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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º GRAU CANÓNICO) MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS 114111514 A TRINDADE: ACONTECIMENTO DE RELAÇÃO Uma leitura iconográfica da Filoxenia de Andre Rublev Trabalho de ESTÉTICA E TEOLOGIA LISBOA 2014

A Trindade de Rublev

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Trabalho para a disciplina de Estética e Teologia

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Page 1: A Trindade de Rublev

UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA

MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º GRAU CANÓNICO)

MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS 114111514

A TRINDADE: ACONTECIMENTO DE RELAÇÃO Uma leitura iconográfica da Filoxenia de Andre Rublev

Trabalho de ESTÉTICA E TEOLOGIA

LISBOA 2014

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ÍNDICE

Introdução .....................................................................................................................................4

Uma leitura iconográfica ..............................................................................................................6

Estrutura e movimento ............................................................................................................6

Símbolos e cores .......................................................................................................................7

A mesa do Sacrifício .............................................................................................................. 11

Um convite ............................................................................................................................. 12

Limites da representação de Rublev ....................................................................................... 14

Conclusão ................................................................................................................................... 15

Fontes .......................................................................................................................................... 17

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INTRODUÇÃO

O presente documento insere-se no âmbito da disciplina de Estética e Teologia, do

Mestrado Integrado em Teologia e pretende desenvolver uma leitura iconográfica do ícone

escrito por Andre Rublev a que se dão dois títulos – Hospitalidade (em grego: Filoxenia) ou

Trindade (em russo: Troitsa) – precisamente porque Rublev viu nos anjos que Abraão

recebeu em sua casa uma figura da Santíssima Trindade. A escolha deste ícone como ponto

de partida para o presente estudo tem dois motivos: a densidade espiritual e teológica que

reconhecemos no ícone e a oportunidade que significa de sintetizar esteticamente os

conhecimentos sobre a Trindade adquiridos no semestre corrente na disciplina de Mistério

de Deus e no seminário temático intitulado ‘Pensar e dizer a Trindade’.

Andre Rublev escreveu este ícone em Moscovo, cerca do ano de 1422, tendo como

objectivo que os homens, contemplando a comunhão divina, aprendessem a viver nesta

terra. A sua motivação prendeu-se também com a canonização de São Sérgio de Radonez,

cuja experiência mais relevante fora a contemplação mística do mistério da Trindade. O

ponto de partida bíblico foi Génesis 18, que relata o acolhimento generoso e dedicado do

Patriarca Abraão a três anjos peregrinos na sua tenda junto ao carvalho de Mambré.

Deste ícone da Trindade, porém, uma grande diversidade de interpretações

iconográficas é possível; podemos sistematizá-las em dois níveis: no primeiro, podem ver-

se simplesmente três anjos, pode identificar-se Cristo com dois anjos, ou pode reconhecer-

-se a Santíssima Trindade. No entanto, mesmo no interior deste primeiro nível, qualquer

que seja a interpretação, em todas se vê um cunho teológico-trinitário. Um segundo nível

interpretativo pode desenvolver-se depois de se admitir que estamos diante de uma figura

da Trindade, e prende-se essencialmente com a apropriação que se faz de cada uma das

figuras às pessoas divinas da Trindade. Pode reconhecer-se, da esquerda para a direita, o

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Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas também é possível identificar, na mesma direcção, o

Pai, o Espírito Santo e o Filho – como faz Gisbert Gershake – ou, ainda, o Espírito Santo,

o Pai e o Filho.

A interpretação que seguiremos corresponde ao primeiro caso: o Pai, o Filho e o

Espírito Santo, pelos motivos que indicaremos no desenvolvimento deste documento. No

entanto, é conveniente ter em conta que, apesar de toda a importância destas diferentes

leituras, todas elas tocam a essência do mistério Trinitário. E, ainda que escrita

artisticamente, fazem-no com a mesma linguagem com que a reflexão teológica do Oriente

e do Ocidente foi conceptualizando a Trindade. A Filoxenia de Rublev pretende escrever

um dogma – três hipóstases, uma essência – e é notável, por isso mesmo, o esforço da sua

expressão artística para abarcar o mistério a partir dos conceitos teológicos, mas também

transcendendo-os de um modo que só a Estética seria capaz.

