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A socíalidade da estrutura espacial da casa: processo histórico de diferenciação social por meio e através da habitação* Maria Inês Gasparetto HiguchV instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia Resumo Trata-se da análise2 do lugar de moradia, mais particularmente da casa, num bairro de baixa renda lo- calizado na periferia de Manaus, Brasil. A partir da observação par- ticipante é explorado o significado sociocuítural da casa compartilha- do entre os moradores desta comu- nidade. Verifica-se que a casa é concebida não apenas como íocus de relações de parentesco, mas tam- bém como expressão material de di- ferenciações sociais entre os mora- dores, tais como progresso, prestí- Abstract This paper discitsses the significance of the dwelling-pla- ce for people in a low-income neighborhood in Manaus, Brazií. Among local residents there is a sharcd socio-cultural meaning attached to their dweííings. Their houses are conceived of not only as the place where jkinship rela- tions take place but also as evi- dence of social rank, and perso- nal progress and prestige. It is also discussed the social proeess by means of which notions such * Socia/ lelaúons and physica) uspects of dweiiing-piaces 1 Psicóloga, doutora em Antropologia Social, pesquisadora do Núcleo de Ciências Humanas e Sociais. 2 O artigo aqui apresentado ó parte da tese de doutorado de Higuehi (1999). Revista dc Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC. n.33. p.49-70, abril de 2003

A Socialidade Da Estrutura Espacial Da Casa - Maria Higuchi

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Sobre arquitetura e diferenciação social em Manaus

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  • A socalidade da estrutura espacial da casa: processo histrico de diferenciao social por

    meio e atravs da habitao*

    Maria Ins Gasparetto HiguchV instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia

    Resumo

    Trata-se da anlise2 do lugar de moradia, mais particularmente da casa, num bairro de baixa renda localizado na periferia de Manaus, Brasil. A partir da observao participante explorado o significado sociocutural da casa compartilhado entre os moradores desta comunidade. Verifica-se que a casa concebida no apenas como ocus de relaes de parentesco, mas tambm como expresso material de diferenciaes sociais entre os moradores, tais como progresso, prest-

    Abstract

    This paper discitsses the significance of the dwelling-pla- ce for people in a low-income neighborhood in Manaus, Brazi. Among local residents there is a sharcd socio-cultural meaning attached to their dweings. Their houses are conceived of not only as the place where jkinship rela- tions take place but also as evi- dence of social rank, and perso- nal progress and prestige. It is also discussed the social proeess by means of which notions such

    * Socia/ lelaons and physica) uspects of dweiiing-piaces1 Psicloga, doutora em Antropologia Social, pesquisadora do Ncleo de Cincias Humanas e Sociais.2 O artigo aqui apresentado parte da tese de doutorado de Higuehi (1999).

    Revista dc C incias Hum anas, F lorianpolis: EDUFSC. n.33. p.49-70, abril de 2003

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    gio e carter pessoal. Discute-se tambm o processo de construo social, e como noes de renda familiar, ocupao e escolarizao so incorporadas s idias de diferenciao social tendo a casa como objeto mediador e sinalizador dessas relaes. Em termos gerais esse estudo contribui com a viso de que a construo do espao residencial est intrinsecamente associada s relaes sociais constitudas historicamente, e com elementos metodolgicos que podem enriquecer uma investigao cuja nfase seja a compreenso dos processos soci- oculturais subjacentes espacia- 1 idade em Manaus.

    Palavras-chave: Habitao, sociabilidade, tempo.

    as family income, occupation and degree of education are associ- ated to the idea of social rank; the house where one lives is both a means to and a sign of such relationships. G enerally spe- aking, this paper aims at contri- buting to understand the view according to which dwellings are closely associated to social rela- tions that take place throughout history, in addition to a discussi- on about questions of method, which may contribute to an in- quiry about socio-cultural processes related to the use of dwe- Uing areas in the city of Manaus.

    Keywords: Dwelling, social rela- tions, time.

    A cada instante existe mais do que a vista alcana, mais do que o ouvido pode ouvir, uma composio ou um cenrio espera de ser analisado. Nada se conhece em si prprio, mas em relao ao seu meio ambiente, cadeia precedente de acontecimentos, recordao de experincias passadas. Kevin Lynch

    O significado da casa e do morar

    A casa tem historicamente permitido uma variedade de imagens e significados, seja ela entendida como uma construo especfica que serve de abrigo, seja como uma imagem de um espao simblico de pertencimento social, de intimidade e segurana.

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    Na Psicologia a casa vista como lar, ou seja, um espao fundamental de nossas vidas, que nos proporciona segurana fsica, psquieae social. Segundo Gunter (2000), casa d muito mais do que um lugar de moradia. A casa um ugar onde desenvolvemos grandes projetos, os quais esto associados a um alto significado social e s necessidades de nosso ego. Alm disso, nesse espao que garantimos a necessidade vital da manuteno do espao pessoal, dimenso crucial para o fortalecimento de nossa existncia (FISCHER, s/d).

