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Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas,ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina,18 e 19 de agosto de 2011. GT1 Gênero e Políticas Públicas Coordenadora Elaine Ferreira Galvão. A transformação como dever? As mulheres usuárias dos programas de proteção básica da assistência social na cidade de São Paulo Yumi Garcia dos Santos * Introdução Esta comunicação pretende apresentar parte dos resultados de um estudo etnográfico em curso junto às mulheres que participam de um programa assistencial do município de São Paulo denominado Programa Ação Família-PAF, realizado desde abril de 2010 no âmbito da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida como bolsista da FAPESP, no Centro de Estudos da Metrópole-CEM do CEBRAP. O PAF espelhou-se no modelo operacional do Programa Saúde da Família do Sistema Único de Saúde-SUS, que funciona por meio de equipes médicas hierarquizadas que realizam visitas domiciliares num território determinado pelo poder público ou entidade conveniada. No caso do setor da assistência via Programa Ação família-PAF, as equipes são formadas por técnicos como assistentes sociais, psicólogos e pedagogos e agentes de proteção social-APS, que seriam equivalentes aos ACSs. O Programa constitui em resposta encontrada pelo município de São Paulo para operacionalizar o Programa de Atendimento Integral a Família-PAIF, por meio da terceirização àsentidades sem fins lucrativos.O Programa atende as famílias por um período de dois anos, selecionadas a partir do cadastro inicial das famílias beneficiadas por programas de transferência de renda. Os usuários do PAF têm obrigação de participar nas reuniões socioeducativas organizadas mensalmente pelos APSs responsáveis. O objetivo dessas reuniões é “buscar novas alternativas de soluções dos problemas cotidianos” enfrentadas pelas famílias envolvidas, no sentido de contribuir para sua autonomia. * Pesquisadora pós-doutorado no Centro de Estudos da Metrópole-CEM/CEBRAP/FAPESP, São Paulo. Doutora em sociologia (Universidade de São Paulo e Paris 8-Saint Denis, França) cuja tese tratou sobre as mulheres chefes de família monoparental no Brasil, na França e no Japão. E-mail: [email protected].

A transformação como dever? As mulheres usuárias dos programas … · 2011-09-30 · As mulheres usuárias dos programas de proteção básica da ... que seriam equivalentes aos

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Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas,ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina,18 e 19 de agosto de 2011.

GT1 – Gênero e Políticas Públicas – Coordenadora Elaine Ferreira Galvão.

A transformação como dever? As mulheres usuárias dos programas de proteção básica da

assistência social na cidade de São Paulo

Yumi Garcia dos Santos*

Introdução

Esta comunicação pretende apresentar parte dos resultados de um estudo

etnográfico em curso junto às mulheres que participam de um programa assistencial do

município de São Paulo denominado Programa Ação Família-PAF, realizado desde abril de

2010 no âmbito da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida como bolsista da FAPESP, no

Centro de Estudos da Metrópole-CEM do CEBRAP.

O PAF espelhou-se no modelo operacional do Programa Saúde da Família

do Sistema Único de Saúde-SUS, que funciona por meio de equipes médicas hierarquizadas

que realizam visitas domiciliares num território determinado pelo poder público ou entidade

conveniada.

No caso do setor da assistência via Programa Ação família-PAF, as equipes

são formadas por técnicos como assistentes sociais, psicólogos e pedagogos e agentes de

proteção social-APS, que seriam equivalentes aos ACSs. O Programa constitui em resposta

encontrada pelo município de São Paulo para operacionalizar o Programa de Atendimento

Integral a Família-PAIF, por meio da terceirização àsentidades sem fins lucrativos.O

Programa atende as famílias por um período de dois anos, selecionadas a partir do cadastro

inicial das famílias beneficiadas por programas de transferência de renda. Os usuários do PAF

têm obrigação de participar nas reuniões socioeducativas organizadas mensalmente pelos

APSs responsáveis. O objetivo dessas reuniões é “buscar novas alternativas de soluções dos

problemas cotidianos” enfrentadas pelas famílias envolvidas, no sentido de contribuir para sua

autonomia.

* Pesquisadora pós-doutorado no Centro de Estudos da Metrópole-CEM/CEBRAP/FAPESP, São Paulo.

