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Publicado em LOPES, Eliano S. A. (org). A aventura do conhecimento e a pesquisa social em Sergipe. Aracaju: FAPITEC-SE, 2012
“A riqueza está no caminho”: notas sobre um (longo) percurso em defesa da Sociologia
Zander Navarro1
“Discussões exaustivas de métodos, informações exaustivas de processos, trocas de opiniões sobre tudo, eis a única forma possível de esclarecer teorias e melhorar o nível da prática. A discussão, mesmo quando não traz a luz, liquida com muita idéia inútil” (Millor Fernandes. O livro vermelho dos pensamentos de Millor. Rio de Janeiro: Nórdica, 1973 , p. 48) “De onde vêm as ideias corretas? Acaso caem do céu? Não. Serão porventura inatas? Não. Elas não podem vir senão da prática social, de três tipos de prática social: a luta pela produção, a luta de classes e a experimentação científica” (Mao Tsetung. Citações do Presidente Mao Tsetung. Pequim: Edições em Língua Estrangeira, 1972, p. 224)
Introdução
Inicialmente, um esclarecimento: este não é um texto estritamente acadêmico.
São notas, eivadas de alguma pretensão – talvez não passe de um comentário. Aqui me
desobrigo de estabelecer um formato acadêmico e nem mesmo atendo os códigos
rígidos da linguagem correspondente, inclusive recorrendo a uma argumentação
coloquial e à ironia, além de recolher fatos ilustrativos da vida pessoal. Quem sabe seja
mais uma crônica do que propriamente outro gênero discursivo. Fui assim autorizado
pelo editor desta coletânea e espero contar com a tolerância daqueles que me honrarem
com a leitura dessas páginas.
Concordei em refletir sobre minha história como sociólogo e, sobre ela,
extrair lições e oferecê-las ao escrutínio de meus colegas exatamente porque já percorri
1 Doutor em Sociologia (Universidade de Sussex, Inglaterra, 1981) e pós-doutoramento no MIT (Cambridge, Estados Unidos, 1991/92), Professor Associado (aposentado) do Departamento de Sociologia da UFRGS (Porto Alegre). Foi pesquisador visitante nas universidades de Amsterdam (1986) e Toronto (1989) e pesquisador e professor no “ Institute of Development Studies” (Inglaterra) entre os anos de 2003 e 2010. Atualmente é pesquisador na Embrapa Estudos e Capacitação (Brasília) e professor colaborador no Programa de Pós-graduação em Extensão Rural da UFV (Viçosa). Agradeço os valiosos comentários feitos a uma versão inicial do texto por Alberto Roseiro Cavalcanti, Eliano Sérgio Azevedo, Ivan Sérgio Freire Sousa, Lúcia Cristina Hoppe Navarro, Maria Thereza Macedo Pedroso e Rudá Ricci. Como é praxe, os erros remanescentes são de minha exclusiva responsabilidade. EM: [email protected]
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um relativamente longo “tempo de estrada”, sendo este, provavelmente, o meu único
trunfo distintivo a oferecer, o qual me permite a ousadia dessas notas. Lembro-me aqui
do conhecido poema de Kaváfis, no qual somos sempre lembrados a reconhecer que é
no processo de seu desenvolvimento que se encontra a riqueza da experiência humana.
Conforme asseveram aquelas famosas palavras, quando finalmente aportamos em Ítaca,
o ponto mágico e simbólico da existência (a culminação de uma carreira, a
aposentadoria, talvez a iminência da morte), nada mais há a esperar, pois o “melhor se
construiu no caminho”.2 Se assim é, então posso talvez me arriscar a elaborar este
testemunho, pois a fortuna e as circunstâncias da vida me ofereceram inúmeras
experiências de imensa gratificação pessoal, como observador de realidades
inesperadas, processos sociais singulares e marcantes, além de um sem-número de
privilegiadas situações acadêmicas e profissionais, no Brasil e no exterior, as quais
foram fundamentais para me orientar na Sociologia sob uma trajetória analítica mais
autoconfiante (embora não necessariamente a correta, sempre salientarei).
Na aventura humana, algumas de nossas experiências podem imprimir marcas
permanentes. Li meu primeiro livro de Sociologia em dezembro de 1972, durante uma
demorada viagem de ônibus entre Belo Horizonte e Porto Alegre. Embora antes atraído
por textos sobre política e “problemas sociais”, pois participara do movimento
estudantil do final dos anos sessenta, a Sociologia ainda se apresentava para mim sob a
capa de um abissal enigma. Naquele longo percurso entre as duas cidades a leitura de
Introdução à Sociologia, de Tom Bottomore (Editora Zahar, 1971), foi como uma
revelação e me despertou irresistivelmente para aquele campo científico. Embora quase
desconhecido no Brasil, o autor talvez tenha sido uma das referências mais
emblemáticas da tradição marxista em todos os tempos, pois introduziu na língua
inglesa um grande número de obras ainda não traduzidas e foi também um prolífico
pesquisador, tendo organizado (com outros colegas) o extraordinário Dicionário do
pensamento marxista - este publicado no Brasil pelos sucessores daquela editora (Jorge
Zahar Editor, 1988). Bottomore foi, especialmente, um rigoroso estudioso de Marx e da
escola marxista e, ao me debruçar sobre aquelas páginas durante a viagem, tentando
desvendar os mistérios da Sociologia, jamais poderia imaginar que teria o privilégio de
tê-lo como meu professor na Universidade de Sussex, na Inglaterra, apenas cinco anos
2 “(...) Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca (...)”. O poema, em sua inteireza, pode ser lido em: http://www.org2.com.br/kavafis.htm
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depois, no doutoramento que realizei naquela instituição inglesa. Falecido em 1992, foi
um brilhante cientista social, cuja incessante busca da precisão conceitual foi um dos
principais aprendizados que extraí de suas aulas, além de seu conhecimento
monumental sobre a história do Marxismo e os tantos contratempos e vicissitudes
experimentados por esta tradição do pensamento social.
Bottomore foi também o primeiro scholar, no sentido correto e generoso do
termo, com quem convivi na universidade – aquele especialista que comanda uma
espantosa erudição e combina a solidez do conhecimento com a inventividade analítica
e a obsessão pelo aprendizado, mas tem como meio de operação intelectual a
humildade, a inquietação e a abertura para o livre pensar, rejeitando in limine as
proposições “pétreas”, infelizmente tão encontradiças na trajetória da Sociologia – e
especialmente férteis no caso brasileiro. Scholars sabem, em particular, que a ciência se
constitui de uma ação persistente, mas que precisa ser igualmente lógica e consistente e
destinada primordialmente a “testar hipóteses”, pois esta é a operação usual que faz
avançar o conhecimento geral em todas as áreas científicas. Foi um raríssimo marxista,
entre tantos com os quais entabulei diálogos e convivências, pois julgava ser o legado
de Marx não mais do que uma tradição do pensamento social, entre outras, cabendo aos
cientistas sociais aferi-la na realidade cotidiana, mas confrontando-a com as demais
correntes de pensamento. Recusava, portanto, todo e qualquer conteúdo teleológico que
pudesse ser atribuído ao Marxismo, insistindo ainda que o socialismo ou alguma “nova
ordem social”, se algum dia existir, não encontra a sua inteligibilidade como um fato
inelutável derivado dos escritos do filósofo alemão – ou, diga-se de passagem, de
qualquer teoria social.3
Na mesma Universidade de Sussex, no ano seguinte, em outro curso, enquanto
dissecamos os Grundrisse de Marx (ou seja, os rascunhos de O Capital reunidos em
livro, mas publicados originalmente em inglês apenas em 1972), outra experiência
marcou-me para sempre. Desta vez, fui aluno de outro notável marxista, István
Mézsáros, o húngaro que fora aluno de Lukács e seguidor, sobretudo, do “jovem
Lukács”. A experiência, neste caso, foi igualmente decisiva, em face da impressionante
erudição desse pesquisador, autor de livros referenciais, especialmente pela afirmação
3 Teleologia refere-se a uma condição existente em um tipo de argumentação ou proposição, comuns em disciplinas das Ciências Humanas e na Filosofia, que revelaria um propósito previamente definido, ou metas ou objetivos finalísticos ex-ante, supostamente imanentes à ação humana, instituições ou outros processos sociais, os quais produziriam um resultado sistêmico ou atenderiam a uma necessidade social.
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de uma interpretação do desenvolvimento do capitalismo associada ao marxismo
lukacsiano.4 Mas foi experiência que revelou uma diferença surpreendente, devido a um
aspecto crucial: para Mézsáros, as demais tradições não marxistas do pensamento social
eram irrelevantes, pois somente representativas de uma ordem social que seria, sem
nenhuma dúvida, derrubada. Sua visão era assim estreita, voluntarista e ferreamente
ortodoxa, além de teleológica, pois focalizada exclusivamente no Marxismo, além de
dominada por uma atitude de fé inabalável sobre o destino inevitável: o socialismo.