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UMA LEITURA ICONOGRÁFICA

ESTRUTURA E MOVIMENTO

1. Tendo como pano de fundo denso de simbolismo o ambiente narrado em Génesis 18

– na parte superior podemos ver a tenda de Abraão, o carvalho de Mambré e a montanha –

, o ícone de Andre Rublev centra a atenção de quem o contempla num grande círculo em

que se inserem os três anjos com os quais pretende indicar as três pessoas da Trindade. O

estarem rigorosamente inseridos no círculo exprime a sua unidade e eternidade. Do mesmo

modo, é notório que a posição do anjo central se desenvolve sobre um eixo vertical, que

perpassa também o cálice sobre a mesa e o recorte que podemos ver na parte frontal da

mesma, o qual, segundo algumas interpretações que veremos adiante, se pode identificar

com uma reserva de relíquias dos mártires.

É evidente, por outro lado, o movimento circulante

da direita para a esquerda do ícone: os anjos do centro

e da direita inclinam-se na direcção do anjo da

esquerda, inclinação que é como que repetida pela

árvore e pela montanha no segundo plano da obra.

Por conseguinte, quem contempla um dos outros

anjos não consegue permanecer nele, sendo conduzido

às figura da esquerda. A cabeça inclinada e os olhos

fixos do anjo do centro levam-nos até ao anjo da esquerda, e a profunda inclinação e

atitude corporal do anjo da direita não induzem outro movimento. O anjo da esquerda, por

sua vez, induz para o anjo do centro, mas projecta-se sobretudo sobre a figura da direita, de

modo que qualquer que seja a figura que se tome como começo, é-se sempre introduzido

num movimento circular que não se detém e que remete para os restantes.

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2. Rublev, na realidade, foi capaz de fazer dos três personagens uma comunidade unida

e viva capaz de reflectir a realidade trinitária de Deus de tal modo que se tornou,

particularmente nas Igrejas do Oriente, a base fundamental para o tipo ortodoxo de

representar a Trindade. Com efeito, em comparação com representações como a de

Vallepietra, em que temos três figuras semelhantes que

nos olham de frente, conforme se pode ver na imagem

ao lado, o ícone de Rublev tem a vantagem de

conseguir expressar a vida da Trindade como

verdadeiro acontecimento de relação e comunhão.

E é a partir do movimento, como dizíamos, que podemos dar um primeiro passo

interpretativo, identificando o anjo da esquerda com o Pai, diante do qual, pela sua

anterioridade lógica, se inclinam o anjo do centro, que é o Filho, e o anjo da esquerda, i.e., o

Espírito Santo. Esta interpretação é totalmente discutível; porém, como referimos

anteriormente, aquilo que pretendemos demonstrar neste documento é simplesmente que

se trata de uma leitura iconográfica possível.

SÍMBOLOS E CORES

3. O ícone da Santíssima Trindade de Rublev está repleto de simbologia com um

significado teológico bastante rico. Na realidade, ele é a representação de um dogma: três

pessoas (três hipóstases) e uma essência; três pessoas consubstanciais que possuem a

absoluta distinção (não se confundem) e também a absoluta unidade. Na realidade, os três

são unos, não porque se confundam entre si, mas porque se contêm mutuamente. Com

efeito, de acodo com Santo Hilário de Poitiers, o mistério trinitário desenvolve-se a partir

das palavras de Jesus no Evangelho de João: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,

10). Para o bispo de Poitiers, na verdade, estas palavras dão a conhecer a inter-habitação

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das pessoas divinas – a pericorese. É esta noção que Rublev pretende representar. Com

efeito, mediante as relações recíprocas das três pessoas distintas que o ícone nos apresenta

tem-se a imagem da ‘comunhão’ no seu estado mais puro, que não anula a unidade nem a

igualdade das três pessoas. Com efeito, as três figuras do ícone de Rublev não são apenas

pessoas sentadas próximas umas das outras. Pelo movimento circular visível no olhar e nas

inclinações de cada figura, percebemos que elas constituem uma unidade, ainda mais

acentuada que a evidente distinção das figuras. As auréolas dos anjos repetem esta ideia,

remetendo para a Trindade que, “em três pessoas, é a única luz de três sóis”.

De igual modo, podemos ainda dizer que a unidade dos três é, no ícone em questão,

indicada sobretudo pela acção comum dos três anjos: a única bebida remete para a única

natureza de Deus, os semblantes, o modo de vestir e a atitude expressa no rosto de cada

um proclama que eles estão juntos e colaboram. Tudo isto corresponde aos

desenvolvimentos teológicos de Santo Agostinho1 , de acordo com o qual a Trindade

possui uma única e indivisível acção e uma única vontade. A sua operação é ‘inseparável’

porque as três pessoas actuam como um único princípio e, como as pessoas divinas são

inseparáveis, assim também operam inseparavelmente. Do mesmo modo, cada pessoa é

uma relação imutável e subsistente: ser Pai ou ser Filho não é algo que se diga do Pai ou do

Filho em relação a si mesmos, mas em relação um ao outro. E do mesmo modo, o Espírito

Santo diz-se do Pai e do Filho, o que remete para a noção de relação. No ícone, cada pessoa

está em relação com a outra, cada uma existe para a outra.

