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67 Linguagem Acadêmica, Batatais, v. 1, n. 1, p. 67-96, jan./jun. 2011 A tradução do humor negro: as metáforas em Cyanide & Happiness 1 Resumo: Este artigo visa à discussão dos procedimentos e estratégias envolvidos na tradução da linguagem metafórica geradora de humor em webcomics de Cyanide & Hap- piness, publicados entre 2007 e 2010 e notórios entre os jovens em virtude de seu humor subversivo e politicamente incorreto. Este estudo adota a conceituação moderna de me- táfora, segundo a qual ela é um processo cognitivo que determina os modos como os indivíduos de determinada cultura pensam, agem e falam. A análise dos procedimentos e obstáculos enfrentados pela tradução nas tirinhas selecionadas é realizada à luz da teo- ria descritivista de van den Broeck e de seu modelo de tradução de metáforas. Os dados analisados apontam para a tendência da tradução literal mesmo em casos de incompati- bilidade cultural de conceitos metafóricos, por força do elemento imagético indisso- ciável. Em outra via, observa-se um exercício criativo por parte do tradutor no sentido de metaforizar situações que, no texto-fonte, não se orientam pelo sentido figurado, o que acentua não apenas o papel do tradutor na reprodução da tirinha, como também na recriação do efeito humorístico na cultura-alvo. Palavras-chave: Procedimento de tradução. Tradução de metáfora. Cultura. Humor negro. Tirinha de Cyanide & Happiness. Robson Falcheti Peixoto 2 1 Orientadora: Eliane Gurjão Silveira Alambert. Mestre em Linguística Aplicada pela PUC-SP. Docente do curso de Pós-graduação em Tradutores de Língua Inglesa. 2 Especialista em tradução em língua inglesa pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <[email protected]>.

A tradução do humor negro: as metáforas em Cyanide & Happiness1

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A tradução do humor negro: as metáforas em Cyanide & Happiness1

Resumo: Este artigo visa à discussão dos procedimentos e estratégias envolvidos na tradução da linguagem metafórica geradora de humor em webcomics de Cyanide & Hap-piness, publicados entre 2007 e 2010 e notórios entre os jovens em virtude de seu humor subversivo e politicamente incorreto. Este estudo adota a conceituação moderna de me-táfora, segundo a qual ela é um processo cognitivo que determina os modos como os indivíduos de determinada cultura pensam, agem e falam. A análise dos procedimentos e obstáculos enfrentados pela tradução nas tirinhas selecionadas é realizada à luz da teo-ria descritivista de van den Broeck e de seu modelo de tradução de metáforas. Os dados analisados apontam para a tendência da tradução literal mesmo em casos de incompati-bilidade cultural de conceitos metafóricos, por força do elemento imagético indisso-ciável. Em outra via, observa-se um exercício criativo por parte do tradutor no sentido de metaforizar situações que, no texto-fonte, não se orientam pelo sentido figurado, o que acentua não apenas o papel do tradutor na reprodução da tirinha, como também na recriação do efeito humorístico na cultura-alvo.

Palavras-chave: Procedimento de tradução. Tradução de metáfora. Cultura. Humor negro. Tirinha de Cyanide & Happiness.

Robson Falcheti Peixoto 2

1 Orientadora: Eliane Gurjão Silveira Alambert. Mestre em Linguística Aplicada pela PUC-SP. Docente do curso de Pós-graduação em Tradutores de Língua Inglesa.2 Especialista em tradução em língua inglesa pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail: <[email protected]>.

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1. INTRODUÇÃO

O Carteiro ingenuamente pergunta ao Poeta o que eram, afinal, aquelas tais metáforas a que ele tanto se referia em suas poesias. O Poeta, paciente, apresenta-lhe uma definição literal e bastante precisa, mas que confunde ainda mais os pensamentos do pobre Carteiro. O Poeta, então, lhe lança um desafio:

– Bem, quando você diz que o céu está chorando, o que é que você quer dizer com isso?

– Ora, fácil! Que está chovendo, ué! – Bem, isso é uma metáfora.

O Carteiro devolve ao Poeta um olhar admirado, como que se lhe houvesse descortinado um novo horizonte de sentidos.

– E por que se chama tão complicado, se é uma coisa tão fácil? – Porque os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou a com-

plexidade das coisas.

Essa cena do filme O Carteiro e o Poeta, sobre a vida do poeta chil-eno Pablo Neruda, traduz bem as dificuldades que muitas vezes se apre-sentam ao cotidiano dos profissionais que lidam com o texto. O Poeta parece acertar na afirmação de que “[...] os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou a complexidade das coisas”, o que constitui motivo de grande reflexão para quem busca a máxima precisão com a palavra. Se tais dificuldades já se revelam no contexto de um mesmo idioma, são ainda amplificadas quando se tem de lidar com a transferência de significados de uma língua para outra, notadamente em casos de tradução da linguagem metafórica, que tem sido motivo de preocupação entre os estudiosos da área (SCHÄFFNER, 2004).