    Na Antropologia a casa tem emergido como uma categoria central para a compreenso das prticas sociais em diferentes grupos societais. Em se tratando de uma categoria analtica, a casa nos oferece pontos de referncia importantes, pois , tanto nas sociedades tradicionais como nas sociedades industriais modernas, manifestao material de concepes de mundo. Essas concepes que envolvem a casa tm sido estudadas em diversas abordagens epistemolgicas. Por exemplo, Lvi- Strauss, ao escrever sobre as sociedades de casas (1983, p. 163-87), estimulou muitos estudos nessa direo. No caso particular de Lvi- Strauss, seu interesse se limitou busca de um entendimento das relaes de parentesco entre grupos distintos:'Usando tanto a Etnografia Comparada quanto a Histria, Lvi-Strauss reanalisou a organizao social de grupos societais distintos, como os arborgenes Kiwakiutl, os nobres da Europa Medieval e japoneses feudais, e descobriu que havia algo em comum entre eles, ou seja, as instituies chamadas casas. As casas no significavam construes, mas configuraes centrais da organizao social desses grupos. Lvi-Strauss definiu assim casa como uma pessoa moral ou um corpo social constitudo, o qual se perpetua no tempo, e cuja continuidade se expressa numa linguagem de parentesco, seja por consanginidade, seja por alianas. Nesses termos, casa manifesta princpios organizacionais que juntam valores econmicos e polticos, at ento vistos como irreconciliveis, numa anlise das relaes de parentesco.

    Mais recentemente, Carsten e Hugh-Jones (1995), embora aceitando os argumentos propostos por Lvi-Strauss, sugeriram uma forma alternativa de entendimento da casa. Esses autores afirmam que casa deve ser vista no apenas como um aspecto-chave para os estudos das relaes de parentesco ou economia poltica, mas como uma totalidade, a partir dos significados que as pessoas do a ela.

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    Nas palavras de Carsten e Hugh-Jones (1995, p.21)

    [...] [a]s relaes entre a construo [prdioJ e o grupo so multifacetadas e contextualmente determinadas. Sendo assim , a casa se manifesta num idioma complexo aos grupos sociais, podendo ser tanto um veculo natural de hierarquia quanto uma fon te de poder simblico , inseparvel da construo do prdio em si.

    A partir desses argumentos estrutura fsica da casa, esto os processos socioculturais que deram origem sua construo, de tal forma que no possvel separar os aspectos materiais dos no materiais, pois um est contido no outro.

    Estudos fenomenologicamente orientados tm sistematicamente criticado a viso positivista, que v na casa apenas um objeto inanimado, sustentando que a casa tem uma voz e uma alma (BACHBLARD, 1994; BUTTIMER, 1980). Seguindo as formulaes de Merleau-Pon- ty, Lang (1992, p.201) sugeriu que o centro principal da habitao humana a casa, pois por meio da casa que seus ocupantes falam aos que esto fora dela, tal como o corpo, de modo que suas identidades pessoais e experincias vividas se tornam visveis e expressivas, portanto comunicadas numa linguagem compreendida pelo grupo (BOURDIEU, 1990). Outros estudos tambm apontam analogias da casa corrio corpo, o qual funciona como uma manifestao concreta da pessoa a partir das experincias vividas, mesmo sendo distintas entre homens e mulheres (VASCONCELOS, 2000).

    Associados um ao outro, tanto fisicamente como conceitualmente, casa e corpo tm sido reconhecidos como uma privilegiada unidade de mtua implicao, usando as palavras de Jager (1992, p.2I5). Para Jager, existe ainda uma outra unidade, a trade casa-corpo-cidade que ocupa simultaneamente espao e tempo. Jager afirma que:

    E som ente como seres habitantes que ns te mos acesso ao mundo. A casa, corpo e cidade so lugares onde ns nascem os e renascem os e de onde ns samos para o mundo afora. ( ...)

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    Se nos perguntarmos o que significa habitar ou existir no mundo, ns podemos nos deparar com o que Merleau-Ponty nos descreve como mistrio central do corpo, de que ele pertence ao que visvel e pode ser visto, e ao mesmo tempo ele permanece como a fonte da viso (Ibid., 1992, p.215-218).

    Para Jager, a casa , portanto, como o corpo, uma estrutura material que cria domiclio e moldura, uma infinidade de motivos para que a pessoa se sinta em casa. Ingold (1995, p.60), assegura que a vida um processo cuja forma gerada e desenvolvida num local. Isto posto, um local de moradia, seja o corpo, seja a casa, a cidade ou a Terra, somente se toma casa, pelo fato de se estar vivendo nele. Em outras palavras, atribumos a condio de casa a partir da efetiva ocupao e das experincias vivenciadas nesse ambiente desde seu planejamento. Ingold argumenta ainda que, considerando que as aes humanas so intencionalmente motivadas, as pessoas simplesmente no constroem casas, ao contrrio, as casas so feitas atravs de escolhas e decises autoconscientes, propriedades estas que, em ultima instncia, distinguem pessoas de animais. Tal construo tem incio com a escolha de um territrio, o qual tambm usado como locus simblico, onde ocorrem especficas relaes sociais (VASCONCELOS, 2000).

    H, portanto, um consenso entre muitos pesquisadores de que a casa no simplesmente uma extenso da pessoa, mas, como Blier (1987, p.2) nos alerta, a casa tem vida, a qual se manifesta justamente por incorporar histrias de vida de seus ocupantes. Isto pode ser exemplificado por meio das descries de Maurice Bloch (1995), que estudou as prticas sociais do povo Zafimaniry de Madagascar. Bloch mostrou que a casa Zafimani- ry cresce e se fortalece junto com seus ocupantes, numa histria de impressionante similitude material e simblica do desenvolvimento do casal que a iniciou, e depois com os filhos dessa unio.

