A teoria léxica de Mattoso Camara

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    A TEORIA LXICA DE MATTOSO CMARA

    Evandro Silva Martins*

    ABSTRACT: The aim of this article is to analyse the construction of

    Teoria da Anlise Lxica and some reflections proposed by Joaquim

    Mattoso Cmara Jr.

    0. Introduo

    Ningum fez tanto para os estudos lingsticos da Lngua Portuguesacomo Joaquim Mattoso Cmara Jnior. Basta passar os olhos pela obracompilada por Carlos Eduardo Falco Uchoa, intitulada Dispersos de JoaquimMattoso Cmara Jr. Nela, o autor ao longo de dezoito folhas fala dos estudos,da carreira de Mattoso Cmara e da vasta bibliografia deixada pelo saudosolingista. Desde o artigo Pequenas Lies de Portugus, publicado no Correioda Manh, em 25 de janeiro de 1934 at a edio do Estrutura da LnguaPortuguesa, Mattoso Cmara no passou um ano sem contribuir para o

    estudo da Lngua Portuguesa e da Lingstica, esta ainda incipiente no Brasilnos idos de quarenta. A sua obra Princpios de Lingstica Geral, que marcoua vida de muitos lingistas da atualidade foi publicado em 1942, numa pocaem que a cincia da linguagem nem era contemplada nos poucos cursosuniversitrios brasileiros, o que veio a ocorrer, apenas, em 1962, quando oConselho Federal de Educao estabeleceu a obrigatoriedade de se ministrara Lingstica em toda escola superior de Letras.

    Nosso artigo pretende analisar uma pequena obra Teoria da AnliseLxica, escrita para subsidiar alunos ingressantes no exame de admissoao curso ginasial e no curso normal. Esta obra mostra uma faceta pouco

    conhecida do velho mestre. Mattoso Cmara formou-se em 1927 emArquitetura pela Escola Nacional de Belas-Artes, concluiu o curso de Direitoem 1932, foi aprovado em concurso para o desenhista da Inspetoria de guase Esgotos, cargo que abandonou em 1937 para se dedicar exclusivamenteao magistrio, em que se iniciara em 1928.

    Mattoso Cmara iniciou sua vida profissional como professorsecundrio em concurso de Portugus para o ensino profissional da entoPrefeitura Municipal do Distrito Federal. Foi professor de Latim, de Portugus,em muitos colgios do Rio de Janeiro, e de expresso oral e escrita naEscola do Comando e Estado-Maior da Aeronutica. Dessas atividades

    * Professor da Universidade Federal de Uberlndia (UFU).

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    resultaram muitas obras completamente desconhecidas do alunado dosatuais cursos de Letras.

    Dentre outras, destaca-se a obra mencionada sobre a qual teceremosalguns comentrios.

    1. A organizao do livro

    Por se tratar de uma obra voltada para futuros ginasianos, o textose reveste de muita simplicidade. Diferente dos livros voltados para os estudoslingsticos que os alunos universitrios acham extremamente ridos, naobra em questo, Mattoso faz largo uso de exemplificaes, com exercciosde aplicaes e, vrias vezes, surpreendemos o autor recorrendo etimologia

    dos termos lingstico-gramaticais a fim de facilitar a compreenso do discentenefito.

    Como o ttulo diz a obra voltada para anlise lxica, no entanto,para ser didtico o autor divide o livro em duas partes. A primeira trata daanlise lxica dividida entre anlise gramatical e mrfica. A anlise gramatical,tambm chamada de anlise categrica, contemplar a anlise prosdica.Um maior espao caber anlise gramatical visto que a mesma trata dascategorias gramaticais do Portugus, ou seja, da classificao das palavrasvariveis e invariveis da lngua.

    Quanto anlise mrfica, sem abandonar um roteiro gramatical,Mattoso mostra como se faz uma anlise formal, levando-se em conta osentido.

    Vamos abordar, inicialmente, a anlise gramatical, nas vertenteslexicais e fonolgicas.