A metáfora, sob a perspectiva adotada neste artigo, ultrapassa sua mera função de ornamento estético em textos literários e assume o posto cognitivo do qual orienta nosso modo de ver, pensar e agir no mundo,

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relacionando-se intimamente com nossas experiências pregressas e o nos-so dia a dia (LAKOFF; JOHNSON, 2002). Nesse sentido, tal enfoque ressalta, também, que os maiores desafios dos tradutores residem prin-cipalmente na expressão de abstrações e sentimentos, cuja tradução não se limita a retirar da algibeira um vocábulo que, em tese, “resolve” lexi-calmente um problema semântico. Nessa problemática, aliás, se insere o clássico exemplo da palavra “saudade”, que não apresenta correspondente lexical em outra língua e que encerra significados ainda mais extensos que o contido mesmo em estruturas desenvolvidas como “I miss you”, à semelhança do trabalho de um artista que, na falta do azul, mistura al-gumas cores da paleta para “chegar na cor”, nem sempre atingindo a per-feição. São tais a dificuldades linguísticas com que muitas vezes os tradu-tores se deparam. Ademais, “os valores de cada cultura poderão alterar os conceitos metafóricos e, consequentemente, as expressões linguísticas metafóricas geradas a partir destes poderão ter diferentes significações” (KOGLIN, 2006, p. 4).

Voltando ao nosso artista, é como se, embora vivesse a expressar na sua pintura, ao menos conscientemente, um estado de graça e felicidade através do azul, o pintor tivesse sido marcado, ao longo dos tempos e em uma determinada cultura, por uma imagem melancólica e soturna, visto que a sociedade então exposta à sua obra não compartilhava da mesma “paleta de sentimentos”, enxergando no azul traços de profunda tristeza e desalento. A cultura, portanto, na maioria das vezes “dá o tom” das sig-nificações que as pessoas fazem da vida e do mundo.

Tais subjetividades, porém, não devem, em princípio, contaminar o fim tradutório, embora possa contagiar seu processo – o que, aliás, justi-fica sua verve mais criativa do que técnica (a depender, claro, da natureza do texto). Os desafios impostos aos tradutores tratam justamente desse es-forço para contornar tais desvios de significado e interpretação, de modo a apresentar ao leitor da língua-alvo uma criação correspondente aos ob-jetivos da criação original. Ao artista cabe a expressão única e subjetiva de uma arte. Ao tradutor cabe a expressão o mais fiel possível da intenção do artista/autor, reproduzindo seu efeito e beleza. Em uma pintura, por

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exemplo, tais marcas são intraduzíveis1, e uma arte é o que é sejam lá quais forem os atributos que as pessoas lhe concedem através dos séculos. Em outras produções, notadamente de ordem humorística, nas quais por sua vez se desenrola a linguagem escrita – e muitas vezes, também, a visual –, é necessário que os tradutores tenham em mente a interferência da cultura-alvo nas significações dos elementos importados da cultura-fonte, tanto linguísticos quanto extralinguísticos. Essas criações, portanto, por mais artísticas sejam suas origens, carecem de um tratamento mais pragmático em sua modulação para outra língua, mesmo porque muitas delas visam atender a fins comerciais. É o caso das histórias em quadrinhos (comics), cuja presença da mensagem visual, em estreita sintonia com o material verbal, é apenas mais um obstáculo para o tradutor, que também deve enfrentar o maior deles: a reprodução do humor (KOGLIN, 2006).

Do universo das tiras em quadrinhos, desponta hoje uma categoria que movimenta o mundo virtual e atrai a atenção de milhões de inter-nautas em todo o mundo: os webcomics. Trata-se de publicações desti-nadas exclusivamente para a internet e que representam um tipo de hu-mor bastante peculiar, em geral vinculado a uma cultura de subversão de valores própria da sociedade da qual se origina (humor negro / humor underground). Nesse contexto, observa-se outro movimento bastante sig-nificativo que orienta os fãs de determinadas criações a se mobilizarem para traduzi-las e disponibilizá-las no ambiente on-line, fenômeno este que deve marcar a história da tradução, visto que os leitores entram publi-camente em discussões apaixonadas para defender ou criticar as traduções postadas, em um evento de troca incessante de informações e farpas.

1 Almeida (2004) apresenta três tipos de intraduzibilidade: a linguística, que se refere às incompatibilidades lexicais; a não linguística, que trata de vocábulos cujo significado não é exatamente o mesmo, embora seu léxico muitas vezes se assemelhe entre dois idiomas; e a circunstancial, situação na qual um fator externo impede a tradução adequada de determinado vocábulo ou expressão. Neste artigo, adota-se a compreensão de que a intraduzibilidade é uma característica comum a toda e qualquer ordem de expressão artística que não tenha por objetivo disseminar-se de acordo com a cultura em que se expõe, mas, sim, manter suas qualidades particulares e originais, a despeito de interpretações dissonantes que estas venham a receber. Por isso o exemplo da pintura como obra de arte intraduzível.

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Ressalta-se, também, que tais divergências são tão mais frequentes quanto maior a liberdade tomada pelo tradutor para adaptar o humor das tiras às significações e referências de sua própria cultura. Em tempos de tradução automática, e quase instantânea, o humor underground dos we-bcomics parece estar longe de entrar no rol das traduções mecanicamente satisfatórias, pois seu humor reside justamente na força metafórica – lin-guagem a qual a máquina ainda não domina com eficiência e precisão. So-bressaem, portanto, a importância do tradutor humano e suas estratégias de tradução.

No Brasil, o blog pioneiro nessa prática tradutória é o Cyanide & Happiness Traduzidos, que disponibiliza diariamente, em português, as tiras de Cyanide & Happiness (Cianureto & Felicidade, em tradução livre) originalmente publicadas em inglês no site Explosm. O C&HT foi eleito pela Editora Abril, em 2009, como um dos 10 Melhores WebComics da Internet.