Doutora em sociologia (Universidade de São Paulo e Paris 8-Saint Denis, França) cuja tese tratou sobre as

mulheres chefes de família monoparental no Brasil, na França e no Japão. E-mail: [email protected].

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Nosso interesse e observação em campo voltam-se aos usuários - e mais

precisamente, às usuárias - do PAF desenvolvido por uma entidade de cunho religioso na

zona leste de São Paulo (região periférica com concentração de população classificada como

sendo de alta vulnerabilidade social). Não somente os APSs são em sua grande maioria

compostas por mulheres, comotambém são as mulheresusuárias na condição de mãeque

executam as orientações dadas pelos programas e serviços no sentido de fortalecer os vínculos

familiares e cumprir o dever parental de garantir o bem-estar da família. O mote desses

programas como muitos outros programas sociais recentes da América Latina é a

administração dos riscos pelos participantes por meio da "co-responsabilidade", onde as

famílias (ou seja, as mães) são estimuladas a participar ativamente para o seu próprio

desenvolvimento (MOLINEUX, 2006). Assim, o PAFfaz parte dos novos programas

sociais que, junto com os programas de transferência de renda, promovem a autonomização

da população pobre por meio de programas socioeducativos e de atendimento a domicílio,

funcionalizando a disposição feminina para a realização dos serviços, o que significa uma

forma de institucionalização da tradicional divisão sexual do trabalho. Dentro desse contexto

de transformação do social, porém com conotação fortemente sexuada nos moldes

tradicionais, como as mulheres usuárias de um programa assistencial dito inovador respondem

às exigências deste e, em última instância, o que fazem dele?

1. A política familiarista na atenção básica da assistência brasileira e o lugar da mulher

Quando nos referimos às políticas sociais brasileiras de modo geral e das

políticas no setor da assistência social mais especificamente, dois elementos fortemente

associadas à vida da população pobre serve de porta de entrada e elemento central para a

organização e gestão de tais assuntos: a família e a comunidade (MIOTO, 2010: 51; SARTI,

2010; SCOTT, 2005). Conforme o Sistema Único de Assistência Social - SUAS, os usuários

de programas voltados às famílias como o Programa Ação Família da cidade de São Paulo,por

exemplo, são alvo de serviços de Proteção Social Básica, que tem como objetivo principal o

fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, além do atendimento às pessoas com

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deficiência e aos idosos (Tipificação Nacional de Serviços Socio-assistenciais do MDS,

2009)1.

Perspectivas filosófica, histórica e sociológicadesenvolvidas por autores

francesesnos fazem nos dar conta da centralidade da família na formação do próprio

capitalismo moderno. Michel Foucault (2004: 194-195)afirma que a promoção da vida pela

prática coletiva da medicina (sem ser, conforme explica, uma intervenção única e uniforme do

Estado, mas sim a emergência em múltiplos pontos do corpo social) já vinha sendo preparada

a partir do século XVIII, época em que passou a privilegiar a saúde da criança por

intermediação das famílias. Passa-se a visar a população – principalmente os pobres - para

investir na sua utilidade (idem: 198). Jacques Donzelot (1977) mostra como as famílias

trabalhadoras passam a ser controladas por intermédio do desempenho das mães na execução

das políticas sanitárias. Assim, a maternidade é estrategicamente eleita como olocusdas

injunções morais na era da produção da vida iniciada no século XVIII, para responder ao

objetivo principal do poder político: a garantia da saúde e do bem-estar físico da população

em geral (FOUCAULT, 2004: 196).

Na nossa era contemporânea, em países em que o Estado do Bem-estar

social, como o Brasil e muitos outros países da América Latina que combinam com umgrau

limitado de política de bem-estar e os tradicionais mecanismos de ajuda, é pressuposto que a

família ocupe um papel central para a provisão do bem-estar, exercendo um papel paliativo

para as dificuldades econômicas (MIOTO, 2010). Mioto (Idem: 56-57) identifica o modelo

que pressupõe a participação ativa da família na operacionalização das políticas sociaiscomo

sendo de “tendência familista”, em contraponto às políticas de "tendência protetiva” onde os

indivíduos são protegidos pelo Estado (como encontrada em países da Europa no norte).

Não obstante, se a família tornou o centro do debate das políticas públicas,

sabemos também que a ela não é uma unidade homogênea sem diferentes interesses, operando

unicamente na lógica da solidariedade mecânica, muitas vezes conflitantes entre os membros.