    A casa , a partir dessa perspectiva, locus para uma grande variedade de significados, que fornecem pessoa uma leitura do mundo (CARSTEN e HUGH-JONES, 1995, p.3), alm de se consolidar tambm como estrutura geradora de outras estruturas de mundo (BOUR- D1EU, 1977, p.89). Assim, os significados dados pelas pessoas s suas prticas dirias esto inevitavelmente materializados nas casas, as quais, por sua vez, servem como aspectos mnemnicos para entender esse mesmo mundo ao seu redor.

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    Numa perspectiva relativamente diferente, a casa pode conter domnios especficos que so governados por uma grande variedade de comportamentos socioculturais. Gilberto Freyre, por exemplo, defendeu que as casas incorporam especficas ideologias regionais e nacionais em termos de status social (FREYRE [1936] 1967, [1946] 1964). Freyre utilizou os termos casa grande e senzala como espaos e lugares de oposio que expressam divises sociais das pessoas na histria da escravatura, patronagem e patriarcalsmo do sistema poltico brasileiro centrado em pessoas e famlias no perodo da colonizao. No sistema patriarcal casa grande traduzia o espao e lugar dos coronis, os patres, pessoas poderosas que comandavam a vida da senzala. A casa grande era, portanto, o centro do poder e o topo da hierarquia social, enquanto a senzala estava sua margem, servindo s necessidades do patro. Num gritante contraste histria da casa grande, que caracterizava um espao rgido e fechado, a senzala se configurava como um espao relativamente aberto e democrtico.

    No Brasil republicano moderno esses espaos sociais foram remodelando-se em domnios espaciais que podem ser equiparados com o da casa e o da rua, nos quais as prticas dirias se distinguem. Esses espaos competitivos, embora relativamente inconciliveis, coexistem e muitas vezes reafirmam ou contradizem um ao outro. Da- Matta (1985), analisando esse fenmeno, nos mostrou a dinmica da oposio existente nesses dois domnios espaciais, o da casa e o da rua. Segundo DaMatta, cada um desses espaos se caracteriza como locus de distintos padres de comportamentos e moralidade. Por exemplo, casa evoca um espao de privacidade e intimidade em contraste com o espao pblico e impessoal da rua. Em cada um desses espaos a cidadania se exprime diferentemente. No caso da casa, a pessoa incorpora um estado de supercidado, cujo direito perptuo e inalienvel foi conquistado com o nascimento, por meio das relaes de parentesco e de gnero. J no espao da rua a pessoa incorpora um status de subcdado, ordinrio e despossudo de voz e direitos individuais (1985, p. 16). Estes espaos, embora dem a impresso de serem rgidos, t.m fronteiras permeveis. Nesse sentido, o espao da casa pode incluir prticas pblicas, tanto quanto a rua integrar atividades privadas. As fronteiras podem, portanto, serem estendidas ou reduzidas de acordo com as circunstncias e convenincias.

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    DaMatta argumenta que os significados atribudos casa e rua s podem ser inteiramente definidos a partir do contexto social em que elas existem, cujo entendimento deve incluir toda essa complexidade que de forma nenhuma linear, pois h uma vasta rede de conexes que colaboram para compor um determinado significado.

    Nessa perspectiva, espao e lugar, como categorias analticas, so claramente distanciados das clssicas proposies tericas e empricas fundamentadas em dualismos como sujeito-objeto, material-sim- blico, estrutura-processo, e assim por diante. Tal paradigma esconde um genuno entendimento do processo pelo qual cada um de ns, em qualquer tempo ou lugar, um ser nico e produto emergente de nossas relaes sociais com outros (TOREN, 1999, p. 4-5). Na proposio de Toren, um lugar um meio pelo qual comunicamos uns aos outros nossos valores e significados sobre o mundo em que vivemos. Inerentes materialidade do lugar esto os significados no materiais, e o que simblico inevitavelmente tem implicaes materiais. Por conseguinte, a compreenso desses aspectos materiais e no materiais subjacentes ao espao e lugar est sempre mediada pelas relaes existentes com outros (Ibid., 1999, p.). Toren argumenta brilhantemente que o significado do lugar e do espao, nos termos em que as pessoas manifestam suas relaes sociais, requer um entendimento de que material e simblico, objeto e sujeito, estrutura e processo so aspectos um do outro, ao invs .de fenmenos separados e dialeticamente relacionados (TOREN, 1990,1993).

    Assim, uma anlise etnogrfica do processo pelo qual as pessoas articulam suas idias e prticas pode ser til para tentar compreender concepes de mundo que as pessoas consideram significantes. No se trata simplesmente de identificar at que ponto diferentes construc- tos so parceiros na produo de idias ou prticas vigentes, as quais so tidas como bvias numa coletividade, mas sim de analisar como especficas relaes sociais tm historicamente informado as idias que as pessoas possuem sobre um determinado espao e ugar. Ao realizarmos um estudo com essas caractersticas estaremos garantindo uma compreenso mais abrangente do fenmeno em questo. Tem- se, portanto, implicaes especficas ao adotar-se tal perspectiva usan- do-se mtodos qualitativos, pois estes permitem uma investigao dos significados atribudos aos lugares, por meio dos quais as pessoas manifestam suas relaes sociais.

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    Nesse artigo se apresenta parte dos resultados obtidos no trabalho de doutoramento da autora (HIGUCHI, 1999), tendo a etnografia como mtodo principal de anlise, realizado numa comunidade localizada na zona leste de Manaus, Amazonas. Esta comunidade, que aqui identificada ficticiamente pelo nome de Vila do Sol, se caracteriza por uma rea relativamente pequena: 25 hectares num permetro de dois quilmetros. Com uma populao em tomo de cinco mil habitantes3, pode-se dizer que se trata de uma rea bastante congestionada, especialmente em comparao com outras reas da cidade com alta densidade demogrfica. Os moradores, em sua grande maioria, so desempregados ou atuantes no mercado informal, oriundos do interior do Estado do Amazonas, do Par e do Nordeste. Vila do Sol foi criada em fins de 1980, seguindo uma forma de ocupao tpica das grandes cidades, chamada de invaso.