Com vistas nessas especificidades, pretende-se neste artigo analisar os webcomics de Cyanide & Happiness, publicados entre agosto de 2007 e outubro de 2010 e selecionados a partir da existência de metáforas cujo sentido esteja atrelado ao contexto cultural da língua-fonte. Compreender, também, como o humor das tiras renasce na cultura que espontaneamente o adota e dissemina por meio das traduções, investigando, com vistas nos desafios linguísticos e culturais ilustrados, quais os procedimentos e es-tratégias mais recorrentes utilizados pelo(s) tradutor(es) dos quadrinhos selecionados e como se realizou a transferência de sentido e significado das metáforas geradoras de humor.

1.1 Metodologia

Após breve revisão bibliográfica sobre concepções de metáforas, será feita a seleção das tiras de Cyanide & Happiness em que seja observado o uso da linguagem metafórica, a fim de se analisarem as soluções encon-tradas pelo(s) tradutor(s) para a transferência do sentido e humor dos

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quadrinhos e defrontar tais soluções com o modelo de procedimentos de tradução de metáforas apresentado pela teoria descritivista de Van Den Broeck (1981).

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Concepção de metáforas

Se voltarmos ao exemplo de O Carteiro e o Poeta, perceberemos que a admiração daquele ao compreender a metáfora contida na sentença “o céu está chorando” muito tem a ver com a rápida associação que ele mesmo se torna capaz de efetuar entre a linguagem metafórica e o fenômeno ob-servável de seu cotidiano: “está chovendo”. Mas essa associação, ao longo da história, nem sempre foi clara. Tal perspectiva vai de encontro, por ex-emplo, à concepção aristotélica de metáfora, segundo a qual a linguagem figurada não beneficia a assimilação e compreensão de fatos novos – aliás, o filósofo chega mesmo a ressaltar que tal linguagem é de compreensão ainda mais complexa que a literal (KOGLIN, 2006).

Lakoff e Johnson (2002, p. 45), por sua vez, inauguraram, com o lan-çamento do livro Metaphors we live by, uma concepção de metáfora mais próxima da realidade e do uso cotidiano, afirmando que “nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos mas também agimos, é metafórico por natureza”. Nessa perspectiva, “a principal função da metáfora seria a compreensão” (KOGLIN, 2006, p. 4), o que parece coincidir, por exemplo, com o pensamento atual de muitos profissionais da área médica, que usam de metáforas para comunicar um diagnóstico complicado a seus pacientes (em que a série televisiva estadunidense House é um exemplo notável), e de alguns políticos, que simplificam metaforica-mente suas ações de governo para facilitar a assimilação de um eleitorado avesso a discursos rebuscados.

Quando a velha Rose, no filme Titanic, enuncia que O CORAÇÃO

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DE UMA MULHER É UM OCEANO DE SEGREDOS2, apresenta-nos uma metáfora conceptual que elucida sua própria experiência trágica e, ao narrar sua história para os jovens exploradores, é como se a person-agem se comportasse ela mesma como um oceano, vasto e misterioso, de cujas profundezas suas lembranças e emoções naufragadas como que viessem novamente à tona (grifos meus). A metáfora conceptual, assim, encerra indícios da atitude de seu enunciador (no caso, a britânica Rose) e articula expressões afins com o “universo oceânico” (naufragadas, pro-fundezas, viessem à tona) que facilitam o intento deste autor de partilhar, com os leitores deste artigo, a experiência de vida da personagem da refer-ida película, razão pela qual a metáfora constitui, segundo a visão cogni-tiva, forma de “compreender e experenciar uma coisa em termos de outra” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 47-48).

Segundo Schäffner (2004), dois termos essenciais compõem a me-táfora: o veículo e o tópico. O primeiro, conforme insinua sua designa-ção, é matéria pela qual se transportam atributos para o segundo. Simpli-ficando-se o exemplo de Titanic, na sentença MULHER É OCEANO configuram-se mulher como tópico e oceano como veículo, e apenas algu-mas características deste, como, por exemplo, sua imensidão e mistérios profundos, são transferidas ao tópico, enquanto outras são desprezadas (KOGLIN, 2006; OLIVEIRA, 2006), como, por exemplo, a matéria da qual o oceano é formado (águas salgadas) e seu uso para a navegação.

No exemplo supracitado, ocorre a estruturação do conceito mulher (compreendido, sobretudo, como o ideal feminino) em termos de oceano, razão pela qual esse exemplo se enquadra nas metáforas do tipo estrutur-ais (LAKOFF; JOHNSON, 2002). Além destas, os autores discriminam mais dois tipos de metáfora: as orientacionais e as ontológicas. As primei-ras não estruturam um conceito em termos de outro, e sim organizam um sistema de conceitos em relação a outro, baseando nossas experiências físicas e culturais em noções de orientação espacial, como em FELIZ É PARA CIMA / TRISTE É PARA BAIXO. Já as metáforas ontológicas

2 Lakoff e Johnson apresentam as metáforas conceituais em letras maiúsculas.

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são fruto de nossas experiências com objetos físicos, palpáveis, a partir dos quais podemos compreender coisas abstratas tais como entidades e sub-stâncias (MENTE É UMA MÁQUINA).