Quando um de seus livros foi traduzido para o farsi e publicado no Irã, Mézsáros
ofereceu uma entrevista, emblemática da visão apologética sobre a versão marxista que
segue, quando insistiu que:
“(...) O capital não tem nenhuma forma de se conter, nem existe no mundo uma força contrária que possa restringi-lo, sem derrubar radicalmente o sistema como tal. Assim, o capital precisa desenvolver seu curso e lógica de desenvolvimento: precisa se apropriar da totalidade do planeta. Tudo isto estava implícito em Marx (...) Sobre isto, somente existe uma solução sustentada. É o socialismo (...) O trabalho, como antagônico ao capital não tem nenhum poder de decisão, nem mesmo no contexto mais limitado. Esta é a questão inevitável e vital para o futuro. E neste sentido, estou convencido, as chances de revitalizar o movimento socialista, cedo ou mais tarde, são absolutamente grandes e fundamentais” (ENTREVISTA, 1999, passim).
A comparação entre a análise daqueles dois professores, cujos escritórios eram
separados por apenas algumas dezenas de metros no campus, não poderia ser mais
iluminadora e instrutiva. Ambos foram influentes em minha formação sociológica, mas
sob ângulos muito distintos, e de Mezsáros extraí, principalmente, a necessidade do
estudo permanente, obsessivo, disciplinado, como forma de apreensão do
conhecimento. Mas Bottomore, sem dúvida, encarnou o modelo irretocável que sempre
julguei ser paradigmático para o exercício acadêmico e profissional da Sociologia – o
convicto marxista que dialogava fraternalmente e com elegância, mas radicalmente (até
às raízes), com todas as correntes do pensamento social. Em um campo disciplinar que
já nasceu dividido no Século XIX, não parecia razoável o dogmatismo de Mészáros:
como interpretar comportamentos sociais e o funcionamento da sociedade sem
comparar criticamente diferentes visões teóricas? Embora então um noviço na
4 István Mészarós publicou, entre muitos outros textos de sua copiosa lavra, Marx: a teoria da alienação (1970), ainda hoje o livro referencial para compreender este conceito central da obra de Marx. Seus melhores livros, assim creio, são os primeiros, publicados nos anos setenta, pois já mais maduro passou a escrever posteriormente sobre processos que, de fato, nunca entendeu em profundidade – o funcionamento concreto da economia capitalista. Seu gigantesco livro Beyond Capital, originalmente publicado em 1994, é apenas uma coleção de apontamentos erráticos e incontáveis citações dos autores marxistas, além de diatribes sobre a política inglesa. Foi publicado no Brasil em 2003 (Para além do capital, Editora Boitempo), recebendo resenhas risivelmente apologéticas de alguns, mas seria capaz de apostar que sequer uma dezena de brasileiros leu todo o livro (incluindo os resenhistas).
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Sociologia, foi a primeira e cristalina lição que recebi sobre o papel crucial do
pluralismo teórico como requisito fundante para assegurar pelo menos a chance de
produzir análises convincentes sobre os processos sociais.
Em decorrência, refletindo sobre quase quatro décadas de exercício profissional
e acadêmico e recolhendo o aprendizado deste período, existiriam lições, ou
recomendações, que eu poderia sintetizar para os meus colegas da comunidade
sociológica? É claro que sim, e seriam inúmeras, embora, como é óbvio, a recepção de
um ou outro desses comentários irá variar entre os praticantes da comunidade.5
Reduzindo a lista mais longa a um conjunto de apenas dez principais “lições” retiradas
de meu aprendizado como cientista social, a seção seguinte deste rápido comentário foi
organizada, especialmente, como se fosse uma conversa imaginária que eu mantivesse
com jovens pesquisadores ora adentrando as Ciências Sociais – e, particularmente, a
Sociologia. Espero que pelo menos algumas dessas notas e observações se mostrem
úteis, quando cotejadas com a realidade!
1. Caminhando no território da Sociologia - quais são as lições?
Não são os “dez mandamentos”, mas os itens que apresento a seguir representam
visões gerais, ou compreensões articuladas às especificidades brasileiras que talvez
espelhem realidades institucionais amplamente disseminadas. Desta forma, se
verdadeiras as formulações abaixo (ainda que parcialmente), cada colega encontrará as
devidas variações e ajustes em seu próprio campo acadêmico e na rede de seus
relacionamentos profissionais. São as seguintes as proposições que ora submeto:
I. Por que ser um cientista social? 6
5 Um livro inspirador e de imenso valor analítico, que também solicitou a cientistas sociais de minha geração que refletissem sobre sua história pessoal e extraíssem lições para as novas gerações de pesquisadores, é a coletânea organizada por SICA e TURNER (2005).
6 Fui (e tenho sido) simpatizante desde os anos setenta dos movimentos feministas, colaborei com a
fundação de um movimento de mulheres rurais no Rio Grande do Sul (em 1986) e julgo que o extraordinário avanço nos direitos de igualdade de gênero, especialmente na segunda metade do século passado representa, provavelmente, a mais importante transformação social do período contemporâneo. Comento este fato como uma salvaguarda, apenas para indicar que não terei a menor preocupação neste texto de seguir a “norma política” de mudar o português, para não demonstrar machismo em minhas palavras, acrescentando sempre os dois gêneros. Nada mais ridículo do que expressões de uma orwelliana novilíngua, como “Bom dia a todos e a todas”, que ouvimos com exasperante frequência em nossos dias – mais uma demonstração, entre tantas, do deplorável rebaixamento cultural sob o qual vivemos. As opções brasileiras, nesses anos mais recentes, tem sido desmoralizar o pouco que avançamos na Educação (o que inclui o comando mais elevado da língua), em nome de uma visão tosca e ingênua de “democratização política”, que nada produz em termos de
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Como os agrupamentos humanos antigos eram homogêneos e rígidos
(lembrando aqui a noção sociológica de comunidade proposta por Tönnies), foram
necessários séculos para que se materializassem as condições, sobretudo políticas, que
permitiram um olhar mais livre para animar indagações sobre os comportamentos
sociais e a consequente submissão pública de ponderações analíticas, quem sabe
críticas, sobre o próprio meio social de seus formuladores. Os riscos pessoais eram
enormes e, por isto, somente em circunstâncias muito especiais de maior tolerância
social é que os primeiros pensadores sobre a sociedade se permitiram especular e, desta
forma, legar as bases pioneiras sobre a reflexão acerca dos próprios humanos. Por esta
razão, as disciplinas que posteriormente constituíram as Ciências Sociais identificam
um momento histórico que localiza com nitidez as raízes mais remotas de seu
nascimento. Este momento é o ocaso da escuridão religiosa da Idade Média. Ou seja, há
aproximadamente quinhentos anos um reduzido grupo de mentes brilhantes entendeu
que já seria possível refletir sobre a sociedade, tentando interpretá-la. Se examinados em
conjunto, Maquiavel, Descartes, Spinoza e os iluministas escoceses, entre alguns outros,
talvez tenham sido os semeadores mais eficazes do campo científico que depois
chamaríamos de Ciências Sociais.7 Ou, mais sinteticamente, para os interesses analíticos
desse campo: o mundo, de fato, “começou” entre os séculos XV e XVI, tantas são as
evidências históricas daquele período que permitiram fermentar as condições para novas
reflexões sobre a sociedade e os comportamentos sociais.
Mas se este talvez tenha sido o “ponto de partida” das Ciências Sociais, qual
seria a configuração de chegada, cinco séculos depois? Encontramos atualmente campos
disciplinares organizados, plenamente institucionalizados, com sólidos arcabouços
metodológicos e teóricos sustentando um pequeno exército de praticantes? Infelizmente,
sabemos que não tem sido assim. Sobretudo no caso da Sociologia, quem sabe a mais
fragmentada das disciplinas que atualmente formam as Ciências Sociais, uma ciência
que no período contemporâneo vem enfrentando, provavelmente, a mais dura crise de
civismo e, desta forma, apenas degrada o ideal democrático. Sobre esta meta política, que deveria nortear nossas elites, à esquerda e à direita, leia-se o fundamental artigo de ARAÚJO (2000).
7 Entre os autores que conseguiram contribuir decisivamente para romper a rígida ortodoxia religiosa que
então encapsulava a vida social, o maior risco esteve sobre os ombros de Spinoza, cuja figurativa e tortuosa obra ousou, pioneiramente, atribuir significado à ação humana, desvinculando-a de imperativos divinos e supranaturais. Escapou por pouco do fanatismo religioso, mas o relativo ambiente de tolerância então dominante na Holanda é que permitiu que o grande filósofo pudesse legar a interpretação desta “passagem” ao mundo moderno, contribuindo fundamentalmente para o gradual desencantamento do mundo.
