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A situação da Segurança no Atlântico Sul e na África
Lusófona e suas implicações para a Defesa Nacional
Palestras
Evento realizado em 27 de julho de 2015
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Palestrantes
Embaixador Celso Amorim Ministro das Relações Exteriores (2003-2010)
Ministro da Defesa (2011-2014) Pós-graduação em Relações Internacionais pela Academia Diplomática de Viena
Prof. Dra. Adriana Abdenur Doutorado em Sociologia pela Princeton University, Estados Unidos
Contra-Almirante Antonio Ruy de A. Silva Doutorado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Apresentação
O presente livreto tem como motivação disponibilizar para os acadêmicos interessados
no tema e para a sociedade em geral assuntos debatidos na Escola Superior de Guerra
durante o ano de 2015. Nossa instituição tenta, dessa forma, atender às recomendações
definidas na Estratégia Nacional de Defesa no que se refere à divulgação do debate do tema
defesa na sociedade. Como estrutura componente do Ministério da Defesa, a ESG busca
alinhar-se às demandas do Estado brasileiro, buscando cumprir as ações estratégicas de
defesa. Fiel ao princípio da integração civil-militar que persegue desde sua criação, nossa
Escola convidou para a atividade, além da figura proeminente do Ministro Celso Amorim,
uma pesquisadora, professora universitária com ampla produção científica e um
representante das Forças Armadas, aliando a perspectiva da vivência profissional.
Este evento fez parte de uma série de cinco “módulos temáticos” que tratam de
assuntos considerados relevantes para a Defesa. O livro em questão apresenta a degravação
de três palestras que abordaram o tema “A situação da Segurança no Atlântico Sul e na
África Lusófona e suas implicações para a Defesa Nacional”, realizadas na Escola Superior de
Guerra (Campus Rio de Janeiro) em 27 de julho de 2015.
Como debatedores, além dos “estagiários” do Curso de Altos Estudos de Política e
Estratégia da Escola Superior de Guerra, foram convidados alunos e professores de
instituições universitárias e pesquisadores envolvidos com a temática, de forma a ampliar a
qualidade dos questionamentos.
A expansão do entorno estratégico do Brasil objetiva maior projeção no cenário
internacional e tem feito do domínio sobre o grande potencial econômico relativo aos
recursos do mar uma meta sempre presente em suas políticas nacional e internacional. A
inflexão nos rumos do desenvolvimento do país na direção do Atlântico Sul expressa a
conjugação de vetores de largo espectro e longa duração. Essa conquista vem sendo
processada pela aplicação bem sucedida de estratégia que combina ações contínuas no
campo diplomático, esforço nacional de pesquisa na ampla área das ciências do mar e
investimentos que visam fortalecer a capacidade militar do país para fazer frente aos seus
desafios de Segurança e Defesa. Boa leitura.
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SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................................................... 4
Palestra do Embaixador Celso Amorim .................................................................................... 6
Palestra da Prof. Dra. Adriana Abdenur ................................................................................. 19
Palestra do Contra-Almirante Antonio Ruy de Almeida Silva ................................................ 28
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Palestra do Embaixador Celso Amorim Ministro das Relações Exteriores (2003-2010)
Ministro da Defesa (2011-2014) Pós-graduação em Relações Internacionais pela Academia Diplomática de Viena
A situação da Segurança no Atlântico Sul e na África
Lusófona e suas implicações para a Defesa Nacional
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Eu gostaria de elogiar a iniciativa deste seminário, que fornecerá subsídios para as novas
edições da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa. Destaco neste
contexto a importância da participação da academia, além de estudiosos do meio militar –
que também podem ser acadêmicos – e naturalmente dos Estagiários da Escola Superior de
Guerra. Quero também expressar a minha concordância – diria que quase 100% – com o
conceito tal como apresentado na introdução ao programa que me foi enviado. Ali estão
ideias que têm norteado tanto a política externa como a política de defesa nos últimos anos
e que formam a base daquilo que eu tenho chamado “A Grande Estratégia do Brasil”, tanto
em palestras nesta escola como em outras instituições civis e militares.
Há pouco tempo abordei esse tema em uma conferência na Escola de Guerra Naval e
imagino que o texto esteja acessível a todos. Noto com satisfação o reconhecimento, no
programa enviado, da ênfase emprestada ao entorno estratégico do Brasil: América do Sul e
Atlântico Sul, ao qual talvez pudéssemos acrescentar a Antártica, bem como o
relacionamento com outras nações em desenvolvimento, em especial com os integrantes
dos BRICS1.
Eu também poderia falar do IBAS2, que aparece mais tarde na apresentação, embora de
forma indireta. As notas introdutórias referem-se também à CPLP3, que é um elemento
fundamental da nossa Política Externa, com reflexos na Defesa, como demonstram os
exercícios regularmente realizados no âmbito do grupo. É mister esclarecer, entretanto, que
a nossa política africana se estende por horizontes que vão bem além dos integrantes da
CPLP na África, os PALOPS (Países Africanos de Língua Portuguesa). É notável também, na
apresentação, a menção à desconcentração do poder mundial, com a substituição – se
podemos dizer assim – do paradigma de Fukuyama: “O Fim da História” pelo de Fareed
Zakaria: “The Rise of the Rest”, na ordem pós Guerra Fria.
Ressalta nesse conceito preparado pelos organizadores a importância corretamente
atribuída à América do Sul, e em particular à UNASUL e ao Conselho Sul-Americano de
Defesa, inclusive com exemplos relativos à atuação de ambos, tanto no plano político como
na da incipiente cooperação industrial. Digno de nota, ao meu ver, é a afirmação de que a
criação da Escola Sul-Americana de Defesa (ESUDE) representa mais um passo para o
fortalecimento institucional da região. Igualmente relevante é a observação de que na
América do Sul “a cooperação é a melhor dissuasão”. Finalmente, esse capítulo da
apresentação estabelece, com a ênfase devida, o objetivo da ZOPACAS e os esforços para
sua concretização desde sua criação em 1986 – por uma resolução das Nações Unidas – até
os dias de hoje, bem como o destaque dado a esse mecanismo pelas Política e Estratégia
Nacionais de Defesa. Não faço esse resumo para reprisar as ideias tão bem expostas no
documento de apresentação. É que, em grande medida, ele me permite tratar das questões
1 Grupo BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
2 Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul.
3 Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
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que nos ocupam hoje sem maiores introduções. De um ponto de vista pessoal, não posso
deixar de observar com agrado que o conceito (ou conceitos) do seminário coincide com
ideias que desenvolvi nos anos em que estive à frente da pasta da Defesa depois dos meus
longos anos como chanceler. Naturalmente vários desses pontos poderiam ser
desenvolvidos – e seria tentador fazê-lo – explicitando, por exemplo, as mudanças ocorridas
no último quarto de século, como passamos de uma bipolaridade instável e cheia de riscos a
uma unipolaridade, por assim dizer, “benigna” e como transitamos desta a um esboço ainda
impreciso de multipolaridade, e qual o lugar que o Brasil ocupa nesse contexto.
Inversamente, não seria de todo desinteressante examinar as flutuações ocorridas com
relação à normatividade internacional em matéria de paz e segurança desde a virtual
paralisia do Conselho de Segurança da ONU, nos anos de Guerra Fria, até as dificuldades de
ação concertada no período mais recente, passando pelo chamado “multilateralismo
assertivo” dos anos 90 e pelo período de emprego abusivo da força – não sei se terminado
ou não – frequentemente por meio de ações unilaterais. Nos dois ou três últimos anos,
parece que estamos em uma nova Guerra Fria despida, talvez, de seus aspectos mais
aterradores e naturalmente, do aspecto ideológico. Afastamo-nos do assentimento quase
submisso aos desígnios da superpotência – ou hiperpotência, no dizer do então Ministro do
Exterior francês Hubert Védrine, e caminhamos para um clima de confronto quase
permanente no seio do P54. Nesse contexto, a aprovação unânime do acordo sobre o
Programa Nuclear Iraniano pelo Conselho de Segurança, após uma árdua e bem sucedida
negociação (no qual o Brasil desempenhou seu papel, talvez uma nota de pé de página na
história) é uma rara e positiva exceção que deve ser saudada. De alguma forma, esses
fenômenos que marcam o que alguns autores chamariam de “Macroestrutura
Internacional”, não deixam de ter impacto sobre o objeto mais direto desse seminário: o
entorno geográfico do Brasil e sua Defesa. Tampouco é possível analisar as potenciais
ameaças sobre esse entorno sem abordar a questão, tão cara aos acadêmicos, tanto da área
de Ciência Política, quanto analistas militares, do papel dos principais atores no cenário
internacional. Nesse aspecto, é de grande importância, quando se analisa a natureza do
conflito no mundo contemporâneo e se observa a tendência vigente, até há pouco pelo
menos, de minimizar o papel central dos Estados. Voltarei a esse tema quando for tratar das
situações específicas do Atlântico Sul, mas não posso me furtar à observação de que é até
curioso que muitos comentaristas a propósito da crise da Ucrânia falem do ressurgimento,
assim dizem, ou renascimento da Geopolítica, como se em algum momento ela tivesse
deixado de existir.
A nota introdutória do nosso seminário tem outro mérito: ela dispensa ao conferencista
a tarefa de organizar sua exposição. Ao formular uma série de perguntas ou
questionamentos, todos relevantes, sobre as possibilidades e limites das Políticas Externa e
de Defesa ela nos dá de certa maneira um roteiro. Pretendo, com algumas pequenas
adaptações e reagrupamentos, seguir o script implícito nessas indagações. De forma
4 P5 - Cinco países permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e com direito a veto: China,
Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia.
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ligeiramente reagrupada, as perguntas que vou tentar responder, de modo necessariamente
sumário, referem-se aos seguintes pontos: o primeiro é o espaço para a ação política para os
chamados “emergentes”, na Nova Ordem; o segundo é a cooperação na América do Sul, no
Atlântico Sul e nos BRICS (há certa assimetria aí, mas trataremos disso); a seguir, a
importância das operações de paz para a inserção do Brasil no ordenamento internacional; a
reforma das instituições internacionais e suas implicações para o Brasil (inclusive para a
Política de Defesa, evidentemente); a integração e identidade sul-americana e benefícios
que nos trazem (sobretudo a integração); os desafios da defesa no Atlântico Sul; e, eu
acrescentaria como um sétimo ponto, a atuação do Brasil como provedor de paz, não
apenas como país pacífico, aspecto que é de especial conhecimento da professora Adriana
Abdenur, que poderá abordar criticamente essas minhas observações. Falarei das
complexidades do conceito, mas tomarei como exemplo específico o caso da Guiné-Bissau.