Além disso, segundo Koglin (2006, p. 4), “[...] os valores de uma cul-tura terão coerência com o conceito metafórico”, e os valores metafóricos, por sua vez, estarão vinculados à cultura do indivíduo, uma vez que sua aquisição é realizada ao longo da constante interação deste com os am-bientes físicos e culturais em que vive (OLIVEIRA, 2006). Para nativos de Portugal, ou mesmo para os demais falantes da língua portuguesa, por exemplo, comparar mulher a oceano pode evocar vozes históricas que transferem com mais força, do veículo ao tópico, um atributo que tenha sido inicialmente descartado em outra cultura. Em virtude dos versos do poeta Fernando Pessoa, pode-se ressaltar na mulher, antes dos “mistérios profundos” do oceano, o “sal” que este comporta, que são nele as próprias “lágrimas de Portugal” e, portanto, símbolo da angústia feminina (Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram [...] / Quantas noivas ficaram por casar). De modo semelhante, “[...] um dado conceito metafórico em uma determinada cultura pode apresentar ou não o mesmo sentido em outra” (KOGLIN, 2006, p. 4), situação esta que inviabiliza qualquer transferência coerente entre veículo e tópico.

Por essa razão, os tradutores são constantemente desafiados em sua prática cotidiana, pois sempre devem buscar essa coerência ao transpor-tar os sentidos culturalmente marcados no texto de partida. No caso dos quadrinhos de humor, esse desafio é ainda mais complexo, uma vez que, além do plano do conteúdo, o tradutor deve almejar, também, a re-produção do plano expressivo, isto é, o efeito cômico desejado.

2.2 Estratégias e desafios na tradução de metáforas

As metáforas representam dificuldades de tradução porque seu sig-nificado, muitas vezes, é intrínseco à cultura da qual se originam. Tendo-se

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em vista que “[...] todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem-se como práticas significantes, isto é, práti-cas de produção de linguagem e sentido” (SANTAELLA, 1983, p. 12), dimensiona-se o desafio imposto aos tradutores, em especial àqueles não familiarizados com a cultura em que a metáfora é usada (OLIVEIRA, 2006).

Segundo Venutti (1995 apud OLIVEIRA, 2006, p. 2773), “[...] o texto estrangeiro e a tradução são constituídos de materiais linguísticos e culturais diferentes”. É como se os tradutores, portanto, tivessem à mão ingredientes diferentes daqueles da receita original, mas precisassem im-primir ao novo preparo a mesma consistência, tempero e sabor. Longe, porém, de se buscarem receitas prontas, “[...] numerosos procedimentos de tradução foram sugeridos como soluções alternativas ao ideal de re-produção intacta da metáfora” (SCHÄFFNER, 2004).

Este artigo leva em conta, assim, o modelo de tradução de metáforas apresentado por Van Den Broeck (1981), o qual, contudo, não se pre-stará à prescrição de como as metáforas devem ser traduzidas, mas, sim, à descrição e explicação das soluções existentes para fazê-lo, razão pela qual tal teoria é chamada descritivista (KOGLIN, 2006). Adiante, as três pos-sibilidades descortinadas pelo autor:

• Tradução “stricto sensu”: trata-se da tradução literal, em que veículo e tópico coincidem no par de línguas envolvidas. Como exemplo, pode-se citar a expressão “money doesn’t grow on trees”, a qual equivale à tradução literal para o português: “dinheiro não cresce em árvores”.

• Substituição:ocorre, aqui, a substituiçãodoveículoentãousadona língua-fonte por outro de teor compatível na língua-alvo. Por exemplo, a expressão “on the nuts and bolts”, cuja tradução literal seria “com as porcas e parafusos”, encontra na língua portuguesa seu equivalente metafórico: “o feijão com arroz”, isto é, os detalhes práticos, os fundamentos.

• Paráfrase: interpreta-se a metáfora da língua-fonte e a traduzsegundo padrões não metafóricos na língua-alvo. Exemplificando, a ex-pressão “head and shoulders above”, literalmente “cabeça e ombros acima”,

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não se relaciona, na língua portuguesa, a qualquer expressão metafórica, razão por que, na maioria das vezes, ela é traduzida em sentido literal: “muito superior a”.

Sobre o último procedimento, é complexo, sobremaneira, fornecer seguramente um exemplo definitivo, pois, dada a riqueza da língua por-tuguesa e seu número de falantes, não seria de admirar que existisse (ou surgisse), em algum recanto qualquer dos países que partilham desse idi-oma, uma expressão metafórica equivalente a “head and shoulders above”, ou mesmo que vingasse, no decorrer do tempo, o uso literal do termo. Koglin (2006), em seu artigo, incorreu nessa “armadilha”, pois, ao exem-plificar a paráfrase de van den Broeck (1981), lançou mão da expressão metafórica “it’s raining cats and dogs” (“está chovendo gatos e cachorros”), para a qual afirmou não existir expressão com o mesmo sentido na língua portuguesa. Todavia, não são poucos os registros populares da expressão “está chovendo canivetes”, de mesmo sentido e aplicação, o que coloca em xeque a afirmação da autora. A tradução parafraseada, porém, pode ser in-dicada caso se considere o termo em desuso ou artificial para o contexto.