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sua breve história, mesmo que os diagnósticos sobre o lugar desta disciplina em nossos
dias sejam variados. Para alguns, “(...) o presente da Sociologia é certamente uma
tristeza. Parece claro que ela se domesticou e perdeu seu lugar de convocatória em face
da sociedade e, em particular, das novas gerações” (LEIS, 2000, p.738). Mas outros são
mais otimistas e advertem que “(...) na atualidade, a pesquisa social constitui parte tão
integrante de nossa consciência que passamos a considerá-la natural. Todos nós
dependemos dessa pesquisa para identificar o que efetivamente consideramos senso
comum” (GIDDENS, 2001, p. 15).
Não discutindo as idiossincrasias de cada campo disciplinar e, menos ainda,
sequer esboçando os contornos que poderiam justificar o atual desarranjo teórico e
metodológico sob o qual vivemos no tocante às Ciências Sociais, emerge então a
pergunta: por que perseguir uma carreira como cientista social, vestindo a camisa da
Ciência Política ou da Antropologia, quem sabe da Demografia ou da Economia? Mais
especificamente, por que estabelecer como meta pessoal, ao chegar à universidade, ou
pensando no aperfeiçoamento via um curso de pós-graduação, tornar-se um profissional
da Sociologia? Minha resposta é direta, convicta e sem rodeios: porque este é o mais
importante, complexo e desafiador de todos os campos de inquirição científica que a
humanidade já desenvolveu, desde que “ciência” lato sensu começou a fazer parte
irremovível das atividades dos indivíduos.
Bravata? Não creio: ainda que nos cause perplexidade e um frio na espinha a
simples observação superficial de um artigo em alguma revista, digamos, de Física –
por ser absolutamente inacessível a qualquer compreensão – essa faceta não significa,
necessariamente, maior complexidade. A linguagem especializada que é hermética para
os não praticantes não sinaliza obrigatoriamente a complexidade. Em princípio,
significa apenas que o não praticante não passou pelos rituais de iniciação àquela
linguagem. Poderíamos inverter o argumento, se dúvidas persistirem: entregaríamos
àquele físico autor do hipotético artigo um livro arquetípico da melhor Sociologia, seja
Distinção: crítica social do julgamento (1979), de Pierre Bourdieu ou A representação
do eu na vida cotidiana (1956), de Ervin Goffman ou, ainda, A estrutura da ação social
(1937), de Tacott Parsons, entre muitos outros exemplos – e qual seria a sua reação
senão concluir sobre a evidente complexidade da Sociologia? O hermetismo igualmente
não significa maior importância social vis-à-vis as demais disciplinas e campos
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científicos. E deixo apenas o repto, que parece ser razoável8 de se apresentar, como
forma de justificativa para a defesa de meu argumento. Qual seja, os desafios que foram
surgindo para os demais campos científicos (as ciências naturais ou as aplicadas), ao
longo do tempo, foram enfrentados gradativamente e, em boa parte, as soluções foram
sendo desenvolvidas por seus cientistas, aperfeiçoando o conhecimento correspondente
e, ao mesmo tempo, oferecendo as tecnologias decorrentes que vem transformando o
modo de vivência das sociedades, especialmente nos últimos duzentos anos.
Em contraposição, o que dizer sobre a interpretação dos comportamentos sociais
ou a explicação sobre os arranjos societários? Neste caso, ao contrário, todos os
esforços até aqui realizados tem produzido resultados apenas satisfatórios (quando
muito) e avançamos timidamente para oferecer teorias, conceitos e arcabouços
explicativos sólidos e úteis para decifrar o significado da ação social. Muitos cientistas
das chamadas “ciências duras” afirmam, inclusive, que não é possível existir uma
“ciência da sociedade” que explique cientificamente a sua estrutura e o funcionamento
ou os comportamentos sociais. Mas, de fato, esta relativa fragilidade é nossa maior
arma para justificar a existência da Sociologia (e das Ciências Sociais), realçando a sua
crucial importância e alçando-a para posição de destaque. Em síntese: trabalhamos com
o mais importante dos desafios já apresentados à mente humana – como explicar “a
sociedade” e, ainda mais problemático, como analisar os múltiplos processos que são os
fundamentos da ação social? Como interpretar o significado dos gestos, falas e
movimentos da atividade humana que milhões de indivíduos concretizam sob aparente
regularidade e a cada momento de sua existência? É preciso concordar que sem boas
respostas a essas perguntas, a Sociologia tem avançado muito lentamente, fragilizando-
se frente aos ataques de seus inimigos. Mas, na metáfora banal, o copo pela metade
pode ser visto pelos dois lados e insisto que este é, pelo contrário, um trunfo em nossas
mãos. Entender a sociedade, em todos os seus aspectos, é a mais urgente de todas as
demandas que a história humana já apresentou e este desafio é o maior estímulo que
temos para continuar sendo cientistas sociais.
8 O que pode ser definido como “razoável” na interação humana e na vida social? Eis um bom exemplo da complexidade com a qual lidam os cientistas sociais. É uma pergunta urgente e necessária, para estabelecer com mais racionalidade as fronteiras ou os limites daquela convivência, mas é tema de enorme dificuldade analítica. Talvez o melhor encaminhamento à pergunta pode ser encontrado em John Rawls, mas no campo da Filosofia Política. Consulte-se, para tanto, o seu monumental Teoria da Justiça (1971).
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II. Pressuposto: é preciso ampliar os olhares disciplinares
O que determina a ação social? Como é sabido, na segunda metade do Século
XIX, a Sociologia emergiu a partir de dois nítidos troncos, um deles integrado por
aqueles que passaram a julgar que os comportamentos sociais derivam e são
determinados pelas “grandes estruturas” formadas na sociedade – os nomes principais
aqui são Marx e o Marxismo, mas também inclui Durkheim e Parsons (este mais tarde,
já no Século XX). Sob essa visão, as estruturas maiores da sociedade subsumem os
indivíduos. Outros, influenciados pelos debates alemães daquele período, preferiram
entender, pelo contrário, que os “indivíduos, ou a ação social, é que constroem a
sociedade (e as estruturas)”. Entre esses últimos, sem surpresa, Weber foi o maior
expoente, mas teve muitos seguidores ilustres. Os indivíduos respondem e atribuem
significado especialmente às causas externas, como “cultura” ou “estruturas sociais” ou,
preferencialmente, agem por suas próprias (e identificáveis) razões? Weber atribuiu
preponderância explicativa às razões dos indivíduos, inspirado no estudo aprofundado
que fez das religiões, o que resultou no seu clássico livro sobre a ética protestante e a
emergência do capitalismo. Bourdieu iria ainda mais longe, afirmando que todas as
ações sociais são fundamentalmente “interessadas”, mesmo aquelas movidas pela
solidariedade, propondo uma ciência das práticas sociais que assume como pressuposto
(não como uma hipótese) que todas as práticas e formas de interação humana buscam a
maximização de resultados materiais e simbólicos, ou seja, são motivadas pelos
interesses de seus agentes.
Este brevíssimo comentário acima é introduzido apenas para sugerir outra lição
sobre o percurso histórico da Sociologia, gerando requisitos adicionais para bem exercê-
la: é preciso conhecer com solidez não apenas as demais disciplinas das Ciências
Sociais, especialmente a Antropologia e a Ciência Política. Sobretudo, e acima das
demais, é preciso conhecer com maior profundidade a Economia e a lógica das
narrativas da História. Seria preciso insistir nesta sugestão? Sem a História, se torna
muito difícil, senão impossível, entender a “construção dos interesses” e, portanto, o
significado da ação social, pois essas são relações lentamente urdidas entre os
indivíduos no interior dos grupos sociais, as quais vão sendo cristalizadas de acordo
com diversas circunstâncias do tempo histórico de cada sociedade. É improvável que
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algum cientista social realmente influente tenha existido na trajetória desta disciplina, se
não comandou robusto conhecimento de História.9
E sobre a necessidade de conhecer (e muito bem) a Economia? Creio que neste
caso os argumentos são ainda mais óbvios, e nem precisariam ser aqui repetidos. Talvez
baste a afirmação, relativamente banal, enfatizada por autores de diferentes visões
sociológicas, sobre a irrefreável tendência à “monetarização da sociedade”. Este
processo maior de transformação das relações entre os indivíduos estava indicado, mais
ou menos explicitamente, como o decisivo elemento motivador dos esforços pioneiros
de teorização dos “pais fundadores”, em particular Marx e Weber. Mas este processo de
expansão econômica foi também o pano de fundo principal que produziu boa parte dos
argumentos da Sociologia Crítica. Ironicamente, Horkheimer, Adorno, Marcuse e outros
frankfurtianos se assustaram com a emergência das sociedades de massas e o
desenvolvimento decorrente de amplos fenômenos de alienação humana, nos anos
quarenta e cinquenta. Se vivos fossem, o que aqueles autores escreveriam em nossos
dias, quando observamos o aprofundamento espantoso daquela associação entre a
mercantilização da vida e a alienação? Especialmente a partir dos anos sessenta,
simbolizado talvez pelo pioneiro livro de Baudrillard A sociedade de consumo: mitos e
estruturas (1970), vem florescendo a literatura que analisa a hegemonia (e
autonomização) dos processos econômicos na estruturação da sociedade. Se se atenta
para o fato de os últimos trinta anos terem sido aqueles em que mais riqueza (material
ou imaterial) foi criada na história da humanidade, radicalmente transformando a
totalidade das relações e das práticas sociais e praticamente monetarizando todos os
contornos da vida humana, extrai-se um corolário inevitável: é quase impossível
atualmente praticar a Sociologia sem comandar um seguro conhecimento dos processos
econômicos.10
9 Como interpretar os “anos gloriosos” da expansão capitalista no pós-guerra sem conhecer a história do desenvolvimento das inovações, desde a “primeira revolução industrial”? Como explicar a noção de “democracia deliberativa” sem esmiuçar a crônica dos modelos e teorias anteriores, ao longo do tempo? Como analisar as crises econômicas recentes sem estudar os ciclos econômicos do passado e seus respectivos legados?