Assim, o interesse do homem e da mulher é frequentemente divergente, dos adultos é

diferente do das crianças, dos idosos do dos demais, das mulheres da dos homens. Tomemos o

exemplo da violência doméstica. É dentro desses interesses conflitantes que a família vive o

1 Em contraponto, os serviços de Proteção Social de Média Complexidade atende os serviços especializados

voltados tanto para a família como os indivíduos, por exemplo adolescentes em liberdade assistida ou

pessoas/famílias em situação de rua. Já os serviços de Alta Complexidade compreendem os serviços de

acolhimento em abrigos, e apoio em situações de calamidades públicas e de emergência.

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cotidiano, ora cooperando, ora entrando em conflito (o que Sen (1991) chama de

cooperativeconflicts). E quando refere-se à família como elemento amortecedor das crises,

são as mulheres que em primeiro ligar são mobilizadas ou se mobilizam, direta ou

indiretamente, para dedicar-se à garantia dos cuidados dos membros da família.

Autores como Jenson (2011), Sarti (2010), Trad (2010), Molineux (2006),

Scott (2005), chamam a atenção para o utilitarismo de gênero na análise de diversos modelos

de execução das políticas sociais familiaristas na América Latina e no Brasil. Os programas e

serviços sociais implementados no século XXI - como, por exemplo, o Programa Puentes do

Chile e o Progresa/Oportunidades do México - têm as crianças como alvos dos benefícios pois

o objetivo é combater a pobreza intergeracional (MOLINEUX, 2006: 433; JENSON, 2011:

23). Assim, tal como acontece no Brasil com o PAIF e o programa Bolsa Família, a

participação é condicionada à presença escolar das crianças (pressupondo portanto a presença

de pelo menos uma criança na família) e é geralmente vinculada ao recebimento de programa

de transferência de renda. Embora não explícito, na prática é a mulher na condição de mãe

que executa as orientações dadas pelos programas e serviços para fortalecer os vínculos

familiares e cumprir o dever parental de garantir a educação e a saúde das crianças. Tais

obrigações são monitoradas e avaliadas pelos gestores por meio das visitas domiciliares e por

meio das participações nas oficinas e reuniões socioeducativas.

No interior do projeto de modernização da América Latinaque vai de par

com sua redemocratização, tais serviços pretendem fazer ruptura com as políticas

assistencialistas que viam os pobres como passivos, que caracterizaram os programas sociais

anteriores. O fundamento desses “novos” programas é a administração dos riscos pelos

participantes por meio da "co-responsabilidade", onde as famílias são estimuladas a participar

ativamente para o seu próprio desenvolvimento (MOLINEUX, Op. Cit.: 10) e assim,

transformar-se.

Podemos dizer que no Brasil, no Chile e no México, entre outros países da

América Latina, de modo tardio em relação aos países da Europa do oeste, os pobres passam a

ser alvo de uma análise de utilidade e de classificação moral2, tal como afirma Foucault

(2004: 196):

2 Em substituição a uma visão homogênea sobre os pobres, alvo de ações caritativas.

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(...) na atenuação lenta dos estatutos tradicionais, o pobre é um dos primeiros a

desaparecer e ceder lugar a toda uma série de distinções funcionais (os bons e os

maus pobres, os ociosos voluntários e os desempregados involuntários; aqueles que

podem fazer determinado trabalho e aqueles que não podem).

Oleitmotiv dos projetos sociais realizados pela organização conveniada pela

prefeitura que executa o Programa Ação Família na região da cidade de São Paulo onde

realizamos nossa pesquisa éconforme a tendência global paulatinamente instaurada no mundo

capitalista desde o século XIX e agora, nos países na América Latina. Tal como afirmou um

de seus dirigentes, o objetivo é a “promoção social, porque exatamente é essa a nossa

intenção que o nosso usuário saia do estágio de onde ele está para uma mudança, para uma

auto-gestão no sentido de ter autonomia. Então o nosso foco é dar subsídios a esse usuário

para conquistar essa meta.”

É dentro desse quadroempírico que apresentamos os casos mais

representativos da nossa amostra de usuários no bairro dormitório do município e atentamos à

sua tipificação.