    2. A anlise gramatical

    De forma simples e didtica, Mattoso principia o texto dizendo quea anlise lxica se refere ao estudo das palavras que compem uma frase.

    chamada lxica por provir do grego lexis palavra.Entendendo por frase o conjunto de palavras organizadas que nos

    permitem a comunicao, as anlises possveis seriam quanto categoria:gramatical e a prosdica.

    De incio, abordemos a anlise prosdica. Mattoso trabalha com aanlise da silaba e do acento.

    Define as slabas, etimologicamente do grego syllab que estreunido, como unidades fnicas chamadas fonemas, do grego -phnemavoz emitida, subentenda-se indivsivel, classificados como vogais econsoantes. Os fonemas, na palavra escrita, apresentam-se por meio deletras e na fala por uma sucesso fnica.

    Para analisar o corpo silbico de uma palavra necessrio a)sabermos separar as slabas, reunindo-as s letras a que pertencem e b) o

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    nmero de vogais que o vocbulo tiver. Para separarmos estas slabas, dizele, preciso vencer alguns obstculos. O primeiro se d com as letras que

    s tm valor etimolgico como o grafema h. O segundo como os gruposconsonantais que ocorrem no interior de uma palavra escrita. Para estedesiderato ser necessrio conhecer as classes das plosivas, das cons-tritivas, das lquidas e das nasais do Portugus. No vamos tecer nenhumaconsiderao sobre este assunto por no apresentar nenhuma novidade. Oque chama a ateno a classificao do nmero de slabas por meio dasvogais que se encontram na base de cada slaba, mesmo que haja umavogal auxiliar (a vogal assilbica ou semivogal). Esta constatao mostraque a diviso silbica no deve seguir apenas a conveno proposta porformulrios ortogrficos.

    Terminando a anlise fnica, passa Mattoso Cmara para a anliseprosdica, ou seja, o acento. Vejamos a clareza meridiana do texto matto-siano: J sabemos que nas palavras h, em regra, uma vogal base de umaslaba, que pronunciada com grande intensidade, ou ACENTO. Essa vogal,bem como a slaba correspondente, chama-se ACENTUADA ou TNICA,do grego tnos, esforo, vigor (Mattoso, 1956, p. 12-13). Notamos aqui aidia de vogal ocupando a base da slaba e nela a fora entonacional quecaracteriza o acento. Consoante o que j afirmamos, interessante oscomentrios que o autor faz sobre as bases etimolgicas encontradias ao

    longo do texto. Alm de recuperar o sentido primitivo, de enriquecerlexicalmente o leitor, o consulente vai percebendo que o termo, muita vez,carrega em si o sentido. Isto facilmente comprovado ao explicar o que uma palavra oxtona, paroxtona e proparoxtona.

    Para o autor, a anlise prosdica leva em conta as slabas tonas ea tnicas. Estas podem ser oxtona, do grego oxysagudo e tnos vigor,graves ou paroxtona (aqui se acrescenta ao termo oxtono o prefixo gregopara significandoao lado) e as esdrxulas ou proparoxtona (ao termoparoxtono acrescentado o prefixo pr que vem, ou seja, que antecede oparoxtono. Digno de nota o termo esdrxulo tomado do italiano significando

    nesta lngua escorregadio, porque o enunciado escorrega depois da slabatnica por mais duas slabas.

    Embora se trate de um manual, Mattoso no se esquece da suacondio de lingista, pois acrescenta: A enunciao normal das palavras nafrase, quanto ao acento, pode ser alterada por duas maneiras excepcionaisde emisso de voz: 1) nfase; 2) prclise acidental. (Cmara Jr, 1956, p. 28)

    Contrariamente ao que se l nos manuais gramaticais, o autor entranum campo pouco explorado, ou seja, os valores fonoestilsticos da frase.Uma pronncia mais enftica como em Ele foi sem chapu? No, ele foicomchapu! alm de transformar um vocbulo tono em tnico, pode garantirat uma mudana de sentido.

    Por outro lado, a prclise acidental provoca o inverso. Uma slabatnica pronunciada sem relevo no conjunto oracional pode se transformar

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    em tona. O exemplo bastante ilustrativo: grande dor, tua dor, essa dor.No se pode olvidar que, por se tratar de um manual para uso de

    adolescente interessados em vestibular para o ingresso no curso ginasialou mesmo para o curso normal, para cada unidade ele insere exerccios deaplicao.