10 Ainda mais útil é conhecer estudos que combinem a História e a Economia. Os exemplos são inúmeros
e citaria apenas a magistral pesquisa de ARRIGHI (1994). Consoante com o afirmado, talvez seja cada vez mais verdadeiro o argumento de Piore, segundo o qual “O que me atraiu para a Economia foi a sua oferta de uma teoria coerente e sua orientação às políticas. Ela tenta se dirigir aos problemas da sociedade e o faz sob uma forma disciplinada e razoável. Nenhuma das demais ciências sociais parece oferecer nada parecido com a coerência e a relevância da Economia” (PIORE, 2002, p. 292).
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III. Por favor, não desista!
Em meados dos anos sessenta, já no alvorecer da ditadura militar, um corajoso e
lendário editor de livros do Rio de Janeiro, Ênio Silveira, então o proprietário da Editora
Civilização Brasileira, publicou, durante três anos, a “Revista Civilização Brasileira”,
periódico no qual os mais expressivos intelectuais de esquerda, a maioria vinculados ao
então ilegal Partido Comunista Brasileiro, publicavam seus textos. Foi a primeira vez
que tive contato com uma literatura do campo das Ciências Sociais – e me encantei
imediatamente, pois todos eram tão categóricos que não pareciam ter dúvidas sobre
nada. Sob um olhar retrospectivo, tantas certezas surpreendem, pois naqueles anos uma
parte importante da obra de Marx sequer era conhecida, pois apenas na década de 1970
é que foram publicados (em inglês ou outras línguas, mas não em português) alguns dos
textos mais fundamentais daquele autor, ou de outros autores marxistas mais
importantes, como Gramsci. Como poderia existir tão afirmativa convicção sobre a
teoria marxista como um todo?
Menos em função dos artigos da revista, que entendia apenas superficialmente,
na modéstia de meus conhecimentos de adolescente, meu encantamento nasceu,
sobretudo, em função da linguagem utilizada por aqueles autores. Nunca esqueci, por
exemplo, a palavra “parêmias”, que abria alguns dos poemas de Moacyr Félix então
publicados pela revista.11 Durante um bom tempo, sem ter um dicionário à mão, aquela
palavra povoou meus sonhos e parecia apontar para um significado muito especial e
significativo. Seria uma palavra subversiva? Indicaria algum método revolucionário?
Seria o codinome para algo que apenas militantes de esquerda sabiam? Sob a postura
libertária e rebelde típica da adolescência, aquela palavra me movia por supor um
significado oculto que demorei a decifrar.
“Parêmias” ocupa um lugar simbólico e especial em minha história, embora
jamais tenha tido a coragem de usar esta palavra em meus próprios textos. Cito este
episódio apenas para sugerir, em particular, dois aspectos relevantes para os cientistas
sociais. Primeiramente, que o comando do argumento, da exposição, do estilo e uma
linguagem acima da média são requisitos fundamentais para o exercício da Sociologia.
Nossa argamassa principal é a palavra. Sendo franco e direto: sem competência no
trato com a nossa língua, jamais um cientista social se afirmará. Secundariamente, há
11 Por exemplo, o número 10 da revista, publicado em 1966 – lá está o artigo de Félix intitulado “Parêmias de um poeta”.
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outro lado, contudo, que precisa ser apontado criticamente: as palavras não podem ou,
pelo menos, não deveriam ser intimidantes para a afirmação da Sociologia e seu jargão
especializado e específico. Infelizmente o são. Quantos se sentem seguros quando
algum luminar, em um evento científico, insiste em usar termos como “aporia”?12
Poderíamos prosseguir com dezenas de outros exemplos, mas o aprendizado
aqui é outro: na Sociologia (e nas Ciências Sociais) a linguagem, por um lado, é a nossa
“forma de operar”, sendo preciso comandá-la bem. Mas é também, por outro lado, uma
forma de poder, de intimidação e de autoproteção de seu proponente. Poder porque são
reconhecidos como “do primeiro time” aqueles que comandam um português não
apenas correto, mas especialmente se for de difícil compreensão. Intimida porque o
desconhecimento de certas palavras e expressões (mais os estrangeirismos) cria
imediatamente uma implícita hierarquia na interlocução realizada e “aquieta” um dos
lados, acuado com a profusão de termos pouco comuns e as inúmeras citações de
autores e livros. Mas é também forma de autoproteção para muitos colegas deste campo
de trabalho, porque comandar poder e intimidar os interlocutores são também escudos
que ocultam a própria ignorância e desconhecimento. Confrontado com tais recursos,
aqueles que ouvem dificilmente terão a coragem de levantar muitas perguntas e
problematizar o que está sendo afirmado.13 É preciso perceber e problematizar tais
práticas da convivência acadêmica.
Aproveito e abro um parêntesis. Você sabe o que significa “poder”, além da
célebre frase de Weber (“Poder é a probabilidade de um ator em uma relação social
estar em uma posição de impor a sua vontade, mesmo encontrando resistência e
independentemente da base sobre a qual reside aquela probabilidade”)? Entender o
conceito de poder não seria um dos requisitos primários para quem estuda a sociedade,
12 “Parêmias” são, segundo o Houaiss, “pequenas alegorias, curtos e breves provérbios”. “Aporia” tem diversas acepções, a principal delas oriunda da Filosofia, indicando uma dificuldade ou dúvida racional “decorrente de uma impossibilidade objetiva na obtenção de uma resposta ou conclusão para uma determinada indagação filosófica”. Na Sociologia, em exposições, quase sempre é artifício retórico para simular uma “hesitação a propósito daquilo que se pretende dizer”.
13 Você já fez um curso de Sociologia durante o qual aquele responsável pela disciplina afirma sobre a
“crucial importância de Homi Bhabha”? Seria um típico momento de uma sala de aula em Sociologia no Brasil – a afirmação pessoal do proponente (e sua intimidação junto aos alunos) pela insistência em um tópico, de fato, de relevância muito menor. Bhabha, com Edward Said e Gayatri Spivak, forma a “santa trindade” dos estudos chamados de pós-coloniais. Nada a reparar sobre esta designação, mas por que estudiosos do pós-colonialismo seriam fundamentais para a formação de cientistas sociais brasileiros, em um país onde o fenômeno do colonialismo assumiu feições bem distintas de outras regiões do mundo? A Sociologia brasileira observa com melancólica e inquietante frequência esses momentos de subserviência infantil ao “último grito em Paris”. Bhabha é autor de O local da cultura, publicado no Brasil em 1998.
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pois esta se sustenta, particularmente, em hierarquias nascidas das assimetrias sociais?
Pois bem, causa algum desespero perceber que o mais clássico (e melhor) livro que
discutiu o conceito de poder, lançado quase quarenta anos atrás, ainda não foi publicado
no Brasil (Power: A Radical View, Londres: Macmillan, 1974). Entre o lançamento
naquele longínquo ano e 2010, este livro já foi citado por aproximadamente 1,5 mil
artigos científicos. Stephen Lukes, o autor, já até mesmo lançou uma segunda edição
“revisitada”, na qual estabelece um diálogo com seus críticos da primeira edição
(LUKES, 2005), obra também à espera da versão brasileira. A irregularidade das
traduções e sua discutível seletividade é outro aspecto que prejudica sensivelmente o
desenvolvimento das Ciências Sociais no país.