Bem, tratando em primeiro lugar do “espaço para potências emergentes”:
evidentemente nós estamos vivendo em um mundo ainda em transição. Saímos de uma
bipolaridade mais ou menos rígida que nunca foi absoluta e entramos em um período
unipolar praticamente logo depois da queda do Muro de Berlim. Naquele momento, a
percepção geral é de que havia de fato uma única superpotência, paradigma aceito inclusive
pelos membros permanentes do Conselho de Segurança (eu tive a oportunidade de servir no
Conselho de Segurança nessa época). Passamos, portanto, da bipolaridade para um mundo
unipolar com um grau de assentimento razoável pelos demais países. Entretanto essa
“unipolaridade benigna” não durou muito. Já nos meados da década de 90, sobretudo em
função da questão do Iraque com as percepções distintas dos demais países sobre a
questão, começa a se formar uma oposição à visão hegemônica dos Estados Unidos dentro
da política internacional. Essa oposição vem naturalmente e principalmente da China, da
Rússia e de alguns países em desenvolvimento, mas também, curiosamente, da França,
aliada dos Estados Unidos na OTAN. Exemplifico isso, citando a questão do Iraque. Quando
alguns anos mais tarde ocorreu o ataque militar frontal àquele país, houve uma oposição
muito forte por parte da França do Presidente Chirac. Nessa época (eu estava servindo no
Conselho de Segurança), essa oposição estava esboçada, e era, sem dúvida alguma, mais do
que a posição pessoal do Presidente Chirac, pois o governo socialista contava com apoio do
sistema semiparlamentar ou semipresidencial. Sem dúvida, era uma posição de Estado
defendida pela França: uma posição de crítica aos Estados Unidos. A esse posicionamento
francês se juntaria mais tarde, no campo ocidental, o da Alemanha (fiel aliada dos Estados
Unidos). Recordo-me que, na administração do Chanceler Schröder, houve uma oposição
muito nítida à invasão do Iraque.
Assim, depois da unipolaridade explicitada (digamos assim uma aceitação tácita da
hegemonia) percebe-se o esboço de um mundo multipolar em que alguns países europeus
também começam a se manifestar. Rússia e China passam a apresentar suas posições e
também países como Brasil e Índia ameaçam mostrar maior assertividade internacional.
Dentro desse contexto, e aliado a outros fatores, começam a se abrir possibilidades de ação
para países como o nosso, países em desenvolvimento, ocuparem seu espaço. Gostaria de
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esclarecer minha percepção sobre o conceito de “espaço”. Não considero que existam
espaços vazios na cena internacional: o espaço de cada país é sempre uma questão de
oportunidades e elas têm de ser buscadas. O “espaço” deve ser preenchido de alguma
maneira antes dele existir. Quero dizer com isso que é a ação de preenchimento que cria o
próprio “espaço” e eu acho que essa dinâmica foi o que norteou em grande parte a política
externa brasileira no período.
Então, algumas características deste mundo contemporâneo vêm de antes e outras são
novas. Entretanto, uma das características do mundo atual é que, do ponto de vista militar,
continua a existir se não uma unipolaridade absoluta, mas uma grande assimetria de poder
já que um grande país (Estados Unidos da América) gasta mais do que o somatório de todos
os demais países do mundo em Defesa. Então, evidentemente, não se pode falar em
“multipolaridade absoluta”. Em termos econômicos, os Estados Unidos e a China ficam
nitidamente acima dos demais. A China ainda sem atingir o mesmo nível de
desenvolvimento tecnológico dos Estados Unidos mas, devido à “massa” do país e ao ritmo
das taxas de desenvolvimento econômico já ocupa um patamar muito acima dos demais
BRICS e dos europeus, buscando uma comparação com outros pólos de poder. Mas, devido a
uma série de fatores, atualmente há certa inibição ao uso do poder militar. É bom lembrar
que a restrição ao uso da arma nuclear já existia desde a época da bipolaridade em face da
possibilidade do que era chamado pela sigla em inglês de MAD (mutually assured destruction
– destruição mutuamente assegurada). Nos dias de hoje, essa inibição se estendeu um
pouco também à guerra convencional, pelo menos uma guerra convencional que exige
tropas no terreno. A aversão ao risco tornou-se muito maior. A mídia internacional, em
especial a televisão, tornou-se fator de impacto fundamental na opinião pública. Pode-se
dizer que a televisão teve um papel crucial na Guerra do Vietnã, ao acelerar o seu fim. Hoje
em dia, a internet em especial as redes sociais, são os instrumentos que impactam
fortemente na formação da opinião pública. A visão dos corpos chegando embalados em
sacos de plástico repugna muito e isso é muito importante quando se pensa no tipo de
dissuasão que um país como o Brasil pode desenvolver.
Ao identificar a diferença nos orçamentos de defesa alguns perguntam: “mas o que
adianta o Brasil se armar?” O Brasil não vai poder enfrentar os Estados Unidos (ou a China)
em uma guerra. Isso é verdade. Entretanto, se o país tem capacidade de causar um dano
suficiente que incomode bastante um eventual agressor, levando em conta inclusive essa
aversão ao risco potencializada pelos meios de comunicação, vale a pena o investimento em
defesa. É importante considerar também que a tecnologia é capaz de criar equipamentos
que minimizam o risco. Pode-se citar o exemplo do ataque cibernético usando o Stuxnet5
contra o Programa Nuclear Iraniano, ou o uso intenso dos drones (no Brasil chamamos de
VANT, “Veículos Aéreos Não Tripulados”) nos conflitos do Oriente Médio tanto na busca de
dados de inteligência como arma de ataque. Assim, pela tecnologia, as diferenças de poder
5 Stuxnet é um worm de computador projetado especificamente para atacar o sistema operacional SCADA
desenvolvido pela Siemens e usado para controlar as centrífugas de enriquecimento de urânio iranianas.
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militar podem ser ampliadas ou reduzidas drasticamente. Por exemplo, nos quase quatro
anos que passei na Defesa conversamos muito sobre “Veículos Aéreos Não Tripulados”, mas
conversamos pouco (ou nada, que eu me lembre) sobre a defesa com relação a eventuais
ataques por VANT. Desenvolver tecnologia nesse campo poderia ter grande potencial
dissuasório. Voltando à questão da nossa região, a América do Sul é uma região de paz,
sem conflitos interestatais relevantes há quase um século. O relacionamento com nossos
vizinhos tem se pautado pela cooperação. Repito a frase que tenho dito: na nossa região “a
cooperação é a melhor dissuasão”. Mas nós não sabemos o futuro. Outras potências podem,
em algum momento, se valer de alguma fragilidade ou de alguma vulnerabilidade e também
porque haverá (e seguramente já deve haver) cada vez mais VANTs com capacidade
transatlântica. Assim, temos que desenvolver capacidade de defesa para este tipo de
ameaça. Além da defesa aérea tradicional devemos criar capacidade de inibir ameaças
aéreas modernas, pois com essas novas armas há possibilidade de uma guerra quase sem
risco, com baixíssimo risco em termos humanos, mas com efeitos de destruição graves.
Também gostaria de fazer referência ao trabalho desenvolvido pelo Ministério da Defesa
quando da criação do Centro de Defesa Cibernética do Exército em coordenação com as
outras Forças. Em minha opinião, considero este um vetor que merece grande prioridade. A
Cibernética é considerada uma das áreas estratégicas pela Estratégia Nacional de Defesa e
julgo que é preciso investir pesadamente nesse setor, sobretudo investimento humano,
investir na aquisição do conhecimento e, tanto quanto possível, em cooperação com os
nossos vizinhos sul-americanos.
Assim, eu creio que o “espaço” para as potências emergentes realmente existe e deve
ser bem aproveitado e é o que o Brasil tem buscado fazer no plano diplomático. Iniciativas
como o IBAS, o BRICS, sobretudo a UNASUL devem ser ampliadas para a área de Defesa e
não apenas na área diplomática. Acredito que esses “espaços” ocupados no poder global
demoram a ser conquistados, mas podem ser perdidos muito rapidamente se o país não
mantiver suas ações políticas e estratégicas. Acho que isso é verdade em operações
militares, mas é verdade também na política e na diplomacia. Assim, quando o Brasil é
convidado a participar de uma conferência de paz sobre a Síria, em Genebra, isso não é fruto
de seis meses de trabalho, mas sim resultado de anos e anos e anos. É fruto do crescimento
do país, mas, mais especificamente, é fruto de muitos anos de trabalho diplomático. Então,
se a nação não comparece em nível adequado a uma reunião importante, é muito possível
que na próxima ela não seja convidada. Como consequência, serão necessários talvez mais
alguns anos para reconstruir o “espaço” perdido.
O segundo ponto que gostaria de tratar refere-se à cooperação na América do Sul, no
âmbito da Bacia do Atlântico Sul e nos BRICS. Em primeiro lugar, chamo a atenção sobre a
noção de América do Sul. Essa região não era considerada, não era a “visão natural”, a
exceção, talvez, nos livros de geografia mais antigos e no futebol. O conceito de América do
Sul era muito pouco usado. Usava-se, nos textos de estratégia, o termo “Américas”, na
dimensão hemisférica. Nos textos políticos ou que pudessem conter alguma crítica à visão
tradicional, a expressão preferida era “América Latina” que, na realidade, é um conceito que
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está na nossa Constituição e temos de respeitá-lo. Temos de interpretá-lo de acordo com as
realidades atuais. A América Latina deve, necessariamente, conter o Caribe. A ideia de que o
que nos une é só uma semelhança de língua não é uma ideia correta. Deve ser considerada
também nossa situação geográfica, nosso nível de desenvolvimento. Logo, a melhor
definição seria “América Latina e Caribe”. Mas quando é lançado o foco em uma necessidade
estratégica, deve-se partir daquilo que cria aproximações imediatas, evidenciando-se então
a noção de América do Sul. Esta foi a razão dos últimos governos terem considerado
prioritários os esforços de integração da América do Sul, seja através do MERCOSUL, seja por
meio de um esforço que se chamou inicialmente CASA (Comunidade Sul-Americana de
Nações) e depois evoluiu para a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) e que
repercutiu no campo da Defesa com a criação do CDS (Conselho de Defesa Sul-Americano).
Não vou abordar todos os aspectos do Conselho de Defesa Sul-Americano, mas eu queria
destacar três aspectos. O primeiro é a criação do clima de confiança. O Conselho de Defesa
Sul-Americano permitiu que os militares da região tivessem muito mais contato uns com os
outros e isso naturalmente cria um bom ambiente. Não considero que isso começou com o
CDS, mas certamente ele facilitou e estimulou o desenvolvimento de um clima de confiança
que tem repercussões políticas.
Graças, em parte a esse clima de confiança, algumas crises ou “crises embrionárias” na
região puderam ser evitadas ou abortadas. Eu mesmo, como Ministro das Relações
Exteriores, participei de reuniões conjuntas com os Ministros da Defesa sobre aquela famosa
questão das bases norte-americanas na Colômbia. Eu acho que a existência do Conselho de
Defesa ajudou muito a conduzir a situação ao ponto aonde chegou. Além disso, temos
continuado a trabalhar em muitas outras áreas que dizem respeito à confiança recíproca
como, por exemplo, a Base Industrial de Defesa – BID. Podíamos pensar também na BIDSUL:
como construir uma Base Industrial de Defesa da América do Sul? Entendo que não é muito
fácil, mas um país como o Brasil, por sua versatilidade e dinamismo industrial, deve dar o
exemplo, inclusive com ações. Por exemplo, quando eu era Ministro tínhamos que comprar
algumas lanchas blindadas fluviais. Podíamos ter comprado de um país europeu com
tecnologia avançada (e havia várias ofertas interessantes), mas decidimos comprar da
Colômbia, que tem enorme experiência em tratar, em lidar com ameaças fluviais e tem
lanchas blindadas de primeira categoria. Aparentemente a opção foi correta, pois agora o
Exército e a Marinha querem comprar mais da Colômbia. Por outro lado, alguns
equipamentos militares brasileiros tem tido boa aceitação no mercado sul-americano. O
Super Tucano é um exemplo. Entretanto, para criar um ambiente de cooperação, não se
pode pensar só em vender. Há que se considerar a aquisição de produtos de outros países
sul-americanos.