    Geograficamente Vila do Sol pode ser descrita como uma rea composta de dois morros e um pequeno vale onde se concentram as atividades comerciais do bairro. A vista do alto dos morros, por onde se entra na comunidade, de uma infinidade de casas, parecendo que foram construdas umas no topo das outras. De forma geral, o bairro parece um grande canteiro de obras, principalmente pela constante atividade de construo.

    A transformao social da casa em Vila do Sol

    Em Vila do Sol as casas no so vistas apenas como um lugar para morar, lugar de segurana ou como locus das relaes de parentesco, mas tambm uma forma de diferenciao social entre os moradores. Casas, para os adultos, so objetos materiais de status social, progresso e prestgio. O estado em que se encontra a casa e as modificaes feitas nela desde a criao do bairro so fatores cruciais que distinguem os residentes uns dos outros. Ao fazer estas distines entre si os moradores levam em conta a histria da ocupao da terra e as transformaes da localidade de invaso para bairro. O presente status de bairro , em parte, uma conquista que as pessoas atribuem justamente pela forma em que se encontram as casas e seu melhoramento desde a invaso. Os moradores.da Vila do Sol, de uma forma ou de outra, situam- se nesta dimenso temporal ao considerar o estado em que a casa se encontra, e assim medir o quanto cada um dos moradores progrediu desde os primeiros momentos de fixao na localidade.3 N o h d ados o fic ia is espec ficos desta populao . E ste nm ero re su ltad o de censo

    rea lizado na rea pela autora.

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    Com poucas excees, os moradores atuais iniciaram sua moradia na rea em condies similares, ou seja, vivendo em modestas casas de madeira. Este fato dava quelas pessoas, naquele momento, um status social homogneo. Com o passar do tempo, entretanto, muitos fizeram melhorias em suas casa, outros no. Muitos fixaram residncia na rea ocupada, outros mudaram para reas mais distantes da cidade. Os compradores dessas ltimas casas tambm comearam suas vidas no bairro, e, uma vez integrados naquele contexto social, passaram a ser submetidos por formas similares de transformao das residncias, caracterizada de pouquinho. Normalmente os moradores vo de pouquinho substituindo partes da casa de madeira por alvenaria, sem, contudo, modificar a rotina de quem nela habita. E nessa prtica de modificar a forma e trocar o material de construo da casa que seu ocupante est expressando aos demais moradores sua prpria transformao e ascenso social. O processo histrico em cujo eixo se fundem as relaes espaciais e relaes sociais pode ser visualizado na Figura l 4.

    Figura 1Representao do processo histrico de transformao

    socioespacial em Vila do Sol

    4 E squem a sugerido por M aria do Perptuo Socorro C haves. M estre em C incias Sociais, poca, bolsista PC l/C N Pq, a quem a autora agradece, in memumum. a contribuio.

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    Alguns moradores relembram que nos primeiros momentos da ocupao da rea a apropriao se deu por meio da demarcao de pequenos terrenos retangulares que foram limpos e identificados com quatro postes e as fitas que fechavam o cerco. Ali neste pedao de cho se construiu um barraco, garantia prtica de uma posse, uma vez que a simples colocao dos postes e fitas no significava a inteno de moradia. Segundo os moradores, o barraco expressava uma seriedade do ocupante de transformar a terra em lugar de moradia: Porque, se o cara s pe a fita l e no faz nada, no t com inteno de morar, quer mesmo invadir e fazer dinheiro com o terreno!. Esse barraco, no entanto, no deveria ser construdo com um tipo de material permanente, pois havia o risco de ser destrudo pela polcia, mesmo com toda a famlia dentro. Durante a fase da disputa pela terra, o ocupante tambm no deveria construir uma casa , {] porque isso a gente faz quando t mais seguro, n! , disse uma moradora. Assim, os barracos eram construdos com materiais alternativos, como tbuas velhas de construes ou papelo e embalagens plsticas. Entretanto, o barraco deveria ser apenas um abrigo temporrio, at que a ocupao fosse liberada. O fato de que o terreno ainda no estava pronto para morar resguardava o morador de construir uma casa , nas dimenses do termo que isso significava para estas pessoas.

    Quando finalmente a terra foi declarada liberada pela prefeitura que as casas comearam a ser construdas. A partir desse momento a situao exigia, segundo os moradores, uma casa e no mais um barraco, pois somente a casa estaria mostrando que o espao seria mesmo lugar de gente. Sendo assim, a construo da casa se tornava importante por vrias razes. Primeiro, representava a conquista de um sonho de ter uma casa prpria. Segundo, somente construindo uma casa o morador estaria garantindo, embora no de direito, a posse da terra. Terceiro, ao construir a casa, o proprietrio estaria demonstrando aos demais sua ilibada identidade pessoal.

    De qualquer maneira a construo de uma casa era esperada, no importasse o pouco ou nenhum dinheiro de que o ocupante dispunha. O que importava era que a casa tinha que ser erguida o mais breve possvel.