2.3 Os webcomics de Cyanide & Happiness

Criadas pelos americanos Kris Wilson, Rob DenBleyer, Matt Mel-vin e Dave McElfatrick, as tiras eletrônicas de Cyanide & Happiness des-pertam, desde sua estreia na internet, sentimentos controversos. Se, por um lado, seus personagens espantam pelos traços ingênuos, quase infantis – “bonequinhos de pau” (stick figures) –, por outro chocam ao desenro-larem historinhas de humor bastante ácido, buscando claramente o po-liticamente incorreto e o humor negro de situações e temas polêmicos. A vida de Jesus, o 11 de Setembro, câncer e pedofilia são apenas alguns dos assuntos explorados. Atualmente, sua página na internet (Explosm) recebe mais de 1 milhão de visitas diárias.

No Brasil, o blog pioneiro na tradução dos webcomics originais é o Cy-anide & Happiness Traduzidos, cuja tradução hoje está a cargo do baiano

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Luiz Phelippe Santos Magalhães. Em entrevista concedida por e-mail ao autor deste artigo, o tradutor confessou utilizar-se de tradutores on-line e recorrer a demais sites de referência, como o Urban Dictionary (http://www.urbandictionary.com), para pesquisas de expressões idiomáticas (idioms) e gírias (slang). Seu trabalho é prestigiado por uma média de 700 mil visitantes ao mês, muitos dos quais participam ativamente das atual-izações, seja elogiando ou sugerindo traduções alternativas às publicadas, em um fenômeno que justifica a fama dos quadrinhos e ampara estudos mais detalhados sobre as estratégias de tradução compartilhadas por esses jovens internautas, com vistas nos desafios linguísticos e culturais com os quais se defrontam.

2.4 As metáforas em Cyanide & Happiness Traduzidos3

Entre os webcomics selecionados a partir da existência de linguagem metafórica, publicados de agosto de 2007 a outubro de 2010, constatou-se que a estratégia mais utilizada para a tradução de metáforas foi a stricto sensu, como no exemplo a seguir:

3 Todas as imagens aqui utilizadas foram retiradas do site: <http://www.cyanidetraduzidos.com.br/>. Acesso em: 10 jul. 2010.

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Figura 1 – Tradução stricto sensu de metáfora ontológica.

Nessa tirinha, a opção pela tradução, em maior medida, literal induz à existência do compartilhamento cultural de uma metáfora ontológica que se pode elaborar como MENTE É UM EQUILIBRISTA, a qual constitui a personificação “[...] por meio da qual coisas abstratas tornam-se mais palpáveis e/ou perceptíveis” (KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 3). O humor decorre, porém, não da metáfora em si, mas do jogo estabelecido entre o real (o caso de um equilibrista suicida) e o ideal (equilibrista como sinônimo de sanidade, autocontrole, comedimento etc.), cujo mapeamen-to seletivo de propriedades resulta na palavra “desequilibrado”. Portanto, a transferência de sentidos para a cultura-alvo é bem-sucedida mantendo-se a noção de “equilíbrio”, uma vez que também compartilhamos da com-preensão de que a mente é uma entidade humana constantemente desa-fiada por situações capazes de desestabilizá-la, como na de um equilibrista “na corda bamba” à mercê, por exemplo, de um vento mais forte ou de um breve momento de desatenção. Na metáfora conceptual da tirinha, a figura do equilibrista é o veículo pelo qual se transfere ao tópico (no caso, a mente) essa capacidade de equilíbrio, e a piada decorre justamente da ruptura dessa suposta “harmonia”, uma vez que o suicídio do artista, na visão do personagem, constitui indicativo de desequilíbrio mental (no texto-fonte, embora se trate, em tradução mais exata, de “quimicamente desequilibrado”, termo que se refere a uma teoria bastante propalada, na cultura-fonte, acerca das causas químicas das doenças mentais, assume-se que tais substâncias em desacordo atuaram no cérebro do indivíduo,

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desequilibrando-o mentalmente, o que faz constituir a mesma metáfora conceptual). Por meio de um trocadilho “infame” que estabelece o para-doxo entre ser (“equilibrista”) e estar (“desequilibrado”), arremata-se o hu-mor, plenamente reproduzido pela tradução literal, embora tenha havido, como dito, um “ajuste” cultural por meio da substituição de “chemically” por “mentalmente”, de modo a se fazer uma referência mais exata, e mais culturalmente corriqueira, ao verdadeiro tópico da metáfora subenten-dida. Convém ressaltar que a fala do irmão do equilibrista, em resposta grosseira não somente à insensibilidade do amigo, como também ao lu-gar-comum do trocadilho, tem seu veículo alterado pela tradução (pro-cedimento de substituição), com sentido e força mantidos.

Outro caso bem-sucedido de tradução stricto sensu é apresentado a seguir.

Figura 2 – Tradução stricto sensu de metáfora ontológica.

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Nos Estados Unidos, Plenty of Fish é um popular site de relaciona-mentos que promove encontros amorosos, o que reforça a contextualiza-ção da metáfora na cultura da qual se origina a gag. No Brasil, por sua vez, não é raro se associar uma mulher atraente e voluptuosa a um “peixão”, de cuja comparação derivam expressões como “ela vai cair na minha rede”. Além disso, a expressão “o mar não está para peixe” é, também, bastante difundida entre os brasileiros, associando-se a situações em que são poucas as oportunidades ou os elementos de conquista e/ou sucesso. Portanto, é com eficiência que a metáfora “plenty of fish in the sea” é literalmente tra-duzida, isto é, tem tópico e veículo fielmente transpostos da cultura-fonte para a cultura-alvo, e a preexistência de metáforas envolvendo o mesmo universo semântico é a razão pela qual se compreende facilmente a metá-fora “o mar tá cheio de peixes”.