O desenvolvimento conjunto de novos produtos de defesa parece ser uma boa saída.
Temos a iniciativa do “VANT Regional” (uma ideia brasileira), que é uma boa ideia. Mas, da
mesma forma, deve-se buscar apoiar os projetos de outros países, não querer ter o
monopólio das boas ideias. Um exemplo nesse sentido é o “Treinador Básico” (uma sugestão
da Argentina) que está na pauta do Conselho de Defesa Sul-Americano. Também gostaria de
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mencionar a importância da ESUDE. Por sinal, a ESG já desenvolve curso de defesa para os
países da América do SUL, o CADSUL, que pode ser considerado um embrião da Escola.
Entretanto, acho que o principal objetivo da Escola Sul-Americana de Defesa deveria ser
pensar uma doutrina que se aplique à América do Sul em matéria de Defesa. No mundo
atual, pós Guerra Fria, pensar em segurança hemisférica, do ponto de vista estratégico, não
faz muito sentido para nós. Deveríamos identificar nossas demandas sul-americanas em
defesa e nos prepararmos para elas. Claro que isso não quer dizer que nós não possamos ter
uma boa cooperação com os Estados Unidos, que eu acho que o Brasil tem. Acredito
inclusive que temos muito que aprender com os Estados Unidos, inclusive de organização
militar. Durante minha gestão, por exemplo, eu incentivava o MD a buscar cooperação em
operações do tipo a que foi desenvolvida pelos EUA por ocasião da crise do ebola. Naquela
oportunidade, chamou atenção a rapidez com que os Estados Unidos desdobraram o apoio
militar para o combate in loco aos efeitos da enfermidade e o apoio à população. Sugeri
também que o Brasil deveria tentar pensar fazer algo preventivo na Guiné-Bissau, pois a
epidemia ainda não os atingiu, mas está próxima, na vizinha Guiné. Seria uma iniciativa
internacional relevante de ajuda humanitária.
Considero também que as políticas de gênero nos Estados Unidos estão mais avançadas
do que no Brasil. Temos que aprender com eles. Em vários outros pontos também, como a
saúde, a troca de experiências seria positiva para as Forças Armadas brasileiras. Entretanto,
vejo isso como um mecanismo de cooperação, não como um “sistema de defesa
hemisférica”. Para mim, o “conceito de sistema de defesa hemisférica” está totalmente
superado após o término da Guerra Fria. Penso que esse posicionamento deve ser difundido
amplamente e em nossos desenhos da Política e da Estratégia tal fato deve ser abordado.
Em meu entendimento, a Escola Sul-Americana de Defesa visa justamente isso: poder
debater as questões sul-americanas, sem importar ipsis litteris os conceitos externos.
Internamente não será fácil de conseguir consenso. Haverá diferenças de percepção. Para
enfrentar essa questão, temos que respeitar a pluralidade. Há governos com mais ênfase no
social, outros assumidamente socialistas, outros mais liberais, mas nós temos algumas coisas
em comum às quais deve ser dada prioridade. Gostaria também de anotar uma certa
insuficiência de ação por parte do Brasil, e faço até um pouco de autocrítica porque eu
mesmo não consegui fazer as coisas da maneira que eu gostaria de ter feito. Por exemplo, o
Chile e a Argentina deram uma grande demonstração de unidade sul-americana criando a
Brigada Cruz del Sur. Convidaram o Brasil, eu não sei o que aconteceu nos últimos sete
meses depois que me afastei do Ministério, mas é muito difícil fazer com que o Brasil
participe de uma maneira efetiva. Entendo que existem dificuldades orçamentárias, existe
uma preocupação de se criar dependência para agir em situações em que não seja possível
mobilizar a brigada, mas eu acho que são coisas distintas. Quando o Brasil tiver interesse,
participamos. Do contrário, não. Entretanto, alguns retrucam: “mas lá não teremos o
comando”. Bem, se nós participarmos com um pelotão, não vamos poder ter o comando. No
dia em que tivermos uma participação maior, iremos pleitear. Não me parece justo o Brasil
ter o comando para sempre. É natural o rodízio no comando nas missões internacionais.
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Então, eu sustento o conceito de que, para nossa estratégia regional “a cooperação é a
melhor dissuasão”. Dentro do mesmo espírito sul-americano, no Atlântico Sul existe a
ZOPACAS – Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, criada em 1986, no âmbito da ONU.
Surgiu como um posicionamento político, mais tarde houve algum esforço para avançar em
questões de meio ambiente marinho e outras, entretanto seu alcance tem sido bastante
limitado. Mais recentemente, em 2013, houve uma importante reunião em Montevidéu,
com participação dos Ministros da Defesa, onde tive oportunidade de comparecer. Foram
discutidos projetos concretos. Tivemos ainda um primeiro seminário sobre vigilância
marítima em Salvador. Na oportunidade, o Brasil teve liderança pela maior disponibilidade
de recursos navais.
O Brasil tem buscado também participar de exercícios e manobras com embarcações
brasileiras na África, no Golfo da Guiné, especialmente com os novos Navios de Patrulha
Oceânica. Quando foram adquiridos, na Inglaterra, ao invés de fazer aquela viagem
tradicional, foram para portos africanos e lá foram realizados exercícios conjuntos com os
países da região. Entendo essa atividade como muito importante e cumprimento a Marinha
por ter aceito esse desafio. Também participamos de uma discussão inicial sobre a
segurança do Golfo da Guiné, em uma reunião internacional ocorrida em Duala (Camarões).
Tivemos ainda uma participação em um exercício sobre o Golfo da Guiné. Eu também
percebo algum movimento da parte do Exército Brasileiro, no caso de Angola.
O Brasil desenvolve, por intermédio da FAB, parceria com a África do Sul, para o
desenvolvimento do foguete ar-ar, o A-Darter, que é de altíssima tecnologia. A África do Sul
dispõe de conhecimentos tecnológicos avançados nessa área e o projeto envolve
transferência de tecnologia. Há expectativa de que a iniciativa possa se expandir para outras
áreas. Considero a África do Sul como um bom parceiro na cooperação nesse campo. Como
outros países africanos compraram Super Tucanos, tal fato também implica em maior
cooperação que vai além daquela que apenas a própria empresa (Embraer) pode dar.
Ainda com relação ao Atlântico Sul, merece destaque o artigo chamado “The Blue
Amazon” publicado pela revista Foreign Affairs. No meu entendimento, é a maior
homenagem que se pode fazer ao conceito que a Marinha criou para tratar das nossas águas
jurisdicionais. Outro aspecto que vale a pena mencionar com relação ao Atlântico Sul está
relacionada à pergunta apresentada pelos organizadores: “como contrapor as nossas ações
ou os nossos objetivos no Atlântico Sul à OTAN?” Não entendo “contrapor” nesse caso como
a estratégia mais adequada, pois, em alguns casos, inevitavelmente, o país vai ter que
cooperar, se não com a OTAN como organização, pelo menos com países da OTAN (o
exercício naval no Golfo da Guiné que citei anteriormente contava com a participação de
vários países da OTAN). Eu não vejo problema nisso. Julgo que, ao cooperar, estamos
aprendendo. Por outro lado, considero fundamental separarmos os dois ambientes: o
Atlântico Sul, uma zona tradicionalmente de paz (e pode ser mantida assim); e o Atlântico
Norte, uma área complexa que, em várias ocasiões, foi uma área de confrontos diretos de
guerra convencional, tornando-se um elemento de uma aliança de Defesa contra outras
ameaças. São duas realidades diferentes. Digo isso porque eu percebo muitas iniciativas
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como, por exemplo, a do The German Marshall Fund, (embora eu não tenha nada contra que
existam iniciativas e tampouco sou contra participar) sobre o Atlantic Basin, de considerar o
Atlântico como uma unidade. Entendo que é fundamental manter a diferença: os problemas
do Atlântico Norte são de certa natureza (e as soluções também); e os problemas do
Atlântico Sul são de outra natureza e as soluções são outras, assim como os atores também
são outros. Sobre essa questão, posso citar um ocorrido por ocasião de uma iniciativa da
Espanha sobre o Atlântico Sul. Fomos convidados para uma reunião, que chamaram de
Fórum de Lanzarote. Eu era Ministro do Exterior e pedi que a representação nossa fosse,
mas em um nível não muito alto para não legitimar essa iniciativa. O Ministro do Exterior da
Espanha, que era meu amigo, me questionou perguntando: “mas por que você está
implicando com essa iniciativa sobre o Atlântico Sul aqui na Espanha?” De pronto, respondi:
“o que você acha se o Brasil lançasse uma iniciativa sobre o Golfo da Biscaia?” Dessa forma,
minha perspectiva sobre essa questão é esta: cada um cuida do seu. Ao sul, convivemos os
países sul-americanos, os países africanos, embora inevitavelmente em alguns casos haja a
participação de algum ator externo. Contudo, acho que devemos manter essa separação.
Temos que manter nossa capacidade de resolver nossas questões.
Bem, o outro ponto relevante a tratar está relacionado ao IBAS e ao BRICS. Na realidade,
a pergunta que me foi apresentada só faz referência ao BRICS, embora mais tarde haja uma
referência mais tarde à IBSAMAR. De qualquer maneira, vou destacar rapidamente a
distinção entre os dois: o IBAS está contido no BRICS, mas, ao mesmo tempo, o IBAS é um
pouco diferente do BRICS. No IBAS há, digamos, um grau maior de afinidade e talvez por não
haver também nenhuma fronteira entre nenhum dos países, nenhum vê o outro como
ameaça; dessa forma, uma eventual cooperação militar entre os três é mais fácil do que uma
cooperação militar entre os cinco. A prova é o IBSAMAR6. Em algumas ocasiões sugerimos,
sobretudo à África do Sul, a ampliação do IBSAMAR para outros arranjos tipo “IBSAAR” ou
“IBSATER”. A resposta foi que no mar era mais natural. Julgo, todavia, que não há razão para
não ter algo parecido entre os Exércitos e as Força Aéreas. Entre os países do BRICS não é
possível conseguir o mesmo tipo de cooperação. É muito complexo (pelo menos no
horizonte em que eu vejo). Pode haver alguma discussão sobre temas de Paz, de Segurança,
de Defesa – não vejo por que não – mas uma cooperação mais intensa eu só consigo
visualizar de duas maneiras: ou como uma estrela de cinco pontas, onde se desenvolvem
várias cooperações bilaterais ou, digamos, olhando do ponto de vista do Brasil, como um,
aquilo que eles chamavam em inglês de Hub-and-spoke (“aros da roda de bicicleta”) onde o
Brasil coopera bilateralmente com cada um deles e trilateralmente com o IBAS. É mais difícil
imaginar que será desenvolvido um Porta-Aviões do BRICS. Do IBAS, embora não seja fácil, é
mais “pensável” (ou, se não um Porta-Aviões, algo menos ambicioso). Há a oportunidade e o
fato deles estarem presentes no mundo influi na realidade econômica internacional e isso
tem também implicações para a Defesa.