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    Assim, a falta de dinheiro para a compra dos materiais ou a contratao de ajudantes acabava por designar ao ocupante uma tarefa para si prprio, podendo contar apenas com suas habilidades e seu suor. A maioria dos ocupantes se classificava nessa situao, e por isso as construes que substituram os barracos foram pequenas e modestas casas de madeira. A preferncia quase que compulsria por esse tipo de casa se deu pelo fato de que [...] fazer a casa de madeira mais simples, no precisa contratar pedreiro, gasta menos e termina mais rpido , justificou um morador.

    A casa de madeira foi ento o primeiro estgio no processo residencial dos moradores e tambm o marco 2ero de homogeneidade de todos que l decidiram estabelecer moradia. Esse fato os tornava iguais, de modo que f .../ aqui era todo mundo do mesmo jeito: pobre!, disse uma moradora. Desse ponto em diante cada um dos moradores deveria, na concepo daquelas pessoas, progredir, avanar, umelhorar de vida. Em termos prticos, por um lado, a madeira usada depreciava-se muito rpido, uma vez que rmo era de boa qualidade. Por outro lado, a alta umidade prpria da Amaznia contribua na acelerao desse processo. Por isso, a casa precisava estar continuamente em reparos. A reforma mais completa, entretanto, estava fora de cogitaes, tanto por razes econmicas quanto por razes simblicas.

    M elhorar as condies da casa continua sendo uma preocupao constante e dever incontestvel entre os moradores, para assim demonstrar seu empenho para ascender socialmente. O cara precisa economizar, trabalhar mesmo, e pensar nas crianas..., esclareceu uma moradora. Em termos de material de construo, a troca da madeira por tijolo estaria trocando no apenas aquela casa em si, mas transformando tambm toda a localidade, tanto fsica quanto simbolicamente, A reforma das casas permitia uma transformao social tambm do bairro, considerando que as casas de alvenaria davam ao bairro uma visvel reputao no s para os vizinhos, mas tambm para outras pessoas de outros bairros. Nas palavras de um morador, {...] se um comprador vem por aqui dar uma olhada numa casa e v os vizinhos com casa de alvenaria, ele pensa - aqui mora gente civilizada! Isso aqui vira um bairro bom.

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    A diferena entre as pessoas bem de vida e os carentes , na linguagem dos moradores, passa a ser visvel pela melhoria da casa e pela durabilidade dos materiais empregados na construo. O progresso visto pela troca da madeira pelo tijolo, isto , do material orgnico ou efmero para o artificial e mais durvel. H um consenso entre os moradores de Vila do Sol que, aps passados dez anos desde a invaso , as casas de madeira feitas naquela poca j deveriam ter sido substitudas por alvenaria. Essa troca no mencionada apenas em termos de estrutura fsica, mas da necessidade de um progresso e melhoria das condies sociais do morador ao longo desses anos. Disse uma senhora; / . . . j ns temos que desenvolver, a gente tem que ter uma casa decente.

    Tanto a casa de madeira quanto a de alvenaria parecem seguir uma escala de valores a partir dos seus modelos arquitetnicos, os quais so claramente distinguidos pelos moradores como graus diferenciados de status social. Esta diviso social , em parte, determinada pelo tipo de material (madeira ou tijolo), pelo tamanho e pelo estilo da casa (ver Figura 2). No plo inferior est o mais simples modelo de casa de madeira, que consiste num formato retangular com telhado de meia-gua com piso levemen-, te elevado, permanecendo um espao debaixo da casa, usado normalmente para depsito ou abrigo de cachorro. Este tipo de casa lembra o modelo palafita, casa tpica do ribeirinho amaznico, construda nas margens de rios, igaraps ou ainda nos famosos bodozais (rea baixa sujeita a inundaes). Nestas reas a construo justificada como preveno nas situaes de chuvas abundantes ou cheias. No caso de Vila do Sol essa arquitetura vista como um meio de viabilizar um plano para a casa nas reas de maior inclinao. Algumas casas se sobressaem das anteriores pelo fato de terem o telhado de duas abas, considerado superior ao de meia-gua. Nessas casas o telhado geralmente feito com chapas de alumnio ou telhas de amianto, sendo que as de amianto so consideradas superiores s telhas de alumnio.

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    Figura 2Tipos arquitetnicos das casa em Vila do Sol.

    (a-c) casas de madeira; (d-e) casas de alvenaria com tijolo vista; (f) casa de alvenaria acabada; (g) casa de alvenaria com

    laje aparente; (h) casa de alvenaria com dois pavimentos.

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  • 62 A socialidade da estrutura espacial da casa

    Numa descrio simplificada, aparte frontal da casa usualmente o lado principal e, em muitos casos, a nica entrada. Nas casas em que h uma porta lateral ou nos fundos, esse acesso sempre pela cozinha e de uso exclusivo dos residentes ou pessoas mais ntimas dos moradores. Normalmente a casa de madeira tem janelas quadradas, enquanto nas de alvenaria predomina o tipo colonial, isto , com o lado superior em arco. O estilo colonial uma caracterstica marcante nas casas localizadas nos conjuntos, reas residenciais de classe mdia. Ao con ro das janelas das casas de madeira, as de alvenaria so protegidas por grades de ferro e com bandas de vidro. Uma casa de alvenaria cujas janelas sejam de madeira considerada pelos moradores de mau gosto ou brega.