    Dentro ainda da anlise gramatical, Mattoso Cmara passa, agora, aabordar as categorias gramaticais. Explicando estas categorias diz que elasrepresentam o modo pelo qual a lngua exprime o que h no universo. Assim,uma anlise categrica consistiria em enumerar as categorias gramaticais,isto , a classe ou variaes de classe de variaes que ela apresenta na frase.

    Levando-se em conta o sentido, faz a clssica diviso das palavrasem variveis e invariveis. Estaro na classe das variveis o nome, o pronome

    e os verbos. J nesta poca assim como o far na obra Estrutura da LnguaPortuguesa, publicada vinte anos depois, Cmara Jr no segue a tradicionaldiviso proposta pela Nomenclatura Gramatical Brasileira, de 1958.

    Para ele, os nomes se dividem em substantivo e adjetivo. O primeiroindica os seres, reais ou imaginrios, e o segundo, as qualidades que seacham nos seres. Para a complicada questo dos substantivos concretos eabstratos, ele simplesmente conclui que os primeiros indicam seresindivduos ou partes do indivduos, enquanto os outros so os que apresentamqualidades ou atos considerados isoladamente. So abstratos porque

    abstramos dos seres as qualidades que percebemos. Chama tambm osnumerais de nomes, sejam cardinais ou ordinais.Quanto s variaes nominais, fala da categoria de nmero, de

    gnero e as de grau. Na obra, Mattoso Cmara no discute a possibilidadede grau no ser flexo. Entendemos que numa obra voltada para o ingressode alunos to jovens, isto no traria nada de novo.

    Quando se prope falar dos pronomes, menciona a existncia depronomes substantivos e adjetivos, j mostrando que esta classe tem funoanafrica e ditica. Antecipando o que far, posteriormente, na Estrutura daLngua Portuguesa, Mattoso Cmara coloca o artigo definido ou indefinido

    como um pronome adjetivo.Ao se referir classe verbal, prende-se aos padres da gramtica

    normativa. O autor, ento, se limita a mostrar os paradigmas verbais, semas primorosas contribuies hauridas no clssico artigo Para o estudodescritivo dos verbos irregulares, de 1966, e os captulos sobre o verbo,inseridas no seu primeiro livro de abordagem estruturalista de 1970.

    J as palavras invariveis, ele as coloca em dois grupos: o advrbioe os conectivos. Nas entrelinhas, ao falar do primeiro, ou seja, do advrbio,vislumbramos a idia dos advrbios de base nominal e os de base pronomi-nal, tese que defender anos depois.

    Os conectivos no ficam restritos apenas s conjunes. Encon-tramos neles as preposies, as locues prepositivas, as contraes, asconjunes e as locues conjuntivas. O que nos chama a ateno que

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    numa poca em que a grande preocupao era com a anlise sinttica,Mattoso Cmara, fugindo das questes meramente classificatrias to em

    moda, se preocupa com o problema da significao. Analisando as integrantesassevera que, por meio destas conjunes a orao subordinada completaro sentido da principal, sob pena dela ficar truncada. Mostra, ainda, quealgumas conjunes s se encaixam num tipo, mas outras mudam de grupoconforme a frase em que se encontrem. Vejamos o caso da conjuno comoque pode ser integrante no exemplo: (1) No sei como ele procedeu; Podeser causal em (2) Como estava cansado, no sa e, finalmente, comocomparativa em (3) Trabalhamos to bem como eles.

    Ao comentar as coordenativas, refere-se sua situao de copula-tivas ou aproximativas. Como copulativas, ligam as palavras, sobretudo a

    partcula tona e, como aproximativas, as oraes.No normal descrever as coordenadas como partculas tonas ou

    palavra com slaba tnica. Como partculas tonas temos a copulativa easdisjuntivas ou, neme a adversativa mas. Encontramos palavras como slabastnicas monossilbicas ou no: pois, porm, portanto, etc.