Na tirinha a seguir, é apresentado outro caso de tradução literal, ag-ora envolvendo uma metáfora orientacional.

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Figura 3 – Tradução stricto sensu de metáfora orientacional.

Nessa tirinha, a piada decorre justamente dos dois sentidos, conota-tivo e denotativo, da expressão “Está tudo direito”: está “tudo bem” com o personagem após o “acidente”, assim como ele, agora, só tem os membros direitos do corpo. As metáforas orientacionais que se podem inferir desse enunciado são tais como POSITIVO É DIREITO / NEGATIVO É ES-QUERDO, como em “Hoje acordei com o pé esquerdo”. Vale ressaltar que, segundo a perspectiva cognitivista, tais orientações metafóricas não são arbitrárias e têm como bases as experiências físicas e culturais dos in-divíduos (LAKOFF; JOHNSON, 2002) No último quadrinho, revela-se que o personagem chegou ao cúmulo de mutilar-se somente para justificar o uso ambivalente da expressão, cuja tradução literal remete aos mesmos significados na cultura-alvo, revelando-se, portanto, um sistema com-partilhado de valores.

Nem sempre, porém, essas significações foram satisfatoriamente re-produzidas por meio da tradução stricto sensu, justamente em razão da

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ausência de equivalente cultural e/ou da impossibilidade de substituição, como no caso mostrado a seguir:

Figura 4 – Tradução stricto sensu de metáfora incompatível.

Para o leitor não familiarizado com a cultura dos povos de língua inglesa, essa piada fica sem sentido. A expressão “find one’s sea legs” refere-se à situação em que a pessoa, em alto-mar, tenta recuperar-se das náuseas provocadas pelo balanço do navio. Aparentemente, não existe expressão equivalente em língua portuguesa, e o procedimento sugerido por van den Broeck (1981) para essa situação (a paráfrase) não resolve adequadamente o problema em questão, visto que o humor dessa tirinha reside justamente nos elementos contidos na expressão metafórica original: a pessoa que está observando o mar é aleijada e, ao ouvir a pergunta, volta-se ao interlocutor e ironiza melancolicamente a própria deficiência física, isto é, confirma estar procurando no mar as pernas “perdidas”. Desse modo, o efeito hu-morístico advém da [...]“tensão semântica manifestada entre os planos lit-eral e metafórico” (KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 9).

Um exemplo comentado anteriormente neste artigo também surge

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em uma das tirinhas de Cyanide & Happiness, ilustrando bem as limi-tações impostas pelo componente imagético às adaptações que buscam conservar o sentido e o humor.

Figura 5 – Tradução stricto sensu de metáfora.

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Como vimos, a expressão “está chovendo canivetes” serviria à substi-tuição dessa metáfora, porém os elementos pictóricos contidos na tirinha impedem essa troca. A metáfora é usada no sentido literal, e surpreen-dentemente ingênuo: a personagem apenas anuncia a seus interlocutores (cachorros e gatos) a condição do tempo. A vírgula é o elemento que des-constrói a metáfora original “it’s raining cats and dogs”, alterando seu sen-tido em um lance sutil de humor. Nesse caso, nada mais restou à tradução brasileira senão inserir uma nota explicativa.

Houve outros casos em que o tradutor, embora dispusesse de metá-foras equivalentes na cultura-alvo, viu-se obrigado a traduzir literalmente determinadas expressões, por força justamente da imagem. Por outro lado, ocorreram, em menor quantidade, substituições que deram conta de expressões em sentido figurado, e um fato a ser destacado é que quase sempre estas estavam desvinculadas ao entendimento direto da piada cen-tral, como a seguir:

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Figura 6 – Tradução por substituição de metáfora.

Nesse exemplo, além de “ugly as hell” ter sido traduzido, por substi-tuição, como “feia pra cacete”, a expressão “make sweet gross intercourse at you” foi substituída por “fazer um rala e rola com você”, gíria que também sugere, em língua portuguesa, atividade sexual, de modo que se manteve, na tirinha, o tom coloquial, mas não profundamente vulgar, do persona-gem masculino.

Algumas substituições de metáforas, em contrapartida, poderiam ter sido promovidas em prol de maior articulação do humor de determinadas tirinhas. O fato comum é que essas metáforas estavam, agora, associadas ao núcleo do humor, como na tirinha que segue:

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Figura 7 – Tradução stricto sensu de metáfora que poderia ter sido substituída.

O personagem dessa tirinha tenta, sem sucesso, fazer com que a esposa, pelo telefone, compreenda a mensagem literal contida em uma expressão metafórica, a fim de obter seu auxílio. O tradutor, em primeira análise, parece ter sido bem-sucedido na reprodução do sentido de “held up”, que pode ser tanto “assaltado” quanto “preso, obstruído”, porém o humor pode-ria ter sido amplificado caso ele tivesse optado por uma substituição mais ousada: o personagem poderia dizer, por exemplo, “Estou numa roubada aqui no trabalho”, que inclui uma expressão bastante comum entre os brasil-eiros, a qual, tomada em sentido literal, remete de modo mais objetivo à cena do segundo quadrinho; afinal, o que acontece ali é um roubo, e não propriamente a prisão do atendente de caixa. Além disso, tal escolha justi-ficaria melhor o assassinato do personagem, uma vez que seu atrevimento soaria ainda mais delator (embora a esposa não entendesse o apelo).