2. As mulheres representantes das famílias cadastradas: quais "transformações"?

1) E., 41 anos, casada com três filhos, branca, jeito meigo quase tímido, é na

verdade uma mulher com ampla experiência em participações em diversas atividades na

esfera pública, desde movimentos populares até a organização coletiva de melhorias do

bairro, passando pelos cursos do SENAC (técnicas de venda e técnicas de secretariado) e

circulação nas instituições de saúde por causa da doença de seu filho. Ela é originária de

Cafarnaum, cidade do sertão da Bahia. Seus pais, que tinham 10 filhos, trabalhavam na roça,

depois tiveram uma casa na cidade, mas ambos morreram sucessivamente dentro de um ano

quando E. tinha entre 15 e 16 anos. Ela então passou a trabalhar em casa de família, ao

mesmo tempo em que estudava. Depois, com 18 anos, mudou-se para Brasília para trabalhar

para uma família conhecida de sua família. Após dois anos no D.F., mudou-se para São Paulo

para estar próxima de seus tios e seus dois irmãos, que já moravam na cidade. Foi aqui que E.

terminou seus estudos de segundo grau. Mas, "nada de ingressar em faculdade nem nada,

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porque naquela época era difícil". Em vez disso, E.fez parte da Federação das Mulheres

Paulistas e envolveu-se em política em torno de uma candidata. Era época do impeachment do

ex-presidente Collor, e chegou a ir à Brasília duas vezes como membro da Federação. Ainda

ligada a esse grupo, conseguiu um terreno, mas acabou perdendo a propriedade porque não

participou do mutirão, pois teve de se ausentar aos sábados por causa do trabalhode

recepcionista. Logo depois, E. conheceu o marido no bairro onde mora atualmente e se casou

"rapidinho", com 24 anos, e ele, 23, no civil e no religioso (ambos são católicos). Na época

ele trabalhava como entregador de gás. Ela deixou o emprego cinco meses depois do

nascimento de sua filha, por julgar ser melhor estar em casa cuidando de sua bebê. Quando

esta estava com três anos, nasceu sua segunda filha, e um ano depois, seu filho caçula. A

saúde frágil deste filho fez com queE. tenha que cuidar intensivamente dele, que tem

problemas respiratórios graves e ficou dependente de aparelho de oxigênio até os 7 anos. Com

isso, E. passou a conhecer profundamente as instituições de saúde da zona leste (UBS do

bairro, Hospital do Planalto, Hospital Santa Marcelina) e o pessoal que ali trabalhava, o que

foi vantagem pois seu filho era lembrado pela equipe médica em momentos de necessidade de

atendimento de urgência. Quem ajudou E. enquanto o filho devia se internar durante seis

meses foi sua sogra. Hoje é ela que cuida da sogra. Seus filhos têm atualmente 15, 11 e 9

anos.

E. é usuária do PAF há dois anos. Ela me foi apresentada pela APS

responsável (uma moça de 36 anos, mãe de dois filhos e estudante em serviços sociais), como

sendo uma usuária representativa das "boas usuárias".Mas E. se cobra por não participar mais

frequentemente das reuniões socioeducativas.E. se mostra familiarizada com os temas

tratados nessas reuniões pois, como consultora de uma empresa de cosméticos (vendedora a

domicílio), recebeu formação nesse sentido.

Essa ultima reunião que teve, era a consulta do M. aí eu mandei minha filha, e

minha filha falou que estavam falando de autoestima. Aí eu falei, autoestima, legal,

autoestima eu já resgatei essa autoestima desde quando eu entrei na X como

consultora, porque minha autoestima estava lá embaixo. (...) Estimula a gente

porque eles falam do bem estar bem, que é você estar bem consigo mesmo pra

depois estar bem com os outros. A gente ouve muito isso.

Da mesma forma, E. se vê como uma pessoa fortemente participativa nas

atividades da comunidade, da igreja, etc.. E. é uma usuária ideal do ponto de vista do

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programa – a “boa usuária”, pois ao mesmo tempo que tem um perfil de família frágil por

causa da baixa renda familiar e da doença do filho, ela adota como uma boa aluna a cartilha

do programa e transmite à comunidade como uma agente multiplicadora da educação

comunitária. Sua disposição para cumprir tal papel parece fazer parte da formação de sua

identidadena juventude, quando brotava sua consciência política.

