Upload
guilherme-souza
View
106
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
Universidade Federal de Ouro PretoInstituto de Ciências Humanas e SociaisDepartamento de LetrasDisciplina: Teoria da Literatura IIProfessor: Emílio Carlos Roscoe Maciel
No momento em que vi a necessidade de expor meus pensamentos sobre a obra de
Charles Baudelaire acabei por esbarrar em um grande problema, o que dizer sobre
Baudelaire? O que ainda não foi dito de As Flores do Mal? Sabemos que o conceito moderno
de clássico é aquele texto inesgotável que tem sempre algo a nos dizer e a ser dito sobre. A
obra desse poeta é, sem sombra de dúvida, um clássico e o seu sentido nunca será totalmente
definido, sempre haverá algo a se dizer sobre Baudelaire. Grandes críticos já debruçaram
sobre a obra em questão e o fizeram muito bem, exemplo disso é Walter Benjamim que foi
um exímio leitor de As Flores do Mal; Erich Auerbach também o fez, de forma magistral.
Então, com toda essa dificuldade de apresentar algo novo, tentarei ir além da análise da obra
de Baudelaire. O que me proponho nesse ensaio é refletir sobre a modernidade ou, para ser
mais preciso, sobre o nosso horizonte de expectativa em relação à arte, iniciando, é claro, por
As Flores do Mal; prosseguirei o ensaio discorrendo sobre os poetas que foram decisivos para
a ampliação de nossos horizontes. Penso em poetas que, não apenas mudaram o centro de
nossa estrutura de sentimentos, mas a resignificaram, expandindo nossa capacidade de
recepção e apreciação da arte. São eles, respectivamente, Mallarmé, T.S. Eliot e Carlos
Drummond Andrade.
Ao lermos a obra de Baudelaire talvez à primeira impressão que nos passe é de um
poeta que discorre sobre os infortúnios da vida; um poeta que expressa sua individualidade
através de sua obra e que não se preocupa com o tempo que passa; que não se preocupa com a
sociedade a sua volta. Porém, quando vamos refletir sobre um texto literário, estou falando
daqueles textos que não foram escritos por contemporâneos, temos que interpretá-los a partir
de uma leitura histórica, buscando reconstruir o horizonte de expectativa de determinada
época, para não sermos anacrônicos, e ingenuamente adaptá-los aos preceitos e expectativas
de nossa época. O que tentaremos fazer, para não sermos injustos com o autor, é reconstruir
alguns elementos que constituíam a época em que Baudelaire escreveu e a partir do cenário
criado repensar a sua obra e os reflexos dela.
As Flores do Mal surgiram na Paris do século XIX, o capitalismo estava consolidado,
as cidades tomavam enormes proporções de sujeira, tamanho e número de habitantes. Os mais
incomodados ao tédio do trabalho das linhas de produção buscavam nos romances, que já
haviam rompido com as belas letras, um escape para os seus sentimentos. Nas ruas da grande
Paris o que se podia ver era a multidão de pessoas indo e vindo, pessoas desumanizadas pelo
capital. O que se escutava eram os murmúrios de cada indivíduo que, aglomerado em meio à
multidão, se perdiam junto aos outros murmúrios e o próprio indivíduo era englobado e se
tornava apenas parte daquela grande massa. Baudelaire se insere nesse cenário, mas
consciente das mazelas de seu tempo ele não irá mascará-las como fizeram os românticos,
esse cenário degradante será a sombra que persegue os seus poemas. Essas imagens da grande
Paris descritas por mim são apenas a título de ilustração. Vamos tomar como base o poema A
uma passante para recriar as imagens vigentes da época de sua elaboração e pensar o conceito
de modernidade para o autor.
A uma passante
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho... e a noite depois! –Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
Baudelaire faz um elogio da maquilagem no seu texto Pintor da vida moderna ele diz
que a mulher tem todo o direito de parecer mágica, sobrenatural e que para isso ela se valha
de todos os meios que a permitam pairar acima da natureza. E o que ocorre nesse soneto é a
descrição dessa mulher mágica que ele apresenta como tendo a necessidade de ultrapassar a
natureza.