6 IBSAMAR é uma série de exercícios navais entre as Marinhas da Índia, Brasil e África do Sul. O nome
IBSAMAR é uma abreviatura de India-Brazil-South Africa Maritime.
- 16 -
Sobre a questão que trata de Operações de Paz, acho a justificativa de nossa
participação bastante óbvia, seja no Haiti ou no Líbano, pois eleva nosso perfil internacional
e nos dá também maior capacidade de discussão e de influência. Por exemplo, fui convidado
a compor a equipe de observadores eleitorais em uma eleição no Haiti. É claro que isso tem
a ver com a nossa presença lá, com o papel que o Brasil desempenhou na manutenção das
condições de estabilidade e segurança na ilha.
No caso da UNIFIL, eu diria que a nossa influencia ainda não é tão grande, mas é muito
importante, como aprendizado. É relevante assumir a posição de liderança, apresentar a
Nau-Capitania da força naval no mais antigo e tradicional teatro militar naval do mundo.
Julgo ainda que seria um grande aprendizado, e eu pessoalmente favoreceria – quando
surgisse a oportunidade –, que o Brasil participasse também da força de terra. Essas
atividades do Brasil e também a presença do comando brasileiro na maior e mais robusta
força da ONU (MONUSCO, na República Democrática do Congo) já se reflete na convocação
de generais, almirantes e coronéis brasileiros no DPKO – Departamento de Operações de Paz
das Nações Unidas. Assim, a participação do General Santos Cruz, do General Floriano
Peixoto e do General Paul Cruz, alguns atuando no DPKO, é um sinal do reconhecimento da
capacidade de nossos recursos humanos. Enfim, tudo isso é muito importante e faz parte da
projeção do Brasil “não apenas como país pacífico, mas como país provedor de paz”.
Com relação à questão relativa às reformas das instituições internacionais – obviamente
a mais importante é a do Conselho de Segurança – acredito que seja algo que vai demorar
mais uns 15 a 20 anos, embora nunca se deva deixar de considerar a possibilidade de
ocorrência de uma alteração excepcional na ordem mundial que possa acelerar o processo.
Por exemplo, quando eu disse, em Paris, em 2008, que o G8 tinha morrido, quase fui
trucidado pela imprensa brasileira. Alguns meses depois, criou-se o G20 e, no começo do
ano seguinte, o Presidente Obama afirmava que aquele era o principal foro econômico
internacional. Então, no âmbito da política internacional, as coisas acontecem de uma
maneira mais rápida. Mas, sobre essa questão, minha percepção é a seguinte: obviamente
nós não vamos ser membros permanentes do Conselho de Segurança e ter uma atuação
importante no Conselho de Segurança na base só do soft power. Para almejar voz ativa
nesse ambiente há que se dispor também de uma capacidade de robustez de nossas forças
armadas.
Com relação à “identidade e integridade da América do Sul e das suas ameaças” eu creio
que, en passant, já mencionei, tratei da importância da ESUDE e do CADSUL (que é uma
parte da ESUDE). Existe também o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa, situado em
Buenos Aires. O diálogo por intermédio desses mecanismos certamente conduzirão,
paulatinamente, à formação de uma doutrina de defesa sul-americana, que nunca será uma
doutrina totalmente coesa (como se pretendeu fazer em outros lugares), mas que já se
podem identificar alguns de seus pontos relevantes. Entre eles, eu ressaltaria a defesa dos
recursos naturais da região. Embora eu não identifique a existência de uma “cobiça
internacional” como se falava no passado, entendo que o aumento da população mundial
leva ao acirramento das disputas por fontes de energia, pela água doce, pelas riquezas da
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biodiversidade. Tais recursos são, a cada dia, mais escassos. Como o Brasil e os outros países
da América do Sul são, cada um a sua maneira, grandes detentores desses recursos naturais,
acredito que unirmos na defesa desses recursos é uma estratégia importante. Outra ação
que devemos realizar é a busca da união na defesa contra intervenções estrangeiras na
região, por meio da convergência diplomática. A ação diplomática conjunta da região é
fundamental para a dissuasão de ações externas ao subcontinente. Entretanto volto a dizer:
a existência de um poder militar robusto, por trás da diplomacia fortalece muito a nossa
capacidade de ação.
Com relação aos desafios de defesa do Atlântico Sul, nossas atenções devem se voltar
também para a pirataria, para o contrabando, para o terrorismo, que são ameaças à
segurança que já ocorrem, por isso gosto de dizer que são “reais” (também chamadas de
“ameaças assimétricas com atores não estatais”). Mas eu quero chamar a atenção para o
fato de que as diferenças e disputas entre Estados continuam sendo – provavelmente – a
principal fonte de conflito (e de conflitos graves) no mundo. Nós não podemos separar esses
conflitos entre Estados das situações que ocorreram. Para exemplificar, retornemos à Guerra
do Vietnã. Não foi uma guerra entre o Vietnã do Sul e o Vietnã do Norte. Foi, inicialmente,
uma guerra entre o Vietnã e o colonizador francês (na época da Guerra da Indochina) e
posteriormente contra os Estados Unidos (que, de certa maneira, entraram no lugar dos
franceses). Também foi uma guerra entre os Estados Unidos e o Vietnã apoiado por outros
Estados, com objetivos políticos e estratégicos no contexto da Guerra Fria. O mesmo pode-
se dizer dos conflitos ocorridos no Iraque e na Líbia. Foram realizados ataques sem mandato
da ONU (caso do Iraque, na guerra de 2003) ou com uma ampliação excessiva e abusiva do
mandato (caso da Líbia, onde foi estabelecida uma Zona de Exclusão Aérea, cujo objetivo
inicial era proteger as populações civis). Em ambos os casos, esse mandato foi se
transformando em “regime change” (mudança de regime). Se já era essa a intenção desde o
início, não posso julgar, mas o fato é que isso ocorreu e dificultou muito as negociações para
se conseguir algum tipo de acordo para a situação da Síria, já que as intervenções anteriores
geraram imensa desconfiança. Essa mesma desconfiança que senti ao final dos anos 90, em
relação ao problema do Iraque, mesmo antes do ataque de 2003 (já tinham havido algumas
escaramuças como a Operação Raposa do Deserto), passou a existir com relação à Síria e às
ações no Oriente Médio em geral. Acredito que esse ambiente de desconfiança atrasou
muito a cooperação que poderia ocorrer para enfrentar a ameaça do chamado Estado
Islâmico, tudo originado pelo abuso das resoluções da ONU. Assim, considerando todo esse
contexto, os desafios de Defesa não podem desconhecer as possibilidades de conflito entre
os Estados. E foi esse tipo de conflito que levou o Brasil à Segunda Guerra Mundial. A
verdade é que, depois de algum tempo, houve um movimento no Brasil que juntou isso com
o movimento pela democracia no fim da Ditadura Vargas e criou outra motivação. Mas, o
que levou realmente o Brasil à guerra foi a necessidade de proteger e de reagir ao
afundamento dos seus navios.
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Bem, eu gostaria ainda de tratar do caso da Guiné-Bissau. Tanto na questão do
terrorismo quanto em questões como o ebola, a Guiné-Bissau é um país frágil, é um país dos
mais pobres do mundo, que enfrentou problemas variados, problemas étnicos (como muitos
países africanos), problemas de golpes militares, problemas inclusive de corrupção das suas
Forças Armadas com envolvimento com o tráfico de drogas. Agora, parece que o país está
tomando um rumo um pouco melhor. É preciso que haja um apoio externo muito forte e eu
não vejo como o Brasil pode ficar ausente desse apoio, tanto na ajuda como na construção
de suas Forças Armadas, já que as Forças Armadas originais foram aquelas que se formaram
na guerrilha. Há muitos comandantes (generais) que não falam português, só um dialeto
local. Caso uma crise do tipo do ebola atinja o país será devastadora, tanto pela
precariedade do sistema de saúde, como pelas deficiências gerais da infraestrutura do país.
Com relação à questão do terrorismo percebo uma vulnerabilidade, causada principalmente
pela proximidade dos conflitos fundamentalistas que ocorreram no Mali, em grande parte
como resultado de ações impensadas na Síria. Existe ainda a presença do Boko Haram na
Nigéria, que não é tão distante. Assim, em minha perspectiva de político, diplomata e ex-
ministro da Defesa, não posso deixar de me preocupar com isso. Julgo que o Brasil deveria
estar presente na prevenção de problemas que poderão ocorrer naquele país. A OTAN já
está atenta à questão e o Brasil, em minha opinião, não deveria deixar de tomar a iniciativa
no apoio. Temos que agir preventivamente, fortalecendo as estruturas de Guiné-Bissau. É
certo que isso envolve investimento, determinação para ajudar. É fundamental que o
Exército de Guiné-Bissau seja refeito, construído em bases saudáveis. Acho que o nosso
Exército pode ajudar. A Marinha também poderia colaborar na estruturação de uma Guarda
Costeira (existem muitas ilhas próximas à costa da Guiné-Bissau que são desabitadas e
usadas pelo tráfico de drogas que sai da América do Sul e vai para a Europa). Caso nada seja
feito, aumentam os argumentos de um país europeu que considere que a solução seja uma
intervenção. A situação esteve próxima a isso quando o almirante que estava sabidamente
envolvido com o tráfico de drogas foi apreendido e até hoje não ficou claro se essa
apreensão foi em águas internacionais. Nós devemos utilizar instrumentos como a própria
CPLP, apesar da possibilidade de haver uma reação diferente por parte de Portugal por fazer
parte da OTAN. Enfim, acho que temos realizado exercícios militares frequentes com a CPLP
e que esse aspecto foi devidamente considerado na decisão tomada por ocasião da crise.
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Palestra da Prof. Dra. Adriana Abdenur Doutorado em Sociologia pela Princeton University, Estados Unidos
A situação da Segurança no Atlântico Sul e na África
Lusófona e suas implicações para a Defesa Nacional
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Gostaria de dizer que para mim e para minha equipe de pesquisa, esse contato entre
civis e militares é extremamente importante, não apenas pelo tema da nossa pesquisa, que
é a interação entre política externa e defesa, mas também por acreditar que isso é um
elemento fundamental na nossa trajetória de desenvolvimento e também no próprio
exercício da democracia. Acrescento ainda, minha satisfação ao perceber o reconhecimento
da participação de mulheres no debate sobre defesa, que considero fundamental. É muito
bom ver que, nesse plano, estamos aos poucos avançando.
O que vou apresentar nesta oportunidade é uma mistura entre a pesquisa que minha
equipe vem fazendo na PUC-RJ, em colaboração com outros institutos, e algumas opiniões
pessoais. Ela tem financiamento do Ministério da Defesa, do CNPq e da CAPES. Nós temos
trabalhado com o Instituto Pandiá Calógeras em um tipo de interação que já está dando
alguns frutos bastante concretos. Na segunda metade deste ano, será oferecida uma série
de novas publicações, não apenas sobre o tema do Atlântico Sul, mas também sobre a
UNIFIL7. A partir do início do próximo ano, partiremos para a segunda etapa da pesquisa,
que requer um certo trabalho de campo.