Infelizmente, isto não é tudo. É relativamente fácil desistir de ser um cientista
social, ainda no início da carreira. E não apenas porque os empregos são poucos, nem
sempre motivadores e os salários podem ser baixos, não citando a confusa
operacionalidade desses profissionais meus colegas, incapazes de se organizarem
institucionalmente como uma “profissão” - como o fazem as demais categorias. Somos
solicitados não apenas a rebater o descrédito de muitos, que julgam serem campos
disciplinares que apenas estudam o “senso comum” (e, infelizmente, muitos colegas não
conseguem mesmo ir muito além deste nível de argumentação). Mas também
precisamos enfrentar a ignorância geral sobre o significado das “Ciências Sociais” (a
exceção sendo a Economia), pois mesmo colegas com formação universitária em outros
campos científicos têm apenas uma vaga noção sobre a própria Sociologia. E
saberíamos, nós mesmos, definir claramente o que é Sociologia, quando muitos ainda
confundem a Sociologia com sua militância partidária? Parece absurda a pergunta, mas
quantos de nós, ante essa pergunta, não hesitariam? Portanto, é preciso um esforço
determinado para aprofundar esta compreensão, evitando assim a persistência dos
desentendimentos de interlocutores do mundo da ciência sobre o nosso campo
científico.
É igualmente tentador abandonar as Ciências Sociais, algumas vezes, porque
seus praticantes, em proporção que surpreende, são excêntricos e não é raridade
encontrar colegas com facetas bizarras, ou pelo menos curiosas. Muitos, por exemplo,
preferem o otimismo pueril do pensamento mágico e se afastam da realidade empírica,
sempre especulando sobre o futuro, a “nova sociedade” e tolos jargões similares, sem
nenhuma preocupação com o mundo real dos humanos. Como é um campo científico
também marcado por um enorme dissenso teórico e disputas de diversas ordens, outros
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desenvolvem também posturas que parecem arrogantes, sempre insistindo em “verdades
definitivas e últimas sobre os processos sociais”. Não se iluda: quase sempre essas são
posturas defensivas, apenas porque seu expositor, de fato, desconhece outros enfoques
teóricos e, para não ser desmascarado em seu desconhecimento, prefere insistir na “sua
teoria” como a única e definitiva.
A Sociologia é uma disciplina que, no Brasil, é imatura e paroquial, assim como
espantosamente desinformada sobre o “estado da arte” que vigora além fronteiras.
Fomos (e ainda somos) excessivamente influenciados pela Sociologia francesa e até
optamos, a maioria, por aprender francês para buscar o “aprofundamento teórico”, um
autoengano desastroso para a formação dos cientistas sociais, pois vivemos em um
período histórico durante o qual o inglês é a lingua franca - inclusive para os próprios
franceses, diga-se de passagem.14 Confusos em meio a este quase caos prevalecente na
Sociologia em nossos dias, os jovens cientistas sociais, em número relativamente
significativo, preferem mudar de área ou buscar a especialização multidisciplinar, para
estar perto também de outros campos científicos que Kuhn chamaria de “normais”.
Mas, insisto: se tiver paciência, releia, por favor, o item inicial – e não desista de
ser um cientista social.
IV. Processos sociais são mutantes
Não se assuste se sentir inquietação e insegurança com o autor ou a teoria de sua
preferência, a qual tem sustentado seus trabalhos de pesquisa. Mudar de foco teórico e
metodológico, em uma disciplina como a Sociologia, não representa nenhum demérito
ou fragilização perante seus pares. Por um ângulo, pelo contrário, representa um trunfo
a seu favor: indica que você está ampliando seus conhecimentos sobre os tantos autores
e “arcabouços” que disputam as escolhas dos praticantes deste campo científico. É
quase impossível perscrutar toda a teoria sociológica, de Comte aos nossos dias, mas
conhecer um significativo número de autores e visões sociológicas – pelo menos
aquelas consideradas as mais influentes - é imprescindível e, assim, sentir-se mais
confortável com este ou aquele autor (ou combinações variadas de enfoques) não
representa procedimento nada tão inusual, mesmo se parte considerável de seus colegas
14 Não preciso me estender sobre o óbvio: aprenda francês, se quiser – mas depois de comandar o inglês! Sem esta última língua, suas chances nas Ciências Sociais serão mínimas, para não dizer inexistentes. Goste-se ou não, é a língua inglesa que conduz praticamente tudo o que se produz no campo científico em nossos dias. E assim será por muitos anos, até que o mandarim comece a surgir como a principal língua internacional.
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seguir outros modelos teóricos. Se entender bem a bibliografia que sustenta seu olhar
sociológico sobre os processos sociais, não se intimidará com os tantos filisteus que,
infelizmente, povoam o nosso campo de trabalho (e rebaixam a construção de uma
profissão, pois apenas a desmoralizam). São religiosos, nunca cientistas, quando
insistem acerca de um (falso) monismo teórico ou afirmam a existência de dogmas e
argumentos “irremovíveis”. Esses, de fato, inexistem na vida social ou, quando muito,
explicam insatisfatoriamente os processos que desejamos interpretar.15
Peço licença e introduzo outra reminiscência pessoal. Em 6 de setembro de 1986
fui o animador de um ato público realizado na chamada “esquina democrática” de Porto
Alegre, comandando um microfone sobre a carroceria de um pequeno caminhão. Foi no
cruzamento das duas ruas mais famosas do centro daquela cidade, a Rua da Praia e a
Avenida Borges de Medeiros. Tradicionalmente, no passado, era o local dos comícios
públicos dos partidos de esquerda ou outros eventos de natureza política. Na ocasião
dirigi um “ato público em defesa da reforma agrária”, pois era o coordenador do
“Comitê Gaúcho pela Reforma Agrária”, então apoiado por dezenas de organizações da
sociedade civil e também por alguns partidos políticos. Durante pouco menos de duas
horas, a partir do final da tarde, reunimos aproximadamente oitocentos militantes do
MST, mas cercados por soldados da polícia militar estadual. Inflamados discursos
foram então proferidos, todos denunciando a morosidade federal em realizar a reforma
agrária e reivindicando a sua imediata implantação. Estávamos então no alvorecer da
chamada “Nova República” e entendemos (os membros daquele Comitê) que aquela era
a melhor hora de realizar pressões políticas a favor a reforma agrária. Foi um dos
eventos mais perigosos, entre dezenas de outros, que animei ou coordenei, entre os anos
de 1982 e 1989, quando fui o coordenador estadual da Associação Brasileira de
Reforma Agrária (ABRA). Poderia ter gerado um conflito de razoáveis proporções, caso
algum tipo de provocação inaceitável para as forças repressoras fosse realizado. Durante
15 Uma rápida ilustração. Marx foi o autor que mais estudei em minha história de sociólogo. E confesso que ainda fico boquiaberto quando alguns marxistas insistem na “unicidade” do pensamento daquele grande teórico da sociedade, como forma de protegê-lo de seus erros e hesitações e, assim, impedir de vê-lo como um mortal. Sequer aceitam discutir que existiu um “jovem Marx” e o “Marx maduro”, na famosa e correta proposta de Althusser. Nunca leram uma biografia sequer de Marx, senão saberiam que o conhecimento que ele detinha sobre a Economia Política era praticamente inexistente antes de se mudar para a Inglaterra, em 1849, quando então, pela primeira vez, se dedicou a este campo que sustentou, de fato, a elaboração de suas principais teorizações e conclusões sobre o capitalismo industrial então nascente, assim como a sua teoria do valor-trabalho. Ao fazê-lo, foi deixando para trás o “Marx filósofo” e seu entranhado hegelianismo. Não aceitar tais passagens na vida de um personagem tão emblemático é recepcionar Marx sob um manto religioso e fantasioso.
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aqueles anos, estive profundamente envolvido em iniciativas que pudessem difundir a
informação sobre a reforma agrária e sua necessidade para o Brasil.
Vinte e cinco anos depois publiquei um artigo onde argumento sobre “o
passamento da reforma agrária brasileira”, indicando ser esta uma política pública que
praticamente se esgotou em nossa história, curiosamente em uma época sob a qual os
atores sociais ainda demandantes de sua implementação se encontrariam em uma
posição de força teoricamente mais expressiva. Segundo apontei naquele artigo,
“Esta decisiva reviravolta política no campo ocorreu quando a demanda por terra está diminuindo muito rapidamente em todas as regiões rurais, erodida pela urbanização. O resultado é uma vitória de Pirro: quando a reforma agrária se torna viável no Brasil, a sua implementação está no limiar da estagnação, porque os potenciais interessados estão abandonando o campo brasileiro” (NAVARRO, 2011, p. 463).