A imagem que é criada nesse poema é a de uma mulher de tez branca, beirando a
palidez, com vestes negras e olhar vazio, um ar de superioridade que é demonstrado pela sua
dor majestosa, pelo seu corpo de fidalga. A beleza da mulher é exaltada quando ele, já
antecipando o raciocínio, a descreve como pálida e compara as pernas da passante com uma
estátua. Essa comparação sugere a divinização do ser, pois a estátua não tem as machas que
uma pele natural exibe. As vestes negras, segundo o autor, representam a vida sobrenatural e
excessiva e a passante sempre está com um semblante de superioridade que é afirmado, na
segunda estrofe, quando o eu lírico evoca no olhar da mulher um ar tempestuoso e distante
que o embriaga. É esse ser incompreensível e distante que ele descreve em seu soneto.
Antes mesmo de começar a descrição da passante o autor vai delineando os contornos
da existência de uma multidão, uma massa de pessoas amorfas, criando sua imagem em
consonância com o poema. A multidão preenche os espaços do soneto e vai acompanhando-o
desde a primeira estrofe. Walter Benjamim explicita a multidão da seguinte maneira:
Nenhuma expressão, nenhuma palavra designa a multidão no soneto A uma
passante. No entanto, o seu desenvolvimento repousa inteiramente nela, do
mesmo modo como o curso do veleiro depende do vento.
Com essa descrição da multidão podemos perceber que a passante é uma mulher em meio à
massa de outros (as) passantes, mas que ela se destaca não somente por sua vontade de
ultrapassar a natureza, mas também pelos olhos do poeta que consegue “retirar o eterno do
transitório”. Essa é a expressão chave que Baudelaire utiliza para conceituar a modernidade.
Para criar esse conceito ele irá fracionar a arte em duas partes. Uma que é transitória e outra
que é eterna.
Para compreendermos o que Baudelaire entende por arte temos que ter em vista que a
beleza particular estava ligada, como o próprio termo nos sugere, às particularidades de cada
época. Um exemplo são as vestimentas de determinado tempo que já não nos agradam, mas
conseguimos identificar alguma beleza nelas. Sempre houve o transitório. A beleza do
passado já foi transitória.
O elemento constituinte da arte que chamamos de belo é a metade eterna da arte. É
aquela beleza geral através da qual os artistas clássicos se exprimem. E essa beleza, segundo
Baudelaire, tem de ser aliada ao transitório, para que o passado não paire como um fantasma
sobre a arte moderna. A modernidade está ligada diretamente ao transitório, a busca pela
representação do presente não apenas pela beleza que o reveste com elementos tradicionais,
mas com a suas características, qualidades essenciais que o faz ser presente. A expressão
moderna é fruto da extração da parte transitória do belo. Pois, como diz Baudelaire no Pintor
da Vida moderna, quase toda nossa originalidade provém da marca que o tempo imprime às
nossas sensações.
Voltando obra de Baudelaire podemos repensar as marcas que imprimiram às suas
sensações como o amor à última vista que só pode se concretizar numa cidade grande, a
profanação do belo quando ele faz comparações como o seu amor a uma carniça, ou o céu
com uma tampa de panela. Essa crise do sublime é uma marca registrada do poeta e foi um
dos vários motivos do problema que ele teve com o público de sua época.
Aterei-me a esses dados gerais sobre Charles Baudelaire, pois, se não discorrerei por
infinitas páginas e como ainda pretendo comentar sobre as ressonâncias desse autor nos
poetas precedentes vou apenas resumir as características levantadas a partir de nossa análise e
comentar sobre o horizonte de expectativa daquela época.