Minha apresentação está estruturada em três argumentos. Em primeiro lugar
acredito que o Atlântico Sul requer uma instituição multilateral de porte. Em segundo lugar,
a ZOPACAS8, por já existir como configuração política, deve ser melhor aproveitada. E, em
terceiro lugar, julgo que o Brasil deve exercer uma liderança contínua na consolidação e na
institucionalização dessa plataforma multilateral.
“Em defesa do multilateralismo como estratégia de defesa" é a síntese de minha
proposta. Embora entenda que o multilateralismo não é a única tática de defesa, acredito
que ela deva ser fortalecida dentro da estratégia nacional de defesa.
Parto de um conceito inicial de que estamos passando por uma transição na direção
de uma configuração do poder mundial mais multipolar. Esse conceito ainda não é consenso
na academia, pelo contrário, é objeto de um debate bastante acirrado, é uma ideia
contestada. Entretanto, acho que o importante é que exista essa percepção. Às vezes, a
própria percepção é que altera o comportamento dos atores nas Relações Internacionais,
representando novos desafios, abrindo novas janelas de oportunidades.
Já foram mencionados aqui alguns dos elementos chave desse conceito: a percepção
de um certo declínio em alguns aspectos do poder norte-americano. Baseado nos
movimentos atuais da conjuntura internacional, observo que a capacidade dos Estados
Unidos em lidar com desafios de segurança em várias frentes se reduz à medida que as
ameaças se tornam mais complexas. E isso pode ser constatado pela própria postura
estratégica dos Estados Unidos. O governo americano debate atualmente até que ponto
7 United Nations Interim Force in Lebanon
8 Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul.
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deve concentrar sua prioridade de ações no Oriente Médio ou caracterizar, na prática, sua
proposta de fazer um pivô em direção a Ásia.
Então, tratando do Atlântico Sul, pode-se considerar que é uma região que não
consta dentre as áreas prioritárias da política externa da grande potência mas, ao mesmo
tempo, observa-se a ascensão das ditas potências emergentes com interesses locais.
Considerando que há várias definições do termo potência emergente, pode-se adotar o
conceito de que são “estados que possuem um certo grau de poder a nível regional , não
necessariamente hegemônico, mas que têm peso dentro das suas respectivas regiões e
também nutrem ambições e tentam se tornar atores mais relevantes no plano global”. Isso
pode ser bem caracterizado no caso dos países BRICS9 que tanto individualmente quanto
coletivamente reivindicam com maior veemência um sistema de governança global mais
representativo dessa nova distribuição de poder. Aproveitando as palavras do embaixador
Celso Amorim, que me antecedeu, esta é uma distribuição não perfeitamente multipolar,
mas um pouco mais complicada do que a unipolaridade vivida no momento pós Guerra Fria,
com a predominância dos Estados Unidos.
O que isso tem a ver com mecanismos regionais de segurança? No meu
entendimento, o que está acontecendo é que a segurança regional passa a assumir um
maior grau de importância no plano internacional. É óbvio que a segurança regional já tinha
importância em diversas partes do mundo durante a Guerra Fria, mas é a própria
maleabilidade do sistema, essa nova flexibilidade, e também uma nova série de incertezas
que torna, não apenas os desafios de segurança, mas também as instituições que são criadas
ou revitalizadas para lidar com esses problemas, mais relevantes.
Eu e minha equipe de pesquisa temos tentado pensar de forma comparada,
buscando sair um pouco da caixa do Atlântico Sul, e observar o que está acontecendo em
outras áreas do mundo. O leste do Pacífico, por exemplo, torna-se cada vez mais complexo,
com a ascensão da China, pois sua atuação não é sempre por meios multilaterais. Para dar
um exemplo de outra região, no Oceano Índico, a Índia, tanto por meio de sua estratégia de
defesa quanto pela ação de sua política externa, se volta cada vez mais para atuar no
perímetro de estados litorâneos próximos, e não apenas no continente, trazendo à memória
aquele antigo debate de Mackinder.
Mas o que a Índia tem feito para justificar esse argumento? Ao longo da última
década, a Índia tem investido não apenas na expansão do seu poder naval e do seu poder
militar de uma forma mais geral, voltada para o Oceano Índico, mas também na revitalização
de uma plataforma pré-existente que é a Indian Ocean Regional Association for Regional
Cooperation, uma Associação de Cooperação do Oceano Índico, que começou basicamente
com uma série de acordos, mais voltados para a cooperação econômica. Esse mecanismo, a
partir desse novo nível de protagonismo da Índia, tornou-se um foro onde ela vai ampliando
a sua agenda de cooperação para outras áreas, sobretudo a de defesa. É claro que existe
uma série de preocupações geopolíticas com a atuação da China no Oceano Índico. O
9 Grupo BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul
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Paquistão, para a Índia, também é uma ameaça na disputa do poder regional do
subcontinente.
Assim, acho interessante analisar esse tipo de organização multilateral, de atuação
regional, para entender e aumentar o leque de opções para a atuação brasileira no Atlântico
Sul. Recentemente, surgiu uma tentativa de acordo transpacífico, que também é baseada
não em uma lógica espacial continental e sim em uma definição mais ampla de periferia
marítima. Nesse caso, pode-se identificar o Chile e alguns países do leste asiático
construindo a mesma proposta de criação de uma lógica espacial. Dessa forma, esses
mecanismos regionais de segurança citados, embora não de uma forma uniforme, passaram
a adquirir maior importância. Alguns dos principais fatores por trás disso já foram
mencionados, mas a ideia que me parece relevante é que, durante muito tempo as massas
continentais foram o grande enfoque da geopolítica, mas recentemente uma nova atenção é
voltada para os espaços marítimos. Isso tem a ver com a ampliação das rotas marítimas e
também com a vulnerabilidade dessas rotas. Explica também porque a Estratégia de Defesa
Naval da China, pela primeira vez na sua história milenar, explicita que a China está disposta
a defender suas rotas marítimas bem além do seu próprio entorno, no reconhecimento de
que os interesses dos atores chineses se estendem muito além do leste asiático.
Por outro lado, ao analisar a situação do Atlântico Sul, observa-se que não existem
rotas comerciais relevantes entre o Brasil e a costa da África. Apesar de ser citada a
intensificação do comércio na bacia sul-atlântica, verifica-se que a configuração dessas rotas
tendem à cabotagem, ou no entorno da América do Sul, para o norte e para o sul, ou no
contorno da África. É um pouco diferente do que ocorre no Oceano Índico que realmente é
atravessado de uma forma um pouco mais complexa.
Nossa equipe de pesquisa também tem questionado a exploração de recursos
naturais, decorrentes de novas tecnologias e também alguns arranjos jurídicos, assim como
as próprias ambiguidades jurídicas dos regimes internacionais em torno do direito do mar.
Por exemplo, no Atlântico Sul, além do petróleo e do gás na camada do pré-sal, iniciou-se a
exploração dos nódulos polimetálicos. Tudo isso já começa a representar uma competição
que mais uma vez tem uma lógica espacial, porque esses recursos tendem a estar
concentrados em uma área, e, no caso do Atlântico Sul, já se sabe que os recursos talvez
sejam espelhados também no litoral africano.
Mencionei a questão das ambiguidades jurídicas, que, nesse cenário, tendem a
exacerbar os conflitos latentes e a torná-los mais explícitos. Isso fica evidente no momento
em que são analisadas a política de defesa e a política externa no que se refere ao Atlântico
Sul, porque não apenas temos alguns países importantes que não são signatários da
convenção da ONU do direito do mar, mas porque a própria convenção tem enormes
lacunas e ambiguidades, no que diz respeito à definição de “águas internacionais”.
Com relação às ameaças não tradicionais, observa-se na região o alastramento do
comércio de ilícitos, não apenas das drogas ilícitas, mas da pirataria e do tráfico de seres
humanos, que são problemas que apenas agora mostraram sua extensão. Outro fator que
não tem sido mencionado com veemência, mas que pode ser considerado desafiador, e que
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pode conduzir a oportunidades de colaboração, está relacionado com a mudança climática.
O Brasil começou recentemente um programa bastante interessante de mapeamento das
áreas de risco decorrentes de possíveis mudanças climáticas, tentando identificar quais
padrões tendem a surgir. Creio que essa seria uma oportunidade de cooperação muito
interessante entre os países do Atlântico Sul, até porque constitui uma ameaça comum que
requer também soluções em colaboração.
Outra questão importante a tratar ao abordar a questão africana é a dos “estados
falidos”. Na verdade, não sou fã da expressão, pelo histórico de preconceito carregado por
trás dela. Prefiro o uso da terminologia “zonas de instabilidade sociopolítica”. E, sobretudo,
no momento, no litoral africano existem vários exemplos. O Brasil, por meio de atores
estatais e não estatais, tem algum interesse nessas áreas ou alguma relevância na tentativa
de encontrar soluções. Observe o caso da Guiné Bissau, por exemplo. O Brasil tem um longo
histórico de colaboração com ações da política externa e, mais recentemente, pela ajuda
que nossas forças armadas têm prestado na reforma mais ampla do setor de segurança
daquele país.
A participação brasileira nessas áreas deve ser muito bem pensada, mas é
fundamental que seja mantida, porque estabelece um precedente bastante cauteloso no
papel que o Brasil exerce nesse tipo de área. Além do caso da Guiné Bissau, há vários outros,
como a situação de insurgência que atinge o Mali, com a presença de grupos articulados
com células de outras áreas da África. Observa-se a existência de áreas enormes da Nigéria
que estão hoje praticamente sobre controle do Boko Haram, e algumas dessas áreas podem
não constar no nosso imaginário rotineiro aqui do Brasil, mas à medida que os grupos
começam a se articular, e passam também a ter uma presença no espaço marítimo, eles
adquirem uma maior relevância do ponto de vista da defesa brasileira. Neste ponto, eu
queria ressaltar o que parece óbvio, mas percebo que outros não enxergam da mesma
forma. Entendo que essas questões não são do interesse apenas da marinha. Elas impactam
em um nível mais elevado nas políticas externa e de defesa do Brasil. Assim, quando se trata
da geopolítica desses novos espaços marítimos, isso inclui os estados litorâneos e muitas
vezes, vai além dos estados litorâneos. A maior parte dos problemas aqui mencionados, os
desafios de segurança, desde a pirataria até o trafico de ilícitos, têm suas raízes geralmente
em problemas que nascem na dimensão continental africana.
Surgem indícios, nos dias atuais, de uma crise no Atlântico Sul mas, para entendê-la,
é interessante acompanhar os eventos que estão ocorrendo no Mediterrâneo associados ao
aumento desenfreado da imigração. É importante observar que ela não aconteceu de um dia
para o outro, mas a escala e a dimensão que esse desafio adquiriu nos últimos meses,
caracterizam uma intensificação que não foi prevista. Então, na cena internacional, como já
foi mencionado, alguns desafios podem despontar subitamente e requerer uma articulação
ampla, não apenas por intermédio da interoperabilidade entre as forças armadas, mas
também por meio das instituições que atuam nacionalmente ou multilateralmente, ou então
serem tratados no âmbito de mecanismos especificamente voltados para os oceanos.