O que teria ocorrido? Mudei eu ou mudou a reforma agrária? De fato, nem um e
nem outro: mudaram as circunstâncias históricas e, desta forma, aquele processo social
foi profundamente alterado em sua “necessidade social”. Quase nada do que antes
entendíamos sobre a “urgência da reforma agrária” foi comprovado pela evolução da
sociedade e da economia do país. Aquela política, por exemplo, não se mostrou
imprescindível para garantir a oferta de alimentos e matérias primas de origem agrícola
e atualmente o Brasil está na iminência de se tornar o maior produtor mundial de
alimentos, superando até mesmo os Estados Unidos. Nem mesmo a insígnia “sem
reforma agrária não há democracia” mostrou ser factualmente correta, pois o processo
de democratização brasileira, após a Constituinte de 1988, evidenciou vigorosa
desenvoltura, especialmente na década de 1990, consolidando um regime político-
institucional que é dos mais democráticos do mundo.
Os processos sociais são mutantes e camaleônicos – porque são históricos. Por
isto, é ilógico imaginar que possam existir muitas leis sociológicas, o que é um atributo
das outras ciências mais antigas e consolidadas, mas uma brutal dificuldade em relação
à análise dos processos sociais. São raras as leis ou as relações de causalidade aceitas na
Sociologia, mas este fato não deriva, necessariamente, da fragilidade deste campo
científico e, sim, do objeto sobre o qual nos debruçamos e sua frequentemente mutável
natureza, sob o peso da História e das circunstâncias de cada sociedade. Seria mesmo
assim? Na dúvida, deixo apenas uma pergunta, dirigida especialmente aos colegas de
minha geração, aqueles que se formaram como cientistas sociais durante os anos
setenta: não tínhamos a inabalável certeza sobre uma das promessas mais cristalinas do
“projeto da modernidade”, que seria a crescente secularização das sociedades?
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Comparando aquele preceito, entre outras certezas que então nos guiavam, com o que
observamos em nossos dias, não é esta uma ilustração razoável, entre muitas outras que
poderiam ser referidas, sobre os nossos os limites ontológicos e, portanto, a aceitação de
serem as Ciências Sociais um campo de inquirição humana que lida com objetos de
natureza distinta das demais ciências?
V. Onde está a verdade?
Em 1580, um rico nobre francês, que propôs a si mesmo, como meta de vida,
refletir sobre a “natureza humana”, escreveu que
“Nosso modo habitual é seguir as inclinações de nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, conforme nos leva o vento das ocasiões: não pensamos no que queremos a não ser no instante em que o queremos (...) o que nos propusemos há pouco, ora logo mudamos, e ora, de novo, voltamos atrás: tudo não passa de oscilação e inconstância” (MONTAIGNE, 2000, p. 204).
Esse comentário de Montaigne sobre a volubilidade dos comportamentos
humanos é sugestivo e modelar para problematizar a “produção da verdade” sobre os
processos sociais, na sequência da discussão do item anterior. O que é a “verdade” em
relação aos processos sociais? Não existiria, quase sempre, uma temporalidade imanente
aos fatos da vida social, necessariamente problematizando conclusões, sejam elas
extraídas da pesquisa empírica ou, então, resultantes de exercícios exclusivamente
teóricos sobre o desenvolvimento social? A ciência não procura exatamente produzir
“verdades” sobre os fenômenos observados? A Sociologia, por sua vez, não deveria se
esforçar para obter o mesmo resultado, não obstante a natureza contingente da vida em
sociedade?
Na realidade, retirado um pequeno conjunto de entendimentos analíticos
extraídos das pesquisas das Ciências Sociais acerca dos comportamentos sociais (ou da
estruturação da sociedade), que podem ostentar maior temporalidade e explicar os
mistérios da ação humana ao longo de diversos períodos históricos, o fato é que as
conclusões a que chegamos são usualmente relativas, pois determinadas pelos contornos
societários de uma dada época. Se leis sociólogicas são raras, então a “verdade
sociológica” é historicamente relativa e determinada. Consequentemente, é bom manter
cautela e distanciamento de afirmações peremptórias sobre os processos sociais,
indicando convicções inabaláveis e certezas definitivas. Um exemplo ilustrativo diz
respeito à vasta literatura sobre a “crise do capitalismo”. Provavelmente concordaremos
ser este um sistema econômico instável por definição (e esta, sim, é uma proposição
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logicamente correta que até a Economia neoclássica aceita), e assim suas crises
periódicas são possibilidades tangíveis e, da mesma forma, uma “crise gigantesca”
(talvez terminal) pode ser igualmente parte das hipóteses de trabalho nos estudos sobre
o desenvolvimento do capitalismo. Mas se reunida a literatura já escrita sobre “a crise
final do capitalismo”, desde as contribuições mais influentes das primeiras décadas do
século passado aos nossos dias, ficaríamos surpresos com sua grandeza numérica, um
sinal simbólico de serem textos, em sua maioria, que mais representam desejos e, muito
menos, a expressão de análises científicas. Não citarei nomes de autores, para evitar
constrangimentos (para uma ilustração, consulte-se SARKAL, 2012).
Corro o risco da afirmação (por ser este um texto curto e sem chances de
oferecer todas as nuances deste tema), mas deixo a frase: não existem “verdades
permanentes e universais” sobre a vida social e os padrões de comportamentos dos
indivíduos. Existem apenas interpretações, algumas mais apropriadas para entender uma
dada ordem societária, mas somente sob as circunstâncias de certos períodos históricos.
As transformações nas formas de convivência entre os humanos, oriundas de tantos
fatores possíveis e multifacetados, produzem arranjos ilimitados na vida social e, desta
forma, incidem sobre as interpretações mais adequadas em dado período histórico. Mais
do que isto, estaremos deixando o campo da ciência e entrando no terreno das
fabulações místicas: essas, por definição, não podem hesitar sobre seus dogmas e
afirmações definitivas, sob o risco de perderem seus fiéis seguidores. A incerteza da
explicação, pelo contrário, é a marca mais visível e evidente no exercício da Sociologia
e tal fato jamais deveria causar sobressalto entre seus praticantes.
Introduzo outra ilustração. Alguém duvidaria da proeminência e relevância da
categoria analítica “classe social” em nossos estudos? E existiria realmente clareza
sobre o seu significado? Você saberia definir, com precisão, o que é classe social e,
mais ainda, comentar sobre a “estrutura de classes“ em nosso país? Aqui se encontra
mais uma (lamentável) omissão da história da Sociologia brasileira. Em 1978, Erik Olin
Wright, então um sociólogo recém-doutor, publicou o ensaio “Varieties of Marxist
Conception of Class Structure”, sob os auspícios do “Instituto de Pesquisas sobre a
Pobreza” da Universidade de Wisconsin (campus de Madison), nos Estados Unidos. A
partir daquele texto pioneiro, Wright gradualmente se tornou, de longe, o autor marxista
que mais esforços analíticos empreendeu em sua rica história como cientista social,
iniciativas destinadas a analisar o conceito de classe social, o qual Marx havia apenas
esboçado em seus escritos. Na história do Marxismo, não existe nenhum outro
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sociólogo que, sequer remotamente, se rivalize com Wright sobre o assunto. Seus
trabalhos são destacados e sua vasta bibliografia aprofundou com brilhantismo o debate
sobre este conceito tão central para a Sociologia (entre outros, ver WRIGHT, 1989,
1997). Foi igualmente um dos mais ativos participantes do chamado “Marxismo
analítico”, um ingente esforço teórico realizado entre a segunda metade dos anos oitenta
e boa parte da década seguinte por um grupo de marxistas, no sentido de tentar dar um
formato científico a esta tradição do pensamento social. Não obstante suas excepcionais
credenciais, Wright tem sido esparsamente estudado no Brasil, e a maior parte de seus
trabalhos sequer foi traduzida.16 Menos ainda, o que foi o seu principal objeto de
investigação – decifrar empiricamente a validade da noção de classe proposta por Marx
– não mereceu nenhuma atenção maior da comunidade de cientistas sociais brasileiros.
Convivi durante alguns anos com Erik Wright em um projeto sobre “democracia
participativa” e discutimos sobre seus trabalhos e os resultados obtidos. Não teve nunca
nenhuma preocupação, ainda que se assumisse como um convicto marxista, em
identificar os inúmeros problemas concretos desta noção desde o seu nascedouro e,
especialmente, no período contemporâneo, quando as sociedades modernas se
diferenciam, rápida e densamente, e categorias abarcadoras, como a noção original de
classe social, parecem não encontrar mais correspondência na realidade. Wright foi
mais um scholar que conheci, na esteira inicialmente apontada e simbolizada por
Bottomore: cientistas sociais na mais ampla acepção da palavra, inclusive em sua
irrestrita disposição para rever convicções e, desta forma, insistir na natureza relativa e
contingente do conhecimento sociológico e, portanto, também a temporalidade histórica
do que se afirma como sendo “a verdade” em Sociologia.