2) H., mulher branca, vendedora de trufas, écasada, não tem filhos. Ela

conta que soube do PAF através da vizinha, que lhe disse que ela “também teria direito” de

participar. Chegou no bairro no início do ano, de Guarulhos, através de algum membro

distante da família do marido, porque não conseguiram mais pagar o aluguel. Seu marido é

também vendedor ambulante, de queijos e doces. Ele é mineiroe ela é Cearense que mora 7

anos em São Paulo. Os dois se conheceram e casaram na Igreja Universal. Segundo ela,eles

nunca brigam.Ela conta que antes não tinha uma vida sentimental, que era uma tristeza. “Em

cima da minha geladeira, tinha remédio para tudo.” Na percepção dela,a conversão religiosa e

casamento, assim como a paz do espírito vão juntos.

H. tem o segundo grau completo e um curso de informática. Além de vários

bicos, H.teve dois empregos com registro em carteira, como caixa e copeira numa

churrascaria e outros em lanchonete, durante 2 anos. Mas ela prefere “aprender algo para

fazer para mim”.

H.é uma usuária em processo de desligamento do programa, pois, de um

lado, a vida financeira do casal melhorou depois que conseguiu comprar um carro para o

marido (após vencer uma causa trabalhista na justiça), facilitando seus negócios. De outro,

constatou que o programa não oferece, como pensou no início, um ponto de venda para os

seus produtos, não vendo mais vantagens em continuar no programa. Assim, conta:

Na verdade, no início que eu iniciei era também receber essa ação família (Bolsa

Família) porque estava um pouco difícil pra gente mesmo, no início. Só que aí o que

aconteceu? O foco meu não era nem tanto isso, era mais sabe o que? Por causa que

lá dentro falava que você ir nessas reuniões você ia conseguir até um ponto pra você, supondo que amanhã você queira ter um ponto, não queira estar andando tanto

assim, eles podem facilitar pra você conseguir um ponto legalizado pra você

trabalhar. Lá também se você quiser aprender cursos têm também, eu foquei mais

nisso aí, não foi nem tanto a ajuda que vem do governo essa ação família porque é

isso aqui, é pouca coisa, fala a verdade, tira alguém da miséria? Não tira,

sinceramente falando não tira. Mas assim, às oportunidades que tinham, aí eu me

interessei. Mas, só que com o tempo foi muito cansativo, foram vindo tantas coisas

pra resolver, e outra que eu também, eu trabalho por conta, é do jeito que é, eu

dependo do tempo, volta e meia eu sempre preciso estar auxiliando, ajudando na

igreja onde eu vou, então foi muita carga, foi muita coisa pra uma pessoa só, eu

falei, quer saber? Não dá.

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Dessa forma, H. e seu marido melhoraram suas vidas graças às buscas

realizadas fora dos programas sociais, a religião servindo de alavanca para ter uma atitude

batalhadora.

3) M., 42 anos, tem dois filhos, um filho de 21 anos que já é casado e uma

filha de 17 anos que mora com ela. M. é magra e baixa, de mistura racial entre brancos, índios

e negros. Ela nasceu e viveu até os 14 anos em Monteiro, Paraíba, num sítio onde seus pais

trabalhavam. Ela é um dos quatro mais velhos filhos de seus pais, que tiveram ao todo 11

filhos. Como M. trabalhava na roça para ajudar os pais, parou de estudar na terceira série. Sua

vinda para São Paulo foi motivada por um trabalho arrumado por uma colega de sua mãe, que

procurava alguém para cuidar de uma criança (bebê). Cuidar de criança foi o único trabalho

dela depois que veio a São Paulo. M. é casada, mas fazem 20 anos que o marido passa mais

tempo for a de casa do que dentro. É pedreiro e permanece fora de casaentre duas semanas e

um mês. Depois, volta para ficar dois, três dias em casa, e sai de novo. Durante a breve

estadia do marido, tudo ocorre normalmente, ela lava e passa as roupas dele, faz comida,

dorme junto. Por causa dessa dinâmica conjugal, M. vive mais como mãe chefe de família

monoparental, mas ela não tinha nenhuma consciência disso até que sua filha respondeu ao

Censo que o chefe da família era a mãe. Foi uma grande surpresa para M..

M.e sua família moramno fundo de uma pequena vila, numa casa no térreo,

com apenas uma cozinha e um quarto com beliche (o conjunto não deve ter mais de 20m2, e a

cama de solteiro onde dorme M. fica em frente à porta de entrada, servindo também de sofá).