    No plo superior deste continuum est a casa de alvenaria que tenha o maior nmero de andares. As casas de alvenaria no so propriamente diferentes das de madeira, considerando seu desenho arquitetnico. A casa de alvenaria , normalmente, construda em estgios, quando a de madeira j se encontra em estado depreciado. As casas de alvenaria mais simples em quase nada diferem das de madeira. No entanto, podem ser continuamente melhoradas e t.omarem-se extremamente diferentes das de madeira.

    Na Vila do Sol, entretanto, o fato de algum morar numa casa de alvenaria, no importa em que estgio esteja, proporciona um sentimento de satisfao, enquanto morar em casa de madeira pode trazer constrangimento ao morador e faz-lo evitar qualquer conversa que tome isso manifesto. Como Vila do Sol no mais invaso, mas bairro, h exigncias implcitas, conforme uns dos moradores comentou: {...] se a gente quer morar num lugar de bairro, a gente tem que ter uma casa me- Ihorzinha. Porm, nem todos os moradores esto transformando suas casas, e aqueles que ainda vivem nas casas de madeira so bastante criticados pelos demais e menosprezados por estarem nessa situao.

    De qualquer maneira, o constrangimento de ainda no morar numa casa de alvenaria, pode ser revertido at certo ponto, se em frente da casa estiverem estocados alguns materiais de construo. Isso deixa visveis as inUmes e os compromissos do morador, o qual est, de alguma forme avanando socialmente, e efetiva transformao se dar num fu' oximo. Esse compromisso medido pela quantidadee pelo tipc iteriais estocados na parte principal do terreno.

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    Apesar das constantes reclamaes de que esses materiais so rouba- dos, eles no so levados para um lugar mais seguro do terreno, pois o importante mant-los ao alcance da viso dos vizinhos e dos que transitam na rua para manter seu status. Em muitos casos, essa vontade e esse compromisso no vo alm da fase de estocagem, e com a deteriorao do material o status do morador tambm se deteriora.

    A visibilidade do material de construo funciona como um sinal de que uma casa de alvenaria est concretamente sendo planejada. interessante notar que, enquanto falam de suas conquistas sociais, como um bom trabalho ou a ascenso educacional, os moradores descrevem orgulhosamente o tipo de material que eles j compraram para a construo de suas casas, e reiteram que j vou tambm c o n s tr u ir Alm da idia de justificar seu carter pessoal de um bom pai, ou um marido que se preocupa com o bem-estar da famlia, este comportamento torna visvel um progresso social e conforma a noo intrnseca de pertena no espao social do bairro,

    A construo da casa de alvenaria pode, eventualmente, ser adiada por vrios anos, mas, uma vez iniciada, o status do morador fica consideravelmente aumentado. Longo adiamento, que transcende uma cronologia prpria estabelecida na dinmica interna do bairro, nem sempre depe contra o carter e a condio social do morador em questo. Algumas situaes, tais como problemas de sade, desemprego, famlia numerosa ou ausncia de um homem frente da famlia so consideradas justificativas vlidas no impedimento de tornar visvel sua responsabilidade pessoal de desenvolver e evoluir na vida, por meio da efetiva construo da casa de alvenaria.

    O tempo de construo tido como aceito no bairro depende da disponibilidade dos materiais e da vontade do morador, normalmente do homem da casa. Em termos prticos a casa comea a ser erguida pelas paredes externas circundando as paredes da casa de madeira j em estado lastimvel. Por um longo tempo as paredes de tijolo permanecem sem a camada final de cimento, e em alguns casos chega a cair pelo fato de esse acabamento demorar anos. Durante a realizao dessa pesquisa eram poucas as casas que j estavam acabadas. Poucos so os que conseguem, num curto espao de tempo, reformar e terminar a obra por completo. Quando isso acontecia era comum ouvir-se comentrios maliciosos de que algo estranho acontecia com aquele morador, pois:

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    Aqui no bairro todo mundo luta pra conseguir as coisas. Esse negcio de fazer a casa da noite para o dia meio suspeito. De onde esse cara tira o dinheiro? Se fosse doutor ou tivesse muito dinheiro mesmo, ele estaria morando num conjunto, no aqui no bairro...

    Para outros, ter dinheiro no necessariamente um critrio suficiente, pois se o cara um caboclo l do interior, sem estudo, n o vai se sen tir bem no m eio de gen te fin a , dos doutores. Nesse comentrio fica visvel a distino de escolaridade que inevitavelmente proporciona elementos para uma mobilidade vertical no continuum de diferenciao social. Embora a escolaridade alta no seja ma caracterstica dos moradores de Vila do Sol, ter estudo uma preocupao constante dos pais. Para os adultos a educao est na base do progresso econmico e do prestgio social. Sem estudo, insistem os pais e professores, as crianas no sero algum na vida e estaro destinadas a pegar no pesado , ficar com o pior dos empregos, com pouco dinheiro, sem chances de ter um lugar decente onde morar.

    Durante o processo dinmico de mobilidade social, algumas casas modestas foram vendidas paia pessoas de uma melhor situao econmica, que antes mesmo de entrarem na casa fazem algumas melhorias. Essas renovaes se tomam usualmente mais elaboradas do que aquelas j existentes nas casas de moradores de status elevado no bairro. Essa situao tem criado um desequilbrio nas relaes sociais vigentes entre os antigos moradores e o recm-chegado. O que acontece, na realidade, uma inverso das posies de status social entre essas pessoas, rebaixando o antigo morador de um lugar superior anteriormente garantido. Essa dinmica permanece ainda no estudada com profundidade, mas se caracteriza como mais um importante elemento para um melhor entendimento da dinmica das relaes comunitrias.