VI. Contra o empiricismo - mas pesquisa empírica é essencial
É saudável desconfiar (fortemente) da Sociologia que se encerra nos gabinetes e
não realiza pesquisa de campo, ou o faz apenas ocasionalmente. Exercícios de reflexão
abstrata são necessários e podem ser importantes, deve-se aceitar preliminarmente. Mas
produzem resultados consequentes e duráveis apenas como o produto de raras mentes
muito especiais e brilhantes e a história da Sociologia foi capaz de identificá-las
16 O sectarismo e primarismo de boa parte dos marxistas brasileiros impressionam – e empobrecem nossos debates. O “marxismo analítico” foi talvez a mais séria, quem sabe a única, tentativa de tentar incluir esta escola do pensamento no escoadouro propriamente científico, mas foi quase ignorado no Brasil. Ver, entre muitos outros trabalhos, WRIGHT (1995).
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facilmente. Mas não é o caso da maioria daqueles que, se vendo como sociólogos,
preferem se fechar em confortáveis salas de estudo e reflexão e não “sujam as mãos”
com a realidade social. O trabalho de campo e, portanto, a percepção clara da empiria
dos processos sociais e dos comportamentos dos indivíduos é um requisito primeiro e
fundador da boa pesquisa e a garantia de um conhecimento social que possa, pelo
menos, se aproximar da melhor interpretação.
Caminhar pela concretude da vida social, saber ouvir, se esforçar para conectar
fatos e evidências, relacionar macro e micro processos sociais, situá-los sob uma dada
totalidade, “ir e vir” no confronto entre a empiria e as categorias, incessantemente, esses
são alguns procedimentos indispensáveis para a produção de conhecimento em
Sociologia. E isto nada tem a ver com “dialética”: trata-se, apenas, de sensatez. Sem se
envolver diretamente em trabalhos de campo, regularmente, dificilmente algum colega
irá se afirmar como cientista social que esteja realmente contribuindo para este campo
científico. Se, por um lado, a Filosofia é “uma prática discursiva (ela procede por
discursos e raciocínios) que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por
fim” (COMTE-SPONVILLE, 2005, p. 8), a Sociologia, por analogia, é “a prática
científica (tem por norma os procedimentos e as operações desenvolvidas pela ciência)
que tem a vida social por objeto, a razão por meio e a interpretação do significado da
ação social por fim”. Não fazemos parte, portanto, de um campo de especulação que
procede tão somente “por discursos e raciocínios”, mas a Sociologia é parte integrante
do campo científico e, mesmo que nosso objeto de análise possua uma natureza distinta,
se comparado ao estabelecimento de objetos de outras ciências não sociais, ainda assim
é um objeto científico legítimo que associa diversos procedimentos para a sua
interpretação – um dos principais sendo exatamente a pesquisa empírica.
VII. Leia, leia e leia – sempre!
Esta é recomendação breve, por ser óbvia (mas, infelizmente pouco seguida). Se
a palavra é a arma principal para a produção do argumento e a exposição e defesa de
nossas interpretações, é preciso saber apresentá-las discursivamente pelo menos sob
narrativas satisfatórias. Para isto, é preciso ler e ler, continuamente. Não existem bons
cientistas sociais que não tenham passado a sua vida lendo e, caso você não goste de ler,
mude logo de profissão. A leitura permanente, em toda a existência, é necessária para a
produção da “sabedoria argumentativa”, mas é também crucial por outra razão: manter-
se atualizado no âmbito do melhor conhecimento existente. Em outros campos
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científicos (das ciências naturais, por exemplo), a atualização e aperfeiçoamento
analítico ocorrem pela produção constante de novos “procedimentos e técnicas” (ou
materiais), mas seus praticantes deixaram de discutir, por desnecessidade, os “grandes
conceitos e teorias”, pois em tais ciências consolidou-se um relativo consenso
paradigmático sobre os entendimentos conceituais básicos e formadores desses campos
científicos. Na Sociologia (e nas Ciências Sociais), ao contrário, as necessidades de
produção de conhecimentos são mais amplas e desafiadoras: prevalecendo o dissenso
teórico e a contínua mutação dos comportamentos sociais, precisamos percorrer,
repetidamente, todo o campo da história do pensamento social e, por isto, os clássicos
da disciplina ainda são tão atuais em muitas de suas contribuições. Conforme
Alexander, um “(...) clássico é o resultado do primitivo esforço da exploração humana
que goza de status privilegiado em face da exploração contemporânea no mesmo campo
(...) os modernos cultores da disciplina em questão acreditam poder aprender tanto com
estudo dessa obra antiga quanto com o estudo da obra de seus contemporâneos”
(ALEXANDER, 1999, p. 24).17 Ou, afirmado sob uma pergunta mais simples: enquanto
na Física um estudante pode passar todo o seu período universitário sem jamais ter lido
uma linha de Newton (ou Einstein), quem na Sociologia poderia prescindir, por
exemplo, de conhecer (e muito bem) toda a obra de Max Weber?
VIII. Ciência e militância: um desastre anunciado
Recuse resolutamente atuar profissionalmente como um cientista social se
estiver contaminado por suas preferências políticas e, em especial, aquelas de ordem
partidária. Ciência e militância são como o azeite e a água: não se misturam, por terem
pontos de partida profundamente distintos. Por isto o uso deliberado do termo
“contaminado” (e sem aspas), porque esta tentativa de associar a militância ao exercício
da Sociologia, para meu pasmo, é bastante frequente e aceita no Brasil, mas empobrece
irremediavelmente as nossas chances de produzir uma boa ciência social, realmente
relevante e iluminadora sobre a arquitetura da sociedade e seu funcionamento. Para
muitos, se aceita como correta uma associação que, de fato, é falaciosa: aquela que
17 Provavelmente, Alexander seja em nossos dias, entre todos, o mais importante sociólogo - tão brilhantes são seus trabalhos, demonstrativos de um conhecimento que parece ser inacreditável. É uma prova da imaturidade e adolescência da Sociologia brasileira que este seja outro autor quase ignorado. Como Erik Olin Wright, talvez a origem norte-americana crie “barreiras à entrada”, bloqueando a chance de dialogar e aprender com autores tão paradigmáticos. É preciso vencer, com urgência, este preconceito ideológico. Caso contrário, jamais deixaremos este estágio de primarismo acadêmico.
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torna a militância um “comprometimento” com “as maiorias” (ou seja, as classes
subordinadas, ou trabalhadoras) e, portanto, estaria legitimada como prática científica
da Sociologia. Este equívoco é que tem fertilizado de forma impressionante um sem-
número de iniciativas que são pelo menos problemáticas e fortemente controvertidas,
apequenando a formação dos novos cientistas sociais, em face de tantas fantasias não
científicas que pululam em nossos meios universitários.
Aqui não precisamos de muita argumentação e talvez possamos permanecer em
uma crítica singela. O exercício da militância, em nome da Sociologia, necessariamente
supõe que uma dada categoria sociológica seja realmente universal, ou para a sociedade
como um todo, ou até mesmo no interior de um subgrupo social, tais como
“trabalhadores”, “sem terra”, “pobres”, “excluídos”, entre outras palavras que justificam
a militância política e partidária de muitos colegas. Mas essas palavras seriam conceitos
sociológicos e, ainda mais, expressariam conteúdos sociais que sugerem uma
homogeneidade intrínseca, para se afirmarem como categorias? Não precisamos fazer
muita pesquisa empírica para concluirmos que não e, de fato, a realidade social mostra,
contrariamente, uma imensa diversidade social sob o guarda-chuva daquelas palavras.
Além disso, sempre é bom lembrar, a opção militante, necessariamente, espelha um
particularismo, nunca uma escolha universal. As sociedades, ao se expandirem
quantitativamente, também se diferenciam qualitativamente, sendo este um dos mais
banais aprendizados derivados das contribuições de todos os fundadores da Sociologia.
O conceito de diferenciação social não foi apenas analisado magistralmente por
Durkheim já nos primórdios da Sociologia (1893), mas foi igualmente central para a
análise de Lenin em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, originalmente
publicado em 1899. Consequentemente, os particularismos, cada vez mais, incidem
sobre conjuntos sociais que vão, relativamente, sendo reduzidos em sua expressão
relativa, vis-à-vis o restante da sociedade. Ou seja, fazer proselitismo político em nome
da Sociologia representa, primordialmente, manifestação de ignorância sociológica, pois
é o desconhecimento do que sejam, em especial, os próprios processos sociais – o que
imediatamente desqualifica aqueles que praticam esta combinação tão espúria em
nossos ambientes de pesquisa e ensino.
Em síntese, nada é mais equivocado do que a associação entre militância e
ciência e esta última não existirá jamais se animada pela primeira. Resista a desenvolver
para si mesmo esta superposição de papéis e escolhas – ela é falsa e, se aceita, jamais
lhe dará legitimidade como cientista social.