Quanto ao terceiro procedimento de tradução descrito por van den

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Broeck (1981), a paráfrase, não houve qualquer ocorrência identificada ao longo das tirinhas de Cyanide & Happiness. No entanto, outras estra-tégias não previstas pelo modelo de tradução de metáforas adotado foram levadas a cabo e produziram efeitos bastante interessantes e eficientes, como na tirinha adiante:

Figura 8 – Tradução geradora de metáfora não existente no texto-fonte.

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Além da sentença “Would you take a bullet for me?”, traduzida literal-mente e cujo sentido busca investigar os limites do amante para com o ser amado, constituindo caso em que “[...] a interpretação literal do enuncia-do metafórico contribui para a criação do efeito humorístico” (KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 6), a tirinha apresenta a construção “I think we should see other people”, que não indicia uma metáfora em especial e poderia, por-tanto, ter sido traduzida “ao pé da letra”. O tradutor, porém, a fim de ad-equar o discurso à cultura-alvo, na qual os rompimentos amorosos quase sempre são marcados por um “cuidado” muitas vezes excessivo e por uma cordialidade algo hipócrita, não raro conduzida por expressões figuradas e eufemísticas, preferiu lançar mão da fórmula “dar um tempo”, que encerra uma infinidade de significações que vão muito além de uma simples pausa na relação, mas perpassam, também, pela vontade do parceiro em sair com outras pessoas (na cultura brasileira, essa confissão soaria desajustada aos dizeres habituais dos namorados) ou mesmo pela realidade que tentam atenuar: eis o fim definitivo do relacionamento. Criando essa metáfora a partir de um discurso denotativo, o tradutor acentuou o caráter cultural brasileiro que evidencia o “cinismo” dessa situação típica, sustentando até mesmo o comportamento extremista, e deliciosamente “cômico”, do per-sonagem no último quadrinho, uma vez que ele é a catarse de todo o sen-timento represado pela “cordialidade” do abandono.

Esse recurso tradutório despontou outras vezes em que o tradutor buscou a inserção cultural, em mais um caso não previsto pelo modelo de Van Den Broeck (1981):

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Figura 9 – Tradução geradora de metáfora não existente no texto-fonte.

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Nessa tirinha, é eficiente a criação da metáfora “O último a chegar naquela árvore é mulher do padre” a partir de uma fala sem traços metafóri-cos (“Race you to that tree over there”), pois, no contexto da cultura-alvo, é corriqueira a linguagem mais descontraída em uma aposta realizada entre duas crianças. Não houve comprometimento algum do sentido, embora tenha sido criada uma imagem forte (a de um suposto padre) que não se vincula de maneira orgânica ao desenrolar da tirinha. Observou-se, ao longo da análise das tirinhas, que muitas “sacadas” de C&H consistem justamente na desconstrução de metáforas consagradas, e os elementos destas, muitas vezes, surgem fisicamente nos quadrinhos de modo a arre-matar a piada, reduzindo ou anulando todas as possibilidades de ambigui-dade (QUELLA-GUYOT, 1994 apud KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 9). Por isso, a tradução dessa tirinha, embora em princípio bem-sucedida, vai de encontro a essa “tradição” de C&H, pois a metáfora da “mulher do padre” evoca imagens fortes demais para serem usadas e não resgata-das posteriormente. Poder-se-ia imaginar no último quadrinho, em uma versão livre para tratar esse desvio, um padre correndo enquanto carrega sobre os ombros, com dificuldade, a árvore que as crianças estabeleceram como ponto de chegada, a fim de ele, padre, não ter como “mulher” um dos dois garotos.

Aliás, pensar na alteração da imagem, se antes era uma cogitação im-possível e vaga, hoje ganha contornos reais. Publicados no ambiente on-line e de arte assumidamente tosca, os webcomics de C&H parecem oferecer ainda mais essa condição, uma vez, ainda, que os próprios autores incenti-vam publicações de fãs. Esse incentivo parece ter levado o tradutor brasile-iro de C&H a sentir-se à vontade para proceder a uma interferência que não somente se restringiu ao campo textual, como também avançou sobre a arte do desenho original. Em uma das tirinhas analisadas, houve, para a adequa-ção da metáfora introduzida pelo tradutor, a modificação de um elemento próprio da cena, modificação esta quase imperceptível, mas que acena para as atuais “forças” do profissional de tradução, munido de softwares capazes de tais execuções, o que reacende, também, novas discussões acerca de ética e fidelidade à obra original, levando-se em conta, agora, as recentes modali-

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dades de publicação de quadrinhos. O caso será demonstrado na tirinha a seguir, na qual o tradutor, mediante uma solução bastante criativa na gera-ção de uma metáfora originalmente inexistente, viu-se obrigado a adaptar as peças do humor (e excluir uma) para sustentar sua versão:

Figura 10 – Tradução geradora de metáfora não existente no texto-fonte.