Como sabemos Baudelaire escreve para um público que ainda está para se formar, ele
trata os seus leitores como hipócritas e irmãos. Quando ele escrevia As Flores do Mal tinha
em mente que não teria em vida uma boa recepção, pois tratava de escrever para os leitores
melancólicos preocupados com o apelo imediato dos sentidos, ele escrevia para leitores
afeitos ao Spleen (tédio, melancolia) que não tinham grande concentração para ler poesias
líricas. Ele acabou por projetar sua arte para além do seu tempo. Além dessa expansão da
receptividade, ele foi responsável por outras que, como já dissemos, são a crise do sublime
elencada por suas comparações; a união de temas opostos, fazendo emanar a beleza das
descrições mais profanas e as frases longas mesmo utilizando os versos alexandrinos, ou os
sonetos, como métrica fixa. Essas são apenas algumas características que gostaria de
apresentar, sei que existem várias outras no que tange a obra desse grande poeta. E para dar
continuidade ao raciocínio proposto no início do texto vamos buscar enxergar o campo de
possibilidades que Baudelaire abriu, e de alguma forma buscaremos saber como o poeta
Stéphane Mallarmé se apoderou dessas possibilidades para criar sua arte.
Quando falamos em horizontes de expectativas estamos referindo à tradição vigente de
determinado tempo e o que se espera dela. Posto que explicitamos qual tradição a poesia de
Baudelaire responde e ,eventualmente, presta a sua contribuição expandindo-a, pensemos
agora no caso Mallarmé e sua relação com a tradição.
Sumariamente o que devemos ter em vista quando pensamos em Mallarmé é a sua
postura em relação à arte. É sabido que ele pensava a tradição como sendo linear, ou seja, a
visão que ele tinha da Literatura era de uma arte em constante evolução. Arte em que os
escritores contribuíam no sentido de oferecer um avanço em relação à tradição, expandindo os
limites da linguagem. O poeta sabia que a nova forma de poesia proposta por ele haveria de
impactar a cultura literária. Ele utilizou de elementos retóricos e metafóricos em sua prosa
Crise de Verso para apresentar sua relação com a tradição, pois não a excluía e sim ampliava
os níveis de fruição gerando uma articulação entre os versos e o vazio das páginas. Mallarmé,
em sua prosa poética, opta por monumentalizar Victor Hugo, tecendo elogios ao poeta, diz-se
que ele tomou para si, por sua excelência como escritor, o direito dos outros poetas a se
enunciarem. Mallarmé institui a morte de Hugo como o marco da crise do verso, pois o verso
sem o seu melhor representante veio a se romper e a língua se desmembrou em diversos
elementos. É interessante como ele implica a morte de Hugo com a liberdade da língua, que
antes era presa aos versos e rimas. Ao mesmo passo que ele elogia Hugo ele o trata como um,
ou o último, carcereiro da língua. Postulado a morte de Hugo ele se impõe com uma tentativa
contemporânea da arte, como diz no célebre prefácio do poema Um lance de dados jamais
abolirá o acaso “nada ou quase uma arte” e afirma que esse Poema é um “estado” que não
rompe em todos os pontos com a tradição.
É importante salientar que Mallarmé, como um bom ouvinte de Wagner, tenta alçar a
poesia a um patamar superior e a aproximar da música. O que ele pretende, e efetivamente
consegue, é trazer para o campo da poesia a autonomia abstrata da linguagem musical. Vamos
tentar esclarecer esse termo a partir de um raciocínio que vai de encontro com a obra
mallarmeana. Pressupomos que a arte que mais têm afinidades com a música é a arquitetura,
pois ela é a arte dos espaços internos e externos. Tanto a música quanto a arquitetura se
inscrevem no vazio. A música pode ser pensada com a ordenação do silêncio e a arquitetura
com a organização do vazio. Ambas trabalham com os jogos do espaço-tempo. E Mallarmé
enquadra sua poesia no âmbito das duas artes citadas, pois ele é um regente da orquestra
poietica (ritmo, rimas, aliterações etc..) e arquiteto das páginas. Vale a pena citar um
parágrafo do livro Expressão e comunicação na linguagem da música, do maestro Sergio
Magnani, para definir melhor a junção da arquitetura e da música e apresentar a tarefa do
regente.