    A casa em Vila do Sol no se configura aqui como um objeto fixo, mas um processo social, ou, nos termos postos por Ingold: [...] [cjonstruir [uma moradiaj um processo contnuo, que dura o tempo que a pessoa efetivamente a habita (1995, p.78).Ter uma casa de alvenaria, entretanto, no garantia de obteno do mais alto grau hierrquico na comunidade. A maioria dos moradores continua a atribuir status diferenciado aos ocupantes a partir do tipo de arquitetura e o nmero de andares que a casa de alvenaria tem.

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    Quanto mais a casa de alvenaria estruturalmente melhorada, mais o status do morador evolu. Entre todas as modificaes possveis, ter uma casa com dois andares o desejo comum entre os moradores. Isto se inicia com a transformao do telhado. Embora a cobertura de chapas de alumnio ainda seja o telhado mais comum no bairro, um nmero cada vez mais significativo de casas comea a ter como cobertura a laje.

    Em termos prticos, a laje um ponto inicial para a extenso vertical da casa, uma vez que os terrenos so pequenos para permitir uma extenso horizontal. Os moradores sabem que para se ter uma laje necessrio que a casa tenha uma boa fundao, e que o morador tenha boas condies financeiras, pois depende de muito material e de um processo bastante trabalhoso. Construir, ou como os moradores dizem, assentar uma laje envolve no s o trabalho dos ocupantes, mas tambm de, pelo menos, um pedreiro experiente e muitos ajudantes. Na falta de dinheiro, os moradores estabeleceram o sistema de mutiro, processo de trabalho mtuo, no qual muitos homens se renem para a construo da laje, formando rodzio para que todos se beneficiem do trabalho em grupo. Nestas ocasies, que ocorrem normalmente nos fins de semana, o trabalho se torna um divertido encontro, nos quais os homens trabalham, as mulheres cozinham, e as crianas acompanham de perto qualquer atividade.

    Uma vez construda a laje, essa rea se torna um lugar de grande visibilidade e atividade dos ocupantes. na laje que as mulheres fazem questo de estender as melhores roupas e se reunirem para um churrasqunho em ocasies especiais. Pela ampla visibilidade, tambm neste espao que o morador estoca o material de construo, indicando os rumos da construo e de sua mobilidade social. As crianas, desde muito pequenas, tm verdadeira paixo pelas brincadeiras na laje, e seus pais raramente se preocupam com as possibilidades de queda ou riscos de ferimento nas pontiagudas barras de ferro que permanecem displicentemente em p nos cantos da laje. Na sala de aula contam alegres que a casa legal porque tem la je.

    As pessoas, de modo geral, se orgulham muito em poder dizer que moram numa casa que tem laje, Ter laje um sinal de riqueza e poder, e confere ao morador um lugar superior na hierarquia social do bairro,

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  • 66 A sociaUdade da estrutura espacial da casa

    e at fora dele. Os moradores comentam'. [.] o cara t bem de vida, tem uma casa com laje [.]. Ao explicar a conquista material da casa de alvenaria e cobertura de laje, uma moradora torna explcito o significado da escolaridade e ocupao de seu marido que permitiram tais condies:

    Meu marido tem um bom trabalho. Ele trabalha muito, no como esse povo a dessas casinhas de madeira caindo em pedao. Eles no querem saber de trabalhar, ficam s fazendo bico... nem se esforam pra por os filhos pra estudar... Eles to esperando as coisas cair do cu, no procuram trabalho... Ficam chorando misria. Tem que trabalhar muito, subir na vida, estudar e guardar dinheiro pra ter uma casinha boa. Sem trabalho, no tem dinheiro e no tem casa.

    Apesar de os residentes reafirmarem o ideal de terem uma casa de dois andares, poucos so os que, tendo construdo um segundo pavimento, fazem, dele uma extenso domiciliar. A maioria transforma essa expanso numa casa de aluguel, cuja renda revertida na manuteno dos proprietrios. Em alguns casos esses cmodos so temporariamente cedidos aos familiares, pais ou irmos, que no tm suas moradias prprias, independentemente deste fato, os proprietrios mantm um status relativamente superior por estarem morando em tal construo. De modo geral, esses moradores vivem um dilema ao chegar a essa posio. Por um lado, tm o respeito e o prestgio dos vizinhos, alm do conforto prprio da construo. Por outro lado, essa posio exige uma participao quase paternalista na vizinhana, E sempre a esses endereos de dois andares que os voluntrios das igrejas e escolas recorrem para vender as rifas, para solicitar doaes para suas festas comunitrias ou ajuda pessoal ao doente carente que precisa de medicamentos ou txi para o hospital. Alm desta solidariedade forada, os moradores de alvenaria se sentem discriminados no comrcio local. Se, por um lado, eles so beneficiados com o melhor das mercadorias, por outro, os preos so diferenciados, sendo sempre mais elevados do que para os demais. Os moradores de alvenaria que contratarem um tcnico para consertos domsticos, como bombeiro hidrulico ou eletricista, certamente tero que pagar mais, pois a idia que [...] esse pessoal t bem de vida

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    Ao colocar essa situao a moradora reafirma seu alto posto na hierarquia interna do bairro, mas deixa claro que isto no necessariamente uma posio confortvel:

    Tem gente que pensa que a gente m elhor do que os outros, cham am m eu m arido e c o ro n e l. Isso porque a gente aqui fo i a p r im eira casa de alvenaria. O pessoal pensa que a gente tem m uito d inheiro e iodas as coisas s p o r causa dessa casa. Tem gente toda hora batendo aqui pra g en te ajudar, em p resta r d in h e iro ...C h eg a a dar raiva. M as se no ajudar, o pessoa l f ic a fa la n d o ...