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Nessa tirinha, o personagem é indagado sobre seu “hobbie” [sic] mais radical, ao que responde “I like to lick stamps” (“Gosto de lamber selos”), o que corresponde a uma atividade bastante banal, causando estra-nheza ao amigo. Na sequência, o personagem demonstra o perigo de tal passatempo e descobre-se, assim, que os “stamps” na verdade são as “tamp stamps” (ou “tatuagens vagabundas”), que se tornaram populares nos Es-tados Unidos na década de 1990 e que, estampadas na altura do cóccix das mulheres, buscam simbolizar erotismo e atração sexual. Na tradução, por não haver, a princípio, qualquer outro item ordinário e/ou cotidiano que pudesse ser confundido, na cultura-alvo, com uma tatuagem, optou-se por descartar completamente a ideia da gravura corporal, substituin-do-a por uma ambiguidade de natureza metafórica, somente aplicável à cultura brasileira: “cofres”, no Brasil, podem ser tanto “caixas-fortes”, no seu sentido estrito, quanto a gíria (em geral no diminutivo, “cofrinhos”) que estabelece a semelhança entre o orifício pelo qual se inserem moed-inhas em cofres na forma de “porquinhos” e a região do corpo humano, entre as nádegas e a região pré-lombar, que se revela quando uma pessoa, vestindo calça de cós baixo, eventualmente se agacha, “pagando cofrinho”. Na tirinha, as personagens usam tais calças, e a língua do “aventureiro” se direciona para a região que tomamos por “cofrinho”. Por isso, é muito bem-sucedida a adaptação, reproduzindo-se um humor que, se por um lado não é fiel, por outro está à altura do original. O tradutor, como dito anteriormente, chega mesmo a apagar a tatuagem da terceira mocinha da fila, de modo a diminuir o “ruído” que a presença das gravuras causaria à sua recriação, uma vez que esta não necessita de tais elementos para a construção da metáfora e geração do humor.

3. CONCLUSÃO

Neste artigo, o humor negro das tirinhas de Cyanide & Happiness foi selecionado segundo um filtro metafórico que permitiu a visualiza-ção de duas ocorrências: a metáfora, na maior parte das vezes, constitui

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o elemento central do humor; e os elementos visuais da tirinha são quase indissociáveis dos enunciados verbais, levando-nos à interpretação literal da metáfora em um contexto inusitado.

Quanto aos procedimentos de tradução, não houve ocorrência de paráfrases, mesmo porque o humor das tirinhas tem o “[...] enunciado metafórico como frio condutor para sua criação” (KOGLIN; OLIVEI-RA, 2008, p. 9). Houve predominância, todavia, da tradução stricto sensu dos enunciados metafóricos, mesmo quando seus elementos constitutivos não coincidiam no par cultural, gerando, em alguns casos, ligeira ou total incompreensão. Entre as poucas ocorrências de substituição, destaca-se o fato de que estas não se associavam ao núcleo do qual se extraiu o maior efeito humorístico, e sim tangenciaram enunciados periféricos. Pode-se supor que algumas substituições, mesmo as que, em tese, eram possíveis, somente não foram executadas em virtude do elemento pictórico, sendo este comprometido com o desencadeamento da piada central.

Mesmo havendo essa restrição aparentemente incontornável, este estudo relata caso em que o tradutor arrumou meio de burlar o mate-rial visual, excluindo um elemento próprio da cena, a fim de amparar sua tradução. Esta, por sua vez, inovou também quanto à estratégia adotada, uma vez que, ao criar um conceito metafórico a partir de um enunciado originalmente literal, o tradutor ultrapassou a teoria descritivista de van den Broeck (1981), a qual não previa tal recurso. Outros casos dessa na-tureza foram observados, indiciando a grande versatilidade da prática tradutória diante de uma teoria que ainda não a esgota.

Para finalizar, vale recomendar ao tradutor que evite sempre a trans-posição forçada dos elementos metafóricos, pois esta pode aniquilar por completo a meta riso dos webcomics, e teste, antes, todas as possibilidades de substituição ou, em última instância, recorra à alternativa da paráfrase, levando-se em conta o enredo da tirinha e, sobretudo, fatos cotidianos e corriqueiros da cultura-alvo, os quais, a despeito das perdas inerentes a alguns aspectos linguísticos e/ou históricos, podem, por outro lado, fornecer material metafórico para reavivar ainda mais o sentido e humor originais.

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Title: The translation of black humor: the metaphors in Cyanide & HappinessAuthor: Robson Falcheti Peixoto

ABSTRACT: This article aims to discuss the procedures and strategies involved in trans-lating the language of metaphor in generating humor in Cyanide & Happiness webcom-ics, published between 2007 and 2010 and notorious among young people because of their subversive and politically incorrect humor. This study adopts the modern concep-tualization of metaphor, that it is a cognitive process that determines the ways in which individuals of a certain culture think, act and speak. The analysis of the procedures and obstacles faced by the translation is performed in accordance with the van den Broeck’s theory descriptivist and his model of translation of metaphors. Results point to a trend of literal translation even in cases of cultural incompatibility of metaphorical concepts, under imagery inseparable element. In the other hand, there is a creative exercise by the translation in sense of create metaphors in situations that are not guided by the figurative sense in the source text, which emphasizes not only the translator’s role in the reproduc-tion of the comic, but also in recreation of humorous effect in the target culture.Keywords: Translation procedure. Translation of metaphor. Culture. Black humor. Cyanide & Happiness Webcomic.