De fato, a tarefa do regente- dono de tantos instrumentos e outros tantos valores de
intensidade, extensão, tessitura, ritmo e timbre- é apenas a de organizar a volumetria
sonora em planos pluridimensionais (agógica, dinâmica, melos, condensações e
rarefações harmônicas, faixas sonoras) a fim de que arcos (fraseado), abóbadas
(pontos culminantes), fachada (materiais temáticos), diretrizes (texturas
contrapontísticas) e divisões dos espaços internos (cadências e limites formais) se
estruturem segundo o plano do compositor, apoiando-se nas zonas neutras para
preparar novas tensões. Desta forma, o gesto não é, como deseja uma concepção
romântica, o ato intuitivo de suscitar sonoridades e emoções, mas o ato muito
meditado de equilibrar espaços e volumes, de realizar a “escala arquitetônica” exata da
obra, a fim de que a recomposição dos elementos no tempo humano e psicológico
suscite as emoções pela sua própria virtude.
Pensemos o Mallarmé como o regente e a sua poesia uma sinfonia. Ele suscita através de uma
técnica quase que matemática a plurissignificação do poema que é realizada através da
disposição dos signos que em oposição ganham valores diversos. Nota-se a contraposição da
concepção romântica de autor, que intuitivamente sugeria as emoções, em relação à
concepção moderna apresentada da qual Mallarmé se utiliza. Ele, para aproximar-se do leitor,
afasta sua pessoalidade no poema dando a possibilidade de o leitor modular o poema como
melhor lhe agradar. Através desse modo de elaboração poética o poema fala por si e a
linguagem entra em autonomia. A sua significação vai ser gerada de acordo com o leitor
porque, antes da representação, o que ocorre é a sugestão de emoções por sua própria virtude.
Para exemplificar o que dissemos sobre Mallarmé voltemos no Um lance de dados.
Em uma primeira leitura notamos que existe uma frase que está em destaque no poema “Um
lance de dados jamais abolirá o acaso”. A primeira impressão que temos é de uma infinitude
de sentido porque o acaso se faz anterior ao lance de dados e o próprio lançar é a confirmação
do acaso. Apropriando de um trecho do poema para tentar esclarecer, ou não, a impressão que
nos perpassa é que quando tentamos interpretá-lo nos vemos lançados, como dados, em
circunstâncias eternas. Um imenso ciclo de significações como uma nau que naufraga no
abismo branco, num silêncio enrolado em ironia, turbilhão de hilaridade e horror; como uma
pluma, de uma brancura rígida, perdida, imobilizada no veludo por uma gargalhada sombria,
que nunca toca o chão. O poeta nos oferece uma aparente solução para esta equação quando
ele evoca a imagem de uma constelação que para conseguirmos formá-la temos de criar a sua
imagem mentalmente e depois observar as luzes no caos do universo. Essa imagem é
levantada para apresentar a cumplicidade do leitor que forma a sua constelação dentro das
estrelas do poema, estrelas essas que sugerem diversos rumos e pontos.
Apresentei alguns fragmentos do poema no parágrafo acima propositalmente, porque
como lembramos o objetivo desse texto é apresentar as expansões da receptividade estética. E
retornando às características que ora vimos na obra de Charles Baudelaire, sabemos que
Mallarmé não renunciou aos seus precedentes, podemos perceber claras ressonâncias daquele
poeta nesse. A primeira vista temos a crise do sublime e ecos de palavras recorrentes na obra
baudeleriana como, sombrio, vórtice, abismo e entre tantas outras imagens que são
confrontadas por elementos elevados como pluma, brancura, veludo, constelação, etc. Temos
também a prolongação da frase por diversos períodos, que no primeiro chegou a quatro versos
e no segundo durou o poema inteiro. E por último as comparações entre objetos
aparentemente distintos, como são tradicionais em Baudelaire, se fazem presentes nas
imagens de um naufrágio, comparada com uma pluma caindo que por sua vez é comparada a
uma constelação.
A partir desses elementos apresentados percebemos como Mallarmé se apropriou da
tradição e acrescentou, como sua visão de arte sugere, elementos que criam novas
possibilidades de expressão a partir da linguagem, rearranjando a maneira de se pensar a
poesia e mostrando que os versos são somente uma possibilidade entre tantas outras no fazer
poético.