Do mesmo modo, podemos dizer, e.g., que a juventude dos rostos das figuras – não há

nenhum que pareça mais idoso ou mais jovem que um dos outros – pretende ilustrar a

eternidade de Deus. De facto, em Deus não há um antes nem há um depois, há um hoje

perene. Esta noção vem já desde São Gregório de Nazianzo, segundo o qual o Filho foi

gerado quando não foi gerado o Pai e a processão do Espírito se deu quando não se deu a

1 Cf. SANTO AGOSTINHO, De Trinitate, V.

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processão do Filho. São Gregório clarifica: a geração deu-se fora do tempo ou na esfera

supratemporal, porque se trata de seres eternos: “os seres dos quais procede o tempo não

podem estar submetidos ao tempo”2.

4. No ícone de Rublev, também as cores escolhidas têm um significado. Com efeito, o

cor--de-rosa dourado evoca o manto imperial, o verde aponta a vida, o encarnado remete

para o amor sacrificado. O azul, por sua vez, significa a divindade e as verdades eternas e é

por essa razão que está presente nas vestes de todos os anjos. O anjo da esquerda, no qual,

como dissemos anteriormente, reconhecemos o Pai, tem sobre a túnica azul o manto

imperial, que quase a cobre totalmente, pois “a Deus nunca ninguém o viu” (1 Jo 4, 12). O

edifício por cima deste anjo – que pode ser lido como a tenda de Abraão mas, ao mesmo

tempo, também como a ‘Casa do Pai’ – e o bordão de peregrino que carrega frisam a sua

verticalidade. O manto cor-de-rosa e dourado, cores aristocráticas, proclamam que é Ele a

origem da divindade e a nascente da vida. Com efeito, ainda que não se possa falar numa

geração corpórea ou temporal, o Pai é o ingénito donde o Filho e o Espírito procedem; o

Pai é a anterioridade lógica em Deus. A este propósito afirma o teólogo suíço Hans Urs

von Balthasar: “a fonta da divindade, que pode gerar a ‘Palavra’, o ‘Sentido’ na sua

incomensurável plenitude, não é certamente nem o silêncio (gnóstico) nem uma vontade

(idealista), mas antes um ‘Pai’ que, mesmo sendo invisível em si, se pode representar

verdadeiramente no ‘espelho’ e na ‘figura’ de seu Filho”3.

Assim, por sua vez, o Filho, que reconhecemos no anjo do centro, tem em azul o

manto, uma vez que Deus só no Filho se faz visível; com efeito, referindo-se ao Filho, diz-

nos São João: “a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-

vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós” (1 Jo 1, 2). Ele é, de

2 GREGORIO NACIANCENO, “Primer discurso sobre el Hijo,” in Los Cinco Discursos Teológicos (Madrid: Ciudad Nueva, 1995), 148 [tradução livre a partir da versão em castelhano]. 3 BALTHASAR, H.U. von, Teologica, vol. 2 (Madrid: Ed. Encontro, 1997), 150 [trad. livre do castelhano].

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facto, a Palavra do eterno Pai que saiu do Pai mas que a Ele se dirige em atitude de escuta e

de resposta. Do mesmo modo, o vermelho forte da túnica aponta-nos, simultaneamente, o

amor da sua disponibilidade obediente – “aparecendo como homem, humilhou-Se ainda

mais, obedecendo até à morte e morte de cruz” (Flp 2, 7-8) – e o assumir da carne e do

sangue do homem. Estes dois aspectos, na reflexão teológica como no ícone de Rublev,

não estão separados: é ainda Balthasar que nos faz ver que o Filho não é apenas um retrato

exterior do Pai, mas “deve expressar perfeitamente tanto a sua essência como o seu ser

pessoal, e, ademais, como já se disse, deve ser, enquanto imagem, arquétipo de tudo o que

o Deus trinitário pode decidir criar”4, tendo em conta que a ideia de que o Filho pode

encarnar estava já preparada “através do pensamento da disponibilidade do Logos para toda

a decisão criadora de Deus”5. A inclinação da cabeça e os olhos fixos do anjo do centro

outra coisa não indicam. Além disso, a árvore atrás de si evoca não só o Carvalho de

Mambré (cf. Gn 18), como nos recorda a Árvore da Vida, e a Árvore da Vida manifestou-

se na Cruz do Senhor, momento trinitário por excelência, onde tem o seu ponto

culminante a missão do Filho e onde se percebe igualmente a missão do Espírito.