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IX. De omnibus dubitandum 18
Nenhum cientista social atingirá a plenitude de suas possibilidades analíticas e
capacidade profissional se não desenvolver um pensamento crítico sobre a sociedade e
os comportamentos sociais, inclusive se esforçando intensamente para assegurar um
distanciamento de suas preferências, valores e escolhas próprias sobre as diversas
facetas da vida social (conforme, em parte, o discutido no item anterior). É preciso
duvidar de tudo e manter um permanente ceticismo sobre as manifestações, por
exemplo, daqueles que integram as elites. E todos os subgrupos das elites – inclusive os
integrantes das elites situadas no campo da esquerda, pois é preciso evitar esta ilusão do
senso comum de julgar que entre a esquerda estão os “bons e os santos” e, à direita, os
“maus e inescrupulosos”. Desconfiar sempre, eis a cautela obrigatória para os cientistas
sociais que realmente pretendem interpretar os processos sociais e entender a sociedade,
mantendo-se sob segura proteção em face dos discursos do poder e das pomposas frases
de todos os operadores da política, cujo objetivo é sempre, e exclusivamente, manter o
poder – e, para tanto, precisam usar toda a sorte de manipulações e mistificações.19
Deve ser lembrado, como alerta José de Souza Martins, que a Sociologia tem uma
potencialidade analítica, que precisa ser exercitada como criatividade e qualidade
científica. Se assim não for, seremos também parte integrante daqueles grupos sociais
que são marionetes das estruturas de dominação. Segundo Martins,
“(...) A sociedade, especialmente a moderna, se reproduz enganando-se continuamente. Esse engano é essencial para que ela se mantenha coesa e funcional. A Sociologia só tem sentido como produção de conhecimento sobre o engano socialmente necessário (...) Nesse sentido, a Sociologia não é o conhecimento alternativo e substituto, mas o conhecimento revelador (...) o conhecimento que revela tudo que na sociedade tolhe a emancipação do homem em relação à trama de relacionamentos que o aprisiona (...) De algum modo, a Sociologia é a ciência da esperança, porque em vez de ser conhecimento para o controle social, o mando e a obediência, só tem sentido como conhecimento para desvendar, ensinar, libertar” (MARTINS, 2006, p. 155, grifo acrescido)
Cabe ainda um comentário adicional sobre “o pensamento crítico” que todos
precisamos, compulsoriamente, desenvolver enquanto cientistas sociais. A “visão
18 Este seria o mote favorito de Marx – “duvidar de tudo”. De fato, nos apontamentos escritos de Marx, a frase encontrada era ligeiramente diferente, embora com o mesmo significado – dubitatus dubitandum (algo como “duvidar da dúvida”). Ver, a respeito, MCLELLAN, 1976.
19 “(...) Só os tolos tomam de empréstimo aos que estão por cima a régua que estes usam para medir o
mundo (...) Fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande (...) a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira” ( NASSAR, 1975, passim).
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crítica” seria uma habilidade de poucos, mais atilados e comandando vasto
conhecimento de teoria sociológica? Nada mais errôneo: também a “leitura crítica” dos
fatos sociais implica em um método e a noção de “crítica” é, ela mesma, sujeita também
a um exercício (crítico) sobre as diferentes propostas que a história desta disciplina
ofereceu, no sentido de encaminhar metodologias críticas para examinar a vida social. A
título de excelente contribuição para a sistematização de “visões teóricas sobre a
crítica”, Gerard Delanty, um competente sociólogo inglês, organizou os diferentes
enfoques sobre o exercício do pensamento crítico na Sociologia, insistindo que “a
pluralização da Sociologia nas últimas três décadas, aproximadamente, acarretou uma
presença bem mais forte de um entendimento crítico, tanto na teoria como na prática da
Sociologia”. Para o autor, seriam cinco as vias do pensamento crítico disponíveis: a
crítica normativa-diagnóstica da Escola de Frankfurt, a Sociologia crítica de Bourdieu, a
crítica genealógica de Foucault, o chamado “realismo crítico” e, finalmente, um
conjunto de posições mais recentes centradas em torno da noção de “prática crítica”.
Parece complexo, mas Delanty indica, claramente, os contornos metodológicos (e os
correspondentes fundamentos teóricos) associados a cada uma dessas linhagens
(DELANTY, 2011). Portanto, “ser um sociólogo crítico” não pressupõe alguma
differentia specifica, ou seja, uma habilidade que apenas alguns comandariam, mas não
a maioria dos praticantes deste campo científico. Menos ainda supõe, como sugere uma
certa Sociologia militante, situar-se politicamente à esquerda, como se cientistas sociais
que não são marxistas ou socialistas não possam exercer sua capacidade crítica, quando
analisam os processos sociais. Ser crítico significa, sobretudo, conhecer os autores, as
escolas do pensamento sociológico e suas perspectivas metodológicas e, ato contínuo,
selecionar a rota de desenvolvimento do pensamento crítico que mais lhe pareça
apropriada em seus trabalhos.
X. São ciências prazerosas?
Talvez possa aqui comentar sobre a lição mais sucinta de todas. A Sociologia é,
certamente, a mais prazerosa de todas as ciências, se um percurso para a sua apropriação
e o seu exercício profissional forem perseguidos com sabedoria e com a mente aberta,
não se permitindo capturar pelos tantos profetas que se apresentam como sociólogos ou
pelos modismos de ocasião. Esta é uma árvore que, cuidada com desvelo, logo produz
seus saborosos frutos. A Sociologia, não menos do que isto, permite àquele que a
comanda com maestria a compreensão dos comportamentos sociais, mesmo que
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parcialmente, em muitos casos de investigação. Desta forma, a Sociologia ilumina o
que, para a vasta maioria dos humanos, é incompreensível e oculto. Não existe saber
mais doce e prazeroso do que entender “as coisas como elas são”. Como no poema antes
citado, o exercício da Sociologia não produzirá riquezas materiais no processo de seu
desenvolvimento e aperfeiçoamento ao longo dos anos. Mas o percurso é marcado por
intensa fruição, sem nenhuma dúvida impossível de ser obtida em qualquer outro campo
científico, pois a recompensa pode ser a apreensão em sua inteireza de um bem
simbólico valiosíssimo – a capacidade de interpretação ampla sobre a aventura humana.
Saber retirar-se da vulgar superficialidade dos fatos e suas manifestações aparentes e
sempre mistificadoras e, indo além, perceber e interpretar a sua essência – este é o
privilégio de poucos e somente os praticantes da Sociologia estão aptos a fazer parte
deste privilegiado grupo de “leitores do mundo social”.
2. Conclusões
“Humani a se nihil alienum putet”20 – esta frase, originalmente formulada por
um poeta romano, Públio Terêncio, em (aproximadamente) 150AC, foi outra das
máximas favoritas de Marx, embora por ele alterada para indicar a si mesmo e sua
capacidade de análise – segundo enfatizou, “nada que é humano é estranho para mim”.
Poderia estar demonstrando alguma soberba e excessiva autoconfiança, mas aquele pai
fundador da Sociologia não deveria ser criticado por escolher esta máxima, que parece
ser presunçosa. Na segunda metade do Século XIX, era uma característica discursiva
dos pensadores mais influentes mostrarem-se inteiramente seguros e categóricos,
parecendo quase todos um tanto verborrágicos e capazes de oferecer o que talvez
sugerisse discursos e manifestações demagógicas. É um fato histórico entender que, de
fato, a linguagem mais cautelosa e recatada dos cientistas em geral foi sendo enraizada
apenas durante o século seguinte.
Aquela máxima deveria, entretanto, ser a escolhida por todos os cientistas
sociais – e os sociólogos, em particular – como uma meta pessoal para o desempenho de
sua profissão. Havendo concordância com a citação anterior, isto é, que a Sociologia se
destina a emancipar os membros de uma dada sociedade, em função do conhecimento
produzido, não contribuindo para manter as estruturas de dominação, então faria sentido
adotar a frase inicial dessas conclusões como o lema inspirador da disciplina. E se for
20 “Que ele pense que nada que é humano lhe seja alheio”.
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preceito levado às suas últimas consequências, haverá sempre um preço pessoal para
manter esta postura de crítica permanente, pois os detentores de poder apenas
ocasionalmente são democráticos o suficiente para aceitarem leituras e análises críticas
que incidem sobre si mesmos. Mas a recompensa, por outro lado, será uma vida
profissional íntegra e comprometida com o “bem comum” e o desempenho de uma
atividade científica em sua plenitude, na mais profunda acepção da palavra e seu
significado em termos de seu trabalho. Espero que este seja o caminho escolhido.
3. Bibliografia citada
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DELANTY, Gerrard, “Varieties of critique in sociological theory and their methodological implications for social research”, in Irish Journal of Sociology, 19(1), p. 68-92, 2011
ENTREVISTA: “Marxism, Capital System, and Social Revolution: An Interview with István Mészáros”, in Science and Society, 63(3), p. 342-365, 1999
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