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Lendo e relendo os documentos chaves da estratégia nacional de defesa fica muito
claro que o multilateralismo é necessário não apenas para se achar soluções para os
problemas como esses que foram citados, mas também, ele é muito condizente com alguns
dos conceitos chaves da nossa política nacional de defesa.
Existe uma expressão que eu acho que merece ser aprofundada na nossa política
nacional de defesa: entorno estratégico. Ele se aplica muito bem ao caso do Atlântico Sul,
pois vai além da ideia de região. É um conceito um pouco mais flexível, que ao meu entender
remete que atores brasileiros têm interesses que vão além da definição mais tradicional de
América Latina e de América do Sul.
A própria ideia de dissuasão é uma noção com uma lógica espacial. Temos lido
bastante para buscar entender a diferença entre o conceito norte-americano de
“deterrence”, a tentativa de deter, sobretudo no plano nuclear. É um conceito que não tem
uma lógica espacial muito bem definida porque as ameaças nucleares vêm de certos
estados, mas podem ser aplicadas no nível planetário. O conceito de dissuasão, tal como
aparece na estratégia nacional de defesa, entretanto, está atrelado a uma lógica espacial.
Assim, vejo uma associação com a primeira parte do meu argumento: o Atlântico Sul precisa
de uma instituição multilateral com uma lógica espacial. E porque que eu bato muito nessa
tecla? Porque vejo diferenças entre dois mecanismos em que o Brasil participa com a
presença de países do Atlântico Sul, especialmente no que se refere ao conceito de lógica
espacial. A CPLP10, por exemplo, tem importância indiscutível na política externa e na
política de defesa, mas ela tem servido muito mais como uma espécie de plataforma através
da qual o Brasil pode intensificar seus laços com países de língua portuguesa, inclusive na
área de defesa, mas ela não possui lógica espacial. As ZOPACAS11, que foi criada durante a
Guerra Fria, mas ficou dormente durante muito tempo, possui sim uma lógica espacial, que
eu acho que deve ser mais bem aproveitada.
A segunda parte do argumento então tem a ver com esse aproveitamento. Enfim,
não é o momento de se criar novas instituições na massa continental. Nós já participamos da
UNASUL12. Por que pensar em algo novo quando já existe a ZOPACAS? É importante lembrar
que a ZOPACAS nasceu a partir de uma série de preocupações que estavam mais voltadas
com a não proliferação nuclear. Oriundas de uma percepção imediata, como a guerra das
Malvinas e o uso de submarinos nucleares pela Grã Bretanha, tais preocupações
repercutiram no aumento da atenção para com o Atlântico Sul.
A ZOPACAS foi lançada não como uma zona de paz num sentido pleno da ONU,
porque isso requer um acordo juridicamente válido, todas as partes teriam que se
comprometer com os dispositivos de um acordo mais robusto. Na verdade, a ZOPACAS
10
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
11 Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul
12 União de Nações Sul-Americanas
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nunca foi isso, foi algo um pouco mais idealista. Com a atual tentativa de revitalização, ela
trata então de ampliar a agenda de cooperação para além dessa noção de paz, para incluir,
enfim, alguns projetos na área de desenvolvimento e também de cooperação em defesa.
Assim, a ZOPACAS já nasce com um grau muito baixo de institucionalização. E isso traz
algumas consequências. Algumas das conversas mais interessantes que temos estabelecido
ao longo desses últimos meses têm sido com os especialistas, os advogados da divisão de
desarmamento da ONU. Nós perguntamos por que a ZOPACAS não consta, como consta por
exemplo o tratado de "Tlatelolco13" ou de" Pelindaba14", na lista de zonas de paz.
Certamente, isso tem a ver com falta de institucionalidade do mecanismo. Eu diria ainda que
é uma organização, que não é reconhecida portanto pela ONU como um mecanismo mais
robusto. A ZOPACAS tem várias vantagens que eu já mencionei, por exemplo, em relação à
CPLP, mas ela serve a um propósito bem mais específico. É importante ressaltar que eu não
estou dizendo que a CPLP tem que ser abandonada, pelo contrário.
A ZOPACAS já é uma plataforma preexistente e ela é uma tentativa histórica a meu
ver. Na história das iniciativas multilaterais da Guerra Fria é muito raro encontrar algo
oriundo da iniciativa dos países em desenvolvimento, criado através da ONU, nesse caso
uma coordenação entre países da América do Sul e da África. Enfim, então, parte desse
longo histórico de cooperação transatlântica que proporciona legitimidade, não apenas
perante a ONU, mas também perante os países membros, deve servir para formar o que
muitos aqui chamam de mentalidade marítima. Então qual seria a proposta? Seria uma
tentativa de espelhar a OTAN no Atlântico Sul? Não, a lógica geopolítica do Atlântico Sul é
muito diferente do Norte Atlântico. Mas seria o quê? Ao meu ver, e aqui gostaria de propor
uma ideia, seria o papel de guardião normativo da região: a ZOPACAS como guardião
normativo da região.
O que eu quero dizer com isso é que os mecanismos regionais de segurança inclusive
no Oceano Índico tentam funcionar de maneira geral, de uma forma coerente com as regras
da ONU, mas as normas da ONU nem sempre são suficientes para lidar com os desafios de
segurança. As normas regionais, sobretudo quando elas são promovidas por instituições
mais robustas, podem exercer o papel, no que diz respeito, por exemplo, à inibição de
possíveis intervenções de atores externos, como, por exemplo, a OTAN. Não é que isso
nunca vá acontecer, mas uma instituição robusta, liderada por países da região, localizados
na região, aumentaria o preço político e o apreço de legitimidade de uma intervenção, sem
uma discussão prévia nesse âmbito. Claro que o ideal seria que a ZOPACAS também tivesse
maior capacidade operacional, e que alguns desafios, pelo menos num horizonte mais
próximo, talvez exijam uma cooperação com atores externos. Isso traz também benefícios.
Assim, a cooperação com atores do norte, com os Estados Unidos, com a OTAN em algumas
circunstâncias, não deve ser vista como algo maléfico. Mas o papel que a ZOPACAS poderia 13
O Tratado de Tlatelolco é o nome convencionalmente dado para o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina e o Caribe. Ele é incorporado no Organismo para a Proscrição das Armas Nucleares na América Latina e no Caribe.
14 Zona Livre de Armas Nucleares da África.
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exercer no papel normativo da segurança da região, a meu ver, poderia ser muito mais
robusto.
A terceira parte do argumento, vou resumir com algumas recomendações concretas,
ações que não conseguimos finalizar, pois nas Relações Internacionais somos bastante
tímidos.
Terceiro ponto: a ZOPACAS requer uma liderança mais contínua por parte do Brasil. A
política externa brasileira sempre teve essa preocupação de não parecer uma tentativa de
hegemonia nem na América Latina ou do Sul, nem no Atlântico Sul. Acho que isso pode ser
mantido, mas a ZOPACAS sofre de uma falta de continuidade que poderia ser remediada
através de uma liderança, de um comprometimento mais firme por parte do Brasil. Penso
que o país deve assumir uma liderança não agressiva, mas bastante natural, com maior
regularidade de contatos e maior partilha de experiências. As reuniões da ZOPACAS não têm
um secretariado permanente, elas são repassadas para o próximo Estado responsável para
sediar a reunião seguinte. Isso quebra um pouco a continuidade, um maior
aprofundamento. Um aprofundamento da coordenação entre a nossa política externa e a
nossa política de defesa deve ser efetivado, sobretudo nas discussões internacionais que
têm relevância direta ou indireta para o Atlântico Sul como, por exemplo, a questão da
migração que precisa ser abordada através dessa coordenação, prevendo adiante o
potencial a ser alcançado. Creio que a liderança brasileira poderia trabalhar mais um pouco
nesse sentido.
Deve-se perseguir um melhor aproveitamento da rede de aditâncias. Acho que isso
também já está sendo feito, mas que poderia ser realizado, também, na dimensão
multipolar, multilateral e não apenas bilateral.
Tem de ser construída uma programação de financiamento em médio prazo, e não
de programa a programa, porque isso também contribui muito para a tendência de
entrecortar a agenda de cooperação. Deve ser construída uma agenda propositiva que, mais
do que no plano normativo, esteja voltada para a cooperação entre os Estados membros.
Isso porque, às vezes explicitamente e às vezes nas entrelinhas, essa preocupação, a meu ver
é um pouco excessiva. Com a ZOPACAS como instrumento de exclusão de atores externos,
ela tende a ofuscar as oportunidades de cooperação entre os Estados membros. Assim, acho
que deve haver um maior equilíbrio entre essa motivação de exclusão, que enfim, tem suas
raízes numa lógica geopolítica, e os esforços de inclusão e de construção de laços de longo
prazo, não apenas no plano bilateral, mas também no plano multilateral. Para mencionar um
exemplo concreto, poderia ser incluída a proposta de mapeamento das áreas de risco, assim
como o Brasil já tem contribuído bastante para o apoio ao levantamento das plataformas
continentais. Para concluir, queria ressaltar algumas das partes anteriormente
apresentadas. Penso que a multipolaridade já está presente na Política e na Estratégia
Nacional de Defesa, mas eu acho que ela deveria ser ressaltada e aprofundada com um
pouco mais de detalhes. Podemos pensar, até certo ponto, na ZOPACAS não exatamente
como um espelho dos esforços que estão sendo feitos na UNASUL, mas, estrategicamente,
como uma equivalente voltada para esse espaço marítimo. Deveria ser buscada a
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revitalização de iniciativas regionais, não inteiramente multipolar, mas com maior atuação
das potências emergentes da região. Finalmente, gostaria de reiterar que esse culto de
exclusão tem que ser equilibrado com tentativas de inclusão. Não estou falando de trazer
novos membros, nem membros observadores, mas de uma agenda propositiva de
cooperação em áreas estratégicas, que permitam um aprofundamento e não apenas a
ampliação pouco realista dessa agenda de cooperação em prol da nossa política externa,
mas também da nossa política de defesa.
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Palestra do Contra-Almirante Antonio Ruy de Almeida Silva Doutorado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
“A situação da segurança no Atlântico Sul e na África
lusófona e suas implicações para a Defesa Nacional”
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Meu tema é o “Atlântico Sul: Segurança e Desafios para a Defesa”.
Para falar de Atlântico Sul nós não podemos deixar de falar do conceito de Poder
Marítimo e da relação entre esse Poder e a Globalização. Depois, vou tratar rapidamente das
ameaças e tensões que existem no mar; em seguida, analisar o Atlântico Sul no sentido
global, regional e local. E vou utilizar dois outros conceitos para ajudar nessa sintética
análise: Comunidade Pluralística de Segurança, de Karl W. Deutsch e Complexo de Segurança
Regional, de Barry Buzan e Ole Waever. Em seguida, vamos tratar dos atores extra-regionais,
da visão da diplomacia brasileira sobre o Atlântico Sul e, finalmente, algumas conclusões.