Com efeito, na hora da morte, o Espírito no Filho é expirado e devolvido ao Pai para

que, na Páscoa, possa ser inspirado pela Igreja. Assim, no anjo da direita, em que podemos

reconhecer o Espírito Santo, a túnica azul, embora interior, está em evidência, porque a

missão do Espírito é a de “fazer compreender e recordar a Palavra” (1 Jo 14, 26). O seu

rosto exprime consolação e prontidão para colaborar; o verde do manto diz-nos da sua

acção que dá a vida e renova a face da terra.

4 BALTHASAR, H.U. von, Teologica, 165 [tradução livre a partir do castelhano]. 5 BALTHASAR, H.U. von, Teologica, 165 [tradução livre a partir do castelhano].

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A MESA DO SACRIFÍCIO

5. No centro da vida da Trindade, pelo menos é o que podemos dizer a partir da

economia da Salvação, está a entrega do Filho de Deus por nós. Com efeito, segundo

Gisbert Greshake, “a mesa em torno da qual se agrupam os três hóspedes é um altar

sacrificial, claramente reconhecível pela cavidade destinada às relíquias”6. O olhar do anjo

da esquerda, o Pai, surge-nos como uma ordem que o gesto da mão apontando para o

cálice em cima da mesa torna clara e sugestiva. O Filho, numa aceitação incondicional,

repete o apontar do Pai – “Não hei-de beber o cálice de amargura que o Pai me ofereceu?”

(Jo 18, 11) perguntaria Jesus a Pedro – e o Espírito Santo estende a mão sobre o mesmo

cálice, como que respondendo ao envio do Pai e à epiclese eucarística da Igreja.

Na verdade, não é apenas o Filho que descerá dos Céus à terra; também o Espírito

Santo descerá com Ele, estenderá sobre a Virgem a sua força (cf. Lc 1, 35), predisporá os

homens para acreditar e aceitar o Redentor e, como dom absoluto do Pai, do Filho e da sua

reciprocidade, será instrumento de universalização da concretude da Palavra encarnada.

Afirma novamente von Balthasar que para que se possa universalizar a presença de Cristo é

necessário ultrapassar a barreira da Sua mera existência temporal e histórica. Aí reside a

missão do Espírito Santo, em três momentos: (i) a actuação do Espírito Santo na vida de

Jesus feito homem, particularmente nos quarenta dias depois da ressurreição, (ii) a

expressão sacramental, que relaciona Cristo com a Igreja histórica de cada época, e (iii) a

missionação cristã inserida da Tradição eclesial.

6. O cálice está no centro de todo o movimento circular do conjunto. Rublev mostra-

nos que a vida da Trindade acontece em torno do cálice da entrega da Vida: o banquete de

Abraão significa o banquete eucarístico; “o trono da Trindade passa em certa medida, sem

outra hipótese, a altar, sobre o qual se faz novamente presente na eucaristia o sacrifício da

6 GRESHAKE, G., El Dios Uno y Trino (Barcelona: Herder, 2001), 641 [tradução libre a partir do castelhano].

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redenção”7 . A Filoxenia de Rublev diz-nos que o caminho da salvação, em que Deus

procura o homem, tem o seu momento culminante no cálice sacrificial. Isso é de tal modo

relevante na obra de Rublev que o cálice surge, pelo

menos, em dois momentos: naturalmente em cima da

mesa, mas também, numa intuição admirável,

formado pelos dois anjos laterais como que

oferecendo o anjo central: o Pai e o Espírito Santo

oferecem o Verbo encarnado. Rublev mostra-nos a

entrega do Filho como um acontecimento na qual os

três participam.

Neste contexto, a cor sanguínea da túnica do Filho volta a ser significativa. Ele cumprirá

a sua missão no sacrifício de si: ele mesmo será a vítima. O braço que pesa sobre a mesa e a

expressão velada de tristeza que se pode ver no seu rosto são um modo de dizer que o

Filho conhece o preço da sua missão: a morte na Cruz, na sequência da qual brotou do seu

lado aberto sangue e água, simbolizados também no vermelho da túnica e no azul do

manto. A cabeça do Filho inclina-se para o Pai, mas todo o resto do corpo se dirige ao

Espírito Santo, pois Rublev sabia que, no sacrifício da Cruz, o Filho e o Espírito estão em

perfeita sintonia.

