embraer elabora um Plano de Ação com uma visão de cinco anos e segue um modelo de planejamento estratégico considerando mercados, competidores, competências da Empresa, oportunidades e riscos, prioridades e resultados, dentre outros fatores.

O Plano de Ação da Companhia é resultante do desdobramento interno de planos equivalentes para cada área corporativa, funcional e de negócio, chegando ao nível de chão de fábrica, a partir da divulgação, na estrutura organizacional, de diretrizes gerais emitidas pela administração superior para a Empresa. A política de remuneração variável da Companhia, que se estende a todos os seus empregados, leva em conta as metas pactuadas entre líderes e liderados ao longo de toda a cadeia de comando. Em assim sendo, o Plano de Ação passa a constituir o instrumento central de empresariamento do negócio, alinhamento e comprometimento de todos os empregados com as metas e resultados planejados.

Juntamente com a Metodologia do Plano de Ação, a Embraer pratica uma forte cultura de Comunicação Interna direcionada para a integração entre empregados e seus familiares e para a disseminação dos principais valores e conceitos Embraer.

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A Comunicação Interna da Embraer atua de forma global e integrada, lançando mão de ferramentas modernas e de grande atratividade junto aos empregados:

• O Diretor-Presidente da Embraer dispõe de ferramenta própria de comunicação com os empregados, denominado Em Tempo, produzido simultaneamente nos idiomas português e inglês. Mais recentemente, passaram a serem produzidas edições especiais do Em Tempo gravadas em vídeo;

• A Intranet Embraer constitui hoje ferramenta de alcance corporativo e a principal fonte de informações de nossos empregados, com uma média de 24,5 mil acessos diários;

• Cerca de 600 comunicados internos são produzidos anualmente e disponibilizados aos empregados via Intranet e em quadros de avisos, sendo 25% destes comunicados de alcance corporativo;

• O informativo Embraer Notícias divulga temas essenciais à cultura Embraer: a Metodologia de Gestão pelo Plano de Ação, a importância do discernimento e contenção de custos, o combate ao desperdício, a integração entre equipes em torno dos grandes objetivos empresariais da Embraer, etc;

• Entrevistas concedidas pelos principais executivos da Empresa são traduzidas e enviadas para as unidades situadas fora do país. Por abordarem, invariavelmente, avaliações de mercado, assim como estratégias e objetivos da Companhia, constituem objeto de grande atenção por parte dos empregados, e

• Artigos publicados na mídia nacional e internacional, abordando temas de interesse aos negócios da Embraer, são traduzidos e disponibilizados aos empregados.

Com essa visão e determinação, centrada em valores éticos e morais, e tendo a integridade como base do desenvolvimento das ações, a Embraer se lança ao empresariamento de um negócio global, extremamente desafiante e competitivo. E o faz levando aos diversos mercados a imagem de uma empresa brasileira eficiente, ágil e com produtos de qualidade e atualidade tecnológica.

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Sumário

Argentina-Brasil: um projeto desejável – e possível?Roberto Lavagna

Alguns elementos para entender a BolíviaPablo Solón

Estados Unidos, América do Sul e Brasil: seis tópicos para uma discussãoJosé Luís Fiori

Transformação da matriz sócio-política e desenvolvimento no ChileManuel A. Garretón M.

Colômbia: política externa, economia e o conflitoMarta Lucía Ramírez

Equador, perspectivas de um ex-PresidenteRodrigo Borja

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 9 Janeiro / Março 2009

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324 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

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233

253

A grande divergência: dependência histórica ou dependência do caminho? Resultados das AméricasSteve De Castro

O que aconteceu no Paraguai?Fernando Lugo

O paradoxo peruano: crescimento econômicoe desaprovação políticaJulio Cotler

Apresentação político-econômico-social do SurinameC.A.F. Pigot

O Uruguai e as linhas divisórias da aprendizagemRodrigo Arocena

A integração energética da América Latina e CaribeMaría A. Hernández-Barbarito

Fernando de Szyszlo

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122

Argentina e Brasil: contraste e convergência de estruturasTorcuato S. Di Tella

Bolívia: processos de mudança e política externaJean Paul Guevara Avila

Cultura, diversidade e acessoGilberto Gil

Ensaio sobre as grandes mudanças da política econômica chilena e seus principais legadosOsvaldo Sunkel

Colômbia: um país de contrastesAlfredo Rangel

Equador: temas fundamentaisLeón Roldós

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 8 Outubro / Dezembro 2007

Sumário

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326 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

Guiana: impacto da política externa sobre os desafios do desenvolvimentoRobert H. O. Corbin

Paraguai: identidades, substituições e transformaçõesBartomeu Melià, s.j.