Para falar de Poder Marítimo, nós não podemos deixar de falar de Alfred T. Mahan,
que foi o primeiro autor que tratou deste tema de uma forma mais substancial. O Poder
Marítimo, para Mahan, é um elemento vital para o crescimento, a prosperidade e a
Segurança Nacional. Existe, segundo ele, uma relação entre Poder Marítimo e a
transformação das nações em grandes potências – que na época era a Grã-Bretanha. Ele a
estudou, mostrando como a Grã-Bretanha se tornara uma grande potência em parte devido
ao seu Poder Marítimo. Ele via esse cenário no contexto de uma competição entre Estados,
e concebia as marinhas de guerra como instrumento dessa competição. Embora houvesse
cooperação entre os países, havia também a competição pelos recursos naturais e mercados
que na época eram importantes através do sistema de colônias. A visão de Mahan era,
basicamente, uma visão realista das relações internacionais.
Mahan não definiu explicitamente o conceito de Poder Marítimo – e há uma relação
entre Poder Marítimo e Poder Naval que ele não tratou muito bem. Embora existam várias
definições de Poder Marítimo estabelecidas por outros autores, eu vou utilizar um conceito
próprio: o “Poder Marítimo é a capacidade do Estado de explorar ou influenciar o conjunto
das atividades políticas, econômicas, sociais, ambientais, de ciência e tecnologia, e de defesa
relacionadas com o mar” (Almeida Silva, 2014).15 O Poder Naval, é o componente militar do
Poder Marítimo.
O Poder Marítimo está relacionado com a Globalização. As marinhas nasceram em
tempos imemoriais para proteger o comércio. Hoje, cerca de 90% do comércio internacional
15
Antonio Ruy de Almeida Silva. O Atlântico Sul na Perspectiva da Segurança e da Defesa. In: Reginaldo Mattar Nasser e Rodrigo Fracalossi de Moraes: O Brasil e a Segurança no seu Entorno Estratégico. América do Sul e Atlântico Sul. Brasília: IPEA 2015. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21592&catid=342
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é realizado por mar; cerca de 50% do fornecimento de energia é transportado pelo mar;
existem cerca de 103 mil navios; 4.500 portos; existe a exploração de petróleo e outros
recursos naturais do mar; existe uma rica biodiversidade marinha, uma indústria marítima e
o turismo e o lazer. Nesse sentido, Globalização e Poder Marítimo estiveram sempre juntos.
Vamos ver, então, quais são as tensões e ameaças que nós podemos esperar nesse
ambiente do Poder Marítimo. Elas podem ser de três tipos: as tensões clássicas, as tensões
incrementadas pelo próprio processo de globalização (pelo aumento da busca de recursos,
pelo aumento do tráfego marítimo), e as ameaças neo-tradicionais (eu prefiro chamar de
ameaças neo-tradicionais aquilo que os demais autores chamam de novas ameaças, porque
de novas não tem nada. Pirataria, crime organizado, tráfico ilegal de pessoas, por exemplo,
são atividades muito antigas).
Nas tensões clássicas pode-se incluir a busca de poder e segurança dos Estados; as
intervenções militares (que estão se tornando cada vez mais frequentes depois da Guerra
Fria, basta ver os casos da Líbia, Síria, Iraque); as disputas pelas fronteiras marítimas (que é o
caso do Ártico, das Malvinas, do mar do sul da China, e outras disputas); e as tensões
geradas pela contestação dos direitos dos países dentro de suas águas jurisdicionais. Estas
últimas estão ligadas ao Direito do Mar. Muitas partes desta Convenção contêm artigos que
dão margem a interpretações. O Brasil, por exemplo,quando a assinou, fez uma ressalva que
não permitiria a realização de manobras militares na sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE), no
entanto, determinados países, como os Estados Unidos da América, só reconhecem esse
direito no mar territorial, já que a partir do limite dessa área eles consideram que existem
apenas águas internacionais, nas quais os países possuem alguns direitos em determinados
espaços marítimos estabelecidos pela Convenção.
Nas tensões incrementadas pela globalização, nós temos a poluição marinha, as
bandeiras de conveniência, e a disputa por recursos do mar.
E o Atlântico Sul nesse contexto? O Atlântico Sul é difícil de definir; na verdade estas
definições são construções sociais – porque o que existe é uma grande massa de água que
constitui a maior parte do nosso planeta – mas que socialmente foram sendo construídas
com determinadas denominações, logicamente, atendendo a alguns parâmetros espaciais
ou geográficos. É difícil dizer onde começa e onde termina o Oceano Atlântico.
Normalmente, a Marinha do Brasil utiliza o paralelo de 16°– Norte como sendo o início do
Atlântico Sul se estendendo até a Antártica.
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No âmbito global, o Atlântico Sul tem: 3,8% dos portos do mundo, sendo que
nenhum porto entre os dez primeiros; sofre ainda a competição com o Canal de Suez e o
Canal do Panamá (o qual está sendo modernizado para permitir a travessia de navios muito
maiores), e sofre também a possibilidade de uma futura competição de uma rota pelo
Ártico. Então, nós podemos concluir, muito sinteticamente, que no sistema globalizado, o
Atlântico Sul tem um papel secundário na economia mundial.
Também, em relação à segurança internacional, o Atlântico Sul é um oceano que não
teve grande importância nem na Primeira nem na Segunda Guerra Mundial, e agora também
continua sem ser palco das principais tensões mundiais.
No passado, o Mediterrâneo foi a principal área marítima, sendo substituída pelo
Atlântico Norte, e agora estamos assistindo à transição para o Pacífico. Dos dez maiores
portos do mundo, nove estão na Ásia, sendo oitos destes na China; e tem um único na
Europa, que é o porto de Rotterdam na Holanda. Isso mostra que o Atlântico Sul participa
marginalmente dessa grande malha globalizada. De certa forma, isso abre uma janela de
oportunidade para que nós tenhamos mais possibilidade de trabalharmos as nossas
questões do Atlântico Sul sem maiores interferências e tensões.
Se no âmbito global ele é secundário, ele tem uma grande importância em termos
regionais e local: cerca de 20% do transporte marítimo norte-americano de grande porte (11
mil navios passaram por aqui em 2009); existe o incremento da produção de petróleo, tanto
do lado da América do Sul quanto na África; existe em andamento a construção de novos
complexos logísticos costeiros; e cerca de 1.640 navios por dia navegaram nas rotas
marítimas brasileiras em 2014.
Então, no âmbito regional e local, o Atlântico Sul é importante, especialmente, nos
campos econômico e geopolítico. Mostrarei aqui as linhas de comunicação brasileiras em
2014: vemos que as rotas marítimas hoje estão voltadas principalmente para o Oriente (a
nossa comunicação com a China e com os países da Ásia); existe uma rota pequena aqui
entre Uruguai e Argentina; existe uma rota de 14 navios mercantes ao dia que vão para a
África; existem 119 navios mercantes ao dia que vão para a Europa; 71 para a América do
Norte; e alguns outros que passam para o Oceano Pacífico. Então, o somatório dos navios
dessas rotas dá aproximadamente o número de 1.640 navios por dia.
Normalmente, se fala no Atlântico Sul como se fosse uma área marítima única. Eu
preferi para essa apresentação dividir o Atlântico Sul em quatro áreas marítimas. A primeira
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área marítima seria aquela além do alto mar, ou seja, o espaço marítimo que está fora das
águas jurisdicionais dos países. No alto mar não há jurisdição de nenhum país sobre essa
porção do oceano, e o fundo ou leito marinho são patrimônios da humanidade,
administrados pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos. A área que o Brasil acaba
de receber da elevação de Rio Grande é uma concessão desse patrimônio, que o país
pesquisará com o propósito de verificar a possibilidade de uma futura exploração. A segunda
região marítima são as áreas jurisdicionais das possessões de países extra-regionais. A
terceira e quarta áreas seriam a área marítima sul-americana e a área marítima Atlântica-
Africana, que são aquelas que analisarei um pouco mais. Vamos fazer uma comparação para
ver o que existe de semelhante e o que existe de diferente entre essas duas últimas áreas,
para que se possa tirar algumas conclusões em relação à Segurança e à Defesa. E vamos
analisá-las, basicamente em relação às tensões clássicas, tensões incrementadas pelo
processo da globalização, e às ameaças neo-tradicionais.
Vou utilizar também, como eu disse no sumário, dois conceitos. O primeiro conceito
é o de Karl W. Deutsch, Comunidade Pluralística de Segurança. O que Deutsch afirma é que
os países constituem uma Comunidade Pluralística de Segurança a partir do momento que
eles têm valores e interesses comuns de tal forma interligados que não é possível pensar a
guerra entre eles. Pode até ocorrer o uso da força, mas só de forma limitada. O uso da força
em grande escala não existiria.
O outro conceito é o de Complexo de Segurança Regional, de Barry Buzan e Ole
Waever. O conceito de região é um conceito que possibilita muitas interpretações e
definições. No entanto, em um contexto que privilegia o aspecto geográfico, o regionalismo
sempre esteve presente, mesmo durante a Guerra Fria, só que as questões regionais foram
muitas vezes relegadas ao segundo plano. Basta ver a quantidade de conflitos que houve nos
países durante a Guerra Fria, mas que não tinham um destaque maior porque ficavam
esmaecidos pela questão maior, a questão global da Guerra Fria. Buzan e Waever, vão
argumentar que após o término do conflito ideológico existiria uma maior autonomia
regional em relação às grandes potências. O grau de interdependência entre os temas de
segurança seria maior entre os países de uma região do que em relação aos atores extra-
regionais – no que eles chamam de Complexo de Segurança Regional.
De posse desses dois conceitos e das tensões existentes no ambiente marítimo,
vamos analisar, sinteticamente, a área marítima atlântica sul-americana. Nela existem três
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países: Brasil, Uruguai e Argentina, que se debruçam sobre o Atlântico Sul. A principal
responsabilidade desses países no âmbito marítimo é, primordialmente, a segurança das
águas jurisdicionais. Existe ainda uma responsabilidade relacionada com a salvaguarda da
vida humana no mar, que chega até o alto mar. É uma responsabilidade estabelecida em
tratados internacionais.
Algumas considerações sobre essa área marítima atlântica sul-americana: os três
Estados são relativamente organizados, com governança e instituições; existe uma
coordenação regional e inter-regional do tráfego marítimo, que é feito entre o Brasil, a
Argentina e o Uruguai. Existe uma com cooperação com países extra-regionais, inclusive com
a Itália, para possibilitar um controle deste tráfego marítimo ampliado, aqui e lá no
Mediterrâneo e em outras regiões do mundo. Esses países sul-americanos contam com
Marinhas e alguns, também, com Guardas Costeiras. A Argentina, por exemplo, tem uma
guarda costeira com meios modestos, porém organizados. Nessa área marítima existe a
necessidade de coordenação dos órgãos com jurisdição no mar e isso é um problema a ser
resolvido; existe, também, a necessidade de se ampliar a consciência situacional marítima,
que é saber o que existe ou o que acontece nessa região marítima; e, a necessidade de
incrementar meios para patrulhar os espaços marítimos.