A vila situa-seao lado de um córrego, fazendo com que os moradores sofram inundações

dentro de casa. Ela quase nunca sai de casa, muito menos do bairro (algo que parece ser

bastante comum entre as donas de casa do bairro). Atualmente cuida de duas crianças em

tempo integral, de domingo a domingo no caso de uma delas. A menina, de 7 anos, quer

sempre dormir com a M. até sua mãe chegar. O esforço de M. é voltado para o investimento

na formação e no bom emprego da filha, além da satisfação de seus desejos como conseguir

um quarto para ela. Por isso, quando a APS responsável pela família de M.propôs para que a

filha fizesse curso de manicure,M. logo afirmou que não servia, pois um curso de manicure

não seriaexatamente um emprego.

M. é usuária do PAF há dois anos. O PAF para M. éum programa que traz

um certo conforto emocional através do qual ela sente ser cuidada. Mas não parece ser mais

do que isso, pois as propostas vindas do PAF não podem ser aproveitadas para um emprego

ideal para a filha. M. recebe programa de Renda Mínima pela filha, que ainda estuda.

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4) R., 28 anos, é em sua origem de Alagoas, mas mudou-se para São Paulo

com a família quando ainda era bebê. Cabelo preto e liso, pele morena, estatura baixa, um

pouco acima do peso para o padrão de beleza atual. Seu pai bebia, e a mãe trabalhava para

sustentar a família. Ela tem uma irmã gêmea que mora em frente à sua casa. R. tem três filhos,

cada criança com pai diferente (uma menina de 10 anos, um menino de 6 anos e uma menina

de 3 anos). R., que estudou até a terceira série, confecciona trufas para vender, e trabalha

também como manicure indo para as casas de clientes, graças à participação do curso

promovido pelo PAF. Ela mora há três anos com J., 32 anos, segurança numa loja de artigos

de esporte num shopping center, com carteira assinada. Ele é pai de sua caçula, e tem mais

dois filhos pré-adolescentes do casamento anterior, que vêm passar os finais de semana com o

pai. A casa, bastante precária no sentido de que a parede e o chão não são revestidos, com

uma laje na frente, pertence à família do companheiro, que não aceita muito bem R.. Seus

sogros moram na casa do lado, em melhores condições.R. se diz frustrada com tal condição

porque não se sente em casa, pois nada pode ser modificado. Ela gostaria também de abrir um

salão de beleza para atender suas clientes nas dependências da casa, mas não é permitido.

Seu companheiro, que participou da entrevista, se mostrou fortemente

"dominador", quando afirmou que ela poderia participar nos cursos do PAF somente depois

de ter cumprido todos os afazeres domésticos. No entanto, ele não é contra a inclusão da

família no programa, pois interpreta que foi graças a ele que a família passou a beneficiar do

Programa Bolsa Família. É interessante acrescentar que foi surpreendente verificar que a

divisão sexual do trabalho hierarquicamente desigual opera plenamente neste jovem casal. De

outro lado, R. é considerada pelos profissionais do PAF como mãe problemática por não

cuidar de sua filha maior de 10 anos, para agradar o marido, que dizem não gostarda menina.

O APS responsável critica R., dizendo que seria melhor que ela sejauma boa mãe do que uma

boa esposa. Esta filha, considerada "problemática" pela família, foi convocada para receber

uma orientação do psicólogo da unidade executora do PAF. R. também já recebeu uma

orientação por parte da equipe para ter uma atitude mais adequada como mãe.

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3. Uma análise a partir dos casos tipos

A partir dos relatos das mulheres entrevistadas, foi possível estabelecer uma

base para tipificação dasmulheres titulares do PAF à luz do objetivo traçado pelas instâncias

implementadoras das políticas assistenciais, desde o governo federal até a organização

conveniada: a transformação pela "autonomia e a auto-gestão". Tal tipificação faz-se no

intuito de contrastar o objetivo da transformação preconizado pelas políticas assistenciais do

município de São Paulo e os objetivos feministas de romper com a divisão sexual do trabalho

operadas nas políticas sociais familistas amplamente executadas na América Latina.