O que eu gostaria de problematizar a partir de agora é a ideia, que foi operada até esse
ponto do texto, de tradição. Para se pensar a modernidade é necessário recorrer, como estamos
fazendo, a uma análise histórica e temos que ponderar o entendimento de cada artista pelo que
chamamos de tradição. Tentarei esclarecer esse termo que foi tanto utilizado no texto, mas
não foi tratado com o devido afinco. Como já apresentei o conceito de tradição do ponto de
vista de Mallarmé, que é aquela ordem linear em que cada artista acrescenta novas
possibilidades, irei contrastar com uma maneira de pensar a tradição diversa e o poeta que
apresenta claramente esse conceito para a nossa discussão é T.S. Eliot. Tomemos então como
nosso próximo passo o contraste da compreensão de tradição para os dois poetas
mencionados.
T.S. Eliot foi, também, além de poeta, um grande crítico literário. Sua obra diverge em
alguns pontos que serão esclarecidos, por isso vamos recorrer a dois de seus textos para tentar
explanar suas ideias. São eles: A tradição e o talento individual e The weste land.
Eliot divergia, como fizeram Baudelaire e Mallarmé, com os ideais do gênio
romântico, para ele nenhum artista detinha em si todo significado da arte, ele afirma que só
existe a possibilidade de se avaliar, como poeta, em comparação com os poetas mortos, ou
seja, com a tradição. Eliot defendia que é quase indispensável ao artista obter um sentido
histórico da tradição, que compreende uma percepção não só do passado, mas da sua
presença. Para ele a tradição, diferente da forma que vimos em Mallarmé, existe de forma
simultânea com a modernidade. Podemos notar isso melhor quando ele compara a tradição a
um monumento e diz que:
Os monumentos existentes formam uma ordem ideal, a qual é modificada pela
introdução da nova, da verdadeiramente nova, obra de arte. A ordem existente estará
completa antes da chegada da nova obra; para que ela persista após o acréscimo da
novidade, deve a sua totalidade ser alterada, embora ligeiramente e, assim, se
reajustam a esta as relações, as proporções, os valores de cada obra de arte; e isto é a
concordância entre o velho e o novo.
Com base nessa formulação de tradição, podemos inferir, segundo ele, que o passado seja
alterado pelo presente, tanto quanto o presente é dirigido pelo passado. Essa modificação do
passado se deve ao fato do poeta poder assimilar a tradição e inserir-se nela tendo a
consciência de que a arte não se aperfeiçoa, mas o que modifica são os materiais da arte que
nunca são os mesmos. O poema The weste land, nos oferece um terreno mais sólido para
tentar elucidar essa questão.
Evidencia-se em The weste land a impessoalidade do poeta que, referida em seus
Ensaios de doutrina crítica, aponta para a separação das emoções individuais do artista
marcadas pela fuga à emoção e à tranquilidade. Ele diz que para exprimir-se o poeta utiliza de
um meio particular e não uma personalidade, no qual se combinam impressões e
peculiaridades de maneira imprevistas. O poema apresenta certa dificuldade de leitura,
primeiro por ter diversas referências a textos da tradição, e por Eliot publicar notas de pé de
página. O que demonstra sua consciência que o público alvo de seu poema não conhecia tais
referências literárias. Ele sabia que a tradição estava por se perder na modernidade e a
metaforiza em seu poema como uma pilha de imagens quebradas. Essas imagens quebradas
vão tentando tomar forma pelo poema mesclando a voz de Eliot com as de Shakespeare,
Baudelaire, Dante e outros autores. Mesmo com essa chuva de referências não se faz
necessário conhecer todas para buscar o sentido do poema. Esse se sustenta por si. O poeta vai
se esforçando, ou melhor, cria a imagem desse esforço, através dos versos para tentar
expressar-se. Ele gera essa tensão com a repetição da conjunção aditiva “e”. Toda a
dificuldade torna ainda maior quando percebemos a associação de diversas ideias que
quebram com a unidade das frases e deixa o leitor, mesmo o mais atento, inquieto com a
leitura.
Com essa breve ilustração da interpretação de T.S. Eliot sobre a tradição e sua vontade
de preservá-la, mesmo sabendo da possibilidade de ela olvidar-se. Podemos a partir de agora
buscar um poeta mais próximo de nosso tempo a fim de aproximar as ideias dos autores já
estudados por nós e compararmos o que legamos da tradição e como nossos contemporâneos
trabalham com ela.