    Na Vila do Sol o estilo arquitetnico de uma casa de alvenaria com mais de um andar, no entanto, em pouco se parece com uma casa de conjunto5. Para ser uma casa que esteja dentro dos limites de aceitao da categoria bairro, ou, na melhor das hipteses, bairro bom, os moradores explicam que esse padro no se encaixa na classificao de manso, pois [...} isto muito pra quem mora aqui". Embora a classificao de uma casa de alvenaria como manso possa ser usada em conversas informais para designar uma salincia digna de observao,

    5 Para os m oradores de Vila do Sol, e de modo geral para os m oradores de outras reas da c idade, os locais de m oradia em M anaus so d esignados na p r tica por pelo m enos q u a tro catego rias: invaso , que seria um a c lass ificao espao-tem pora l, um a vez que um lugar s invaso ' tem porariam ente; bairro, que designa um lugar j estabelecido , n o m ead o , co n h ec id o no s p e lo s m o rad o re s , m as tam b m p o r o u ira s p e ss o a s da cidade. Na c lassificao de bairro h, por exem plo, um a escala em poral para d ife ren c ia r o an tig o do novo . um a e sca la va lo ra tiv a para d ife re n c ia r o bom do ru im , um a esca la c e n tro /p e rife ria para d ife ren c ia r o que d is tan te do que p rx im o, e o u tra s c la ss ific a e s co n stitu d as na pr tica , que em m uitos casos se opem c la ss ific a o fo rm al in s titu d a pe lo p o d e r p b lico . A te rc e ira c a teg o r ia a de c o n ju n to , a qu a l expressa um a form a diferenciada desde a instalao e ocupao da terra, O conjunto se carac te riza p rincipalm ente pelo espo de m oradia da c lasse m dia, cu ja d ife renc iao se d pelas diferenas na escolaridade, na educao e na ocupao (funcionrios pb licos e profissionais liberais, ou, com o so popularm ente cham ados nos bairros, dou to res). Os conjuntos foram criados em M anaus no final da dcada de 70 e se popularizaram na dcada de 80. M ais recentem ente, um a nova categoria em ergiu, a do condom nio , a qua l se co n fig u ra com o um espao re s trito s pesso as m ais in flu en te s e que possuem sa lin c ia po ltica e econm ica na cidade. Essas categorias no so necessariamente reconhecidas pelo poder pblico, mas cotidianam ente reafirm adas pelas pessoas. Em artigo complementar da mesma autora ser apresentado um estudo de aprofundamento desse fenm eno social (H iguchi, 1999).

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    uma manso de verdade, segundo os moradores, s existe em conjunto ou condomnio, espao residencial da classe mdia e mdia- alta, respectivamente, lugar onde mora u[....] o pessoal que tem estudo, grana e tem c l a s s e Percebe-se, a partir dessa idia, que manso envolve aspectos mais complexos do que simplesmente a construo fsica. A partir dessa diferenciao do local de moradia, das caractersticas do morador em termos de altos nveis de escolaridade e ocupaes de destaque, a casa fornece uma leitura tambm diferenciada. Os lugares tm seu significado e valor em funo do carter visvel ou no do que lhes atribudo. Trata-se, mais fundamentalmente, da relao pertena/no pertena proposta por Fischer (s/d), no qual certos lugares representam um espao possvel de enraizamento, do que fechado ou aberto para determinadas pessoas. Em outras palavras, h lugares certos para as pessoas certas.

    Consideraes finais

    A descrio acima nos mostra como os moradores de Vila do Sol encontraram na casa uma modalidade concreta de inscrio e leitura dos conceitos que tm sobre si mesmos e sobre os demais, onde eles se situam e como podem comparar suas posies no ranking social de sua comunidade com as dos outros. por meio da casa que as pessoas manifestam suas conquistas pessoais e sociais. A relao surge de processos complexos, nos quais intervm uma multiplicidade de fatores. Parte desse processo pode ser entendido ao analisar-se a histria da ocupao do bairro, cujo contexto socio- espacial forneceu condies nas quais a casa se tornou uma referncia central de diferenciao social. Uma histria que no de exclusividade desta comunidade, pois est, em primeira instncia, relacionada com a histria da ocupao urbana de Manaus e, em ltima instncia, com a colonizao e ocupao da Amaznia. O aspecto fsico da casa particularmente revelador de distines de seus ocupantes. A transformao da casa de madeira para alvenaria, de pequena para maior, de um para dois pavimentos, implica inevitavelmente a transformao social majorante dos residentes. Essas: desigualdades so obtidas numa ordem dual e hierrquica como forma de expressar caractersticas tais como bom/ruim, limpo/sujo,

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    bonito/feio, rico/pobre, trabalhador/preguioso, organizado/desorganizado, evoludo/atrasado, importante/insignificante, e assim por diante. Nos seus mltiplos significados a casa onde uma pessoa mora expressa atributos dessa mesma pessoa, que em Vila d Sol significa renda econmica, ocupao, nvel de escolaridade e carter pessoal.

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    E ndereo p a ra correspondncias:

    Maria Ins Gasparetto HiguchiCixa Postal 478,69011-970, Manaus-AM.

    (Recebido em setembro de 2002 e aceito para publicao em setembro de 2003)

    R evista de C incias Hum anas, Florianpolis: EDUFSC, n.33, p.49-70, abril de 2003