As tensões por recursos do mar, aqui na nossa região, são baixas ou com moderada
probabilidade. As ameaças neo-tradicionais, aquelas relacionadas com tráfico de drogas,
tráfico de armas, são predominantes. Em relação às tensões clássicas, visualiza-se apenas a
possibilidade de conflitos com atores extra-regionais. O que quer dizer isso? Que hoje, a
situação entre Brasil, Argentina e Uruguai tende a ser na direção de uma Comunidade
Pluralística de Segurança; quer dizer, é impensável considerar que Brasil, Argentina e
Uruguai vão entrar em guerra. Desta forma, existe, apenas, a possibilidade de conflitos com
atores extra-regionais (o caso da Argentina em relação às Malvinas seria um exemplo desse
tipo de tensão). O Livro Branco de Defesa da Argentina parece confirmar essa tendência
regional para a constituição de uma comunidade pluralística ao afirmar que: “No Cone Sul
[...] o cenário de defesa e segurança internacional se encaminha para níveis de abertura e
transparência que se assemelha aos da inicial experiência de integração europeia”.
Da mesma forma, se pode dizer que existe a possibilidade de, no longo prazo, essa
Comunidade Pluralística de Segurança ser ampliada para toda a América do Sul. Como
elementos nessa direção pode-se citar a tentativa de construção de uma identidade sul-
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americana, no qual existe a contribuição de instituições, tais como União de Nações Sul-
Americanas (UNASUL), do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), do Mercado Comum do
Sul (MERCOSUL) etc.
Passemos para a área marítima atlântica-africana. É uma área enorme, que envolve
uma grande quantidade de países e vários mecanismos regionais além da União Africana.
Nessa região, além da multiplicidade de Estados com interesses e capacidades diversas,
existe pirataria, roubo de óleo, pesca ilegal, tráfico ilegal de armas e de pessoas, e poluição
marinha; há uma multiplicidade de organizações com envolvimento no ambiente marítimo,
e uma baixa capacidade dos países de controlar as suas águas jurisdicionais. A grande
produção de petróleo e ricas áreas pesqueiras aumenta a possibilidade de ações ilegais e
interferências externas. Por outro lado, poucos países dispõem de marinhas e guardas
costeiras com capacidade para garantir a segurança marítima nas suas águas jurisdicionais.
Dessa forma, pode-se concluir que existem algumas coisas que são comuns na área
marítima atlântica e na área marítima africana, e outras que são bastante diferentes.
Enquanto existem na área sul-atlântica estados consolidados com instituições relativamente
organizadas, na área africana existem vários Estados frágeis com governança e instituições
fracas. Em ambas áreas, existe a necessidade de coordenação dos órgãos com jurisdição no
mar e a necessidade de ampliar a consciência situacional marítima. Neste último aspecto, na
área africana existe a necessidade de incrementar a coordenação regional e internacional
em relação ao que acontece no espaço marítimo. Em ambas as áreas existem a necessidade
de mais meios necessários para patrulha marítima, sendo que essa necessidade é muito
maior nos países africanos.
As tensões clássicas na área marítima atlântica-africana são moderadas, com
possibilidade de intervenção extra-regional. As tensões por recursos do mar são altas porque
existe uma pesca ilegal muito grande. E as ameaças neo-tradicionais são predominantes,
pela existência da pirataria, do tráfico de drogas, roubo de petróleo, etc.
Em face do elevado número e diversidade de países, podemos concluir que há uma
baixa probabilidade de criação de uma comunidade pluralística de segurança na área
marítima atlântica-africana. Essa situação, de certa forma, vai afetar o próprio
desenvolvimento da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), que é um
primeiro passo de uma longa jornada para a construção de uma identidade sul-atlântica.
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Além da atuação dos países atlânticos africanos e sul-americanos, existem iniciativas
e a presença de atores extra-regionais no Atlântico Sul. O ex-ministro Celso Amorim já falou
aqui da ideia de “Hemisfério Atlântico”, quer dizer, uma iniciativa chamada Bacia do
Atlântico que acabaria com essa divisão entre Atlântico Sul e Atlântico Norte; isso tem sido
elaborado no contexto da cooperação entre os Estados Unidos e União Europeia. Na Europa,
alguns países, principalmente Portugal e Espanha, que não possuem na OTAN uma posição
de relevo, e que têm interesses no Atlântico (Portugal tem uma imensa área marítima que
se debruça para o Atlântico) defendem a ideia de um só Atlântico. Nesse sentido, o conceito
estratégico da OTAN também cria preocupações, na medida em que ele afirma que a
Organização pode atuar fora da área, desde que seja considerado que existe uma ameaça à
segurança da Aliança, inclusive em relação a temas neo-tradicionais como extremismo,
terrorismo, atividades ilegais, o tráfico, narcotráfico etc.
Além de Portugal e Espanha, a França e Grã-Bretanha são os países europeus da
OTAN que têm mais interesse no Atlântico. A França possui na América do Sul o
departamento da Guiana Francesa, onde se localiza a base espacial do Kourou, e uma forte
presença econômica e de segurança na África. A Grã-Bretanha possui várias ilhas oceânicas
espalhadas no Atlântico, inclusive as Malvinas. Os Estados Unidos também têm um
importante papel no Atlântico Sul. No âmbito da segurança, existe o Comando do Sul, com a
chamada Quarta Frota. Em 2007, foi criado o Comando Africano cujo atuação engloba 53
países africanos. Finalmente, a China e a Índia estão entre os principais países presentes na
África, sendo que a primeira, possui uma participação econômica importante na América do
Sul.
E como o Brasil se comporta em relação a esse contexto? Quais são as principais
iniciativas do Brasil? Em relação aos países extra-regionais não há um antagonismo
brasileiro. Existem objetivos comuns, tais como a segurança regional e a segurança global.
Além disso, existe a cooperação bilateral em todos os níveis – com a França, no âmbito da
Defesa, por exemplo, o Brasil está envolvido em um grande programa de submarinos. A
cooperação com essas potências extra-regionais se estende a todas as Forças Armadas, na
compra de meios e equipamentos, exercícios militares, mecanismos no âmbito da Defesa
etc. Em síntese, o Brasil trata da promoção dos interesses comuns com os atores extra-
regionais, embora procure, na medida do possível, promover e incentivar mecanismos
bilaterais e regionais que contribuam para que o Atlântico Sul e a América do Sul se tornem
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regiões com identidade própria. Dessa forma, o Brasil considera que teria uma maior
capacidade de manobra, que normalmente seria mais difícil com o envolvimento das
potências extra-regionais. Nesse sentido, o Brasil tem, também, promovido mecanismos
inter-regionais, tais como a Cúpula dos Países da América do Sul – Países Árabes (ASPA) e a
Cúpula da América do Sul – África (ASA).
O Brasil também participa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, da qual
fazem parte os países africanos que compartem esse idioma, baseado numa identidade
cultural. Desse mecanismo, participa Portugal, que é também um membro da OTAN, o que
demonstra a complexidade das interações internacionais. No âmbito Sul-Sul existe ainda o
Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (IBAS) e o exercício IBSAMAR. Além do mais, no
âmbito da Defesa, após 2003, uma série de acordos foram assinados com países africanos.
Algumas ações específicas podem ser citadas como a criação da missão naval em Cabo
Verde; a cooperação com Moçambique; o grupo de apoio técnico aos fuzileiros navais para
São Tomé e Príncipe; a cooperação na área de segurança com Guiné Bissau; os exercícios
militares com Benin, Cabo Verde e Nigéria etc.
Diante do que foi exposto, podemos concluir afirmando que o Atlântico Sul é
periférico no âmbito global, e fundamental no âmbito regional e local, inclusive em relação
ao campo da segurança e da defesa. O Brasil tem interesses comuns com as potências extra-
regionais. Não existe uma dicotomia, um jogo de soma-zero. A segurança regional é um
interesse comum, logicamente, com a ressalva das potências navais extra-regionais de que
seja garantida a liberdade de navegação. Embora o conflito de maior escala entre Estados
tenha uma baixa probabilidade, há possibilidade de intervenção militar por atores extra-
regionais. No entanto, as principais ameaças são neo-tradicionais, sendo muito mais fortes
na área marítima africana. Por outro lado, existe uma tensão entre a identidade sul-
americana, que o Brasil tenta criar, e a identidade hemisférica que é a visão norte-
americana.
A boa relação entre os países da América do Sul, especialmente, entre Brasil-
Argentina, que são os dois principais países da região, é fundamental para a concretização
da identidade sul-americana. A integração político-econômica na América do Sul é um
embrião de uma incipiente comunidade pluralística de segurança na qual a guerra seria
impensável; e, o Complexo de Segurança Regional no Cone Sul tem, hoje, limitada
interferência de poderes extra-regionais, exceto em relação às Malvinas. No entanto, na
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área marítima atlântica-africana essa interferência é muito maior. Essa interferência, aliada à
diversidade e a fragilidade de alguns desses estados africanos são elementos complicadores
no desenvolvimento da ZOPACAS. Nesse sentido, os mecanismos regionais existentes nessa
África Atlântica podem, se não for bem trabalhado, se constituir em um obstáculo na
construção de uma identidade sul-atlântica.
Em relação ao Brasil, há alguns desafios relacionados com os aspectos marítimos da
Defesa Nacional. Primeiramente, a necessidade de se atualizar a Política Marítima Nacional e
incrementar uma visão interagências no mar. É preciso que a Marinha assuma a
coordenação operacional das diversas agências que possuem atribuições relativas ao espaço
marítimo. A Marinha já faz algo semelhante em relação aos recursos do mar, através da
Secretaria Interministerial dos Recursos do Mar. Dinamizar a atuação do Estado nas águas
jurisdicionais brasileiras é fundamental. Segundo, passar a Marinha a ser responsável pela
Patrulha Aérea Marítima, conforme é realizado em vários países (embora a Força Aérea hoje
o faça, seria mais eficaz que houvesse unidade de comando entre os meios aéreos e os
navios realizando patrulha no mar). Terceiro, existe a necessidade de aumentar a capacidade
de gerenciar as águas jurisdicionais brasileiras, inclusive com a construção de um sistema
como proposto pela Marinha para Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz). Um sistema
que seja concebido de forma modular, a ser implementado por fases, dependendo da
situação econômica do país.
Para finalizar, temos grandes desafios no âmbito doméstico, como construir um
Poder Naval equilibrado que incremente a presença do Brasil no Atlântico Sul (equilibrado,
no sentido de ter meios submarinos, de superfície e aeronavais e de fuzileiros navais)
buscando não gerar receios e desconfianças nos seus vizinhos de ambos os lados do
Atlântico Sul; no âmbito internacional: evitar o retorno da política de poder na América do
Sul (uma competição Brasil-Argentina não interessa de forma nenhuma nem ao Brasil e nem
à Argentina); manter o bom relacionamento com as potências extra-regionais; implementar
os mecanismos tipo CPLP e IBAS; incrementar a cooperação com os países lindeiros,
inclusive em relação ao aprofundamento da institucionalização no que diz respeito à Defesa
no âmbito bilateral e no âmbito da ZOPACAS, tentando consolidá-la, apesar das dificuldades
apontadas.
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Para finalizar, gostaria de dizer que o mar continuará a ter um papel fundamental na
cooperação e no desenvolvimento da humanidade, mas, também, continuará sendo palco
de tensões e conflitos.