UM CONVITE

7. Os três anjos, como já vimos, estão inscritos num círculo que se projecta

verticalmente. No entanto, há também um outro círculo que se desenha em profundidade:

é o círculo formado pelos três anjos à volta da mesa, um círculo que imprime no ícone uma

abertura. Deus quis que o seu amor não lhe permitisse permanecer só. A comunhão

7 GRESHAKE, G., El Dios Uno y Trino, 641 [tradução libre a partir do castelhano].

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trinitária quis comunicar-se para fora e, por isso, os comensais ocupam três dos quatro

lugares da mesa e um deles está livre. Com este lugar, Rublev escreveu na sua obra a

vocação do homem. Deus criou-o e redimiu-o para o chamar a participar da Vida divina. É

o que dizia Santo Ireneu: “eis o motivo pelo qual o Verbo se fez homem, e o Filho de

Deus, Filho do homem: para que o homem, entrando em comunhão com o Verbo e

recebendo assim a filiação divina, se tornasse filho de Deus”8. Sentados à mesa com a

Trindade, entoamos um hino de agradecimento: a Eucaristia.

É também significativo que, para o lugar desocupado, dado que as asas dos anjos

fecham todas as restantes possibilidades, a única entrada se faça por baixo. Este facto diz-

-nos que só participando no mesmo sacrifício de Cristo, que “não se valeu da sua igualdade

com Deus mas aniquilou-se a si próprio” (Flp 2, 6-7), poderemos ter acesso à vida e à

comunhão da Trindade. A cavidade para as relíquias que Rublev nos deixou no ícone tem

também o mesmo significado; ela relembra os mártires que se esvaziaram totalmente de si e

participaram na Cruz de Cristo, purificando-se pelo amor. O amor, dizia também Santo

Agostinho, é por si mesmo figura da Trindade: immo vero vides Trinitatem si caritatem vides9.

Neste sentido, podemos também compreender que o duplo nome do ícone – a Filoxenia

ou a Trindade – é afinal um mesmo nome: com o acolhimento aos três anjos, Abraão

cumpre a sua vocação patriarcal: ele torna-se verdadeiramente o nosso Pai na Fé, o

primeiro a sentar-se na comunhão trinitária, como primícias de toda a humanidade.

8 SANTO IRENEU DE LIÃO, Adversus haereses, 3. 19. 1. 9 SANTO AGOSTINHO, De Trinitate, VIII. 8. 12.

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LIMITES DA REPRESENTAÇÃO DE RUBLEV

O ícone da Filoxenia de Rublev é, com referimos anteriormente, justamente

considerado a representação que consegue comunicar a Trindade da forma mais ortodoxa.

Se tal se verifica particularmente segundo a espiritualidade teológica do Oriente, não deixa

de ser relevante e surpreendente a sua capacidade de dizer a teologia trinitária como ela foi

sendo construída na linguagem do Ocidente cristão, pelos teólogos de língua latina. No

entanto, a verdade é que a Filoxenia de Rublev, bem como as reproduções posteriores que

nesta obra se inspiraram, tem também os seus limites, particularmente se quisermos fazer

dela a representação da Trindade ideal para toda a Cristandade.

Em primeiro lugar, embora seja patente a igualdade das pessoas, bem como o seu

carácter correlacional, é bastante evidente que o anjo da esquerda, diante do qual as outras

figuras se inclinam e em quem reconhecemos o Pai, está em primeiro plano. Esta primazia

é propriamente oriental e não se enquadra no pensamento teológico tipicamente latino, não

correspondendo por isso uma representação universalizável da Trindade.

No entanto, a principal crítica que podemos fazer, nomeadamente à luz dos contributos

de Karl Rahner e von Balthasar para a teologia trinitária contemporânea, é que a identidade

entre Trindade imanente (i.e., a realidade intradivina em si mesma) e Trindade económica

(i.e., a realidade intradivina como ela se comunica ‘para fora’) surge algo relativizada. Tal

situação deve-se ao facto de as figuras dos três anjos “aparecerem estranhamente ‘não

alcançadas’ pelo ‘dramatismo’ do acontecer salvífico do sofrimento e da Cruz” 10 . Do

mesmo modo, ainda que se procure justificar esta condição com a transcendência de Deus,

esta representação dificilmente pode fazer juz à kenosis de Deus em direcção ao abismo da

nossa humanidade.