Tomemos como exemplo o poema Oficina irritada do poeta, Carlos Drummond
Andrade:
OFICINA IRRITADA
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
Ao mesmo tempo saiba, ser não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.
Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
Nesse poema de Carlos Drummond Andrade percebemos todo o engenho do poeta ao
dialogar com a tradição em poucos versos. De início podemos notar que ele escolheu o soneto
como forma do poema. Sabemos que esse modelo é um dos mais rígidos da poesia e, também,
o mais utilizado por Baudelaire. E como tocamos em Baudelaire, podemos nos lembrar de
como ele tratava os seus leitores, os agredindo e Drummond repete essa fórmula quando ele
diz querer pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Não apenas o tratamento, que
se reafirma no verso seis, mas a cor do poema nos diz muito, pois se voltarmos na nossa
análise do soneto A uma passante veremos que a cor preta representa uma vida sobrenatural e
excessiva. O poema resiste à morte da tradição e a ultrapassa. Na próxima estrofe o poeta
continua afirmando a dificuldade de se ler o soneto que ele propõe, podemos nos lembrar de
T.S. Eliot quando ele utiliza várias referências clássicas em seu The weste land tornando o
poema de difícil compreensão. Drummond não utiliza de notas, mas é evidente que o seu
leitor irá precisar de um bom dicionário e de certa erudição para compreender o poema. No
verso oito temos uma expressão que remete ao prefácio de Um lance de dados jamais abolirá
o acaso, de Mallarmé, quando Drummond diz “ao mesmo tempo saiba ser, não ser” temos
como evidência a mesma questão que Mallarmé coloca quando ele publica Um lance de
dados que é “nada ou quase uma arte”. No décimo verso Drummond volta ainda mais no
tempo evocando a imagem de Vênus, a deusa da beleza, mas como um bom baudelairiano ele
utiliza da crise do sublime e cria a imagem precisa do pé, tendão, de Vênus sob o pedicuro, ou
seja, ela está sendo flagelada pelo verbo antipático do autor. Na última estrofe ele mostra um
descaso com sua própria criação, o poema cairá no esquecimento, pois não atinge sua meta
como um tiro que não acerta o alvo. E por último Drummond vai unir elementos baixos e
altos como um cão mijando no caos. O cão mijando é algo que nos causa estranheza por
aparecer em um soneto, forma que era usada para tratar de assuntos elevados. Mas ao mesmo
passo desse animal urinando ele cita o caos, que é a infinitude, matéria superior. E finaliza
com a imagem de uma constelação, referência clara a Mallarmé, que se deixa ser criada pelo
ponto de vista do observador, claro enigma que se deixa surpreender.
Como vimos esse soneto de Drummond converge toda a tradição e a subverte, ele a
trata de modo diferente dos autores que já citamos. Baudelaire queria extrair o eterno do
transitório, Mallarmé tentara aperfeiçoar o eterno e T.S. Eliot quis inserir o transitório no
eterno. Drummond e os modernistas brasileiros, amparados pela modificação da estrutura
receptiva do público que os poetas estudados por nós possibilitaram, subvertem a tradição e
tentam criar um marco zero na nossa cultura. Elevando as características apresentadas desde
Baudelaire a um patamar superior buscando a quebra de expectativa do seu leitor. Uma das
características que faz Drummond ser um grande poeta é a sua capacidade de mobilizar toda a
tradição em único soneto.
Agora perguntemo-nos oque entendemos por modernidade? O que pode se apreender a
respeito de tradição? Como vimos cada artista tem uma compreensão do mundo, da expressão
e de sua arte. Ao mesmo passo que trabalham com os horizontes de expectativa de sua época,
sempre buscam superá-lo e não se contentam em viver no seu tempo. A angústia do artista é
visível em todos os seus traços, a busca incessante de estar à frente de ter uma compreensão
melhor do mundo. De poder representar seus sentimentos. Seria a modernidade essa angústia?
Deixo essa questão para o leitor decidir, pois resposta ainda não encontrei.