Assim, distinguimos as mulheres entrevistadas em multiplicadora, que

difunde os princípios do programa à comunidade e aos filhos (caso de E.); investidora, que

canaliza os benefícios do programa aos filhos (caso de M.); problemática, que não cumpre de

modo adequado as funções esperadas na divisão sexual do trabalho (caso de R.); oportunista,

que faz uso do programa para avaliar se lhe é útil ou não, descartando-o quando entende que

não é o caso (H.). Aprofundamos cada caso como segue.

Multiplicadora: E.é uma usuária modelo, "bem vista" pela APS responsável.

Ela emprega linguagens “de cidadania” semelhante ao do programa eé multiplicadora de seus

princípios morais na comunidade. Mas tal postura de E. é anterior à sua adesão ao PAF,

incorporado numa sucessão de experiências vividas na idade adulta, começando pela sua

participação política na juventude, passando pela experiência da doença de seu filho e o

emprego como consultora de uma empresa de cosméticos. Em relação a este último,

informações parecidas às que são passadas nas reuniões socioeducativas do PAF, como o

resgate da autoestima, a preocupação com o meioambiente, já haviam sido incorporadas3. O

PAF mantém usuárias com tais predisposições como aliadas para a aplicação de seus

princípios na comunidade alvo.

3 Tais temas condizem com o discurso da atualidade divulgado na mídia em geral, principalmente dirigido ao

público feminino de todas as classes sociais (valorização do feminidade, embelezamento por dentro e por fora

para aumentar a autoestima, ser informada, ser boa dona de casa e trabalhadora competente - uma associação da

cidadania com a beleza). Da mesma forma, dentro da perspectiva dos programas sociais, enquadra-se no projeto

global de investimento nas mulheres por uma via conservadora.

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Investidora: Já M. enquadra no perfil de mulheres pobres que são ideais

para o investimento na geração futura. De baixo nível escolar e dedicada a primeiro cuidar de

sua família e em seguida, de crianças como mãe crecheira, a vida de M. não parece mostrar

potencial de mudanças. Mas, sempre em casa e disposta a encontrar um bom emprego para

sua filha, está de acordo com o efeito do aproveitamento das mães subjacente no sistema

familiarista das políticas sociais atuais.Assim, adotando o discurso voluntarista fortemente

disseminada entre os profissionais doPAF, como “é só querer”, "tem que ter força de

vontade", M. representa de alguma forma uma agente multiplicadora, principalmente para a

geração dos filhos.

Problemática: R.é considerada uma usuáriaproblemática, sem perspectiva

de transformação a curto prazo, tal visão estendendo-se a todos os membros da família. No

entanto, R. participa das reuniões socioeducativas e do curso de manicure oferecido, a ponto

de passar a obter uma certa renda por meio do serviço de manicure, podendo ser elogiada por

cumprir os deveres do programa.Ao contrário, o esforço da equipe do PAF volta-se às

orientações educativas a R. - seu companheiro sendo isento dessa ação - e ao investimento às

crianças, oferecendo orientações especializadas e atribuindo um programa de transferência de

renda.

Oportunista: Por fim, H. desligou-se do programa pois não obtendo o

programa bolsa família como esperou, e entrando em conflito com suas atividades

profissional e religiosa, o PAF não era mais interessante. No caso dela, a religião, através da

qual diz ter conseguido se libertar de seus problemas, aparece como uma real solução para o

seu bem-estar, recusando uma postura que poderíamos chamar de "sujeição assistencial".

Nesse sentido sua atitude faz eco à tendência moral da auto-responsabilização, no entanto por

uma via religiosa, saindo do controle do Estado.

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Em guisa de conclusão

Como pudemos analisar com base na pesquisa de campo numa comunidade

atendida pelo Programa Ação Família na periferia de São Paulo, o objetivo da transformação

das políticas sociais de atendimento básico da cidade não implica em nenhuma ruptura com a

divisão sexual do trabalho, demonstrando um modelo estritamente conservador das ações

sociais. Pelo contrárioo PAF exige e reforça o arranjo conjugal conforme a divisão sexual do

trabalho. Assim, um interlocutor disponível durante o horário comercial é necessário para as

visitas domiciliares, e as reuniões socioeducativas e as oficinas são realizadas nos dias úteis e

às tardes. O programa reitera dessa forma o lugar feminino na esfera doméstica, efetivando a

instrumentalização da mulher no universo do social.

Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas,ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina,18 e 19 de agosto de 2011.

GT1 – Gênero e Políticas Públicas – Coordenadora Elaine Ferreira Galvão

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