Peru: entre os sobressaltos eleitorais e a agenda pendente da exclusãoMartín Tanaka · Sofía Vera

A República do Suriname e a integração regionalRobby D. Ramlakhan

Uruguai: breve evolução econômica e políticaAlberto Couriel

O Estado de direito e de justiça social no quadro da Alternativa Bolivariana para a América e o Caribe – ALBAIsaías Rodríguez

Koki Ruiz

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190

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Sumário

A recuperação da economia argentinaAldo Ferrer

Economia da Bolívia: diagnóstico e planos para 2008Luís Alberto Arce Catacora

Um enfoque qualitativo da economia brasileiraJoão Paulo de Almeida Magalhães

A economia chilena e os desafios do desenvolvimentoMauricio Jelvez M.

Economia colombiana na conjuntura: uma aproximação críticaDarío Germán Umaña Mendoza

A economia do Equador: um balanço e uma nova noção de desenvolvimentoFander Falconí Benítez

Economia da Guiana: avaliação e projeçõesRajendra Rampersaud

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 7 Julho / Setembro 2007

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328 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

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205

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Paraguai, uma marcha lenta: situação e perspectiva econômicaDionisio Borda

A economia peruana e o desafio do crescimento com inclusão socialEnrique Cornejo Ramírez

Suriname: evolução macroeconômicaAndré E. Telting

A economia do Uruguai: uma perspectiva empresarialJorge Abuchalja

A atual fase de crescimento da economia venezuelanaNelson Merentes

Philip Moore: alma antiga em corpo modernoAgnes Jones

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 329

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 6 Abril / Junho 2007

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76

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Sumário

Realidade da Argentina e regiãoCristina Fernández de Kirchner

Diplomacia para a vidaPablo Solón

Brasil 2007: pronto para crescer novamenteGuido Mantega

A integração regional: fator de desenvolvimento sustentávelEmílio Odebrecht

Em busca do crescimento com eqüidadeRicardo Ffrench-Davis

Colômbia: desafios até 2010Álvaro Uribe Vélez

Um plano para o EquadorRafael Correa Delgado

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330 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

Identidade cultural e creolização na GuianaPrem Misir

Paraguai: Estado patrimonial e clientelismoMilda Rivarola

Colonialidade do poder, globalização e democraciaAníbal Quijano

Combate ao narcotráfico no SurinameSubhaas Punwasi

Mercosul: projeto e perspectivasLuis Alberto Lacalle de Herrera

Acerca da grandíssima importância de um partidoHugo Chávez

Guayasamín por ele mesmo

97

109

132

180

193

202

229

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 331

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 5 Janeiro / Março 2007

Sumário

Idéias, ideologias e política exterior na ArgentinaJosé Paradiso

A integração da infra-estrutura na América do Sul: um impulso ao desenvolvimento sustentável e à integração regionalEnrique García

Paciência e eleiçõesAntônio Delfim Netto

Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia Luis Maira

Fatores de força da ColômbiaFernando Cepeda Ulloa

Política exterior e segurança democrática e humanaDiego Ribadeneira Espinosa

A nova ordem humana global de Cheddi JaganRalph Ramkharan

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332 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

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144

182

191

Situação econômica e perspectivas do ParaguaiDionisio Borda

Visão estratégica regional da política externado PeruJosé Antonio García Belaúnde

Suriname por seus autoresJerome Egger

Mercosul: quo vadis?Gerardo Caetano

Plena Soberania PetrolíferaRafael Ramírez

Silvano Cuéllar – Alegoria da NaçãoMaría Victoria de Robayo

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 333

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICANúmero 4 Abril / Junho 2006

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28

44

66

86

101

Sumário

Objetivos e desafios da política exterior argentinaJorge Taiana

Bolívia, fator de integraçãoEvo Morales

Desafios e perspectivas da economia brasileiraPaulo Skaf

Programa de governo (2006-2010)Michelle Bachelet

A armadilha do bilateralismoGermán Umaña Mendoza

A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (Otca): um desafio permanenteRosalía Arteaga Serrano

A Guiana – vinculando o Brasil ao Caribe: um potencial que encontra a sua oportunidadePeter R. Ramsaroop Eric M. Phillips

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334 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

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134

155

169

206

232

A encruzilhada política paraguaiaPedro Fadul

A grande transformaçãoOllanta Humala

Suriname, uma visão macroeconômica:desafios e perspectivasAndré E. Telting

A inserção externa do Uruguai:uma visão política e estratégicaSergio Abreu

“Há um outro mundo, e está neste”José Vicente Rangel

Pedro LiraMilan Ivelic

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 335

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICAAno I Número 3 Abril / Junho 2005

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336 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 337

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICAAno I Número 2 Janeiro / Março 2005

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338 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009

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Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009 339

D E PDIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICAAno I Número 1 Outubro / Dezembro 2004

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340 Diplomacia, Estratégia & política nº 10 – outubro/DEzEmbro 2009