    Concernente s interjeies, nada notamos que merecesse umanota. Entretanto, insere um item muito importante: as palavras fora da suafuno. Aqui reflete sobre o problema da substantivao que qualquervocbulo assume conforme sua funo na frase. Desse modo, podemos

    encontram o advrbio no, a conjuno mas, a interjeio ai e o pronomepessoal eu como substantivo. Eis os exemplos:

    1. Terrvel palavra um no.

    2. Os tmidos a tudo respondem com um mas.

    3. Ela soltou um ai e desmaiou.

    4. O egosta s cuida do seu eu.

    Com um modelo de anlise gramatical, Mattoso Cmara encerraeste tipo de classificao e passa para a anlise mrfica.

    3. A anlise mrfica

    Vejamos a simplicidade da definio. A anlise mrfica consiste emseparar e classificar os elementos mrficos, quando os h.

    Ora, para ele temos palavras indivisveis como mar, faz, eu e maisque no se prestam anlise mrfica e as divisveis, compostas ou simples,que permitem a decomposio dos elementos mrficos. As simples s tmum radical e elementos que indicam categorias gramaticais e as compostasse distribuem em compostos por justaposio, compostos por aglutinaoe compostos por prefixao.

    Ao analisar o processo de justaposio, refere-se ao problema daacentuao como delimitador da existncia do vocbulo. Usa, inclusive, o

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    composto guarda-chuva, exemplo que ser empregado, tambm, na jmencionada obra de 1970.

    O autor desde essa poca aceita a prefixao como um processode composio. Para ele o prefixo introduz a idia contida na preposiocorrespondente. Claro que ele no faz meno ao pseudoprefixo que dsustentao a esta abordagem.

    Depois da classificao, parte para a decomposio do vocbulomrfico, esclarecendo ao discente a diferena entre o tema, a vogal temticae as palavras atemticas. Como novidade insiste na diferena entre sufixoflexional e sufixo lexical. O primeiro um elemento mrfico mnimo, indicadorde categorias como gnero, nmero e pessoa. O sufixo flexional umaflexo externa, mas pode ter uma flexo interna. Quando esta acontece h

    uma mudana da vogal tnica do radical. caso da metafonia ocorrida emovos do singular ovo, em que a abertura um trao flexivo. Este caso mostrauma contribuio quase nunca encontrada em textos gramaticais.

    O sufixo lexical, por sua vez, muda a espcie de palavra. o casode consolao, de consolar, saltitar, de saltar, marqus, de marco signifi-cando fronteira.

    Antes de dar os exerccios de aplicao que consistiram em textosliterrios, Cmara Jr, ainda, fala dos dois processos de formao de palavrasem Portugus, a parassntese, do grego -paridia de estar ao lado e

    sntese reunio. Deixaremos de comentar j que no houve qualquer novi-dade na colocao.

    4. Concluso

    A obra analisada, como vimos, traz, em alguns momentos, o lingistaque iria impulsionar os estudos lingsticos brasileiros. Conquanto se tratede uma obra escrita para alunos que se submeteriam a vestibular para teremacesso ao ginsio e ao ensino mdio, vez outra Mattoso Cmara pincela notexto contribuies que sero trabalhadas acuradamente em publicaes

    de sua lavra em anos porvindouros..Cremos que um estudo nos artigos, alguns hoje na Pontifcia

    Universidade Catlica de Petrpolis e outros perdidos em jornais, daria umapista para acompanharmos a trajetria do lingista Mattoso Cmara, cujocentenrio de nascimento a comunidade lingstica comemora em 2004 e adescoberta, como vimos, de embries que, mais tarde, transformar-se-iamem contribuies to importantes para a formao do universitrio brasileiro.

    Referncias bibl iogrficas

    CMARA JR, Joaquim Mattoso. Teoria da anlise lxica. Rio de Janeiro: s/ed. 1956.

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    Dispersos de J. Mattoso Cmara Jr(seleo e introduo por Carlos EduardoFalco Uchoa) Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1972.

    Princpios de lingstica geral. Rio de Janeiro: Livraria Acadmica, 1964.

    Estrutura da lngua portuguesa. Petrpolis, RJ: Vozes, 1970.