10

GRESHAKE, G., El Dios Uno y Trino, 642 [tradução libre a partir do castelhano].

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CONCLUSÃO

Depois da leitura iconográfica que fizemos, resta-nos notabilizar a capacidade de abarcar

o mistério trinitário que a obra de Rublev possui por si mesma. Na realidade, a

contemplação da Trindade por meio deste ícone permite-nos experimentar esteticamente o

famoso axioma trinitário de Karl Rahner que revolucionou a teologia trinitária do século

XX: a Trindade económica é a Trindade imanente, e vice-versa. Com efeito, na

representação de Rublev, a Trindade imanente e a económica interpenetram-se, podendo-

se facilmente imaginar que a representação relacional da vida divina em comunhão

realizada pelo artista russo permaneceria idêntica sem o cálice e sem o altar do sacrifício,

i.e., sem os pendores económicos do ícone. De facto, “o ícone confirma com ênfase que a

Trindade imanente é (facticamente) a Trindade económica; não há outra vida trinitária além

daquela em que foi introduzida a humanidade e também a criação inteira”11. Daqui se

conclui, além do mais, que também a humanidade só encontra a plenitude quando se abre à

experiência da Trindade.

Balthasar, por seu lado, afirmava a inexistência de outro modo de aceder ao mistério

trinitário que não fosse Jesus Cristo e o seu modo de proceder relativamente ao Pai e ao

Espírito Santo – “não há debaixo do céu qualquer outro nome, dado aos homens, que nos

possa salvar” (Act 4, 12). Por tudo o que dissemos, particularmente no que toca à aceitação

livre e obediente do Filho perante o cálice que o Pai lhe oferece, bem como à perfeita

sintonia com o Espírito Santo, visível na mesma inclinação que fazem ao Pai, o ícone de

Rublev insere-nos no mistério do ‘sim’ de Jesus e convida-nos, à imitação do que fez Maria,

a repeti-lo.

11 GRESHAKE, G., El Dios Uno y Trino, 642 [tradução libre a partir do castelhano].

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Por fim, contemplar a Trindade a partir da experiência estética que o ícone de Rublev

possibilita revela também o sentido autêntico das palavras do Concílio Vaticano II: “A

Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o

desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito Santo”12. Na realidade, o ícone da

Trindade mostra-nos que o desígnio salvífico de Deus tem como finalidade a participação

dos homens na vida divina, ainda durante a peregrinação terrena.

12 CONCÍLIO VATICANO II, Decreto Ad Gentes sobre a actividade missionária da Igreja, 2.

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FONTES

AGOSTINHO (SANTO). Trindade – De Trinitate. Prior Velho: Paulinas, 2007.

BALTHASAR, Hans Urs von. Teologica, vol. 2. Madrid: Ed. Encontro, 1997.

CONCÍLIO VATICANO II, Decreto Ad Gentes sobre a actividade missionária da Igreja

[acedido electronicamente em 02-01-2014 no site: http://www.vatican.va/archive/hist_

councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decree_19651207_ad-gentes_po.html].

EVDOKIMOV, Paul. L’art de l’icône: théologie de la beauté. Paris : Desclee De Brouwer, 1970.

GREGORIO NACIANCENO. “Primer discurso sobre el Hijo” in Los Cinco Discursos

Teológicos. Madrid: Ciudad Nueva, 1995.

GRESHAKE, G.. El Dios Uno y Trino. Barcelona: Herder, 2001.

IRENEU DE LIÃO (SANTO). Adversus haereses [acedido electronicamente em 31-12-2013

no site: http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0130-0202,_Iraeneus,_Adversus

_haereses_libri_5_[Schaff],_EN.pdf]

OTERO, J. C.. Estética y culto iconográfico. Madrid: BAC, 2003.

RAHNER, Karl. “O Deus Trino, fundamento transcendente da História da Salvação” in

Mysterium Salutis, vol. II/1, cap. V. Petrópolis: Editora Vozes, 1978. 283-356.

Deixo, propositadamente nesta secção em que se listam as fontes a que recorri, um especial agradecimento

ao Cónego João Marcos, pela disponibilidade com que pôs ao meu dispor a sua leitura iconográfica da

Filoxenia de Andre Rublev e por partilhar a profundidade do seu olhar teológico sobre esta obra. O seu

contributo foi capital para a elaboração e sistematização do presente estudo.